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GEOGRAFIAS FEMINISTAS

E DAS SEXUALIDADES:
ENCONTROS E DIFERENÇAS
TODAPALAVRA Editora

EDITOR-CHEFE
Hein Leonard Bowles

COEDITOR
José Aparicio da Silva

Conselho Editorial
Dr. Alexandro Dantas Trindade (UFPR)
Dra. Anelize Manuela Bahniuk Rumbelsperger (Petrobrás)
Dr. Carlos Fortuna (Universidade de Coimbra)
Dra. Carmencita de Holleben Mello Ditzel (UEPG)
Dr. Christian Brannstrom (Texas A&M University)
Dr. Claudio DeNipoti (UEPG)
Dr. Constantino Ribeiro de Oliveira Junior (UEPG)
Dra. Divanir Eulália Naréssi Munhoz (UEPG)
Dr. Edson Armando Silva (UEPG)
Dr. Hein Leonard Bowles (UEPG)
Me. José Aparicio da Silva (IFPR)
Dr. José Augusto Leandro (UEPG)
Dr. José Robson da Silva (UEPG)
Dra. Joseli Maria Silva (UEPG)
Dr. Kleber Daum Machado (UFPR)
Dr. Luis Fernando Cerri (UEPG)
Dra. Luísa Cristina dos Santos Fontes (UEPG)
Dr. Luiz Alberto Pilatti (UTFPR)
Dr. Luiz Antonio de Souza (UEM)
Dra. Manuela Salau Brasil (UEPG)
Dr. Marcelo Chemin (UFPR)
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Ma. Maria Zaclis Veiga (Universidade Positivo)
Dra. Patrícia da Silva Cardoso (UFPR)
Dr. Sérgio Luiz Gadini (UEPG)
Dra. Silvana Oliveira (UEPG)
Me. Vanderlei Schneider de Lima (UEPG)
Dra. Vera Regina Beltrão Marques (UFPR)
Dr. Vitoldo Antonio Kozlowski Junior (UEPG)
Dr. Wolf Dietrich Sahr (UFPR)
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior

GEOGRAFIAS FEMINISTAS
E DAS SEXUALIDADES:
ENCONTROS E DIFERENÇAS
© 2016 Todapalavra Editora

Os organizadores detêm os direitos de publicação, em língua portuguesa, de nove textos reunidos


nesta obra, dos seguintes autores: Janice Monk e Susan Hanson; Doreen Massey; Julie Cupples; Peter
E. Hopkins; Kath Browne; Lynda Johnston; Gavin Brown; John Paul Catungal; Cesare Di Feliciantonio. Os
direitos autorais do texto de Janice Monk e Susan Hanson foram adquiridos de Taylor and Francis
- Routledge, e os direitos autorais dos textos de Doreen Massey e Julie Cupples foram adquiridos
de John Wiley and Sons Inc. Os demais textos tiveram seus direitos autorais cedidos por ACME: An
International Journal for Critical Geographies.

Imagem da capa
“Corpo feminino e árvore” - © Fotolia

Tradução dos textos originais em inglês


Francisco Innocêncio

Capa, projeto grá co e diagramação


Dyego Marçal

Revisão e supervisão editorial


Hein Leonard Bowles

Ficha Catalográ ca Elaborada por Seção de Tratamento da Informação – BICEN/UEPG

G342 Geogra as feministas e das sexualidades: encontros e diferenças/Joseli Maria


Silva; Marcio Jose Ornat; Alides Baptista Chimin Junior (Org.). Ponta
Grossa: Todapalavra, 2016.
272 p.; il.

ISBN: 978-85-62450-47-1

1. Geogra a humana. 2. Gênero feminino. 3. Sexualidade. 4.


Neoliberalismo. I. Silva, Joseli Maria (Org.). II. Ornat, Marcio Jose (Org.).
III. Chimin Junior, Alides Baptista (Org.). IV. T.

CDD: 304.23

Depósito legal na Biblioteca Nacional


ISBN: 978-85-62450-47-1

Todapalavra Editora
Rua Xavier de Souza, 599
Ponta Grossa – Paraná – 84030-090
Telefones: (42) 3226-2569 / (42) 98424-3225
E-mail: todapalavraeditora@todapalavraeditora.com.br
Site: www.todapalavraeditora.com.br
Para Doreen Massey,
nosso agradecimento profundo por ter ajudado
na organização deste livro antes de sua passagem.
Jamais nos esqueceremos desse seu gesto
de solidariedade e carinho!
SUMÁRIO

Prefácio — Geografias malditas, malditas geografias?:


a discussão de gênero e sexualidades segundo
diferentes pontos de vista, no mundo 9
Miguel Angelo Ribeiro

Sobre as desobediências epistemológicas


e o testamento intelectual de Milton Santos
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
13
Alides Baptista Chimin Junior

Não excluam metade da humanidade


da geografia humana
Janice Monk
Susan Hanson
31
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
Doreen Massey 55
Desenvolvimento rural em El Hatillo,
Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
Julie Cupples
83
Mulheres, homens, posicionalidades
e emoções: fazendo geografias feministas da
religião
Peter E. Hopkins
109
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”:
os lugares e olhares de corporalização “feminina”
Kath Browne
131
“I do down-under”: naturalizando paisagens
e amor através do turismo matrimonial na
Nova Zelândia
Lynda Johnston
159
O casamento e o quarto de hóspedes:

179 explorando a política


sexual de austeridade na Grã-Bretanha
Gavin Brown

Refúgios etnoespecíficos na zona de


contato liberal: política

197 racial, construção de espaço e as


genealogias do setor de
AIDS na cidade multicultural global de Toronto
John Paul Catungal

A política sexual do neoliberalismo

237 e a austeridade num país


“excepcional”: a Itália
Cesare Di Feliciantonio

269 Sobre os autores


PREFÁCIO
Geografias malditas, malditas
geografias?1: a discussão de gênero
e sexualidades segundo diferentes
pontos de vista, no mundo
Por um mundo onde sejamos socialmente iguais,
humanamente diferentes e totalmente livres.
Rosa Luxemburgo

O
s estudos sobre gênero e sexualidades à luz da geografia
brasileira têm sua gênese a partir dos anos 1990, confor-
me aponta Ribeiro (2002)2. Em 2003 surge em Ponta Gros-
sa, Paraná, o Grupo de Estudos Territoriais (Gete), sob a liderança da
geógrafa feminista Joseli Maria Silva e seus companheiros de pesquisa,
dentre eles Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior.
Este grupo trouxe novas questões para a análise espacial, pau-
tadas no gênero e nas sexualidades, em contraponto às abordagens
heteronormativas, e que, recentemente, agregou outras facetas iden-
titárias, como as racialidades.
No ano de 2016, o Gete, já consolidado e lugar de referência no
Brasil e no exterior, nos brinda com esta coletânea intitulada ‘Geo-
grafias Feministas e das Sexualidades: Encontros e Diferenças’. São
artigos de pesquisadores de diferentes lugares do mundo, interessa-
dos em tratar de temáticas que fogem às normas vigentes de uma so-
ciedade excludente e preconceituosa.
Em pleno final da segunda década do século XXI, ainda vivemos a
discriminação contra mulheres, gays, bissexuais, travestis, transgêneros

1
Aproprio-me de parte do título do livro organizado por Silva, Ornat e Chimin Junior,
publicado em 2013 pela Todapalavra Editora, intitulado ‘Geografias Malditas: Corpos,
Sexualidades e Espaços’.
2
Trata-se da obra ‘Território e Prostituição na Metrópole Carioca’, que reúne artigos
elaborados nos anos 1990, com questão central pautada na prostituição. Destacam-se
alguns importantes colaboradores, como Jan Carlos da Silva, Rogério Botelho de Mattos
e Rafael da Silva Oliveira.
e transexuais. A violência marca os espaços, tornando tais grupos
sociais vítimas de assassinatos. Não importa a escala espacial, o so-
frimento diário faz parte da sua vivência: em casa, no trabalho, nos
locais de lazer, nas ruas e em qualquer outro espaço público.
Neste contexto, com esforço e coragem, a coletânea apresen-
tada pelo Gete para a sociedade e a academia traz uma importante
contribuição para transformar a discriminação em torno de gênero e
sexualidades a partir do espaço.
A obra é composta de textos críticos à ordem social hetero-
normativa e sexista, abordando identidades fluidas e plurais. Janice
Monk e Susan Hanson discutem o sexismo na organização e produ-
ção da ciência geográfica. Kath Browne, fundamentada na teoria queer,
evidencia a necessidade de superação da bipolaridade de gênero
baseada apenas no masculino e no feminino. Peter Hopkins traz a
religião como marcador de diferença social e cultural, tratando das
experiências de jovens muçulmanos. Doreen Massey (in memoriam)
examina a forma como as dualidades razão/desrazão e transcendên-
cia/imanência são estruturadoras da compreensão do espaço e pro-
põe a desconstrução desse tipo de imaginação geográfica.
O livro traz também uma preocupação com o debate político e
promove uma crítica construtiva acerca das maneiras pelas quais a
perspectiva feminista pode ser incorporada à Geografia. Gavin Brown
faz uma avaliação sobre as mudanças de atitudes sociais em relação
à homossexualidade, bem como sobre a criação de novas homonor-
mas que tensionam a estrutura social vigente na Grã-Bretanha. Outro
debate político é o exame das racialidades na composição da gene-
alogia da AIDS e sua relação com o espaço na cidade de Toronto, no
Canadá, realizado por John Paul Catungal. A austeridade da políti-
ca sexual na Itália, com o aprofundamento do neoliberalismo e os
limites de acesso ao espaço baseados na etnia, gênero, classe, capital
humano e cultural, entre outros, é contribuição de Cesare Di Feli-
ciantonio. Julie Cupples contempla as políticas de desenvolvimento
sustentável na Nicarágua, notadamente como implementadas por
mulheres, para superar as profundas desigualdades econômicas e a
degradação ambiental daquele país. Por fim, Lynda Johnston analisa
a política econômica do turismo matrimonial na Nova Zelândia, com
a criação do simbolismo das paisagens, que se instituem como puras,
exóticas e românticas.
Todos esses textos são instigantes e inovadores. Eles esclare-
cem, defendem e ampliam as abordagens geográficas de gênero, raça

10
Prefácio — Geogra as malditas, malditas geogra as?: a discussão de gênero e
sexualidades segundo diferentes pontos de vista, no mundo

e sexualidades, ainda consideradas por alguns acadêmicos, mesmo


na Geografia, como de menor importância.
A diversidade temática retratada neste livro, certamente muito
distinta daquilo que comumente se encontra no pensamento geo-
gráfico brasileiro, rompe com a tradição de uma Geografia sexista e
heteronormativa. Gênero e sexualidades se inserem definitivamente
nas discussões científicas do final do século 20 e início do século 21,
tornando visíveis suas geograficidades.
Assim, ao retomar o título deste prefácio, inspirado na obra
‘Geografias Malditas’, onde se argumenta que o gênero e as sexua-
lidades são temas interditados no discurso científico, quero afirmar
que esta expressão-título perde seu sentido diante da caminhada já
realizada. Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chi-
min Junior afirmam, em um dos textos desta obra, que “não há fazer
científico desinteressado, e nosso empenho acadêmico é produzir
uma Geografia brasileira capaz de trazer sujeitos generificados, sexu-
alizados e racializados para o centro do debate científico”.
Parabéns ao Gete, pelo interesse, empenho e conquista! Desejo
uma boa leitura para todos, lembrando que pensar, ousar e lutar faz
parte do cotidiano de nós humanos!

Miguel Angelo Ribeiro


Professor Associado do Instituto de Geografia (IGEOG)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Primavera/Verão 2016

11
Sobre as desobediências
epistemológicas e o testamento
intelectual de Milton Santos
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior

E
nquanto pesquisadores da área da geografia com foco nas
relações de gênero e sexualidades, temos recebido ques-
tionamentos sobre um certo afastamento da tradição
epistemológica brasileira, notadamente sobre as teorias socioespa-
ciais, profundamente alicerçadas na produção intelectual de Milton
Santos. Quando decidimos produzir este livro com textos de origem
anglófona, percebemos que era o momento de nos pronunciarmos
sobre uma escolha que envolve diferentes táticas e escalas espaciais
de nossa atuação científica. Realizar a reflexão sobre a ‘geografia do
nosso fazer geográfico’ implica considerar as tensões sutis engendra-
das no campo acadêmico que relacionam os saberes produzidos e os
poderes que são investidos na constituição da disciplina. Afinal de
contas, conforme aponta Bourdieu (2004), não há fazer científico de-
sinteressado, e nosso empenho acadêmico é produzir uma geografia
brasileira capaz de trazer sujeitos generificados, sexualizados e racia-
lizados para o centro do debate científico.
Munidos dessa intencionalidade, num primeiro momento do
texto esclarecemos as formas de apropriação das obras de Milton
Santos que vão sendo reinterpretadas ao longo de nossa trajetória
científica. Ora legitimando o campo1 geográfico instituído, e ora con-
flitando com ele. Posteriormente, abordamos outras imaginações

1
O autor cria a noção de ‘campo’ para escapar a duas tendências de interpretação da
história das ciências. Uma das tendências, considerada interna, imagina a história
como se a ciência se transformasse unicamente por desdobramentos de si mesma pela
superação de enunciados científicos, e a outra, externa, considera a história da ciência
submetida às conjunturas econômicas e sociais. Para ele, não basta compreender apenas
o conteúdo textual de uma ciência, tampouco o contexto de sua produção. Entre essas
duas perspectivas há um universo intermediário que ele denomina campo.
geográficas possíveis, e necessárias, de serem consideradas num
contexto científico globalizado. Nosso interesse aqui é evidenciar a
relevância simbólica das proposições geográficas feministas e das se-
xualidades no campo geográfico brasileiro.2
Milton Santos faz parte das nossas histórias pessoais e profis-
sionais, dado o alcance e força de propagação de sua produção literá-
ria no campo científico geográfico brasileiro. Suas proposições teóri-
cas foram a base de nossa formação, como a de tantas outras pessoas
formadas em geografia nos anos 80 e 90 no Brasil. Os diferentes níveis
de formação acadêmica e rituais de passagem na graduação, mes-
trado e doutorado fundem nossa história particular com a produção
teórica miltoniana. Nossas bibliotecas particulares são repletas de
seus livros, alguns deles guardados como uma relíquia por estarem
autografados pelo grande mestre. Seu legado científico para consoli-
dação da ciência geográfica brasileira é inestimável e, de certa forma,
não mais pertence a ele, porque passou a fazer parte de nós mesmos,
de nossos modos de pensar o espaço geográfico e de construir nossas
práticas acadêmicas de ensino e pesquisa. As imaginações geográfi-
cas que temos hoje certamente têm seu legado.
A forma com que nós constituímos nossas imaginações geográ-
ficas ao longo de determinadas trajetórias acadêmicas sustenta posi-
ções conceituais e as possibilidades de questões que cada pesquisa-
dor é capaz de formular para produzir alguma compreensão sobre a
realidade em que vive. Ao fazermos parte de um determinado campo
científico, entramos num jogo de poder em que as teorias e conceitos
legitimados criam as possibilidades de interpretar a realidade. Fou-
cault (1999) alerta que a vinculação entre os enunciados, objetos e
sujeitos que articulam o poder e o saber também engendram suas
possíveis resistências. As universidades, enquanto espaços discipli-
nares constituídos das condições políticas dos saberes, são lugares
de exercício do saber/poder, mas também do questionamento dos
mecanismos que estruturam a trama do discurso do saber, conforme
argumenta Foucault (1990).
O uso da ideia de genealogia proposta por Foucault (1999, p. 13)
como “acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias lo-
cais” é um caminho interessante para reflexão de nossa trajetória como
profissionais da geografia, posicionados num campo científico forte-
mente estruturado pelas teorias socioespaciais de base miltoniana.

2
Para Bourdieu (1990, p. 46), “o campo científico é um jogo em que é preciso munir-se
de razão para ganhar”.

14
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

Os anos 90 foram marcados pela consolidação de uma série de


conquistas dos movimentos sociais propiciadas pela Constituição Fe-
deral de 1988. Uma delas foi certamente o processo de participação
popular na elaboração das políticas urbanas. A elaboração de Planos
Diretores municipais com participação popular foi uma obrigato-
riedade constitucional, e os encontros com a população passaram
a ser parte da rotina de profissionais da geografia que atuavam nos
governos municipais. A abertura de canais de diálogo entre o Poder
Executivo Municipal e os moradores das periferias pobres trouxe ex-
periências ímpares para a compreensão da diversidade de demandas
elaboradas por diversos grupos sociais.
Uma das primeiras lições que tivemos foi a de que a pobreza das
cidades não é homogênea e que a classe não era a única identidade
que promovia os processos reivindicatórios pela cidade. As reuniões
nas periferias repletas de mulheres, muitas delas negras, traziam pro-
blemas de falta de creches, escolas, da segurança de si e de seus filhos
que implicavam uma interseção entre classe e a condição feminina e
racial. Seus discursos pelo direito à cidade estavam relacionados às
hierarquias de gênero, raça e sexualidades.
Mesmo diante dessa realidade concreta, nossas imaginações
geográficas construídas até então nos limitavam a compreensão das
muitas e distintas reivindicações por espaço. Essas experiências lo-
calizadas em nosso cotidiano conflitavam com a formação teórica
que pautava nossas práticas geográficas. Se as mulheres com as quais
tínhamos que negociar as ações políticas espaciais traziam elemen-
tos estranhos às nossas teorizações sobre a produção do espaço, te-
ríamos nós, cientistas, a autoridade de dizer que tais elementos não
eram passíveis de serem contemplados porque a ciência à qual está-
vamos afiliados não reconhecia tais aspectos como estruturadores da
realidade espacial? Negar a existência espacial dessas mulheres para
assegurar o conforto da certeza do saber teórico sobre o espaço não
seria consolidar mais uma forma de exclusão? Quais eram as geogra-
fias produzidas por elas que traziam elementos tão distintos de nossa
tradição epistemológica?
Esses questionamentos que surgiram da zona de contato entre
a nossa geografia científica e as geografias produzidas por mulheres
nos anos 90 trouxeram os primeiros tensionamentos em torno da
tradição epistemológica da ciência geográfica da qual fazemos parte.
Afinal, eram essas mulheres, reconhecedoras de suas identidades, se-
res não espaciais, ou eram nossas ferramentas conceituais incapazes
de construir a compreensão de suas espacialidades?

15
Foi a compatibilização dessas geografias, as delas e as nossas,
no sentido da genealogia foucaultiana, que produziu nossas primei-
ras resistências e reflexões em torno da forma como os saberes/pode-
res são estruturados na geografia. Foucault (1999, p. 15) questiona as
relações de poder entre os saberes da seguinte forma:

Quais tipos de saber vocês querem desqualificar no mo-


mento em que vocês dizem ser esse saber uma ciência?
Qual sujeito falante, qual sujeito discorrente, qual sujeito
de experiência e de saber vocês querem minimizar quan-
do dizem: ‘eu, que faço esse discurso, faço um discurso
científico e sou cientista’?

A ideia da genealogia não permite hierarquizar saberes a partir


de um sistema de rigor científico, mas entender que o reconhecimen-
to da existência dos saberes ocorre por diferentes relações de poder.
Definitivamente, não é apenas pela consistência epistemológica que
a ciência geográfica brasileira nega a existência espacial de grupos
baseados em identidades raciais, de gênero ou sexualidades. Assim
procede a nossa geografia porque a produção científica do campo é
perpassada por interesses que são também políticos e econômicos.
O que está em jogo são as regras do campo, como afirma Bourdieu
(2004), a distribuição de prestígio e poder que os agentes e as insti-
tuições podem conceder ou limitar. Por isso, ainda hoje, os opera-
dores da geografia acadêmica no Brasil disfarçam seus interesses em
críticas pretensamente conceituais e ontológicas do campo de saber
geográfico, considerando as abordagens de gênero, raça e sexualida-
des como de baixo nível de cientificidade (Silva, 2009; Silva, Ornat e
Chimin, 2013; Cesar, 2014).
Os rituais acadêmicos legitimam determinados saberes, e outros
saberes se legitimam pelo exercício de viver. Ambos requerem a análise
de lutas políticas. Não propomos a negação das especificidades de di-
ferentes formas de saber, mas queremos pontuar a posição de que essa
diferença não se pauta pelo valor atribuído como uma verdade ape-
nas porque uma das versões está sustentada na ideia de cientificidade.
Portanto, em nossa visão de ciência, o saber se institui no processo de
reconhecimento da multiplicidade e não da universalidade.
Ao fazer parte do campo científico da geografia brasileira, de-
fendendo as abordagens geográficas de gênero, raça e sexualidades,
convivemos com vozes que se erguem para alertar para o ‘perigo’ dos
saberes não geográficos que tentam compor a geografia. O alerta aos

16
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

‘perigos’ tem sido respaldado pela defesa de uma tradição espiste-


mológica, a fim de preservar o que alguns geógrafos pensam ser a
‘verdadeira’ geografia. Os intelectuais adeptos do fundamentalismo
científico têm desempenhado importante papel na negação de de-
terminadas existências espaciais humanas, contribuindo para a vio-
lência epistêmica que a geografia brasileira ainda impinge sobre gru-
pos sociais invisibilizados.
Em meio a uma formação intelectual fortemente pautada nas
concepções miltonianas e a tensão de realidades não contempladas
por este corpo teórico ocorreu a leitura do Testamento Intelectual de
Milton Santos (2004). A leitura atenta deste texto, realizada na pers-
pectiva ‘da operação de caça’ de Michel de Certeau (1994), aplacou
um sentimento de falta, por estarmos traçando um caminho cientí-
fico que não mais corresponde à tradição epistemológica que apren-
demos a amar e que conduziu nossas imaginações geográficas du-
rante grande parte de nossas vidas.
Michel de Certeau (1994), no texto ‘Ler: uma operação de caça’,
chama atenção para o fato de que a leitura é um processo ativo de
quem lê, afirmando que a obra textual é um efeito da construção do
leitor. Para ele, um leitor tem certa autonomia frente aos textos, pois
a leitura depende das interações dos leitores com os textos e das rela-
ções sociais que estabelecem. Ainda segundo Certeau, a leitura é uma
prática de natureza tática que se contrapõe à escrita, que está aliada
à ordem das estratégias.3 Chartier e Hébrard (1988) argumentam que
cada leitura possibilita inúmeras formas de apropriação do texto es-
crito e que, nesse sentido, é impossível haver uma leitura ‘correta’ de
um texto. Portanto, embora a intencionalidade da escrita (estratégi-
ca) de Milton Santos possa ser outra, nossa leitura (tática) do texto é
uma interpretação mediada pela nossa trajetória intelectual e exis-
tencial.
O Testamento Intelectual de Milton Santos, rico em humanida-
de, desmistifica a figura santificada do cientista isolado em sua torre
3
O pensamento de Certeau (1994) sobre a sociedade está organizado na ideia de estratégia
e tática. Para ele, a estratégia é uma entidade reconhecida pela autoridade e manifestada
em operações concretas, tendo como objetivo a perpetuação das coisas que ela produz.
No caso da discussão específica empreendida aqui, o texto escrito seria entendido
como estratégia do mundo acadêmico na perpetuação de ideias. A tática, por sua vez,
é entendida como ações desenvolvidas por pessoas ou grupos fragmentados capazes
de responder a uma necessidade que surge, de forma flexível, baseada na improvisação;
depende das brechas do sistema organizado pelas estratégias. Logicamente, o modelo
de Certeau (1994) foi criticado por estabelecer uma dualidade entre dominantes e
dominados (ver Chartier e Hébrard, 1988).

17
de marfim, cuja capacidade intelectual produz as teorias e modelos
para a compreensão da realidade espacial universal. Ao contrário, o
livro traz notas pessoais, pensamentos inacabados, pouco filtrados
pelas conveniências do campo acadêmico, bem como alguns desa-
bafos de alguém que percebe a finitude de sua existência e se sente
à vontade para romper com algumas regras de conduta próprias de
ocasiões formais que envolvem a produção do texto escrito na acade-
mia. Além disso, a particularidade desta obra é a forma de linguagem
utilizada para a comunicação da maior parte do texto. O predomínio
da utilização da linguagem na primeira pessoa produziu uma pro-
ximidade da escrita de Milton Santos. Na obra, ele deixa de lado a
formalidade científica impessoal que tradicionalmente faz emergir a
suposta neutralidade do saber e a onisciência do cientista.
Por se tratar de depoimentos, é importante marcar que com-
preendemos este texto de Milton Santos como memórias que são
produzidas pelas conexões entre o passado e o presente (Cosgrove,
1998). Como cientista que olha para suas experiências pretéritas, Mil-
ton Santos re-significa os acontecimentos a partir do presente, ne-
gociando seus atos de comunicação de forma intersubjetiva (Pollak,
1992). Na obra em questão, Milton Santos se aproxima da ideia de
formação de campo científico de Bourdieu (2004, p. 20), entendido
como o:

universo no qual estão inseridos os agentes e as institui-


ções que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a
literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social
como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou
menos específicas. A noção de campo está aí para desig-
nar esse espaço relativamente autônomo. Esse microcos-
mo dotado de suas lei próprias.

Milton Santos se vê parte do campo científico geográfico; reco-


nhece seus agentes, instituições e poderes. Ao mesmo tempo, seu de-
poimento reflete incômodos provocados pela dissonância entre a teo-
ria geográfica apreendida no contexto europeu e a sua trajetória como
geógrafo brasileiro, latino-americano. Diz ele sobre essa memória:

No começo, é evidente que eu também seguia meus mes-


tres tanto quanto possível e, depois, comecei a tentar não
os ter muito como modelo. Mas, dentro de uma estrutura
institucional muito dura que é a francesa, país ao qual eu
não pertencia, minha expressão era duplamente tímida:

18
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

tímida porque eu estava descobrindo, então por mais


força que eu quisesse colocar nas ideias, tinha dúvidas
de que era aquilo mesmo, e timidez para não chocar de-
masiadamente os que tinham o controle da disciplina.
(Santos, 2004, p. 25).

O reconhecimento do poder na estruturação do campo científi-


co, na maior parte das vezes vivida com angústia pelos pesquisadores
mais jovens, é também parte de suas trajetórias quando evidencia em
depoimento que os conceitos apreendidos teoricamente não são su-
ficientes para produzir compreensão de realidades distintas. Ao res-
gatar sua memória falando das ideias lablacheanas de modificação
da paisagem, largamente utilizadas na Europa, local de sua forma-
ção, e a incompatibilidade com a realidade brasileira, ele afirma:

Assim, você tinha aquela constituição de Vidal de la Bla-


che, que se mantinha como um sistema de conceitos e
que aplicávamos aqui. Só que não funcionava. Nós apli-
cávamos porque, tendo 25 anos de idade, querendo es-
crever geografia e passando a vida lendo os franceses ou
alemães, você diz: ‘eu estou errado e o que está certo é a
teoria’. Já havia essa desconfiança em relação aos concei-
tos, que já não eram conceitos, tendo se tornado catego-
rias fixadas. É sobre isso que o marxismo mais adiante
se instala, eu creio, sobre esses conceitos que já não são
conceitos, que são categorias envelhecidas pela dissocia-
ção entre o real e a ideia que tentava explicá-lo. (Santos,
2004, p. 27).

Em outro trecho, continua falando dessa mesma angústia da


relação entre o conhecimento eurocentrado cultivado e a realidade
brasileira que vivenciava, trazendo também sua própria história de
vida, a qual lhe permitiu identificar tal dissonância. Além disso, ele
traz elementos de poder que estruturam o campo científico, alertan-
do para a necessidade de ‘não chocar’, porque reconhecia sua posi-
ção de fragilidade naquele momento:

Também, vivi na Bahia, quer dizer, em uma sociedade


menos complicada que a paulista, e acho que isso me
ajudou; ou seja, essa inserção regional na Bahia e as obri-
gações que eu contraí com a sociedade baiana obriga-
ram-me a rever a teorização que eu lia. Acho que o pri-
meiro choque foi quando tentei aplicar à Bahia o modelo

19
proposto por Michel Rochefort e que vínhamos usando
havia dez aos. Vi que não funcionava e escrevi um tex-
to sobre o Recôncavo Baiano no qual mostro que não é
possível aplicar inteiramente a teoria. Essa foi a minha
primeira tentativa de deformação do que me sugeriam
fazer. Quando vou ensinar na França, cria-se realmente
o primeiro choque, porque compreendo que não podia
continuar ensinando do jeito clássico e começo a re-
pensar a geografia do Terceiro Mundo. Percebo que ela
não cabe naquele esquema intelectual e começo a me
perguntar como sair daquilo, como propor sem chocar,
porque eu era professor e dependendo de renovação
de contrato, não desejava me chocar com colegas. Mas
dois anos depois de estar na França ensinando, cheguei
à conclusão que isso não era possível. (Santos, 2004, p.
19-20, grifos nossos).

Milton Santos reconhece que os conceitos possuem capaci-


dade compreensiva da realidade em determinado tempo e espaço,
afirmando que “a teoria não é atemporal, porque os conceitos são da-
tados e é essa busca do conceito datado que eu chamo de epistemo-
logia” (Santos, 2004, p. 36). Mesmo tendo tal clareza, ao tecer a ideia
da necessidade de novas buscas teóricas para responder aos desafios
atuais, Milton Santos se coloca, nesse momento em que tem sua po-
sição científica consolidada no campo, apegado à tradição epistemo-
lógica que ele construiu com maestria, afirmando suas preocupações
com a atualidade e o futuro da geografia:

A prospecção dos trabalhos de qualidade existentes tor-


na-se difícil, embora necessária e urgente. Muitas das
novas questões colocadas subordinam-se a uma moda,
justificada ou não, abrangendo desde temas como o gê-
nero, o turismo, o lazer, o meio ambiente ou digressões
externas sobre pontos esparsos de filosofia, temas lite-
rários ou comentários biográficos e bibliográficos sobre
autores afins (ou não) à geografia. (Santos, 2004, p. 95).

A opinião de Milton Santos sobre o ‘modismo’ temático, retrata-


da neste trecho, aliada à posição que este geógrafo e suas teorias con-
quistaram na geografia brasileira, pode dificultar o trabalho de pesqui-
sadores(as) da área de gênero e sexualidades para adquirir respeitabi-
lidade teórica e metodológica neste campo de saber. Entretanto, este
posicionamento indica também que há um tensionamento no campo

20
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

de saber que a teoria hegemônica difundida por ele não contempla-


va.4 É justamente em seu Testamento Intelectual, no qual toda sua hu-
manidade se coloca, que ele fala dos medos de exprimir desacordos,
da desobediência aos cânones e da necessidade de manter posições
minoritárias, mesmo que custe o isolamento.
Milton Santos é um personagem heroico da história do pensa-
mento geográfico brasileiro e, ao mesmo tempo, um de seus mais im-
portantes narradores. A história científica que estamos acostumados
a ouvir e reproduzir faz parte do ritual acadêmico, repleto de filtros
e escolhas pessoais (Barnett, 1995; Bell, 2011). Milton Santos fez es-
colhas e recortes; legitimou autorias com as quais mantinha identi-
ficações no que diz respeito à ideia de ciência geográfica e desconsi-
derou outras. Essa é uma atitude elementar e corrente no cotidiano
acadêmico.
Longe de pretender alguma correção na narrativa historiográfi-
ca da geografia brasileira, buscamos explorar simultaneidades espa-
ciais de distintas imaginações geográficas que, por alguma razão, não
dialogaram entre si nos anos 80 e 90. Entendemos que as narrativas
não contêm em si a totalidade da realidade, mas são versões propaga-
das e legitimadas em distintos contextos epistemológicos. A ‘geogra-
fia do conhecimento geográfico’ se modifica com a disseminação da
informação pelas redes globais que atualmente possibilitam colocar
versões em contato e afirmar a ideia de que há uma simultaneidade
de lugares de enunciação a serem considerados.
Em pleno início do século XXI, Milton Santos (2004) registra-
va sua preocupação com digressões e ‘temas modismo’, incluindo
o gênero. Compreensivelmente, cada contexto epistemológico tem
sua própria dinâmica e regras de funcionamento, envolvendo fatores
políticos, econômicos e culturais. A geografia hegemônica no Brasil
nos últimos 30 anos, fortemente ancorada na produção intelectual de
Milton Santos, não foi alvo das mesmas críticas que se evidenciaram

4
Milton Santos (2004, p. 25), ao descrever a trajetória do pensamento, traz as seguintes
marcações conceituais: “propus coisas como a ideia de que o espaço era formado
por fixos e fluxos; depois, que haveria uma relação entre a sociedade e a natureza,
produzindo o que chamei de formação socioespacial, (…) a formação socioespacial e
isso é que me vai levar mais adiante a propor a dissociação entre a noção de paisagem e
a noção de espaço. Este seria uma instância da sociedade, tanto quanto o são a instância
política, a cultural-ideológica e a instância técnico-econômica. (…) Cheguei, por último,
à ideia do espaço como resultado de uma relação indissociável entre sistemas e objetos,
casando duas coisas, ação e materialidade. Depois, continuei a trabalhar até propor que
o que realmente entra na dialética social não é o espaço tal como foi definido antes,
como materialidade, mas o espaço vivido, usado pelos homens.”

21
no contexto anglófono no mesmo período. Nos anos 1980 e 90, no
Brasil, a geografia marxista adquiria status de verdade pouco questio-
nada. Todavia, no contexto anglófono o debate era acalorado em tor-
no das diferenças e da capacidade compreensiva do marxismo sobre
a realidade espacial para a conquista da justiça social num mundo
globalizado.
Importante destacar o debate que envolveu David Harvey, um
dos mais destacados geógrafos de base marxista do contexto episte-
mológico anglófono, a respeito da ideia da diferença, após a publi-
cação, em 1989, de seu livro The Condition of Postmodernity. Entre
seus críticos estavam intelectuais pós-estruturalistas, feministas e
defensores das políticas de identidade que, entre outras observações,
não aceitavam a ideia de que a diferença que realmente importava
socialmente era a diferença de classe. No texto Postmodern Morali-
ty Plays, publicado pelo periódico Antipode em 1992, ele responde a
duras críticas de duas intelectuais feministas5 sobre o tema. Quatro
anos após, para aprofundar a discussão sobre as diferenças, Harvey
publicou Justice, Nature and the Geography of Difference, assimilando
as reflexões acumuladas sobre as críticas recebidas. Resgatar as dis-
putas epistemológicas dos anos 1990 no contexto anglófono nos per-
mite afirmar que a abordagem feminista não poderia ser considerada
um modismo, como afirmado por Santos (2004).
Wright (2006), ao escrever sobre a trajetória intelectual de Da-
vid Harvey, recuperou vários eixos argumentativos do universo aca-
dêmico anglófono que, já nos anos 1980, questionava a análise mar-
xista. Um dos eixos de argumentação foi o da necessidade de superar
a ideia binária de poder (dominantes e dominados) e o fato de existi-
rem sujeitos que não se encaixam nos polos contrastados das classes
sociais (trabalhadores e capitalistas) e que, por isso, acabam por ser
excluídos da análise social. Além disso, há o fato de que a experiência
do trabalho não é homogeneamente partilhada, não produzindo, as-
sim, a mesma consciência e razão. Outro importante eixo crítico foi
a ideia de que não há possibilidade de haver um sujeito universal da

5
Trata-se das críticas de Doreen Massey, em ‘Flexible sexism’, e de Rosalyn Deutsche,
em ‘Boys town’, publicadas em 1991 pela revista Environment and Planning D: Society
and Space. O debate entre estas feministas e Harvey evidencia grandes diferenças
epistemológicas, mas também toda carga de tensionamento entre intelectuais que
francamente se digladiavam, utilizando, inclusive, de ironias e acidez. Massey criou
termos como ‘sexismo flexível’ e marxismo sexista para ironizar Harvey, que, por sua
vez, responde com ‘jogadas da moralidade pós-moderna’ como título de seu texto para
rebater as críticas feministas.

22
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

história, o proletariado, baseado unicamente nos domínios da esfera


produtiva, tendo em vista que o ser humano corporificado não é uma
mera energia no processo de produção de mercadorias, mas o cor-
po é, em si, lugar de exploração perpassado por discursos que ultra-
passam a função de produção de mercadorias. Aliada à ideia crítica
do sujeito universal, há a negação do conhecimento enquanto uma
‘metanarrativa’ para explicar a realidade humana e a impossibilidade
de haver um único desenvolvimento histórico coerente que obede-
ce a determinada ordem de organização. Outro eixo de críticas está
relacionado às diversas formas de políticas identitárias, derivadas
de movimentos de direitos civis e políticos que reivindicavam a re-
paração de injustiças históricas impostas às pessoas a partir de suas
identidades raciais, de gênero, sexuais, étnicas e físicas, entre outras,
desconsideradas pela análise marxista como importantes elementos
de hierarquias econômicas e sociais.
Em meio à efervescência das críticas ao marxismo, Harvey pu-
blicou The Condition of Postmodernity (1989), obra amplamente re-
conhecida em várias outras áreas para além da geografia, por trazer
compreensão sobre o processo de financeirização da economia glo-
bal e os processos de regulação. Com essa obra, ele cunha a expres-
são ‘acumulação flexível’ do capital e reafirma a validade da teoria
marxista para compreender a realidade social, mas admite que são
necessários alguns ajustes. Para ele, a doutrina marxista ainda pro-
duz os conceitos básicos capazes de expor a exploração do capita-
lismo e imaginar alternativas viáveis para a organização das forças
produtivas. No que se refere às diferenças, ele reconhece as múltiplas
formas de exclusão que emergem de diferentes subjetividades como
gênero, sexualidade, raça e classe. Contudo, adverte que as diferenças
precisam ser consideradas para o alcance da solidariedade de classe,
a principal forma de luta, afirma ele, capaz de se contrapor à impla-
cável marcha do capital.
A posição de Harvey, mantendo a diferença de classe como a
diferença social que realmente importava, foi amplamente debatida
entre as feministas. Doreen Massey (1991) acusou Harvey de conce-
ber uma obra de caráter universalista, estendendo para o conjunto
da realidade global a sua compreensão, que nada mais era do que
localizada em uma posição do norte global. Ela afirmou que The Con-
dition of Postmodernity desconsiderou as produções de feministas
pós-estruturalistas e, além disso, argumenta que, ao colocar o prole-
tariado como o principal agente de mudança histórica, ele reforça o
protagonismo branco, masculino e heterossexual, constituindo um
‘marxismo sexista’.

23
Em Justice, Nature and the Geography of Difference, publicado
em 1996, Harvey assimila a temática da diferença social e constrói um
diálogo com as teorias feministas, trazendo sujeitos corporificados
emaranhados em fluxos capitalistas globais. Segundo ele, para en-
frentar o processo de exploração e promover justiça social, é necessá-
rio criar alianças estratégicas de sujeitos com objetivos semelhantes
que podem nascer do reconhecimento mútuo das diferenças. Com
esta abordagem, em grande parte apoiada pela teoria feminista de
Iris Mary Young (1990), ele reconhece a necessidade de contemplar as
diferenças reivindicadas pelos movimentos sociais que cobravam o
reconhecimento de diferenças para além da luta de classes. Todavia,
ele afirma ainda que as alianças estratégicas devem ser realizadas em
torno da ‘diferença que realmente importa’.
Harvey (1996) estabelece uma análise a partir da ideia marxista
de solidariedade, aliando às suas proposições as teorias relativas à
diferença que promove a opressão em várias formas de identidade
(gênero, sexualidades, raça e classe). Contudo, o desenrolar de seu ra-
ciocínio, mesmo acolhendo a ideia da diferença, continua a reafirmar
como estratégia a solidariedade de classe, já que esta seria derivada
da experiência compartilhada em torno do trabalho e da exploração
capitalista. Assim, as alianças de solidariedade de lutas devem ser fei-
tas em torno da diferença de classe. Seu argumento central é o de que
a classe, acima de outras diferenças sociais, é uma diferença social
que cruza a escala do particular para o universal, sendo, assim, capaz
de enfrentar as mazelas do capitalismo. De acordo com Harvey, nem
o feminismo, nem o ambientalismo ou os movimentos antirracistas
oferecem essa possibilidade.
Participando do debate com o texto Harvey’s complaint with
race and gender struggles: a critical response, Iris Marion Young (1998)
afirma que não vê a necessidade de oposição entre a universal luta de
classes e o particularismo dos movimentos sociais que reivindicam
o reconhecimento das diferenças, como apontado por David Harvey
(1996). Pelo contrário, ela chama atenção para a necessidade de su-
perar tais oposições. Os movimentos sociais pautados na luta contra
o racismo, o heterossexismo, o sexismo e a xenofobia não podem ser
vistos como fragmentadores da possibilidade de reivindicação por
justiça, mas devem ser considerados como aliados à luta de classe.
Para ela, é socialmente contraproducente alegar que esses movimen-
tos retiram energia do foco central de luta contra o capital, em função
de uma pretensa fragmentação reivindicatória. Young (1998) sustenta
que Harvey (1996) ‘convenientemente’ deixou de mencionar o fato de

24
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

que as lutas do proletariado negligenciaram a situação das mulheres


e das pessoas negras. Lembra ainda que é estranho que Harvey (1996)
classifique o interesse de classe como sendo de caráter universal en-
quanto considera particulares as reivindicações de gênero, as de raça,
e as de caráter ambiental. Afinal de contas, argumenta ela, as mulhe-
res estão em toda parte, e as questões ambientais são universais, bem
como heranças coloniais que criaram as hierarquias raciais.
As diferenças, segundo Young (1998), quando consideradas em
relação, expõem os privilégios de alguns grupos em relação a outros,
e essa é uma condição escalar e situacional. A luta contra a explora-
ção capitalista e o acesso à justiça social não podem ser alcançados
por uma pretensa unidade política que transcende as diferenças de
gênero, raça, religião, sexualidade, e assim por diante, mas é a política
que deve construir a coalizão entre essas diferenças.
Young (1998) afirma que em vários momentos Harvey (1996)
reconhece essa complexidade, mas logo retorna para uma com-
preensão simplista da política de classes baseada na solidariedade,
mantendo a ideia dual entre a universalidade e a particularidade. A
feminista se contrapõe a ele, sustentando que a solidariedade políti-
ca para a conquista da justiça deve estar calcada na negociação das
diferenças e na inclusão de reivindicações. Estar junto não significa
um reconhecimento da semelhança. Pelo contrário, as diferenças
existentes em contextos que são unificados devem ser discutidas, e
devem ser consideradas as vantagens e as desvantagens da realida-
de partilhada na convivência. É preciso construir a lógica de que a
justiça não se alcança pela consideração da semelhança, mas pelo
respeito e negociação das diferenças e das obrigações sociais que
temos com pessoas consideradas diferentes de nós. E segue ela, di-
zendo que é nesse esforço de negociação, aliando as reivindicações
provindas das diferenças sociais de gênero, raça, sexualidade, assim
como a de classe, que podemos desenvolver raciociocínios a respeito
do que é justo ou injusto.
O texto de Linda McDowell (1998) intitulado Some academic
and political implications of justice, nature and geography of difference
também reconhece o esforço que David Harvey (1996) realizou ao
contemplar o pensamento feminista e se dispor ao diálogo sobre as
diferenças sociais. Contudo, esta geógrafa feminista reforça a percep-
ção de que Harvey (1996) se equivocou ao considerar a política de
classes como universal e as lutas de gênero, raça e sexualidades como
particulares. Segundo ela, nesse mesmo viés de análise, é possível
considerar que a luta de classes poderia ser tão particularista como as

25
outras. McDowell (1998) afirma que, embora David Harvey (1996) em
alguns momentos aceite a importância da complexidade das várias
formas de diferença social, ele insiste em julgá-las, atribuindo valor
às diversas formas de diferença social, e, por fim, de modo não realis-
ta, clama em favor de uma onda revolucionária, como se fosse pos-
sível diluir todas as diferenças em torno da solidariedade de classes.
Frente às críticas e mantendo-se leal às análises marxistas, Da-
vid Harvey, ao longo de sua produção intelectual, assumiu e deu visi-
bilidade aos sujeitos, suas diferenças e aos seus corpos em suas aná-
lises, como pode ser visto em sua obra Spaces of Hope publicada em
2000. Entre nós, todavia, a geografia marxista desenvolvida no Brasil
com base miltoniana não promoveu o debate em torno desses ele-
mentos. A última obra publicada por Milton Santos em 2000, Por uma
Outra Globalização: do Pensamento Único à Consciência Universal,
mantém o caráter de agentes de capital e trabalho descorporificados.6
Exercitando nossa liberdade de interpretação textual7 com os
escritos do Testamento Intelectual de Milton Santos, arriscamo-nos a
trazer um fragmento de pensamento ali registrado. Ele nos fez ima-
ginar se os elementos da diferença já faziam parte das preocupações
de Milton Santos naquele momento, mas sua morte, em 2001, o im-
pediu de desenvolver esse debate. Os fragmentos de escrita “… Avan-
ços ainda necessários. Uma epistemologia da existência: geografia
cidadã (não apenas dos pobres)” (Santos, 2004, p. 121) indicam que
Milton Santos estaria assumindo perspectivas de sujeitos para além
da classe e considerando a ampliação da análise espacial a partir de
outras identidades? Tal resposta jamais teremos. Talvez algumas pes-
soas mais próximas a ele possam responder a isso. O fato é que para a
comunidade geográfica brasileira esse debate não aconteceu duran-
te a sua vida, e seus interesses intelectuais foram de outra ordem de
questões.

6
Importante destacar duas produções intelectuais que associam a obra de Milton Santos
às questões raciais: o texto de Cirqueira e Ratts (2010) e o de Cirqueira (2010). Nessas
produções intelectuais há uma busca da abordagem de um intelectual negro em sua
produção teórica. Os autores evidenciam sua trajetória espacial e a consciência de Milton
Santos de sua corporalidade negra. O trabalho de resgate da relação entre corporalidade
negra do pesquisador, suas trajetórias espaciais e o seu conteúdo científico evidencia que
a racialidade foi um elemento periférico. O próprio Milton Santos (1996/1997) afirma,
em Cidadanias Mutiladas, esse aspecto, dizendo, sobre o preconceito racial: “o tema que
me traz aqui não é um tema de minha especialidade, mas de minha convivência” (p.
133).
7
Como discutido em Certeau (1994) e Chartier e Hébrard (1988).

26
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos

Retomando os questionamentos que abrem este texto, sobre o


fato de nossa produção científica ter destoado da tradição epistemo-
lógica brasileira, notadamente a hegemonia miltoniana, reafirma-
mos o que Milton Santos nos legou em seu Testamento Intelectual:
a necessidade de desobedecer aos cânones. O fato de que abordar
gênero, sexualidades e racialidades na análise espacial implica cons-
tituir um caminho científico em que sujeitos corporificados estejam
claramente presentes. Para contestar a pretensa classificação não
geográfica da produção científica em torno de gênero, sexualidades e
racialidades, servimo-nos da frase testamental de Milton Santos, ao
ser interrogado sobre uma possível definição sobre a geografia:

Ao longo de minha vida, quando abandonei a simples re-


petição do que me ensinavam os mestres e assumi um
pouco de liberdade para propor, propus várias definições
até chegar a essa que tenho agora. Talvez devesse come-
çar dizendo que uma definição de geografia é um obstá-
culo do desenvolvimento da disciplina, porque permite
descansar o debate numa preocupação vocabular, em
vez de alcançar um debate de conteúdo. (Santos, 2004,
p. 21).

Mesmo que a historiografia do pensamento geográfico brasi-


leiro não tenha trazido gênero, sexualidades e racialidades para o de-
bate, isso não quer dizer que tal discussão seja inexistente em outros
contextos epistemológicos, a que a era da informação nos permite
ter acesso. Tampouco, o fato de trazer tais elementos para a análise
espacial poderia gerar qualquer descaracterização da geografia como
ciência.
Por isso, esta coletânea de textos anglófonos traduzidos para o
português tem a pretensão de espraiar a ideia de que sexualidades
e gênero já alcançaram respeito científico na geografia. O livro traz
desde artigos clássicos, como o célebre texto “Não excluam metade da
humanidade da geografia humana”, de Janice Monk e Susan Hanson,
publicado nos Estados Unidos em 1982, até o texto “Masculinidade,
dualidades e alta tecnologia”, de Doreen Massey, publicado na Ingla-
terra em 1995. Outros textos deste livro são de autores contemporâneos,
publicados já nos anos 2000. Estes últimos trazem a complexidade que
os estudos de gênero e sexualidades alcançaram após décadas de pro-
dução e debate acadêmico, notadamente incluindo a ideia de intersec-
cionalidade entre raça, religião, gênero e sexualidades.

27
Para finalizar este texto, cuja função é a de contextualizar a
intenção de produção deste livro e introduzir os capítulos subse-
quentes, queremos alertar para o fato de que se trata de textos de
autores anglófonos, geógrafas(os) que fazem parte de outro contex-
to epistemológico com os quais podemos dialogar, aproveitando as
técnicas atualmente disponíveis, apesar das relações de poder que
ainda permeiam as relações intelectuais entre o norte e o sul global.
Assim, convidamos os leitores a aguçar seus sentidos para realizar
‘uma operação de caça’, criando interpretações próprias das escritu-
ras dessas(es) geógrafas(os) e, acima de tudo, convidar a promover a
visibilidade de sujeitos que necessitam ser reconhecidos pelo campo
científico geográfico no Brasil.

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30
Não excluam metade da
humanidade da geografia
humana
Janice Monk
Susan Hanson

G
rande parte da pesquisa que se vem fazendo no cam-
po da geografia humana tem adotado, com frequência
inadvertidamente, uma perspectiva sexista. Inicialmen-
te, sugerimos alguns motivos para explicar tal fato e, em seguida, re-
visamos as contribuições feministas em outras disciplinas. O corpo
deste artigo examina alguns exemplos de viés sexista tanto no conte-
údo quanto nos métodos e objetivos da pesquisa geográfica, aponta
a natureza dos danos que tal viés inflige ao conhecimento geográfi-
co e propõe maneiras pelas quais uma geografia não sexista poderá
emergir.
Recentes contestações da aceitabilidade dos papéis de gênero
tradicionalmente prescritos a homens e mulheres foram considera-
das como o mais profundo e poderoso fator de mudança social do
século XX (Smith, R., 1979), e o feminismo é o “ismo” com mais fre-
quência responsabilizado por instigar essa transformação da socie-
dade. Uma das expressões do feminismo é a condução de pesquisas
acadêmicas que reconheçam e explorem os motivos e implicações do
fato de que as vidas das mulheres são qualitativamente diferentes das
vidas dos homens. No entanto, o grau em que a geografia permanece
intocada pelo feminismo é notável, e a escassez de atenção voltada às
questões das mulheres assola, explícita ou implicitamente, todos os
ramos da geografia humana.
Nosso propósito, neste artigo, é identificar alguns vieses sexis-
tas presentes na pesquisa geográfica e avaliar suas implicações para
a disciplina como um todo. Não acusamos os geógrafos de terem
sido ativa ou mesmo conscientemente sexistas na condução de suas
pesquisas, mas ainda assim argumentaríamos que, ao omitirem
qualquer reflexão acerca das mulheres, a maioria dos pesquisado-
res da geografia, com efeito, tem sido passivamente, com frequência
inadvertidamente, sexista. Não é nosso propósito principal criticar
determinados pesquisadores ou as tradições que eles seguem, mas
antes provocar o debate dinâmico e a crítica construtiva acerca das
maneiras pelas quais a perspectiva feminista pode ser incorporada à
geografia.
Parece-nos haver dois caminhos alternativos para atingir o ob-
jetivo de feminizar a disciplina. Um deles é desenvolver uma sólida
linha de pesquisa feminista que se tornaria um fio entre muitos no
espesso cordame da tradição geográfica. Nós apoiamos tal iniciati-
va como algo necessário, mas não suficiente. A segunda abordagem,
pela qual optamos, é encorajar uma perspectiva feminista em todas
as correntes da geografia humana. Desse modo, temas ligados às mu-
lheres (alguns dos quais serão discutidos mais à frente neste artigo)
seriam incorporados a todos os empreendimentos de pesquisa
geográfica. Somente assim, acreditamos, a geografia poderá cumprir
a promessa da profunda transformação social que seria acarretada
pela eliminação do sexismo. Neste artigo, primeiramente faremos
uma breve consideração sobre as razões do impacto escasso do fe-
minismo sobre o campo de estudos em questão, e revisaremos a na-
tureza da produção acadêmica feminista em outras ciências sociais
e nas humanidades. Em seguida, examinaremos a natureza do viés
sexista da pesquisa geográfica e, por meio de exemplos pertinentes,
demonstraremos maneiras pelas quais uma geografia não sexista po-
derá se desenvolver.

POR QUE OS PROBLEMAS FEMININOS


SÃO NEGLIGENCIADOS?

Por que a geografia, em sua maior parte, evita assiduamente


pesquisar questões que envolvem metade da humanidade? Acredi-
tamos que a resposta resida muito simplesmente no fato de que o
conhecimento é um construto social. O tipo de conhecimento que
emerge de uma disciplina depende muitíssimo de quem produz esse
conhecimento, de que métodos são usados para alcançá-lo, e com
que propósitos ele é obtido (Spender, 1981). O número de mulheres
envolvidas na geração de conhecimento em dada disciplina parece
ser um fator importante para se determinar a medida em que o femi-
nismo é absorvido pela tradição de pesquisa dessa disciplina. Embora
o número de mulheres pesquisadoras venha crescendo na geografia,

32
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

elas ainda compõem apenas 9,6% dos docentes de universidades e


faculdades que são membros da Association of American Geographers
[Associação dos Geógrafos Americanos]. As características dos pes-
quisadores influenciam a escolha dos tipos de problemas nos quais
a disciplina se concentra. Geógrafos, por exemplo, são muito mais
preocupados em estudar as dimensões espaciais das classes sociais
que as dos papéis sociais, como é o caso dos papéis de gênero. No en-
tanto, para muitos indivíduos e grupos, especialmente as mulheres,
é provável que os papéis sociais tenham um impacto maior sobre o
comportamento espacial do que a classe social.
A devoção da geografia a um rígido positivismo lógico, em anos
recentes, também ajuda a explicar sua falta de atenção a questões
femininas. Como apontou King, o positivismo não demonstra uma
particular preocupação com a relevância social ou com transforma-
ções da sociedade (King, 1976). Trata-se de um método que tende a
preservar o status quo. A separação entre fatos e valores e entre sujei-
to e objeto são elementos do positivismo que impedem a pesquisa
orientada segundo esse modelo epistemológico a sequer conduzir,
que dirá a liderar, mudanças sociais (Buttimer, 1976; King, 1976). Pes-
quisadores de tradição positivista tendiam a propor questões nor-
mativas que pouco têm a ver com a definição de condições sociais
ótimas (por exemplo, o problema do caixeiro viajante). Isso não quer
dizer que o positivismo seja incapaz de propor questões normativas
socialmente relevantes, apenas aponta que o seu alinhamento ao sta-
tus quo não tem abrigado a espécie de pensamento normativo capaz
de contestar as condições sociais vigentes.
Embora o positivismo lógico estrito já não exerça um controle
implacável sobre a disciplina, paradigmas alternativos pouco fizeram
para incorporar uma perspectiva feminista. Os marxistas defenderam
a causa da transformação social, mas, com poucas exceções (Burnett,
1975; Hayford, 1975; Madden, 1980), não exploraram os efeitos do
capitalismo sobre as mulheres. Fenomenologistas prometeram uma
geografia mais humanística, que ampliasse o autoconhecimento e se
concentrasse na plenitude da experiência humana (Buttimer, 1976;
Tuan, 1976), mas até mesmo esta corrente de pesquisa tem permitido
pouca compreensão das vidas das mulheres.
Finalmente, o objetivo de grande parte da pesquisa geográfica
tem sido proporcionar uma base racional para tomadas de decisão
bem informadas. Na medida em que os planejadores são compro-
metidos com a manutenção do status quo (Goodman, 1971), e con-
siderando que tanto os pesquisadores quanto os responsáveis pelas

33
tomadas de decisão provavelmente — e em especial no passado —
pertencem ao establishment do poder masculino, um foco sobre as
mulheres, ou mesmo algum reconhecimento delas, seria improvável.
Em suma, a maior parte dos profissionais da geografia tem sido com-
posta por homens, e eles estruturaram os problemas de pesquisa de
acordo com os seus valores, suas preocupações e seus objetivos, to-
dos os quais refletem sua própria experiência. As mulheres não têm
sido criaturas de poder ou posição social, e os pesquisadores interes-
sados nos que detêm o poder refletem esse fato.

A CRÍTICA FEMINISTA EM
OUTRAS DISCIPLINAS

Embora o conhecimento acadêmico sobre mulheres tenha,


até o momento, produzido pouco impacto sobre a comunidade da
geografia, grande parte da sua relevância para a nossa disciplina pode
ser compreendida a partir de uma década de pesquisa e crítica femi-
nista em outras ciências sociais e nas humanidades. Para caracterizar
o desenvolvimento dessa pesquisa, Stimpson et al. (1980) notam um
estágio inicial em que os pesquisadores atendiam a uma necessidade
urgente de documentar os sofrimentos, a invisibilidade e a subordi-
nação das mulheres, e de explorar as causas do status secundário das
mulheres. Posteriormente, o foco voltou-se ao exame “da inter-rela-
ção de dois mundos independentes, mas intersecionais... o mundo
masculino da produção, da atividade pública, das culturas formais
e do poder... [e] o mundo feminino — da reprodução, da atividade
doméstica, da cultura informal e da ausência de poder...” (Stimpson
et al., 1980, p. 187). Têm havido demandas pelo reconhecimento da
diversidade entre as mulheres e pelo desenvolvimento de uma noção
de mulher como força ativa, em vez de um ser passivo ou marginal.
Mais recentemente, o debate sobre a natureza, a permanência e a sig-
nificância das diferenças sexuais foi retomado (Stimpson et al., 1980).
Paralelamente a essa mudança de ênfase no trabalho sobre as
mulheres, ocorreram também modificações na crítica feminista das
disciplinas tradicionais. Estudos iniciais preocupavam-se principal-
mente com a retificação de estereótipos e a supressão de omissões,
mas a isso se seguiu o reconhecimento da necessidade de transforma-
ções básicas nas disciplinas para que as experiências e as ações das
mulheres pudessem ser incorporadas a interpretações e análises mais

34
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

ricas da experiência humana (Gould, 1980; Kolodny, 1980; Reuben,


1978). Identificaram-se incongruências não apenas no conteúdo,
mas também em conceitos e categorizações críticos (Carroll, 1976),
em metodologias e até mesmo no propósito da pesquisa acadêmica
(Westkott, 1979). Por exemplo, entre os muitos novos temas de conteúdo
identificados para pesquisa estavam a relação entre linguagem e po-
der, a psicologia do estupro e a história da sexualidade e da repro-
dução (Lerner, 1976; Parlee, 1979). Em alguns campos, esses novos
esforços estimularam e aprimoraram importantes sendas disciplina-
res, como a guinada da história social rumo a um enfoque centrado
nas pessoas comuns e não na elite (Lewis, 1981) ou a troca, por parte
da antropologia, de uma ênfase nas estruturas formais da sociedade
pelo desenvolvimento e aperfeiçoamento de modelos de comporta-
mento adaptativo no interior de sistemas sociais (Stack et al., 1975).
A necessidade de rever definições e categorias incluiu ques-
tões amplas, como os conceitos de gênero e de cânone literário ou
a pertinência de recorrer a períodos históricos baseados em ativida-
des políticas ou militares para conceituar mudanças históricas ex-
perimentadas nas vidas das mulheres (Lerner, 1976; Reuben, 1978).
Cientistas sociais feministas têm questionado as definições predomi-
nantes de conceitos como status, classe, trabalho, força de trabalho e
poder, porque, em seu uso corrente, esses conceitos refletem esferas
de ação masculinas (Gould, 1980; Reuben, 1978; Rogers, 1978; Smith,
D., 1974; Smith, D., 1977). Como pode o trabalho, por exemplo, ser
definido e mensurado de forma que o conceito incorpore a produção
não destinada ao mercado e as atividades de manutenção envolvidas
no trabalho doméstico? A classe social, enquanto derivada de estrati-
ficações das ocupações masculinas, pode servir como um quadro de
referência apropriado para se examinar comportamentos e atitudes
das mulheres?
Críticos das metodologias disciplinares concentraram-se nas
implicações do positivismo e nas aplicações do método científico
por cientistas sociais. Alguns críticos (por exemplo, Kelly, 1978) con-
sideram que revisões são necessárias no que diz respeito à definição
de problemas e hipóteses e à interpretação de resultados, mas argu-
mentam que ainda existe lugar para a pesquisa objetiva/racional em
oposição à subjetiva, envolvendo a observação naturalista e a padro-
nização qualitativa. Outros estudiosos, ao examinarem a sociologia do
conhecimento, têm enfatizado as dificuldades encontradas ao se tratar
do conceito de objetividade, apontando o papel crucial que a subjeti-
vidade desempenha na produção e validação do conhecimento. Estes

35
discutem problemas com base na pressuposição de que o objeto do
conhecimento é completamente separado do conhecedor, e veem o
conhecimento como um diálogo que é “um emergente imprevisível e
não um resultado controlado” (Westkott, 1979, p. 426). Esses críticos
vão ainda além, advogando uma nova ortodoxia na qual a subjetivi-
dade seja valorizada. Em vez de aceitar explicações desenvolvidas e
validadas pela experiência masculina como verdade completa e úni-
ca, eles propõem reconhecer todas as explicações como apenas par-
cial e temporariamente verdadeiras, e apontam para a importância
das pesquisadoras femininas para criar uma visão mais integral das
possibilidades humanas (Spender, 1981; Westkott, 1979).
Outras tendências da crítica tomam como alvo a natureza a-his-
tórica do trabalho positivista e a subestimação das variações contex-
tuais de comportamento (Gordon et al., 1976; Parlee, 1979), ambas as
quais são mostradas como contribuintes para interpretações inade-
quadas e estereotipadas das vidas das mulheres. Embora essas várias
correntes críticas tenham muito em comum com posições propostas
por defensores de abordagens hermenêuticas, estruturalistas e mar-
xistas, diferenciam-se claramente por sua atenção às implicações da
cultura patriarcal para o conhecimento acadêmico.
Em associação com os novos direcionamentos metodológicos,
também têm sido verificadas reorientações nas técnicas de coleta
de dados, em parte amparadas em bases filosóficas e em parte em
consequência dos lapsos verificados nos registros de dados sobre as
mulheres. Assim, vemos mais atenção sendo dada a observações na-
turalistas, histórias orais e análises de documentos produzidos por
mulheres, tais como diários, memórias e obras literárias.
A reflexão sobre questões metodológicas e de conteúdo tem
levado, por fim, a um questionamento dos propósitos de pesquisa.
Distinções são traçadas entre obras sobre mulheres, de mulheres e
para mulheres. Sugere-se que a pesquisa para mulheres será motiva-
da por visões de uma sociedade transformada e igualitária (Westkott,
1979). Tendo isso em mente, a pesquisa orientada ao registro e mode-
lagem do status quo é vista como contraproducente. Na seção seguin-
te examinaremos algumas das maneiras pelas quais as mulheres têm
sido excluídas da reflexão empreendida pela pesquisa geográfica. Ao
apontar tais omissões, implicitamente sugerimos caminhos pelos
quais as questões que afetam as mulheres podem ser incorporadas
de maneira frutífera aos projetos de pesquisa da geografia.

36
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

ALGUNS EXEMPLOS DE VIESES SEXISTAS


NA PESQUISA GEOGRÁFICA

Seguindo Westkott (1979), iremos avaliar os vieses sexistas no


conteúdo, na metodologia e nos objetivos da pesquisa geográfica.
Não afirmamos que toda a geografia humana seja sexista, mas pre-
tendemos demonstrar a predominância do problema esboçando
exemplos ilustrativos, provenientes de várias áreas do campo de es-
tudos da geografia. Nem os exemplos fornecidos, nem as áreas te-
máticas abrangidas pretendem fornecer uma exposição exaustiva do
problema por nós abordado. Também não incluímos referências ex-
tensas das pesquisas feministas em emergência na geografia, pois as
revisamos em outro trabalho (Zelinsky, Monk e Hanson, s.d.). Nosso
intento aqui é simplesmente sugerir as dimensões e delinear o cará-
ter do viés sexista presente na pesquisa geográfica.

CONTEÚDO

Talvez os mais numerosos exemplos de viés sexista na pesquisa


geográfica digam respeito ao conteúdo. Problemas relativos ao con-
teúdo incluem a especificação inadequada do problema pesquisado,
a construção de uma teoria com cegueira de gênero, a presunção de
que certa população adira aos papéis de gênero tradicionais, o evita-
mento de temas de pesquisa que abordem diretamente as vidas das
mulheres e a negação da significância do gênero ou das atividades
empreendidas por mulheres.

Especificação inadequada dos


problemas pesquisados

Muitas questões que se apresentam à pesquisa geográfica apli-


cam-se tanto a homens quanto a mulheres, mas são analisadas uni-
camente sob o enfoque das experiências masculinas. Vemos isso em
dois estudos históricos recentes envolvendo a imigração de famílias
da Europa para a América do Norte. Ostergren esqueceu-se de identi-
ficar o papel da mulher fazendeira em sua análise das atividades eco-
nômicas na Suécia e em Minnesota (Ostergren, 1979). Cumber (1980)
restringiu sua abordagem das instituições de classe dos trabalhadores

37
de Fall River a alojamentos, sindicatos, associações de trabalhadores
[homens], tavernas e organizações esportivas. Um estudo das vidas
de mulheres poderia ter reforçado ou enfraquecido as conclusões
desses autores. Como se vê, generalizações sobre comunidades são
inferidas unicamente a partir de dados sobre homens.
A omissão da experiência feminina no texto de Muller sobre
suburbanização (Muller, 1981) é mais surpreendente do que omis-
sões similares por parte de estudos históricos, tendo em vista que se
pode presumir que as mulheres passem maior parte de suas vidas
nos subúrbios do que os homens. No entanto, seu capítulo sobre a
organização social dos subúrbios contemporâneos e as consequên-
cias desta para a vida humana deixa de abordar diretamente as vidas
das mulheres. Ele identifica os migrantes dos subúrbios no pós-guer-
ra como “jovens e sérios veteranos de guerra, possuidores de sólidos
valores familiares, que desejavam educar-se, trabalhar com afinco e
conquistar uma boa vida” (Muller, 1981, p. 54). Escreve, ainda, que
“qualquer aumento salarial ou promoção importantes eram imedia-
tamente seguidos de uma mudança para uma vizinhança melhor,
mudança essa que era determinada por um comportamento agres-
sivo orientado para a conquista” (Muller, 1981, p. 35). As mulheres
são apenas acompanhantes passivas que seguem seus maridos para
os subúrbios? Há pesquisas sugerindo que as mulheres são ambiva-
lentes no que diz respeito à vida suburbana, e que maridos e esposas
avaliam as escolhas residenciais de maneira diferente (Michelson,
1977; Rothblatt, Garr e Sprague, 1979; Saegert e Winkel, 1980).
A especificação inadequada pode envolver exclusão tanto mas-
culina quanto feminina quando nenhum desses dois tipos de espe-
cificação errônea parece justificado. Estudos sobre comportamentos
de consumo, por exemplo, adotaram uma mulher consumidora e
analisaram dados provenientes exclusivamente de amostras femini-
nas (p.e., Downs, 1970). Um problema que parece estar relacionado
à percepção que o pesquisador tem do consumidor como mulher é
a presunção, implícita em modelos de escolha do local de consumo
(p.e., Cadwallader, 1975), de que todas as incursões a estabelecimen-
tos comerciais originam-se no lar, em vez de, por exemplo, estarem
associadas ao percurso para o trabalho. Portanto, tais modelos ado-
tam a variável distância-casa-estabelecimento comercial ao invés de
alguma outra, possivelmente mais importante, como a variável local
de trabalho-estabelecimento comercial.

38
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

Teoria com cegueira de gênero

Uma preocupação que se origina da especificação inadequada


do problema é a emergência de uma teoria com cegueira de gêne-
ro. Tal teoria pode ser perigosamente empobrecida se o gênero for
uma variável explanatória importante e for omitido. Geógrafos inte-
ressados em teorias do desenvolvimento têm tirado extenso partido
de obras exteriores à disciplina (Brookfield, 1975; Brookfield, 1978;
Browett, 1980; DeSouza e Porter, 1974; Ettema, 1979; Harriss e Har-
riss, 1980). No entanto, esses autores não costumam citar o volume
significativo de literatura sobre mulheres e desenvolvimento que se
seguiu à publicação de Women’s role in economic development [O
papel das mulheres no desenvolvimento econômico] (Boserup, 1970).
Assim, a geografia refere-se à política econômica da divisão interna-
cional do trabalho, mas ignora as implicações teóricas da divisão se-
xual do trabalho. Um estudo da literatura sobre mulheres ampliaria a
abrangência das questões de desenvolvimento relevantes. Por exem-
plo, o desenvolvimento é acentuado se as mulheres tiverem acesso a
renda própria ou apenas se elas tiverem um envolvimento crescente
na tomada de decisões referente à destinação da renda? As teorias
deveriam se concentrar na produção ou dedicar mais atenção do que
antes às atividades ligadas ao sustento da família?
Teorias geográficas voltadas a problemas de países industriali-
zados também padecem quando acometidas da cegueira de gênero.
Tentativas de elaborar teorias do transporte urbano têm em grande
parte subestimado a importância dos papéis de gênero na determina-
ção de padrões de transporte (Stopher e Meyburg, 1976), mas traba-
lhos recentes sugerem a seriedade dessa omissão (Hanson e Hanson,
1981). Teorias que tratam do processo de escolha dos locais de domi-
cílio têm igualmente deixado de levar em conta os papéis de gênero,
embora Madden tenha recentemente demonstrado a necessidade
de incorporar tais elementos a qualquer teoria bem-sucedida da op-
ção residencial (Madden, 1980). De modo similar, Howe e O’Connor
(1982) demonstraram a importância do gênero para qualquer teoria
criteriosa da localização industrial intraurbana.
Teoria cega para gênero também emerge na pesquisa sobre
questões de bem-estar social (Coates, Johnston e Knox, 1977; Knox,
1974; Smith, D. M., 1973; Smith, D. M., 1979) e igualdade (Bourne, 1978).
Embora a discriminação sexual receba menções ligeiras, poucos indi-
cadores de bem-estar referem-se especificamente a mulheres, nem ge-
ram dados separados por gênero. No entanto, como demonstram Lee

39
e Schulz (1982), existem marcantes diferenças entre os padrões es-
paciais de bem-estar relativo ou absoluto entre homens e mulheres
nos Estados Unidos. Num tópico relacionado a bem-estar social, a
discussão de Bourne (1978) sobre igualdade no lar concentra-se em
raça e classe como fatores importantes, mas não menciona a discri-
minação com base no sexo. O resultado da omissão geral do gênero
nas pesquisas sobre bem-estar e igualdade é que raça, classe e eco-
nomia política dominam as explicações, enquanto as contribuições
do gênero e da organização patriarcal da sociedade à criação da desi-
gualdade permanecem invisíveis. Enquanto o gênero continuar sen-
do uma variável essencial à compreensão dos processos geográficos
e da forma espacial e para delinear alternativas futuras, explicações
que o omitam estarão, em muitos casos, destinadas à ineficiência.
Claramente, o trabalho teórico ao longo de diversas linhas de pesqui-
sa poderia ter benefícios caso se tornasse atento ao gênero em vez de
continuar cego a ele.

A presunção dos papéis de gênero tradicionais

Textos geográficos que tratem explicitamente de mulheres, em-


bora raros, têm grande probabilidade de assumir papéis de gênero
(sociais) ou de sexo (biológicos) tradicionais. A hipótese de Sauer
(1956) sobre o papel das mulheres nas origens dos assentamentos se-
dentários e da vida social ampara-se nos seus conceitos de “natureza
feminina” e “laço materno”, associados com presumidas restrições à
mobilidade espacial. A suposição de que as mulheres são universal-
mente (e talvez historicamente) engajadas primeiramente ao lar e aos
cuidados com as crianças talvez reflita estereótipos da cultura oci-
dental em seu passado recente, mas pode conduzir a generalizações
inexatas. Hoy (1978), por exemplo, referindo-se às “diversas culturas
das nações mais pobres”, afirma que “as mulheres podem trabalhar
com os homens nos campos, nos períodos em que a alta demanda de
trabalho assim exige, mas seu papel predominante está no lar, onde
elas podem se engajar na manufatura artesanal, como a tecelagem de
bens para uso doméstico ou para venda ou escambo” (Hoy, 1978, p.
84). Mulheres urbanas têm outras opções, como “domésticas, secre-
tárias e, mais recentemente, trabalhadoras da indústria” (Hoy, 1978,
p. 84). Portanto, ele ignora as mulheres que exercem papéis centrais
na agricultura de grande parte da África e de muitos países asiáticos,
na provisão de combustível e água, e a extensa participação feminina

40
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

nos mercados e no pequeno comércio (Boserup, 1970). Pfeifer (1956)


também atribui uma atuação marginal às mulheres camponesas da
Europa central, as quais descreve como força de trabalho de reserva
(grifo nosso), que executa estimados 50 por cento do trabalho!
A teoria tradicional do uso da terra, a qual presume que cada
unidade familiar tem somente um provedor assalariado e, portanto,
precisa preocupar-se com apenas um deslocamento ao local de tra-
balho, parece ser também fundamentada em papéis tradicionais de
gênero (p.e., Alonso, 1963). Conforme apontamos em outro trabalho
(Zelinsky, Monk e Hanson, s.d.), modelos e teorias que simplesmen-
te admitem que todo domicílio seja um núcleo familiar “tradicional”
não são particularmente úteis para a compreensão de transformações
na estrutura espacial urbana em função de fundamentais mudanças
demográficas ou sociais. Um exemplo adicional de estereótipo de gê-
nero é a prática, iniciada com Shevky e Bell (1955) e continuada pela
ecologia fatorial (Herbert, 1973), de identificar a participação das
mulheres na força de trabalho remunerada como parte de um índice
de urbanização ou familismo. O labor fora da força de trabalho remu-
nerada não é reconhecido, e dentro dela não é discriminado por tipo
de ocupação, como acontece com o chefe de família masculino, no
qual, portanto, se baseia o índice de status social. As implicações de-
correntes parecem ser que as mulheres não urbanas não trabalham
e que simplesmente saber se uma mulher trabalha fora do lar é mais
importante do que saber em que ela está empregada. Nenhuma des-
tas alternativas parece ser conceitualmente sólida.
Uma revisão de exemplos como esses ressalta a necessidade de
repensar os conceitos de labor e força de trabalho para que a pesquisa
possa tratar das mulheres com exatidão. Normalmente, tais concei-
tos são usados para se referir ao setor formal da economia, tradicio-
nalmente vinculado à atividade masculina. No entanto, as mulheres
também trabalham no setor informal (por exemplo, no comércio de
alimentos e artesanato, como babás ou empregadas domésticas), na
produção caseira para o mercado (processamento de alimentos, cos-
turas), na produção de subsistência (cuidado de animais domésticos,
jardinagem) e em serviços não remunerados (trabalho doméstico,
criação dos filhos, trabalho comunitário voluntário). Entre as solu-
ções parciais propostas para incorporar o trabalho feminino há o in-
dicador japonês “net national welfare” [bem-estar nacional líquido],
que inclui as contribuições do trabalho doméstico (com taxas sala-
riais femininas) (Coates, Johnston e Knox, 1977) e avalia o trabalho
em termos de tempo ou energia despendidos. Certamente uma aten-
ção maior a este problema seria justificada.

41
Evitamento de temas de pesquisa que abordem
diretamente as vidas das mulheres

Mulheres geralmente são invisíveis para a pesquisa geográfica,


e isso reflete a concentração da disciplina em atividades masculinas
e em espaços públicos e paisagens. Artigos publicados em números
recentes do Journal of Cultural Geography (1980, 1981), por exemplo,
tratam de silos de armazenagem, fazendas, fachadas de residências,
postos de gasolina, centros de comércio e música country (identifica-
da como um gênero musical masculino associado a brancos protes-
tantes de ascendência anglo-saxã [WASP]). O soberbo Man’s role in
changing the face of the Earth [O papel do homem na transformação
da face da Terra] (Thomas, 1956) faz jus ao nome. As mulheres fazem
apenas pequenas aparições em três dos artigos que compõem esse
volume (Evans, 1956; Pfeifer, 1956; Sauer, 1956). Uma amostra das
pesquisas sobre paisagens culturais regionais e a percepção do pa-
norama histórico, como é o caso dos estudos sobre a paisagem mór-
mon e as Grandes Planícies, revela uma preocupação quase exclusiva
com espaços públicos e percepções masculinas (Blouet e Lawson,
1975; Blouet e Luebke, 1979; Francaviglia, 1970; Jackson, 1980; Jack-
son e Layton, 1976). A cidade rural das Grandes Planícies de Hudson
tem ruas, comércio e comerciantes, estações ferroviárias e homens
vendendo gado e fazendo incursões ao elevador de grãos (Hudson,
1979). Pouco vemos de igrejas, escolas, lares e outros cenários sociais
onde as mulheres passam suas vidas.
Não é de surpreender que a única menção às vidas das mulhe-
res das Grandes Planícies, nos estudos revistos, pertença a uma his-
toriadora. Ela descreve não apenas as privações impostas por aquele
espaço aos homens, mas também a solidão e o isolamento das mu-
lheres separadas de familiares e amigos, a opressão do vazio e o terror
que elas sentem diante de ferimentos, doenças e partos num lugar
remoto e desprovido de médicos. A historiadora também compara as
barreiras à interação social enfrentadas por esposas de rancheiros e
fazendeiros (Hargreaves, 1979). Tais exemplos sugerem como a pes-
quisa sobre mulheres, famílias e círculos sociais enriqueceria nosso
entendimento de lugar. A implantação de pesquisas sobre interiores
residenciais e usos simbólicos do espaço, de forma semelhante, indi-
ca como os horizontes da geografia cultural poderiam ser expandidos
mediante uma atenção voltada aos locais mais próximos das vidas
das mulheres (Greenbaum, 1981; Hess, 1981; Lewis, 1981; Rock, Torre
e Wright, 1980).

42
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

No meio urbano, a pesquisa geográfica teria a lucrar com uma


avaliação dos efeitos da disponibilidade de instalações como centros
comerciais, creches, serviços de atendimento médico, áreas de recre-
ação e transporte público sobre a participação feminina na força de
trabalho e no labor doméstico. Tome-se, por exemplo, a disponibi-
lidade de creches, um tópico praticamente intocado pela pesquisa
geográfica, embora apresente grandes consequências nas vidas das
mulheres. Compare-se a goteira das pesquisas sobre esse assunto
com a verdadeira torrente de material produzido nos últimos anos
sobre a prestação de atendimento psiquiátrico, uma área que envolve
as vidas de um número menor de pessoas. Buscar temas de pesqui-
sa que abordem diretamente as vidas das mulheres fará mais do que
simplesmente engordar uma agenda de pesquisas magérrima: tais
pesquisas proporcionariam também uma compreensão necessária
sobre a diversidade das experiências e necessidades das mulheres.

A negação da significância do gênero ou


das atividades empreendidas por mulheres

Noções preconcebidas de significância conduzem alguns au-


tores a preterir as atividades femininas ou a negligenciar o gênero
como variável, apesar das evidências em contrário. Gosal e Krishnan
(1975), por exemplo, discutem a magnitude da migração interna na
Índia, apontando que as mulheres somam dois terços dos migrantes.
Como eles interpretam esse dado como migração associada ao casa-
mento, usam a migração masculina como o “verdadeiro indicador”
da mobilidade econômica (Gosal e Krishnan, 1975, p. 198), e com isso
desprezam as implicações econômicas do movimento associado ao
matrimônio. Mais tarde, eles observaram que as mulheres somam
75% dos migrantes entre áreas rurais, mas escreveram: “um quadro
mais realista pode ser obtido se apenas os homens forem levados em
conta” (Gosal e Krishnan, 1975, p. 199).
Outro exemplo interessante é fornecido pelas interpretações
incompletas dos achados de Bederman e Adams (1974), de que os
desempregados em Atlanta são principalmente mulheres negras que
são chefes de família. Tanto D. M. Smith (1979) quanto Muller (1981)
reportam-se a este aspecto do estudo em questão, mas quando te-
cem conclusões a partir dele, concentram-se na discriminação racial
(Smith, D. M., 1979) ou “racial e outras” (Muller, 1981). Ambos deixam
passar o duplo vínculo de gênero e raça.

43
Um corolário que desconsidera a significância das atividades
femininas pode ser decorrente de uma tendência a observar as mu-
lheres principalmente quando estas adentram a esfera masculina ou
perturbam a sociedade tradicional. Os poucos indicadores de Hoy
(1978) referentes às mulheres abrangem a participação feminina na
força de trabalho (remunerada) e as políticas populacionais e sociais
correlatas na União Soviética, no Leste Europeu e na China, e a supos-
ta relação entre emancipação feminina e mazelas urbanas no Japão.

METODOLOGIA

Vieses sexistas podem afetar a pesquisa geográfica no que diz


respeito à metodologia empregada tanto quanto ao conteúdo. Há
uma série de preocupações metodológicas específicas envolvidas na
concepção e na execução da pesquisa empírica, independentemente
da abordagem geral (p.e., positivista ou humanista) do pesquisador.
Aqui trataremos de algumas dessas preocupações e dos modos por
que elas são suscetíveis ao viés sexista.

Seleção de variáveis

Identificamos várias práticas inapropriadas ou inadequadas na


seleção e interpretação de variáveis em estudos nos quais as mulhe-
res são ou deveriam ser incluídas. Um dos problemas detectados é o
uso de dados dos maridos para descrever as esposas. Por exemplo,
duas das oito variáveis incluídas por Lee (1968) num estudo sobre as
percepções de donas de casa de bairros de Cambridge, Inglaterra, fo-
ram “lugar de trabalho dos maridos” e “ocupação dos maridos” (Lee
e Schultz, 1982). Uma terceira variável, “posse de automóvel”, pode
também ser inapropriada, pois Lee (1968) não informa se as mulhe-
res dirigem. Tal uso de ocupações dos maridos como indicador de
classe social é problemático. Sua inadequação e a identificação de
alternativas é uma preocupação tanto de sociólogos quanto de geó-
grafos feministas, na medida em que a geografia recorre a índices de
classe social em suas próprias pesquisas.
A presunção de que dados referentes a homens possam descrever
adequadamente toda a população é também suspeita. Por exemplo,
Soja (1968) mensurou o “letramento mínimo de adultos” no Quênia e

44
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

Lycan (1975), a educação de “pessoas” nos EUA e Canadá, recorrendo


unicamente a dados sobre homens. No entanto, sabemos que há dife-
renças de gênero no acesso à educação e no nível de instrução, e que
esses índices variam espacialmente (Zelinsky, Monk e Hanson, s.d.).
A diversidade entre mulheres e o âmbito das necessidades fe-
mininas frequentemente não são reconhecidos na seleção das vari-
áveis. As categorias ocupacionais masculinas são invariavelmente
diferenciadas, mas as mulheres são registradas apenas pela “partici-
pação feminina na força de trabalho” (p.e., Muller, 1981) ou pela “taxa
de atividade feminina”. Estudos sobre o bem-estar social refletiriam
melhor as condições das mulheres se incluíssem indicadores de tópi-
cos como a situação legal das mulheres, a incidência de estupros ou a
prestação de serviços como creches.
A falta de atenção às mulheres é também evidente na interpre-
tação de variáveis e na denominação de fatores. Por exemplo, Knox
(1974) escolhe “idade avançada” como aspecto mais saliente para
nomear um fator que teria alto peso sobre a ocorrência de divórcio
entre as mulheres, o índice de filhos ilegítimos, a alta proporção de
pessoas acima de sessenta anos, a baixa proporção em grupos etários
mais jovens, as famílias pequenas e as residências compartilhadas.
Sem negar a significância dos idosos, o fator poderia ser identificado
de maneira mais abrangente como “famílias chefiadas por mulheres”.
Essa denominação de fatores com cegueira para gênero tem implica-
ções teóricas e políticas.

Escolha do entrevistado

É necessário repensar a unidade de observação em pesquisas


por questionário (Tivers, 1978). Frequentemente, os dados são cole-
tados a partir de um único indivíduo, que, no entanto, é reportado
como representante da família; em particular, os pesquisadores cos-
tumam valer-se das respostas do “chefe de família” (Brunn e Thomas,
1973; Johnston, 1971). Essa prática apresenta vários problemas. Pri-
meiro, ela pressupõe que uma pessoa representa toda a família, o que
é questionável. Segundo, a agregação dos dados pelo chefe de famí-
lia pode mascarar importantes diferenças de gênero, considerando
que há números substanciais e crescentes de residências chefiadas
por mulheres em grande parte do mundo (Buvinić e Youssef, 1978).
Em terceiro lugar, hábitos culturais podem levar a uma presunção de
liderança doméstica masculina, mesmo quando o homem não tem

45
a responsabilidade principal no sustento do lar (Buvinić e Youssef,
1978). A coleta de dados a partir de indivíduos (ou de combinações
apropriadamente variadas de indivíduos) ajudaria a evitar esse viés
masculino na obtenção de dados. Problemas também surgem quan-
do autores indicam que a unidade de amostragem foi o chefe de fa-
mília, mas não indicam se outros membros da família foram entre-
vistados ou não (Downes e Wroot, 1974); ou quando a composição
sexual da amostragem não é fornecida, a despeito da clara impor-
tância teórica de se considerar diferenças de gênero no contexto da
pesquisa em questão (p.e., Horton e Reynolds, 1971). Uma descrição
clara e completa da metodologia de pesquisa e uma especificação
das amostras por gênero atenuariam esse problema.

Práticas de entrevista

Os resultados de uma pesquisa podem ser matizados por práti-


cas de entrevista como a de ter outros membros de uma família pre-
sentes quando um deles está sendo entrevistado. A interpretação das
respostas dadas pode gerar problemas, particularmente em tópicos
relativos ao papel das mulheres no sustento da família e na tomada
de decisões. Tanto os temas quanto os entrevistadores podem mini-
mizar ou subestimar a importância do envolvimento das mulheres.
Elmendorf (1976) observou que as mulheres mexicanas da área ru-
ral descrevem a si próprias como “ajudantes” da família, em vez de
pessoas que trabalham para o sustento da unidade familiar, apesar
de sua atividade substancial na plantação, na colheita, na criação de
animais e no processamento de alimentos. Bedford (1973), num es-
tudo sobre mobilidade populacional, comentou que as mulheres das
Novas Hébridas ofereciam razões passivas para seus deslocamentos,
que eram descritos extensamente como dirigidos por pais ou mari-
dos. Isso é possível, mas podemos nos questionar se sua interpreta-
ção reflete as expectativas culturais de um pesquisador estrangeiro
ou das próprias mulheres.

Fontes de dados secundários


inadequadas

A conveniência ou natureza das fontes de dados secundários


podem contribuir para que a pesquisa omita as mulheres. Os estudos

46
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana

de migração de Poulson et al. (1875) e de Wareing (1980) demonstram


esse problema. Esses estudos se valem, respectivamente, de registros
eleitorais (mulheres poderiam não ser rastreadas por causa das mu-
danças de nome) e de cadastros de matrículas masculinas em locais
de aprendizagem. A definição de unidade familiar adotada pelo cen-
so dos EUA anteriormente ao de 1980 (Bureau of the Census, 1976, p.
100-101) dificulta o uso de dados de recenseamento para investigar
certas questões de pesquisa relacionadas às mulheres.

OBJETIVO

Um dos objetivos da pesquisa geográfica tem sido fornecer uma


base para a adoção de políticas bem informadas e tomadas de deci-
são. No entanto, uma pesquisa de orientação política que ignore as
mulheres não pode contribuir para formar ou orientar uma política
que vá melhorar as condições femininas. Na verdade, há numerosos
exemplos de resultados de políticas que ignoraram ou minimizaram
as necessidades das mulheres. Um deles é o do sistema de transporte
urbano, organizado com a finalidade de acelerar o percurso dos tra-
balhadores em tempo integral até seus locais de trabalho, mas não
para viagens com outros propósitos.
O objetivo da pesquisa geográfica é acumular fatos e conheci-
mentos com a finalidade de melhorar nosso entendimento de even-
tos atuais ou de formular políticas inseridas no contexto do status
quo, ou ir além disso e perguntar por que as coisas são como são para
que se possam avaliar os perfis dos futuros possíveis? Estudiosas fe-
ministas enfatizam a necessidade da pesquisa para definir estrutu-
ras alternativas nas quais a parcela que cabe às mulheres venha a ser
aprimorada (Gamarnikow, 1978; Westkott, 1979).
Uma geografia que evite ou descarte as mulheres e suas ativi-
dades, que tenha cegueira de gênero, ou que assuma papéis de gêne-
ro tradicionais jamais poderá contribuir para a sociedade igualitária
que as feministas prefiguram (Gamarnikow, 1978; Westkott, 1979).
Tendo tais propósitos em mente, nós precisamos de uma geografia
cultural e histórica que permita que as mulheres desenvolvam um
senso de autoestima e identidade que brote da sua consciência de
tradição e de relação com o espaço e uma geografia social e econômi-
ca que vá além da descrição do status quo. Blaikie (1978) reconhece
essa implicação em seus estudos sobre o planejamento familiar na

47
Índia. As políticas desenvolvidas a partir da difusão da sua pesquisa
podem melhorar a disseminação da informação sobre métodos con-
traceptivos entre mulheres isoladas social e espacialmente, mas uma
mudança mais radical nesse contexto requer uma pesquisa que se
ocupe das condições que levam ao isolamento de tais mulheres.

RUMO A UMA GEOGRAFIA


MAIS HUMANA

Uma abordagem mais sensível às questões femininas é essen-


cial ao desenvolvimento de uma geografia não sexista, se não femi-
nista. Além disso, acreditamos que a eliminação de vieses sexistas
geraria uma geografia politicamente mais relevante. Na medida em
que os papéis de gênero definem de maneira significativa as vidas
de mulheres e homens, será frutífero incluir o gênero como variável
potencialmente importante em muitos contextos de pesquisa. Valen-
do-nos de exemplos de vieses sexistas no conteúdo, no método e nos
objetivos da pesquisa geográfica, tentamos indicar algumas manei-
ras pelas quais as questões femininas podem ser incluídas em proje-
tos de pesquisa. Muitos dos problemas que nós identificamos podem
ser facilmente resolvidos (p.e., a necessidade de discriminar amos-
tras por gênero), mas outros, como a necessidade de mensurações de
classe social não sexistas, são mais desafiadores. Embora atualmente
encorajemos uma consciência das diferenças de gênero e das ques-
tões femininas na disciplina como um todo (para que a geografia das
mulheres não se torne “guetificada”), gostaríamos de ver a delimita-
ção entre gêneros tornar-se indistinta, e depois apagar-se enquanto
linha de demarcação que define a desigualdade.

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54
Masculinidade, dualidades
e alta tecnologia
Doreen Massey

RESUMO

Este artigo investiga como certos dualismos clássicos do pensamento oci-


dental se organizam na vida cotidiana. O texto focaliza as dualidades razão/
desrazão e transcendência/imanência e a influência destas na estruturação
das relações sociais que orbitam os setores de alta tecnologia em Cambridge,
na Inglaterra. A significância dos polos masculinos dessas dualidades para
as características manifestadas por esses setores e o relacionamento dos
cientistas homens são ambos explorados aqui, bem como algumas das ten-
sões associadas na relação entre as esferas de “casa” e do “trabalho”. Um tipo
particular de masculinidade high-tech, ou seja, ligada à alta tecnologia, vem
sendo reforçado, e a resistência a ele parece conduzir basicamente a um re-
forço das dualidades. As conclusões ponderam sobre algumas das implica-
ções dos resultados desta pesquisa, tanto para os setores em questão quanto
para a vida na academia.

Palavras-chave: dualidades; masculinidade; alta tecnologia; razão; ciência;


jornada de trabalho.

U
m elemento importante de recentes análises feministas
de gênero tem sido a investigação e a desconstrução do
pensamento dualista. Este artigo retoma um aspecto da
questão das dualidades na construção de gênero. Examina a intera-
ção entre duas dualidades particulares no contexto da vida diária e
na indústria de alta tecnologia na área de Cambridge, na Inglaterra, e
seu entorno. O foco nas dualidades como vivência, como um elemen-
to da prática diária, é importante (ver Bourdieu, 1977; Moore 1986),
pois as estruturas filosóficas não existem “apenas” como proposições
teóricas ou na forma da palavra escrita. São tanto reproduzidas quan-
to, ao menos potencialmente, combatidas e alvo de revoltas na prática
da vida cotidiana. O foco aqui é sobre como determinadas dualidades
podem apoiar e problematizar certas formas de organização social
em torno da indústria de alta tecnologia britânica.
A indústria de alta tecnologia, em suas várias formas, é vista
por todo o espectro político como a esperança para o futuro das eco-
nomias nacionais, regionais e locais (Hall, 1985), e é importante, por
isso, que se esteja ciente das relações sociais que ela apoia e incenti-
va em sua forma atual de organização, incluindo as que giram torno
da questão de gênero.1 No Reino Unido, a alta tecnologia tem sido
objeto de interesse de áreas locais por todo o país, protagonizando
algumas das mais espetaculares histórias de sucesso econômico re-
gional dos últimos anos. Em especial, ela é a base do que se tornou
conhecido como o “fenômeno Cambridge” (Segal et al., 1985). A in-
vestigação relatada aqui trata de cientistas e engenheiros altamente
qualificados que trabalham em diversas empresas do setor privado,
desde empreendimentos de pequeno porte até multinacionais, que
compõem o núcleo deste novo desenvolvimento. São pessoas envol-
vidas principalmente na pesquisa e na concepção de novos produtos.
Trata-se do campo mais valorizado da alta tecnologia. O argumento
deste artigo parte de dois fatos importantes sobre os cientistas que
atuam nesse setor econômico: primeiro, a maioria esmagadora deles
é do sexo masculino; segundo, eles trabalham durante longas horas
num regime que exige elevado grau de flexibilidade temporal e espa-
cial (ver Henry e Massey, 1995). Foi a conjunção destes dois aspectos
que motivou a linha de pesquisa relatada aqui.

1
Apenas um aspecto dessas relações é explorado neste artigo. O trabalho faz parte de
um projeto mais amplo, que trata da alta tecnologia e das relações sociais que orbitam
em torno dela. Esta pesquisa foi financiada pelo Economic and Social Research Council
[Conselho de Pesquisa Econômica e Social, do Reino Unido] — ESRC: R000233004 —,
sob o título “High-status growth? Aspects of home and work around high-technology
sector” [Desenvolvimento de alto nível? Aspectos da casa e do trabalho em torno dos
setores da alta tecnologia], e vem sendo realizada por Nick Henry, atualmente vinculado
ao Departamento de Geografia da Universidade de Birmingham. O projeto faz parte
de um programa mais amplo, que consta de cinco pesquisas acerca da natureza e das
consequências do desenvolvimento no sudeste da Inglaterra, na década de 1980. O
programa é vinculado à disciplina de Geografia da Faculdade de Ciências Sociais de
The Open University, a qual disponibiliza informações adicionais e uma série de Papéis
Esparsos.

56
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

ALTA TECNOLOGIA E LONGAS


JORNADAS DE TRABALHO

Há três séries de razões para que os empregados nesses setores


da economia cumpram longas jornadas de trabalho.2 O primeiro gru-
po de motivos decorre da natureza da concorrência entre as empre-
sas no ramo da alta tecnologia. É o tipo de concorrência que se tem
caracterizado classicamente como “pós-fordista”. A produção fre-
quentemente ocorre em uma única vez, como resultado de propostas
especificamente negociadas e competitivas. Entre os critérios de jul-
gamento dessas propostas, o prazo de cumprimento do contrato tem
alta prioridade. Além disso, tanto durante o processo de produção
quanto após este ser concluído, há uma forte ênfase na capacidade
de atender o cliente: responder perguntas, dar resolução a problemas
que surgem durante e após a instalação/entrega de um produto, es-
tar presente quando necessário — mesmo que a chamada telefônica
venha da Califórnia no meio da noite. Não se trata tanto da imprevisi-
bilidade inerente à atividade de pesquisa e desenvolvimento quanto
do modo como ela se adapta às dimensões espaço-temporais exigi-
das por este tipo particular de construção social da competitividade.
“Tempo” é importante para o sucesso de uma competição. A pausa
para pensar viria depois dos resultados, pois esses trabalhadores são
altamente especializados naquilo que com frequência se anuncia
como um futuro promissor flexível. As exigências que essa flexibili-
dade impõe, mesmo para esses trabalhadores, são consideráveis.3
Além disso, essas pressões por longas jornadas somam-se a um
segundo conjunto de motivos: os que giram em torno da natureza da
concorrência do mercado de trabalho. Há uma série de elementos que
contribuem para isso, porém o mais significativo deriva de seu caráter
geral de mercado de trabalho baseado no conhecimento. Trata-se de
um mercado centrado na força de trabalho individualizada, valoriza-
2
As duas primeiras dessas razões estão descritas em maiores detalhes em Henry e
Massey (1995). Como parte da pesquisa, entrevistamos representantes de 19 empresas,
60 cientistas do sexo masculino e 38 parceiras, todas do sexo feminino. A “parceria”
foi definida, aqui, em termos de coabitação. Cerca de um terço dos cientistas não
coabitavam. As citações de entrevistas presentes neste artigo foram selecionadas por
serem sintomáticas. Elas capturam, ou expressam com precisão, pontos ou atitudes
típicas ou amplamente predominantes ou, quando isso é indicado no texto, que
caracterizam as posturas tomadas por alguns dos entrevistados.
3
Em um artigo atualmente em produção, essa caracterização do trabalho como
“flexível” é, ela própria, questionada. Sou grata a um dos pareceristas por seus extensos
e construtivos comentários sobre certos aspectos dessa questão.

57
da por sua aprendizagem, experiência e conhecimento específicos. A
fim de competir nesse mercado de trabalho (e em outros como ele),
os funcionários devem, além da necessidade de cumprir as longas
jornadas já exigidas pelas respectivas empresas, continuar a repro-
duzir e aumentar o valor de sua própria força de trabalho. Devem
manter-se atualizados, ir a conferências e garantir a capacidade de
colaboração em rede e dialogar com as pessoas certas. Tudo isso é
trabalho adicional, que extrapola as horas exigidas pela empresa con-
tratante e necessárias para o seu sucesso, mas é igualmente neces-
sário para o sucesso individual do empregado. No local de trabalho,
a interação entre os colaboradores pode produzir uma cultura que
glorifica as longas jornadas de trabalho. Novamente, isso pode deri-
var da competição entre os indivíduos, mas também pode resultar de
várias pressões colega-grupo — a necessidade “de não deixar a equi-
pe na mão”, por exemplo, pode se tornar uma forma de compulsão
social (Halford e Savage, 1995).

Nós não somos obrigados a trabalhar mais tempo — acho que as pes-
soas escolhem isso porque gostam do seu trabalho, por causa do seu próprio
projeto... E há também a primazia do cliente.
O relógio de ponto não importa de modo algum. A única restrição para
mim é que eu não gosto de chegar em casa muito tarde. A senhoria me deu
uma chave, mas eu não gosto de chegar muito depois da meia-noite.
Eu tenho tantas folgas no banco de horas que nem sei o que fazer com
elas.
… porque eu gosto disso… gosto do trabalho… gosto de computado-
res… Eu sempre me pergunto o que teria feito se tivesse que arranjar um em-
prego antes que existisse a computação.
Tiveram que mandar uma pessoa para uma conferência no exterior
porque ninguém queria tirar folga para isso.
Mas o que nós descobrimos ao longo dos anos é que as pessoas que
trabalham aqui, e que se envolvem no trabalho, tornam-se viciadas... nós te-
mos dificuldade em fazer algumas pessoas saírem; elas ficam absorvidas de-
mais pela coisa... Esse círculo de pessoas que trabalham no nosso sistema, as
dificuldades os afastam de qualquer outra coisa que possa ser necessária, é
como se eles nem dormissem durante os últimos 40 anos!

Figura 1. O entusiasmo profissional levando a jornadas de trabalho mais longas.

58
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

Mas o terceiro conjunto de motivos para jornadas de traba-


lho prolongadas nos setores de alta tecnologia é de ordem comple-
tamente diferente. Trata-se, pura e simplesmente, do fato de que os
cientistas amam seu trabalho. A Figura 1 ilustra alguns aspectos dis-
so; as quatro primeiras citações são dos próprios cientistas; as duas
últimas, de representantes de empresa. Esses cientistas e engenhei-
ros ficam absorvidos pelo trabalho, aprisionados pelo seu interesse
por ele; não gostam de deixar qualquer detalhe de um problema por
resolver antes de encerrar o expediente, à noite. A maneira pela qual
esse envolvimento é interpretado ou exposto por diferentes grupos
varia. Os representantes de empresa referem-se aos tipos de pessoas
que eles procuram empregar como comprometidos e flexíveis, como
“motivados”, “capazes de suportar a pressão”, não do tipo que olha
para o relógio a todo momento, e frequentemente reconhecem que
tais características podem derivar do puro interesse no trabalho em
si. Vários representantes de empresas foram bastante claros sobre
sua busca por empregados ter sido direcionada a encontrar tais ca-
racterísticas. Os próprios cientistas costumam falar de seu prazer
pela natureza do trabalho, de seu interesse intrínseco. No entanto,
quando esses cientistas do gênero masculino tinham parceiros (e to-
dos os parceiros que identificamos eram mulheres), seus pontos de
vista eram mais cínicos, muitas vezes apontando para uma obsessão
ou compulsão ao trabalho.4
Há dois aspectos que vale a pena apontar nessa conjuntura. Em
primeiro lugar, uma reação imediata à vida profissional desses em-
pregados pode muito bem ser crítica. De fato, à medida que realizáva-
mos a pesquisa, a nossa foi, pelo menos em princípio. No entanto, as
razões para a duração talvez excessiva do trabalho também têm outro
lado: todas elas são completamente ambíguas, embora de maneiras
diferentes. Em termos de concorrência setorial, “colocar o cliente
em primeiro lugar” não é uma coisa ruim (especialmente se você é o
cliente). No entanto, as demandas depositadas sobre os funcionários
4
Um dos resultados de tamanha absorção desses profissionais por seu trabalho é,
naturalmente, que eles dispõem de menos tempo livre do que teriam, caso não fosse
assim, para dedicar à vida doméstica. Um futuro artigo tratará diretamente desse
problema. Em discussões acerca do presente artigo, Cynthia Cockburn (comunicação
pessoal) questionou “se o tempo subtraído por esses homens para sustentar seu hábito
viciante seria, na verdade, não roubado da vida doméstica (outros homens também
não dedicam mais tempo do que devem às suas casas), mas sim do bar, do clube e do
sindicato”. Há, provavelmente, mais coisas envolvidas nisso. O objetivo, no presente
artigo, é justamente enfatizar que uma forma particular de masculinidade é o que
caracteriza esses setores.

59
podem ser enormes. Em termos de mercado de trabalho, isso normal-
mente tem sido interpretado como uma antecipação de que o valor
de alguém se baseia no conhecimento e na experiência, em vez de,
por exemplo, na ausência de sindicalização ou na aceitação de bai-
xos salários. Além disso, a individualização do mercado de trabalho
deve, em muitos sentidos, ser considerada um avanço; certamente o
é em relação ao tratamento dos trabalhadores como massa, como um
agrupamento de força de trabalho anônima. A ideia, por menos pro-
vável que seja, de estarmos caminhando para uma economia e uma
sociedade baseadas no conhecimento pode ser interpretada como
uma mudança para melhor. Finalmente, o fato de as pessoas gosta-
rem de seu trabalho, e elas gostam em parte precisamente por causa
da produção de conhecimento (gerado pelos próprios trabalhado-
res), pode ser visto apenas como uma melhoria em relação aos tipos
de trabalho que se caracterizam, sobretudo, por uma monotonia que
entorpece a mente e um grande desejo de chegar ao fim do dia. Após
anos denunciando os fatos e os efeitos da requalificação, acho difícil
criticar postos de trabalho por eles absorverem e exigirem muito em
termos de aprimoramento das habilidades! (No entanto, este mesmo
dilema pode apontar para o fato de que o problema tenha sido for-
mulado de maneira errônea. Talvez o foco de nossa atenção devesse
ser a polarização entre desqualificado e superqualificado...?)
Além disso, o segundo e o terceiro dessa série de motivos para
as longas jornadas (a natureza do mercado laboral e o amor pelo tra-
balho), embora talvez menos que o primeiro (a natureza da concor-
rência no setor), são compartilhados por muitas outras ocupações e
áreas da economia, especialmente por setores profissionais e, talvez
mais especialmente, pela academia. Alguns dos aspectos que se apre-
sentam são, portanto, de relevância muito mais geral, ultrapassan-
do os limites do relativamente pequeno setor da alta tecnologia em
Cambridge. No entanto, eles por certo motivaram questionamentos
pessoais de nossa parte, enquanto fazíamos nossa pesquisa. Mesmo
sob outros prismas, a maneira particular com que essas pressões fun-
cionam e os tipos de características sociais às quais elas estão associa-
das são bastante específicos em setores determinados da economia.

60
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

DUALIDADES E MASCULINIDADES

Formulações dualistas

Uma das especificidades desses setores de alta tecnologia está


ligada às razões pelas quais os funcionários são tão apegados a seus
postos de trabalho e ao modo como esses motivos são interpretados.
As dinâmicas em jogo aqui estão associadas a elementos de masculi-
nidade e a uma forma muito específica de masculinidade. Acima de
tudo, a conexão com esses empregos está relacionada ao seu caráter
científico, o qual depende do (e, talvez igualmente importante, limi-
ta-se ao) exercício da racionalidade e da lógica. No âmbito da estru-
tura econômica, esses empregos representam o ápice do domínio da
razão e da ciência. É isso que lhes confere grande parte de seu status
e que, em parte, explica as descrições triunfalistas às quais essas ati-
vidades são tão frequentemente associadas em relatos jornalísticos.
O que elas exigem é a capacidade de pensar logicamente.5 Situam-se
num setor da economia cujas principais características, no que diz
respeito a seus trabalhadores, são estruturadas em torno de uma das
mais antigas dualidades do pensamento ocidental: entre razão e des-
razão; é um setor identificado com um polo — a razão — socialmente
construído, e validado, como masculino (ver, especialmente, Lloyd,
1984).
Além disso, segundo essa formulação dualista, a ciência é posi-
cionada ao lado da História (com “H” maiúsculo), como progressão.
Ela faz descobertas; está envolvida em mudanças, em progresso. E é
aqui que ela se liga a uma segunda dualidade: entre a transcendência
e a imanência. Em seu aspecto de transcendência, a ciência é profun-
damente oposta ao suposto contrário desta, o reino estático do viver-
no-presente, da simples reprodução, que se vem denominando pelo
termo “imanência”. Essa oposição entre transcendência e imanência é
também uma dualidade com uma longa história no pensamento oci-
dental. E, novamente, é a transcendência que tem sido identificada e

5
Cynthia Cockburn (1985) chamou atenção para algumas das inconsistências e
contradições presentes mesmo aqui — ver o tratamento que ela confere ao conceito de
“intuição” e à relação ambígua dos cientistas para com esta. Na verdade, o próprio fato
de os homens “realmente amarem” seu trabalho, serem “obsessivos” e assim por diante,
toca em domínios externos ao da razão pura. Mas, como já foi apontado no parágrafo
de abertura, a coerência nunca foi o atributo marcante do funcionamento dessas
dualidades, nem a inconsistência parece ser grande impedimento a seu poderio social.

61
construída como masculina (é ele que sai para o mundo e faz histó-
ria), em oposição ao feminino que “meramente” vive e se reproduz.
Como Lloyd (1984, p. 101) argumenta:

“Transcendência”, em sua origem, é uma transcendência


do feminino. Na sua versão hegeliana, é associada a um
repúdio ao que é supostamente significado pelo corpo
feminino, os “orifícios” e o “lodo” que ameaçam envolver
a livre subjetividade (ver Sartre, 1943, p. 613-4)... Em am-
bos os casos, claro, é apenas a partir de uma perspectiva
do sexo masculino que o feminino pode ser visto como o
que deve ser transcendido. Mas a perspectiva masculina
deixou suas marcas nos próprios conceitos de “transcen-
dência” e “imanência”.

As duas dualidades (razão/desrazão e transcendência/imanência)


não são, portanto, a mesma coisa, embora haja inter-relações entre
elas.
Os motivos para essas caracterizações e para a construção des-
sas dicotomias, em primeiro lugar, bem como a sua relação com o
gênero, têm sido muito investigados (ver, por exemplo, Dinnerstein,
1987; Easlea, 1981; Keller, 1982, 1985; Hartsock, 1985; O’Brien, 1981;
Wajcman, 1991). Muitos desses autores examinaram a relação entre a
constituição da ciência, de um lado, e do gênero, de outro. A história
escrita por David Noble em A world without women [Um mundo sem
mulheres] (1992) descreve a captura, pelas sociedades masculinas fe-
chadas, do tipo de produção de conhecimento destinado a receber a
mais alta valorização social.
Tal pensamento dualista tem sido objeto de muitas críticas. No
entanto, a natureza da crítica vem mudando e sendo contestada. Em
O segundo sexo, Simone de Beauvoir (1949) conhecidamente instou as
mulheres a entrarem na esfera da transcendência. Nos últimos anos,
contudo, o foco primário da disputa tem sido mais o fato de pensar
dualisticamente. O pensamento dualista tem sido criticado tanto de
maneira geral, como modo de conceber o mundo, quanto, em parti-
cular, na sua relação com o gênero e a política sexual. O pensamento
dualista leva à restrição de opções e à estruturação do mundo em ter-
mos de “ou isso, ou aquilo”. Em relação a gênero e sexualidade, leva,
igualmente, à construção de opostos heterossexuais e à redução de
gêneros e sexualidades a duas possibilidades contrapostas. Além dis-
so, mesmo que à primeira vista possa parecer ter pouco a ver com gê-
nero, uma vasta gama de tais dualidades é completamente imbuída

62
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

de conotações de gênero, um lado sendo socialmente caracterizado


como masculino, o outro como feminino, de forma que o primeiro
passa a ser socialmente valorizado. O poder dessas estruturas cono-
tativas é imenso e aparentemente não é muito atenuado — de fato,
possivelmente ele é apenas tornado mais flexível — pela existência
de inconsistências e contradições entre elas.

Práticas dualistas

Foi apenas gradualmente, ao longo da análise do material cole-


tado nas entrevistas e da natureza do trabalho nos setores científicos
da economia, que a questão das dualidades se revelou significativa
nesta pesquisa. Foram as coisas que as pessoas disseram, o modo
como a vida foi organizada e conceituada, as suposições implícitas
que surgiam repetidamente, que impulsionaram a investigação nes-
sa direção.
Assim, por exemplo, era evidente que em Cambridge os traba-
lhadores científicos ligavam-se especificamente aos aspectos de seu
trabalho que encarnam “razão” e “transcendência”. O que eles real-
mente apreciam é a natureza lógica e científica de sua atividade: eles
podem exultar com a cientificidade de seus trabalhos e frequente-
mente demonstram prazer com a natureza de jogo lógico ou de que-
bra-cabeças nisso tudo.6 Suas parceiras comentam sobre a obsessão
deles com seus computadores, e tanto as parceiras quanto os repre-
sentantes das empresas falam em meninos com seus brinquedos
(um representante candidamente apontou que eles gostam de seus
empregos porque a empresa pode comprar brinquedos muito mais
caros do que esses homens poderiam pagar):

Temos brinquedos que eles não podem pagar. Você co-


nhece os engenheiros, crianças grandes de fato; se você
comprar um computador para eles, sabe que vai con-
quistá-los... Você garante [que eles fiquem] muito felizes
se puder dar brinquedos para eles brincarem.

O apego aos computadores pode ser visto, nesse contexto,


como reflexo de duas coisas bastante diferentes, ambas as quais são
distintas do amor de orientação tecnológica despertado pelo ato de
“mexer com máquinas”. Por um lado, essas máquinas, e o que pode
6
Universos similares foram descritos por Tracey Kidder (1982) e Sherry Turkle (1984).

63
ser feito com elas, incorporam a ciência com a qual os empregados
estão envolvidos. São auxílios e estímulos para o pensamento lógico.
Por outro lado, sua relativa previsibilidade (e, portanto, controlabili-
dade) enquanto máquinas isola-as das incertezas, e possivelmente
das exigências emocionais, da esfera social (ver abaixo).
O aspecto de transcendência transparece nas caracterizações
do emprego como “luta” contra problemas, como “obtenção de pro-
gressos”; se esses trabalhadores se consideram ou distanciados, ou
enfrentando diretamente a questão, então existe a noção de uma
“fronteira” técnico-científica. Certo cientista, refletindo sobre os mo-
tivos de suas longas jornadas de trabalho, falou em ser “movido pelo
sucesso” e do fato de “estar chegando cada vez mais alto”. Um cientis-
ta da mesma empresa, que era bastante crítico das horas trabalhadas
por outros, argumentou que, para algumas pessoas, a crise faz parte
da cultura de trabalho: “é uma espécie de emblema da coragem”. Ou-
tras palavras também refletem o esforço e a luta envolvida em tudo
isso: “Se eu sair daqui cambaleando às 11 horas da noite, realmente
não me sinto a fim de ir para casa e cozinhar”. Há a busca: “Como pai,
eu tento passar o máximo de tempo que puder com [a criança], mas,
na minha busca pelo que quer que seja, eu tendo a trabalhar demais”.
Há a compulsão: “Se você tem que fazer algo, então você faz”. E, feliz-
mente, há o triunfo:

a esposa dele é muito mais bem-humorada do que a mi-


nha, que diz coisas como “que diabos, sexta à noite nós
temos que sair, não se esqueça disso”, mas [minha es-
posa] aceita o fato de que, se não há nada em especial e
nada a ser feito, há grandes chances de que eu desapa-
reça e só torne a aparecer vesgo de cansaço e tudo mais,
mas com um sorriso triunfante ou cabisbaixo.

Esta citação ilustra um fenômeno adicional: que a autoconcep-


ção de muitos desses funcionários é construída em torno do traba-
lho que eles fazem e, especificamente, em torno desse trabalho como
atividade científica: “a máquina diante deles é seu lar. É a ciência que
domina suas vidas e interesses...”
Além disso, essa glorificação das capacidades científicas ou de
pesquisa e desenvolvimento por parte dos cientistas pode caminhar
lado a lado com uma muito contrastante depreciação de suas habili-
dades para fazer outras coisas, especialmente (no contexto de nossas
entrevistas) a incompetência em face do trabalho doméstico. Este é
um trabalho em que é bastante aceitável não ser bom. Assim:

64
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

Lavar roupa? “Eu enfio na máquina”; faxina? “Faço quan-


do a sujeira fica demais”; compras? “Passo no Tesco [su-
permercado], sexta-feira ou sábado”; cozinhar? “Eu po-
nho algo no microondas. Nada especial. Sendo rápido e
fácil, está bom o suficiente para mim”; jardinagem, en-
tão? “Só quando necessário”.

Não há, aqui, nada da elaboração agradável sobre a natureza


das tarefas que tipifica as descrições do trabalho científico remune-
rado. As respostas são curtas e desdenhosas.
Tais atitudes são importantes por indicarem o que é considera-
do aceitável como parte da própria apresentação que esse cientista
faz de si próprio. Não só a identificação com a investigação científica
é muito forte e positiva, como parece igualmente importante para ele
estabelecer o que não faz parte de sua imagem de si mesmo. Trabalho
doméstico e cuidados com suas necessidades diárias e seu ambiente
de vida estão definitivamente fora de questão. Não se trata apenas do
fato de a atividade científica ser avaliada positivamente, o que é sig-
nificativo, mas também de que ela é bruscamente separada de outros
aspectos da vida. Temos aqui, precisamente, a antiga dualidade, mos-
trando sua cara na autoimagem do entrevistado e na vida cotidiana.
O que estava acontecendo era uma verdadeira rejeição da possibili-
dade de ser bom tanto em ciência quanto no trabalho doméstico. Um
enquadramento da vida em termos de “ou isso, ou aquilo”.
Neste caso, e em alguns outros, tal menosprezo dirigido ao res-
tante da vida estende-se a tudo que não trate de trabalho/atividades
científicas. Todavia, essas posições extremas não foram frequentes e
parecem ser mais evidentes entre os homens solteiros do que entre
os que têm parceiras e, ainda mais acentuadamente, do que entre os
que têm filhos. Alguns homens estavam claramente cientes do pro-
blema. Para um dos cientistas, um novo bebê tinha “mudado com-
pletamente sua vida” (isso significava que ele ia para casa cedo quase
que em noites alternadas), e, no entanto, a dificuldade de equilibrar
ou integrar ambos os lados de sua existência era evidente:

Sinto-me frustrado... quando... depois deste bebê que


mudou minha vida... vou para casa mais cedo a cada dois
dias (quase) e busco-a às 16h35, levo-a para casa, brin-
co com ela até fazê-la dormir, e... Acho que às vezes isso
é bastante frustrante, pois me afasta do trabalho. Quero
dizer — está em pleno direito, mas é... Estou consciente
do fato de que... Eu chamo isso de dia pela metade, sabe.
Acho que é frustrante.

65
Finalmente, alguns dos comentários feitos sobre os cientistas
por (algumas das) parceiras foram especialmente afiados e revelado-
res, descrevendo-os como:

não muito adaptado socialmente... melhor com as coisas


do que com as pessoas.
O trabalho fica com o que ele tem de melhor, o trabalho é
o centro de sua vida...

Um dos poucos representantes femininos da empresa (isto é,


um membro da administração, não da equipe científica) refletiu:

Bem, quando entrei na empresa, havia doze pessoas aqui


e eles me prenderam num escritório com a equipe de
desenvolvimento, e foi um pesadelo. Eu realmente odiei
aquilo. Aqueles homens não falavam, não sabiam como
falar com uma mulher, realmente não sabiam.

O que parece estar acontecendo, nesses empregos e em torno


deles, é a construção/reafirmação de um determinado tipo de mas-
culinidade (ou seja, de características que são socialmente codifica-
das como masculinas) ligado à razão e à cientificidade, ao pensamen-
to abstrato e à transcendência. É um processo relacionado com algu-
mas das dualidades do pensamento ocidental e que, como veremos a
seguir, tem efeitos concretos nas vidas das pessoas.
Tais características dos funcionários, deve-se salientar, estão li-
gadas à natureza mais geral desses empregos. São ocupações que de-
rivam seu prestígio precisamente de sua natureza abstrata e teórica.
A própria construção e o conteúdo desses trabalhos são resultado de
um longo processo de separação entre concepção e execução (e do
reforço adicional dessa distinção por meio do distanciamento social
e espacial). Trata-se de empregos, em outras palavras, que permitem
e incentivam o florescimento de tais características sociais. Além dis-
so, as longas jornadas que, pelas várias razões discutidas acima, são
neles praticadas reforçam tanto sua centralidade nas vidas dos fun-
cionários quanto a transferência do volume do trabalho reprodutivo
para outros. Nas palavras de Cynthia Cockburn (1985, p. 181):

Compromissos familiares devem vir em segundo plano.


Tal trabalho claramente requer que não se tenha a res-
ponsabilidade de cuidar dos filhos, na verdade, que não
se tenha ninguém para cuidar, mas, idealmente, que se
tenha alguém para cuidar de você.

66
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

O que tudo isso implica não é só que esses empregos consti-


tuem uma incorporação, na vida profissional, da ciência e da trans-
cendência, mas também que, em sua própria construção, e pela im-
portância que desse modo vêm a atingir na vida, eles impõem uma
separação entre tais coisas e outros possíveis aspectos da existência
(os outros lados da razão e da transcendência) e, assim, incorporam
essas características como partes de uma dualidade. Além disso, ao
expulsar os outros polos dessas dualidades para as margens perifé-
ricas da vida e para outras pessoas (seja a parceira não remunerada,
sejam serviços pagos), eles estabelecem as dualidades como uma di-
visão social do trabalho. A pressão é para que alguma outra pessoa
suporte o outro lado da vida.
Além disso, se há de fato uma forma de masculinidade ligada a
tudo isso, então as empresas nesses setores da economia permitem
que a questão ocupe seus pensamentos; elas negociam com isso e
obtêm benefícios — e o que é mais significativo do ponto de vista
da argumentação deste trabalho —, elas reforçam esse aspecto. Ade-
mais, a posse dessas características, que são socialmente codifica-
das como masculinas e se relacionam às formas de codificação que
ressoam distinções dicotômicas entre dois gêneros, torna as pessoas
mais facilmente exploráveis pelas formas do capital que atuam nes-
ses setores. Há aqui uma convergência de desejos/interesses, entre
certo tipo de masculinidade e certo tipo de capital.7
Isso não quer dizer que o que está em questão aqui seja simples
“sexismo”. Nossas entrevistas — pelo menos as analisadas até agora
— não revelaram o sexismo explícito encontrado em alguns outros
estudos, incluindo o de Cockburn (1985). Não encontramos muita
coisa que se assemelhasse a declarações fortes sobre a inadequação
das mulheres para essas atividades. Houve algumas declarações nes-
se sentido, mas foram raras no contexto global das nossas entrevistas.
Também não ficou claro que os cientistas do sexo masculino que de-
monstraram as características descritas aqui tenham sempre as reco-
nhecido como explicitamente masculinas (embora seja bem possível
que sondagens futuras revelem mais evidências a esse respeito). O
ponto, porém, é que o que está em questão aqui é não tanto a dis-
criminação ou o sexismo evidentes quanto às dualidades profunda-
mente internalizadas que estruturam identidades pessoais e rotinas
diárias, que têm efeitos sobre as vidas de outras pessoas mediante

7
Essas interconexões entre análise de gênero e aspectos do crescimento econômico, e,
especificamente, a geografia econômica, serão mais exploradas em um próximo artigo.

67
uma estruturação da ação de relações e dinâmica sociais, e que deri-
vam sua codificação masculino/feminino a partir dos fundamentos
sociofilosóficos profundos da sociedade ocidental.

O limite casa-trabalho

O limite entre trabalho e “casa” tem sido muitas vezes visto, e


neste caso pode ser visto, como uma instanciação da dualidade entre
transcendência e imanência.8 No trabalho, as fronteiras da história
são expandidas; em casa (ou assim a formulação nos quer fazer crer),
há um mundo de sensações, emoções e (simples) reprodução. Mais
uma vez, Lloyd (1984, p. 50) resume os argumentos complexos que
evoluíram a esse respeito:

Devemos a Descartes uma influente e difundida teoria


da mente, que fornece embasamento para uma podero-
sa versão da divisão sexual do trabalho mental. Às mu-
lheres tem-se atribuído a responsabilidade por esse rei-
no do sensual que o Homem Cartesiano da Razão deve
transcender, se quiser ter o verdadeiro conhecimento das
coisas. Ele deve avançar rumo ao exercício da imagina-
ção disciplinada, na maior parte de atividade científica;
e rumo aos rigores do intelecto puro, se deseja apreender
os fundamentos últimos da ciência. A missão da mulher é
preservar a esfera do entrelaçamento da mente e do cor-
po, para o qual o Homem da Razão irá recorrer em busca
de consolo, calor e relaxamento. Se ele almeja ao exercí-
cio da Razão em sua forma mais elevada, deve deixar as
emoções fáceis e a sensualidade para trás; a mulher as
manterá intactas para ele.

O fato de que tudo isso pode ser — e tem sido — severamente cri-
ticado simplesmente por sua precisão descritiva, mais particularmente
a partir de uma perspectiva feminista, não destruiu seu poder enquan-
to sistema conotativo. O que está em questão acerca do poder ideo-
lógico dessas dualidades não são apenas os fatos relevantes aos quais
eles (muitas vezes apenas de maneira muito imperfeita) se relacionam
(muitas mulheres também não gostam de trabalho doméstico e muitas

8
Embora a distinção casa-trabalho possa ser validamente interpretada como uma
instanciação dessa dicotomia, deve-se ressaltar que há muito mais envolvido nas
possibilidades de “imanência” do que ter filhos e fazer o trabalho doméstico.

68
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

delas, que têm empregos remunerados, negociam um limite casa-


trabalho), mas sim o sistema conotativo complexo a que esses fatos
se referem. Além disso, a negociação desse limite surgiu em nossa
pesquisa como um elemento crucial na construção da atitude desses
homens em relação ao seu trabalho e na construção de si próprios.
Uma das rotas de investigação que originalmente despertou
meu interesse em projetar esta pesquisa derivou de declarações fei-
tas em entrevistas de um projeto anterior (Massey et al., 1992). Esse
projeto também estava interessado em investigar empresas de alta
tecnologia, especialmente aquelas localizadas em parques científi-
cos, e um dos temas recorrentes numa série de entrevistas dizia res-
peito à indefinição de fronteiras. “A fronteira entre trabalho e diver-
são desaparece” foi uma resposta obtida por aquela pesquisa ante-
rior que permaneceu na minha mente. O que me chamou a atenção
naquele momento foi a caracterização de tudo o que não estivesse
compreendido no trabalho remunerado como “diversão”, e isso, es-
pecialmente tendo em conta as longas jornadas de trabalho das em-
presas que estávamos investigando, me levou a querer saber quem
realizava o trabalho doméstico que era necessário para manter esses
homens alimentados, hidratados e aptos a comparecer ao trabalho
todas as manhãs.9 Mas o que o entrevistado da pesquisa anterior ti-
nha em mente era que o trabalho, em si, tinha muitas características
de diversão: era-se pago para fazer coisas de que se gostava, goza-
va-se de acordos trabalhistas flexíveis, levava-se trabalho para casa,
era-se abastecido com brinquedos caros. Segundo essa formulação,
não há realmente nenhum limite entre trabalho remunerado e diver-
são. De acordo com essa maneira de entender as coisas, “a casa”, no
sentido doméstico, da reprodução, da esfera das emoções, da sensu-
alidade e dos sentimentos — ou da imanência —, não entra em cena
de forma nenhuma. Como, então, podemos interpretar o que real-
mente acontece com a fronteira entre trabalho e residência no caso
destes cientistas de Cambridge? O argumento pode ser apresentado
em duas etapas.
Em primeiro lugar, há de fato um deslocamento da fronteira
entre trabalho e casa. Isso é particularmente verdadeiro em um sen-
tido temporal e espacial. Além do mais, trata-se de um deslocamento
que, basicamente, assume a forma de uma invasão do espaço e do
tempo de uma das esferas (a casa) pelas prioridades e preocupações

9
A função do “trabalho doméstico”, quem e como o realiza, e as complexas negociações
intrafamiliares ligadas a ele serão tema de um artigo futuro.

69
da outra (o trabalho remunerado). Isso pode ser ilustrado por toda
uma diversidade de maneiras. O elevado grau de flexibilidade, em
termos temporais, do número de horas de trabalho resulta, na práti-
ca, numa flexibilidade que tende muito mais numa direção do que na
outra. Enquanto se corresponde às demandas, e atrações, da função
com trabalho noturno, nos fins de semana, nos feriados nacionais e
assim por diante — e espera-se que seja assim, pois trata-se do “com-
prometimento” e da “flexibilidade” necessários para que se possa ser
aceito nesse setor da economia —, as horas extras assim acumuladas
são compensadas com muito menos frequência e, na verdade, têm de
ser negociadas de maneira muito mais formal; as demandas do lar se
intrometem muito menos no trabalho do que vice-versa (ver Henry e
Massey, 1995). Os limites espaciais também são deslocados, já que o
trabalho é com muita frequência levado para casa. Uma alta propor-
ção desses funcionários tem máquinas, modems e/ou escritórios no
espaço da esfera doméstica, mas não há uma presença equivalente
das preocupações de casa dentro do espaço central do trabalho (no
nível mais básico, por exemplo, nenhuma das empresas que pesqui-
samos tinha creche). Um dos representantes de empresa que entre-
vistamos falou que os funcionários estariam “praticamente aqui” (no
local de trabalho), mesmo quando trabalham em casa, graças aos
links de telecomunicação instalados entre os dois lugares. Além dis-
so, esse quadro indica um terceiro e muito importante aspecto dessa
invasão de sentido único. Muitos dos nossos entrevistados falaram
da dificuldade enfrentada pelos cientistas para desligar seus pen-
samentos do trabalho, de não continuar pensando num problema
mesmo quando, fisicamente, fazem algo completamente diferente.
Os homens se perguntavam se deveriam cobrar o tempo que gasta-
vam pensando na empresa durante o banho. Alguns homens e suas
parceiras falaram de episódios em que eles se levantaram no meio
da noite para ocupar-se de algum problema de difícil solução. Os ho-
mens, as parceiras e às vezes as crianças comentaram sobre a mente
estar em outro lugar quando era hora de brincar com os filhos ou en-
quanto dirigia o automóvel. Aqui há uma verdadeira divisão “espa-
cial” entre mente e corpo; uma cápsula do espaço-tempo ‘virtual’ do
trabalho, dentro do local concreto da casa. Enquanto o corpo executa
os rituais da esfera doméstica, a mente está ocupada com os interes-
ses e preocupações do trabalho:

Estou bem ciente do fato de que em muitas áreas é me-


lhor cumprir expediente das 9h às 17h e tudo mais, mas

70
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

eu nunca achei que isso fosse compatível com a tentativa


de trabalhar ou tentar realizar um pouco de pesquisa ou
um pouco de desenvolvimento, ter que interromper jus-
to na hora mágica ou sei lá o quê... E eu digo que você não
pode dizer para alguém pensar entre as 9h e as 17h e que
das 17h05 às 08h55 ele não vai pensar mais.

Isso é eminentemente compreensível e, em muitos aspectos,


atraente: é bom ter um emprego interessante e é um desafio resistir
à compartimentalização da vida em espaços-tempos mutuamente
isolados.
Mas o importante, mais uma vez, é que isso funciona apenas
numa direção. Enquanto o tempo doméstico é poroso, o tempo do tra-
balho não é. De fato, e este é o aspecto significativo, ele não pode ser.
Embora se saiba que alguém talvez pense sobre o trabalho enquanto
brinca com os filhos ou quando sai para passar o dia com sua parcei-
ra, o inverso não é o caso. De fato, uma razão apresentada com muita
frequência para que se passem noites e fins de semana de trabalho no
escritório é que o tempo-espaço é menos confuso lá — mesmo que
outras pessoas estejam fazendo a mesma coisa, há menos chamadas
telefônicas e assim por diante. Uma das características dominantes
deste tipo de trabalho é que ele exige, e induz, concentração total.
A citação acima é interessante por sua implicação de que o “pensa-
mento” está envolvido apenas no trabalho remunerado.10 Além disso,
é um tipo de pensamento que requer ausência de intrusões; ele é to-
talmente monopolizante. Em certo sentido, até mesmo as reservas a
essa atmosfera “100% trabalho” do ambiente profissional reforça sua
veracidade. Assim, um ou dois locais de trabalho tinham ginásio e
elaborados refeitórios instalados no local, com o objetivo de ajudar
em vez de prejudicar a capacidade de concentração. Numa das em-
presas, parceiras — aparentemente desesperadas por nunca verem
seus homens — iam ao escritório:

10
Esse ponto de vista foi reforçado em alguns casos pelo contraste entre a atitude para
com as habilidades empregadas no trabalho, de um lado, e no âmbito doméstico, de
outro. Assim, considerando que suas parceiras fazem quase todo o trabalho doméstico,
uma série de cientistas depõe que “ela é melhor nisso”. O interessante aqui é que não
parece haver nenhuma compreensão de que essa habilidade pode ser aprendida. Em
contraste com os empregos altamente intelectuais, para os quais muito aprendizado
foi necessário, a habilidade para o trabalho doméstico parece ser vista, ainda que
implicitamente, como inata.

71
... eles têm filhos e esposas e estão sempre relatando as
queixas de suas esposas... Essa é uma queixa constante...
Há uma queixa permanente de que os parceiros nunca
as veem e de que eles não saem daqui. Na verdade, as
parceiras tendem a vir aqui e trabalhar à noite, porque é
onde o outro está; elas têm diferentes tipos de emprego,
mas podem trazer o trabalho com elas e fazê-lo aqui.

No entanto, isso dificilmente pode ser considerado uma inva-


são: ela está em conformidade com as normas do local de trabalho; o
que ela trouxe consigo é o seu “trabalho”, não a esfera doméstica, e o
cientista pode continuar com os seus afazeres.
Isso não significa que os níveis de concentração dentro do lo-
cal de trabalho não variem, nem que não se possam fazer pausas. De
fato, tempo livre, saídas para compras, etc., proporcionam janelas
ocasionais no dia de trabalho. Mas, no local de trabalho, tudo — até
mesmo exercitar o corpo — é voltado à produtividade do intelecto:

Quando fui lá — eu estava trabalhando numa [grande


corporação]. Esta enorme fábrica em Lancashire tinha
fechado e eu vim até aqui para a entrevista [numa peque-
na empresa, com base em Cambridge] e eu subi a escada
e, em cada andar, havia uma série de pequenos escritó-
rios e rampas em volta da beirada, e o centro de cada an-
dar era aberto e havia uma mesa de pingue-pongue ou de
sinuca, e todo mundo parecia estar jogando, e eu pensei
que este deveria ser um local de trabalho — mas então,
enquanto eu olhava todas as coisas que estavam fazendo
—, um cara largava o seu taco e saía para projetar um Cir-
cuito Integrado numa salinha no canto.

O que temos aqui, então, é o local de trabalho construído como


um invólucro altamente especializado de espaço-tempo, no qual a
intrusão de outras atividades e interesses é indesejada e limitada.11
Para a maioria desses cientistas, no entanto, “a casa” é construída de
forma inteiramente diversa. Tanto temporal quanto espacialmente,
ela é porosa e, em especial, invadida pela esfera do trabalho.

11
Isto é amplamente verificável na maioria dos locais de trabalho, embora em graus
diferentes. As caixas sem janelas de muitas fábricas modernas demonstram precisamente
o desejo de não deixar o olho/a mente se perder “do lado de fora” durante o horário
de expediente. Mas nos tipos de emprego em discussão aqui, juntamente com alguns
outros, isso é especialmente notável.

72
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

Espaços abstratos

Uma maneira de começar a conceituar a diferença entre esses


dois tipos de espaço é através do trabalho de Henri Lefebvre. Em sua
consideração sobre A produção do espaço (1991), ele caracteriza o es-
paço da atual sociedade ocidental como “espaço abstrato” e discute
(e critica), como uma característica definidora, sua fragmentação,
sua divisão em subespaços dedicados ao desempenho de atividades
especializadas. A análise histórica de Lefebvre explica esse processo
como resultado tanto de aspectos da modernidade e do capitalismo,
de um lado, quanto de formas atualmente dominantes de masculi-
nidade, de outro. Embora a explicação histórica de Lefebvre e a su-
posta novidade dos espaços abstratos possam ser questionadas, seus
exemplos de tais espaços/espaços-tempos se assemelham muito for-
temente aos espaços-tempos especializados construídos em locais
de trabalho com alta tecnologia. Eles parecem ter muitas das caracte-
rísticas do espaço abstrato: são demarcados em oposição ao exterior,
são especializados, são masculinos. Porém, na história que estamos
contando aqui, eles não estão coexistindo com outros espaços-tem-
pos especializados e isolados, mas com um espaço-tempo — o da
esfera doméstica —, que é poroso, que permite a entrada de outras
esferas, o que é, talvez, segundo a proposição de Lefebvre, caracterís-
tica de um tipo de espaço-tempo mais velho, e ainda assim — e pos-
sivelmente ao mesmo tempo — potencialmente mais progressista.
Lloyd (1984, p. 50), convém recordar, diferenciou a esfera totalmente
racional da razão/transcendência (ou seja, despojada de outras coi-
sas) da “missão da mulher” de preservar “a esfera do entrelaçamento
da mente e do corpo” (grifo meu).
Mais adiante, Lefebvre pergunta de maneira incisiva:

Não é o espaço social sempre e, simultaneamente, tanto


um campo de ação (oferecendo sua extensão para a im-
plantação de projetos e intenções práticas) quanto uma
base de ação (um conjunto de lugares de onde energias
derivam e para onde as energias são direcionadas)?

Em outras palavras, o espaço social é um palco tanto da ação quan-


to de outros efeitos potencialmente capacitadores/produtivos. O mesmo
vale para os locais de trabalho nesses setores altamente tecnológicos da
economia: não são meramente espaços onde coisas podem acontecer,
mas sim espaços que, pela natureza de sua construção (especializada,

73
vedada a intrusões; e também pela natureza daquilo em que eles são
especializados), têm consequências — na estruturação do cotidiano
e das identidades dos cientistas que trabalham dentro deles. Mais
especificamente, desde sua circunscrição e dedicação exclusiva ao
pensamento abstrato até a exclusão das outras coisas, esses locais
de trabalho tanto refletem quanto proporcionam uma base material
para a forma particular de masculinidade que hegemoniza esse tipo
de atividade profissional. Não só a natureza do trabalho e a cultura do
local de trabalho, mas também a construção do espaço de trabalho
em si, portanto, contribuem para a moldagem e o reforço dessa mas-
culinidade. Conforme escreve Lefebvre (1991, p. 89):

A tendência dominante fragmenta o espaço e segmenta-o


em porções... Especializações dividem o espaço entre si e
agem sobre as partes assim seccionadas, criando barrei-
ras mentais e fronteiras prático-sociais.

Lefebvre argumentaria que a tendência atualmente dominante


à homogeneização/fragmentação e à especialização do espaço é algo
que deve ser combatido. Isso está relacionado à segunda etapa do ar-
gumento aqui apresentado sobre o que está acontecendo com a de-
limitação trabalho-casa entre os cientistas do fenômeno Cambridge.
Pelo que foi discutido até agora, trata-se de uma alteração na
fronteira entre casa e trabalho que consiste em nada mais do que
transgressão espaço-temporal por parte de uma das esferas (um dos
lados da dualidade) em detrimento da outra. Já foi observado aqui
que essa transgressão é unilateral, mas a segunda etapa do argumen-
to sustenta que, seja qual for a maneira com que se interprete esse ‘em-
baralhamento’ das linhas divisórias, ele não supera a própria dualidade.
No entanto, é o fato das dicotomias (razão/desrazão; transcendên-
cia/imanência) que tem sido criticado como parte do mesmo modo
de pensar que também polariza os gêneros e as características tão
frequentemente atribuídas a eles. E o paralelo fragmentação/espe-
cialização é que foi o alvo das críticas de Lefebvre. O que, então, se
pode aprender sobre a possibilidade de unificação a partir deste es-
tudo dos cientistas de Cambridge?

74
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

RESISTÊNCIA

As características que foram descritas acima são traços de mas-


culinidade, não dos homens. Como já está implícito, não há uma ho-
mogeneidade simples entre os homens que estudamos. No entanto,
estas características são fortemente incorporadas à cultura desse se-
tor da economia (com algumas variações nos detalhes entre diferen-
tes tipos de empregos). Além disso, a força dessa incorporação impli-
ca que essas características “atraem” todos os seus participantes em
direção a elas. Indivíduos masculinos têm relações com tais carac-
terísticas que são mais ou menos festivas ou penosas. Muitos deles
reconhecem a necessidade de negociar as muitas personas diferentes
que habitam em casa e no trabalho — o cientista com o novo bebê
(citado anteriormente) estava fazendo exatamente isso. E o que ele
estava confrontando era precisamente a dificuldade de impedir que
a sua autoimagem dominante de cientista substituísse por comple-
to os outros potenciais aspectos de si próprio. Outros homens ten-
tam ativamente resistir a essa dominação potencial. Eles são poucos
e seus motivos, variados. É mais comum que a resistência seja uma
resposta ao estresse ou a objeções fortemente articuladas por parte
de suas parceiras, ou decorrente de uma genuína sensibilidade à ne-
cessidade sentida por esses homens de viver uma vida mais variada,
de não perder o crescimento dos filhos, e assim por diante.
Além disso, a resistência assume uma forma particular. Ela tem
quase inteiramente a ver com a jornada de trabalho e com o tempo e
o espaço que o labor ocupa, e não tanto com as características mais
abrangentes do emprego. Também se situa quase integralmente no
plano individual. Esses postos de trabalho não são sindicalizados.
Além disso, num nível social mais geral, embora haja campanhas sin-
dicais e argumentos feministas por dias ou semanas de trabalho mais
curtos, até o momento essas iniciativas tiveram muito pouco pro-
gresso. Por certo, não parece ter havido nenhuma mudança cultural
profunda em favor das jornadas de trabalho mais breves, apesar da
proporção crescente de empregos de meio período. De fato, já que ao
menos nesses setores da economia alguns casos de compulsão para
trabalhar longas jornadas vêm do interesse e do comprometimen-
to para com o trabalho em si, não está claro como esses empregos e
outros semelhantes se relacionam com os argumentos mais amplos
sobre o tempo de trabalho. Considerando tudo isso, são os cientistas,
individualmente, que decidem como eles vão responder às pressões
e atrações de seus empregos, e como eles irão negociar a delimitação
casa-trabalho e as diferentes identidades que estes podem conter.

75
Neste contexto, é profundamente irônico que um dos mecanis-
mos importantes de resistência, e que é adotado por bom número
dos homens, é precisamente insistir na necessidade e na imperme-
abilidade da fronteira entre trabalho e casa. Dado que a tendência
é o trabalho invadir a vida doméstica, um mecanismo óbvio de re-
sistência é protegê-la contra a intrusão. Isso acontece de numerosas
maneiras. Alguns homens (apenas poucos, mas afinal os resistentes,
ao todo, não constituem uma proporção elevada da população) deci-
diram não levar trabalho para casa, preservando, assim, o espaço do-
méstico e o tempo nele gasto da invasão empreendida pelas deman-
das do trabalho. Às vezes isso vai envolver uma invasão em termos
temporais: pode envolver uma permanência mais longa no local de
trabalho, a fim de terminar uma tarefa lá em vez de levá-la para casa.
A resistência, nesse caso, é contra a violação do espaço da casa. Ou-
tros homens — novamente poucos — criaram para si regras relativas
ao tempo e insistem em manter uma rotina diária regular e em chegar
e sair do local de trabalho em horários determinados. A longo prazo,
é possível que isso seja prejudicial para as suas carreiras (ver Henry
e Massey, 1995), mas esses homens estão cientes disso e, de fato, em
alguns casos eles têm adotado tal estratégia por causa de outros pro-
blemas (estresse pessoal, problemas com a saúde ou relacionamen-
tos pessoais) gerados outrora pelo comprometimento com a intensa
pressão e as longas jornadas típicas dessas empresas, de modo geral.
Deve-se enfatizar que essa não é a única maneira de enfrentar as pres-
sões do trabalho. Outros cientistas, e casais, têm encontrado formas
alternativas para lidar com tais demandas e compulsões, mas o que
chama a atenção na resistência com base no tempo e no espaço é a
sua ironia. O “problema”, como argumentamos acima, configurou-se
através da organização na vida cotidiana de algumas das principais
dualidades das formas de pensamento ocidentais. No entanto, na au-
sência de resistência coletiva, de ações legislativas ou de mudanças
culturais mais amplas, as tentativas individuais de lidar com alguns
conflitos assim provocados podem resultar num reforço da expressão
dessas mesmas dualidades. As dicotomias são enrijecidas a fim de se
proteger uma das esferas (a casa, o “resto da vida”) da invasão pela
outra (abstração científica, transcendência). Os problemas desperta-
dos pelas dualidades resultam em seu reforço.

76
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

CONCLUSÕES

O tópico anterior encerrou-se com uma de uma série de iro-


nias analisadas neste artigo: a de que aqueles que tentavam resistir à
dominação de suas vidas por um dos lados de uma divisão dualista,
na maioria das vezes surpreenderam-se reforçando a separação entre
os dois polos da dualidade. O que esse “ardil 22”12 indica é que o ca-
minho para sair da charada não se encontra nesse nível. A “solução”
para a situação deve ser buscada num desafio mais profundo.
Além disso, o material empírico discutido aqui expõe uma série
de confusões e complexidades em torno da política de campanhas
por jornadas de trabalho diárias ou semanais mais curtas. São tam-
bém questões que dizem respeito tanto à academia, especialmente
em sua forma atual, cada vez mais intensificada e individualmente
competitiva, quanto ao trabalho em alta tecnologia discutido neste
artigo. Questões que me tocaram pessoalmente, como acadêmica, e
que me fizeram pensar sobre minha própria vida enquanto eu fazia a
pesquisa. É um privilégio ter um trabalho que achamos interessante.
Numa recente reunião de acadêmicos feministas, em que discutimos
uma primeira versão deste artigo, nenhum de nós queria que nosso
“trabalho” fosse limitado a 35 horas predeterminadas a cada semana.
Embora todos quiséssemos resistir às atuais pressões por mais horas
produzidas decorrentes do reforço de estruturas competitivas, não
queríamos perder nem o sentimento de comprometimento volun-
tário, nem a possibilidade de flexibilidade temporal. Mas tampouco
gostamos da maneira pela qual essa “flexibilidade” atualmente fun-
ciona na prática — a pressão pelo que só pode ser considerado uma
compulsão pelo trabalho competitivo e uma incapacidade de manter
o controle sobre as coisas. São aspectos que nós, como acadêmicos,
bem como os trabalhadores dos setores de alta tecnologia aqui discu-
tidos, precisamos enfrentar. Pois, quando um importante elemento
da pressão sobre o tempo resulta de comprometimento pessoal, de
um lado, e da concorrência individualizada, de outro, bem como das
culturas do setor e do local de trabalho, como é possível organizar
qualquer forma de resistência coletiva?

12
Um ardil 22 — ou Catch-22, no original em inglês, é uma expressão cunhada pelo
escritor estadunidense Joseph Heller no romance que leva esse título, a qual se refere
a uma situação cuja resolução se torna impossível em função de regras ou normas
contraditórias. O apelo a um ardil 22 para resolver determinado problema gera
necessariamente outro problema, o qual, por sua vez, remete o apelante de volta ao
problema original. (N.T.)

77
A longo prazo, o objetivo deve ser levar o questionamento
adiante, para tentar encontrar as soluções que possam existir em
níveis “mais profundos”. Em especial, isso significa questionar as
próprias dualidades, eu sugiro. Em vez de tentar interminavelmente
conciliar as incompatibilidades e resolver as ambiguidades que, na
realidade, apontam para contradições, é importante minar e romper
as polarizações que estão produzindo o problema, em primeiro lugar.
Na filosofia e, em especial, na filosofia crítica feminista, essa posi-
ção é atualmente bem estabelecida. O objetivo agora é, em geral, não
apenas valorizar o polo anteriormente desprivilegiado de uma duali-
dade (como fez Simone de Beauvoir [ver acima]), mas também minar
completamente a estrutura dualista.
Tais críticas fundamentais podem ser transportadas para outras
áreas. Assim, tal como indicado no começo deste artigo, após anos
criticando a desqualificação na indústria, acho que é difícil criticar
empregos por serem muito absorventes. Outra ironia, sem dúvida!
No entanto, como já foi apontado, pode ser que este grande dilema
sugira que a questão seria mais bem colocada de outra maneira. Em
vez de fazer crítica da desqualificação ou da superqualificação em si,
é a polarização entre elas que deve ser o foco da atenção crítica. O que
está em questão aqui — e é uma questão que novamente nos envolve
como acadêmicos — é a divisão social entre concepção e execução,
entre os intelectuais e o restante.
O que eu acho mais problemático enquanto questão política é
a divisão das vidas dos cientistas, descritas neste documento, entre
trabalho abstrato e completamente “mental”, de um lado, e o “resto
da vida”, de outro. Na versão deste documento que foi enviada para
os pareceristas, eu havia aplaudido sem reservas as poucas tentativas
com as quais nos deparamos em nossa pesquisa de resistir à compar-
timentalização da vida em tempos-espaços mutuamente isolados.
Pelo menos um perito questionou isso, perguntando simplesmente
“por que é bom resistir à compartimentalização?” E de minha parte
eu sei que uma coisa completamente prazerosa é sentar-me no espa-
ço isolado e privativo da Sala de Leitura do Museu Britânico e dedi-
car-me por inteiro a pensar e escrever. E, no entanto — retornando
a Lefebvre —, queremos realmente vidas seccionadas em comparti-
mentos, em tempos-espaços exclusivos: para o intelecto, para o lazer,
para fazer compras...?
Esse dilema pode estar relacionado a uma análise — e ser par-
cialmente abordado por ela — da grande dualidade discutida neste
trabalho — aquela na qual a própria “ciência” está envolvida. Pode

78
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia

ser que o problema resida fundamentalmente na postulada separa-


ção entre o intelecto isolado e o restante do nosso ser, e na denomi-
nação do produto do trabalho desse intelecto (supostamente) isola-
do como “conhecimento”. Entre muitos outros autores, Ho (1993, p.
168) propôs uma alternativa:

Esta maneira de conhecimento — com todo o ser, em vez


de apenas com o intelecto isolado — é estranha à tradi-
ção científica do Ocidente. Mas... é a única maneira au-
têntica de saber, se [tivermos] de seguir até sua conclu-
são lógica as implicações do desenvolvimento das ideias
científicas ocidentais a partir do início do presente sécu-
lo. Nós retornamos ao ponto de origem para validar a es-
trutura participativa que é universal a todos os sistemas
naturais de conhecimento do mundo inteiro. Acho isso
muito agradável e bem emocionante.

A verdadeira ironia, então, talvez seja que a longeva dualidade


ocidental (embora não apenas ocidental) entre pensamento abstra-
to e materialidade/corpo pode levar, por sua própria lógica, ao seu
próprio enfraquecimento. E é com base nessa dualidade que gran-
de parte da separação, no âmbito da economia, entre concepção e
execução — e, portanto, também esses empregos “high-tech” — foi
fundada.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer especialmente a Nick Henry, com quem


a maior parte do trabalho empírico para este artigo foi feito, por to-
das as discussões e comentários. Também tive o benefício de quatro
conjuntos de comentários extremamente atenciosos dos pareceristas
— muito obrigada. A primeira versão deste documento foi apresen-
tada durante uma série de seminários na Universidade de Siracusa.
Gostaria de agradecer a Nancy Duncan pelo convite. Atualmente, ela
está organizando as apresentações dos seminários em uma coleção,
Replacings, a ser publicada pela editora Routledge.

79
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81
Desenvolvimento rural em
El Hatillo, Nicarágua: gênero,
neoliberalismo e risco ambiental
Julie Cupples

RESUMO

El Hatillo é uma comunidade rural localizada no vale de Sébaco, na Nicará-


gua, a qual sofre com a erosão de seus recursos naturais, os altos níveis de
pobreza e desnutrição e a alta suscetibilidade a calamidades. Políticas de
ajuste estrutural vêm devastando a agricultura familiar e de subsistência e
aumentando o nível de marginalização econômica, social e ambiental na
área rural da Nicarágua. Este artigo investiga iniciativas de promoção do de-
senvolvimento sustentável nesse país, num contexto de ajustes estruturais
e degradação ambiental. Valendo-se de uma pesquisa qualitativa conduzida
em El Hatillo, delineia as vias pelas quais as mulheres dessa comunidade
vêm tentando resolver os múltiplos desafios impostos pela pobreza rural e o
risco ambiental e considera o potencial dessas estratégias para a igualdade
de gênero.

Palavras-chave: Nicarágua; ajuste estrutural; manejo dos recursos naturais;


gênero; desenvolvimento rural; sustentabilidade.

INTRODUÇÃO

E
l Hatillo, uma comunidade rural de 350 habitantes no vale
do Sébaco, no planalto centro-norte da Nicarágua (Figura
1), pode ser classificada como vulnerável tanto econômi-
ca quanto ecologicamente. A localidade sofre com a erosão de sua
base de recursos, os altos níveis de pobreza e a alta suscetibilidade a
catástrofes naturais, especialmente secas e enchentes. A segurança
nesse território, como na maioria das áreas rurais da Nicarágua, é pre-
cária. O desmatamento indiscriminado nas encostas circundantes,
que tem levado a uma considerável degradação do solo e diminuição
da sua fertilidade, também torna a comunidade particularmente vul-
nerável a deslizamentos de terra e inundações com as fortes chuvas.
Visitei El Hatillo pela primeira vez no início de 1999, apenas
alguns meses após o furacão Mitch ter devastado aquela área, des-
truindo casas e plantações, e também a estrada e a ponte sobre o Rio
Grande de Matagalpa, que ligavam El Hatillo a Sébaco, o centro ur-
bano mais próximo. Mais tarde naquele ano, o Departamento de Ma-
tagalpa, onde El Hatillo se situa, sofreu fortes inundações. As chuvas
tiveram um impacto seríssimo sobre El Hatillo, isolando-a tanto de
Matagalpa quanto de Sébaco. A estrada, acessível a custo, tornou-se
intransponível, e durante várias semanas eu me vi incapacitada de
chegar até lá para realizar minhas entrevistas. Finalmente, consegui
fazer isso por uma rota alternativa, muito mais longa e bastante pre-
cária.

Figura 1: Localização de El Hatillo, Departamento de Matagalpa,


Nicarágua.

Quando retornei a El Hatillo, em maio de 2001, a comunidade


sofria os efeitos de uma seca prolongada. O rio, que havia arrastado
vidas e casas em 1988, estava agora completamente seco. Árvores e
galinhas morriam e os habitantes esperavam desesperadamente pe-
las primeiras chuvas da estação, àquela altura muito atrasadas, para

84
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

iniciarem o plantio básico de grãos e chuchus, dos quais dependiam


para sua sobrevivência econômica. Em 2001, a comunidade perdeu
toda a sua colheita de feijões e milho para a seca. Durante a minha es-
tadia de 1999, duas crianças com desnutrição severa pereceram antes
de completar cinco anos de idade, e doenças respiratórias e intesti-
nais eram comuns, especialmente na infância. Em muitos sentidos,
então, El Hatillo é um ambiente marginal, mas trata-se de uma co-
munidade que demonstra alto nível de coesão social e índices signi-
ficativos de participação comunitária, particularmente por parte das
mulheres.
Este artigo explora iniciativas para promover o desenvolvimen-
to sustentável em El Hatillo, num contexto de ajuste estrutural e de
crescente degradação ambiental. Políticas de ajuste estrutural, com
sua ênfase na privatização e no crescimento voltado para a expor-
tação, têm sido devastadoras para os que dependem da agricultura
familiar e de subsistência (campesinos), aumentando a marginaliza-
ção social na Nicarágua rural. As mulheres da comunidade em ques-
tão adotaram uma atitude popular e de empoderamento local em
relação ao desenvolvimento, baseada na participação, organização e
prevenção de catástrofes, numa tentativa de compensar os altos ní-
veis de pobreza e risco ambiental. Essas iniciativas participativas e
em pequena escala para promover futuros mais sustentáveis simul-
taneamente contestam e operam dentro de um contexto mais amplo
de desenvolvimento neoliberal, visto por muitos como contrário à
sustentabilidade. No entanto, como declarou Brown (2000), muitos
comentários críticos ao neoliberalismo deixaram de explorar as vias
complexas pelas quais os povos do Sul se engajam nesses processos.
Assim como o modelo neoliberal aparentemente monolítico da Amé-
rica Latina é ao mesmo tempo fraturado e contestado (Laurie et al.,
1999; Brown, 2000), diferentes atores sociais e usuários de recursos
manifestam noções distintas do que o desenvolvimento rural deveria
implicar (Bebbington, 1996).
Este artigo parte de uma pesquisa qualitativa, constituída prin-
cipalmente por observação participativa e entrevistas semiestrutura-
das minuciosas realizadas em El Hatillo, em 1999 e 2001, com certo
número de mulheres que tinham ficado desabrigadas após a passa-
gem do furacão Mitch.1 Ele reflete sobre o papel exercido por essas
1
A observação participante foi realizada em El Hatillo durante seis meses em 1999 e
durante um mês em 2001. Adicionalmente, uma série de entrevistas detalhadas foi
aplicada a quatro mulheres da comunidade. As entrevistas foram gravadas e transcritas
para a análise. Esta pesquisa faz parte de um estudo mais amplo, que se ocupou da

85
mulheres enquanto atores sociais de posições múltiplas e usuárias
dos recursos que foram organizados com a finalidade de implemen-
tar iniciativas destinadas a mitigar o risco ambiental e aliviar a pobre-
za. O artigo recorre, ainda, à teoria pós-estruturalista que considera
os discursos e práticas discursivas tanto como constitutivos do mun-
do social quanto como inerentemente instáveis. Consequentemen-
te, embora os discursos hegemônicos de gênero possam legitimar e
reproduzir desigualdades estruturais de gênero, esses mesmos dis-
cursos estão constantemente abertos a desafios e contestações, par-
ticularmente quando em interseção com outros processos políticos,
econômicos, culturais e ambientais. Considerando que processos
neoliberalizantes, portanto, se entrecruzam com práticas implemen-
tadas localmente, com políticas e construções de masculinidade e fe-
minilidade, análises especificamente localizadas podem ser contes-
tadoras dos discursos universalizantes do neoliberalismo (ver Laurie
et al., 1999; Hurtig et al., 2002). Essa abordagem também contribui
para o crescimento crítico do paradigma de gênero e desenvolvimen-
to (GED). O GED emergiu como crítica ao paradigma predominante
da mulher em desenvolvimento (MED), que se concentra principal-
mente em trazer mulheres para os processos de modernização e tor-
nar visível seu desenvolvimento. Os analistas do GED insistem que as
relações de poder entre mulheres e homens precisam ser adequada-
mente consideradas no processo de desenvolvimento, e que elas vêm
se tornando, cada vez mais, componentes das políticas de desenvol-
vimento de governos nacionais e de organizações não governamen-
tais (ONGs) (ver Rathgeber, 1990; Moser, 1993). Tanto MED quanto
GED foram acusados de etnocentrismo, devido ao modo como ten-
dem a homogeneizar as mulheres e tratá-las como vítimas de suas
próprias culturas (Chua et al., 2000).
Meus objetivos neste artigo são tríplices. Primeiro, delineio
maneiras pelas quais meus participantes, mediante o manejo de re-
cursos e através de técnicas destinadas a aliviar a carência, fizeram
tentativas de enfrentar as múltiplas facetas da pobreza rural e do risco
ambiental, ambas as quais são exacerbadas pelas políticas de ajuste
estrutural. Segundo, exploro as relações ambientais com característi-
cas de gênero (Nesmith e Radcliffe, 1993) que existem em El Hatillo, e
as consequências desses relacionamentos tanto para o gênero quanto

maternidade monoparental na Nicarágua pós-revolucionária (Cupples, 2002), para


o qual foram conduzidas pesquisas em quatro outras comunidades rurais e urbanas
do departamento de Matagalpa (El Molino, El Mirador, Apantillo Siares e Matagalpa
central), todas elas afetadas pelo furacão Mitch.

86
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

para a vulnerabilidade ambiental. Terceiro, almejo contribuir para a


literatura, cada vez mais volumosa, que deixa de contestar o neolibe-
ralismo unicamente em termos dos seus impactos para se concen-
trar nas maneiras múltiplas e fraturadas pelas quais seus processos se
configuram. Inicio contextualizando o leitor sobre o ajuste estrutural,
o neoliberalismo e a devastação causada pelo furacão Mitch em ou-
tubro de 1998. Em seguida, lanço um olhar para a mobilização social
em El Hatillo e as estratégias empregadas pelos meus participantes
para superar a marginalização econômica e o risco ambiental. Ter-
mino com a discussão do potencial das estratégias de manejo de re-
cursos adotadas em El Hatillo como meios de alcançar a igualdade de
gênero e o empoderamento.

O AJUSTE ESTRUTURAL, O MEIO AMBIENTE


E O FURACÃO MITCH

Embora a Revolução Sandinista (1979-1989) tenha em grande


parte fracassado em sua tentativa de trazer o desenvolvimento2, o
governo sandinista, em 1979, criou a primeira agência nacional de
desenvolvimento da Nicarágua (Instituto Nicaraguense de Recursos
Naturales y del Ambiente), fazendo com que a sustentabilidade se
tornasse parte da política nacional. Um processo de reforma agrária,
que redistribuiu terras para os pequenos produtores rurais, foi imple-
mentado inicialmente em forma de fazendas estatais e cooperativas,
e posteriormente em empreendimentos individuais. Em acréscimo,
o governo disponibilizou linhas de crédito, insumos agrícolas e as-
sistência técnica para que pequenos agricultores revitalizassem o se-
tor agrário na tentativa de conquistar a autossuficiência na produção
básica de grãos. Após 1990, a maioria desses processos sofreu revezes
com a derrota eleitoral dos sandinistas e a implementação de ajustes
estruturais sob a batuta do Fundo Monetário Internacional. Como em
outros lugares da América Latina, os ajustes estruturais visavam a esta-
bilizar a economia, aumentando as exportações de produtos agrícolas
e intensificando o comércio exterior para possibilitar que os países se
mantivessem em dia com os pagamentos de seus débitos, com cortes de
gastos públicos, estímulo à privatização e ao crescimento direcionado

2
Para uma discussão sobre os fatores internos e externos que contribuem para isso, ver
Cortés Domínguez, 1990; FSLN, 1990; Vilas, 1990; Castro e Prevost, 1992; Walker, 1997.

87
à exportação. Embora a economia nicaraguense venha crescendo de
maneira uniforme desde 1995, esse crescimento é frágil, direcionado
ao consumo e não à produção, e seus benefícios não alcançaram a
maioria pobre (Dijkstra, 1999; Vargas, 1999; Brown, 2000). Além disso,
a Nicarágua continua a enfrentar uma das mais altas dívidas externas
per capita do mundo. O pagamento desse débito requer uma ênfase
contínua na exportação.
A globalização das economias da América Latina, que graças ao
ajuste estrutural vem promovendo uma ênfase contínua na explora-
ção dos recursos naturais, representa uma séria ameaça aos ecossis-
temas locais (Gwynne e Silva, 1999; Murray, 1999). Embora a retórica
da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável seja hoje lu-
gar-comum na Nicarágua e outros lugares da América Central, vários
comentadores têm salientado as desastrosas consequências ambien-
tais das políticas de ajuste estrutural, e particularmente o fato de que
estas vêm conduzindo à hiperexploração dos recursos naturais (ver
Green, 1995; Bendaña, 1999; CCER, 1999; Vargas, 1999; Lane, 2000).
É relativamente fácil identificar o que não é sustentável na economia
rural da Nicarágua. A ênfase no crescimento orientado à exportação,
um elemento central das políticas de ajuste estrutural, tem empur-
rado agricultores marginalizados para meios ainda mais à margem,
para encostas de morros e vulcões ou avançando floresta adentro, re-
correndo a queimadas para implantar lavouras de subsistência. Tais
processos aceleram o desmatamento, intensificando a degradação
das terras e a erosão do solo e tornando mais frequentes as inunda-
ções, os deslizamentos de terra e as secas prolongadas. Como argu-
mentou Faber (1991, citado por Larson e Perez, 1999, p. 2), “a base de
recursos de grande parte do campesinato da América Central alcan-
çou o ponto do colapso ecológico”.
O fim do controle de preços significa que os campesinos es-
tão agora livres para cobrar valores mais altos pelas suas colheitas
(Green, 1995). No entanto, a privatização do setor bancário gerou
escassez de crédito para os produtores agrícolas de pequeno porte,
diminuindo a produtividade, aumentando a precariedade da posse
de terras e impelindo muitos fazendeiros à falência. Os bancos, que
agora são forçados a operar de acordo com critérios de rentabilidade,
relutam em fazer empréstimos aos pequenos agricultores que culti-
vam lavouras para o consumo doméstico. O Banco de Desenvolvimen-
to do Estado (BANADES), que disponibilizava crédito aos produtores
rurais com taxas vantajosas durante a década de 1980, foi fechado. Ao
mesmo tempo, a liberalização do comércio sob as políticas de ajuste

88
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

estrutural provocou uma inundação de bens importados baratos que


estão solapando as safras de produção local. Esses impactos sobre o
setor rural serviram como combustível à migração para áreas urba-
nas e inflaram o já saturado setor informal da economia. Um relató-
rio recente da Unión Nacional de Agricultores y Granaderos (2003)
— a União Nacional de Agricultores e Pecuaristas — afirma que os
principais desafios para os pequenos produtores da Nicarágua são
a falta de acesso ao crédito, os altos custos de produção decorrentes
dos altos preços dos insumos, a exposição a pragas, a erosão do solo e
a infertilidade da terra. Embora os serviços de desenvolvimento rural
anteriormente fornecidos pelo estado tenham sido até certo ponto
assumidos por ONGs, frequentemente há grandes diferenças em ter-
mos de como as comunidades rurais se inserem e se beneficiam dos
processos de desenvolvimento.
A força do Mitch, sob essas condições socioeconômicas, em
outubro de 1998, foi fatal. O furacão provocou uma chuva torrencial
e contínua que caiu por cinco dias na fronteira entre a Nicarágua e
Honduras, onde encontrou um forte anticiclone que a impediu de
avançar. Níveis de precipitação pluviométrica sem precedentes cau-
saram inundações extensas e deslizamentos de terra. O Mitch deixou
11.000 mortos na América Central, 3.000 na Nicarágua. Doenças e
pestilências se disseminaram nos dias que se seguiram à passagem
do furacão, devido à contaminação dos reservatórios de água por
pesticidas e resíduos químicos, por cadáveres humanos e animais
em decomposição e pelas centenas de latrinas que transbordaram
durante a inundação, uma situação que levou o Ministério da Saúde
a decretar estado de emergência epidemiológica.
Ao todo, na Nicarágua, houve 865.700 danificados, pessoas di-
retamente afetadas pelo furacão, o que equivaleu a 20 por cento da
população total. A maioria destes ficou desabrigada, teve suas casas,
seus rebanhos, seu maquinário agrícola e suas lavouras destruídos.
Perda de infraestrutura, particularmente danos sofridos por estradas,
pontes, linhas de eletricidade e sistemas de esgoto, foram conside-
ráveis. O custo para a reconstrução e reabilitação foi estimado pelo
governo em algo na ordem de 1,4 bilhões de dólares.
Uma estrutura ecológico-política (ver Peet e Watts, 1996; Hoffman
e Oliver Smith, 1999), focalizada na interseção entre neoliberalismo,
pobreza e degradação ambiental, tem sido decisiva para os críticos do
ajuste estrutural na Nicarágua. Essa abordagem foi predominante nas
análises do furacão Mitch, que revelaram claramente a extensão tanto
da vulnerabilidade socioeconômica quanto da degradação ambiental

89
(Bendaña, 1999; Delaney e Schrader, 2000). Analistas na mídia,
a sociedade civil e a comunidade acadêmica viram a devastação
causada pelo furacão não como um fenômeno extremo e inevitável,
mas como consequência do cultivo de terras marginais e também
do desmatamento, sem medidas de conservação do solo e manejo
adequado dos reservatórios de água, um processo agravado pela
marginalização crescente da população nicaraguense. Uma publicação
da Coordinadora Civil para la Emergencia y la Reconstrucción
(CCER, 1999, p. 18-19), uma coalização civil de 320 ONGs criada na
esteira do furacão Mitch para coordenar e supervisionar o processo
de reconstrução, declarou que os “efeitos devastadores provocados
pelo Mitch estão intimamente relacionados com as consequências
do modelo histórico de desenvolvimento e do modelo econômico
neoliberal predominante”. Pobreza e marginalização são percebidas
como consequências diretas de práticas transnacionais, num meio
em que corporações transnacionais e grandes proprietários de
terras cultivam lavouras extensivas nas terras mais férteis, enquanto
campesinos são forçados a desmatar as terras mais marginais para
plantar e construir. Estima-se que 80% de todos os grãos e 90%
do feijão (lavouras produzidas para consumo doméstico) sejam
cultivados em encostas (CCER, 1999), uma evidência da extensão
em que os campesinos são relegados às terras marginais. A situação
é agravada por outros aspectos das políticas neoliberais de ajuste
estrutural, como os cortes de gastos com saúde e educação e a falta
de acesso aos programas de crédito para pequenos produtores
agrícolas, levando ao aprofundamento das desigualdades e,
consequentemente, aumentando a vulnerabilidade a catástrofes
(Bendaña, 1999; CCER, 1999; Mowforth, 1999; Vargas, 1999). Foram
tais condições econômicas que aparentemente criaram um desastre
em tão grande escala e que tornam a recuperação tão difícil.3

3
Há na Nicarágua a preocupação de que a ênfase na vulnerabilidade e o processo de
desenvolvimento em si estejam se tornando um novo paradigma. Embora a maioria
dos danos tenha sido causada a pessoas e lares em ambientes de risco, algumas
terras bem capitalizadas e irrigadas em Matagalpa e Jinotega também foram afetadas.
Pesquisadores da Universidad Centroamericana (UCA), em Manágua, acreditam que o
“desenvolvimento” proposto como solução total vem retardando outras estratégias de
prevenção e atenuamento de possíveis desastres, como a implementação de práticas
agroecológicas potencialmente benéficas (Equipo Nitlapán-Envío, 1999; Rocha e
Christoplos, 2001).

90
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

MOBILIZAÇÃO SOCIAL E REAÇÃO


A DESASTRES EM EL HATILLO

El Hatillo foi afetada de maneira particularmente séria pelo Mitch:


o vale profundo que conduz à comunidade ficou submerso, afogando
pessoas que haviam se amarrado a árvores para sobreviver, e, como a
ponte e a estrada que a ligavam a Sébaco foram destruídas, o acesso de
veículos só era possível através do rio. Muitas casas foram destruídas e
os meios de subsistência foram prejudicados pela perda da produção
agrícola, incluindo as galinhas e coelhos criados para consumo domés-
tico e 35.000 mudas plantadas pouco tempo antes pela comunidade,
num projeto de reflorestamento que foi varrido pelas águas. A comu-
nidade foi também forçada a fechar seu comedor infantil, o refeitório
comunitário mantido para atender todas as crianças de menos de 12
anos, pois os estoques de comida foram destruídos e outras necessida-
des mais imediatas tornaram-se prementes.
Desastres podem criar oportunidades para mobilização social
e a possibilidade de pressionar autoridades locais e nacionais quan-
to a outros aspectos do processo de desenvolvimento (Mitchell, 1999).
Puente (1999) acredita que a solidariedade espontânea que emergiu
na Cidade do México após o terremoto de 1985 deu poderes aos so-
breviventes para reivindicar outras questões perante as autoridades.
Nos dias que se seguiram ao Mitch, altos graus de mobilização social
foram registrados em toda a Nicarágua (Delaney e Schrader, 2000) e
as necessidades mais urgentes dos sobreviventes entremesclaram-se
com protestos contra a ausência de planos de assistência em situações
de calamidade. Quando a comunidade descobriu que nem o governo
municipal nem o estadual manifestaram qualquer forma de resposta
ao desastre, organizou rapidamente um comitê de emergência para
providenciar alimentos e deslocar os enfermos e feridos. Silvia Mon-
tiel, minha principal informante em El Hatillo, referiu-se a esse proces-
so como “trabajo de hormigas” — ou seja, como o trabalho das formi-
gas, o qual prosseguiu até que chegasse ajuda de ONGs como a CARE,
a Fundación Augusto César Sandino (FACS) e o Movimento Comuni-
tário (Movimiento Comunal)4. Na época em que cheguei a El Hatillo,
4
O Movimento Comunitário (Movimiento Comunal) foi desenvolvido, no final da década
de 1980, a partir dos comitês revolucionários de defesa sandinistas (Comités de Defensa
Sandinista). Hoje, porém, trata-se de uma ONG comunitária de pressão política que
tem grande destaque e autonomia, com ramificações regionais. Embora o Movimento
Comunitário desempenhe um importante papel em projetos de desenvolvimento
e programas de treinamento em El Hatillo, os grupos de trabalho das mulheres são
entidades de organização autônoma.

91
em 1999, havia uma presença significativa de ONGs ali, e tanto o Mo-
vimento Comunitário quanto a FACS disponibilizavam fundos para
construção de casas, reflorestamento e reabilitação da agricultura.
Nem todas as comunidades que haviam sido afetadas pelo fu-
racão, nas quais eu trabalhei, receberam ajuda para reconstrução. A
capacidade de reconstrução de uma comunidade após um desastre
depende com frequência dos níveis de organização dessa comunida-
de, tanto em termos de habilidade para lidar com o problema quanto
para captar fundos de ONGs e agências de assistência. Parecia que
as comunidades mais organizadas, com mais altos níveis de mobili-
zação social, eram as mais eficientes para atrair ajuda, independen-
temente dos danos sofridos. As mulheres entrevistadas em El Hatillo
estavam organizadas em vários grupos exclusivamente femininos
que se envolveram em toda uma série de medidas de mitigação do
desastre e de reconstrução. Estas incluíam a liberação de estradas
e a construção de gabiões, projetos de reflorestamento e desenvol-
vimento de canteiros (huertos familiares). Os grupos femininos na
localidade também conseguiram garantir recursos da Espanha para
prover todas as mulheres da comunidade com suas próprias vacas
leiteiras (vacas paridas), que podiam fornecer leite e coalhada para o
consumo familiar. Em 1999, o grupo passou a documentar idade, al-
tura e peso de todas as crianças da comunidade para realizar um cen-
so dos níveis de desnutrição infantil, de posse do qual pressionaram
com sucesso agências de assistência e garantiram fundos para reabrir
o comedor infantil. Também realizaram oficinas de saúde reproduti-
va, destinadas principalmente a capacitar os jovens a se protegerem
contra doenças sexualmente transmissíveis. O programa de educa-
ção de adultos foi particularmente bem-sucedido em aumentar os
níveis de alfabetização na comunidade. As mulheres de El Hatillo es-
tenderam seu senso de sacrifício para além dos familiares imediatos,
de forma a abranger toda a comunidade, desempenhando grandes
volumes de trabalho não remunerado, de forma rotativa:

Nós nos sacrificamos para o bem da comunidade... Não


recebemos nenhum salário, mas trabalhamos para toda
a comunidade, não por benefícios pessoais, mas para
melhorar a comunidade. Toda a comunidade concordou
em trabalhar assim, e assim há mais progresso. (Rosa La-
viana, 13 de agosto de 1999)

O líder do ramo local do Movimento Comunitário, Sérgio Sáenz,


salientou para mim que, apesar da grande presença de sua ONG, esses

92
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

grupos haviam emergido de forma autônoma do interior da comuni-


dade e não eram fomentados por nenhuma organização externa. Ha-
via também níveis peculiarmente altos de cooperação durante o pe-
ríodo de reconstrução. Quando os meios de vida são ameaçados por
práticas não sustentáveis, estas frequentemente levam ao conflito, à
apatia e à falta de cooperação (Utting, 1993). Em contraste com El
Hatillo, as outras comunidades nas quais trabalhei não demonstram
tão alto grau de cooperação; em outras partes de Matagalpa, conflitos
eram comuns e a ajuda tinha um impacto mais desagregador. El Ha-
tillo, enfrentando condições ambientais e econômicas extremas, de-
monstrou alto grau de coesão social e cooperação. Pessoas ajudavam
espontaneamente na construção das casas de outras pessoas, com o
objetivo de que, ao final do projeto, todos tivessem “una casa bonita”,
um lar agradável (comunicação pessoal de Sergio Sáenz, El Hatillo, 13
de agosto de 1999).
Embora desastres frequentemente promovam mobilização so-
cial, é importante salientar que a organização comunitária de El Ha-
tillo não emergiu do furacão, mas sim muitos anos antes, com inicia-
tivas para melhorar a situação do fornecimento de água:

Aconteceu assim: nós começamos a tentar encontrar di-


ferentes meios de trabalhar e de sermos bem organizadas
num grupo de mulheres... E então começamos a recorrer
às agências, baseadas no treinamento que havíamos re-
cebido [de ONGs], e aprendemos como solicitar recursos
e a não nos concentrarmos numa coisa só. E foi assim
que o trabalho da comunidade se iniciou, e nós come-
çamos a ir a Manágua, para ver o que poderíamos fazer.
Não podíamos ficar sentadas de braços cruzados en-
quanto tivéssemos pessoas capazes de trabalhar. (Silvia
Montiel, 10 de outubro de 1999)

Silvia convenceu-se do valor da organização e de que esta aju-


daria a gerar melhorias e a reduzir a vulnerabilidade da comunidade
aos desastres. Foi a organização comunitária que implantou as hortas,
o reflorestamento das encostas, a criação de animais e as medidas de
proteção das margens dos rios. Embora Silvia nunca tenha me falado
sobre desenvolvimento sustentável em si, como ilustra a citação a se-
guir, havia forte preocupação com o futuro e a posteridade, um dos
princípios centrais do paradigma do desenvolvimento sustentável:

93
Nós temos um nível de organização muito alto e eu es-
pero que ele não caia, mas que em vez disso ele aumente
— existem pessoas que vêm se tornando mais motiva-
das... eu realmente acho que estamos nos saindo bem.
Graças a Deus, e àquele grupo de mulheres muito corajo-
sas, como nós as chamamos. Elas aprenderam a valorizar
seu trabalho, e ele envolve tanto mulheres jovens e adul-
tas, quanto as da minha idade, algumas já velhas, todas
estamos trabalhando e temos três comitês, um para as
mais jovens, outro para as de meia-idade e um para as
mulheres mais velhas, e somos nós que dirigimos o tra-
balho... estamos fazendo planos, para o caso de morrer-
mos amanhã e não haver ninguém para continuar nosso
trabalho... Mas sabemos como usar as mãos e os pés, e
por isso continuaremos lutando para o bem-estar da co-
munidade. (Silvia Montiel, 10 de outubro de 1999)

Embora a dependência de ajuda externa fosse evidente em El


Hatillo (como até mesmo Silvia reconheceu), essa ajuda era também
construída como um gerador de motivação e mobilização comunitá-
ria. Silvia frequentemente se referia aos doadores, que haviam trazi-
do grande parte dos fundos necessários para a comunidade, a quem
ela chamava “hermanos donantes” (literalmente, irmãos/irmãs doa-
dores):

por causa de tantos traumas por que tivemos de passar,


guerras, furacões, e tudo isso, como na vez em que eu
perdi tudo. Foi bem difícil. Se não fosse o Movimento Co-
munitário, se não fossem os hermanos donantes que nos
ajudaram, não sei o que teríamos feito. (Silvia Montiel, 2
de dezembro de 1999)

No entanto, embora reconhecesse a dependência, ela também


tomava o cuidado de salientar que o povo de El Hatillo não era um
receptor passivo de ajuda externa, e que o alto nível de organização
comunitária garantia que essa ajuda fosse aproveitada de modo mais
eficiente:

Os hermanos donantes de outros países, eles estão conos-


co e nos deixam felizes, porque estão lutando por nós. Se
não fosse por eles, não estaríamos vivos, e eu acho que
é um gesto de muita bondade, e peço a meu Deus para
que eles continuem contribuindo com esse grão de areia,

94
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

porque nós fazemos bom uso dele. Não estamos aqui


sentados, sem fazer nada. (Silvia Montiel, 10 de outubro
de 1999)

Tentativas de regenerar ou preservar os recursos naturais, plan-


tando árvores ou construindo gabiões para proteger as margens dos
rios, porém, são carregadas de dificuldades em El Hatillo, assim como
as estratégias de melhorar a segurança alimentar e os níveis de nutri-
ção. Depois do Mitch, o governo anunciou que o programa de ajuste
estrutural continuaria. Cannon (1994) argumentou que as capacida-
des dos governos para possibilitar formas de proteção social contra
calamidades naturais são limitadas quando eles empreendem uma
política econômica que é, em si própria, causa de vulnerabilidade a
desastres. Em meio a todos os esforços de ajuda e reconstrução, há
evidências claríssimas de toda uma série de vulnerabilidades contí-
nuas. Pobreza, desnutrição e doença persistem apesar de todo o em-
penho organizacional e da presença generalizada das ONGs. O filho
de dois anos de idade de Sonia Aguirre, que sucumbiu repetidamente
a doenças e foi o único nascido vivo de suas três gestações, não rece-
bera nem leite materno, nem fórmulas de nutrição quando bebê e era
alimentado com leite fresco (não pasteurizado) da vaca do pai de So-
nia. Silvia Montiel disse-me, em 1999, que eles haviam decidido não
plantar nenhum tipo de cereal básico, temendo que pudessem perder
também sua terra caso contraíssem um empréstimo e a colheita se
perdesse (como aconteceu durante a seca de 2001). No final de 2002,
a comunidade foi novamente forçada a aceitar doações de alimentos,
devido à perda parcial da colheita de milho causada pela seca (Roiz
Murillo, 2002). A falta de crédito agrícola havia forçado grande núme-
ro de pequenos pecuaristas da comunidade a abandonar suas terras
e migrar para Sébaco ou Matagalpa. Muitas das mulheres da comu-
nidade haviam adotado estratégias de renda alternativa. Enquanto
Silvia conseguiu abrir uma pequena venda em casa para comercia-
lizar bebidas e salgados, outras participantes dependiam de serviços
de costura ou de trabalhar como empregadas domésticas em Sébaco.
Perguntei a Rosa Laviana qual ela pensava ser a maior dificuldade en-
frentada por sua comunidade:

Pobreza, especialmente para as crianças que não têm


uma dieta saudável. Há muita desnutrição. E é isso que
causa as doenças, as tosses e resfriados. (Rosa Laviana,
13 de agosto de 1999)

95
As vulnerabilidades ambientais crônicas de El Hatillo tornaram-
se evidentes durante as fortes chuvas do final de 1999. As tempesta-
des testaram duramente as medidas adotadas pela comunidade para
minimizar catástrofes naturais, especialmente os gabiões que eles
construíram depois do Mitch. Silvia assim me descreveu a situação:

Naquele momento, sentimos tristeza por causa daquelas


fortes chuvas, mas já havíamos perdido a estrada, o isola-
mento já durava mais de dois meses. O que o prefeito de
Sébaco disse? Que não havia problema, que só ficamos
isolados por seis dias. Mas isso não é verdade, há as en-
fermidades, há a diarreia, as doenças respiratórias, nossa
comida havia acabado. Como poderíamos trazer comi-
da, mesmo que quiséssemos? É difícil. Nossos gabiões já
estavam abalados, e eram um bom trabalho que havía-
mos feito com a CARE, que envolveu homens, mulheres
e crianças, e Sadie [uma funcionária da CARE] disse-nos
para cuidar bem deles. Mas, infelizmente, os de Las Po-
zas [uma comunidade rural próxima] já se soltaram, há
vários deles que se soltaram, e aqui em El Hatillo há al-
guns que estão prestes a se soltar... Isso me deixa muito
nervosa, porque se a água chegar aqui, nós perderemos
nossas casas novamente. (Silvia Montiel, 2 de dezembro
de 1999)

Fica claro a partir da persistência das vulnerabilidades


crônicas em El Hatillo, onde a ajuda e as ONGs estiveram presentes,
que a mitigação de desastres está relacionada de fato ao acesso a
recursos, tanto naturais, como a terra e a água, quanto financeiros,
como o acesso ao crédito. Tentativas de regenerar recursos mediante
a plantação de árvores para proteger as áreas ribeirinhas estão
sujeitas a retrocessos constantes. No contexto do ajuste estrutural,
é importante concentrar-se nas vulnerabilidades econômicas e
ambientais de longo prazo e não apenas durante eventos mais
dramáticos, como um furacão. Em muitos sentidos, a má distribuição
de recursos é muito mais séria do que um evento extremo, como o
furacão, e pode tornar tanto a ajuda quanto a organização muito
menos eficientes.

96
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

IGUALDADE DE GÊNERO E
EMPODERAMENTO

Há muito pouco em termos de oferta de emprego para mulhe-


res nos setores formal ou informal em El Hatillo, e a produção agrí-
cola demonstra uma divisão de trabalho com forte demarcação de
gêneros, com homens e mulheres cultivando diferentes lavouras com
diferentes finalidades. Mulheres (e crianças) são responsáveis em
grande parte pela coleta de lenha e água, atividades que demandam
tempo. Depois do furacão, com a fundação de uma ONG destinada
à reabilitação da agricultura, um grupo de 18 homens, organizados
numa cooperativa, continuou a cultivar chuchus destinados ao mer-
cado de Manágua. Não havia mulheres entre os membros da coope-
rativa do chuchu. As mulheres, por outro lado, interromperam sua
própria produção agrícola comercial para se concentrarem no traba-
lho de reparo e reconstrução. No ano anterior ao da passagem do Mitch,
o grupo de mulheres havia produzido e vendido soja com sucesso,
porém, mais de um ano depois, elas ainda estavam trabalhando na
reconstrução dos estragos do furacão e não haviam conseguido re-
tornar às plantações:

Nós temos um pedaço de terra, mas como estamos en-


volvidas no trabalho com as casas, no trabalho com os
gabiões, tudo isso é muito difícil. Mas nós já produzimos,
também, nós tivemos experiência com o cultivo da soja,
nós a vendemos, nossa primeira experiência foi tão bem
que vendemos soja aos montes. (Silvia Montiel, 2 de de-
zembro de 1999)

Portanto, embora as mulheres de El Hatillo estivessem visivel-


mente engajadas num duro trabalho físico geralmente associado aos
homens, isso era feito à custa de outras atividades produtivas. O gru-
po de mulheres havia formulado um bom número de planos para au-
mentar sua própria produção e os níveis de nutrição da comunidade,
incluindo a horta e os esquemas de leite bovino mencionados acima.
Muitas dessas iniciativas, embora expressivas para melhorar o nível
nutricional da comunidade, também significavam que as mulheres
estavam se concentrando mais num estilo de agricultura de subsis-
tência, enquanto os homens controlavam o comércio agrícola mais
lucrativo, como era o caso da produção de chuchus.

97
O trabalho de reconstrução após o desastre pode tornar as
mulheres mais visíveis em espaços dominados por homens, como
aconteceu em El Hatillo, mas também aumenta consideravelmente
sua carga de trabalho, e o estresse decorrente pode retardar a recu-
peração. Bradshaw (2001) indicou que a participação no processo
de reconstrução após o furacão Mitch não trouxe necessariamente
benefícios para as mulheres, pois reforçou mais do que contestou
papéis de gênero “tradicionais”. Considerando que as mulheres de
El Hatillo suspenderam suas próprias atividades produtivas para se
concentrarem no trabalho de reconstrução após o desastre, pode pa-
recer óbvia a conclusão de que, por conseguinte, as mulheres tiveram
desvantagens pelo seu envolvimento nos processos de reconstrução
e que as iniciativas de reabilitação agrícola promovidas por ONGs
trouxeram benefícios maiores para os homens. Mudanças nas rela-
ções de gênero parecem não ter acontecido. No entanto, quando nos
concentramos não apenas nas relações de gênero, mas também nas
identidades de gênero, torna-se claro para mim que esses processos
não são tão uniformes e que pode haver efeitos contraditórios, como
demonstra o envolvimento no esquema de leite bovino.
Para reiterar isso, as mulheres de El Hatillo engajaram-se prio-
ritariamente no trabalho não remunerado da comunidade ou na
agricultura de subsistência, enquanto o trabalho mais rentável era
totalmente controlado pelos homens. Laurie (1999) apontou que o
paradigma GED tendia a relegar esses tipos de atividade desempe-
nhados por mulheres ao universo do “feminino” e do “tradicional”
e a presumir que eles não podiam implicar empoderamento. As fe-
ministas que atuam na Nicarágua criticaram o fato de que as ONGs
que trabalhavam em comunidades rurais tendiam a promover tais
atividades de subsistência — conhecidas como “economía de patio”,
literalmente, economia de quintal — para as mulheres, em vez da
agricultura mais ampla e rentável, como a criação de gado ou a pro-
dução de café (Haydee Castillo, comentarista feminista, publicada no
periódico Esta Semana, 2001). Quando visitei El Hatillo em 1999, as
mulheres estavam buscando recursos de uma agência de assistên-
cia espanhola para o programa de leite bovino, principalmente para
aquisição de gado para o consumo familiar. Quando retornei à comu-
nidade em 2001, a primeira fase do programa estava em andamento;
20 mulheres possuíam suas próprias vacas, com um capital rotativo
de C$ 20.000,00 (cerca de 1.400 dólares). Eu não esperava uma res-
posta tão empolgante, mas Silvia Montiel disse-me com alegria que
tinha uma vaca que produzia seis litros de leite por dia no inverno.

98
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

Em muitos sentidos, as vacas leiteiras capacitaram as mulhe-


res a mais bem desempenhar seus papéis e obrigações maternas de
prover alimentos e melhorar a nutrição da família. Tal esquema não
desafia a divisão de trabalho por gênero na comunidade e não con-
testa as relações de gênero: de acordo com Silvia, os homens da co-
munidade haviam dado muito apoio ao projeto. Sob uma perspec-
tiva de desenvolvimento, é fácil ver como os papéis de gênero tradi-
cionais estão sendo perpetuados. Mas, em termos de subjetividades
de gênero, seria equivocado sugerir que as vacas não são fatores de
empoderamento, por várias razões. Primeiro, a implementação bem-
sucedida de um programa de auxílio atesta o poder das lutas de base
comunitária e leva as mulheres a acreditar que seus problemas não
são insuperáveis. Uma vaca leiteira não acaba com a desigualdade de
gêneros; mas a resolução de uma necessidade prática e a capacidade
de produzir algo que, de outro modo, teria de ser comprado pode, por
si só, ser uma forma de empoderamento. Encontrar um modo de sair
da pobreza é empoderador mesmo que as relações de gênero exis-
tentes sejam muito pouco desafiadas. Segundo, ficou claro para mim
que tais programas eram vistos como partes de um processo, não
como fins em si próprios. Em muitos sentidos, parecia que as mu-
lheres de El Hatillo estavam trabalhando estrategicamente por mais
igualdade de gênero de um modo que parecia ser menos contesta-
dor das relações de gênero e, portanto, menos provável de provocar
conflitos na comunidade. É possível considerar que essas mulheres
estivessem implementando o que Vargas (1991, p. 29) chama de “uma
espécie intuitiva de cálculo político”. O trabalho de Vargas no Peru
expôs o que ela vê como a natureza contraditória da emancipação.
Ela demonstra como as mulheres podem simultaneamente ocupar
diferentes posições subjetivas e como a consciência de gênero pode,
por si só, possibilitar uma mudança democrática nas outras posições
subjetivas. No entanto, em algumas áreas, o comportamento tradi-
cional é mantido e às vezes até mesmo reforçado. Isso pode ser atri-
buído à natureza ambígua e dolorosa da libertação. Mulheres com
frequência reconhecem a presença da discriminação, mas podem
encontrar conforto nela, uma vez que possibilita um sentimento de
continuidade e evita que as incertezas decorrentes de novas posições
e subjetividades sejam opressivas. Como indicou Sweetman (1997, p.
3), “as mulheres, tanto quanto os homens, podem ter um interesse
velado em manter a ilusão de aderir à ideologia de gênero”.
As mulheres de El Hatillo, embora momentaneamente priva-
das do acesso pleno aos meios de produção tanto por normas social

99
culturais quanto pelos processos de distribuição do auxílio, conse-
guiram ainda assim negociar respeito e liberdades consideráveis com
seus companheiros homens, o que sugere que as relações e identi-
dades de gênero são com frequência redefinidas de maneiras ines-
peradas. Embora as mulheres de outras comunidades expressassem
desespero diante de sua situação, as de El Hatillo demonstravam um
sentimento ao mesmo tempo de libertação e de alegria pelo modo
como conseguiram negociar o tempo e o espaço para experienciarem
a si próprias de maneira positiva, e não apenas por meio da organiza-
ção social e política, mas também da música, do esporte e da religião:

Agora eu dou graças a Deus porque, depois de ter sofri-


do tanto, agora tenho uma vida feliz, tranquila, e tenho
meus filhos... [meu marido] viu o quanto eu sofri, que
eu não tinha permissão de sair, de viver minha vida. Eu
aprendi a tocar violão, não toco bem, mas tenho algumas
ideias e me divirto. Eu saio, eu canto, eu danço, eu rela-
xo... e agora que tenho 38 anos de idade, sinto-me com
o espírito de uma criança: eu pulo, eu salto, e assim por
diante, e gosto de me divertir. E digo às mulheres jovens
e também às da minha idade, que se libertem, que sejam
felizes, pulem, saltem, porque é um bom exercício para o
corpo. (Rosa Laviana, 2 de dezembro de 1999)
Eu aprendi a fazer do meu jeito, graças aos meus pais,
que me criaram assim, e graças ao Movimento Comuni-
tário, que me orientou, e a todas as outras organizações
que estão me dando apoio e treinamento e tudo o mais,
para que eu possa mudar minha vida... Eu aprendi a visi-
tar as comunidades pelas quais sou responsável.5 Agora
eu vou até lá com confiança, como feijão com eles como
se estivesse na minha própria comunidade. Gosto de es-
portes6, gosto de gritar, acho que é disso que eu gosto
mais, e cuido da minha casa, amo meus filhos e acho que
tudo isso é algo de bom que Deus me deu. (Silvia Montiel,
10 de outubro de 1999)

A luta pela igualdade de gêneros, em El Hatillo tanto quanto em ou-


tros lugares, assume formas complexas e contraditórias. A maternidade
5
Nas eleições municipais anteriores, Silvia foi eleita para a Câmara Municipal de
Sébaco como uma representante da FSLN [Frente Sandinista de Libertação Nacional] e
era responsável por 26 comunidades: ela atendia todas elas a pé, apesar das distâncias
consideráveis que as separavam.
6
Numa de minhas visitas, Silvia teve de ser chamada de uma partida de beisebol.

100
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

monoparental é disseminada na Nicarágua e há evidências de que


um bom número de mulheres solteiras vem adotando a maternidade
como estratégia a longo prazo em resposta à irresponsabilidade ou à
violência masculina (Cupples, 2002). No entanto, é importante reco-
nhecer a existência dessas estratégias sem que isso implique adotar
construtos monolíticos dos homens e das expressões de masculini-
dade, nem reproduzir estereótipos de homens irresponsáveis e mu-
lheres protetoras (ver Sweetman, 1997; Cornwall, 2000). Os relaciona-
mentos ambientais são generificados, e as lutas por sustentabilidade
ambiental que têm palco em El Hatillo não podem ser separadas das
lutas mais amplas por igualdade de gênero e mudança cultural.
O que acontecia em El Hatillo é ilustrativo das maneiras mul-
tifacetadas com que as mulheres negociam a desigualdade de gêne-
ro. Em El Hatillo, as mulheres que entrevistei eram muito críticas do
machismo em suas famílias e em sua comunidade, mas tentavam
encontrar modos de resolver conflitos e trabalhar com seus parcei-
ros masculinos, em vez de deixá-los. Elas também acreditavam que a
tolerância a problemas endêmicos ligados ao gênero, como a violên-
cia doméstica, o alcoolismo e a infidelidade, vinham diminuindo na
comunidade.7 Expressões de feminilidade também assumem formas
peculiares em El Hatillo. Na cultura da classe trabalhadora urbana da
Nicarágua, é elegante vestir-se de modo manifestamente sexualizado.

7
Rosa Laviana, por exemplo, falava sobre o quanto havia sofrido no passado por causa
da infidelidade ostensiva e desavergonhada de seu marido. Mas, em vez de deixá-lo, ela
me disse que conseguiu regenerá-lo com a ajuda da Igreja Católica. Sonia Aguirre, uma
mãe adolescente, nunca havia morado com o pai de seu filho antes de 2001, quando a
criança tinha já quatro anos de idade. Durante esse período, o pai nunca lhe deu apoio,
quer emocional, quer financeiramente. Sonia disse-me que ele aparecia bêbado em sua
residência, revirava a casa, depois retornou no meio da noite para “raptá-la” com seu
filho. Não tenho certeza se ela partiu com ele por amor ou por medo. Oito dias depois,
os pais dele visitaram os dela para garantir-lhes que “se iba a componer”, que ele iria
tomar jeito e tornar-se um “santo hombre”, um santo. Quando as mulheres de El Hatillo
contavam essa história, faziam isso rindo (inclusive Sonia), com o sentimento de que
um mal havia sido reparado e que Sonia estava agora numa situação melhor. O pai do
primeiro filho de Silvia Montiel foi morto na guerra dos Contra, na década de 1980 —
quando ela ainda estava grávida e tinha apenas 15 anos. Ela tomou um novo parceiro
muito mais tarde e teve mais dois filhos. Comparando os dois homens, ela me disse que
a vida com o marido atual simplesmente não era a mesma. Ela reclamava do egoísmo
dele; que ele tratava de modo diferente seus filhos biológicos e a filha que ela tivera com
outro homem. Por outro lado, seu primeiro parceiro era descrito de modo mais favorável:
ele era “um bom homem”. A heterossexualidade romântica é persistente na Nicarágua
e é muito ligada ao fato de que os homens que caíram na guerra com os Contra eram
construídos como heróis e mártires no discurso revolucionário; existe a crença de que
eles deram suas vidas para o bem do país, o que faz deles “bons homens”.

101
Em El Hatillo, as mulheres da comunidade disseram-me que haviam
começado a se orgulhar de sua aparência, que era interpretada por
elas como evidência de que haviam se tornado liberadas. Anterior-
mente, elas não penteavam seus cabelos, não usavam maquiagem
nem se arrumavam para evitar ciúmes ou suspeitas dos maridos.8
Tudo isso havia mudado, elas me disseram, e as mulheres agora po-
diam cuidar da própria aparência. No entanto, elas não perdiam
tempo em condenar as duas ou três mulheres da comunidade que
sabidamente tinham casos extraconjugais e cujo comportamento era
visto como exemplo de perda de valores. Isso sugere que a sexualida-
de feminina em El Hatillo pode se expressar num contexto de higiene
pessoal, mas também deve ser policiada.
As mulheres de El Hatillo não são inteiramente dependentes ou
independentes, tradicionalistas ou emancipadas. As restrições estru-
turais em suas vidas, como o sexismo e a pobreza, são enormes, mas
suas respostas a essas restrições são estratégicas e calculadas. Gra-
ças à participação delas em projetos de desenvolvimento definidos
de maneira autônoma e num trabalho de reconstrução que simulta-
neamente era não remunerado/feminizado e envolvia intenso traba-
lho físico/masculinizado, elas criaram espaços nos quais as relações
de gênero na comunidade puderam ser retrabalhadas. Essas reela-
borações são frequentemente positivas em termos de renegociação
de identidades. As negociações de gênero que ocorrem em El Hatillo
demonstram o grau em que as construções de masculinidade e femi-
nilidade estão constantemente se reelaborando, à medida que elas se
envolvem nos processos de desenvolvimento e respondem tanto ao
neoliberalismo quanto ao risco ambiental.

CONCLUSÕES

A ideia de que a marginalização política, econômica e ambien-


tal são mutuamente constituídas foi, por algum tempo, central nas
abordagens políticas ecológicas (Blaikie e Brookfield, 1987; Peet e
Watts, 1996). A marginalização não é, porém, um conceito unifor-
me. Em El Hatillo, a marginalidade é ao mesmo tempo mobilizada
estrategicamente e alvo de resistência. Enfrentar o risco ambiental,
8
Uma história triste que me contaram envolvia uma mulher da comunidade que havia
se suicidado porque os ciúmes do marido eram muito extremos: ela tinha até mesmo de
banhar-se em segredo.

102
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental

a desvantagem econômica e a desigualdade de gênero nessa escala


significa que o terreno da luta política é multifacetado e que as per-
mutas entre sobrevivência econômica, manejo dos recursos naturais
e práticas culturais existentes têm de ser feitas. As estratégias adota-
das nesse contexto, portanto, tanto reproduzem quanto contestam o
risco ambiental e a desigualdade de gênero.
As mulheres de El Hatillo tinham consciência de seus posiciona-
mentos complexos enquanto gestoras dos recursos naturais, atrizes
do desenvolvimento, integrantes da população rural marginalizada e
seres dotados de gênero. Elas tinham de negociar diversas relações de
poder complexas com as ONGs locais, os doadores internacionais, o
estado e os homens de suas vidas, num meio geograficamente margi-
nalizado, e faziam isso priorizando as identidades políticas e de gêne-
ro de diferentes maneiras. As estratégias organizacionais formuladas
em resposta a essas relações criam o que Escobar (1992) denominou
“espaços autônomos descentralizados”, nos quais o neoliberalismo,
a desigualdade de gênero e a degradação ambiental são respondidos
de maneiras complexas.
Conforme argumentaram Nesmith e Radcliffe (1993), o femi-
nismo ambiental articula filosofias, políticas e identidades especí-
ficas, que podem contribuir para o desenvolvimento de uma nova
geografia crítica do desenvolvimento. Em certo sentido, as mulheres
de El Hatillo engajaram-se em práticas ambientais feministas sem
evocar ligações essencialistas ou românticas com a natureza. Sem
dúvida, suas preocupações ambientais podem ser construídas como
maternais e de gênero, no sentido de que elas assumem (sem remu-
neração) responsabilidades pela saúde reprodutiva coletiva e pela
proteção das encostas e margens de rios. Modelos de desenvolvi-
mento alternativo e mais sustentável são difíceis de alcançar quando
existem vulnerabilidades ambientais e econômicas de tal magnitude,
mas conceber ontologias alternativas é possível. As mulheres de El
Hatillo forjaram identidades políticas coletivas como gestoras da co-
munidade e sujeitos de seu próprio desenvolvimento, que visível e
decisivamente atacam os problemas associados com a degradação
da terra, o declínio da segurança alimentar e o risco ambiental. Tra-
ta-se de um processo gradual; os obstáculos são imensos e as lutas
têm lugar dentro de um contexto nacional e global que milita contra
a sustentabilidade. O manejo de recursos naturais e as respostas ao
ajuste estrutural em El Hatillo, que resultam na afirmação ativa de
políticas de identidade e no alto nível de engajamento no processo
de desenvolvimento, devem, portanto, ser examinadas com as lentes

103
tanto da vida rural quanto do gênero. Essa abordagem possibilita que
vejamos como uma nova geografia crítica do desenvolvimento, que
integra a prevenção de desastres, o alívio da pobreza e a igualdade de
gênero, vem sendo construída a partir de uma posição de marginali-
dade.

AGRADECIMENTOS

Este artigo foi apresentado num seminário de pesquisa na Mas-


sey University, Nova Zelândia, em agosto de 2003. Desejo agradecer
à equipe e aos estudantes do Programa de Estudos sobre o Desen-
volvimento, particularmente John Overton, Susan Maiava, Regina
Scheyvens e Donovan Storey, por seus questionamentos e retornos.
Também sou grata a Garth Cant, Sara Kindon e Eric Pawson, e a dois
revisores anônimos da SJTG, por seus comentários feitos aos primei-
ros esboços deste trabalho. Aplicam-se aqui as ressalvas habituais.

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Mulheres, homens, posicionalidades
e emoções: fazendo geografias
feministas da religião
Peter E. Hopkins

RESUMO

Nos últimos dez anos, geógrafos vêm se ocupando cada vez mais da religião
como importante marcador de diferença social e cultural. Valendo-se de tais
esforços como base de discussão, este artigo mapeia algumas vias poten-
ciais a serem seguidas por futuros trabalhos sobre geografias feministas da
religião. Recorro simultaneamente a tendências já existentes na disciplina e
a minhas experiências de pesquisa de campo com jovens muçulmanos para
sugerir caminhos pelos quais abordagens feministas poderiam ser empre-
gadas na pesquisa em geografia da religião. Ao fazer isso, concentro-me par-
ticularmente em três áreas da investigação geográfica feminista: relações de
gênero, posicionalidades e emoções.

INTRODUÇÃO

A
compreensão das maneiras como as mulheres experien-
ciam o espaço e o lugar, o desenvolvimento das perspec-
tivas que tomam a natureza do conhecimento geográfico
como saber localizado, bem como a construção da crítica do caráter
sexista e excludente da sociedade (e da geografia enquanto disciplina)
são apenas algumas das muitas contribuições que os geógrafos femi-
nistas fizeram, e continuam a fazer, para o conhecimento geográfico
(p.e., Rose, 1993). Pode-se afirmar que a geografia feminista é hoje uma
subdivisão bem estabelecida da disciplina, e isso se evidencia nas re-
centes publicações de Geography and Gender Reconsidered, do Women
and Geography Study Group [Grupo de Estudos Mulheres e Geografia],
da Royal Geographical Society — Institute of British Geographers
(RGS-IBG) [Real Sociedade Geográfica — Instituto dos Geógrafos
Britânicos] (Sharp, Browne e Thien, 2004); do Companion to Feminist
Geography [Compêndio de Geografia Feminista], pela editora Blackwell
(Nelson e Seager, 2005); e também no sucesso duradouro do periódi-
co Gender, Place and Culture [Gênero, Lugar e Cultura], iniciado em
1994. Isso não quer dizer que a igualdade de oportunidades seja ex-
perimentada por todas as mulheres — longe disso —; ao contrário,
ainda há muitas contribuições que os geógrafos feministas poderiam
prestar ao entendimento das maneiras pelas quais o sexismo — e ou-
tras desigualdades e relações de poder — age para marginalizar os
indivíduos, influenciar sua espacialidade e determinar suas chances
de sucesso na vida. Linda Woodhead (2007) observa que a sociologia
da religião tem demonstrado certa lentidão para levar em conta a sig-
nificância do gênero, e o mesmo se poderia dizer das geografias da
religião. Se há uma área do conhecimento geográfico que teve pou-
ca interação com as geografias feministas, é o estudo da religião, e
o principal propósito deste artigo é discutir algumas maneiras pelas
quais os pesquisadores poderiam fazer geografias feministas da reli-
gião. Consequentemente, sob diversos aspectos, este artigo propõe
perguntas em vez de fornecer respostas. Lily Kong (1990, p. 355) ob-
servou que tomar a geografia e a religião como “um valioso campo
de investigação nem sempre foi algo evidente de imediato”. Embora
trabalhos recentes tenham começado a levar a religião a sério como
objeto da pesquisa geográfica (Brace, Bailey e Harvey, 2006; Kong,
2001; Olson e Silvey, 2006), exemplos de abordagens feministas para
o entendimento das geografias da religião são relativamente limita-
dos do ponto de vista numérico (embora exceções notáveis incluam
Dwyer, 2000; Kay, 1997; Mohammad, 1999; e as recentes coletâneas
editadas por Aitchison, Hopkins e Kwan, 2007; Falah e Nagel, 2005;
Morin e Guelke, 2007). No entanto, há muito espaço para que os geó-
grafos feministas façam intervenções importantes nas paisagens e lu-
gares dos religiosos, e eu agora passo a considerar alguns dos modos
pelos quais essas e outras geografias feministas trouxeram informa-
ções para as minhas próprias experiências na prática das geografias
da religião.
Este artigo está dividido em quatro partes principais. Na pri-
meira delas, detenho-me sobre um tema que tem sido fundamental
ao projeto feminista no âmbito da geografia: o estudo das relações de
gênero. Na segunda, desenvolvo essa discussão para explorar com-
preensões acerca das posicionalidades dos pesquisadores e do rela-
cionamento entre pesquisadores e pesquisados. Na terceira, faço al-
gumas sugestões para consolidar e estender as maneiras pelas quais

110
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

os estudiosos adotam abordagens feministas em seus estudos de reli-


gião e lugar. Nela, recorro a recentes trabalhos sobre geografias emo-
cionais (Davidson, Bondi e Smith, 2005) para destacar alguns modos
pelos quais as geografias da religião podem encampar o que David-
son, Bondi e Smith (2005, p. 1) denominaram a “virada emocional” da
geografia humana. Por fim, detendo-me nos relacionamentos entre
homens, mulheres, religião e espaço, proponho um projeto para as
geografias feministas da religião. Em cada uma dessas quatro partes,
situo a discussão num recente projeto de pesquisa com jovens ho-
mens muçulmanos na Escócia, no qual as perspectivas feministas me
encorajaram a examinar como as relações de gênero estão ligadas à
experiência de ser islâmico. Além disso, tento adotar uma abordagem
reflexiva, buscando explicar as maneiras pelas quais minhas várias
posicionalidades influenciaram a pesquisa e, ao fazer isso, evidenciar
que as geografias feministas são múltiplas, fluidas e contestadas.

RELAÇÕES DE GÊNERO

De modo geral, as geografias feministas fizeram um amplo le-


que de importantes contribuições aos entendimentos e experiências
de vários aspectos da geografia humana, incluindo estudos sobre
geografia econômica, construção de identidade e urbanismo, para
mencionar apenas alguns (Rose, 1993; ver Berg e Longhurst, 2003;
Bondi e Domosh, 2003; Brown e Staeheli, 2003; Jacobs e Nash, 2003,
para uma visão geral do panorama recente da geografia feminista).
Grande parte do trabalho das geografias feministas chama a atenção
para a importância das relações de gênero e para as vias complexas
por meio das quais espaço e lugar são tanto produzidos quanto ex-
perienciados de maneiras generificadas. Como esclarecem Laurie,
Dwyer, Holloway e Smith (1999, p. 1) em sua introdução a Geogra-
phies of New Femininities [Geografias das novas feminilidades], em-
bora

sexo — masculino e feminino — possa ser entendido


como categoria baseada numa diferença biológica, gê-
nero é entendido como construto social organizado em
torno do sexo biológico (embora estudiosos como Judith
Butler (1990) apontem a necessidade de considerar os
modos como sexo/gênero passam a existir mediante atos

111
performativos (em vez de já serem dotados de existên-
cia). Assim, indivíduos nascem masculinos ou femini-
nos, mas, ao longo do tempo, adquirem uma identidade
de gênero, que é uma compreensão do que significa ser
um homem ou uma mulher (WGSG, 1997, p. 53). Essa
identidade de gênero é definida como masculinidade ou
feminilidade.

Gêneros — como masculinidades e feminilidades — são, por-


tanto, entendidos não como categorias fixas, mas sim como formas
de classificação construídas socialmente, que adquirem significado
pela sua constante repetição durante os processos de socialização,
impostas pelos que detêm poder, e sutilmente reforçadas pelas expe-
riências do dia a dia e pelos encontros com as várias formas de mídia.
Como diversas contribuições importantes às geografias feministas já
mostraram, construções sociais de gênero têm influências poderosas
na determinação das oportunidades de vida e nas experiências espa-
ciais de mulheres e homens numa ampla gama de diferentes locali-
dades, incluindo: a casa, a rua, a nação e a comunidade, apenas para
mencionar alguns poucos exemplos (Bondi, 1998; Mohammad, 2005;
Staeheli, 1996; Rose, 1993). No entanto, tem havido pouco diálogo entre
este importante trabalho sobre as relações de gênero e as geografias
da religião (Holloway e Valins, 2002), embora tais conversas propor-
cionem oportunidades férteis para futuras pesquisas. Lily Kong (2001)
sugere que os estudiosos da geografia humana devem considerar os
modos como religião e lugar são experienciados de várias maneiras
por diferentes grupos da população, incluindo homens, mulheres,
crianças, adultos e pessoas idosas. Essa é uma questão-chave para
os pesquisadores interessados em fazer geografias feministas da re-
ligião.
Considerando a atenção dada às experiências generificadas do
cotidiano das pessoas pelas geografias feministas, meu trabalho tem
se direcionado à exploração das vias pelas quais as identidades mas-
culinas de homens jovens muçulmanos são construídas e contesta-
das em diferentes lugares e períodos. Dwyer (2000, p. 479) demons-
trou como “relações patriarcais de gênero localizadas eram reforça-
das pelos homens jovens” e prosseguiu com a explicação de que “esse
policiamento empreendido pelos jovens parecia ser um meio pelo
qual sua própria identidade étnica e religiosa, adolescente e masculi-
na, poderia ser mantida”. Essa observação assinala um ponto impor-
tante na compreensão do gênero por demonstrar que as construções

112
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

de feminilidade com frequência se relacionam a, se conectam com,


e respondem às maneiras pelas quais as masculinidades se constro-
em. Como observa Willis (2005, p. 99), “as construções de compor-
tamento masculino e feminino apropriadas são inter-relacionadas,
de forma que ‘ser um homem’ pode basear-se, em parte, em não se
comportar ‘como uma mulher’”. Além disso, Mac an Ghaill (1994, p.
61) observa que

... nós precisamos considerar não apenas as diferenças


de gênero, mas também as relações entre homens e mu-
lheres jovens e também as que se dão no interior das
turmas de rapazes... Masculinidades também se desen-
volvem em contextos institucionais específicos, tanto em
relação quanto contra umas às outras.

Esses fatores — muitos dos quais são fundamentais para as


geografias feministas — levaram-me a considerar como as identida-
des de rapazes muçulmanos foram construídas de maneiras generi-
ficadas, e como estas mudam em diferentes contextos, localidades e
situações. Por exemplo, eu mostrei que as identidades masculinas de
homens jovens se constroem em torno do esporte e dos grupos de
camaradas, e que muitos rapazes enfatizam os ganhos financeiros e
o abastecimento do lar (Hopkins, 2006, 2007a). Além disso, essa cons-
trução de masculinidade é também sustentada por meio de discursos
religiosos por esses jovens, com a finalidade de justificar a associação
das mulheres muçulmanas aos espaços do lar, e a maior liberdade
espacial concedida aos rapazes, se comparada à de suas contrapartes
femininas. Como Dwyer (2000) demonstrou, os rapazes de sua pes-
quisa consideravam apropriado monitorar, controlar e inspecionar o
comportamento e a conduta das jovens mulheres muçulmanas, enfa-
tizando assim os modos como as relações de gênero são construídas
em mutualidade e em contraposição, e não em isolamento.
No entanto, embora as identidades masculinas dos homens jo-
vens sejam com frequência construídas em termos de poder, controle
e patriarcado (e a religião é frequentemente usada como justificativa
para isso), minha investigação das identidades de homens jovens tam-
bém salienta os modos pelos quais esses jovens demonstram emoções
como medo, vergonha e sensibilidade nas suas experiências e circuns-
tâncias cotidianas (ver também Pain, 2001). Por exemplo, foi durante
as entrevistas individuais — e não nas discussões do grupo em estudo
— que os rapazes manifestaram mais propensão a revelar as emoções

113
e temores associados às suas experiências cotidianas com o racismo
e a intolerância religiosa. Isso demonstra a importância dos grupos
de rapazes e da presença de outros homens de sua faixa etária para
a construção das identidades religiosas, raciais e de gênero desses
jovens. Além disso, Susan Smith e eu também argumentamos haver
uma tendência geral entre os jovens muçulmanos a se recolherem à
privacidade dos seus lares após o 11 de setembro de 2001, como re-
sultado da hostilidade e da ausência de conforto que eles associam às
negociações necessárias para a convivência diária nas ruas (Hopkins
e Smith, 2008).

EXPLORANDO POSICIONALIDADES:
DIFERENÇAS, ALTERIDADES E
SIMILARIDADES

Tanto quanto explorar construções e contestações das identi-


dades e relações de gênero, as geografias feministas prestaram con-
tribuições cruciais para o reconhecimento da política das posiciona-
lidades do pesquisador e do pesquisado, e também para examiná-las
de maneira reflexiva (Rose, 1997). Seguindo tal proposição, muitos
pesquisadores atualmente percebem que sua construção de conhe-
cimento não é equilibrada, racional e abrangente — um aspecto da
pesquisa geográfica do passado que as geografias feministas critica-
riam por ser masculinista —, e, sim, ao contrário, parcial, influencia-
da pela posicionalidade do pesquisador e dependente do conteúdo
e do contexto do ambiente pesquisado. Embora tal deslocamento
tenha sido criticado no seio da disciplina como parte do “egotismo
reflexivo e fragmentário da geografia cultural” (Peach, 2002, p. 252),
fui recordado reiteradamente, não apenas pela literatura geográfica
feminista, mas também por pesquisadores, informantes e outros, de
que minha posicionalidade ao pesquisar jovens homens muçulma-
nos era potencialmente problemática.
Os rapazes muçulmanos consultados em minha pesquisa fre-
quentemente perguntavam ou faziam suposições sobre minhas posi-
cionalidades. Durante uma das discussões em grupo, os participantes
pensaram que eu fosse funcionário do governo e só permitiram que
eu começasse a moderar a discussão quando eu os convenci do con-
trário. Também presumiram que eu fosse membro do British National

114
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

Party1 e que por isso usaria o que eles dissessem para encorajar a
circulação de literatura islamofóbica (Hopkins, 2007b). Além disso,
muitos supuseram que eu pertencesse a um grupo religioso, referin-
do-se à Bíblia como o “meu livro”, e perguntaram se eu era católico ou
protestante. Também indagaram minha postura em relação ao Islã.
Estes são apenas alguns exemplos de como minhas posições, atitu-
des e opiniões foram questionadas pelos participantes da pesquisa.
Muitas dessas questões e objeções são fundamentais para o proje-
to feminista no âmbito da geografia, pois problematizam o papel do
pesquisador, contestam a importância das relações de poder nas reu-
niões de pesquisa e salientam a significância dos marcadores de dife-
rença social em vários contextos.
Existe uma vasta literatura, tanto na geografia feminista quanto
nas ciências sociais como um todo, explorando as perspectivas se-
gundo as quais os pesquisadores podem tentar interrogar suas po-
sicionalidades. Como eu queria “examinar de maneira reflexiva a
minha personalidade” (Rose, 1997, p. 305), senti-me particularmen-
te atraído pelos textos da geografia feminista que desconstroem “a
barreira entre a academia e as vidas das pessoas que ela declara re-
presentar” (Kobayashi, 1994, p. 73). Entretanto, dentro das geografias
feministas, há toda uma gama de perspectivas segundo as quais os
pesquisadores poderiam refletir sobre suas posicionalidades. A abor-
dagem que considerei mais útil considera que o pesquisador nunca
é completamente igual, nem inteiramente distinto dos seus partici-
pantes. Níveis de diferença e similaridade podem variar ao longo do
projeto de pesquisa, em diferentes lugares e diferentes períodos. Essa
negociação constante entre vários graus de diferença e semelhança
pode ser vista como uma posição de “intermédio”:

Mas mesmo quando as diferenças em certo campo são


pequenas, como estamos posicionados simultaneamen-
te numa variedade de campos, estamos sempre, em al-
gum nível, em algum lugar, num estado de intermédio,
negociando vários graus e tipos de diferença — sejam
elas baseadas em gênero, classe, etnia, ‘raça’, sexualida-
de, e assim por diante. O intermédio, assim, implica que
nunca somos ‘alheios’ ou ‘integrantes’ de uma coletivida-
de em sentido absoluto. (Nast, 1994, p. 57)

1
O British National Party, ou Partido Nacional Britânico, em português, é uma
organização política de extrema-direita no Reino Unido.

115
Robina Mohammad (2001) considera-se uma ocupante dos es-
paços de intermédio. Ela se vê como “uma britânica, paquistanesa
muçulmana (de nascimento), mas não praticante e não crente, um
pouco marxista, um tanto feminista, originária da classe média tra-
balhadora” (Mohammad, 2001, p. 107). A pesquisa de Mohammad
ocupa-se da situação de educação e emprego das mulheres paquis-
tanesas, e por isso a maioria das pessoas, incluindo muitos dos par-
ticipantes de sua pesquisa, a considera uma “integrante”. No entan-
to, Mohammad era também divorciada, e estava grávida, num rela-
cionamento com um homem branco. Portanto, também ocupa um
espaço “alheio” à comunidade paquistanesa local, uma vez que ela
possui nível educacional, religiosidade e valores sociais diferentes.
Mohammad é claramente sensível às posições múltiplas, entremea-
das e frequentemente contraditórias que podem existir entre o pes-
quisador e seus participantes.
No entanto, geógrafas feministas, como Gillian Rose (1997, p.
317), têm plena consciência de que as “negociações que fazem parte
de um processo de pesquisa não são inteiramente cognoscíveis”, e
isso pode fazer com que alguns pesquisadores considerem impro-
fícua a análise das suas posicionalidades no processo de pesquisa.
Eu concordo que nunca teremos plena consciência das nossas po-
sicionalidades, de como elas se manifestam durante o projeto de
pesquisa, de como outros as interpretam e de como elas influenciam
os participantes da nossa pesquisa. Essa incapacidade de conhecer
por inteiro nossas posicionalidades poderia encorajar pesquisado-
res a perceber a importância da pesquisa que estão realizando e dos
métodos que estão empregando. Entretanto, sugerir que, com isso,
não seja profícuo considerar a influência das posicionalidades dos
pesquisadores é uma saída fácil para um problema complexo. Fazer
isso é ignorar um aspecto potencialmente significativo do processo
de pesquisa. Por esses motivos, é importante que eu busque explorar
tais questões em minha pesquisa com jovens homens muçulmanos.
Como Mohammad (2001) e Nast (1994), eu me vejo ocupan-
do um espaço de “intermédio”. Estou simultaneamente posicionado
numa variedade de diferentes grupos de categorias sociais que me si-
tuam em vários níveis de similaridade e diferença em relação aos parti-
cipantes da pesquisa. Muitos desses participantes ocupam um espaço
de similaridade (indiferença) comigo porque somos jovens, escoceses
e masculinos. No entanto, ao contrário dos participantes da pesquisa,
eu não sou muçulmano, nem sou “negro” ou “asiático”. Esse comen-
tário sobre similaridades e diferenças retrata minha posicionalidade

116
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

em termos muito simples. Quando consulto as transcrições, dou-me


conta de que, à medida que conversava com os rapazes envolvidos,
a declaração da minha religiosidade mudava ao longo do projeto de
pesquisa. Houve momentos em que eu alegava ser agnóstico (entre-
vista de 16 de maio de 2002) e outras vezes eu afirmava ser ateu (Dis-
cussão em Grupo, 5 de setembro de 2002). Além disso, o momento da
pesquisa em que eu me senti mais diferente dos participantes da pes-
quisa foi durante uma discussão em grupo numa escola particular
de elite em Edimburgo (14 de novembro de 2002). Apesar das nossas
semelhanças por sermos homens jovens, os participantes da discus-
são identificavam-se como britânicos, e não viam diferença entre a
Escócia e o resto da Grã-Bretanha. Eles também concordavam com
os princípios do Partido Conservador e fizeram comentários racistas.
A experiência da diferença durante essa discussão em grupo foi em
grande parte devida à classe social e não, como se poderia esperar, à
raça ou à religião. Entretanto, embora a classe fosse um fator crucial
nesse caso, é também provável que a interseção entre a classe social
desses jovens e outros marcadores de identidade — como, por exem-
plo, sua masculinidade, idade e escolaridade — agisse numa série de
associações mútuas, de forma a resultar num conjunto particular de
posicionamentos e negociações (masculinos e de classe). A incapaci-
dade de plenamente “saber” como esses vários fatores se combinam
torna evidente para mim que é provável haver muitos momentos do
processo de pesquisa em que os jovens se sentiam muito diferentes
de mim, e minha incapacidade de conhecer inteiramente todos os
aspectos das minhas posicionalidades impedia-me de reconhecer
esse fato. Tudo isso reforça que as posicionalidades do pesquisador (e
do(s) participante(s)) podem mudar ao longo do processo de pesqui-
sa, e que, ainda que não mudem, o pesquisador (e/ou o participante)
pode alegar que posicionalidades particulares se modificaram.
Além disso, juntamente com marcadores de diferença social,
outras características e traços pessoais podem revelar diversos graus
de similaridade e diferença entre o pesquisador e os pesquisados. Por
exemplo, certo número de jovens muçulmanos com quem eu con-
versei estava interessado em saber qual escola eu havia frequentado
antes de entrar na universidade; algumas discussões levantaram per-
guntas sobre os times de futebol por cuja vitória ou derrota eu torcia
e também sobre minha opinião acerca de uma variedade de temas.
Alguns também estavam interessados em descobrir onde eu havia
nascido e sido criado, por isso eu me engajei em discussões sobre a
política da localidade. Assim, características pessoais como sotaque,

117
modo de vestir, comportamento e antecedentes de maneira geral,
podem também influenciar as reuniões de pesquisa (para um exce-
lente estudo de alguns desses temas, ver Vanderback, 2005).2
Os aspectos apresentados acima salientam as complexidades
envolvidas quando se levam em consideração as posicionalidades do
pesquisador. Os sentimentos de Audrey Kobayashi (2003, p. 347-348)
correspondem aos meus:

... eu tenho me debatido com um des-conforto galopan-


te acerca da virada reflexiva da geografia humana, e com
uma convicção crescente de que grande parte do que
passa por estudos antirracistas, por incluir um reconhe-
cimento reflexivo da ‘posicionalidade’ da autora no que
diz respeito aos seus temas, é na verdade uma atenção
privilegiada e autoindulgente a si própria, que não pro-
porciona nada além de uma lente antirracista e acaba
por distanciar a autora — em virtude da sua capacida-
de de nomear (mesmo que esteja apenas nomeando a si
própria) e situar — das próprias pessoas cujas condições
ela tem esperança de modificar.

Kobayashi (2003) também observa que os geógrafos precisam


reconhecer os limites da reflexividade e perceber que se trata de uma
preocupação secundária. Além disso, ela também defende que a re-
flexividade tem pouca finalidade a não ser quando ligada a um pro-
pósito e um programa mais amplos acerca de como o mundo deveria
ser e do quanto ele necessita ser mudado. Nesse aspecto, estudiosos
interessados em praticar geografias feministas da religião podem
achar produtivo refletir sobre suas posicionalidades para salientar
várias formas de desigualdade, desafiar relações de poder e apreciar
a complexidade das relações sociais. Após ter discutido os motivos
pelos quais as relações de gênero e as considerações sobre as posi-
cionalidades do pesquisador são aspectos importantes da prática das
geografias feministas da religião, eu agora busco oferecer algumas

2
Um tema adicional de reflexão — e controvérsia — diz respeito à minha identidade
como homem e meu engajamento na geografia feminista. Não há espaço neste artigo
para discutir isso a fundo, porém. Trata-se de um tema com o qual eu me debati por
algum tempo (e continuo a fazê-lo) e tenho particular consciência do(s) frequentemente
“contraditório(s) posicionamento(s) de homens que atuam na geografia feminista” (Butz
e Berg, 2002, p. 88). Este é um tema que claramente teria a ganhar com o envolvimento,
a discussão e o debate crítico dos geógrafos interessados em fazer uso das metodologias
e filosofias feministas.

118
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

sugestões sobre como o trabalho das geografias feministas pode con-


tribuir para o avanço contínuo das geografias da religião.

GEOGRAFIAS EMOCIONAIS

Como mencionei brevemente na introdução, Davidson, Bondi


e Smith (2005, p. 1) editaram recentemente uma coletânea em que
introduzem a “‘virada emocional’ da geografia”. Como eles observam:

Evidentemente, nossas emoções importam. Elas afetam


a maneira como sentimos a substância do nosso passa-
do, presente e futuro; tudo pode parecer claro, banal ou
obscuro em função do nosso enfoque emocional. Quer
ansiemos por equilíbrio emocional ou por descargas de
adrenalina, as geografias emocionais de nossas vidas são
dinâmicas, transformadas pela nossa trajetória através
da infância, da adolescência, da maturidade e da velhi-
ce, e por eventos mais imediatamente desestabilizantes
como o nascimento de um filho ou o luto por uma perda,
ou ainda pelo início ou o fim de um relacionamento. Por
mais alegre, doloroso ou paralisante que seja, a emoção
tem o poder de transformar os perfis das nossas vidas,
expandindo ou contraindo nossos horizontes, criando
novas fissuras ou reparações que nunca esperávamos
encontrar. (Davidson, Bondi e Smith, 2005, p. 1)

A importância das geografias emocionais nas experiências diárias


das pessoas tem sido tema de diversas publicações recentes de auto-
ria de geógrafos feministas (ver, por exemplo, Davidson, Bondi e Smith,
2005; Sharp, Browne e Thien, 2004; e Social and Cultural Geography,
2004 5(4)), muitas das quais se ocupam de como as emoções e o es-
paço estão ligados e conectados com as experiências corporalizadas.
“As emoções, sem dúvida, ocorrem no interior e em torno desta que
é a mais próxima das escalas espaciais” (Davidson e Milligan, 2004,
p. 521). Além disso, “a base da produção de conhecimento ligada ao
gênero é, provavelmente, um motivo-chave por que as emoções têm
sido banidas das ciências sociais e da maioria dos outros comentá-
rios críticos por tanto tempo” (Anderson e Smith, 2001, p. 7). Esse as-
pecto tem sido reforçado pelo fato de que “foi necessário para mui-
tas geógrafas feministas apresentarem-se como acadêmicas sérias

119
e, portanto, deixar suas emoções de lado” (Sharp, Browne e Thien,
2004). Claramente, as emoções não são unicamente experienciadas
ou restritas às geografias feministas, porém, são geralmente estas que
têm proporcionado mais contribuições ao desenvolvimento das geo-
grafias emocionais como significativo subcampo dentro da geografia
humana.
Anderson e Smith (2001, p. 7) observaram o “silenciamento da
emoção tanto na pesquisa social quanto na vida pública”, notando
que, no âmbito da geografia humana, “as poucas discussões sobre
emoção que existem, ocorrem decididamente nos nichos culturais (e
frequentemente feministas) da disciplina”. Eles prosseguem comen-
tando as maneiras pelas quais as topografias emocionais poderiam
ser inscritas nas geografias econômicas, nos estudos de moradia, po-
pulacionais e de migração internacional (Anderson e Smith, 2001).
Tanto quanto prestar uma contribuição a estes subcampos da geo-
grafia humana, eu gostaria de sugerir que o recente pico de interesse
pelas geografias emocionais tem muito a contribuir para o desenvol-
vimento contínuo e o aprimoramento das geografias da religião. Uma
abordagem como essa não se limita a oferecer explicações aprofun-
dadas, pessoais e corporalizadas sobre a importância da religião para
as experiências cotidianas das pessoas: as emoções e sentimentos as-
sociados a determinados locais, eventos e períodos religiosos podem
também ser mais bem compreendidos.
Os jovens muçulmanos que participaram dos grupos de discus-
são e das entrevistas individuais comigo frequentemente contextua-
lizavam as narrativas de suas experiências diárias recorrendo a dis-
cursos emotivos sobre suas sensações e sentimentos acerca de deter-
minados lugares, momentos e eventos. Muitos consideravam a mes-
quita como lugar significante, pelo sentimento de ligação emocional
e conexão com seus pares muçulmanos que tais locais despertam, e
outros sentiam que o lar lhes oferecia um lugar de conforto e conten-
tamento, apartado da hostilidade, do medo e do racismo das ruas da
comunidade local, após 11 de setembro de 2001 (Hopkins e Smith,
2008). Além disso, alguns rapazes expressavam sua raiva e frustração
pela campanha racista e excludente do British National Party (Hopkins,
2007b), além de expressar sua dedicação, compromisso e forte empa-
tia para com a nação escocesa (Hopkins, 2004; Hopkins, 2007c). Em
suma, os vários sentimentos emotivamente expressos pelos jovens
em relação a diferentes aspectos de suas experiências corporais, lo-
cais e nacionais enfatizam os indícios de que uma abordagem infor-
mada por geografias emocionais pode contribuir para enriquecer as
geografias feministas da religião.

120
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

Em termos de reflexão sobre lugares religiosos em particular, os


geógrafos da religião podem recorrer às geografias feministas e emo-
cionais não apenas para explorar uma variedade de questões com-
plexas, mas também para obter depoimentos mais intensos, pessoais
e profundos sobre as experiências religiosas das pessoas. Por exem-
plo, de que forma os edifícios, locais e lugares religiosos — igrejas,
mesquitas, sinagogas, templos, crematórios, memoriais — são expe-
rienciados de maneiras mais emotivas, pungentes e comoventes? Até
que ponto as peregrinações associadas com atividades e eventos re-
ligiosos — como o hadji ou uma visita a Lurdes — são sentidas numa
variedade de vieses emotivos, incluindo a excitação e a ansiedade ex-
perimentadas antes da partida, as emoções pessoais da jornada, os
sentimentos de júbilo, de descoberta e de realização pessoal quando
se chega ao destino almejado, e as lembranças e emoções saboro-
sas compartilhadas com outras pessoas ao voltar para casa (ver, por
exemplo, Graham e Murray, 1997)? Como as atividades associadas à
filiação a grupos, organizações ou coletivos religiosos oferecem um
estímulo às experiências emocionais e encontros que importam
tanto para a vida cotidiana das pessoas? Que experiências e espaços
emotivos estão associados com a exclusão e a marginalização de de-
terminados espaços ou grupos religiosos? Como as práticas religiosas
se localizaram ou se modificaram (ou não) historicamente ao longo
do tempo ou do espaço (ver, por exemplo, Kay, 1997; Brace, Bailey e
Harvey, 2006)? Essas perguntas são importantes para as geografias da
religião e muitas delas podem ser respondidas de maneira mais apro-
fundada se os estudiosos desse subcampo levarem mais em conta o
papel das emoções em seu trabalho.

HOMENS, MULHERES,
RELIGIÃO, ESPAÇO

Além de se ocuparem das geografias emocionais ligadas às ex-


periências pessoais, os interessados em fazer geografias feministas da
religião podem dar importantes contribuições ao conhecimento e ao
entendimento do tema explorando as identidades e relações de gêne-
ro — entre homens e mulheres — no contexto da religião e do espaço.
Embora as experiências diárias das mulheres tenham sido cruciais ao
projeto feminista dentro da geografia (como mencionado anteriormen-
te), foi apenas nos últimos quinze anos que os geógrafos começaram a

121
se ocupar das masculinidades (por exemplo, Berg e Longhurst, 2003;
Longhurst, 2000; Van Hoven e Horschelmann, 2005). De um modo
geral, Jackson (1991, p. 199) atribui o interesse nas masculinidades
tanto a uma resposta ao feminismo quanto, em menor extensão, ao
florescimento de “uma consciência gay progressivamente politiza-
da”. Longhurst (2000) considera a atenção nos homens e nas mas-
culinidades como parte da mudança de foco do feminismo, mais do
que numa resposta a este. No entanto, essas ocorrências resultaram
num reconhecimento de que formas dominantes de masculinidade
são ao mesmo tempo “economicamente predatórias e socialmente
opressivas” por natureza (Jackson, 1991, p. 199). Embora se possa
sugerir que os estudos sobre homens e masculinidades na geogra-
fia alcançaram recentemente uma massa crítica na disciplina (por
exemplo, Berg e Longhurst, 2003; Van Hoven e Horschelmann, 2005),
os geógrafos da religião idealmente se posicionam de modo a fazer
importantes intervenções nesse trabalho quando pesquisam experi-
ências religiosas de homens e mulheres, e os modos pelos quais essas
experiências se informam mutuamente. Geógrafos feministas, como
Linda McDowell (2003), demonstraram recentemente que, embora
muitas mulheres ainda experimentem o sexismo e sejam marginali-
zadas na sociedade, certos grupos de homens (neste caso, jovens da
classe trabalhadora no Reino Unido) também são excluídos de certos
aspectos da masculinidade hegemônica. Essas complexas relações
de poder e hierarquias seriam um interessante aspecto das relações
sociais e espaciais a ser pensado pelos geógrafos da religião ao longo
do seu trabalho.
Há muitas vias pelas quais este trabalho poderia se desenvol-
ver, abordando diferentes geografias, várias formas de religião e prá-
ticas religiosas e diversos grupos de homens e mulheres. É importan-
te pensar nas maneiras pelas quais diferentes experiências religiosas
de gênero influenciam e são influenciadas por enfoques e contextos
geográficos. O trabalho sobre as geografias do Islã empregou uma
gama de escalas geográficas de análise: Rachel Silvey (2005) explo-
rou a importância da religião em experiências de migração transna-
cional e Ghazi-Walid Falah (2005) ocupou-se em nível nacional do
modo como as mulheres muçulmanas/árabes são representadas em
jornais dos EUA. A obra de Kevin Dunn (2005) inquiriu a interseção
de temas nacionais e locais com referência à política envolvida no
desenvolvimento das mesquitas em Sidney, e Abdi Ismail Samatar
(2005) explorou as contestações à implantação de uma mesquita de
mulheres na Somália. O trabalho com as geografias feministas da

122
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

religião poderia, portanto, analisar proveitosamente as experiências


de homens e mulheres religiosos numa variedade de escalas: “global,
nacional, regional, local e, claro, a do corpo” (Kong, 2001, p. 226), e
numa multiplicidade de diferentes contextos geográficos, como nos
espaços públicos e privados, em locais religiosos e não religiosos (por
exemplo, ver Watson, 2005, para uma discussão sobre o eruv judaico)
e nas maneiras como essas locações e sítios podem ser usados, mani-
pulados, ou encontrar diferentes modos de resistência.
Os geógrafos feministas da religião poderiam também explorar
como as relações de gênero interagem e se cruzam com as experiências
pessoais de pertencer a grupos religiosos particulares, incluindo o cris-
tianismo, o budismo, o siquismo, o islã, o judaísmo e outras religiões,
coletividades e práticas espirituais reconhecidas. Grande parte do tra-
balho com as geografias da religião tende a se concentrar em práticas
religiosas, discursos contestados e geografias do cotidiano associadas
aos muçulmanos e à religião islâmica. É necessário que os interessados
em produzir geografias feministas explorem as experiências de homens
e mulheres pertencentes a uma multiplicidade de diferentes grupos re-
ligiosos — incluindo os afiliados às principais religiões do mundo — as-
sim como de homens e mulheres associados a ou participantes de ou-
tras atividades espirituais e eventos amplamente “religiosos”.
Paralelamente à busca de entender as maneiras pelas quais
homens e mulheres de várias religiões experienciam, usam e admi-
nistram diferentes locações, lugares e contextos, uma das mais in-
fluentes contribuições que as geografias feministas poderiam dar às
geografias da religião está na exploração dos meios pelos quais dife-
rentes grupos de homens e mulheres vivenciam diferentes religiões e
espaços de maneiras diversas, assim como os modos como a(s) reli-
gião(ões) constitui(em) homens e mulheres, masculinidades e femi-
nilidades. Anteriormente eu citei Mac an Ghaill (1994), que discutiu
a importância de explorar as diferenças e relações de gênero entre
homens e mulheres dentro de grupos de amigos de ambos esses gê-
neros e em vários contextos institucionais. Essa é uma questão-chave
para os geógrafos feministas da religião. Como diferentes grupos de
homens e mulheres com diferentes marcadores de diferenciação so-
cial — raça, classe, idade, deficiência, sexualidade, localidade — ex-
perienciam sua religião e seu uso do espaço religioso, e como essas
pessoas respondem a outros grupos de homens e mulheres? Além
disso, como a religião reforça ou contesta os espaços generificados e
os processos sociais?

123
CONCLUSÕES

Para concluir, então, está claro que as geografias feministas de-


ram diversas contribuições muito significativas às maneiras como
os geógrafos como um todo percebem, pensam e praticam sua dis-
ciplina. Além de evidenciar um vasto leque de desigualdades e hie-
rarquias socialmente construídas, os geógrafos feministas também
demonstraram que os espaços cotidianos estão imbuídos de signifi-
cados, associações e pressuposições de gênero. Provavelmente, uma
das contribuições mais significativas dos estudos feministas tenha
sido lançar luz sobre, repensar e contestar o sexismo do dia a dia e
as experiências complexas de marginalização enfrentadas pelas mu-
lheres em uma variedade de ambientes geográficos. Além disso, as
geografias feministas também foram providenciais para encorajar
pesquisadores a refletir de maneira crítica sobre suas personalidades
nas reuniões de pesquisa, a perceber a natureza localizada da produ-
ção de conhecimento e a pensar cuidadosamente sobre a parcialida-
de das descobertas de suas pesquisas.
Embora os estudos feministas tenham atualmente um lugar
importante dentro da geografia humana, tem havido relativamente
pouca interação entre geógrafos da religião e os interessados na geografia
feminista. Este artigo sugeriu diversos caminhos pelos quais uma
conversa assim poderia ser levada adiante. Além de abordar o papel
das mulheres e das posicionalidades dos pesquisadores, os geógrafos
também poderiam fazer geografia feminista da religião, concentrando-se
na importância das emoções, e também das inter-relações entre homens,
mulheres, religião e espaço em seu trabalho. Ao dar evidência ao pa-
pel das emoções, os geógrafos podem ser capazes de contribuir com
entendimentos mais claros sobre as maneiras pelas quais a religião
proporciona às pessoas um sentimento de conforto, objetivo e rea-
lização durante suas vidas cotidianas, e também dos modos como
ela facilita as emoções de ódio, desconfiança e raiva. Tanto quanto
explorar as geografias emocionais das experiências e lugares religio-
sos, diferentes grupos de homens e mulheres podem ter experiências
complexas de religião em decorrência de sua participação em dife-
rentes grupos socialmente categorizados, incluindo os que são de-
finidos por gênero tanto quanto por outras categorias, como classe,
idade, sexualidade e deficiência. As geografias feministas da religião
ocupam a posição ideal para descobrir as ricas experiências e relatos
de diferentes grupos de homens e mulheres, de várias filiações reli-
giosas e conexões em diferentes lugares e períodos.

124
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião

AGRADECIMENTOS

Agradeço a Linda Woodhead e Elizabeth Olson por seu retorno


sobre um esboço anterior deste artigo. Os pareceres de Lily Kong e
Jeanne Kay Guelke, assim como a brilhante orientação editorial de
Lawrence Berg, foram particularmente úteis e ajudaram-me a aper-
feiçoar a argumentação geral deste trabalho.

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129
“Uma perfeita geezer-bird
(mulher-homem)”1:
os lugares e olhares de
corporalização “feminina”
Kath Browne

RESUMO

As teorias queer da corporalização sexuada têm considerado as dicotomias


homem/mulher problemáticas e instáveis. No entanto, elas ainda estão por
ser plenamente incorporadas às investigações geográficas generificadas e
sexualizadas. Por sua vez, as compreensões geográficas da constituição de
espaços sociais e lugares corporalizados não têm sido extensamente apura-
das nas desconstruções queer. Ao defender que corpos são a materialização
das redes espaço-temporais constituídas relacionalmente, o artigo examina
os momentos contundentes de encontro, a partir dos quais os corpos sexu-
ados são (des)feitos e (re)feitos. Tomando por base uma pesquisa empírica
realizada com nove mulheres que são confundidas com homens, o artigo
propõe que as dicotomias de sexo/gênero são (re)formadas tanto no lugar
do corpo quanto através dos avistamentos desalinhadores de corpos que
resultam em práticas de policiamento. Essas práticas, que questionam a ca-
tegorização das mulheres no âmbito do binário homem/mulher, (re)criam
dicotomias sexuadas e expõem o caráter tênue das normas que as regem.
Tais experiências são traumáticas, e essas mulheres buscam se (re)situar
dentro da categoria inteligível “mulher”, o que reforça a internalização dos
códigos sexuais e a significância dos avistamentos na contestação dos seus
entendimentos de si próprias. Ao examinar a (re)criação das corporalidades
sexuadas por intermédio de sua formação relacional, neste caso a visão dos
corpos, o artigo defende que momentos de (má) interpretação que deslocam
corpos no entremeio da dicotomia homem/mulher expõem a contingência
das corporalizações sexuadas, as quais requerem reiteração constante.

1
Esta foi uma expressão usada por Julie, uma das participantes da pesquisa pós-doutoral
em que este artigo se fundamenta. As duas gírias inglesas “geezer” e “bird” referem-se a
homens e mulheres, respectivamente, e ilustram a ambiguidade e a existência entre as
categorias de homem e mulher, que são centrais neste artigo.
INTRODUÇÃO

C
ada vez mais, na cultura popular, na literatura que trata de
identidades lésbicas “machonas” e na academia, a aten-
ção se volta para mulheres que transgridem as fronteiras
da masculinidade (por exemplo, Ainley, 1995; Armadiume, 1987; Boys
Don’t Cry, 1999; Browne, 2004, 2005b; Cream, 1995; Devor, 1987, 1989,
1993, 1996; Feinberg, 1993; Halberstam, 1998; Lee, 2001; Munt, 1998,
2001; Namaste, 1996; Venus Boyz, 2002). Halberstam (1998), em seu
pioneiro livro Female Masculinity [Masculinidade feminina], propõe
que a masculinidade feminina contesta as premissas de que a mascu-
linidade pode ou deve se reduzir ao corpo masculino. À medida que
as mulheres cruzam e recruzam as fronteiras que delimitam homem
e mulher, elas turvam e contestam essas categorias, assim como a
coerência que representam. Este artigo investigará como, mediante
processos de avistamento (termo aqui usado para designar atos de vi-
são/interpretação) e sítios de (re)constituição/recuperação do corpo
(este conceito será mais explorado abaixo, mas pode ser entendido
inicialmente como a matriz complexa de materialidades, significa-
dos, símbolos, interações e sinais que vemos como o “nosso corpo”),
as fronteiras fluidas do corpo sexuado são continuamente solidifica-
das nas divisões binárias homem/mulher. O artigo analisará, ainda,
como as dicotomias de sexo/gênero são (re)formuladas tanto no sítio
do corpo quanto através de avistamentos desarranjadores de corpos.
Estes últimos se manifestam em práticas de policiamento que (re)
criam dicotomias sexuais pela exclusão daquilo que desestabiliza o
binário eu-outro (ver também Browne, 2004). Especificamente, ex-
plorarei momentos de encontro (Ahmed, 2000) em que mulheres2 são
confundidas com homens e como essas transgressões/(más) inter-
pretações são, então, (re)feitas no sítio do corpo, dentro do binário
homem/mulher.
Este artigo recorre aos estudos queer expandidos que examinam
questões de transgressão de gênero, e que trabalharam com ques-
tões, e questionamentos, de gênero e sexo (ver, por exemplo, Queen e
Schimel, 1997). As geografias da sexualidade têm argumentado que as
sexualidades são fluidas, encenadas contextualmente e, o que é mais

2
A categoria “mulher” é usada aqui para designar o modo como as participantes deste
estudo identificam a si próprias. Seria insultuoso, e mesmo doloroso, para essas mulheres
se eu contestasse essas identificações, alinhando-me assim com as discriminações que
serão exploradas neste artigo.

132
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

importante, espacialmente dependentes (ver, por exemplo, Brown,


2000; Bell, 2001; Binnie, 1997, 2004; Kitchin e Lysaght, 2003; Knopp,
2004). No entanto, fora dos debates em torno do “camp”3 (Binnie, 1997;
Johnston, 2002), há uma carência de pesquisas e teorias sobre con-
testações de gênero nos estudos geográficos, e o “queer” é geralmen-
te explorado em relação à marginalização/“desviância” (as exceções
incluem Cream, 1995; Namaste, 1996). Por outro lado, Brown (2000)
argumenta que a ênfase dos geógrafos na espacialidade das relações
sociais está em conflito com as figurações propostas pelas teorias
queer do palco como contexto: “O problema da metáfora do palco
para os geógrafos era que ela permitia que os teóricos divorciassem
processos sociais de contextos espaciais” (Brown, 2000, p. 33).
Deslocando-se entre essas lacunas e potenciais divergências,
este artigo busca integrar uma geografia corporalizada (Longhurst,
2001) com atuações sexuadas disruptivas que migram entre as ca-
tegorias de homem/mulher. Ao contrário de outros projetos que
buscam estabelecer explicações sociopsicológicas para a disforia
de gênero (ver Devor, 1989, 1993, 1996), procuro aqui explorar a im-
portância dos espaços de intermediação e interação, redes e cone-
xões (ver abaixo) na reformação de corpos sexuados. Isso contesta a
preexistência de um esquema de gênero dominante e, em vez disso,
volta sua atenção aos momentos em que as performatividades de se
tornar mulher (neste caso) irrompem. Desse modo, busco avançar
numa agenda radicalmente antiessencialista, na qual o sexo, como
conjunto contraditório de processos relacionais que se encontram
constantemente em curso de serem (re)feitos, pode, em momentos
de disjunção, ser exposto como fluido e contingente. O artigo, assim,
entrecruza as geografias de gênero, que centralizam relações sociais
na (re)construção de corpos e espaços generificados, com as teorias
queer, que conceptualizam a fluidez das fronteiras de gênero/sexo no
sítio do corpo. No próximo tópico, examinarei como a conceptuali-
zação de lugar de Massey pode ser usada para entender a (re)produ-
ção de corpos como “sítios”, a ênfase nos avistamentos irá explorar a
centralidade das relações socioespaciais na (re)construção de sítios
corpóreos.

3
O termo refere-se, aqui, às culturas camp. Estas são geralmente associadas aos
homens gay e vinculadas ao exagero e à hipérbole — frequentemente também à atitude
efeminada. Existe uma vasta literatura em língua inglesa acerca das culturas camp,
embora tais teorias sejam mais predominantes nos anos 1990.

133
Antes disso, é importante reconhecer os temores políticos des-
pertados por essa forma de teoria. Tem havido um questionamento
da teoria queer e um movimento para restabelecer o lugar da catego-
ria “mulher” (ver Butler e Scott, 1992; Hartsock, 1990; Ussher, 1994).
Isso se baseia num retrocesso ao que é percebido como uma perigosa
e prematura desconstrução pós-moderna da categoria “mulher”, exa-
tamente quando as mulheres começam a ter um particular ganho de
poder (ver Hartsock, 1990; Ussher, 1994). Autores que seguem esse
viés postulam que as categorias de mulher são necessárias para a
colaboração à luz da continuidade do patriarcado e da desigualda-
de entre homens e mulheres. No âmbito das geografias feministas,
o uso continuado e com frequência não questionado das categorias
homem/mulher sugere que estas ainda precisam ser extensamente
problematizadas (no entanto, ver Cream, 1995; Namaste, 1996). Re-
correndo à teorização que considera as sexualidades fluidas, contin-
gentes e a (re)formação dos espaços e lugares re-encenada contex-
tualmente (ver Bell et al., 1994; Kitchin, 2002; Knopp, 2004; Knopp e
Brown, 2003), assumo a posição de que, ao lado das discussões do pa-
triarcado e outros estudos que partem da premissa de relações de po-
der dicotomicamente sexuadas (que são com tanta frequência o foco
das geografias de gênero), a contestação da oposição binária mascu-
lino/feminino pode contestar o próprio sistema de opressão (Butler
1992). Em outras palavras, ao contestarmos a dicotomia homem/
mulher e questionarmos a naturalização dessa divisão como uma fic-
ção reiterada, podemos problematizar a hierarquização dessas cate-
gorias fabricadas, considerando-as contextualmente contingentes e
formadas em — e (re)formando — lugar e espaço. Além disso, o foco
aqui reside nos sítios do corpo que são re-locados fora da divisão ho-
mem/mulher e, por conseguinte, em experiências de discriminação
que não podem ser entendidas dentro dessas hierarquias.4
Este artigo investiga a que ponto os corpos generificados/se-
xuados são experienciados e, especificamente, o avistamento do
“anormal” (fora de homem/mulher, masculino/feminino) que (re)
forma os lugares do corpo sexuado; neste caso, o avistamento e (re)
formação de mulheres que não “se enquadram” nos limites das nor-
mas femininas. Usarei nove relatos de mulheres sobre suas experi-
ências de serem tomadas por homens, embora elas se considerem
4
Devor (1989) usa o patriarcado para explicar a discriminação e problematiza a
experiência das mulheres que são confundidas com homens. Eu argumentaria que
isso ignora a transgressão das categorias sexuadas (homem/mulher) sobre as quais as
discussões do patriarcado se apoiam.

134
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

e vivam como mulheres. Os relatos fazem parte de um projeto mais


amplo, que explora as percepções e narrativas de mulheres não hete-
rossexuais sobre os espaços cotidianos que elas habitam. A pesquisa
usou seis grupos focais, três entrevistas em pares, 23 entrevistas indi-
viduais, 22 diários e seis conjuntos de autorretratos fotográficos (ver
Browne, 2003, 2005a, para mais detalhes). As nove mulheres que fala-
ram do que eu denominei generismo5 diferenciaram as experiências
de terem sido confundidas com homens de heterossexismo/homo-
fobia (ver Browne, 2004, e Munt, 2001, para uma visão alternativa) e
salientaram o sofrimento associado ao policiamento de seus corpos
pelas normas sexuadas. A partir disso, publiquei um artigo na Diva,
a revista lésbica britânica (Browne, 2002). Também recorri a algumas
das respostas que recebi a esse artigo.
Este trabalho, embora construído sobre o entendimento de que
as discriminações generificadas não derivam unicamente da dicoto-
mia homem/mulher, busca explorar como os corpos são mutuamen-
te constituídos mediante encenações individuais e relações sociais
que se dão especificamente nos momentos de encontro. O tópico
seguinte irá delinear como sítios de corpos sexuados são conceptua-
lizados, avançando para a importância dos avistamentos na (re)cons-
tituição das corporificações. A partir disso, as experiências (dolorosas
e discriminatórias) de mulheres que são confundidas com homens
são exploradas e empregadas para discutir as relações constitutivas
entre lugares de corpos e visões de corpos. Ao se investigar aqueles
que transgridem as fronteiras sexuadas por meio de interpretações,
encenações e apresentações de corpos, os processos instáveis que
(re)formam homem/mulher podem ser interrogados. O sexo é, dessa
forma, interpretado como:

... um conjunto contingente, reiterado e relacional de


processos que são múltiplos, fluidos e heterogêneos, mas
cristalizados no lugar do corpo para produzir a ilusão de
substância. (Butler, 1990, p. 33)

5
Em outro texto, discuti o conceito de generismo, que foi definido como “instâncias
de discriminação baseadas nas descontinuidades entre o sexo/gênero com o qual um
indivíduo se identifica e a maneira como outros, numa variedade de espaços, interpretam
seu sexo/gênero” (Browne, 2004, p. 332).

135
LUGARES CORPORIFICADOS, CORPOS AVISTADOS:
A (RE)PRODUÇÃO RELACIONAL DOS CORPOS

O corpo como “matéria” mundana da vida cotidiana é entendi-


do com base na conceituação de lugar de Massey (1994):

Se, porém, o espacial é pensado no contexto de espaço-


tempo e formado a partir de inter-relações sociais em to-
das as escalas, então pode-se ver um lugar como articu-
lação particular dessas relações, um momento determi-
nado dessas redes de relações sociais e entendimentos...
Identidades de lugar são sempre variáveis, contestáveis e
múltiplas. E a particularidade de cada lugar é... [constru-
ída] (em parte) através da especificidade do misto de elos
e interconexões para aquilo [aqueles] que está “além”.
(Massey, 1994, p. 5)

Se interpretarmos corpos como “sítios”, entendidos como luga-


res, eles podem ser teorizados, com base em Massey, como manifes-
tações físicas de inter-relações espaçotemporais dotadas de identi-
dades diversas e fluidas. Ao delinear a (re)formação performativa e
relacional dos corpos, este tópico do texto argumenta que é possível
ver corpos como simultaneamente “feitos” e “interpretados”. As in-
terconexões entre esses processos, então, (re)produzem os “momen-
tos” que Massey discute. Assim, ao explorar a feitura e interpretação
dos corpos, eu os estou examinando como sítios que são os “nós das
redes” de relações socioespaciais e encenações individuais, e como a
materialização dessas inter-relações espaçotemporais.
Ao nos deslocarmos dessa conceituação de corpos para a se-
xualização desses sítios, podemos ver que as materialidades do sexo
não são fixas. A compreensão do sexo como algo que fazemos, e não
como um fato ontológico, contesta a divisão gênero/sexo (Butler,
1990, 1993). O gênero é com frequência explicado como as ideolo-
gias, estruturas e processos que são diversamente construídos sobre
corpos sexuados preexistentes (Ussher, 1994). Se o sexo tem sido teo-
rizado como biológico, fixo e imutável, o gênero é interpretado como
socialmente construído mediante processos históricos, culturais e
espaciais (ver WGSG, 1997). Em contraste, Butler (1990, 1993) argu-
menta que corpos são feitos através de suas performances generifica-
das e, portanto, não há sexo biológico predeterminado sobre o qual o
gênero se construa. Em vez disso, mediante nossas encenações de gê-
nero, o sexo se materializa e passa a existir. Em outras palavras, Butler

136
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

(1990) argumenta que o sexo, em vez de ser um estado biológico fixo,


é uma manifestação de como fazemos nosso gênero, e tais ações (re)
criam nossos corpos como inteligíveis. As teorias de Butler possibili-
tam que conceptualizemos os corpos sexuados como fluidos e con-
tinuamente refeitos. Consequentemente, não há corpo preexistente
(sexo biológico fixo) com o qual atuar. Ao contrário, para que ele exis-
ta deve-se atuar dentro de discursos inteligíveis, e essas performan-
ces trazem o corpo à existência e precisam ser reiteradas — um pro-
cesso que Butler denomina performatividade (Butler, 1990, 1997). Em
vez de buscar categorias fixas ou problemas/soluções psicossociais
(ver Devor, 1989), eu procuro explorar o momento do encontro, da
interpretação equivocada e da resultante recuperação, para examinar
a contingência dos sítios sexuados e dos processos de policiamento
dessas fronteiras ameaçadas. Assim, o ponto central não é salientar
ou explicar a “anormalidade”, mas apontar para a fluidez dos sexos
dicotômicos no sítio/visão dos corpos “confundidos”.
Brown (2000, p. 35) argumenta que as histórias literárias e vieses
de performatividade escapam desconfortavelmente às alegações dos
geógrafos de que “o lugar importa”. No entanto, geografias performa-
tivas que reconhecem a fluidez do lugar e do espaço podem contestar
ainda mais as separações binárias de homem/mulher, reconhecen-
do não apenas a contingência contextual de vistas/sítios de corpos,
mas também sua (re)formação contínua. Gregson e Rose (2000) re-
correram aos argumentos de Butler para sustentar que o espaço é
produzido mediante sua feitura. O que é pertinente para este artigo
é a teorização que eles propõem dos espaços como relacionalmente
(re)formados em parte por meio de interações, o que Rose (1999) de-
nomina espaços de intermediação (ver também Knopp, 2004). Esses
espaços são formativos, assim como continuamente (re)formados, o
que enfatiza que corpos individuais não fazem seu gênero em iso-
lamento (Nelson, 1999). Portanto, nós não somos simplesmente (re)
formados através de performances individuais. Corpos são formados
mediante interações sociais com outros e passam a existir como um
nexo dessas performatividades e relações.
O arcabouço teórico que busco usar para entender a (re)consti-
tuição relacional de corpos como sítios e avistamentos é semelhante
à discussão de Ahmed (2000) acerca dos “estranhos”. Ela defende que,
quando se discute o “perigo do estranho”, mesmo quando se contesta
os aspectos perigosos desse conceito ou as relações entre os estra-
nhos como “outros” e a constituição do próprio, a figura mítica do
“estranho” passa a existir. Ahmed prossegue argumentando que:

137
... a identidade não acontece, simplesmente, no âmbito
da relação do sujeito consigo próprio. Em vez disso, ela
se dá nos encontros diários com os outros, os sujeitos são
perpetuamente reconstituídos: o trabalho de formação
da identidade nunca termina. (2000, p. 7)

Esses momentos de encontros podem ser surpreendentes, e


“não sermos capazes de interpretar os corpos dos outros” (Ahmed,
2000, p. 8) pode ser ameaçador, pode também ser ofensivo para aque-
les que são “mal-interpretados” ou indecifráveis. A análise de Bell et
al. (1994, p. 43) acerca das “lipstick lesbians” sugere que os aspectos
transgressores de sua indecifrabilidade podem não estar relacio-
nados à “intenção do autor”, mas sim à “percepção do observador”.
Quero argumentar que existe um processo mútuo nesses momentos
de encontro. O lugar do “olhador” e do observador (aqueles que inter-
pretam/veem/avistam corpos) pode ser importante na (re)constitui-
ção de corpos sexuados como lugares, e isso inclui aqueles que cor-
porificam o “estranho”. Consequentemente, este artigo explora não
a formação de “estranhos” da perspectiva do observador, mas sim a
criação de corporalidades sexuadas e identidades quando alguém é
indecifrável e, portanto, “estranho”.
De acordo com Butler (1990, 1993, 1997), argumenta-se que
corpos são (re)feitos como resultado (e refeitura) de relações de po-
der heterossexualizadas que atribuem a “homem” e “mulher” a con-
dição de posições subjetivas opostas, idealizadas e inalcançáveis.
Essas relações de poder podem ser vistas no sentido foucaultiano
(1977), de acordo com o qual a avaliação visual do corpo de alguém
por outros desempenha o papel de trazer corpos à existência e cons-
tituí-los como compreensíveis. Aqui, na nomeação (equivocada) de
corpos sexuados, as rupturas salientam não apenas a necessidade de
repetição do ato de nomear, para que se enquadre de maneira inte-
ligível nos binários homem/mulher, mas também a centralidade do
reconhecimento por parte de outros na reconstituição do eu sexu-
ado. Assim, as fronteiras embaralhadas entre nós, tanto quanto en-
tre homem/mulher, são indistintas e instáveis. Na criação de sítios
corporais sexuados, esses processos de avistamento, discernimento
e policiamento salientam uma fluidez dos sexos dicotômicos. Este
artigo agora se ocupará de nove relatos de mulheres que foram con-
fundidas com homens para explorar as redes sexuadas de poder que
(re)criam o sítio do corpo sexuado e a importância do avistamento do
corpo sexuado nessas (re)criações.

138
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

CORPOS COMO SÍTIOS E A VISÃO


DOS CORPOS: MULHERES QUE
SÃO INTERPRETADAS COMO HOMENS

Devor (1987) examinou as histórias de vida de 15 mulheres que


foram confundidas com homens, e Lee (2001) comparou lésbicas
“machonas” com transexuais femininos e masculinos. Embora fos-
sem fêmeas, as mulheres de ambos esses estudos tornaram-se “mas-
culinas”, e essa masculinidade era “desenvolvida a tal ponto” que des-
conhecidos as tomavam por homens (Devor, 1987, p. 19). No entanto,
elas consideravam-se e viviam como mulheres. As experiências de
serem confundidas com um homem deslocam os indivíduos envol-
vidos de um lado a outro das dicotomias homem/mulher. Isso ocor-
re porque a visão do corpo é dissonante em relação ao eu-sexuado,
e isso aponta para a importância das inter-relações não apenas nas
transgressões de gênero (ver também Straayer, 1997), mas também na
(re)formação de corpos sexuados/generificados (em outras palavras,
aqueles que continuamente “se encaixam” em homem/mulher). No
entanto, discussões sobre intersexualidade, transgêneros/transexos e
drags que violam as dicotomias gênero/sexo frequentemente focali-
zam corpos individuais e escolhas individuais (ver Butler, 1990; Hird,
2000; Mackie, 2001). Nesse ponto, compreendendo a (re)constituição
relacional dos lugares dos corpos mediante suas encenações nos tre-
chos citados, é possível examinar como o nexo dos corpos sexuados
passa a existir através de avistamentos em momentos de disjunção
visual.
Longe de ser inofensivo, o julgamento de sítios corpóreos pode
desumanizar indivíduos de tal forma que, quando alguém não se
enquadra nas categorias homem/mulher, esse alguém existe fora
da humanidade inteligível (ver Butler, 1997; Browne, 2004). Quan-
do há ambiguidade envolvendo o sexo de um corpo situado dentro
dos dois sistemas sexuais, isso representa uma ameaça à naturali-
dade presumida do homem como oposto, e como forma diferente,
da mulher (Halberstam, 1998). Uma ameaça à separação dicotômica
de homem e mulher pode resultar em violência física, agressão ver-
bal, juntamente com processos culturais mais sutis que fazem com
que os indivíduos se sintam diferentes e “anormais” (Namaste, 1996;
Browne, 2004). No restabelecimento de gêneros normativos binários,
as mulheres que contestam a visão de “corpos femininos” podem ser
consideradas “fora-de-lugar” nos espaços femininos:

139
Lorraine: Não consigo acreditar que as pessoas sejam ru-
des a esse ponto, pois eu já fui ao banheiro com você.

Janet: Eu estou falando de quando a gente vai sozinha. Eu


tive medo de ir ao banheiro do (nome da casa noturna)
numa quarta-feira à noite, eu estava morrendo de medo,
mas pensei “que se foda, eu tenho que ir ao banheiro”. Eu
segurei o mais que pude, mas então pensei: “não, eu te-
nho que ir”. E tive de pedir para alguém ir comigo porque
eu já cansei, cansei de tanta gente gritar comigo.

(Mais tarde, no grupo em estudo)

Janet: Então, sabe quando a gente sai para comer fora e,


sabe como é, se a gente precisa usar o banheiro e, sabe
como é, eu fico preocupada porque sei que vou ter von-
tade de cagar. Eu já tive uma briga no banheiro do (nome
do restaurante) uma vez, depois de comer lá.

(Janet e Lorraine, grupo em estudo)

Em lugares com diferenciação entre espaços de homens e de


mulheres, como os banheiros, corpos ambíguos podem estar sujeitos
a violência e agressividade (ver Browne, 2004). Janet narra ter sido
alvo de gritos e ter-se envolvido numa briga física por causa de sua
presença no banheiro feminino. Os traumas físicos e emocionais as-
sociados com sua transgressão das normas de gênero são evidentes
na sua angústia e no seu temor perante os espaços dos banheiros pú-
blicos. Para que se entenda esse processo, as estruturas que frequen-
temente são consideradas como básicas e fixas do sexo têm que ser
questionadas, e isso, por sua vez, as torna instáveis. Quando se reco-
nhece que corpos e lugares sexuados necessitam de (re)formação e
dicotomização contínuas entre eu/outro, movimentos entre homem
e mulher são ameaçadores porque contestam o que é supostamente
fixo. Os momentos pungentes em que normas sexuadas são policia-
das ilustram a fragilidade desse sistema. Essa vulnerabilidade é clara
mesmo quando tais normas são “aceitas” por aqueles que transgri-
dem as fronteiras homem/mulher.
Janet reconhece que seu corpo frequentemente não “se encai-
xa” no sítio/visão de “mulher”; no entanto, em vez de questionar a
separação dicotômica homem/mulher, ela busca explicações para o
modo como seu corpo é interpretado no próprio sítio de seu corpo:

140
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

Janet: E sabe que eles nem olham para o meu rosto nem
nada, eles só olham pro meu feitio, olham pra minha al-
tura, olham pro meu corte de cabelo, e na mesma hora
concluem que eu sou algum homem sujo no toalete fe-
minino.

(Janet, Lorraine, grupo em estudo)6

Janet acredita que, embora seu rosto seja feminino, seu corpo
é interpretado como masculino. O sítio do seu corpo é “feito” de um
modo que contesta as normas de gênero. Ela menciona particular-
mente o seu “feitio” (modo pelo qual ela se refere à sua estrutura mus-
cular e óssea) e a sua altura. Atributos físicos, como corpos grandes,
podem com frequência ser associados a homens, construindo a visão
do corpo como masculino e, consequentemente, “fora de lugar” nos
banheiros exclusivamente femininos (Browne, 2004; Cresswell, 1996).
É interessante que Janet também se refira aos seus cabelos. Cortes de
cabelo e estilos de vestir são frequentemente associados à moda e
contrastam com a suposta fixidez dos corpos sexuados, sendo vistos
como mutáveis e possíveis de serem alterados. Quando corpos não se
encaixam harmoniosamente na dicotomia homem/mulher, o modo
como eles estão vestidos ou penteados pode receber a culpa pelas
(más) interpretações. O sítio do corpo é, então, apresentado “errone-
amente”, em vez de contestar a fixidez das categorias sexuadas que
são centrais à inteligibilidade social como “humanas”.
Amparando-se em entendimentos do “eu” que dependem de
normas sexuadas dicotômicas e ligadas a códigos de gênero, os indi-
víduos podem entender que as interpretações de seus corpos como
não “femininos” são sua “culpa”:

Eu me recuso a deixar crescer meus cabelos porque acho


muito desconfortável e porque pareço um homem traves-
tido! As roupas que eu visto podem ser parte do proble-
ma, mas minissaias nunca vão ficar bem em alguém de
cabeça raspada, pernas gorduchas e pesando mais do que
quatro blocos de pedra!! Blusas justas só ficam bonitas se
você não tiver uma barriga de cerveja como eu! E sapatos
de salto alto ficam um pouco ridículos com calças cargo!
Então, o que uma garota como eu pode fazer??????

(E-mail em resposta a um artigo publicado na revista


Diva, Browne, 2002. Usado com permissão dos autores.)

6
Ver também Browne (2004, p. 337).

141
Essa “garota” vê o estilo que adota para o seu corpo como “parte
do problema”. No entanto, ela argumenta que seu corpo não “condiz”
com roupas destinadas aos corpos femininos. É interessante que ela
se desloque entre o corpo e os estilos da moda para ilustrar que a
estilização dos corpos é um nexo entre constituição física, cabelos e
roupas que são interpretados dentro e por meio de determinados dis-
cursos sexuados. Tentativas de corresponder às convenções de vesti-
menta feminina não deteriam as experiências problemáticas de essa
mulher ser confundida com um homem (generismo), porque seu
corpo a “trairia” e ela pareceria um “homem travestido”. Ao contrário,
as dicotomias masculino/homem e feminino/mulher, que a fazem,
com frequência simultaneamente, inteligível (em sua corporalidade)
e ininteligível (nas interpretações de outros), não são baseadas uni-
camente em performances individuais. Na verdade, essas dicotomias
se constituem dentro do “dinamismo cronotópico tripartite — do so-
cial, do corpo e do eu” (Wilton, 2000, p. 251). Assim, o “eu-generifi-
cado não é produzido puramente de maneira social, mas é produto
do menisco entre o corpo e o social” (Wilton, 2000, p. 249). Localizar
as explicações para os processos de policiamento de gênero no lugar
dos corpos individuais é não reconhecer a intermediação constituti-
va que incorpora os sítios corporais, assim como seus avistamentos,
na formação das corporalidades sexuadas.
Devor (1987) argumenta que, uma vez que o esquema social
dominante permite apenas a possibilidade de “homens e mulheres,
e nenhuma outra condição de gênero, essas mulheres se veem tor-
nando-se homens por falta de alternativas” (Devor, 1987, p. 22). No
entanto, Halberstam (1998) oferece uma visão menos estruturada de
sustentação dessas identidades, em termos de apresentações e per-
formances de gênero ambíguas. Tais identidades são mais bem des-
critas como “processos com múltiplos lugares de vir a ser” (Halberstam,
1998, p. 21). Tal visão reconhece a importância do contexto na inter-
pretação de corpos como “mulheres” e a (re)formação mútua das cor-
poralidades sexuadas através das performatividades e das interpreta-
ções dos corpos. A integração da comunicação entre os eus sexuados e as
percepções sexuadas do eu coloca as formações corpóreas nos inters-
tícios entre as identidades corporais convencionais e os avistamentos
de corpos. Isso contesta o corpo individualizado de Butler (1990), por
enfatizar a centralidade das inter-relações na constituição de espaços
corporais. No entanto, apoia seus argumentos de 1993 (p. 121), que su-
gerem que um sujeito é levado a ser em parte pelas formações sociais
que podem ser vistas como opressivas. No exemplo oferecido por ela,

142
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

a reprimenda da lei não “reprime ou controla simplesmente o sujei-


to... ela inicia o indivíduo na condição subjetivada do sujeito”. Desse
modo, encenações do indivíduo, embora importantes, não existem
em isolamento. Aqui, eu argumentei que a (re)criação dos lugares
de corpos materiais sexuados embaralhados depende em parte (das
rupturas potenciais) dos avistamentos e das (más) interpretações dos
corpos. Nos termos propostos por Ahmed (2000), esses avistamentos
e (más) interpretações trazem esses corpos à existência. Eu examinei
como isso é problemático, resultando em violência, agressão verbal e
sofrimento, e também como esses processos podem expor a contin-
gência das formações sexuadas.

SÍTIOS/AVISTAMENTOS SEXUAIS:
INTERPRETANDO O SEXO,
(RE)INTERPRETANDO A SEXUALIDADE

A masculinidade feminina tem sua existência frequentemente


atribuída ao âmbito das relações homossexuais, e o avistamento de
corpos é justificado com base nas sexualidades “anormais” manifes-
tadas por essas “mulheres” (ver Esterberg, 1996, p. 270). De fato, Lee
(2001) argumenta que a identificação lésbica, em si, pode ser vista
como o espaço entre feminilidade e masculinidade. Radcliffe Hall,
em Well of Loneliness [Poço de solidão] (1928), via as lésbicas mascu-
linizadas como as “verdadeiras” lésbicas, atraídas por mulheres (he-
terossexuais) femininas, e atraentes para estas. Vicinus (1992) afirma
que, na década de 1950, as lésbicas “masculinizadas” foram privile-
giadas. No entanto, na de 1960, algumas formas de feminismo come-
çaram a estabelecer critérios para a espécie “correta” de lesbianismo
e passaram a ver casais macha/fêmea como reprodução da heteros-
sexualidade, no sentido de que tinham um “homem” e uma “mulher”
em cada relacionamento. Na década de 1970, por vezes considerava-
se que a lésbica masculinizada tinha “ódio de si mesma” e era “ul-
trapassada” (Ainley, 1995, p. 146, 148). Ainda existem autoras femi-
nistas que veem o par macha/fêmea como tentativa de reproduzir
a heterossexualidade (por exemplo, Jeffreys, 1996), uma vez que há
a tentativa de “ser homem”. Munt (1995) contrapõe-se a isso, salien-
tando as contestações que as “machonas” oferecem às formas de gê-
neros tradicionais. Porém, ela (1995, p. 120) reconhece que os casais
macha/fêmea não são nem “intrinsecamente radicais” nem “formas

143
ingênuas” da homossexualidade pura. O que essas discussões críticas
do par macha/fêmea também revelam é que as relações entre corpos,
em termos de relações íntimas, podem ser inseridas numa estrutura
(hétero)sexual particular que reconstitui os que se encontram nesses
relacionamentos como opostos. Stevi, por exemplo, acreditava que
era mais provável que ela fosse percebida como um homem por cau-
sa do seu relacionamento com Virgínia:

Stevi: Acho que quando eu estava com Susan [ex-namo-


rada] ela tinha um aspecto muito mais masculino. Acho
que as pessoas sabiam que éramos duas sapatonas. En-
quanto que agora eu acho que as pessoas, às vezes, pen-
sam realmente que eu sou um cara porque Virgínia [na-
morada na época da entrevista] parece tão feminina, ela
não poderia ser gay. Então, sabe como é, acho que é as-
sim que acontece. Então, de certa forma, acontece mais,
mas talvez seja por ela ser tão bonita. (Stevi, entrevista
individual)

Stevi afirma que seu relacionamento com Virgínia influenciava


a maneira como as pessoas compreendiam seu gênero. Como Virgí-
nia “não podia ser gay”, era mais provável que Stevi fosse confundida
com um homem. Ao passo que, quando ela estava com alguém que
era mais “sapatão”, as sexualidades somadas de ambas eram conhe-
cidas, mas seus gêneros não eram questionados. Aqui, a (re)constru-
ção mútua da sexualidade de Virgínia e do gênero de Stevi ilustram os
pressupostos que definem corpos, problematicamente, como opos-
tos dentro da matriz heterossexual. Estes estendem a (re)constituição
do sítio do corpo para além da encenação individual ou mesmo dos
avistamentos de corpos individuais. Eis aqui a visão de dois corpos
que (re)fazem corporalidades sexuadas. Andie experienciou confu-
sões similares com uma parceira anterior:

Andie: Acho que às vezes nós [uma ex-namorada e An-


die] íamos a algum lugar e todos pensavam que eu era
um cara. Então parecia simplesmente que ela estava com
um cara, e por isso não havia problema. Pelo menos, eu
não via problema nisso. (Andie, entrevista individual)

Andie, nesse ponto, acredita que “isso” (ser confundida com


um homem) não é um problema (ver Browne, 2004, 2005b). Como ela
podia “passar” por homem, argumenta que sua parceira e ela própria

144
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

não se defrontavam com qualquer reação negativa à sua sexualida-


de. Para gozar de privilégios normativos heterossexuais, como passar
despercebido, o corpo de Andie tinha de ser interpretado como mas-
culino e o de sua parceira como feminino, para que pudessem ence-
nar uma identidade heterossexual. Isso é semelhante à descoberta
de Devor (1987), de que algumas mulheres optam por passar por ho-
mens para evitar experiências negativas. Por outro lado, a fluidez da
leitura/reinscrição pode ser problemática em termos de sexualidade
quando as “verdadeiras” identidades das mulheres são estabelecidas:

Janet: Tenho certeza que as pessoas imediatamente pen-


sam, pois... por que uma mulher hétero, não que eu quei-
ra me parecer com um homem, mas por que uma mulher
hétero rasparia os cabelos e se vestiria em trajes mascu-
linos se quisesse atrair homens?... Embora, não que eu
esteja dizendo que sou machona ou que sou masculina.
Não acho que eu seja. Mas as pessoas me confundem
com um homem e eu acho que algumas pessoas pen-
sam que eu seja, que eu me visto assim de propósito para
atrair mulheres hétero... Acho que elas meio que pensam
que eu sou lésbica, e que eu faço isso para atrair mulheres
hétero. E você sabe que isso acontece. Eu atraio um mon-
te de mulheres hétero. E tive tantos problemas na escola
[Universidade] com mulheres hétero que tentavam me
pegar, sabe. Elas tentam me ganhar porque fantasiam
comigo, porque nunca haviam fantasiado com mulheres
antes. E elas tentam me pegar e a culpa é minha, porque
elas têm fantasias comigo. (Janet, entrevista individual)

Na dicotomia tradicional mulher/homem, em que corpos têm


cortes de cabelo e estilos de vestimenta particulares e opostos, Ja-
net não se enquadra. Entretanto, ela não se vê como “masculina” ou
“machona”. Janet contesta sua categorização de gênero. Embora li-
gue sua aparência à sua sexualidade — “por que uma mulher héte-
ro rasparia os cabelos e se vestiria em trajes masculinos se quisesse
atrair homens” —, ela ainda assim desafia as sexualidades dicotômi-
cas baseadas em binários homem/mulher. Ler o corpo de Janet como
masculino, mas logo em seguida compreendê-la como feminina,
torna-a ameaçadora enquanto indivíduo sexualmente atraente. Ela
é vista como alguém que intencionalmente “atrai” mulheres “héte-
ro” e, como resultado, é representada como a lésbica predadora que
espreita as mulheres “hétero”, assumindo uma aparência masculina
através das vestimentas (ver Hall, 1928; Feinberg, 1993).

145
A instabilidade dos sexos e da sexualidade fica clara quando Ja-
net transgride a divisão convencional masculino/feminino e outras
mulheres cruzam a fronteira hétero/gay. No entanto, esses movimen-
tos não são compreensíveis onde as identidades de mulher e homem,
hétero e gay são percebidas como fixas. Janet defende que mulheres
“heterossexuais” acham o cruzamento dessas fronteiras ameaçador
e, como resultado, são hostis em relação a ela. Talvez porque a outra
(lésbica) não poderia ser distinguida da igual (heterossexual) e, por-
tanto, criá-la; as identidades sexuais são desafiadas e é o corpo de
Janet que é interpretado como ameaçador. Interações entre Janet e
“mulheres hétero” demonstram que não são simplesmente os corpos
femininos os reconstituídos mediante avistamentos (equivocados);
suas interações e relacionamentos com mulheres também são (re)
formados. Os momentos de incompreensibilidade e a necessidade
de refigurar Janet dentro dos códigos dicotômicos, ao lado da sua
presença continuada nas fronteiras homem/mulher, homossexual/
heterossexual, ilustram a contingência das corporalidades sexuadas
(e sexualizadas). Sua reconstituição (imperfeita) dentro das normas
sexuais mostra a importância da dicotomia homem/mulher e revela
como as instabilidades de gênero, sexo e sexualidade são investidas
de sentido mediante a atribuição da corporalidade de Janet como
“ameaçadora”. A ameaça não está simplesmente numa expulsão do
“outro”, ela é uma tentativa de restabelecer a debilidade da dicotomia
eu-outro.
Pode-se argumentar que Janet nunca é plenamente (re)loca-
da como “mulher” e, assim, em alguns sentidos ainda é interpreta-
da como “masculinizada”. Ela continua a ser ameaçadora e sujeita a
discriminação e abuso com base nessa premissa. A desidentificação
que Butler (1993, p. 131) reconhece no que Senft (2004) interpreta
como o que ocorre quando alguém se desloca de “sou/não sou” para
“acredito ser isso, agora não acredito mais” pode ser apropriada por
mulheres que são confundidas com homens. Nesse caso, “acredito
ser mulher, agora não acredito mais” pode estar relacionado a con-
ceptualizações individuais do eu devidas a (más) interpretações dos
corpos. Entretanto, aqui podemos ver que essa desidentificação pode
estar associada a visões do corpo individual e a avistamentos de cor-
pos. Os processos que estabelecem o eu (eu sou) e o outro (eu não
sou) também são postos em questão quando os observadores acre-
ditam que a pessoa que está diante deles é um homem, e depois não
acreditam mais. Nesses momentos de disjunção, Janet e outras mu-
lheres que são confundidas com homens tornam-se intensamente

146
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

ameaçadoras (particularmente quando atraem a pessoa “errada”; no


caso de Janet, mulheres “hétero”). O conceito de desidentificação em
parte compreende os espaços confusos de interação que constituem
as corporalidades sexuadas.
Não são apenas as identidades heterossexuais que podem ser
questionadas quando os avistamentos de corpos tornam as corpora-
lidades sexuadas ambíguas:

Janet: Eles tentaram me atirar para fora da tenda das mu-


lheres no pride... Aquelas sapatonas enormes vieram pra
cima de mim com: “ei, você tá na tenda errada, sabia?
Pode, por favor, sair agora?”. E estava chovendo canivetes
lá fora... Você sabe como é na tenda das mulheres no pride.7
Se foi sério?... Elas literalmente me escorraçaram da por-
ra da tenda. E eu estava na minha. No fim, felizmente, eu
estava com a minha carteirinha de estudante, com foto e
nome. E eu tinha que deixar guardada sempre no bolso
da camisa, porque isso aconteceu umas três vezes.

Lorraine: É mesmo? Foi?

KB: No pride?

Janet: É, na tenda das mulheres, três vezes... O que me


deixou de cara foi que havia dois homens gays parados
ali com a gente, e ninguém pediu para eles saírem. Não
sei o que aconteceu, era uma tenda de mulheres, e su-
postamente não devia haver homens ali, e tudo mais.
Mas, sabe como é, elas pensaram que eu era tipo um ho-
mem hétero ou algo assim.

Lorraine: Espreitando.

Janet: É, eu fico... eu fico de cara; mesmo entre gente


como eu, mesmo assim eu ainda sou... Ainda dou um jei-
to de ser botada pra fora pela segurança. E ainda havia,
havia uma mulher muito grande e gorda que ficava ten-
tando me pôr pra fora e não queria nem saber. E eu fica-
va dizendo: “olha, eu não tô fazendo nenhuma gracinha,
você sabe que eu sou uma lésbica. Eu sou mulher, você

7
O Pride, ou orgulho, é um festival de lésbicas, gays e bissexuais que acontece por todo
o mundo, com várias roupagens diferentes. Janet está se referindo a um evento Pride
na Inglaterra, onde deveria haver um espaço seguro para lésbicas, particularmente na
tenda das mulheres.

147
sabe disso. Deixa eu ficar aqui.” Mas ela não queria nem
saber. (Janet e Lorraine, grupo em estudo)

Hird (2000, p. 359) argumenta que o lesbianismo é definido


pelo gênero. Janet existe entre as categorias binárias e dicotômicas de
gênero e sexualidade, pois sua condição de “lésbica” depende da sua
condição feminina. Quando sua condição feminina é contestada, sua
identidade lésbica pode também ser desafiada. As conexões constitu-
tivas entre sexo e sexualidade não são restritas à heterossexualidade,
pois os locais corporais sexuados são feitos também em espaços gays
e lésbicos. Durante um festival de orgulho lésbico, gay, bissexual e
trans, Janet foi tomada por um homem que estivesse “espreitando”
lésbicas num espaço exclusivamente feminino e foi convidada a sair.
Ela teve de recorrer a métodos formais de identificação (sua carteira
de identidade estudantil) para estabelecer ou “provar” sua condição
de mulher e, portanto, seu direito de ficar num espaço exclusivamen-
te feminino. O interessante é que presunções de sexualidade estão
ligadas ao gênero. No espaço hétero, como já comentado acima, era
mais provável que Stevi fosse tomada por homem devido à sua par-
ceira convencionalmente feminina. No espaço lésbico, Janet foi con-
siderada masculina, foi vista como “fora de lugar” e, portanto, des-
viante (Cresswell 1996). Numa interessante reversão das normas de
sexualidade hegemônicas, a heterossexualidade é negativa quando
associada com corpos interpretados como masculinos em espaços
exclusivamente femininos. Em contraste, os homens gays que esta-
vam presentes não eram percebidos como ameaçadores em espaços
unicamente femininos, talvez em parte porque sua sexualidade e gê-
nero eram claramente definíveis dentro dos binários macho/fêmea,
hétero/gay. Interessante observar que foi o avistamento do corpo de
Janet como o de um homem heterossexual o que fez com que ela fosse
considerada fora de lugar.
Onde a heterossexualidade é vista como “norma”, Stevi é defi-
nida como oposta a Virginia e, portanto, dentro da matriz heteros-
sexual, ela é percebida como masculino. Por outro lado, no espaço
lésbico exclusivamente feminino, a interpretação do corpo de Janet
como masculino torna-a “diferente”, e não mais uma igual em termos
de mulher versus homem. Ela fora interpretada como um homem
heterossexual e não condizia com um espaço lésbico. Isso, porém,
tem como premissa a oposição masculino/feminino e heterossexual/
lésbica. Os avistamentos dos corpos dessas mulheres em relação às
normas sexualizadas (assim como às de gênero) desloca-as por entre

148
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

homem/mulher, contestando as sexualidades baseadas nessas cate-


gorias e, consequentemente, de forma semelhante ao que se dá com
indivíduos intersexuais, transgênero e transexuais, elas disputam os
elos “necessários” entre sexo, gênero e sexualidades (Butler, 1990).
Esses sítios corpóreos podem ser ameaçadores porque a interpreta-
ção (avistamento) dos corpos torna o eu/outro na definição das iden-
tidades sexuadas e sexuais indistinto em relação aos locais do corpo.

(RE)AVISTANDO CORPOS: (RE)NOMEANDO


CORPOS INTELIGÍVEIS

Embora a teoria queer possa ter estabelecido as possibilidades


de transgressão de gênero e os movimentos entre homem/mulher
possam ser levados em consideração, as transgressões de gênero po-
dem ser vistas como “erradas”. É evidente que as mulheres deste es-
tudo foram perturbadas, feridas, por vezes traumatizadas, sujeitas a
agressão verbal e por vezes física, por terem sido confundidas com
homens (ver também Browne, 2004), porém elas não foram “vítimas”
passivas das relações de poder que buscavam (re)constituí-las em ca-
tegorias inteligíveis:

Angela: Fui à boate e era noite de bebidas grátis para as


mulheres. E, na entrada, eles estavam entregando um
desses tickets, vales para trocar no bar, e o cara entre-
gou-os para as minhas três amigas e eu disse: “e eu, não
ganho um?” E ele falou: “se você usasse saias, se tives-
se tetas e uma saia, eu lhe daria um”. E eu simplesmen-
te falei: “OK, e o que é isso aqui [aponta para os seios],
então?” Foi um deus nos acuda (gargalhadas), “Deus do
céu!” (gargalhadas); o cara ficou muito envergonhado e
eu só ria, aí ele me deu um ticket.

Jenny: Uma vez, acho que foi no Burguer King, o cara só


disse “muito obrigado, senhor”... [Eu estava usando] uma
blusa folgada, e quando eu uso várias camadas de roupa
não dá para ver os meus seios.

Angela: Acho que eu fui chamada de... acho que eu fui


confundida com um cara hoje, no delivery. Pois, quando
eu fui atender a porta e essa mulher, ela era uma novata

149
que John nunca tinha atendido e ela tinha visto o nome do
motorista. Então ela chegou na porta e disse: “oi, qual de
vocês é o John?” (risos) Eu fiquei tipo (Jenny ri)... “hello!”
Eu estava com essa coisa cinzenta, esta coisona verde cha-
mativa por cima do corpo, por isso eles [seus seios] esta-
vam escondidos. (Jenny e Angela, grupo em estudo)

Os que têm seu sexo questionado podem buscar ativamente


encenar e reafirmar suas identidades e corpos dentro do binário ho-
mem/mulher. Angela, neste caso, foi privada do benefício da bebida
grátis na noite das mulheres pela suposição de que ela fosse homem.
Para “provar” que era uma “garota”, Angela tinha de apresentar requi-
sitos particulares: “tetas e uma saia”. Como já dito acima, corpos e
roupas são conjuntamente construídos no sítio do corpo e (re)cons-
tituem a visão do corpo. Descontinuidades entre interpretações dos
corpos e das identidades próprias dessas mulheres foram resolvidas
mediante o recurso aos seus corpos. Quando Angela e Jenny são tra-
tadas como homens, elas também olham para os significantes das
vestes e buscam (re)fazer a si próprias como “mulheres”. Tanto An-
gela quanto Jenny atribuem as interpretações equivocadas de seus
corpos às roupas e à invisibilidade dos seios. De acordo com Butler
(1990, 1993), essas encenações podem ser vistas como uma (re)feitu-
ra dessas mulheres inteligíveis enquanto humanas pela reafirmação
de um gênero feminino que é distinto de seu gênero oposto, mas-
culino. É interessante que, embora a presença de uma vagina não
seja mencionada, os seios, como órgãos “exclusivamente femininos”,
eram considerados importantes para classificar seus corpos dentro
do grupamento “mulher”. Talvez porque seios são significantes visí-
veis que geralmente podem ser identificados sob as roupas, eles são
vistos como “prova” de feminilidade.
Janet entendia seu corpo de maneira semelhante e usava-o ati-
vamente para questionar a interpretação de si como masculina:

Janet: Sabe, eu já fiquei de saco cheio de mostrar meus


peitos para as pessoas só para poder usar o toalete, ou
coisa assim.

KB: Isso é ruim, né?

Janet: Pois é, por que eu tenho que ser obrigada a mostrar


meus peitos para qualquer um? (Janet, Lorraine, grupo
em pesquisa)

150
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

Quando seios são compreendidos como algo possuído apenas


pelo sexo feminino (mas ver Longhurst, 2005), Janet pode usar os seus
para ilustrar sua corporalidade de mulher e ganhar acesso ao toalete femi-
nino. O recurso ao corpo pode informar os que estão (mal) interpre-
tando os corpos sobre a condição de mulher desses indivíduos. En-
quanto Jenny, juntamente com outras participantes, simplesmente
apontava para os seus seios sob as roupas, Janet removia as suas para
ilustrar sua corporalidade como feminina. Embora Janet esteja resis-
tindo a interpretações particulares do seu corpo, existe um custo en-
volvido. O preço de ter acesso às dependências exclusivamente femi-
ninas dos toaletes é a invasão visual do espaço corporal de Janet, de
maneiras que podem ser vistas como culturalmente inapropriadas.
Para Janet, a humilhação que isso implica é melhor que ser confundi-
da com um homem. O momento pungente do erro deve ser reparado
e, portanto, ela emprega um elemento de choque para reclamar que
seu sítio corporal seja colocado dentro do avistamento de “mulher”
(um processo que também pode ser simultaneamente empoderador
e penoso).
As contestações ativas do policiamento das normas sexuadas
por parte de outras pessoas chama a atenção para a tentativa de rejei-
tar aqueles que desestabilizam as dicotomias eu-outro; no entanto,
precisamos considerar como as próprias mulheres veem essas “resis-
tências”. Embora as mulheres não sejam impotentes quanto às leitu-
ras e interpretações de seus corpos, seus próprios entendimentos po-
dem estar baseados nos sexos dicotômicos em locais onde, para ser
inteligível, deve-se ser masculino ou feminino. Aqui, em vez de explo-
rar os discursos e definições problemáticos de masculino/homem e
feminino/mulher, Janet, Angela e Jenny (assim como outras que fi-
zeram parte do estudo, ver Browne, 2004) (re)inscrevem a si próprias
dentro da categoria feminina no lugar de seus corpos recorrendo aos
seus próprios corpos, especificamente aos seus seios. Desse modo,
usando os corpos como evidências, elas se tornam inteligíveis no
âmbito dos gêneros/sexos normativos. Isso é interessante porque a
dicotomia de masculino ou feminino não é simplesmente internali-
zada, mas é incorporada (ver Butler, 1990, 1997). A lei heterossexual
não é simplesmente escrita no corpo, ela escreve o corpo. O policia-
mento de corpos, espaços e identidades ilustrou a fragilidade dessa
lei que continuamente requer performances corporalizadas. Embora
essas participantes transgridam fronteiras da sexualidade, elas não
podem se compreender fora dos discursos de gênero e sexo que si-
tuam corpos particulares com identidades específicas. É importante

151
reconhecer que as dissonâncias foram atribuídas aos observadores/
intérpretes desses corpos. O modo como essas “mulheres” se enten-
dem como femininas não foi questionado. Portanto, embora as mu-
lheres não sejam simplesmente o sujeito das normas sociais, elas po-
dem construir-se em relação a, e às vezes dentro de, subjetividades
sexuadas dicotômicas.

CONCLUSÃO

Geografias sexuadas são reproduzidas no sítio do corpo me-


diante processos confusos que incluem avistamentos que (re)inter-
pretam e, em parte, (re)fazem corpos sexuados (e sexy). Assim, pela
integração de geografias de gênero com teorias queer, tem sido pos-
sível investigar como a fluidez dos corpos, enquanto sítios materiais,
passa a ser (re)feita no âmbito das dicotomias homem/mulher. Os
processos de solidificação das categorias do sexo são ilustrados pe-
las espacialidades corporalizadas das transgressões de gênero/sexo
e suas (más) interpretações. Consequentemente, a criação do corpo
sexuado não é um empreendimento unicamente individual, ao con-
trário, ele é produzido mediante um nexo de inter-relações.
Este artigo baseou-se nas teorias da formação inter-relacio-
nal de lugar de Massey (1994) para argumentar que corpos sexuados
como sítios são formados em parte mediante seus avistamentos. Re-
correndo à conceptualização de corpos como manifestações físicas
de relações tempo-espaço, eu investiguei momentos de disjunção
entre interpretações de corpos sexuados e relações sexualizadas; e de
corporalidades e relacionamentos sexuados vividos. A combinação
de relações socioespaciais com o entendimento de corpos sexuados
fluidos, que não são necessariamente vinculados a sexualidades es-
pecíficas, desestabiliza ainda mais os sexos dicotômicos baseados
em homem/mulher. Portanto, considero que este artigo cruza as
geografias de gênero com as teorias queer e introduz a exploração
das possibilidades dos espaços de entremeio, interações, neste caso
específico avistamentos, incrementando as análises de como os cor-
pos sexuados são (re)feitos mediante reiterações de normas fictícias.
Por ter-me ocupado dos tempos e espaços desordenados das
realidades vividas (Brown, 2000), foi possível examinar a solidificação
das fronteiras corporais fluidas em divisões binárias de homem/mu-
lher. O nexo das relações e performatividades sociais (re)faz corpos

152
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”

sexuados, e isso fica claro quando mulheres são tomadas por homens
e seu sexo assumido, o de “mulher”, é desafiado. O artigo argumenta
que a interação entre esses avistamentos e performances corporali-
zadas (re)cria o binário homem/mulher. Embora o intérprete contes-
te o eu visto, ambos buscam (re)situar as interpretações dissonantes
dentro do que é percebido como sexos fixos (enquanto se pode ver
que são esses mesmos processos que trazem os sexos dicotômicos
à existência, Butler, 1990, 1993). Eu argumentei que essas transgres-
sões, frequentemente “acidentais”, com frequência contestam a in-
teligibilidade das mulheres como “humanas”. As práticas através das
quais as mulheres que são confundidas com homens reafirmam seus
sítios corporalizados, como a de mostrar os seios, e recorrem a ex-
plicações como a das vestimentas para deferir questionamentos ao
seu sexo, capacitam-nas a “fazer sentido” de seus corpos e dos avis-
tamentos dissonantes destes. As contestações ativas ao policiamento
de outras pessoas às normas sexuais chamam atenção para a tenta-
tiva de excluir aqueles que desestabilizam as dicotomias eu-outro.
Isso, paradoxalmente, reforça tanto a mutabilidade dos corpos di-
cotomicamente sexuados quanto a necessidade de “ser” homem ou
mulher para ser humano.
As interações entre observador/observado, enquanto relações
de poder que são tanto sexuadas (no sentido de que aqueles que são
questionados são (re)feitos como “seguros” de seu sexo) quanto sexi-
zantes (elas (re)formam os corpos sexuados), podem ser dolorosa-
mente constitutivas. As práticas do eu e os processos de policiamento
de outros (re)criam e mantêm os regimes sexuados do lugar do cor-
po, de tal forma que alguns corpos permanecem “outros”, ou são de-
sidentificados (Butler, 1993), mesmo quando (re)locados dentro da
categoria “mulher real”. Talvez porque conceitos filosóficos e palcos
metafóricos (Brown, 2000) (aparentemente) não firam, a análise es-
pacial da (re)formação de lugares corporificados leva a mais do que
teorizações das relações de poder: ela capacita-nos a explorar os mo-
mentos pungentes que (re)criam espaços vividos.

AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a todas as mulheres que participaram


desta pesquisa e especialmente às nove mulheres que discutiram suas
experiências de serem confundidas com homens. Obrigada a Cara

153
Aitchison, Andrew Church e Becky Elmhirst, e a Lawrence Knopp e
A. H. Devor por suas revisões esclarecedoras e cuidadosas. Por fim,
gostaria de agradecer a Larry Berg, por seu apoio editorial.

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157
“I do down-under”: naturalizando
paisagens e amor através do turismo
matrimonial na Nova Zelândia
Lynda Johnston

RESUMO

Este artigo examina a importância do lugar para o turismo matrimonial. O


foco nos casamentos turísticos oferece uma oportunidade única para exa-
minar de maneira crítica os modos pelos quais os rituais de casamento de-
pendem de paisagens “naturais” para que se produzam casamentos “down-under”1.
Com base em material extraído de um documentário da televisão da Nova
Zelândia, “I do down-under”, de sites e folhetos neozelandeses sobre turismo
matrimonial, e também entrevistas com agentes de turismo matrimonial,
ofereço uma análise dos pontos turísticos matrimoniais da Nova Zelândia.
Sugiro que os casamentos turísticos heteronormativos e as paisagens neoze-
landesas instituem-se mutuamente como “naturais”, 100% puros, exóticos e
românticos. Paisagens como geleiras brancas, montanhas escarpadas, flo-
restas subtropicais de um verde luxuriante, litorais de águas azuis e praias
douradas são promovidos como parte do pacote de casamento. Por sua vez,
essas geografias morais dos casamentos turísticos naturalizam e romanti-
zam a heterossexualidade. Além disso, a paisagem assume o papel da família
e dos amigos que estão “fugindo” para cá a fim de se casarem. Ao longo des-
te artigo emprego geografias morais e teorias feministas pós-estruturalistas
para mostrar que a heterossexualidade e os espaços naturais não têm status
ontológico nem fixo, além dos vários atos que constituem suas realidades. O
turismo matrimonial, portanto, é uma lente útil para visualizarmos a produ-
ção de corpos e espaços heterossexuais.

Palavras-chave: casamentos; turismo; natureza; heteronormatividade;


geografias morais; amor romântico.

1
A expressão “down under”, que equivaleria aproximadamente a “lá embaixo”, em
português, é comumente empregada em referência à Austrália ou à Nova Zelândia.
Deve-se ao fato de que esses países localizam-se muito ao sul em relação a outras nações
de língua inglesa. (N.T.)
INTRODUÇÃO


Um casamento exótico no Pacífico Sul e uma lua-de-mel
na Nova Zelândia são 100% puro romance” (http://www.
chc-weddings.co.nz/), segundo o site da agência Cashmere
Heights Weddings. Clientes interessados em casar-se são atraídos
para “a romântica Nova Zelândia” por imagens de geleiras brancas,
montanhas inóspitas, densas e verdes florestas subtropicais, costas
de mar azul e praias douradas. Também fui atraída por esse anúncio,
não para me casar na praia, entre os arbustos ou numa montanha,
mas sim para pensar criticamente sobre heterossexualidade, paisa-
gens, natureza, amor e turismo.
Phil Hubbard (2000) observa que a geografia tem sido tímida
para examinar a heterossexualidade. O trabalho valioso sobre sexua-
lidade e espaço tem apresentado um enfoque seguro sobre as geogra-
fias queer, mas há uma escassez de escritos sobre desejos (e aversões)
heterossexuais. No âmbito do amplo campo acadêmico dos estudos
de turismo, exames críticos da heterossexualidade encontram-se au-
sentes. Além disso, o poder conceitual da heterossexualidade é su-
bestimado pelos estudos sobre o turismo. Alguns acadêmicos abor-
daram o turismo e as luas-de-mel (Dubinsky, 1999), assim como a
promoção de lugares sexualizados e com marcas de gênero (Goss,
1993), mas ainda não voltaram sua atenção aos casamentos. Minha
pesquisa responde à alegação de Hubbard (2000, p. 206), segundo a
qual: “parece haver pouca reflexão observável sobre até que ponto as
performances morais heterossexuais são naturalizadas numa varie-
dade de locações sociais ‘cotidianas’, sejam elas públicas ou privadas”.
Casamentos podem ser entendidos como a parte de perfor-
mance pública festiva da heteronormatividade. Enquanto rituais,
parte da ação deles é apresentar um tipo de heterossexualidade “na-
tural” que oculta mudanças históricas e materiais. Embora nenhum
casamento opere como uma janela transparente para as estruturas
sociais, essas instituições podem ser, porém, poderosos marcadores
da “normalidade”, da moralidade e da produtividade de um casal e
de subjetividades de gênero “apropriadas”. Hubbard (2000, p. 194, em
itálico no original) analisa

como expressões particulares de heterossexualidade são


construídas como morais ou imorais em contextos es-
paciais e temporais particulares, de modo que a fronteira
entre o que é considerado “normal” e do que é reputado

160
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

“pervertido” é disputada numa variedade de sítios (que, im-


portante dizer, também existem como panoramas visuais).

O exame das geografias morais das performances heterosse-


xuais em casamentos turísticos oferece um ponto de partida para
explorar como a heterossexualidade é naturalizada no — e através
do — espaço. Ao mesmo tempo, o sítio/panorama (site/sight) e a ex-
periência corporalizada das paisagens neozelandesas podem ser ain-
da mais naturalizados pelos casamentos turísticos. Ao compararmos
as teorias feminista e pós-estruturalista (Butler, 1990, 1993), espero
desnaturalizar essas paisagens do amor heterossexual. Construções
discursivas da natureza (Little, 2003; Little e Leyson, 2003) passam
por escrutínio quando exponho o relacionamento constitutivo entre
paisagem e amor.
Aqui eu investigo representações dos destinos das viagens de
casamento na Nova Zelândia. O comércio impulsionado pelo turis-
mo matrimonial nesse país vem aumentando em até 300% ao longo
dos últimos 10 anos. Em 2003, 1.000 casais vieram à Nova Zelândia
para se casar e, em 2004, esse número aumentou para 1.200 casais.
Estima-se que essa atividade contribua com cerca de 30 milhões de
dólares ao ano para a economia neozelandesa (TVNZ, 2004).
Senti-me motivada a iniciar esta pesquisa após assistir a um
documentário da Television New Zealand intitulado “I Do Down-Under”
[Eu me caso lá embaixo, em tradução livre], que foi exibido na Nova
Zelândia em abril de 2004 (TVNZ, 2004). O documentário segue uma
agente de turismo matrimonial — Vanessa Leeming — durante a alta
temporada, enquanto ela opera uma das maiores companhias de
organização de casamentos do país, a Cashmere Heights Weddings
(http://www.chc-weddings.co.nz/). Seu site afirma que a empresa
“projeta desde simples fugas de amor até grandes casamentos com
muitos convidados” (http://www.chcweddings.co.nz/). As opções de
cerimônias são sempre emolduradas por paisagens icônicas, como
o Monte Cook, o lago Tekapo e Queenstown. Leeming recebe “solici-
tações para fazer toda sorte de casamentos distintos. Cerimônias ao
ar livre, em jardins, à beira da praia, casamentos em topos de monta-
nhas. Na verdade, seja lá o que alguém tenha planejado, ou que ideia
lhe tenha ocorrido, fico realmente feliz em tentar realizá-la” (TVNZ,
2004).
Recorro a esse material para ilustrar que essas poderosas per-
formances de sexualidade em particular — nesse caso, de heteros-
sexualidade — são consideradas pela sociedade hegemônica como

161
apropriadas, respeitáveis, morais e normais. Hubbard (2000) discute
ideias de moralidade que serviram para naturalizar a visão de que o
sexo deve se amparar numa troca que é significativa tanto emocional
quanto materialmente. Casamentos são ritos de passagem simbóli-
cos para que homens e mulheres heterossexuais entrem na institui-
ção do casamento e, como tal, eles formalizam o caminho moral para
a aceitabilidade sexual.
Este artigo inicialmente delineia a literatura associada à hete-
rossexualidade, aos destinos de viagens de casamento e aos discursos
morais dominantes que ajudam a sustentar e reproduzir sua hege-
monia. Ofereço uma espécie de revisão das teorias correntes sobre
heterossexualidade, espaço e turismo. Num segundo momento, vol-
to minha atenção a estudos de casos específicos acerca de destinos
de viagens matrimoniais na Nova Zelândia e tomo em consideração
suas geografias morais. Argumento que local e heterossexualidade
tornam-se mutuamente constituídos como “românticos e 100% na-
turais”. Mais do que isso, as paisagens assumem o papel da família e
dos amigos dos que estão “fugindo” lá para baixo a fim de se casarem.
Ao longo deste artigo, tento desarranjar corpos heteronormativos e
espaços naturais.

SEXUALIDADE, LUGAR E TURISMO

Esta pesquisa reúne duas áreas de pesquisa — geografias corpo-


ralizadas das sexualidades e geografias morais — e busca trazer con-
tribuições para o conhecimento do turismo. Estudiosos acadêmicos
do turismo têm respondido à questão do componente sexual e eró-
tico dessa atividade, embora muito poucos estudos façam referência
explícita à sexualidade corporalizada (mas ver Johnston, 2005; Veijola
e Jokinen, 1994). Adrian Franklin e Mike Crang (2001, p. 5) observam
que esse é “o problema da teoria do turismo e da viagem” e encorajam
investigações sobre as dimensões sensual, corporalizada e performa-
tiva do turismo. Enquanto os estudos do turismo tendem a minimizar
a importância da ligação entre sexualidade e corporalidade, o roman-
ce, o amor heterossexual e os casamentos estão na linha de frente das
mentes criativas do marketing turístico (Ingraham, 1999).
Um dos motivos da ausência do corpo sexualizado e dotado de
gênero do turismo é que, até uma época relativamente recente, essa
área era dominada pelo visualismo, baseada na centralidade da visão

162
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

para os conceitos de modernidade e abstração (Macnaghten e Urry,


2001; Crawshaw e Urry, 1997). Tenho sugerido, juntamente com ou-
tros pesquisadores (Franklin e Crang, 2001), que os estudos de turis-
mo têm privilegiado o visual e, consequentemente, sido talvez muito
prontamente coniventes com a exclusão de outras experiências cor-
porais do turismo (Johnston, 2001). Não pretendo minar a significân-
cia da visualidade ou dos olhares turísticos. Preocupo-me, porém,
com uma abordagem mais generificada e sexualmente corporalizada
para a pesquisa em turismo.
Os corpos estão se movendo rumo a uma posição mais central
nos estudos do turismo, e os pesquisadores que recorrem a teorias
sociais e culturais vêm prestando mais atenção à ação e experiência
física dos turistas. Observou-se que os acadêmicos desse campo de
estudos não falam de amor com muita frequência (Singh, 2002). Um
número especial do periódico Tourist Studies (2003) trata do relacio-
namento entre o turismo, o corpo, a subjetividade e o espaço. David
Crouch e Luke Desforges (2003, p. 19) observam que “o corpo emerge
como um aspecto central no desenvolvimento das questões culturais
mais amplas nos estudos de turismo que se ocupam de identidade
e poder”. Interessante notar que nenhum dos artigos desse núme-
ro especial trata de corpos sexualizados e dotados de gênero. Cara
Aitchison (1999, 2001, 2003) provê um material de grande utilidade
para os acadêmicos de turismo que se ocupam de gênero e corpo-
ralidade sexualizada. Unindo estudos de turismo, de gênero e teoria
cultural, ela adota uma teorização feminista pós-estrutural e pós-co-
lonial para problematizar a construção do Outro no turismo (Aitchi-
son, 2001). Vincent Del Casino e Stephen Hanna (2000) ocupam-se de
questões de performance, heterossexualidade e espaços de turismo
sexual na Tailândia. Recorrendo a mapas turísticos, os autores con-
sideram como várias representações podem normalizar e simultane-
amente desafiar as práticas de naturalização da heterossexualidade,
do trabalho sexual e do turismo.
Em outro trabalho eu escrevi sobre o crescimento do turismo
queer e da maior visibilidade de lésbicas e gays enquanto consumi-
dores (Johnston, 2005). O turismo queer tem motivado um turbilhão
na atenção de críticos e pesquisadores que reconhecem e analisam
gênero e sexualidade como construtos culturais decisivos na cons-
trução social de lugar, espaço e paisagem (ver Binnie, 2004; Puar,
2002a, 2002b, 2002c; Richardson, 2005).
As teorias críticas da sociedade têm sido cruciais ao entendi-
mento das paisagens de lazer como geografias sociais e culturais da

163
imaginação (Aitchison, 1999). Gillian Rose (1993, p. 89) afirma que
“seja escrita ou pintada, espontânea ou construída, os significados de
uma paisagem apelam a códigos culturais da sociedade para a qual
ela foi criada”. As novas geografias culturais enfatizam que corpos “di-
ferentemente engajados e empoderados, apropriam-se e contestam
suas paisagens” de diferentes maneiras (Bender, 1993, p. 17).

As paisagens são, portanto, polissêmicas, e não tanto


artefatos em processo de construção e reconstrução...
A paisagem nunca é inerte, as pessoas engajam-se nela,
retrabalham-na e contestam-na. Ela faz parte da manei-
ra com que as identidades são criadas e disputadas, seja
como indivíduos, como grupos ou como estados-nações.
(Bender, 1993, p. 3)

Para muitos turistas matrimoniais, a Nova Zelândia é sinônimo


de turismo “natural”. O conselho de turismo do país vende-o como
“100% puro”, e promove a reputação da nação como um dos princi-
pais destinos turísticos “naturais” do mundo, com fartas oportunida-
des de “maravilhamento” (http://www.purenz.com/; Cloke e Perkins,
1998). Espaços de natureza e vastidão são com frequência lugares
propícios à expressão de formas muito convencionais de heterosse-
xualidade (Phillips, 1995; Woodward, 1998, 2000). No material em-
pírico deste artigo, sugiro que o turismo matrimonial desempenha
um papel decisivo para ajudar a construir os espaços da natureza da
Nova Zelândia como 100% puros, naturais e heterossexuais.
Este artigo recorre a um material coletado de uma variedade de
diferentes fontes. Como mencionado anteriormente, recorri primei-
ramente a um documentário de televisão chamado I Do Down-Un-
der, exibido na Nova Zelândia em 5 de abril de 2004. O documentário
acompanha Vanessa Leeming, diretora da Cashmere Heights Wed-
dings, ao longo de uma semana do mês de fevereiro de 2004. O docu-
mentário é um exame aprofundado do planejamento e dos rituais de
cinco casamentos. Os casais retratados são provenientes da Holanda,
dos Estados Unidos, da Alemanha, do Reino Unido e do Japão. Os es-
pectadores são informados sobre a idade do casal mais jovem (início
da casa dos 20 anos) e eu calculo que o turista matrimonial mais ve-
lho exibido no programa estaria no final da casa dos 30 ou início da
dos 40 anos. Entrevistas feitas posteriormente com agentes de turis-
mo confirmaram que a idade média dos turistas matrimoniais é de
aproximadamente 30 anos. Agentes de turismo também estimaram
que 60% de seus clientes vêm do Japão, enquanto 40% tendem a ser

164
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

provenientes dos países europeus ou dos Estados Unidos. O docu-


mentário, porém, se concentra mais nos turistas europeus e estadu-
nidenses do que nos japoneses.
A segunda fonte de material a que este artigo recorre envolve
entrevistas semiestruturadas com funcionários de três empresas de
turismo matrimonial de Christchurch e observações participantes
no Festival Anual Flores e Romance de Christchurch de 2006 (ver
www.festivalofflowers.co.nz). Christchurch é uma importante sede
de turismo matrimonial, pois o ex-vigário de Fendalton (um subúr-
bio da cidade) — o cônego Bob Lowe — foi o primeiro a promover
casamentos de turistas japoneses nos anos 1970. Essa primeira ini-
ciativa encorajou o surgimento de uma indústria de turismo matri-
monial baseada naquela cidade (mas que desde então se expandiu
para toda a Nova Zelândia). Quatro pessoas entrevistadas foram ca-
pazes de relatar-me suas próprias histórias de casamento turístico, e
também fornecer material promocional de turismo matrimonial (fo-
lhetos, portfólios acetinados e links para suas páginas da web), além
de comentar a produção da TVNZ já mencionada, a qual constitui a
principal fonte de dados deste artigo. As narrativas dos entrevistados,
as observações participantes, os folhetos, sites e portfólios das em-
presas confirmam que o documentário de televisão reflete discursos
dominantes do turismo matrimonial na Nova Zelândia.

100% PURO: NATUREZA E


HETEROSSEXUALIDADE

Todos os casais que participaram do documentário I Do Down-Under


travaram conhecimento das paisagens da Nova Zelândia mediante
representações discursivas como filmes, programas de televisão, sites
e livros. Quando lhes perguntaram por que haviam escolhido a Nova
Zelândia para suas cerimônias de casamento, Arianne e Sebastiaan,
na Holanda, comentaram:

Arianne: Nós viemos para a Nova Zelândia porque a vi-


mos muitas vezes na televisão e no cinema, por isso pen-
samos que era um país lindo de se visitar.

Sebastiaan: Também vimos muito sobre ela no Discovery


Channel, por anos e anos. (TVNZ, 2004)

165
Klaus e Petra, da Alemanha, expressam imaginações discursi-
vas semelhantes acerca da paisagem da Nova Zelândia:

Klaus: Acho que ouvi falar pela primeira vez deste país
quando era menino, num canal de televisão em que ha-
via um documentário sobre os fetos arborescentes daqui
e diziam que eles eram especiais na Nova Zelândia. Não
se pode vê-los em nenhum outro lugar do mundo. Então,
eu vi isso e quis vir para a Nova Zelândia. É como um so-
nho.

Petra: Eu também queria vir para a Nova Zelândia por


causa da beleza do meio ambiente. A natureza intocada
e preservada, e isso é algo que não se tem na Europa, na
Alemanha. (TVNZ, 2004)

Gavin e Kristine, um casal do Reino Unido, reforçam a ideia de


que a Nova Zelândia é um lugar exótico e extraordinário para reali-
zar seu casamento. “É um lugar diferente, não é? É um lugar aonde
sempre quisemos ir — para a Nova Zelândia” (TVNZ, 2004). De modo
semelhante, Han e Christine, dos Estados Unidos, observam: “o ce-
nário deste casamento [o Monte Cook] é mais extraordinário do que
os dos casamentos de qualquer um dos meus amigos” (TVNZ, 2004).
Enquanto Han e Christine dirigem através das encostas dos Alpes do
Sul rumo ao Monte Cook para se casarem, Han compara diferentes
lugares. “Sidney, Tóquio, Chicago, Nova York. São cidades que têm as
mesmas coisas. Você vem para cá e é diferente, é exótico. É por isso
que eu gosto daqui” (TVNZ, 2004).
A construção discursiva da Nova Zelândia como um lugar ima-
culado, natural, exótico e puro é lugar-comum e rigorosamente pro-
movido pelo discurso do marketing turístico. O site oficial do turismo
neozelandês, “Pure New Zealand”, contém um vídeo exibindo seis
paisagens “100%”: assombro 100% puro, maravilha 100% pura, di-
versão 100% pura, acolhida 100% pura, prazer 100% puro, liberdade
100% pura (http://www.newzealand.com/ travel/souvenirs/video-li-
brary/super-tvc/supertvc_home.cfm).
Em cada uma das “paisagens 100% puras”, jovens pares de ho-
mens e mulheres brancos europeus são exibidos interagindo com a
“natureza” e envolvendo-se romanticamente entre si. Em quatro des-
sas paisagens eles estão “a sós” na Nova Zelândia. Considere-se o se-
guinte texto de um site turístico neozelandês:

166
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

Mergulhe na assombrosa grandiosidade do cenário da


Nova Zelândia e experimente um assombro que jamais
sentiu. A beleza intocada da Nova Zelândia estende-se de
norte a sul e de costa a costa, de picos nevados a fiordes
escarpados, de cachoeiras espetaculares a geleiras e ao
mar sem fim... O espetacular Milford Sound, na Ilha Sul, é
um símbolo da experiência cênica da Nova Zelândia: en-
cravado entre os altos penhascos do Fiordland, ele é um
paraíso intocado de beleza mística e inigualável. (http://
www.newzealand.com/travel/souvenirs/video-library/
supertvc/super-tvc_home.cfm)

Palavras como “beleza primordial”, “ancestral”, “intocado”, “li-


bertação” e “tranquilidade total” aparecem com fartura em todo o
site. Nesses espaços naturais remotos e belos, casais cavalgam pela
praia, navegam iates junto às cachoeiras do Fiordland, caminham
por entre as árvores das florestas nativas e afagam-nas com carinho,
esquiam nas montanhas nevadas e pernoitam em chalés isolados à
beira de rios. Casais tocam a paisagem e se tocam nestas promoções
do turismo. Eles parecem felizes, animados, contentes e sexualmente
estimulados. Essas várias expressões de heterossexualidade e gênero
são consideradas “morais” e normais, e a natureza bravia e exótica da
Nova Zelândia torna-se um lugar de amor e romance. Os sites de tu-
rismo matrimonial adotam tais discursos para reforçar a alegação de
que um casamento na Nova Zelândia é romance 100% puro. Quanto
mais “exóticas” ou “naturais” as paisagens apresentadas, mais sedu-
toras elas são para turistas que, por muitos motivos, buscam “outras”
experiências (MacCannell, 1999; Shields, 1991; Urry, 1990).
Eu perguntei a um agente de turismo matrimonial, que estava
no ramo desde 1987, o que ele pensava da campanha de marketing da
Nova Zelândia 100% pura.

Lynda: Funciona bem, aquela campanha de marketing


do 100% puro, não é? Existe alguma ligação entre pessoas
que desejam estar num ambiente puro para iniciar suas
novas vidas juntos?

Aaron: Sim, e tem conotações de segurança. Um lugar


puro é puro em pensamentos, ele será um lugar acolhe-
dor... A palavra puro é um vocábulo magnífico, porque
se traduz unicamente numa, hum, limpeza excepcional.
A tradução japonesa para ela, agora eu esqueci, mas a

167
tradução japonesa de puro contém umas seis palavras,
mas na verdade significa “aberto a você”, im-, imaculado
ou impoluto. Mas também na nossa [pākehā/europeu ou
neozelandês “branco”], em nossas atitudes, nós de certa
forma vemos o contrário de sujo como puro. Puro é sem-
pre bom. (entrevista individual, 15 de fevereiro de 2006, a
ênfase em itálico é do original)

Significativamente, Aaron adota sua interpretação de uma com-


preensão japonesa de “puro” para fazer conexões entre a natureza e
os relacionamentos heterossexuais. Em comum com outros agentes
de turismo matrimonial, ele fez comentário sobre vender uma ima-
gem “limpa e verde” da Nova Zelândia para os clientes de seu ramo
de atividade. Ele se apropria de seu entendimento japonês de pureza
para estabelecer elos com um entendimento pākehā (ocidental) de
puro — o qual significa não sujo. Sujeira, ou impureza, pode provocar
ansiedade ou desagrado naqueles que se identificam com determi-
nada geografia moral como a dos espaços de amor romântico (Cresswell,
2005).
Se adotarmos o argumento de Hubbard (2000), essas paisagens
(“reais” e imaginadas) são moralmente aceitáveis e cruciais para defi-
nir heteronormatividade, turismo e natureza. As identidades sexuais
são imbuídas de valores morais que encorajam e normalizam a cria-
ção de casais heterossexuais idealizados como “puros”, assim como
um lugar — a Nova Zelândia. Essas expressões de heterossexualidade
estão “em seu lugar” nas “paisagens naturais” da Nova Zelândia, e não
são transgredidas nem contestadas (Cresswell, 2005).
A noção de 100% puro tem uma ressonância particular em rela-
ção a construções do amor heterossexual. As feministas têm discuti-
do os significados do amor romântico, com enfoque na relação entre
romance, emoção, atuação feminina e poder no contexto do amor
heterossexual (Jackson, 1999; Langford, 1999). O amor romântico ser-
ve para “validar a atividade sexual moral, estética e emocionalmente”
(Jackson, 1999, p. 103) e pode ajudar a aliviar temores relacionados
à exploração sexual e emocional. O poder transformador do amor é
comparável ao poder transformador de ser um turista; posto de ma-
neira simples, de superar a mundanidade e as rotinas do dia a dia.

Daí o poder transformador do amor (romântico), sua ca-


pacidade de transformar sapos em príncipes. Um dos ape-
los mais óbvios da ficção romântica é que ela capacita os
leitores a reviver a excitação da paixão romântica sem terem

168
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

de se confrontar com seu desbotamento e rotinização.


Na vida real, nós com muita frequência descobrimos
que nosso príncipe era apenas um sapo, afinal. (Jackson,
1999, 116)

O que opera aqui é um sistema discursivo que produz e regula


identidades sexuais de corpos e lugares. Judith Butler (1990, p. 151)
refere-se a esse sistema regulador dominante como a “matriz hete-
rossexual”, ou seja, “aquele crivo de inteligibilidade cultural através
do qual corpos, gêneros e desejos são naturalizados”. Os discursos
dominantes da heterossexualidade organizam claramente esses es-
paços naturais dos casamentos turísticos, como mostra a próxima
seção.

A SÓS NA NATUREZA

Quando a noiva e o noivo se juntam num lugar “exótico” e “pri-


mitivo” da Oceania, a heterossexualidade é envolvida pela natureza,
e a natureza pela heterossexualidade. O destino da viagem de casa-
mento entrelaça a sexualidade com uma apreciação sensorial da pai-
sagem. O casamento, que é geralmente seguido de uma lua-de-mel,
expande a emoção, erótica e exótica, entre homem e mulher para as
paisagens da Nova Zelândia.
Ao isolar o casal, o destino turístico do casamento torna-o sig-
nificativo unicamente para este. Um casamento longe da família e
dos amigos pode escapar às perversões polimorfas que se encontram
latentes no cerimonial, tanto quanto no enquadramento do casal pe-
los juízes de paz e pelo estado. Em certo sentido, então, a paisagem da
Nova Zelândia assume um papel geralmente ocupado pela família e
os amigos. A mudança de pessoas visitando a festa de núpcias do ca-
sal para este visitando “lugares de matrimônio” sugere que o consu-
mo de um meio desconhecido torna-se cada vez mais central para a
produção da privacidade nupcial. Casais que ficam a sós na natureza
são capazes de distinguir seus casamentos de outros laços afetivos, e
elevá-los acima destes. A função e o significado dos casamentos têm
mudado de acordo com diferentes tempos e espaços. Elizabeth Freeman
(2002) esboça uma história dos casamentos e observa que o enlace
matrimonial foi outrora um meio de subordinar a relação de um ca-
sal a uma estrutura social mais ampla. Hoje ele é “cada vez mais um

169
meio de separar um casal de laços e obrigações mais abrangentes”
(Freeman, 2002, p. 11).
Retornando ao documentário de televisão neozelandês I Do
Down-Under, o casamento de Arianne e Sebastiaan, segundo obser-
va Leeming, ocorre “numa praia isolada da costa oeste [Punakaiki] e
possibilita uma sensação real da Nova Zelândia durante toda, toda
a cerimônia, pois era isso que o casal queria — um verdadeiro casa-
mento neozelandês” (TVNZ, 2004). Leeming conta-nos que: “legal-
mente, eles não podem se casar em dois países diferentes. Por isso
eles escolheram fazer uma cerimônia que reflita seu relacionamento,
mais do que uma cerimônia de relacionamento” (TVNZ, 2004). A vida
conjugal e os casamentos têm sido regulados por uma sequência so-
breposta de instituições e diferentes estados. O controle do Estado
sobre o casamento é relativamente recente e por isso o enlace pode
ser entendido como mais do que simplesmente um ritual estatal.
Para o casamento de Arianne e Sebastiaan, Leeming providen-
ciou cabeleireiros, maquiagem, flores, fotógrafos, um celebrante e
acomodação. Arianne traja um vestido branco esvoaçante e Sebastiaan,
um terno. Eles caminham descalços na areia da praia. O espaço natu-
ral de seu casamento — uma praia deserta — é inteiramente assimi-
lado pelo casal, pois seus corpos são regulados por convenções tanto
de casamento quanto de vestimentas de praia. A praia deserta reforça
a ideia do casamento neozelandês como remoto, exótico, puro e iso-
lado. O casal escolheu a natureza para testemunhar seu enlace em
vez da família e dos amigos. Sebastiaan e Arianne explicam:

Sebastiaan: Nosso casamento aqui é um grande, grande


segredo. A ideia era sair para algum lugar e nos casar-
mos, depois voltar e contar para nossas famílias. Este
casamento neozelandês é prático porque nós dois temos
mães que querem se envolver.

Arianne: Minha mãe acha que estamos na Grécia.

Sebastiaan: A minha acha que estamos na Itália. (TVNZ,


2004, a ênfase é do original)

É útil lembrar que o arbítrio de um casal sobre seu próprio casa-


mento é produto da institucionalização de uma série de práticas sociais,
rituais e leis. O que parece normal ou natural para casamentos heterosse-
xuais (não ter a família e os amigos presentes nos casamentos turísticos

170
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

na Nova Zelândia) tem sido filtrado e modificado, como observa Freeman


(2002, p. 11):

Antes da cristianização da Europa, pais, famílias e costu-


mes comunitários regulamentavam o casamento, depois
vieram os sacerdotes e a igreja; posteriormente, os ma-
gistrados e a lei civil, e agora ele se curva a uma indústria
comercial, de modo que a autoridade do casal sobre seu
próprio casamento cresce e diminui paralelamente a es-
sas instituições.

O casal, Leeming, um celebrante e um fotógrafo desempenham


seus papéis diversificados na cerimônia de casamento numa praia
isolada da costa oeste, sob um céu perfeitamente azul. As juras são
feitas, os anéis são trocados e espoca-se o champanhe. Os espectado-
res do documentário são presenteados com uma tomada dos recém-
casados caminhando descalços, de braços dados, pela praia, enquan-
to o sol do entardecer mergulha além do horizonte aquático cintilan-
te. Arianne confirma: “isso é exatamente o que nós queríamos fazer,
sem familiares, só nós dois num lugar aconchegante” (TVNZ, 2004).
Ironicamente, e sem que o casal os mencione nem os espectadores os
vejam, devia haver várias outras pessoas na cerimônia, que estavam
envolvidas na filmagem.
Fugir para um tipo de natureza mais domesticada era o desejo
do casal britânico Gavin Luke e Kristine Wilson. Kristine expressa os
“problemas” de um casamento realizado em casa:

Estamos longe de todos aqueles contratempos do plane-


jamento, todo aquele planejamento necessário para ir a
uma igreja perto de casa e decidir quem convidar, quem
não convidar, pessoas que a gente não vê há anos e anos
e anos, e pessoas de quem a gente nem gosta muito, mas
pensa: ah, eu tenho de convidá-los. Aqui nós deixamos
isso para trás e podemos simplesmente estar juntos e
longe daquilo tudo, e isso é ótimo. (TVNZ, 2004).

Um sacerdote ministra a cerimônia para Kristine e Gavin numa


igreja não muito longe da cidade de Christchurch. Um subúrbio cos-
teiro, Sumner, é o escolhido por sua vista para o mar e o desejo de ter
fotos de casamento tiradas na praia. A cerimônia religiosa é celebra-
da tanto em te reo māori quanto em pākehā (idiomas maori e inglês),
de modo a assegurar que se trata de um casamento exótico, mas com

171
certa familiaridade. Os noivos se casam sem o “agito” da presença dos
familiares e amigos.
Depois da cerimônia, o casal, ainda trajando as vestes de casa-
mento tradicionais, passeia de canoa no rio Avon. Resíduos coloniais
tornam esse enlace turístico inteligível tanto como “em casa” quanto
“longe de casa”. A paisagem está inscrita no imperialismo britânico
graças aos topônimos — Christchurch, Sumner, Avon. A natureza ali é
domesticada e controlada, mas ainda exótica. As práticas discursivas
e o imaginário da colonização fazem com que, para Kristine e Gavin,
aquele espaço natural se pareça com o lar. Estão ambos “em seu lu-
gar” e confortavelmente “fora de lugar” (Cresswell, 2005). A praia e o
rio tornam-se suas testemunhas, familiares e amigos.
As fotografias de casamento são elevadas a um alto patamar
de importância e, no dia seguinte, Kristine e Gavin exultaram com
seu álbum fotográfico novinho em folha. A paisagem (e suas várias
permutas fotográficas) funciona de modo a legitimar e naturalizar o
casamento (Crang, 1999).
Han e Christine, do Reino Unido, observam que seus amigos sen-
tem inveja do que eles são capazes de fazer na Nova Zelândia e que todos
recomendaram que eles “tirassem muitas fotos”. Enquanto lhe faziam o
penteado, Christine é indagada sobre como era estar longe da família e
dos amigos: “Acho que estar sem a família e os amigos mais íntimos num
dia tão especial significa que algo está faltando. Ao mesmo tempo, nós
estamos fazendo isso do jeito que queremos” (TVNZ, 2004).
Um testemunho online no site de Leeming reforça a ideia de
fuga e segredo:

Todos os nossos amigos e parentes ficaram surpresos


quando souberam do nosso casamento. Eles adoraram
demais ver as nossas fotos e fizeram muitas, muitas per-
guntas sobre a cerimônia. Eles ficaram muito curiosos,
pois foi algo muito especial e tão diferente do casamen-
to chinês tradicional (Sharron e Frankie, Hong Kong).
(http://www.chc-weddings.co.nz/comments.shtml)

O único casal do documentário a levar a família para a Nova


Zelândia foi Iia e Shinche, de Tóquio. Eles estavam com um grupo
de nove pessoas e com seus próprios organizadores matrimoniais. As
ideias de estar “longe” e “fugir para a natureza romântica” permea-
vam seu desejo de um casamento neozelandês. A equipe do docu-
mentário entrevistou Setsuka Yajima, gerente de marketing da Tourism
New Zealand no Japão.

172
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

Em primeiro lugar, a Nova Zelândia é vista como um des-


tino turístico romântico e, em segundo, ela é isolada...
por isso nós podemos relaxar, nada de stress aqui. Quan-
do fazemos um casamento no Japão, temos stress aos
montes, e também o custo dos casamentos aqui é muito
mais barato do que o dos casamentos no Japão. A Nova
Zelândia é um lugar romântico e tem várias igrejas ao es-
tilo inglês. (TVNZ 2004)

O casamento de Iia e Shinche foi realizado no lago Tekapo, na


Igreja do Bom Pastor [Church of the Good Sheppard]. O casamento
na igreja é um pedido frequente dos casais japoneses, em lugar de
cerimônias nas montanhas, geleiras ou praias. Um casamento cristão
no estilo tradicional do Ocidente, que Aaron e sua sócia no ramo do
turismo matrimonial, Stephanie, argumentam ser uma ruptura radi-
cal nas tradições japonesas ligadas ao noivado e ao casamento. Con-
sidere-se o seguinte comercial de casamentos no lago Tekapo:

A Igreja do Bom Pastor, às margens do lago Tekapo, na-


turalmente conquistou os corações de noivas e noivos
do mundo todo. A igreja está localizada a poucos metros
das águas verde-azuladas do lago e proporciona uma vis-
ta espetacular, que será lembrada pelos visitantes para o
resto de suas vidas. O interior da igreja combina com o
entorno natural, com seus bancos de madeira, seu teto
de vigas à mostra e uma grande janela atrás do altar, que
fornece uma vista romântica do lago e das montanhas no
horizonte. Apenas ministros da religião podem celebrar
casamentos nesta igreja. (http://www.tekapotourism.
co.nz/weddings.htm)

Para Iia e Shinche, o espaço natural do lago Tekapo é isolado,


romântico e cristão. A igreja, construída com madeira nativa e pedras
locais, é um atrativo famoso e muito fotografado da pequena vila. Os
participantes do casamento podiam ver as águas verde-azuladas do
lago Tekapo enquanto o ministro celebrava a cerimônia. Quando a
comitiva do casamento emerge do templo, outro grupo de turistas
japoneses chega para fotografar a Igreja do Bom Pastor. Iia e Shinche
ficam maravilhados com seus novos (mas desconhecidos) convida-
dos conterrâneos. Eles são bajulados e fotografados em sua paisagem
romântica livre de stress (e longe de casa).
Estar perto da natureza, e em meio a ela, é visto como um fator de
aprimoramento do bem-estar social, reduz o stress de um casamento

173
“tradicional” e permite que os casais tenham tempo para se compro-
meter integralmente um com o outro (mas não, necessariamente,
com as famílias e amigos um do outro). Casar-se no que se tornou um
dos mais valorizados espaços naturais do mundo — a Nova Zelândia
— implica um total comprometimento com a relação que contrasta
com o stress e a agitação dos casamentos em casa, com a família. A
ideia de natureza é usada para apoiar a heteronormatividade e pos-
sibilitar uma defesa das relações de poder existentes na construção e
realização dos relacionamentos sexuais (Little, 2003).
Em resumo, o turismo matrimonial separa o casal de sua rede
de relacionamentos sociais anteriores, glorifica seu relacionamen-
to mútuo acima dos seus laços com os pais, estendido à família, aos
amigos e a outros amantes, passados e presentes. No lugar destes, a
natureza se apresenta. Fugir para um casamento turístico na Nova
Zelândia romantiza tanto a natureza quanto a heterossexualidade.
O casal, como as paisagens, passa a ser considerado puro, natural,
excitante e romanticamente “destinado um ao outro”. Casamentos
turísticos nos espaços naturais da Nova Zelândia fazem com que a
heterossexualidade pareça natural, inevitável e sagrada.

CONCLUSÕES

Este artigo buscou explorar a relação constitutiva entre os turis-


tas matrimoniais e as paisagens mediante um exame da heteronor-
matividade, da natureza e do amor romântico. O artigo se desenvolve
a partir de uma preocupação mais ampla no âmbito da pesquisa e da
literatura sobre as geografias da sexualidade, e também de trabalhos
mais recentes acerca dos espaços e subjetividades heterossexuais.
A preocupação central do artigo foi demonstrar como o estudo
da heterossexualidade pode contribuir para um entendimento mais
amplo da relação entre o turismo, as paisagens naturais da Nova Ze-
lândia e a sexualidade. Ao fazer isso, este estudo ocupou-se da arti-
culação entre uma forma particularmente ritualizada de identidade
heterossexual — os casamentos turísticos — e os valores e caracterís-
ticas associados a ela tais quais corporalizados nos espaços naturais.
Essas identidades sexuais são sustentadas e continuamente recriadas
mediante uma série de estratégias e táticas.
Os espaços naturais da Nova Zelândia não são panoramas ino-
centes; ao contrário, eles são apresentados e comercializados como a
natureza por excelência. Cindi Katz sugere que “um simples arranhão

174
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia

em quase qualquer lugar da paisagem transnacional revelará que a


preservação e a restauração facilitam a privatização da natureza e do
espaço, que se tornou um marco do neoliberalismo global” (1998, p.
58). A prática discursiva das paisagens do turismo matrimonial da
Nova Zelândia “convida a uma leitura moral” (Smith, 1997, p. 587). O
que conta como moral é infundido de uma imaginação geográfica “e
permeado de ideologia” (Cresswell, 2005, p. 128).
O artigo desenvolveu ideias sobre a naturalização da heterosse-
xualidade nos espaços de turismo natural. Tomando por base suges-
tões de que a naturalização da heterossexualidade pode assumir dife-
rentes formas em diferentes espaços (Hubbard, 2000; Little, 2003), ele
argumentou que os casamentos turísticos da Nova Zelândia (e suas
várias representações) são construídos como puros, românticos, exó-
ticos e naturais. Ideias e discursos sobre o turismo matrimonial na
Nova Zelândia, em particular, são sustentados pela naturalidade da
heterossexualidade e dos espaços naturais. Casamentos em espaços
naturais remotos e isolados são considerados capazes de acentuar o
bem-estar social e reduzir o stress e a agitação dos casamentos do-
mésticos, com a família. Ideias de natureza são defesas poderosas das
relações de poder existentes na construção e performance dos rela-
cionamentos sexuais. A heterossexualidade e os espaços da natureza
não têm status ontológico ou fixo à parte dos vários atos que consti-
tuem suas realidades. O turismo matrimonial, portanto, é uma lente
útil através da qual focalizar a produção de corpos e espaços heteros-
sexuais. Espero que este artigo exponha possibilidades para outros
estudos críticos sobre heteronormatividade, natureza e naturalidade,
amor romântico e paisagens.

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178
O casamento e o quarto de hóspedes:
explorando a política sexual de
austeridade na Grã-Bretanha
Gavin Brown

RESUMO

A heteronormatividade e a homonormatividade estão ligadas. A mudança


de atitudes sociais em relação à homossexualidade e a criação de novas ho-
monormas influenciam a mudança das normas sociais que giram em tor-
no da heterossexualidade. Quando se estuda a emergente política sexual de
austeridade, é importante considerar como as atitudes sociais normativas,
tanto de relações hétero quanto homossexuais, se encontram em mudança
no período atual. Este artigo, com esse propósito, examina duas recentes me-
didas ligadas à política social adotadas no Reino Unido. Interroga os debates
acerca da “igualdade matrimonial” para casais de mesmo sexo, em conjunto
com recentes mudanças nos benefícios sociais, particularmente o “Bedroom
Tax” [imposto do dormitório], que penaliza locatários de moradias sociais
que recebem subsídios de habitação, caso se julgue que eles residem em
acomodações que dispõem de mais quartos do que necessitam. Enquanto
a igualdade matrimonial (re)privilegia certos tipos de casal e de economia
doméstica, ataques simultâneos ao sistema de previdência afetam de ma-
neira desproporcional as pessoas solteiras e os casais cujos relacionamentos
não se enquadram nos valores normativos reconfigurados pela austeridade
na Grã-Bretanha. O artigo se conclui com uma reflexão acerca do que essas
mudanças revelam a respeito da política sexual da austeridade e do papel
que os principais grupos de defesa de lésbicas e gays desempenham no sen-
tido de influenciá-las.

Palavras-chave: homonormatividade; austeridade; casamento entre pessoas


do mesmo sexo; Bedroom Tax; Inglaterra e País de Gales.
INTRODUÇÃO

H
eteronormatividade e homonormatividade estão co-
nectadas. Com muita frequência, comentadores con-
centram-se no modo como heteronormas determinam
expressões (e atitudes) dominantes de homossexualidade. Relações
que fluem em outra direção tendem a ser desconsideradas. No entan-
to, a mudança de atitudes sociais em relação à homossexualidade e a
criação de novas homonormas influenciam a mudança das normas
sociais em torno da heterossexualidade. Estudar a emergente política
sexual de austeridade é importante para se considerar como atitudes
sociais normativas, tanto as que dizem respeito a relacionamentos
hétero quanto homossexuais, vêm mudando no período atual. Com
esse propósito, este breve estudo examina duas recentes medidas de
política social adotadas no Reino Unido. Ele interroga os debates so-
bre “igualdade matrimonial” para casais do mesmo sexo juntamente
com as recentes mudanças nos benefícios sociais, particularmente o
“Bedroom Tax” [imposto do dormitório], que penaliza locatários de
moradias sociais que recebem subsídios de habitação, caso se julgue
que eles residem em acomodações que dispõem de mais quartos do
que necessitam. Nesse processo, sugiro que a linha de separação da
política sexual no Reino Unido foi deslocada de sua localização (ini-
cial) ao longo do eixo binário homo/hétero.
Desde 2010, o governo de coalizão na Grã-Bretanha vem ado-
tando políticas sociais e econômicas que solaparam os recursos da
previdência estatal, terceirizando a prestação de serviços essenciais
para contratadores privados e encorajando os cidadãos que dispõem
de recursos a assumir a responsabilidade por seu próprio bem-estar
no setor privado. Políticos atiçaram o pânico moral em relação aos
“parasitas da previdência”, agravando o aviltamento dos desempre-
gados, dos que passam por longos períodos de invalidez e dos traba-
lhadores pobres (Tyler, 2013). Ao mesmo tempo em que essas políti-
cas economicamente conservadoras ganhavam terreno, continuava
a haver uma liberalização das atitudes sociais em relação ao homos-
sexualismo na Grã-Bretanha, incluindo a adoção do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, em 2014. No censo Atitudes Sociais Britâni-
cas de 2013 (BSA30), quase metade dos entrevistados (46,7%) decla-
raram acreditar que “as relações sexuais entre dois adultos do mesmo
sexo não são reprováveis de modo algum” e outros 10% afirmaram
que tais relacionamentos eram “raramente reprováveis” (Park et al.,
2013). Este artigo argumenta que, embora essas políticas sociais e

180
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

econômicas não tenham um elo causal, tampouco são meras coin-


cidências. Ele associa recentes ataques movidos contra beneficiários
da previdência na Grã-Bretanha aos debates sobre o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, com a finalidade de refletir sobre como tais
eventos podem estar articulados a uma política sexual de austeridade
mais ampla.
Qualquer teoria da política sexual na atualidade precisa levar
em conta as geografias desiguais de austeridade e cidadania sexual.
Embora possa haver debates comuns ou similares em diferentes con-
textos nacionais, a articulação da política emergente de austeridade é
específica de determinados lugares. Periodicamente, ao longo das úl-
timas duas décadas, houve apelos para que se levasse a sério a mate-
rialidade das classes sociais no âmbito das geografias da sexualidade
(Bell e Binnie, 2000; Binnie, 2011). Numa época de austeridade, isso
é particularmente importante. Valentine e Harris (2014, p. 84) notam
que a rejeição da classe social como categoria de análise produtiva
tem ocorrido “num tempo em que há um rápido crescimento da de-
sigualdade e uma crescente propensão a demonizar os pobres no
discurso político e midiático”. Este artigo examina de que maneira,
à medida que os casais de mesmo sexo que optaram pelo casamento
são incorporados ao mainstream, expressões supostamente “impró-
prias” de relacionamento sexual e íntimo são usadas para justificar
o empobrecimento e a marginalização de outras frações de classe.
Eu questiono se, mais ainda do que antes, o casal economicamente
independente é enaltecido em oposição às famílias que não conse-
guem garantir suas próprias necessidades básicas.

A POLÍTICA SEXUAL DO
NEOLIBERALISMO

Um dos argumentos centrais deste texto é que a dualidade hé-


tero/homossexual vem sendo reformulada na política sexual contem-
porânea. À medida que cada vez mais pessoas LGBTQ são incluídas
no “círculo encantado” (Rubin, 2012) da política sexual normativa, as
vidas íntimas de outras pessoas são denegridas e se tornam abjetas.
Para entender como o casamento de pessoas do mesmo sexo pode ser
usado para disciplinar outras formas de intimidade, é importante pri-
meiramente entender o desenvolvimento de novas formas de “homo-
normatividade” como expressões da política sexual contemporânea.

181
Atitudes sociais, jurídicas e políticas em relação à homossexua-
lidade estão se tornando cada vez mais desiguais e (aparentemente)
polarizadas ao redor do mundo. Enquanto alguns países põem em
prática uma legislação cada vez mais repressiva ou revogam avan-
ços anteriores rumo ao relaxamento de leis antigays, algo próximo
da plena igualdade jurídica para lésbicas e homens homossexuais1
vem sendo alcançado num número crescente de países. Estudiosos já
observam essa tendência há mais de uma década, e muitos deles vêm
debatendo intensamente o porquê de a liberalização das atitudes em
relação à homossexualidade ter ganhado impulso a partir do início
dos anos de 1990 (Duggan, 2002; Richardson, 2005; Weeks, 2007). Es-
sas mudanças foram descritas como novas expressões da “homonor-
matividade” (Duggan, 2002).
Mesmo quando novas leis referentes à igualdade passam a ope-
rar, os efeitos de tais mudanças sociais são frequentemente comple-
xos e contraditórios. Os benefícios dessas mudanças não são sentidos
universalmente, e algumas minorias sexuais e de gênero têm como
resultado certas perdas (materiais e simbólicas). Casais estáveis e de
relacionamento duradouro que dispõem de recursos sociais e econô-
micos para prover o seu bem-estar mútuo são enaltecidos por políticos
de todos os perfis — parece que a vida lésbica e gay foi domesticada.
Quando Duggan (2002, p. 179) definiu pela primeira vez “a
nova homonormatividade”, conceptualizou-a como uma expressão
da política sexual do neoliberalismo. Quando se leva em conta essa
definição, é útil abordar o neoliberalismo não apenas como teoria
econômica, mas também como um modo de governabilidade que
promove a responsabilidade pessoal e também expressões de auto-
nomia individual articuladas predominantemente por meio da “livre

1
Neste contexto, referi-me deliberadamente a “lésbicas e homens homossexuais” (e não
a pessoas “LGBT” ou “LGBTQ”) por diversas razões. Em primeiro lugar, porque acredito
que a dinâmica dos movimentos em prol do reconhecimento jurídico e da igualdade
formal para o público trans no Reino Unido é diversa e distinta daqueles em favor de
lésbicas e gays. Em segundo lugar, embora algumas mudanças legais tenham buscado
enfrentar e tornar ilegal a discriminação baseada na “orientação sexual” (inclusivamente),
debates em torno do “casamento entre pessoas do mesmo sexo” tendem a apresentar-
se de um modo que perpetua a invisibilidade social de pessoas bissexuais. Em outro
momento deste artigo, quando quero me referir de maneira mais geral às minorias
sexuais e de gênero, tendo a usar o acrônimo “LGBTQ” (embora reconheça que este
é contestado e não capta adequadamente algumas minorias sexuais emergentes). Na
medida em que recorro ao termo “queer” neste artigo, uso-o especificamente para me
referir à teoria queer e para correlatar formas de ativismo que são identificadas como
“queer” pelos seus participantes.

182
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

escolha” marquetizada (Weiss, 2011). O estado neoliberal almeja “de-


sonerar(-se de)” vários setores de provisão de seguridade e por isso
tem incorporado (e recompensado) o público LGBTQ capaz de pri-
vatizar sua própria seguridade no âmbito doméstico. Nesse processo,
expressões particulares de “intimidade” foram colocadas no centro
da implementação das políticas sociais. A aproximação a expressões
“apropriadas” de intimidade e carinho (mais do que a identidade
sexual, em si) passou a determinar quem é “reconhecido como um
cidadão propriamente dito, um sujeito jurídico, um beneficiário da
seguridade, um membro de família e uma pessoa coerente e legiti-
mamente ‘casada’” (Sanger e Taylor, 2013, p. 3).
Um dos problemas enfrentados ao se pesquisar a homonorma-
tividade na última década é que ela tende a tomar o neoliberalismo
como algo singular, sem reconhecer a variedade de formas com que
as políticas neoliberais têm atuado em diferentes lugares (Brenner et
al., 2010), nem admitir que outros tipos de relação econômica conti-
nuem a persistir lado a lado com o “neoliberalismo” (Gibson-Graham,
2006). Em um trabalho recente, Rossi (2013) salientou três variações
do capitalismo, com base em diferentes dispositivos ontológicos. Os
três dispositivos ontológicos que ele identifica são: integração, priva-
ção e subsunção. Ele também argumenta que esses dispositivos são
instrumentais em diferentes processos de subjetivação, ajudando a
renovar a crença duradoura e disseminada no capitalismo (mesmo
em tempos de crise) (Rossi, 2013).
A segunda e a terceira ontologias do capitalismo de Rossi (priva-
ção e subsunção) podem ser consideradas, talvez, as mais relevantes
para a minha discussão da política sexual da austeridade. Rossi (2013,
p. 351) salienta que “a categoria da privação é evocativa de uma onto-
logia baseada na soberania associada ao capitalismo, a qual permite
que esse modo de produção aja como uma força soberana e coloni-
zadora no interior da ordem político-econômica existente sob múlti-
plas escalas geográficas”. Essa abordagem está associada à privatiza-
ção de serviços que eram anteriormente públicos (Harvey, 2005). Ela
também pode ser percebida em novos regimes de crédito, débito e a
“financeirização doméstica” (Aalbers, 2008), que se mesclam, de ma-
neiras muito materiais, com a extensão do casamento entre pares do
mesmo sexo. Floyd (2009) argumenta que a união entre pessoas do
mesmo sexo e expressões mais amplas de “homonormatividade” são
exemplos de acumulação por desapropriação precisamente porque
restringem e privatizam as formas de conhecimento, e as infraestru-
turas de devotamento e intimidade que homens gays desenvolveram

183
na condição de “queer commons” [espaços coletivos queer] na déca-
da de 1970. Floyd (2009) pensa primeiramente os “queer commons”
como locais públicos onde pessoas gays e trans encontravam-se em
busca de sexo e criavam contrapúblicos. Tais espaços foram progres-
sivamente privatizados (tanto em termos de propriedade quanto de
função) pela especulação imobiliária. Podemos, também, pensar nas
redes espontâneas de amigos e voluntários que foram criadas para cui-
dar dos enfermos e moribundos nos primeiros anos da pandemia de
AIDS como antigos “queer commons” que progressivamente se profis-
sionalizaram e assumiram o controle da comunidade de usuários. Não
se trata, porém, de uma sugestão de que todos os “queer commons”
tenham sido desapropriados por processos de acumulação capitalista
— alguns deles persistem (ainda que de modo precário) e novos espa-
ços comuns se formaram (ver também Brown, 2009, p. 1505).
Em contraste, o dispositivo da “subsunção” remete à obra de
pensadores (na tradução do marxismo autonomista italiano) que
reinterpretaram “a noção foucaultiana de biopolítica à luz do seu en-
tendimento de capitalismo baseado no conhecimento” (Rossi, 2013,
p. 351). Esses autores teorizaram “a dinâmica do capitalismo contem-
porâneo como impulsionada pela real subsunção da ‘própria vida’”
(Rossi, 2013, p. 351). Para teóricos como Hardt e Negri (2000), isso
“está transformando a própria natureza do capitalismo por meio da
incorporação de conhecimentos, emoções, afetos e qualidades lin-
guísticas ao processo capitalista de produção e socialização” (Ros-
si, 2013, p. 359). A crítica queer com frequência ocupa-se das falhas
das correntes mais assimilacionistas dos movimentos lésbico e gay,
cujas reivindicações amparadas em direitos resultaram na legislação
pela igualdade homonormativa das últimas duas décadas. No entanto,
uma atenção ao processo de subsunção sugere que os aspectos mais
dionisíacos das subculturas gays masculinas também têm sido recu-
perados de várias formas. A apropriação do “trabalho vivo” em forma
de conhecimento, informação, imagens e relações sociais tornou-se
essencial para a reprodução do capitalismo contemporâneo (Hardt e
Negri, 2009, p. 142-144). Aqui podemos pensar nas maneiras comple-
xas com que os movimentos sociais de lésbicas e gays que reivindicam
“igualdade” (e, até certo ponto, também as críticas queer a esses movi-
mentos) foram utilizados para desenvolver novas formas de controle
biopolítico (o que, eu sugiro, também afeta a população heterossexual)
e novos mercados para o consumo. No contexto deste artigo, podemos
pensar em novos bens e serviços associados ao mercado voltado a ca-
sais do mesmo sexo (mas há muitos outros exemplos).

184
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

Quando se começa a pensar sobre a política sexual da austeri-


dade, é importante lembrar que a homonormatividade não é apenas
um projeto do estado nacional e dos empreendimentos corporativos.
A validação das expressões particulares da vida gay e lésbica “respei-
tável” (e a exclusão das outras) é também reproduzida nas atividades
dos grupos de defesa dos homossexuais, dos serviços de saúde e dos
órgãos de atendimento dos governos municipais (entre outros). A
luta por “igualdade” de algumas lésbicas e gays tende a menosprezar
e ignorar a pluralidade das comunidades LGBTQ (Richardson, 2005).
Isso é importante, porém, mais do que (simplesmente) pensar sobre
como a nova homonormatividade produz novas cisões entre mino-
rias sexuais e de gênero, é também importante examinar como os va-
lores homonormativos podem redefinir normas sociais em torno de
todos os tipos de sexualidade e relacionamento.

DEBATENDO A IGUALDADE DE MATRIMÔNIO


(NA INGLATERRA E NO PAÍS DE GALES)

No dia 17 de julho de 2013, a união entre pessoas do mesmo


sexo tornou-se legal na Inglaterra e no País de Gales, quando o Mar-
riage (Same Sex Couples) Act [Lei do Matrimônio (Casais do mesmo
sexo)] recebeu a sanção real e entrou em vigor. A proposta de per-
mitir casamentos entre pessoas do mesmo sexo no Reino Unido (em
partes dele) teve o apoio das lideranças de todos os três principais
partidos no parlamento. No entanto, deve-se notar que, embora essa
legislação permita que lésbicas e gays se casem entre si, ela não ofe-
rece plena igualdade jurídica entre uniões do mesmo sexo e de sexos
opostos — por exemplo, organizações religiosas precisam expressar
ativamente sua opção de oficiar tais matrimônios, mas as Igrejas es-
tabelecidas na Inglaterra e no País de Gales são impedidas por lei de
fazer isso atualmente.2

2
Há cinco outras maneiras, relativamente pequenas, pelas quais a nova legislação
falha em oferecer plena igualdade jurídica. Estas incluem: diferenças nas bases para a
anulação de um casamento; custos adicionais que incidem no registro de instalações
religiosas aptas a oficiar casamentos entre pessoas do mesmo sexo; algumas limitações
aos direitos de pensão e herança de cônjuges homossexuais viúvos; desigualdades no
que diz respeito ao estado civil de algumas pessoas transexuais; a continuidade do
impedimento de uniões civis entre parceiros do mesmo sexo.

185
Embora os debates parlamentares sobre esse projeto de lei te-
nham provocado algumas declarações virulentas de cunho homofó-
bico por parte de uma pequena minoria de políticos, a legislação pas-
sou por ambas as casas do Parlamento com maiorias muito confor-
táveis. Ao longo do processo, a votação revelou alguns padrões muito
elucidativos — por exemplo, enquanto alguns parlamentares invoca-
vam sua ética cristã para se oporem à legislação, todos os membros
do parlamento de religião muçulmana votaram a favor do casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
Porém, meu interesse aqui reside não tanto na oposição ao ca-
samento entre pessoas do mesmo sexo quanto em alguns argumen-
tos mobilizados para defendê-lo, pois creio que estes revelam muito
mais sobre os pressupostos e expectativas que sustentam a política
sexual contemporânea no Reino Unido. Quando da submissão da
legislação proposta à consulta governamental pelas organizações de
defesa de lésbicas e gays, Stonewall (2012, p. 5) argumentou:

O Relatório de Impacto do Governo corretamente obser-


va que muitos casais desejarão realizar celebrações e ce-
rimônias de casamento. Consequentemente, a extensão
do casamento aos casais do mesmo sexo proporcionará
um estímulo econômico positivo, não apenas para as
empresas que fornecem serviços a tais eventos, mas tam-
bém para o Tesouro, mediante a arrecadação de Imposto
de Valor Agregado (VAT).

O direito igualitário de casamento para casais do mesmo sexo


foi apresentado como bom para os negócios e a economia nacional.
Num artigo publicado pela Pink News (31 de maio de 2013), a
ministra conservadora das igualdades, a parlamentar Helen Grant,
argumentou que o direito igualitário ao matrimônio iria “fortalecer o
casamento, assegurando que ele continue tão relevante para a nossa
sociedade quanto sempre foi”. As críticas queer e feministas ao casa-
mento são bem conhecidas: o matrimônio legitima a “família”, que é
concebida para ser responsável, integrada e financeiramente viável
(Taylor, 2013a). Kandaswamy (2008) e outros, por sua vez, argumen-
taram que os benefícios do casamento entre pessoas do mesmo sexo
são “fomentados por desigualdades existentes” (Taylor, 2013a, p. 19).
A linguagem da igualdade de direitos matrimoniais despoliti-
za as desigualdades econômicas, ressituando-as no âmbito da esfera
privada do lar. Recorrendo à farta tradição de estudos sobre geografia
feminista, Domosh (1998) observou que o lar e a esfera doméstica são

186
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

um rico território para estudar como as relações sociais são espacia-


lizadas nas vidas íntimas das pessoas. Tais espaços revelam muito so-
bre a política sexual de uma sociedade e seu entendimento do papel
da família (Oswin, 2010) e do lugar (multiescalar) da reprodução so-
cial (Blunt, 2005; Mitchell et al., 2004). Estudos pioneiros em geogra-
fia da sexualidade apresentaram “o lar da família” como um espaço
contraditório para membros de minorias sexuais e de gênero — um
lugar saturado de silêncios, mentiras e ameaças de violências (Johns-
ton e Valentine, 1995). Trabalhos mais recentes examinaram como as
mudanças nas dinâmicas familiares, que oferecem ambientes mais
compreensivos para adolescentes lésbicas e gays, podem ter o efeito
de modificar a relação ideológica entre o lar da família e as vidas das
minorias sexuais (Gorman-Murray, 2008). Na verdade, as maneiras
pelas quais pessoas lésbicas e gays apresentam suas identidades nos
ambientes domésticos podem desempenhar um papel poderoso na
normalização dos relacionamentos de mesmo sexo perante familia-
res, amigos e vizinhos (Gorman-Murray, 2007). Tanto a reconstrução
dos lares de casais do mesmo sexo (mediante a “igualdade matrimo-
nial”) quanto, como examinarei em seguida, a destituição de alguns
beneficiários da previdência (por meio do “Bedroom Tax”) demons-
tram que o lar é um local através do qual “geopolíticas íntimas” de-
senrolam-se e são contestadas (Brickell, 2012, 2014).
Muitos dos temas debatidos em relação ao casamento entre
pessoas do mesmo sexo não são novos, e seus efeitos já foram vistos
na Grã-Bretanha com a introdução da União Civil para casais do mes-
mo sexo, em 2005. Browne (2011) notou que, como resultado do Civil
Partnership Act [Lei da União Civil], todos os casais de mesmo sexo
que coabitam tornaram-se reconhecidos perante a lei como parceiros
para fins de avaliação de sua qualificação para obter certos benefícios
previdenciários. Muitos casais que pela primeira vez passaram a ser
“classificados como ‘coabitantes como parceiros civis’ com propósitos
previdenciários” (Browne, 2011, p. 101) tiveram como resultado des-
vantagens financeiras. Esse movimento representa uma significativa
mudança de ênfase na operação do sistema previdenciário britânico.
Antes de 2005, o sistema previdenciário atribuía ao casal heterossexu-
al (e seus filhos) a posição central (Wilkinson, 2013). Como resultado,
algumas famílias não eram reconhecidas como tais. Paradoxalmente,
em consequência de seus pressupostos heteronormativos, o sistema
previdenciário podia beneficiar alguns casais de mesmo sexo, permi-
tindo-lhes que solicitassem dois benefícios (proporcionalmente altos)
destinados a pessoas solteiras (Browne, 2011, p. 102).

187
Tomando como ponto de partida o reconhecimento civil de
casais do mesmo sexo, primeiro pelas uniões civis e agora pelo ca-
samento, Wilkinson (2013, p. 206) questionou se “a inclusão de rela-
cionamentos de pessoas do mesmo sexo poderia ser vista como uma
medida que simultaneamente abre e restringe o círculo encantado
das intimidades ‘apropriadas’”. A autora sugere que “apesar da su-
postamente crescente aceitação da diversidade sexual, uma retórica
excludente dos ‘valores familiares’ ainda continua a circular no seio
das políticas que buscam criar igualdade” (Wilkinson, 2013, p. 206).
Wilkinson (2013) registra uma convergência de ansiedades acerca
da desintegração da família nuclear entre políticos tanto de centro-
direita quanto de centro-esquerda. Ser “pró-família” já não é neces-
sariamente uma posição oposta a ser socialmente liberal quanto ao
reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo. Wilkinson
(2013, p. 207) reconhece: “a cidadania já não é necessariamente fun-
dada sempre numa dualidade entre heterossexual/homossexual, mas
entre casados e não casados”. A incorporação dos recentemente reco-
nhecidos casais de mesmo sexo teve efeitos materiais sobre aqueles
cujos relacionamentos (ou ausência deles) não correspondem a este
ideal reconfigurado de vida familiar (Taylor, 2013a; Wilkinson, 2013).
Wilkinson (2013, p. 211) reconhece, porém, que a mudança rumo
a mais direitos legais para casais de mesmo sexo não foi conquistada
puramente com base nos valores liberais de “justiça, inclusão e igualda-
de”. Um fator que motiva esses debates também tem sido “o crescente
custo econômico da previdência do estado” (Wilkinson, 2013, p. 211).
A igualdade matrimonial foi decretada num período em que muitos
países (europeus) se confrontam, num futuro próximo, “com um nú-
mero crescente de pessoas que necessitam de assistência, porém com
menos pessoas capazes de prestá-la” (Wilkinson, 2013, p. 211). Um re-
latório sobre uniões civis publicado pelo Departamento de Indústria e
Comércio britânico (2004, p. 16; citado por Wilkinson, 2013, p. 211)
afirma que “fortalecer relacionamentos de casais adultos benefi-
cia não apenas os próprios casais, mas também outros familiares a
quem eles prestam apoio e cuidados”. Isso ressalta a já antiga deman-
da feminista pelo reconhecimento do trabalho não remunerado que
é empregado (na maior parte por mulheres) nos afazeres domésticos.
Embora seja útil levar em conta as maneiras pelas quais a extensão da
“igualdade matrimonial” reconfigura os significados ligados à econo-
mia doméstica, é também importante lembrar os efeitos biopolíticos
da recentralização do casal autossuficiente. A igualdade matrimonial
permite uma nova privacidade àqueles casais que são considerados

188
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

conformes a esse ideal, mas simultaneamente coloca outras formas


de relacionamento, intimidade e modos de vida sob um escrutínio
renovado.

O BEDROOM TAX

É nesse contexto que analiso um segundo exemplar da legisla-


ção recente no Reino Unido — o Bedroom Tax, o imposto do dormi-
tório, uma das disposições do Ato de Reforma da Previdência — que
foi aprovado em 2012 e entrou em vigor a partir de abril de 2013. Em
sentido estrito, não se trata de um imposto. A coalizão governamental
afirma que ele retira o “subsídio a aposentos vazios” dos locatários de
moradias sociais que recebem benefícios do estado. O governo britâ-
nico alega que tal subsídio coloca os locatários das moradias sociais
(que alugam imóveis de comitês locais ou de associações de moradia
popular) em situação privilegiada em relação aos que recorrem ao
setor imobiliário privado.
As novas regras afetam o subsídio de moradia, um benefício so-
cial que é concedido a inquilinos de baixa renda para ajudá-los a pagar
seus aluguéis. Pelas novas regras, famílias consideradas pelas autori-
dades locais como detentoras de mais espaço útil do que necessitam
passam a receber um pagamento reduzido. Os locatários são agora
avaliados com base no número de quartos de que necessitam. Com
base nessas regras, cada indivíduo ou casal tem direito a um quarto,
e crianças com menos de 16 anos devem compartilhar dormitórios.
Quando o cuidador de uma pessoa portadora de deficiência é tam-
bém seu parceiro, espera-se que ambos dividam o mesmo aposento,
independentemente da praticidade decorrente de suas condições de
saúde, da presença de equipamentos médicos ou de outras adapta-
ções necessárias. Pais cujos filhos não residem com eles, porém os
visitam, são impedidos de reservar um aposento só para estes.
De acordo com a BBC (2013), “o governo calcula que 660.000 re-
sidências terão seus benefícios cortados, aproximadamente um terço
dos beneficiários do setor social”. Os locatários perdem 14% dos seus
benefícios caso se avalie que possuem um quarto extra e 25% se fo-
rem considerados detentores de dois ou mais quartos sobressalentes.
O governo britânico alega que se trata de um incentivo para que os
locatários “rejeitem” casas grandes, das quais não necessitam, e se
mudem para propriedades menores. No entanto, dados publicados

189
pelo jornal Independent (Dugan, 2013) sugerem que simplesmente
não existem moradias de interesse social de um e dois dormitórios
em número suficiente para relocar 96% dos locatários que estão sen-
do penalizados pelo Bedroom Tax.
Além desses cortes de gastos, os critérios para a concessão de
vários benefícios sociais foram reconfigurados e novas sanções pu-
nitivas foram implementadas para os que não fornecem evidências
suficientes de estarem procurando trabalho de maneira ativa. Com
a eloquência habitual de sua crítica, o geógrafo urbano Tom Slater
observou a centralidade das narrativas sobre traços familiares disfun-
cionais no discurso conservador da “Grã-Bretanha falida”. Ele sugere
(2012, p. 17) que essas

reformas drásticas e punitivas dos serviços de previdên-


cia provavelmente constituem a peça central de um seve-
ro pacote de austeridade fiscal, no qual as possibilidades
de trilhar um caminho redistributivo são suprimidas pela
retórica de que as “famílias problemáticas dependentes
da previdência” fariam a sociedade ruir pelas bordas.
(Slater, 2012, p. 17)

Para a coalizão governamental, o nível dos gastos com bene-


fícios sociais é “proibitivamente alto, particularmente num clima
de austeridade fiscal”, e ela acredita, ainda, “que o atual sistema de
previdência desencoraja as pessoas a buscarem trabalho e encoraja
a dependência, e que esse sistema é injusto, pois permite que alguns
beneficiários reclamem benefícios que excedem consideravelmente
as remunerações médias” (Hamnett, 2013, p. 2). Slater mapeou, com
grande eficiência, o processo pelo qual os conservadores recorrem a
“evidências” provenientes de uma variedade de pensadores e institu-
tos políticos para disseminar ativamente a desinformação e a igno-
rância acerca da “injustiça” dos gastos com programas sociais.
Enquanto o Bedroom Tax desvaloriza e ameaça abalar mate-
rialmente as famílias e redes de parentesco que possibilitam que nú-
cleos familiares de baixa renda sobrevivam (Stenning, 2014), a retó-
rica que permeia essa política impõe uma violência mais profunda
às vidas de seus alvos. Taylor (2013b) questionou o que significa ter
sua vida íntima e suas disposições domésticas menosprezadas com
termos como “sobressalente”, “desocupado” ou “vago”. Ela vai além,
sugerindo que algumas intimidades são expostas nesses debates, ao
passo que outras se tornam invisíveis: “imagens e ideias que retratam

190
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

covis de feras hipersexualizados, enquanto populações excedentes


ocupam demasiado espaço, são postas lado a lado com uma noção
mais silenciada e sufocada de (hetero)sexualidade, representada, por
exemplo, na familiar invocação das necessidades e direitos das crian-
ças” (Taylor, 2013b). Eu sugeriria que a recém-descoberta respeitabi-
lidade dos casais estáveis do mesmo sexo vem sendo cada vez mais
mobilizada para disciplinar essas famílias consideradas “falidas” e
“injustamente” dependentes dos benefícios sociais.
Embora o imposto do dormitório desvalorize e avilte certas
pessoas, relacionamentos e acomodações, ele também se embasa (e
estimula) na ansiedade social em torno da responsabilidade pessoal
na vida de uma sociedade. Em sua recente pesquisa sobre a vivên-
cia da diferença e da distinção sociais, Valentine e Harris (2014, p. 89)
descobriram que tanto os pesquisados de classe trabalhadora quanto
de classe média enfatizam

a necessidade de que as pessoas incapacitadas contribu-


am com a sociedade onde lhes for possível (de modo ge-
ral, realizando trabalho remunerado) em vez de se man-
terem dependentes da previdência, e salientam a impor-
tância de que as pessoas deficientes assumam a respon-
sabilidade por suas próprias vidas em vez de merecerem
“tratamento especial” por parte do estado.

Eles notam uma narrativa de “injustiça”, segundo a qual pesso-


as que trabalham são colocadas na posição de vítimas de tratamento
iníquo por parte do estado quando este oferece os mais minguados
benefícios aos que são incapazes de trabalhar e “assumir a respon-
sabilidade” por suas próprias vidas. Valentine e Harris (2014, p. 91)
concluem que esses chamados à responsabilidade individualizada
exercem apelo a tantas pessoas precisamente porque “ecoam o sen-
timento de incerteza e insegurança socioeconômicas experimentado
pelas comunidades tanto de classe média quanto da classe trabalha-
dora”. Confrontadas não apenas com a austeridade econômica, mas
também com a perspectiva de mudança climática, guerras e rebeliões
civis, as pessoas sentem-se ansiosas por preservar seu acesso aos recur-
sos escassos para conservar sua qualidade de vida no futuro. A política
social na Grã-Bretanha vem sendo realinhada para favorecer os que
podem assumir a responsabilidade de arcar com providências particu-
lares para garantir o futuro bem-estar de si próprios e seus familiares,
qualquer que seja a situação. Nesses termos, a segurança financeira e

191
a responsabilidade social dos casais do mesmo sexo são muito menos
preocupantes politicamente para os governantes contemporâneos
do que uma família monoparental de baixa renda e dependente da
previdência. Os que são capazes de planejar financeiramente o seu
futuro são recompensados com “um sentimento de segurança num
mundo inseguro” (Valentine e Harris, 2014, p. 91), e são encorajados
a olhar com desprezo os que não conseguem, como eles, se prote-
ger da pobreza e da dependência de programas sociais. Todavia, para
muitos a suficiência desses planos individualizados para preservar a
segurança financeira e os cuidados de saúde nunca é algo garantido.
Isso pode ser uma fonte adicional de ansiedade. O Institute of Pre-
carious Consciousness [Instituto da Consciência Precária] (2014, n.p.)
sugere que, através do imperativo da seguridade individual e privada
para uma parcela da população, e a ameaça de cortes e sanções nos
benefícios sociais daqueles que não estão em condições de mobilizar
qualquer recurso privado significativo, as pessoas se confrontam com
“uma absurda não-escolha entre inclusão dessocializada e dessocia-
lização excludente”, cujo efeito é que a ansiedade social resultante
ameaça romper “todas as coordenadas de conectividade ao estabele-
cer um perigo constante”, com efeitos profundos sobre a psiquê dos
indivíduos.

CONCLUSÕES

Enquanto a igualdade matrimonial (re)privilegia certos tipos de


casais e de economias domésticas, ataques simultâneos ao sistema
previdenciário vêm afetando de maneira desproporcional pessoas
solteiras e casais que constroem seus relacionamentos fora dos valo-
res normativos reconfigurados na era de austeridade britânica. Essas
reformas legais situam alguns arranjos domésticos em posição digna
de privacidade e respeito, ao mesmo tempo em que lançam outros la-
res a um escrutínio biopolítico intenso e os sujeitam a uma crescente
intervenção estatal.
Para concluir, desejo refletir sobre o que essas mudanças
podem revelar sobre a política sexual de austeridade e o papel
dos principais grupos de defesa dos direitos lésbicos e gays no
sentido de moldá-los. Existem dois pontos-chave a demarcar aqui.
Primeiro, as relações sociais homonormativas não afetam apenas as

192
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha

pessoas LGBTQ. A incorporação de alguns casais de mesmo sexo


(aparentemente) normativos ao grupo dominante da sociedade
britânica teve efeitos colaterais. Por exemplo, eu não considero
possível separar os argumentos que organizações como a Stonewall
apresentam para defender o casamento entre pessoas do mesmo
sexo (que estes atendem aos grandes interesses da economia
nacional) dos ataques materiais e ideológicos desferidos contra os
lares pobres e, particularmente, os beneficiários da previdência. Os
“valores familiares” na Grã-Bretanha encontram-se em processo de
reconfiguração. O segundo ponto, que está relacionado ao primeiro,
é que as linhas divisórias da política sexual na Grã-Bretanha não
passam mais, necessariamente, pela separação homo/hétero.
Algumas expressões de domesticidade homossexual, construídas com
base em casais de relacionamentos românticos e duradouros, vêm
sendo privilegiadas sobre algumas formas de heterossexualidade. A
retórica de “justiça” da coalizão que ocupa o governo desempenha
um papel essencial aqui — a “igualdade” para casais do mesmo sexo
é aceitável, desde que eles sejam capazes de cuidar da saúde e do
bem-estar mútuos, sem depender “injustamente” da previdência
do estado (paga por outros). Essa política sexual em transformação
facilita a progressiva privatização dos programas de assistência
social atuais e futuros. Ao fazer isso, eles solapam os programas de
saúde e bem-estar social existentes. Essas mudanças também têm
efeitos biopolíticos: encorajam as subjetividades autossuficientes,
mas também subordinam as uniões afetivas que não se conformam
a esses padrões e às novas formas de disciplina. A promoção de
subjetividades privatizadas e autossuficientes tem o potencial de
minar e isolar ainda mais os “queer commons” remanescentes e expô-
los a novas rodadas de acumulação por expropriação.

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196
Refúgios etnoespecíficos na
zona de contato liberal: política
racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na
cidade multicultural global de
Toronto
John Paul Catungal

RESUMO

Neste artigo, traço as genealogias da racialização do setor de AIDS da cidade


de Toronto, desde a emergência e evolução da enfermidade nas décadas de
1980 e 1990. Dedico particular atenção à questão de como as abordagens da
doença, que se mantiveram alheias à cor da pele nos primeiros anos do setor
de AIDS, serviram para privilegiar homens gays brancos não apenas no cam-
po da assistência médica e social, mas também no que diz respeito às inicia-
tivas políticas e ao estabelecimento de prioridades para as ações locais de
combate à síndrome. Recorrendo à noção de “zona de contato” proposta por
Mary Louise Pratt, saliento os efeitos excludentes e por vezes mortais (ainda
que involuntariamente) da cegueira racial do liberalismo no setor de AIDS.
Em resposta a essa exclusão, organizações etnoespecíficas de atendimento
aos portadores do HIV (e-ASOs — ethno-specific AIDS service organizations)
surgiram para proporcionar espaços para as pessoas de cor, mantidos por
pessoas de cor. Argumento, recorrendo novamente a Mary Louise Pratt, que
as práticas de construção de espaços e de e-ASOs servem não apenas para
diferenciar tais serviços das práticas correntes, mas também para fornecer
alternativas aos discursos e abordagens etnoespecíficos que transformam os
espaços das e-ASOs em “refúgios” nos quais a população racializada pode
encontrar apoio mútuo e serviços de saúde sexual culturalmente específi-
cos.
INTRODUÇÃO: DIVERSIDADE RACIAL, SEXUALIDADE
E OS ESPAÇOS DE HIV/AIDS NA CIDADE DE TORONTO

Acho que... um dos problemas enfrentados quando se


lida com... a diversidade na cidade de Toronto é que pen-
samos ter chegado tão longe que esquecemos que real-
mente não avançamos tanto assim. Apenas o fato de di-
zermos... que a diversidade é a nossa força... não significa
que não somos racistas ou que não temos um monte de
preconceitos. Estive observando algumas fotografias que
um de meus amigos tirou... num evento para arrecada-
ção de fundos da EGALE... e aquelas pessoas não se pa-
reciam comigo. Havia pessoas de cor (sic), mas a grande
maioria delas, especialmente as que ocupavam posições
de controle, eram pessoas brancas de meia-idade. (Vo-
luntário de uma organização etnoespecífica de atendi-
mento a pacientes de AIDS)

A citação acima provém da transcrição de uma entrevista com


alguém envolvido como voluntário numa organização etnoespecífi-
ca de atendimento a pacientes de AIDS (e-ASO). Ela ocorreu durante
uma discussão sobre as diferentes questões que as e-ASOs enfrentam
no momento atual. Considerei instrutivo começar com essa situa-
ção porque, quando confrontada com a confusa interface entre raça,
sexualidade e saúde, ela evidencia a persistência da racialização nas
instituições dominantes ligadas à política sexual. Isso se faz de várias
maneiras. Primeiro, concentra num espaço relativamente pequeno
várias críticas ao discurso da diversidade numa cidade multicultu-
ral. Ela aponta para a persistência do racismo em face da diversidade
demográfica urbana aumentada (“realmente não avançamos tanto
assim”), e o faz mediante o recurso retórico específico — uma alu-
são ao lema oficial da Cidade de Toronto “diversidade é nossa força”.
Trata-se de uma critica poderosa ao discurso da diversidade como
mero adereço, uma espécie de vitrine para uma cidade cada vez mais
empresarial. Também espelha, curiosamente, como esse discurso
atua como cifra eufemística para a racialização no contexto do cortês
multiculturalismo apoiado pelo Estado do Canadá (Mitchell, 1993).
Em segundo lugar, mas relacionado ao ponto tratado acima, a
situação remete ao racismo e à racialização na cidade multicultural
e global como algo intensamente vivido e como processos materiais
que organizam as vidas e os mundos das pessoas, incluindo espe-
cialmente as instituições que elas acessam em busca de comunhão e

198
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

apoio. É particularmente reveladora, aqui, a menção espontânea do


entrevistado à EGALE — a organização Equality for Gays and Lesbians
Everywhere [Igualdade para Gays e Lésbicas em Todos os Lugares] —
como exemplo de uma importante e popular instituição de defesa dos
direitos LGBTQ, a qual o voluntário alega ainda estar em grande parte
maculada pelo problema da desigualdade racial, particularmente no
que diz respeito às suas lideranças. A institucionalização da raciali-
zação em organizações como a EGALE representa, para esse volun-
tário, o problema da desigualdade social e dos privilégios nos espa-
ços institucionais da cidade global e multicultural. A EGALE é uma
importante organização não governamental, provavelmente o mais
importante grupo de defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexu-
ais, transexuais e queer (LGBTQ) do país e, ao menos nominalmente,
propõe-se a representar “gays e lésbicas em todos os lugares”. O que a
situação revela é que o racismo sistemático persiste no segmento das
instituições LGBTQ ao longo de linhas etnorraciais, o que tem como
resultado frequente a normalização do embranquecimento de orga-
nizações como a EGALE que se destinam a representar e servir uma
população mais ampla. Por emergir de uma discussão sobre e-ASOs,
a situação também sinaliza para a ligação íntima entre as instituições
LGBTQ e o setor HIV/AIDS no contexto de Toronto. Como afirma ou-
tro entrevistado, “a interseccionalidade da orientação sexual... com
o HIV é muito significativa na nossa história” (ver também Rayside
e Lundquist, 1992), uma história que, segundo argumento abaixo, é
racializada.
Por fim, aponto para um detalhe não tão evidente da citação, o
de que o entrevistado se queixa porque “aquelas pessoas não se pare-
ciam comigo”. Para mim, trata-se de uma leitura do eu racializado em
relação a uma cena capturada em fotografia e reconstituída pela me-
mória. Revela duas ideias persistentes sobre raça: primeiro, que a raça
continua a ser entendida como um fenômeno em grande parte visual
ou, mais exatamente, visualizado; e, segundo, que a produção de espa-
ço social e institucional ainda acontece ao longo de linhas de cor, para
parafrasear a frase memorável de W.E.B. DuBois (ver DuBois, 2007). A
situação também chama a atenção para a prática da leitura ativa do
espaço por pessoas semelhantes: um meio de avaliar se alguém se en-
contra num espaço a que pertence. Pertencer, naturalmente, implica
benefícios materiais, entre eles o acesso à comunidade, às instituições
e outros espaços sociais. Em outras palavras, a citação evoca a impor-
tância material do sentimento de afinidade comunal, nesse caso, uma
afinidade etnorracial. Durante essa entrevista, em particular, a frase

199
“essas pessoas não se parecem comigo” foi proferida com frustração,
e eu creio que isso se deve ao fato de que se parecer com pessoas
numa organização é outro modo de reclamar espaço de representa-
ção e acesso ao espaço que não reflete de maneira mais ampla a mul-
ticulturalidade demográfica.
Este artigo investiga como a interligação das políticas da sexua-
lidade, de raça e de saúde deu forma ao setor de AIDS em Toronto, es-
pecificamente mediante uma análise das genealogias racializadas de
organizações etnoespecíficas de assistência a pacientes de AIDS na
cidade.1 Ele argumenta que a atual coexistência entre organizações
de assistência a pacientes de AIDS etnoespecíficas e convencionais
pode ser situada historicamente no posicionamento da sexualidade
acima de outras identidades, incluindo raça e etnia, no ethos político
e organizacional do setor de AIDS, nos anos de 1980. Este artigo, por-
tanto, examina como a adoção de tal abordagem por organizações de
assistência aos portadores de HIV convencionais afeta negativamente
o acesso de pessoas de cor a informações e serviços de saúde sexual.
Argumento que a centralização da identidade sexual serviu para pri-
vilegiar corpos sexuais particulares — homens brancos gays — como
sujeitos dos programas de saúde sexual. Isso gerou organizações de
assistência aos portadores de HIV como espaços racialmente cegos que
privilegiam os brancos e levam a vivências de alienação e à exclusão das
pessoas de cor, tanto queer quanto hétero, das então nascentes organi-
zações oficiais de enfrentamento do HIV/AIDS. Em resposta à formação
desses espaços de atendimento brancos aos pacientes de AIDS, líderes

1
Este artigo baseia-se nos resultados de uma dissertação em fase de elaboração,
referente a uma pesquisa financiada pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais
e Humanidades (SSHRC), que trata da emergência de espaços etnoespecíficos para
o atendimento em saúde sexual na cidade de Toronto. As vinte e duas entrevistas
semiestruturadas e orais que usei para este trabalho foram aplicadas a participantes e
ex-participantes, em sua maioria membros do quadro funcional, voluntários e membros
diretores de importantes ASOs etnoespecíficas. A pesquisa em arquivos foi conduzida
nos Canadian Lesbian and Gay Archives (CLGA) [Arquivos Canadenses sobre Gays
e Lésbicas], no centro de Toronto. Acervos referentes a e-ASOs, incluindo coleções de
material de promoção à saúde (p.e., folhetos, cartazes), boletins informativos, relatórios
anuais e atas de reuniões foram analisados para elucidar as histórias e práticas dessas
organizações. Com o auxílio do pesquisador Thomas Perry, também investiguei a
cobertura da imprensa sobre as e-ASOs mediante a coleta de artigos jornalísticos
conservados em arquivos, provenientes tanto dos sites dos próprios periódicos (p.e.,
jornais locais e nacionais, como o Toronto Star e o Globe and Mail, ou publicações
comunitárias menores, como as revistas Xtra e FAB Magazine) quanto dos acervos
de bibliotecas. Também foram coletados vistos e analisados DVDs e cópias online de
documentários sobre e-ASOs, quando disponíveis.

200
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

de comunidades racializadas formaram organizações etnoespecífi-


cas dedicadas aos portadores do HIV (e-ASOs) e adotaram práticas
de criação de lugares [placemaking] que buscam implantar espaços
e-ASO em contraste com a cegueira racial das organizações conven-
cionais, isto é, sedes de integração etnorracial e de serviços de saúde
sexual culturalmente adequados.
O artigo prossegue da seguinte forma. Primeiro, delineio um
arcabouço teórico que permite analisar o surgimento das e-ASOs na
cidade de Toronto. Baseio-me na obra de Mary Louise Pratt, particu-
larmente em seus conceitos de “zona de contato” e “refúgio”, como
forma de enfatizar a importância da racialização na conformação de
instituições de saúde sexual na cidade. Nessa subdivisão, também
delineio uma genealogia mais extensa da relação entre racialização
e saúde na cidade multicultural global. Na sessão seguinte, detalho
tanto a construção de uma abordagem racialmente cega da saúde se-
xual por um jovem portador de HIV/AIDS na Toronto da década de
1980 quanto o “nascimento” das ASOs etnoespecíficas como crítica
dessa cegueira racial. Na penúltima seção, defendo que as práticas
de criação de lugares na produção de e-ASOs exercem um papel de
“refúgios” em zonas de contato. Forneço três exemplos de estratégias
em especial — linguagens alternativas, autorrepresentações e even-
tos sociais — que diferenciam as e-ASOs das organizações conven-
cionais. Encerro com um retorno à ideia de “refúgio” proposta por
Pratt e concluo, recorrendo a exemplos oriundos de e-ASOs, com um
apelo a uma análise mais detida de suas constantes negociações.

TEORIZANDO RAÇA, SEXUALIDADE E SAÚDE 1:


A CIDADE MULTICULTURAL COMO
“ZONA DE CONTATO LIBERAL”

Em termos simples, meu sítio de pesquisa é a cidade de Toronto,


e também os locais das três e-ASOs que compõem a base deste artigo
e onde muitos dos principais atores do setor HIV/AIDS da província
de Ontário estão situados. Considerando a composição multicultural
recente e histórica de Toronto e sua importância, tanto historicamen-
te quanto no presente, como porta de entrada de novos imigrantes ao
Canadá (Hiebert, 2000), não é surpresa que a cidade seja um espaço
de diferença etnorracial e um centro de formação de elos transna-
cionais. Toronto é também uma importante engrenagem econômica,

201
sede das matrizes nacionais de muitas empresas canadenses e im-
portante protagonista no comércio nacional e internacional. Roger
Keil e Harris Ali (2006), entre outros, citaram as geografias demográ-
fica e econômica de Toronto como evidências de que se trata de uma
“cidade global multicultural”2.
O lema da cidade, “diversidade é nossa força”, representa o bri-
lho e a glamorização da “cidade global” como espaço de diferença
racial (http://www.toronto.ca/diversity/; Wood e Gilbert, 2005). O
discurso da diversidade urbana é com frequência usado como me-
canismo diferenciador, elevando a diversidade demográfica a ferra-
menta de competitividade econômica (Mitchell, 1993; Goonewardena e
Kipfer, 2005). No entanto, tal visão é incompleta: a ideia romântica de
diversidade-como-força ampara-se no conceito liberal de um campo
nivelado entre os participantes do corpo social urbano. Muitos es-
tudiosos observaram que a cidade de Toronto está longe de ser um
espaço igualitário e que as geografias sociais da cidade são caracteri-
zadas pela persistência do poder, da hierarquia e da diferenciação so-
cial, particularmente na forma de uma polarização socioespacial e de
uma desigualdade crescentes (cf. Walks, 2001; Hulchanski, 2007). O
necessário neste contexto de uma cidade radicalmente desnivelada
é outro vocabulário que conteste a idealização liberal da diversidade
em grande parte do discurso público multicultural. Muito necessário
é que tal léxico dedique intensa atenção à produção da desigualdade
socioespacial. Recorro aqui a um vocábulo oferecido por Mary Louise
Pratt: a ideia de “zona de contato”.
A zona de contato de Pratt “invoca o espaço e o tempo onde
sujeitos antes separados geográfica e historicamente estão simulta-
neamente presentes, o ponto em que suas trajetórias ora se intercep-
tam” (Pratt, 2008, p. 8). Na sua formulação dessa co-presença, Pratt
rejeita a política liberal do “encontro” multicultural. Trata-se de uma
teorização do contato que põe em primeiro plano relações de poder
desiguais: para ela, o termo “refere[-se] aos espaços sociais onde cul-
turas se encontram, se chocam e se digladiam, frequentemente em
contextos de relações de poder altamente assimétricas” (Pratt, 1991,

2
Neste artigo, recorro ao espírito da intervenção de Benton-Short et al. (2005) na
literatura sobre as “cidades globais”, na qual enfatizam a importância da migração, do
transnacionalismo e (em certa medida) da diferença etnorracial na constituição das
cidades globais. Uso a denominação “cidade global multicultural” para enfatizar que a
condição global de Toronto é produzida não apenas por suas ligações econômicas com o
mundo todo, mas também pela densidade da presença de migrantes e de comunidades
e redes etnorraciais que a conectam com outros sítios do globo.

202
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

p. 34). Na zona de contato, grupos reúnem-se e “estabelecem relações


contínuas, geralmente envolvendo condições de coerção, desigual-
dade radical e conflito intratável” (Pratt, 2008, p. 8).
As sedes coloniais, segundo a análise de Pratt, eram espaços
fortemente armados, onde a violência racial dos poderes de sobera-
nos imperiais era imposta aos povos colonizados, frequentemente
mediante práticas francamente genocidas.3 Ao usar sua noção de
“zona de contato”, não pretendo sugerir que a violência armada e o
genocídio são formas e exercícios de poder racial que moldam rela-
ções na Toronto de hoje. Pelo contrário, embora eu reconheça que
tais formas armadas e manifestas de violência racial ainda existem, as
políticas raciais que analiso a seguir são qualitativamente muito dife-
rentes do contexto de Pratt, mesmo que elas ainda façam cumprir os
privilégios dos brancos. Em vez da violência armada, elas assumem
as formas liberais de cegueira racial e multiculturalismo, que argu-
mento resultarem na negligência racializada e, portanto, também
violenta. Nesse espírito, uso o termo “zona de contato liberal” para
descrever socioespacialidades da violência na cidade multicultural
global, que são caracterizadas por disposições e práticas aparente-
mente benignas, mas ainda incrivelmente racializantes e racializa-
das. Embora eu reconheça que a “zona de contato liberal” ocorre em
e através de espaços múltiplos de contato no interior da cidade mul-
ticultural global, este artigo concentra-se nos espaços e políticas do
setor de AIDS como “zona de contato liberal”.
Não sou, de modo algum, o primeiro a apontar os problemas
que decorrem do discurso romântico da diversidade urbana sendo
traficado pelo discurso e pela política multiculturalista (ver Mitchell,
1993; Goonewardena e Kipfer, 2005; Keith, 2005; Wood e Gilbert, 2005;
Croucher, 1997). Mas o que quero fazer é examinar esses problemas
no contexto da governança da saúde sexual. Historicamente, em
muitas cidades da América do Norte, a governança da diversidade ra-
cial era conseguida, em parte, pela governança da intimidade sexual,
velada na linguagem e nas práticas de saúde (Mawani, 2009). O quê,

3
Stoler (2002) também defende a tese de que a governança da sexualidade e da
intimidade eram cruciais no regime colonial. Vista sob esse prisma, a noção de “contato”
na expressão proposta por Pratt assume toda uma nova camada de significado. Devido
a restrições de espaço, concentro-me aqui principalmente no “contato” em termos
de grupos diferentemente racializados que encontram uns aos outros em condições
altamente desiguais no contexto das organizações dedicadas à AIDS em Toronto. A
extensão em que ASOs e e-ASOs participam na governança de intimidades (e contatos)
inter-raciais requer uma análise mais extensa. Ver as notas 9 e 10, mais abaixo.

203
politicamente falando, podemos aprender com a institucionalização
da racialização via a regulamentação da sexualidade e da saúde?
A obra seminal de Kay Anderson (1991) sobre a geografia histó-
rica da Chinatown de Vancouver fornece um importante exemplo de
raça, sexualidade e saúde reunidas para criar espaços de exclusão.4
Embora justamente enaltecida como uma excelente obra sobre a
geografia urbana da racialização, Vancouver’s Chinatown de Ander-
son também merece ser reconhecida como uma importante, ainda
que subvalorizada, obra sobre a geografia política da saúde. Nessa
publicação fundamental, Anderson (1991) deixa claro que a produ-
ção do espaço racializado de Chinatown foi conseguida em grande
parte mediante o uso político da figura do “imigrante doentio” pelas
instituições estatais da cidade. O livro revela em minúcias a cumplici-
dade entre as instituições de saúde pública locais e as forças policiais
do município na criação de Chinatown como uma forma efetiva de
literalmente encerrar em quarentena os imigrantes chineses na cida-
de de Vancouver, no final do século XIX. Nesse momento histórico-
geográfico, os imigrantes chineses foram considerados seres abjetos
pela construção de sua imagem como uma ameaça à cidade colo-
nial emergente. Isso foi conseguido em parte mediante a veiculação
pública da ideia de que as práticas do “estilo de vida” chinês eram
insalubres, que o povo chinês estava culturalmente habituado a viver
em condições de imundície e que era predisposto ao vício no ópio
pelos seus antecedentes raciais e culturais. Havia um particular com-
ponente sexual e moral nessas afirmações, uma vez que os homens
chineses foram posteriormente construídos no discurso público —
especialmente pela mídia — como uma estirpe degenerada, propen-
sa à violência culturalizada e, portanto, deveria haver restrições à sua
união heterossexual com mulheres brancas (Dua, 2007). De modo
semelhante, as mulheres chinesas foram tratadas como ameaças ao
corpo político colonial branco mediante uma construção discursiva
que as apresentava como prostitutas e potenciais vetores de doenças
(Dua, 2007).
Essas histórias prefiguram alguns dos processos mais recentes
em curso na cidade de Toronto, em torno das respostas à crise do HIV/
AIDS, no que diz respeito a saúde pública e raça, ou seja, como as iden-
tidades raciais e sexuais entram em jogo no campo da promoção da
4
Esse exemplo tem paralelos em práticas similares adotadas em outras cidades norte-
americanas. Por exemplo, Craddock (2000) salienta o trabalho do Comitê de Saúde de
São Francisco, que literalmente patologizou o bairro Chinatown daquela cidade como
fonte de todas as formas de doença e insalubridade, de ratos e pulgas a varíola e sífilis.

204
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

saúde. Em termos geográficos, esses exemplos revelam como o espa-


ço da cidade-global-como-zona-de-contato tem uma longa história
em que as políticas de identidade, por um lado, e as de saúde, por
outro, colidem na criação de geografias excludentes. No centro desse
problema de governança de diferenças e de saúde está a biopolítica.
A teoria da biopolítica de Michel Foucault enfatiza como a vida
(bios) tornou-se a preocupação do governo e da governança, na esca-
la da “população” ou do corpo social em contraposição à disciplina
do corpo individual (anatomopolítica) (Lemke, 2001; Brown e Knopp,
2010). Em termos biopolíticos, a “população” assume posição central
para o exercício do poder e a noção de “vida” torna-se o próprio ob-
jetivo das lutas pelo poder. Regulamentos destinados a salvaguardar,
prolongar e conservar a vida das populações passam a ser incorpora-
dos ao estado e cada vez mais a práticas não estatais. Nesse aspecto,
não é de surpreender que muitos estudiosos (p.e., Brown e Knopp,
2010; Legg, 2007; Brown e Duncan, 2003; Osborne, 1997) tenham
argumentado que o trabalho de saúde pública é uma óbvia prática
biopolítica do estado. Outras práticas estatais — incluindo pesquisas
de índices populacionais como o censo e legislações sobre segurança
pública em nome da “população” — também pertencem a essa mes-
ma categoria.
Outra característica da biopolítica é que um aspecto crucial ao
seu exercício é a prática representativa do enquadramento. O enqua-
dramento é, para expressar de maneira simples, um processo político
que visa a definir o que conta como objetos e sujeitos de poder. Con-
forme argumentam Rose e Miller (1992), o enquadramento é uma
parcela essencial da prática de governo, uma vez que “a ‘representa-
ção’ do que deve ser governado é um processo ativo e técnico” (p.
185). Em outras palavras, os “alvos” governamentais são produtos de
decisões políticas, não entidades predeterminadas. Em seu trabalho
sobre a política do enquadramento, Martin (2000) lembra-nos que as
representações convencionais de pessoas e lugares são com frequên-
cia viabilizadas por poderosas instituições e atores e que esses enqua-
dramentos dominantes são frequentemente contestados em âmbito
local por contraenquadramentos das comunidades envolvidas. De
maneira semelhante, no contexto da saúde sexual, o enquadramento
possibilita a criação de fronteiras em torno do que é tido na conta
de aspecto crucial para a promoção da saúde sexual e daqueles que
são considerados legítimos “pacientes de saúde sexual”. Esse proces-
so de estabelecimento de fronteiras é importante para dar forma às
respostas institucionais em âmbito local ao HIV/AIDS, uma vez que

205
ajudam a consolidar quais questões e quais corpos estão em seus lu-
gares, ou fora deles, no campo político da organização e promoção
da saúde sexual. Em outras palavras, o processo de enquadramento
tem consequências materiais para a condução do trabalho ligado à
saúde sexual na cidade. Como veremos em seguida, a emergência do
enquadramento dominante (racialmente cego) é problematizada em
parte mediante a emergência de enquadramentos alternativos (orga-
nizações etnoespecíficas).
A definição de populações-alvo em respostas organizadas ao
HIV/AIDS é necessariamente uma questão biopolítica, pois implica o
estabelecimento de parâmetros acerca do que deve e do que não deve
ser governado. Na zona de contato liberal da cidade multicultural
global, onde a diferenciação etnorracial é produzida por padrões de
imigração históricos e contemporâneos e pela racialização cotidiana
e sancionada pelo estado, pode parecer surpreendente que a história
da organização em torno do HIV/AIDS tenha um início acometido de
cegueira racial. Embora eu reconheça que houve momentos na his-
tória inicial do setor em que respostas a questões etnorraciais já exis-
tiam, como, por exemplo, quando a ACT trabalhou em conjunto com
as populações da diáspora haitiana que viviam em Toronto no início
dos anos 1980 para contestar as construções midiáticas que repre-
sentavam os haitianos como vetores de doenças, de um modo mais
geral, as primeiras organizações dedicadas ao HIV/AIDS em Toronto
giravam principalmente em torno da sexualidade e suas políticas, ex-
cluindo em grande parte outros eixos proeminentes de diferença.
Em suas primeiras avaliações sobre a relação entre o ativismo
ligado à AIDS e o estado canadense, Rayside e Lundquist (1992, p. 37)
argumentam que a epidemia do HIV no Canadá urbano “representa
enormes desafios para as comunidades gays e lésbicas canadenses”.
A epidemia consolidou no discurso público que já estava em circula-
ção conceitos que ligavam [homo]sexualidade, doença, imoralidade
e risco. Na prática, o trabalho de organização em torno da AIDS nas
comunidades gays e lésbicas foi caracterizado tanto pela prestação
de serviços quanto pelo engajamento político com o estado. Organi-
zados em torno de um comprometimento político de prestar atendi-
mento predominantemente a homens gays nas cidades canadenses,
os quais eram afetados de forma desproporcional pela AIDS no início
dos anos de 1980 (ver também Brown, 1997), os que se organizaram
em torno da rubrica do ativismo da AIDS também buscaram adquirir
proteções e apoio por parte do estado (em nível local tanto quanto em
outros níveis de governo) para as pessoas marginalizadas em função

206
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

de suas sexualidades e de sua saúde sexual, complementando e por


vezes combatendo a abordagem intensamente epidemiológica das
instituições de saúde sexual do estado.
Grupos gays e lésbicos já existentes, incluindo especialmente
os movimentos de libertação gay, tornaram-se atores-chave no iní-
cio do desenvolvimento do setor AIDS em Toronto e outras cidades
canadenses, à medida que “grupos de combate à AIDS atraíam gran-
des números de ativistas que haviam inaugurado suas experiências
políticas nas primeiras mobilizações gays/lésbicas” (Rayside e Lund-
quist, 1992, p. 50), as quais foram cultivadas ao longo da ação dos
movimentos urbanos de gays e lésbicas nos anos de 1970 e 1980.
Rayside e Lundquist (1992) argumentam que “o próprio ineditismo
da AIDS permitiu que grupos comunitários adquirissem certo grau
de legitimidade e influência junto a redes de atuação política seletas,
ainda que representassem grupos populacionais geralmente margi-
nalizados em relação ao estado” (p. 37). Esses autores posteriormente
observaram que a integração do setor AIDS foi concebida em parte
como resultado da tremenda “preocupação do público em relação à
doença... em 1985” (p. 51), após o que, “funcionários do Estado come-
çaram a perceber que os serviços prestados [pelo Comitê de AIDS de
Toronto (ACT)] eram essenciais”, o que levou o estado local a apoiá-lo
desde a fundação. Foi nesses contextos que a ACT tornou-se, muito
provavelmente, a principal resposta local ao HIV/AIDS.5
Um importante resultado da centralidade do movimento em
grande parte urbano de gays e lésbicas no desenvolvimento do setor
AIDS foi que esse setor ainda nascente começou a se ocupar da sexu-
alidade e da saúde sexual, por algum motivo construídas de maneira
restrita como sexualidades gays e lésbicas, como foco principal de
sua política. Embora a influência da política feminista sobre as or-
ganizações gays e lésbicas tivesse um impacto no início do ativismo
ligado à AIDS em Toronto, particularmente as “críticas feministas ao
sistema de saúde pública e ao estado de modo mais geral” (Rayside e
5
Dados de arquivo também sugerem que ativistas gays e lésbicas, convertidos nos
principais organizadores do combate à AIDS, foram bem-sucedidos ao se posicionarem
como os “ouvidos” das autoridades de saúde pública locais, como Jack Layton, o
presidente da Secretaria de Saúde de Toronto de 1985 a 1991. Por exemplo, ao menos
uma versão preliminar de um discurso de Jack Layton sobre HIV/AIDS nesse período
contém comentários, sugestões e correções ao que era explicitamente solicitado por
eminentes organizadores de entidades convencionais ligadas à AIDS. Sem dúvida, a
habilidade desses organizadores em conquistar essa posição à mesa do governo local
foi condicionada em parte ao fato de que Layton já estabelecera uma base de apoio e
envolvimento na política lésbica e gay da cidade.

207
Lundquist, 1992, p. 52), a intercessão entre racialização e sexualidade
não recebeu grande atenção por parte do setor AIDS convencional na
cidade, nesse período.
A pesquisa de David Churchill (2003) sobre a política racial
do movimento gay em Toronto6 oferece algumas percepções sobre
o motivo por que a racialização não figura na emergência do setor
AIDS na Toronto da década de 1980. Ele argumenta, em sua análise
de uma controvérsia em torno de um anúncio racista na publicação
local Body Politic [Política do corpo], que a libertação gay e a política
antirracista eram com frequência enquadradas por alguns ativistas
da libertação gay, mas de modo algum todos eles, como nada tendo
a ver uma com a outra e, como resultado, “lésbicas/gays de cor per-
cebiam-se [na situação de terem de escolher] entre a libertação ‘gay’
e a política de combate ao racismo e de identidade racial”. É prová-
vel, considerando o íntimo elo genealógico entre os movimentos de
libertação gay baseados em Toronto e o setor AIDS, que tais atitudes
e abordagens políticas racialmente cegas e centralizadas nos gays te-
nham se transferido para estes últimos, especialmente à medida que
respostas locais à AIDS tenham se consolidado em ASOs em grande
medida convencionais, nos anos de 1980. Como observo abaixo, os
primeiros trabalhadores e ativistas das e-ASOs compreendiam esse
conceito como crucial à exclusão de pessoas racializadas e suas preo-
cupações da política voltada à AIDS naqueles anos iniciais.

TEORIZANDO RAÇA, SEXUALIDADE E


SAÚDE 2: e-ASOs VISTAS
COMO REFÚGIOS

Em resposta à exclusão de suas preocupações pelos movimen-


tos mainstream de gays e lésbicas, incluindo os de libertação gay, no
final da década de 1980, “lésbicas e homens gays de cor começaram a
se organizar como forma de romper a onipresente brancura da cultura
do público queer” (Churchill, 2003, p. 125).7 Isso era verdade também
6
Numa análise mais abrangente da história do movimento gay no Canadá, Smith (1998,
p. 291) também argumenta que, nos anos 1970, os grupos pela libertação gay em várias
cidades do Canadá constituíam “um movimento basicamente branco”.
7
Nash (2005) observa que, iniciando-se no final da década de 1970, movimentos
mainstream de gays e lésbicas em Toronto começaram a enquadrar suas políticas
recorrendo ao discurso dos “direitos das minorias”, isto é, argumentando que as

208
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

para o setor AIDS, mais especificamente. No final da década de 1980


e início da de 1990, à medida que as respostas organizadas ao HIV/
AIDS se consolidaram na forma do Comitê de AIDS de Toronto e ou-
tros integrantes do setor, outras organizações emergiram para con-
testar a cegueira racial dos serviços de saúde pública convencionais
nos anos 1980.8 Esses novos atores no setor são semelhantes a espa-
ços separatistas, no aspecto de que eles deliberadamente começaram
a existir como forma de “dar nova roupagem a hierarquias sociais”
(Browne, 2009, p. 541), de maneiras que não eram possíveis dentro
do mainstream.
A omissão da preocupação etnorracial com serviços cultural
e linguisticamente apropriados foi fruto não de omissão acidental,
mas sim de deliberação ativa. Como nota um entrevistado que teve
atuação providencial na fundação de uma e-ASO local:

Lembro-me explicitamente da discussão [na década de


1980] de que ‘estamos aqui para falar sobre HIV. Não
estamos aqui para falar de raça. Não estamos aqui para
falar sobre outros temas porque isso desviará a atenção’.

Ele vai além, ao observar, com evidente frustração, que a desa-


tenção à questão racial como fator crucial no que diz respeito ao HIV/
AIDS age de forma que:

Nós realmente tivemos de nos desviar do nosso caminho


para... educar as pessoas para que entendessem que ao
mesmo tempo em que são queer ou portadores de HIV e
têm de lidar com a homofobia e a AIDS-fobia, as pessoas
de cor têm de lidar também com a discriminação racial.

pessoas gays e lésbicas mereciam reconhecimento e proteção porque, assim como os


grupos etnorraciais, eram marginalizadas pela sociedade em virtude de sua condição
minoritária. Vale notar que isso teve o efeito de traçar paralelos entre sexualidade e
identidade etnorracial e, por implicação, de não reconhecer a interseção entre essas
identidades. Um efeito disso foi que gays e lésbicas racializados passaram a enfrentar a
marginalização tanto de comunidades gays e lésbicas quanto etnorraciais, especialmente
quando estas últimas começaram a se dissociar ativamente das primeiras devido a
discordâncias quanto à aplicabilidade do discurso dos “direitos das minorias” (Nash,
2005; para análises sobre a política das analogias raciais na luta LGBT no campo jurídico,
de maneira geral, ver McWhorter, 2009; Lenon, 2011; Carbado, 2000; Hutchinson, 1997).
8
Esta leitura do surgimento das e-ASOs como críticas políticas explícitas à “corrente
branca” do setor contradiz a afirmação de Adam (1997, p. 28), de que “a proliferação de
projetos [ASO] culturalmente sensíveis, especializados e autônomos” levou a “um estilo
despolitizado de ‘controle’ da AIDS”.

209
Essa cegueira de cor teve o efeito de produzir uma abordagem
de tamanho único que severamente negligenciou, quando não ne-
gou, o papel do poder, da desigualdade e da hierarquia, definidos ao
longo de linhas etnorraciais, nas zonas de contato da cidade global.
Foi nesse contexto político de total recusa de ver a raça como
algo que importa nos serviços de saúde dirigidos ao HIV que as e-ASOs
emergiram. Embora, na superfície, a insistência delas quanto à impor-
tância da raça pudesse ser interpretada como uma re-racialização do
HIV, era possível, em vez disso, argumentar que o que as e-ASOs de
fato combatiam era sua exclusão dos serviços de saúde sexual e dos
espaços de tomadas de decisão e estabelecimento de prioridades que
existiam no âmbito desses serviços. Em vez de insistir em sua inclu-
são num setor imerso numa “correnteza branca”9 e em serem objetos
de governança externa (branca), as e-ASOs emergiram como crítica
direta às organizações convencionais como forma de insistir em ser
sujeitos ativos no trabalho de apoio e atendimento em saúde sexual
etnoespecífico e baseado na comunidade, “por nós e para nós”.10
É em face dessa recusa e dessa negligência que nascem das lu-
tas comunitárias organizações como a Asian Community AIDS Ser-
vices (ACAS), a Alliance for South Asian AIDS Prevention (ASAAP) e a
Black Coalition for AIDS Prevention (Black CAP), para responder de
forma cultural e linguisticamente apropriada à crescente crise do HIV
na Toronto da década de 1980 e início da de 1990. Vale a pena recon-
tar as histórias dessas e-ASOs aqui porque elas enfatizam, em grande
extensão, a severidade das lacunas nos serviços de saúde sexual para
pessoas de cor. Mais importante, elas proporcionam exemplos rele-
vantes de como a cegueira racial das “correntezas brancas” no setor
de AIDS produziu condições de vida e morte para as pessoas de cor.
A Asian Community AIDS Services (ACAS) foi fundada oficial-
mente em dezembro de 1994, mas tem uma genealogia mais lon-
ga, enraizada na década de 1980, através do Gay Asian AIDS Project
(GAAP) do Gay Asians Toronto (GAT). O GAAP — nomeado assim para
identificar a existência de uma lacuna nos serviços de atendimento à
AIDS para pessoas racializadas, particularmente as de ascendência
asiática — foi fundado em 1989. Segundo um de seus fundadores, o
Dr. Alan Li:

9
Agradeço a Roland Sintos Coloma pela sugestão da expressão “correnteza branca”.
10
Agradeço a Eric Olund por este argumento.

210
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

[O GAAT]... começou como um projeto do GAT, porque


nós tentamos trabalhar com todos esses outros grupos
e não funcionou e porque não tínhamos voz na comuni-
dade... Então, com o HIV/AIDS... ela necessitava da nos-
sa presença, pois o silêncio é igual à morte, basicamen-
te, certo?, por isso, se você não se manifesta, as pessoas
simplesmente o ignoram e os recursos vão todos para os
centros comunitários convencionais e nada vai para a
sua comunidade, e é a sua comunidade que tem pessoas
morrendo. (citado por Smith, 2005, p. 470)

Em 1994, o ACAS foi formado a partir da união entre o GAAP


e dois projetos relativamente malsucedidos — o Vietnamese AIDS
Project [Projeto AIDS Vietnamita] do Southeast Asian Services Center
[Centro de Atendimento do Sudeste Asiático] e o AIDS Alert Project
do Toronto Chinese Health Education Committee [Comitê Chinês de
Educação para a Saúde].
A ASAAP (Alliance for South Asian AIDS Prevention) [Aliança
Sul-Asiática para a Prevenção da AIDS] foi fundada em 1989 por vá-
rios membros do Khush, um grupo de gays e lésbicas do sul da Ásia.
Na publicação do décimo aniversário do ASAAP, Sharmini Fernando
escreveu que a organização começou com um telefonema. Ela co-
menta:

Doug Stewart, da ACT [posteriormente o primeiro dire-


tor executivo da Black CAP, ver abaixo] ligou para falar
sobre um dos pacientes, que é HIV positivo. Como eu, o
paciente é do Sri Lanka... Ele fala muito pouco em inglês
e quer contar sua história a alguém que possa entender
seu idioma e sua situação. Marco um encontro com al-
guns ativistas queer do sul da Ásia... [e] o grupo decide
que há necessidade de apoiar não apenas os esforços de
Doug Stewart para prestar assistência ao seu paciente,
mas também a qualquer outro proveniente do sul asiáti-
co que esteja infectado ou acometido pela AIDS. E assim
nasceu a South Asian AIDS Coalition [Coalizão Sul-Asi-
ática Contra a AIDS]. (em Alliance for South Asian AIDS
Prevention, 1996, n.p.)

Com base em entrevistas, também soube que esse paciente ori-


ginal tinha um relacionamento heterossexual, e que sua esposa tam-
bém contraíra HIV. Assim, torna-se claro que as sexualidades que não
se enquadram na estrita condição de gay, particularmente as que têm

211
inflexões etnorraciais, eram frequentemente excluídas dos primeiros
serviços de atendimento à AIDS. Isso pode ser explicado, como decla-
ra um dos entrevistados, pela íntima relação entre o setor HIV/AIDS
inicial e os movimentos de libertação gay da década de 1980, em To-
ronto.
A Black CAP foi formada em 1987, a partir dos esforços de vá-
rios membros das comunidades negras de Toronto, com o propósito
de gerar consciência e educação sobre a transmissão e prevenção do
HIV. Doug Stewart, que trabalhou na ACT antes de se tornar o primei-
ro diretor executivo da Black CAP, faz o seguinte comentário sobre os
primeiros estágios dessa organização: “[Os organizadores] estavam
preocupados com a quantidade de pessoas que tentavam ter aces-
so aos serviços e não conseguiam obter atendimento competente no
sistema de saúde”. A organização foi oficialmente incorporada em
1991.
Essas e-ASOs são parte de uma ecologia social mais ampla do
setor HIV/AIDS. Essas três organizações não são as únicas que aten-
dem comunidades racializadas. Outras existem como ASOs indepen-
dentes, tais como a Africans in Partnership Against AIDS (APAA) [Afri-
canos em Parceria contra a AIDS], ou como programas vinculados a
organizações de serviço social mais abrangentes, como o programa
de prevenção ao HIV/AIDS do Centre for Spanish Speaking People
[Centro de Falantes de Espanhol]. Tomadas em conjunto, seu sur-
gimento e a necessidade de abranger as comunidades racializadas
como “populações de risco” em estado embrionário, nas décadas de
1980 e 1990, indicaram a inabilidade e o fracasso dos modos conven-
cionais de responder a questões de saúde sexual e também a neces-
sidade de atacar o elo entre as políticas raciais, sexuais e de saúde
fora de uma estrutura acometida de cegueira racial. Como resultado,
a presença dessas organizações no setor HIV/AIDS pôde ser prioriza-
da como a formação de uma divisão de trabalho racializada dentro
do setor. Ao menos na primeira década, ou mais, do setor de HIV/
AIDS, a presença contínua de ASOs etnoespecíficas aponta para a
persistência da necessidade de tais organizações, apesar dos recentes
esforços dentro das ASOs convencionais para ao menos tentar desen-
volver formas mais apropriadas culturalmente e, em certa extensão,
antirracistas de prestação de serviços sociais.11
11
Assim como as ASOs convencionais se adaptam em resposta às mudanças nas
políticas de saúde sexual, isso também acontece com as e-ASOs. Por exemplo, e-ASOs
adotam e respondem a mudanças nos contextos municipais e de financiamento, de
forma a modificar prioridades epidemiológicas e dinâmicas multiculturais da cidade.

212
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

A fundação dessas organizações abriu uma via — ao menos no


campo da saúde sexual — que possibilitou confrontar os desafios im-
postos pela zona de contato enquanto espaço radicalmente desigual,
e fez isso pela criação de uma espécie de “refúgio etnoespecífico”, um
espaço de pertencimento e inclusão que existe em contraste com os
espaços de exclusão existentes no interior das organizações de com-
bate ao HIV convencionais. Mary Louise Pratt define esses “refúgios”
como:

espaços onde grupos podem se constituir como comu-


nidades horizontais, homogêneas e soberanas com altos
graus de confiança, percepções compartilhadas, prote-
ção temporária contra legados opressivos... onde existem
legados de subordinação, os grupos necessitam de [tais]
locais de cura e reconhecimento mútuo, refúgios onde
construir entendimento mútuo, conhecimento e reivin-
dicações de mundo, que eles possam então levar para
dentro das zonas de contato. (Pratt, 1991, p. 40)

O refúgio etnoespecífico é, portanto, um espaço no qual e atra-


vés do qual as populações racializadas que se encontram excluídas das
instituições convencionais podem criar espaços de apoio mútuo, cons-
trução comunitária e serviços e programas culturalmente específicos.12

Um exemplo disso, que está além do âmbito deste trabalho, mas que sem dúvida
requer uma análise mais detalhada, tem a ver com a maneira como e-ASOs reagiram
à recente legislação canadense que tentou criminalizar a não notificação do HIV, a
qual tendia a atingir pessoas de cor, especialmente imigrantes e homens negros. Em
dezembro de 2010, o African and Caribbean Council of HIV/AIDS [Conselho Africano
e Caribenho para o HIV/AIDS] de Ontário (ACCHO) organizou um simpósio intitulado
“Criminosos e vítimas? Raça, lei e notificação do HIV em Ontário”, reunindo peritos para
discutir o impacto das respostas criminológicas e jurídicas da não notificação do HIV,
particularmente sobre as comunidades africanas, negras e caribenhas de Ontário. A
descrição do simpósio observa que o assunto é uma preocupação particular da ACCHO,
uma vez que “as comunidades africanas, caribenhas e negras infelizmente tornaram-se
a face da questão perante a mídia”, de modo que um desproporcional índice de 64% da
cobertura jornalística do Toronto Star aborda diariamente casos envolvendo réus negros
masculinos (Mykhalovskiy e Betteridge, 2012, p. 46).
12
A noção de segurança nos “refúgios” pode ser interpretada de múltiplas formas.
Considerando as restrições espaciais, atenho-me a algo próximo da definição de
Pratt, observando que as práticas antirracistas de criação de lugares [placemaking]
buscam produzir espaços etnoespecíficos onde as pessoas racializadas possam sentir-
se seguras para acessar serviços culturalmente apropriados e solidários. No entanto,
quero reconhecer que o termo “segurança” é problemático em relação ao HIV/
AIDS, considerando os efeitos governamentalizantes dos discursos de “sexo seguro” e

213
Além disso, a centralidade da etnoespecificidade na organização dos re-
fúgios contesta ativamente a cegueira racial do mainstream. Trata-se
também, portanto, de um espaço incrivelmente político.
Como muitos geógrafos observaram, espaços são produtos do
trabalho humano e são constantemente criados, reproduzidos e con-
testados. De modo semelhante, espaços e-ASOs como refúgios etno-
específicos são também produzidos pelas práticas sociais e decisões
políticas de pessoas neles envolvidos, frequentemente em resposta
direta ao modo como o setor convencional foi organizado histori-
camente, através de abordagens e práticas racialmente cegas. Isto é,
e-ASOs não são “refúgios” à revelia. Elas são refúgios por causa do
trabalho ativo empregado na sua produção contínua enquanto espa-
ços como esses. Em outras palavras, e-ASOs como refúgios não são
naturalmente refúgios simplesmente em virtude de sua diferencia-
ção em relação ao mainstream. Elas o são porque sua diferenciação
em relação ao mainstream é obtida em parte por práticas de criação
de lugar, ou da performance ativa e contínua da etnoespecificidade
mediante o uso de discursos, imagens e práticas alternativos.

CRIANDO REFÚGIOS: TRÊS EXEMPLOS


DE PRÁTICAS DE CRIAÇÃO
DE LUGAR EM e-ASOs

A emergência das e-ASOs como refúgios através de práticas es-


pecíficas de promoção à saúde, criação de lugar e construção de co-
munidades ilustra a necessidade de abordagens culturalmente mais
específicas e antirracistas para a promoção da saúde sexual do que
as que estavam presentes na década de 1980, quando as ASOs con-
vencionais surgiram como a resposta local ao HIV/AIDS. Essas prá-
ticas são inovadoras na medida em que reconfiguram os modos pe-
los quais os espaços de prestação de serviços sociais ligados ao HIV/
AIDS são criados, e fazem isso com um objetivo político particular
em vista: a criação de espaços de saúde sexual para pessoas de cor
por pessoas de cor. Essa criação ativa e contínua requer estratégias
de criação de lugar, incluindo mobilização de imagens, uso da lin-
guagem e práticas de construção de camaradagem. Discuto abaixo
exemplos dessas estratégias de criação de lugar.
comportamento sexual de risco. As e-ASOs lutam contra construções racializadas de
corpos sexuais in/seguros, como no exemplo da não notificação do HIV (ver nota 11,
acima; ver também Poon et. al., 2006; Vlassoff e Firdaus, 2011; Lawson et al., 2006).

214
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

PRÁTICAS DE AUTORREPRESENTAÇÃO:
A CRIAÇÃO DE ESPAÇOS NA E ATRAVÉS
DA PRÓPRIA IMAGEM

Escrevendo quase duas décadas atrás, Robert Crawford (1994)


investigou como a política cultural da AIDS reconfigurou a relação
entre o eu e o outro “enfermo”. Ele argumenta que os teóricos cul-
turais da AIDS observaram que a crise “tem sido ‘uma epidemia de
significado’, o que significa, em parte, que ela expõe questões de
identidade” (1994, p. 1347), e que a política cultural da AIDS “é uma
política de identidade e diferença... e dos significados sobre os quais
as identidades são construídas, gerenciadas e retrabalhadas”. Como
argumentei acima, a racialização combinada à cegueira de raça mol-
dou a paisagem da promoção à saúde sexual e a prestação de serviços
sociais na cidade de Toronto. Um dos modos pelos quais isso foi feito
se deu por meio de definições estratégicas das populações-alvo, ou
dos corpos e grupos de pessoas que são marcados como objetos le-
gítimos da saúde sexual. No contexto do setor HIV/AIDS de Toronto,
historicamente, homens brancos gays eram saudados como as figu-
ras para as quais o setor de saúde sexual existia. Segundo a observa-
ção de um dos entrevistados — alguém que esteve envolvido com a
Black CAP na década de 1990:

Estava claro para mim mesmo então... que aquilo a que


nos referimos como organizações convencionais [ligadas
à AIDS] não tem o mesmo envolvimento com a saúde e
o bem-estar das pessoas negras quanto uma organização
como a Black CAP. Sempre há certa falta de entendimen-
to. Sempre há certa indisposição ao engajamento.

Essas táticas empregadas para definir quem conta como sujeito


da saúde sexual foram instrumentais na configuração dos espaços, e
as estratégias empregadas nas e por meio das instituições de saúde
fizeram seu trabalho de prevenção, educação e apoio. Nesse trabalho,
o uso de imagens foi e continua sendo particularmente importante
para definir quem está adequado ou fora de lugar nesses espaços de
saúde sexual, com imagens, em sua maioria, de homens gays brancos
dominando grande parte do material de promoção da saúde sexual
nas décadas de 1980 e 1990, e muito provavelmente ainda o domi-
nam hoje. Muitos dos meus entrevistados articulam essa visão não
apenas em termos de corpos de fato ocupando espaços, como se vê

215
na citação acerca da EGALE que inicia este artigo, mas também quan-
to ao uso de imagens para definir espaços relativos a indivíduos. Por
exemplo, um voluntário observa que

quando se caminha pela (Gay) Village, pode-se ver que


todos os cartazes têm homens brancos, sarados, perfei-
tos, idealizados... Raramente se vê, se é que se vê, um asi-
ático entre eles, e quando se vê, o cartaz provavelmente é
da ACAS. (entrevista)

Ele acrescenta, como exemplo alternativo:

Se você passar pelo escritório da ACAS, verá toda sorte de


figuras de saunas noturnas, de casas noturnas... de even-
tos com temas asiáticos, retratando pessoas asiáticas.

Ao representar pessoas de cor em seus cartazes, as e-ASOs si-


nalizam aos potenciais usuários dos serviços, aos trabalhadores e
ao público em geral que corpos racializados são bem-vindos aos es-
paços dessas organizações, mas também que eles são cruciais para
que se faça o trabalho de saúde sexual etnoespecífico das e-ASOs. Por
exemplo, o cartaz da Black CAP mostrado na Figura 1 representa mu-
lheres negras fazendo trabalho comunitário durante o festival Cari-
bana, em Toronto. Ao menos duas delas vestem camisetas que con-
vidam os frequentadores do festival a fazer perguntas sobre o uso de
preservativos. Como ferramenta de recrutamento de voluntários, o
cartaz convida negros e caribenhos a se sentirem “em casa” nos espa-
ços pertencentes à Black CAP. Quando retrata corpos negros fazendo
o trabalho de promoção da saúde sexual no espaço de um evento (o
festival Caribana) que é importante para muitos negros e caribenhos,
o cartaz também exibe, em plena ação, a filosofia “por nós, para nós”
que norteia o trabalho da Black CAP e outras e-ASOSs semelhantes.

216
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

Figura 1. Um cartaz anunciando vagas para voluntários da


Black CAP. (foto do autor)

A presença desses significantes culturais de pertencimento é


crucial para despertar o sentimento de “estar em casa”, tanto assim
que, quando e-ASOs precisam recorrer a outros espaços (por exem-
plo, centros comunitários) para suas programações devido a restri-
ções espaciais, a falta de imagens afirmativas e diversificadas de pes-
soas racializadas nesses espaços tem sido recebida com desaponta-
mento. Como observa um entrevistado em relação ao uso do Centro
Comunitário 519 na Church/Wellesley Gay Village de Toronto, “é um
espaço estéril. Não é como os lugares onde nós pomos cartazes por
toda parte, e onde se pode ver pôsteres de... bem, pessoas que se pa-
recem com a gente”.
Esta citação aponta para uma prática importante entre as e-ASOs,
que é o uso de imagens de pessoas racializadas tanto como crítica
política à brancura predominante — tanto historicamente quanto na
atualidade — nas imagens e discursos voltados à promoção da saúde
sexual em Toronto quanto como demarcação cultural de espaço de
pertencimento.

217
O uso de imagens é estratégico, mas elas frequentemente re-
querem planejamento. Historicamente, num contexto de orçamen-
tos limitados e, portanto, capacidade limitada para produzir cartazes
e outros itens de cultura material destinados à promoção da saúde
sexual, os organizadores e trabalhadores das primeiras e-ASOs preci-
saram ser cuidadosos quanto a quais imagens empregar. Por exem-
plo, um dos primeiros fundadores da ACAS comentou:

Lembro-me do primeiro cartaz que fizemos. Nós passa-


mos por uma série de discussões sobre se a pessoa retra-
tada deveria estar deitada de costas ou de bruços, sabe,
porque estávamos lidando com toda uma bagagem de
relacionamentos [sexuais], [de implicações] de se estar
por cima ou por baixo.

Historicamente, o tropo do gay asiático submisso tem sido usa-


do para representar sexualidades racializadas, através de modalida-
des queer de produtos culturais (p.e., vídeos pornográficos, publica-
ções comunitárias, etc.), como sujeitos sexuais passivos (Fung, 1991).
A citação acima sugere que essas imagens podem ser usadas como
contra-argumentação e autorrepresentação, uma forma de contes-
tação cultural de imagens racializadas dominantes. O entrevistado
prossegue em sua declaração: “Essa imagem representa certos valo-
res... mas também uma construção atenta daquilo por que estáva-
mos realmente lutando naquele momento específico” (Entrevistado,
pioneiro da ACAS).
Han (2007) observa que representações racistas das sexualida-
des masculinas asiáticas não são coisa do passado e que as pessoas
continuam a combater o clichê bastante difundido da passividade
racializada e da exclusão generalizada dos campos sexuais predomi-
nantes. As e-ASOs, consequentemente, continuam a usar imagens
como marcadores de identidade e pertencimento. Essas imagens de
promoção da saúde sexual, obviamente, transcendem as fronteiras
dos escritórios das e-ASOs e dos próprios espaços sociais, e são fre-
quentemente colocadas estrategicamente em espaços coletivos para
atrair o público em geral, particularmente as pessoas racializadas que
poderiam não visitar especificamente os espaços das organizações. O
tão elogiado slogan da campanha de promoção da saúde sexual da
Alliance for South Asian AIDS Prevention [Aliança Sul-Asiática pela
Prevenção da AIDS], “Wrap it Right” [“Embale com cuidado”], faz
exatamente isso. Custeada pela agência de saúde pública do Cana-
dá e composta de uma série de outdoors e comerciais de televisão

218
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

que foram ao ar em 2009, essa campanha empregou de maneira es-


tratégica corpos racializados e significantes culturais (p.e., homens
do sul da Ásia e mulheres trajando vestes tradicionais) para veicular
mensagens sobre saúde sexual, tendo como principal slogan os dize-
res: “Nós embalamos com cuidado. E você? Ser asiático não protege
você. Camisinhas, sim.” Taylor (2009) observa que essa “campanha
inovadora... abre novos caminhos para as comunidades culturais”,
não apenas porque apresenta corpos e símbolos que têm sido tradi-
cionalmente excluídos das culturas materiais predominantes na pro-
moção da saúde sexual, mas também porque ousadamente o faz nos
principais espaços públicos do sistema de trânsito municipal e nos
espaços midiáticos da televisão. As práticas de autorrepresentação,
campanhas publicitárias, cartazes e outros itens de divulgação dos
serviços sociais voltados ao HIV/AIDS agem de forma a criticar a dis-
seminada cegueira racial das imagens convencionais de promoção
da saúde sexual. Posicionadas, como estão, nos espaços dos escritó-
rios e salas de reunião da e-ASO, essas imagens demarcam espaço
para pessoas de cor por pessoas de cor. Às vezes, no caso de campa-
nhas mais gerais, como a “Embale com cuidado”, essas imagens são
também estrategicamente posicionadas além dos limites formais dos
espaços das e-ASOs e em locais convencionais — ruas, locais de trân-
sito de pedestres. Como tais, elas estendem, pelo menos no âmbito
da campanha, a espacialidade do trabalho das ASOs etnoespecíficas.
Em outras palavras, ao ocupar um espaço público mais geral, essas
imagens posicionam formas etnoespecíficas de intervenção na saúde
sexual dentro das zonas de contato da cidade multicultural global.
Trata-se, então, de ferramentas para expandir o “refúgio” para zonas
de contato propriamente mais amplas.

ALGO SE PERDEU NA TRADUÇÃO?


O USO DE LÍNGUAS E DISCURSOS
CULTURALMENTE ESPECÍFICOS

A linguagem é um meio poderoso através do qual mensagens


sobre saúde sexual são disseminadas para um público mais amplo. Po-
rém, a universalidade do discurso não é garantida e, na verdade, é fre-
quentemente contestada, principalmente no âmbito da zona de conta-
to, onde a presença de diferentes grupos etnoculturais num único local
implica a necessidade de que as mensagens sobre saúde sexual sejam

219
traduzidas para formas multilinguísticas e multiculturais. A obra tra-
duzida das e-ASOs aparece em forma de panfletos, revistas e sites que
podem ser acessados em diferentes idiomas. Ela também implica a
capacidade de prestar serviços pessoalmente em múltiplas línguas.
Como aponta um entrevistado, em relação ao Comitê de AIDS de To-
ronto (ACT), uma organização convencional:

A barreira das línguas é, certamente, uma das mais im-


portantes questões quando se trata da ACT... Pode-se di-
zer que, se você não fala inglês, a ACT não tem ninguém
especificamente disponível no local para o seu grupo de
falantes. Eles podem fazer reuniões com hora marcada,
mas definitivamente não têm ninguém no local.

Isso também é verdade no contexto histórico, pois outro entre-


vistado comenta, em sua reflexão sobre a história da sua e-ASO:

Havia outras organizações dedicadas à AIDS em Toronto


[na época], mas elas não dispunham do idioma e nem
dos serviços culturais e linguísticos dirigidos à comuni-
dade do leste e do sudeste asiáticos.

Fica claro, a partir destas citações, que uma prática fundamen-


tal que diferenciava — e continua a diferenciar — as e-ASOs das or-
ganizações convencionais é a habilidade de fornecer serviços e ma-
teriais em diferentes línguas. Um entrevistado descreve a ASAAP, por
exemplo, como espaço onde “se pode conseguir uma fartura de infor-
mações em hindi, punjabi, gujarati, e assim por diante”. De maneira
semelhante, um antigo voluntário da ACAS comenta: “sei que nossos
materiais são traduzidos em cantonês, mandarim, filipino, tailandês,
coreano, japonês... isso faz uma enorme diferença, especialmente
quando se tem novos imigrantes”. Isso também é obtido, em parte,
mediante uma composição estratégica do quadro funcional: a con-
tratação de trabalhadores e voluntários que sejam capazes de prestar
atendimento pessoal em várias línguas.
A disponibilidade em múltiplos idiomas permite que os usuá-
rios que falam inglês como segunda língua se sintam “em casa” nas
e-ASOs porque, nesses espaços, “sua incapacidade de falar inglês com
tanta fluência... não é usada contra você” (um entrevistado, funcio-
nário de e-ASO). Esta citação sugere que a exclusão não ocorre ape-
nas quando se impede que pessoas tenham acesso a atendimentos e
serviços que estão disponíveis apenas em inglês. A exclusão acontece

220
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

também por vias mais corriqueiras, como, por exemplo, quando pes-
soas que falam inglês como segunda língua são levadas a se senti-
rem deslocadas nas ASOs convencionais quando sua fluência é ques-
tionada durante conversações triviais com funcionários ou outros
usuários desses espaços. O policiamento das interações sociais por
intermédio do policiamento do idioma falado é, portanto, um exer-
cício de discriminação entre quem está em seu devido lugar ou não
nos espaços convencionais. Como alternativa a esse quadro, algumas
e-ASOs adotaram políticas explícitas em torno da língua, que servem
como alternativas às práticas das organizações convencionais. Um
entrevistado deu-me este exemplo:

Um dos meus amigos tem... essa coisa chamada fala cria-


tiva... que é um modo de respeitar o fato de que as pes-
soas dizem as coisas de jeitos diferentes, e mesmo assim
se pode entender o que elas estão falando, [de que] elas
não precisam falar com perfeição para que se entenda o
que elas dizem. É algo que nós, de certa forma, adotamos
[no programa].

Além da estratégia relativamente simples de prestação de servi-


ços em várias línguas, a tradução também deve ser entendida como
ato político que envolve não apenas a promoção à saúde por pessoas
que falam diferentes idiomas ou a conversão passiva de mensagens
impressas sobre saúde sexual de uma língua para outra [Wong e Poon
(2010); ver também Hendrickson (2003) e diversos ensaios presentes
em Álvarez e Vidal (1996)]. É especialmente importante observar esse
aspecto, considerando que as mensagens sobre saúde sexual têm
suas próprias geografias sociais; ou seja, elas estão localizadas dentro
dos contextos socioespaciais em que se situam. Em outras palavras,
essas mensagens são culturalmente específicas. Traduzi-las requer
navegar o território das diferenças entre culturas, e o papel da língua
nessa navegação é importante, uma vez que os discursos sobre saúde
sexual frequentemente partem de contextos brancos, anglófonos e
biomédicos.
Sob uma perspectiva foucaultiana, os discursos públicos e do-
minantes sobre saúde sexual refletem hierarquias de poder, ao pas-
so que determinados construtos, geralmente ocidentais e biomédi-
cos, de sexualidade, saúde e saúde sexual são codificados em cam-
panhas promocionais, enquanto que outros são excluídos (Wong e
Poon, 2010). Reconhecendo os limites da veiculação de mensagens
dominante, as e-ASOs incorporaram entendimentos de saúde sexual

221
culturalmente específicos em seu trabalho. Elas fizeram isso em re-
conhecimento ao fato de que as mensagens dominantes não podem
ser traduzidas com facilidade de um contexto socioespacial e cultural
para outro e que compreensões culturalmente específicas de sexuali-
dade e saúde são decisivas porque reconhecem a importância da di-
nâmica cultural para a promoção da saúde. Como observa Manalan-
san (2003) no contexto da globalização da palavra “gay” como termo
de identidade, a fricção de diferenças geográfico-culturais significa
que termos populares frequentemente colidem com outras formu-
lações e entendimentos — na verdade, construções vernáculas — de
identidades e políticas sexuais, uma vez que o uso hegemônico do
termo ocidental “gay” tem a tendência de omitir a “dinâmica social”
culturalmente específica de termos vernaculares para sexualidades
alterizadas (Manalansan, 2003, p. 24). De modo semelhante, concei-
tos codificados nas mensagens de promoção à saúde sexual também
precisam negociar essas dinâmicas culturais, uma vez que frequente-
mente são de difícil tradução entre fronteiras etnorraciais.
Alguns funcionários de e-ASOs articulam a complexidade da
tradução — como mais do que simplesmente linguística — apontan-
do para a importância dos conhecimentos vernaculares para o fazer
da promoção da saúde sexual. Um desses trabalhadores usa o exem-
plo dos marcadores de identidade para relacionamentos sociais e se-
xuais que são específicos de grupos determinados:

Na América do Norte, na nossa gíria, quando falamos em


“top” [por cima] e “bottom” [por baixo], estamos nos re-
ferindo a sexo anal, não é? Em Hong Kong, Taiwan, eles
podem dizer que... que querem receber cuidados... Que
[o termo] “um” cuidaria bem do “zero”. Quando você fala
assim com eles, eles: ‘ah, não, não, eu não gosto de sexo
anal, não mesmo’... Quando se trabalha com prestação
de serviços, em poucas palavras, esse tipo de conheci-
mento cultural pode fazer a diferença entre o sucesso e
o fracasso.

Esta citação capta o fato de que a tradução, como prática que


produz e-ASOs como espaços para pessoas etnorracializadas, é mais
do que apenas a linguagem tomada em seu sentido estrutural de pa-
lavras e sintaxes; ela tem a ver também com os conhecimentos e sig-
nificados culturais específicos que podem ou não ser transmitidos por
meio delas (Wong e Poon, 2010; Álvarez e Vidal, 1996; Temple, 2002).
A sensibilidade a esses entendimentos culturalmente arraigados da

222
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

sexualidade e da saúde é necessária para que a promoção da saúde


sexual e a prestação de atendimento sejam eficientes e culturalmente
apropriados.

O ENGAJAMENTO EM PRÁTICAS DE CONSTRUÇÃO


DE COMUNIDADES: O PAPEL DOS EVENTOS SOCIAIS
E DA COMIDA

As e-ASOs tratam a saúde sexual por meio de uma abordagem


mais-que-individual, reconhecendo que as categorizações etnor-
raciais, herdadas de instituições estatais como o multiculturalismo
legalmente determinado ou as informações do censo, interpelam
indivíduos como pertencentes a grupos sociais com base em deter-
minados marcadores de diferenças. Essas condições determinaram
os modos pelos quais as vidas e os mundos das pessoas racializadas
foram organizados. Tais condições também contribuem para moldar
o setor HIV/AIDS como o reino dos que gozam de privilégios sociais.
Portanto, não é surpresa que, tirando o fato de seguir tendên-
cias não tão recentes de promoção da saúde, tratando-a como fenô-
meno necessariamente social e espacial (Kearns, 1993; Rosenberg,
1998; Kearns e Moon, 2002; Brown et al., 2009), as e-ASOs geralmente
abordam seu trabalho em termos coletivos. De fato, as histórias das
e-ASOs são geralmente histórias de ações coletivas, o que se eviden-
cia pela presença dos termos “coalizão”, “aliança” e “comunidade” nas
denominações da Black CAP, da ASAAP e da ACAS, respectivamente.
Essa abordagem coletiva está claramente arraigada no contexto de
um setor HIV/AIDS convencional decididamente cego à raça na dé-
cada de 1980, e ela se liga aos esforços coletivos de, historicamente,
contestar a racialização na nação de colonização branca que é o Ca-
nadá, de maneira mais ampla.
Uma das vias pelas quais a importância do “coletivo” se mani-
festou na ação das e-ASOs se deu pela forma decididamente social
de muitos de seus programas (ver também Adam, 1997; Brown, 1997;
Mykhalovskiy e McCoy, 2002). Grupos dentro de ASOs, como o Queer
Asian Youth [Juventude Queer Asiática], por exemplo, organizam suas
programações em torno de:

Eventos sociais, que são maneiras habilmente disfarça-


das de lidar com a saúde sexual. Esses eventos sociais...

223
foram realmente úteis porque essa era verdadeiramente
a chave para reunir os membros da comunidade. E tra-
tava-se de construir uma comunidade baseada na sexu-
alidade, que tinha na saúde sexual um componente real-
mente grande, o que era muito importante. (Entrevista,
voluntário)

Os eventos sociais e os espaços dentro dos quais eles ocorrem


são, portanto, importantes para reunir indivíduos que compartilham
tanto conhecimentos etnoculturais sobre sexualidade e saúde, quan-
to experiências de exclusão racializada do mainstream.
Uma tática interessante usada por e-ASOs para a construção
de comunidades é uma programação centrada em comida. Seja por
meio de imagística ou realmente pela preparação e consumo com-
partilhado da mesma, a comida figura com destaque no trabalho
das e-ASOs destinado a criar espaços seguros de apoio. Isso se deve,
como a prática das autorrepresentações visuais descrita acima, ao
fato de que a comida pode ser um importante construtor de espaço
e comunidade para grupos racializados (hooks, 1990; Slocum, 2011;
Johnston e Longhurst, 2012; Liu e Lin, 2009). Conforme argumentam
Longhurst et al. (2009), alimentos podem servir como recordações da
terra natal e da comunidade de origem, especialmente para imigran-
tes e comunidades racializadas em nações de colonização branca:
“alimentos podem ajudar as pessoas a se sentirem em casa, eles po-
dem despertar-lhes saudades do lar, e podem ser uma ponte para um
novo lar” (p. 333). Além do mais, a natureza visceral da comida — ela
é experimentada, sentida, cheirada e ingerida — capacita tais pro-
gramas a literalmente inscrever corpos em iniciativas ligadas à saúde
sexual (Hayes-Conroy e Hayes-Conroy, 2008). Por fim, a visceralidade
da comida é experienciada comunalmente através da preparação e/
ou consumo compartilhados em locais como os programas e eventos
ligados à saúde sexual. Dessa forma, ela pode consequentemente fa-
cilitar o processo de construção de comunidade.
Considerando o valor político da comida e sua preparação
como experiências comunais e viscerais (hooks, 1990; Liu e Lin, 2009;
Hayes-Conroy e Hayes-Conroy, 2008), não é surpreendente que os
eventos sociais centrados na alimentação estejam frequentemente
embutidos no trabalho com saúde sexual de e-ASOs. Dois exemplos
programáticos ajudam a ilustrar esse argumento. Primeiro, o progra-
ma mensal da Cozinha Comunitária, promovido em conjunto pelas
organizações Africans in Partnership Against AIDS, ACT, Black CAP

224
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

e Voices of Positive Women [Vozes de Mulheres Positivas], usa o pre-


paro coletivo e o compartilhamento de alimentos como forma de
construção de comunidade e como via para criar um espaço seguro,
ainda que temporário, para o engajamento em conversas sobre saúde
sexual e reprodutiva da mulher. Nesse programa de base alimentar, o
espaço doméstico da “cozinha” é invocado de um modo que faz uso
estratégico da atribuição de gênero desse espaço (Domosh e Seager,
2002). O espaço da cozinha, nesse contexto, não é necessariamente
um simples espaço de opressão de gênero porque também atua como
um local onde “lar” e “comunidade” podem ser recriados por meio da
comida (Longhurst et al., 2009). Por conseguinte, embora essa prática
potencialmente reproduza a feminização do preparo dos alimentos
e do espaço ligado a ele, faz isso dentro do espírito da política trans-
formadora: usa o processo de preparo e compartilhamento da comi-
da como meio de politizar não apenas a saúde sexual e reprodutiva
dos participantes desse programa, mas também, potencialmente, os
próprios participantes, através do entendimento de si próprios como
sujeitos etnorraciais e de saúde sexual. Nesse contexto, convém pres-
tar atenção na afirmação de bell hooks (1990) quanto à política do
“homeplace” [numa tradução aproximada: ‘lugar de residência’] para
pessoas marginalizadas, uma vez que o homeplace possibilita o esta-
belecimento de “lugar(es) seguro(s) onde as pessoas negras possam
afirmar-se mutuamente e, ao fazer isso, curar muitas das feridas infli-
gidas pela dominação racista” (p. 42).
Um segundo exemplo são as festas de bubble tea promovidas
pela Queer Asian Youth (QAY), um grupo dentro da ACAS. Festas de
bubble tea são ocasiões sociais centradas não apenas no consumo
compartilhado do chá de bolhas — uma bebida doce e saborizada,
geralmente gelada, contendo bolinhas de tapioca, que é popular em
muitos países do leste e do sudeste asiático e nas comunidades de
diáspora (em restaurantes étnicos e outros espaços de alimentação
dessas comunidades, ver Liu e Lin, 2009; Duruz, 2010), mas também
na ocupação coletiva de um determinado espaço: um café local es-
pecializado em bubble tea, que é semelhante a uma cafeteria em ter-
mos de atmosfera social. Um dos entrevistados — um ex-voluntário
— relata que seu primeiro encontro com a ACAS ocorrera num sa-
lão de bubble tea: “Eles promoveram uma noite de bubble tea... Foi a
primeira vez que eu tive a experiência [de estar] com outros LGBTQ,
jovens queer asiáticos, nesse espaço social, e foi bem legal”. Quando
instado a responder por que motivo isso era importante, ele respon-
deu: “Eu me sentia como se ainda não fosse realmente eu mesmo.

225
Não podia ser asiático e gay ao mesmo tempo, nessa época... a ACAS
realmente — ela realmente foi capaz de reunir minhas identidades...
você não precisava escolher. Você podia ser você mesmo”. De modo
semelhante, o documentário F3: a Queer Asian Youth Conference [F3:
Uma conferência da Juventude Queer Asiática], que registra a con-
ferência Facts for Friction [Dos fatos para a fricção], promovida pela
ACAS, descreve desta forma a inclusão de bubble tea na programa-
ção da conferência: “o salão de bubble tea do evento foi uma versão
em grande escala de um outro evento que a ACAS já promovia havia
três anos... Esse evento reforçou nossa crença de que o apoio social
é um componente essencial para melhorar os determinantes sociais
da saúde” (Chan et al., 2005). Como o ambiente da cozinha no caso
do programa da Cozinha Comunitária, o salão de bubble tea também
funciona como espaço político e de construção de comunidade. Ele
possibilita, ainda que temporariamente, a convivência entre pessoas
queer racializadas, com o propósito de cultivar e viabilizar o apoio so-
cial de um modo que frequentemente não é possível, ou pelo menos
não é afirmado, em outros espaços.
Finalmente, a presença cotidiana da comida nos espaços das
e-ASOs contribui para torná-los espaços diários de pertencimento
para os seus participantes. A comida desempenha um papel de des-
taque no modo como esses participantes ocupam e usam o espaço
da organização. Conforme argumentam Longhurst et al. (2009), a ex-
periência da alimentação é frequentemente corriqueira; no caso dos
espaços das e-ASOs, a comida funciona para marcar o espaço como
íntimo e, até mesmo, análogo ao lar. Num texto publicado no boletim
Black CAP Links, Camille Griffith escreve para celebrar o antigo espa-
ço da organização na Parliament Street, dando ao seu poema o título
Sweet 103 em referência ao número do escritório (Conjunto 103). Es-
crito depois que a Black CAP se mudou para outro endereço, na Bay
Street, esse poema começa descrevendo o espaço “como um lar pra
todos nós”. Na quarta estrofe, há uma alusão à comida como marca
de espaço compartilhado e de comunidade:

Há sempre comida de montão:


Arenque defumado, charque, molho de alfavaca
Quando alguém grita “o que há pra comer, rapazes?”
Corremos todos empunhando garfo e faca.

O poema termina com uma louvação a esse antigo espaço:

226
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

Depois de todo dito e feito


Por que partir nos faz tão tristes?
Que mais posso dizer?
Conjunto n. 103
Que outro lugar foi melhor pra vocês?

Neste poema, que faz uso de uma gramática inglesa cultural-


mente específica no mesmo espírito político das mobilizações es-
tratégicas da linguagem que discuti acima, Griffith torna claras as
ligações entre coletividade, lar, comida e criação de lugar nas e-ASOs.
Nesses espaços, a etnoespecificidade é realizada em parte mediante
o ato corriqueiro de comer (arenque defumado, charque, molho de
alfavaca) juntos. Também sinaliza para o fato de que a produção e a
manutenção do refúgio como espaço de afirmação são feitas no dia a
dia, mediante ações tão triviais quanto o compartilhamento de refei-
ções num estabelecimento comunitário.

CONCLUSÃO: O “REFÚGIO”
COMO ESPAÇO NEGOCIADO

Como alternativas explícitas para pessoas de cor, as e-ASOs são


necessariamente espaços políticos que, como outros espaços sepa-
ratistas, existem como sítios de reparação e afirmação para os exclu-
ídos do mainstream (ver, por exemplo, Browne, 2009). Neste artigo,
mapeei, ainda que brevemente, sua emergência como importantes
atores no setor HIV/AIDS de Toronto. Argumentei que o contexto
da cidade multicultural como a zona de contato é importante para
compreender os contornos racializados do campo da saúde sexual
na Toronto da década de 1980, tanto quanto a hegemonia de uma
abordagem padronizada, centrada no gay masculino e racialmente
cega no que diz respeito à organização, ao ativismo e ao atendimento
em saúde sexual. O ingresso das e-ASOs nesse campo é, argumen-
to, uma importante crítica radical a essa abordagem racional e cega.
Na condição de espaços criados por e para pessoas de cor, as e-ASOs
representam espaços materiais de pertencimento e acesso à saúde
sexual para pessoas marginalizadas.
À guisa de conclusão, gostaria de revisitar a relação entre as zo-
nas de contato e os refúgios. Desejo fazer isso para enfatizar a centra-
lidade da diferenciação social na produção de ambas essas geografias

227
sociais: em ambos os espaços, a diferença social — principalmente
em termos de racialização — anima a interação social, a organização
e as instituições. Conforme argumentei, amparando-me em Mary
Louise Pratt (1991, 2008), na “zona de contato liberal da cidade glo-
bal”, a intimidade física e o compartilhamento de espaços necessá-
rios para a aproximação de estrangeiros multiculturais nem sempre
se traduz em espaços sociais solidários, mesmo em setores e insti-
tuições que fazem parte do sistema social de assistência, inclusive e
especialmente as instituições de saúde. Sugeri que a história das res-
postas institucionalizadas ao HIV/AIDS em Toronto é uma história de
racialização, a qual resulta da mobilização de maneiras racialmente
cegas de fazer o trabalho de saúde sexual nas organizações conven-
cionais. A emergência de formas etnoespecíficas de trabalhar com a
saúde sexual como refúgios criados por e para pessoas de cor contes-
ta essa racialização ao nomear a materialidade da raça na vida coti-
diana, seja sexualmente ou de outra maneira.
No entanto, não se sugere que as e-ASOs são imunes às questões
de poder e desigualdade. Na verdade, eu sugeriria que as e-ASOs são
heterotopias, em oposição a utopias. Como refúgios que são, hete-
rotopias são locações materiais apresentadas como espaços seguros
para os outros excluídos, mas são produzidas material e continua-
mente em vez de serem locais cristalizados e permanentemente per-
feitos, como ocorre com a ideia de utopia (Foucault, 1986). Em outras
palavras, as e-ASOs estão em constante negociação, não apenas por-
que as práticas e instituições que contribuem para a racialização se
modificam (por exemplo, falando de maneira geral, as ASOs conven-
cionais tornaram-se, ao longo do tempo, mais sensíveis às questões
de raça, etnicidade e cultura), mas também porque os participantes
das e-ASOs são, eles próprios, junções ou interseções de múltiplas
identificações e subjetivações. Não se pode e não se deve esperar, por
exemplo, que haja sempre de prontidão uma base imutável de unida-
de entre homens racializados e mulheres racializadas, uma vez que
as políticas de gênero ainda são tremendamente importantes, par-
ticularmente em termos de saúde sexual (ver Dyck, 2006). De modo
semelhante, embora exista um grau significativo de racialização
compartilhada entre os que são amplamente constituídos enquanto
“negros”, “asiáticos” ou “sul-asiáticos”, divergências na racialização
no interior dessas categorias, e também entre elas, estão igualmente
presentes e requerem mais investigação [ver Pulido (2006) sobre a ra-
cialização das pessoas de cor em relação umas às outras].

228
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto

Além disso, os termos de identidade racial “negro”, “asiático”


e “sul-asiático” não são tampouco verdades dotadas de status onto-
lógico, mas sim categorias políticas que estão sempre em constante
negociação, construção social e performance. De fato, para retornar
ao tema anterior, essas categorias são biopolíticas na medida em que
têm a capacidade de definir quem pertence a que população e orga-
nização. Porém, conforme argumentam os estudiosos da questão ra-
cial, categorizações etnorraciais e identificações são complexas (ver,
por exemplo, Mahtani, 2002; Goldberg, 1993). Como exemplo, o que
pode significar para alguém que se identifica como de “raça mestiça”
ou de descendência cingapuriana ou cingalesa ter acesso a organiza-
ções de saúde sexual que são definidas por filiações etnorraciais ou
regionais? Como se pode negociar as fronteiras entre essas categorias
quando se está localizado exatamente numa dessas fronteiras?
Essas questões requerem ser mais bem exploradas, e embora
isso esteja além do alcance deste artigo, tais preocupações precisam
motivar futuros trabalhos de pesquisa sobre as organizações de saú-
de. Ao mencioná-las, meu objetivo não é minimizar o trabalho das
e-ASOs. Afinal, é igualmente importante notar que o uso dessas cate-
gorizações é estratégico e político, e não uma simples e acrítica essen-
cialização de identidade. As e-ASOs fazem uso e mesmo se apropriam
de categorias já disponíveis, que, embora carregadas de histórias
complexas e conhecimentos racializados (por exemplo, como gru-
pos antropológicos de “cultura”), categorias instituídas pelo estado
(por exemplo, grupos censitários) ou imaginações geopolíticas (por
exemplo, construções de mundo coloniais ou militares), ainda assim
são úteis no contexto material da cidade multicultural global como
zonas de contato. Essas categorias deveriam, portanto, ser conside-
radas como táticas de negociação e, de modo semelhante, as e-ASOs
deveriam ser tratadas como espaços de negociação, particularmente
em cidades como Toronto, onde a diversidade é comercializada como
força, mas onde as desigualdades raciais persistem.

AGRADECIMENTOS

Este artigo é em forte medida uma reescritura de versões ante-


riores, apresentadas em colóquios na série de conferências Compa-
rative Program in Health and Society (CPHS) [Programa Comparativo

229
em Saúde e Sociedade] (Universidade de Toronto, 2011) e na sessão
especial do Seattle 2011 AAG [encontro da Associação Americana de
Geógrafos, em Seattle] “Sexualities, Health, Politics, Place 1” [Sexuali-
dades, Saúde, Política, Local 1]. Gostaria de agradecer aos que parti-
ciparam dessas apresentações, particularmente minhas colegas bol-
sistas do CPHS, Dra. Deb Cowen e Dra. Lisa Forman. Agradeço, tam-
bém, aos participantes da minha pesquisa por dividirem seu tempo
e suas perspectivas comigo, e a meus supervisores Deborah Leslie e
Matthew Farish por sua orientação decisiva. Agradeço, ainda, a Ca-
therine Nash e Kath Browne por seus generosos comentários sobre
este artigo, assim como a Eric Olund e Judy Han por suas revisões e
comentários incisivos sobre o texto. O fomento a esta pesquisa foi
generosamente proporcionado pelo Conselho de Pesquisa em Ciên-
cias Sociais e Humanidades, pelo programa de bolsas de graduação
de Ontário [Ontario Graduate Scholarships] e pela Fundação Lupina.
Aplicam-se aqui as ressalvas habituais.

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235
A política sexual do neoliberalismo
e a austeridade num país
“excepcional”: a Itália
Cesare Di Feliciantonio

RESUMO

A homonormatividade, compreendida como a “política sexual do neolibera-


lismo”, tornou-se um conceito disseminado no âmbito das ciências sociais
e da geografia. Associada à domesticação das vidas dos homossexuais e ao
acesso dos indivíduos LGBT aos plenos direitos da cidadania, tal noção cria
uma narrativa monolítica acerca do neoliberalismo e sua política sexual em
todo o Hemisfério Norte. Detendo-se no caso da Itália, este artigo confronta
esse conceito homogeneizante, adotando a perspectiva da “exceção” desen-
volvida por Aihwa Ong para analisar o neoliberalismo. Ao adotar a conceitu-
ação de interação entre “neoliberalismo como exceção” e “exceções ao neo-
liberalismo” proposta por essa autora, o artigo demonstra como essa mesma
interação caracteriza a política sexual do neoliberalismo e a austeridade no
caso italiano. De fato, a Itália representa um caso à parte dentro do modelo
de “política sexual do neoliberalismo (e austeridade)” no que diz respeito a
questões LGBT, embora a exceção tenha sido invocada na política italiana
para regular a sexualidade, notavelmente o trabalho ligado ao sexo. Além
disso, exceções foram agregadas por instituições públicas com a finalidade
de proteger sujeitos (consumidores) LGBT de “riscos” e “perigos”, por meio
de uma estratégia definida como “empreendedorismo soft”.

Palavras-chave: Itália; política sexual; exceção; neoliberalismo; homonor-


matividade; trabalho sexual.

INTRODUÇÃO

E
m 2000, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas
de Roma para reivindicar visibilidade pública e reconheci-
mento de seus direitos civis: a World Pride Rome desafiou a
resistência das instituições políticas conservadoras que tentaram proibir
a manifestação. Estas operavam sob a influência das hierarquias do
Vaticano, enquanto a cidade abrigava o Jubileu Sagrado — uma das
mais importantes celebrações da Igreja Católica, que geralmente
ocorre a cada 25 anos. Quatorze anos mais tarde, dezenas de milha-
res de pessoas tomaram novamente as ruas da cidade para reclamar
o reconhecimento de direitos básicos de cidadania. Nesse intervalo,
a maioria dos países europeus e ocidentais registrou a aprovação de
novas leis acerca de uniões civis, casamentos e adoções, com o ob-
jetivo de incluir a população LGBT nas políticas nacionais de cida-
dania. “Homonormatividade” e “homonacionalismo” tornaram-se
termos amplamente disseminados, indicando uma nova tendência
nos projetos neoliberais nacionais de cidadania, que então passaram
a acolher o ótimo e abastado consumidor “rosa” (e branco) (Bell e
Binnie, 2004; Binnie, 2004; Duggan, 2002; Puar, 2007). Nesse aspecto,
o caso italiano parece ser um “retrocesso” em comparação à Europa
“moderna” (e ao restante do Ocidente), percepção que se tornou uma
narrativa disseminada entre alguns grupos de defesa LGBT conven-
cionais (Colpani e Habed, 2014). No entanto, alguns traços que têm
sido associados à “homonormatividade” enquanto “política sexual
do neoliberalismo” (Duggan, 2002) podem ser também encontrados
no contexto italiano: a criação de vilas gays e rainbow zones, uma nar-
rativa pública impulsionada por instituições formais que reconhece
a importância do turismo e do comércio rosas, um novo discurso he-
gemônico centrado no amor e no “bom gay”. Tais tendências refle-
tem uma domesticação generalizada das vidas de lésbicas e gays e
o declínio de uma esfera pública queer (Duggan, 2002; Richardson,
2005). Então, a Itália é meramente um exemplo de país “retrógrado”
seguindo (vagarosamente) o caminho que leva à realização plena da
“modernidade” e ao neoliberalismo? Ou o caso italiano poderia se re-
velar algo mais relacionado ao caráter variegado e “excepcional” do
neoliberalismo e do capitalismo (e suas políticas sexuais)?
O artigo trata essas tensões adotando a perspectiva da exceção
como traço predominante do neoliberalismo — sendo este o argu-
mento central do livro de Aihwa Ong, Neoliberalism as Exception:
Mutations in Citizenship and Sovereignty [Neoliberalismo como exce-
ção: mutações da cidadania e da soberania] (2006). Ong oferece-nos
uma análise brilhante da complexidade, da fragmentação e da desar-
ticulação da cidadania nos espaços neoliberais de exceção, na medi-
da em que estes assinalam um projeto ilimitado, sempre sujeito à (re)
negociação. Ao (re)atribuir um papel central ao Estado e às narrativas
das elites nacionais sem construir uma visão homogênea/uniforme

238
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

das instituições estatais e das elites, Ong desafia a oposição dualista


e abrangente entre “cidadania” e “vida nua”, que caracteriza o estado
de exceção segundo Agamben1 (1998). Seguindo o caminho oposto,
ela teoriza sobre a existência de uma cidadania (neoliberal) descon-
tínua e graduada, que ultrapassa as fronteiras do estado-nação e se
situa nos limites compreendidos por etnia, gênero, classe, capital hu-
mano e cultural, entre outros. Desse modo, as exceções ao tipo ideal
weberiano de cidadania e soberania tornam-se diversificadas, qua-
se inumeráveis, uma vez que o próprio caráter do neoliberalismo é
excepcional e não há um modelo “original” ao qual almejar. Em sua
análise do papel constitutivo da exceção, Ong observa que esta não
deve se reduzir unicamente ao “outro” negativo de Agamben: na ver-
dade, a exceção pode consistir em direitos de acesso a grupos e espa-
ços específicos. Nas palavras de Ong:

Proponho um conceito de exceção mais abrangente,


como uma variação extraordinária da política que pode
ser mobilizada para incluir, tanto quanto para excluir.
Segundo o entendimento convencional, a exceção gover-
namental assinala sujeitos excluíveis, aos quais se negam
proteções. Mas a exceção também pode ser uma decisão
positiva de incluir populações e espaços seletos como
alvos de “escolhas e valorações calculadas”, associadas
à reforma neoliberal. Pela minha formulação, nós preci-
samos explorar a articulação entre neoliberalismo como
exceção e exceção ao neoliberalismo, a interação entre
tecnologias de governo e de disciplinamento, de inclusão
e exclusão, de atribuição ou negação de valor à conduta
humana. (2006, p. 5)

Assim, vemos como a reconceptualização da exceção por Ong


ultrapassa as fronteiras do próprio Estado, tanto em nível supranacio-
nal quanto local, de forma que alguns espaços, grupos ou comunida-
des adquirem uma posição excepcional (tanto em termos negativos
quanto positivos). Na verdade, direitos e benefícios que foram tradi-
cionalmente associados à cidadania, agora seguem critérios neolibe-
rais — como é o caso da passagem do estado de bem-estar (welfare)
keynesiano às formas emergentes de workfare (acesso a benefícios

1
De acordo com Agamben (1988), o estado de exceção é o dispositivo central da
soberania, separando pessoas que são reconhecidas como cidadãos dentro de um
sistema legal daquelas que não o são; destituídas, portanto, de qualquer proteção
política e jurídica.

239
sociais condicionado ao trabalho) (ver Handler, 2004) —, integrando
espaços de soberania nacional às geografias mais complexas do capi-
talismo europeu/global. Portanto, a cidadania é atualmente ligada a
uma multiplicidade de fatores, redefinidos e reimaginados conforme
o lugar e a observância de diferentes éticas, de forma que o espaço do
estado-nação resulta fragmentado e estendido através de diferentes
escalas e grupos (Ong, 2006, p. 7-8). Todo o processo é assim cons-
truído sobre a interação e as tensões entre o “neoliberalismo como
exceção” e as “exceções aos neoliberalismo”.
Seguindo tal arcabouço teórico, este artigo mostra como esse
caráter excepcional pode ser encontrado também nas tendências
contrastantes da política sexual italiana sob o neoliberalismo (e a
austeridade), superando assim a temporalidade monolítica e uni-
direcional demonstrada quando se recorre a categorias como “ho-
monormatividade” e “homonacionalismo”. Na verdade, alguns co-
mentadores encontraram traços dessas tendências no caso italiano
(p.e., De Vivo e Dufour, 2012; Ferrante, 2013), transpondo as teorias
da homonormatividade, de Duggan (2002), e do homonacionalis-
mo, de Puar (2006), sem qualquer ajuste crítico ao contexto da Itália
nem qualquer reflexão sobre os modelos neoliberais. Em contraste,
quando analiso as políticas sexuais e a cidadania na Itália neoliberal,
almejo construir minha argumentação de modo a incluir diferentes
subjetividades (pessoas LGBT, trabalhadores do sexo, mulheres), se-
guindo o princípio foucaultiano de que a governabilidade neoliberal
é primariamente biopolítica, destinada a disciplinar corpos e com-
portamentos (Foucault, 2008).
Ao discutir algumas das principais características da política
sexual da Itália nos últimos 20 anos, este artigo as situa no âmbito de
uma reflexão mais genérica sobre neoliberalismo e austeridade, to-
mando-as como interconectadas. De fato, as políticas de austeridade
adotadas desde a erupção da atual crise fiscal e financeira são vistas
como um continuum natural, o último passo das políticas neolibe-
rais implementadas desde, pelo menos, o início da década de 1990.
Nesse aspecto, sua política sexual pode ser também interconectada,
uma vez que o que emergiu nos últimos anos não assinalou qualquer
ruptura com modelos anteriores. Isso reflete o caráter sempre contí-
nuo, sempre em construção, do neoliberalismo, o qual levou muitos
estudiosos a falar em “neoliberalização”, para enfatizar sua natureza
de projeto (inacabado) sempre em negociação entre diferentes atores
e parâmetros (p.e., Brenner e Theodore, 2002; Castree, 2006; Peck e
Tickell, 2002).

240
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

O restante do artigo compreende cinco partes: na parte 2, faço


uma revisão da literatura sobre homonormatividade enquanto “po-
lítica sexual do neoliberalismo”, salientando como ela cria uma nar-
rativa do neoliberalismo em si que é reducionista, fixa e padece de
cegueira de lugar, reforçando assim as críticas anteriormente pro-
postas por Brown (2009, 2012). A terceira parte apresenta uma bre-
ve descrição da política neoliberal de austeridade adotada pela Itália
nos últimos 20 anos, enfatizando as ligações entre neoliberalismo e
austeridade e salientando como a exceção tornou-se uma palavra-
chave para compreender como a governança mudou nesse período.
Exceção é o foco principal da quarta parte, pois ela trata de como a
Itália representa um caso à parte dentro do modelo de “política se-
xual do neoliberalismo (e austeridade)” relativo a questões LGBT, na
medida em que a exceção foi invocada e instalada na política italiana
para regular a sexualidade, notavelmente o trabalho sexual. A quinta
parte aprofunda a discussão sobre os traços emergentes da política
sexual do neoliberalismo e da austeridade na Itália, concentrando-se
no “risco” e no “perigo” enquanto novas categorias decisivas para a
regulação das (homo)sexualidades. Esses novos lemas políticos não
podem ser separados de uma reflexão sobre a emergência do “em-
preendedorismo soft” adotado por instituições públicas com o obje-
tivo de proteger indivíduos LGBT (consumidores) do risco e do peri-
go. Por fim, nas conclusões, saliento a necessidade de reconhecer o
caráter excepcional e desigual do neoliberalismo para que se possa
compreender como as consequências das medidas de austeridade
atualmente adotadas na maioria dos países europeus (e ocidentais)
serão diferentes de acordo com seus contextos.

A HOMONORMATIVIDADE E O ELO QUE


FALTA AO CARÁTER EXCEPCIONAL DO
NEOLIBERALISMO (E DA AUSTERIDADE)

Num capítulo de um livro publicado em 2002, Lisa Duggan


introduziu o conceito de “homonormatividade” para identificar
“a política sexual do neoliberalismo” em relação ao contexto dos
EUA; pouco mais de 10 anos mais tarde, esse conceito tornou-se
extremamente popular e disseminado na academia, empregado em
diferentes contextos (ver, por exemplo, Cervulle, 2008, a respeito
da França, e Collins, 2009, sobre Manila). Segundo a formulação

241
de Duggan, a homonormatividade indica uma visibilidade geral de
certas formas de cultura gay e lésbica na esfera pública (na mídia,
na política, e assim por diante), a qual reflete novas representações
e discursos de grupos LGBT predominantes a respeito de questões
como “igualdade”, “liberdade” e “direito à privacidade”, uma vez que
estas se tornaram palavras de ordem do neoliberalismo. Segundo ela:

Esta Nova Homonormatividade chega equipada com


uma recodificação retórica de termos chaves na história
da política homossexual: “igualdade” torna-se o acesso
raso e formal a algumas instituições de perfil conserva-
dor, “liberdade” torna-se impunidade para o preconceito
e amplas desigualdades na vida comercial e na sociedade
civil, o “direito à privacidade” passa a ser confinamento
doméstico, e a própria política democrática torna-se algo
a ser evitado. Tudo isso se soma a uma cultura corpora-
tiva controlada por um estado mínimo, a ser alcançada
pela privatização neoliberal da vida afetiva, tanto quanto
da vida econômica e pública. (ibid., p. 190)

A conceptualização de Duggan salienta o processo em curso


de “assimilação” de certos tipos de (homo)sexualidade por regimes
neoliberais e desenvolvimentistas (para um argumento semelhante,
ver Nast, 2002; e Puar, 2006). Seguindo rumo semelhante, Richardson
(2005) fala de uma “política neoliberal de normalização”, representa-
da por um discurso hegemônico sobre “indivíduos”, “direitos iguais”
e uma “nova parceria” entre instituições estatais e organizações LGBT
(ibid., p. 516). Na verdade,

as lutas contemporâneas por ‘igualdade’ ajudam a reafir-


mar o poder regulador do estado ao reforçar a autorida-
de das instituições às quais apelar em busca de direitos
e responsabilidades (neste caso, as forças armadas, o ca-
samento, a família), e por meio das quais a sexualidade é
regulamentada. (ibid., p. 532)

A atenção, nesse debate, tem se voltado principalmente à na-


tureza excludente da homonormatividade, notavelmente em termos
de raça; por exemplo, Nast a define como “patriarcado gay branco”,
que dá suporte a “processos preexistentes, racializados e política e
economicamente conservadores, de acumulação de lucros” (2002, p.
878). Segundo Puar (2006), a inclusão de sujeitos/corpos gays e queer

242
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

tornou-se crucial ao pleno desenvolvimento do projeto nacionalista


e militarista estadunidense da guerra ao terror. Na verdade, sob o seu
ponto de vista, “certos corpos homossexuais domesticados fornecem
munição para reforçar projetos nacionalistas” (ibid., p. 68).
Como se disse anteriormente, o conceito rapidamente se espa-
lhou pelo Hemisfério Norte e além, (pré-)adotado que foi para des-
crever a política sexual de todo país neoliberal(izante), incluindo a
Itália. De fato, recentes contribuições de De Vivo e Dufour (2012) e
Ferrante (2013) destacaram traços de homonacionalismo (e da ho-
monormatividade sobre a qual ele se sustenta) na Itália por meio de
uma análise semiótica do material de propaganda produzido para a
passeata do Europride 2011 em Roma e outras campanhas midiáticas
promovidas por organizações LGBT de destaque. Embora comparti-
lhe de suas preocupações com o uso de imagens racistas e normati-
vas nas campanhas publicitárias de algumas associações LGBT con-
vencionais, eu duvido da utilidade da estratégia empregada por eles
de deixar incontestada a adesão e a aplicabilidade desses conceitos
ao contexto italiano. A esse respeito, partilho da crítica recentemente
apresentada por Brown (2009, 2012) ao (ab)uso do conceito de ho-
monormatividade no âmbito das ciências sociais (queer). Adotando
o arcabouço teórico de Gibson-Graham (1996) sobre a necessidade
de repensar a economia e ultrapassar a visão ortodoxa marxista das
relações capitalistas como totalizadoras, num artigo de 2009, Brown
explora diversos espaços e práticas econômicas gays nas áreas me-
tropolitanas do Ocidente para questionar “a violência cometida por
estudiosos ‘queer’ quando eles normalizam toda a vida gay contem-
porânea como sendo uma vida gay homonormativa ditada pelos
imperativos políticos e econômicos do neoliberalismo” (p. 1507). A
preocupação de Brown com a narrativa hegemônica (e fixa) da ho-
monormatividade construída por estudiosos queer internacionais
tem fundamentos geográficos. De fato, ao salientar a uniformidade
(internacional) da “política sexual do neoliberalismo”, os pesquisa-
dores que tratam da homonormatividade subestimam as diferenças
espaciais (e sociais, culturais e históricas) concernentes à governan-
ça das (homo)sexualidades; pelo contrário, eles criam uma narrativa
reducionista e uniforme do neoliberalismo (e sua “política sexual”).
Essa crítica geográfica foi reforçada num artigo mais recente (2012),
em que Brown aborda como “o desenvolvimento das teorias da ho-
monormatividade ocorreu primeiramente no mesmo âmbito limita-
do de cidades globais que ele estuda”, deixando escapar, assim, “a ex-
periência de vida de muitas lésbicas e homens gays fora do ambiente
metropolitano em que esses debates teóricos circulam” (p. 1067).

243
Em termos mais gerais, essas alegações geográficas contestam
o uso de casos “paradigmáticos” para investigar geografias da (homo)
sexualidade por dois motivos principais: a) eles reforçam o foco da
análise sobre as “modernas” áreas metropolitanas do Hemisfério
Norte que são tomadas como “padrões”, produzindo assim um co-
nhecimento hegemônico sob a lente do anglo-americanismo, o qual
exclui o Hemisfério Sul e os países pós-socialistas da Europa Central
e Oriental (Brown et al., 2010; Kulpa, 2011; Moss, 2014; Visser, 2013);
b) eles oferecem uma narrativa monolítica do Hemisfério Norte, apa-
gando completamente as experiências tanto das “cidades comuns”
quanto de cidades/países que não seguem a trajetória do Atlântico
Norte (p.e., Brown, 2008; Lewis, 2013).
No entanto, essas críticas levantadas por Brown podem ser am-
pliadas se considerarmos que essas perspectivas que representam a
homonormatividade como abrangente e visualizam o neoliberalis-
mo por toda parte criam uma narrativa monolítica e estável do pró-
prio neoliberalismo. De fato, o que emerge é a imagem de um neo-
liberalismo que sempre extrai valor da diversidade sexual, tentando
incorporar subjetividades sexuais afluentes específicas nas agendas
da cidadania nacionalista. Essa ontologia da fixidez do neoliberalis-
mo colide com as principais percepções recentemente originadas no
seio das ciências sociais críticas (geografia, antropologia, economia
política, urbanismo, e assim por diante), as quais salientam que o
caráter do neoliberalismo (e do capitalismo) é irregular e variegado,
incluindo as formas de reprodução e regulação sociais (p.e., Brenner
et al., 2010; Harvey, 2005b; Peck e Theodore, 2007). Ao analisar o caso
da política social italiana nos últimos 20 anos, este artigo situa a críti-
ca da homonormatividade no âmbito da conceptualização proposta
por Ong para as tensões entre o “neoliberalismo como exceção” e as
“exceções ao neoliberalismo”. A abordagem de Ong oferece a possi-
bilidade de enfatizar o fato de que, sob o neoliberalismo, diferentes
éticas colidem entre si. Por exemplo, na Itália, a negação nacional de
direitos às pessoas LGBT colide com formas de “empreendedorismo
soft”, desenvolvidas por instituições locais para favorecer o comércio
e atrair o “pink money”, as quais ao mesmo tempo permitem que pes-
soas LGBT residam e desfrutem de espaços “seguros” para encontros
e entretenimentos (ver partes 4 e 5).
Antes de analisar a exceção no âmbito das políticas sexuais,
vale a pena uma introdução sobre como a exceção rapidamente se
tornou um traço predominante na política italiana, de maneira geral,
com a implementação de políticas neoliberais e de austeridade nos
últimos vinte anos.

244
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

NEOLIBERALISMO EXCEPCIONAL E
AUSTERIDADE AO ESTILO ITALIANO2

Quando se fala das reformas e políticas neoliberais na Itália, os


estudiosos geralmente fazem referência ao início da década de 1990,
quando a arquitetura dos partidos políticos que moldaram o país
após a Segunda Guerra Mundial ruiu, fortes reformas econômicas e
monetárias foram adotadas e novas formações políticas emergiram
(Woolf, 2007). Reformas neoliberais geralmente estão associadas à
adoção da racionalidade “técnica” de mercado na política, aos cortes
de gastos públicos, à privatização de empresas de interesse público e
à espoliação do povo (p.e., Harvey, 2005a). Essas tendências emergem
na Itália desde o início dos anos 1990, particularmente com os dois
primeiros governos “técnicos” e “voltados aos interesses nacionais”
de Giuliano Amato (junho de 1992 a abril de 1993) e de Carlo Azeglio
Ciampi (abril de 1993 a maio de 1994), os quais promoveram uma
rápida privatização de algumas das principais empresas nacionais.
Em termos políticos/governamentais, os últimos vinte anos na Itália
foram definidos por um predomínio da figura de Silvio Berlusconi,
que chefiou o governo do país por um total de dez anos, somando-se
as vezes em que ocupou o cargo. Além de Berlusconi, novos gover-
nos “técnicos” e “voltados aos interesses nacionais” comandaram o
país, incluindo uma segunda gestão de Giuliano Amato, entre abril de
2000 e junho de 2001, e, mais recentemente, de Mario Monti (novem-
bro de 2011 a abril de 2013) e Enrico Letta (abril de 2013 a fevereiro
de 2014). Essa forma de governo excepcional, não eleita diretamente,
tem sido evocada sucessivamente como um instrumento necessário
para garantir a “governabilidade” do país, evitar o colapso econômico
e promover as reformas econômicas exigidas pelo “mercado”. A exce-
ção chegou a ser reforçada pela crise fiscal e financeira corrente, uma
vez que o atual governo liderado por Matteo Renzi, a exemplo do que
previamente fizeram os de Mario Monti e Enrico Letta, foi estabelecido
com base na narrativa de ser a melhor opção para atender à vontade

2
Ao refletir sobre as formas, instrumentos e medidas excepcionais dirigidas a
subjetividades específicas reunidas sob a égide do neoliberalismo na Itália, meu propósito
não é “desalojá-las” da história social e política do país. Na verdade, como já especificado
aqui, algumas dessas medidas encontram legitimação na constituição republicana de
1948 e algumas das mesmas narrativas e instrumentos já foram experimentados nos
anos 1970. Este fato está ligado ao caráter de “colagem” do neoliberalismo, o qual é
resultado de diferentes relações de poder, interesses e histórias territoriais e culturas
específicas (p.e., Ong, 2007).

245
dos mercados. Além disso, a atual fase de austeridade política não
assinalou qualquer real ruptura em relação a medidas (neoliberais)
adotadas previamente, sendo o maior exemplo disso: os cortes de
verbas destinadas a aposentadorias (de baixa renda), à educação e às
universidades, à saúde pública, aos serviços sociais; e também as res-
trições à contratação de novos quadros para o funcionalismo públi-
co. Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho tornou-se cada vez mais
precário para os trabalhadores e novas medidas fiscais regressivas fo-
ram implantadas (por exemplo, o aumento do ICM ou a taxação de
combustíveis). Seguindo-se a isso, identifico um continuum entre o
neoliberalismo e a política de austeridade na Itália, pois ambos com-
partilham da mesma (suposta) racionalidade de mercado: redução
dos bens e serviços públicos, privatização de serviços e recursos es-
tratégicos, e uma forte redistribuição de capital dos grupos de baixa
para os de alta renda (Gallino, 2012).
O uso da exceção, enquanto traço marcante da austeridade
neoliberal, não se limitou às arquiteturas políticas e institucionais do
país, mas estendeu-se a vários domínios da vida social e econômica,
especialmente: a) para favorecer o crescimento econômico mediante
a realização de megaprojetos e megaeventos; b) para governar e dis-
ciplinar grupos e corpos específicos em casos de “emergência”, risco
e perigo.
No primeiro caso, a literatura reconhece amplamente que,
sob o neoliberalismo, os imperativos do crescimento econômico, da
competitividade e da eficiência substituíram as ideias de redistri-
buição e redução de desigualdades sociais do Estado fordista (p.e.,
Fougner, 2008; Harvey, 2005a, 2005b). A Itália registrou as mesmas
características, com o crescimento econômico e a competitividade
sobrepujando por completo a coesão territorial e a redistribuição de
renda, enquanto objetivos da intervenção política. Com a finalidade
de buscar o crescimento econômico (a curto prazo) baseado princi-
palmente na posse de terras e na especulação imobiliária, qualquer
atenção a territórios e ao planejamento urbano redistributivo foi su-
primida com a implementação de “emendas” às leis de zoneamento
urbano e de proteção ambiental/territorial (p.e., Berdini, 2010; Bono-
ra, 2009, 2012). Quanto a isso, o instrumento mais emblemático foi o
representado pela “anistia imobiliária” (condono edilizio), adotada por
duas vezes pelos governos de Silvio Berlusconi (em 1995 e 2003), que
possibilitou uma oportunidade de sanear e regularizar edifícios irre-
gulares mediante o pagamento de uma compensação monetária (Ber-
dini, 2010). Novamente, vemos como um instrumento excepcional foi

246
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

empregado para favorecer a arrecadação de impostos federais num


prazo muito curto e proteger os interesses de grupos sociais específi-
cos, numa medida que foi caracterizada como defesa da casa própria.
Em termos mais gerais, instrumentos legislativos excepcionais
foram amplamente empregados, sendo o caso mais emblemático
o do decreto-legge [decreto-lei, equivalente aproximado das nossas
medidas provisórias]. No sistema legislativo italiano, o decreto-legge
é um instrumento que pode ser usado pelo governo apenas em casos
de extraordinária urgência e necessidade e equivale a uma lei (após
sua aprovação pelo governo, o parlamento tem 60 dias para trans-
formar o decreto-legge em lei, caso contrário ele expira). Por exem-
plo, se considerarmos o recente governo “técnico” liderado por En-
rico Letta durante a fase de austeridade, entre as 35 leis aprovadas
pelo parlamento, 19 (mais de 54%) resultaram da conversão de um
decreto-legge, ao passo que nenhuma dessas leis provinha da inicia-
tiva do próprio parlamento (as outras eram acordos internacionais e
correlatos).3 Portanto, um instrumento excepcional, que o governo
deveria usar em casos extraordinários, tornou-se o dispositivo mais
importante em anos recentes, tratando de uma grande variedade de
questões (da reforma da previdência à fundação da Expo 2015 em Mi-
lão). A mesma tendência pode ser vista em nível local. De fato, para
garantir a “segurança” dos cidadãos em situações não previstas pela
lei federal, os governos municipais dispõem de um poder especial de
aprovar ordens administrativas específicas (ordinanze amministra-
tive) para tratar de problemas sérios, cuja “necessidade e urgência”
exijam uma intervenção (Cavallo Perin, 1990). O que vem acontecen-
do na Itália desde 2008 é que os governos municipais começaram a
usar essas ordens administrativas como instrumento ordinário de
governança territorial (Simone, 2010, p. 58), abusando assim desse
poder especial. De fato, para se ter uma ideia desse fenômeno, basta
considerar que, nos primeiros três meses de 2009 (quando o governo
de Berlusconi ainda negava a existência da crise econômica na Itália),
mais de 600 ordens administrativas foram aprovadas.4
Este uso da exceção não se limitou apenas aos imperativos do
crescimento econômico, nem a megaprojetos e correlatos; pelo con-
trário, ele se tornou o principal instrumento também para regular cor-
pos, comportamentos e grupos percebidos como de risco, perigosos
ou que geravam emergências. Nesse aspecto, a migração representou

3
Dados disponíveis online: www.osservatoriosullefonti.it
4
Fonte: Ministério do Interior.

247
um dos principais domínios de intervenção, tendo-se usado a ideia
de emergência repetidamente nos últimos 20 anos para estabelecer
uma “tautologia do medo” (Dal Lago, 1999). Entre outros, podemos
considerar os dois decreti-legge aprovados pelo governo (de esquer-
da) no final de 2007, após o estupro e assassinato de uma mulher ita-
liana por um romeno radicado em Roma. Esses decretos introduzi-
ram a possibilidade de expulsar do país cidadãos da União Europeia
incapazes de garantir suas próprias subsistências ou por “razões de
segurança pública”. A principal narrativa que acompanhou o episó-
dio foi que imigrantes masculinos são os principais perpetradores de
violência contra mulheres. Isso nos leva a considerar que a exceção,
o risco e o perigo tornaram-se as palavras-chave da política sexual
na Itália em tempos (neoliberais) de austeridade, como veremos nas
seções seguintes.

O CARÁTER EXCEPCIONAL DA POLÍTICA


SEXUAL DO NEOLIBERALISMO E DA AUSTERIDADE

Discuti acima como a exceção representa um aspecto predomi-


nante nos estados neoliberais, uma vez que eles tendem a criar uma
série diversificada e fragmentada de exceções. No caso da Itália, isso
ocorre em múltiplos níveis (legislativo, institucional, etc.), incluindo
a política sexual, que discuto nesta parte do artigo. Na verdade, a po-
lítica sexual representou uma questão política crucial na Itália con-
temporânea, com um “desenrolar de debates públicos apaixonados
e politizados, embates e renegociações — contestadas — sobre iden-
tidades e práticas sexuais normativas e marginalizadas” (Crowhurst
e Bertone, 2012, p. 413). Seguindo a elaboração de Aihwa Ong acer-
ca da interação dialética entre o “neoliberalismo como exceção” e as
“exceções ao neoliberalismo”, abordo aqui um duplo desdobramento
do conceito de exceção neoliberal em relação à política sexual na Itá-
lia. Primeiramente, reflito sobre o modo como a Itália (neoliberal e
austera), em si, representa uma exceção dentro do modelo neoliberal
de política sexual desenvolvido por Duggan (e discutido na segun-
da parte). Em seguida, concentro-me na maneira como as exceções
foram recentemente adotadas na Itália com a finalidade de regular
corpos, comportamentos e espaços (urbanos).

248
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

A ITÁLIA COMO EXCEÇÃO À POLÍTICA SEXUAL


DO NEOLIBERALISMO (E DA AUSTERIDADE)

Conforme o que foi discutido na segunda parte, o conceito de


“homonormatividade” desenvolvido por Duggan (assim como o de
“homonacionalismo”, de Puar) retrata uma “política sexual do neoli-
beralismo” caracterizada pelo acesso progressivo de pessoas lésbicas
e gays às instituições formais e conservadoras da cidadania nacio-
nal(ista) e uma correspondente politização da política LGBT. Essa
tendência transnacional aos plenos direitos de cidadania continuou
também na atual fase de austeridade, de modo que até mesmo os
governos conservadores de direita vêm promovendo a união civil ho-
mossexual (ver, por exemplo, o caso do Reino Unido, discutido por
Brown, quanto a este tema em particular).
Nesse aspecto, a Itália aparece claramente como um caso ex-
cepcional, geralmente rotulada como “retrógrada” (Colpani e Habed,
2014). Enquanto a maioria dos países europeus e ocidentais aprovou
diferentes formas de união civil de pessoas do mesmo sexo, além de
casamentos e adoções, na Itália não há reconhecimento desse tipo
de relação em termos de direitos, chegando-se ao extremo de uma
lei que incluía a homofobia como circunstância agravante no Código
Penal ter sido rejeitada pelo parlamento em 2009 (Hofer e Ragazzi,
2008; Ross, 2008). Este episódio é altamente significativo, pois os de-
putados votaram pela inconstitucionalidade desse disegno di legge
[projeto de lei], igualando o homossexualismo à pedofilia, à necrofilia
e à zoofilia. Por outro lado, a homo/lesbo/transfobia do discurso (po-
lítico) público não é novidade. Como exemplo, a campanha eleitoral
de 2006 foi marcada por um discurso hiperviolento contra a homo e a
transexualidade, uma vez que um dos mais famosos ativistas transgê-
neros do país concorria ao parlamento pela Rifondazione Comunista.
Quando, em 2009, houve um grande escândalo midiático envolvendo
o governador da região do Lácio, Piero Marrazzo, que fora acusado
de desfalque pelo judiciário, a narrativa jornalística e política contra
ele não se centrou no seu crime, mas sim no fato de ele haver tido
um relacionamento sexual com uma trabalhadora sexual (imigrante)
transgênero (que foi assassinada algumas semanas depois que o es-
cândalo se tornou público).
O não reconhecimento de uniões civis e casamentos seguiu um
caminho semelhante: durante a campanha eleitoral de 2006, a coali-
zão de centro-esquerda apresentou as uniões civis como um de seus
pontos-chave, ao passo que após as eleições essa proposta di legge

249
foi progressivamente apagada e abandonada, sequer chegando a ser
discutida pelo parlamento (Hofer e Ragazzi, 2008). Parece ser isso o
que acontece atualmente com o governo liderado por Matteo Renzi,
que prometeu aprovar uma lei sobre uniões civis antes de se tornar
primeiro-ministro, porém sua promessa desapareceu da agenda po-
lítica do parlamento e do governo.
Em sua recente análise da política LGBT durante os anos dos
governos de Berlusconi, Charlotte Ross salientou que esses gover-
nos não representaram uma anomalia no que diz respeito a questões
LGBT, uma vez que “as experiências da população LGBT sob Berlus-
coni caíram num ‘continuum legislativo’, pois seus direitos permane-
ceram desrespeitados antes, durante e depois desse período” (2009,
p. 204). Na verdade, ela reconhece que a Igreja Católica é, por certo,
o mais arraigado adversário dos direitos e das comunidades LGBT,
o que também explica a rejeição ao disegno di legge que tratava das
uniões civis durante os anos de governo de centro-esquerda (2006-
2008). A posição de Ross não é isolada; pelo contrário, a maioria dos
comentadores reconheceu a feroz oposição das instituições ligadas
ao Vaticano a qualquer forma de visibilidade e de direitos das pessoas
LGBT. O caso mais bem documentado é o das paradas do Orgulho
Gay, uma vez que instituições católicas locais tentaram, em várias
ocasiões, impedir sua realização, alegando serem “inapropriadas”
quando coincidem com festividades religiosas (p.e., Trappolin, 2004,
2009, sobre a parada do Orgulho Gay em Pádua). Por exemplo, no
caso da World Pride de 2000, o Vaticano opôs-se fortemente à realiza-
ção da manifestação por se tratar de um ano “sagrado” para a cidade,
estendendo sua influência a instituições locais e nacionais, que ten-
taram repetidamente cancelar o evento, mas sem obter sucesso (p.e.,
McNeill, 2003; Mudu, 2002). O primeiro-ministro Giuliano Amato
chegou a declarar que adoraria proibir a passeata, mas que isso não
seria possível, uma vez que a Constituição ainda garantia o direito a
manifestações públicas (L’Unità, 25 de maio de 2000). Segundo Mudu
(2002), a World Pride 2000 revela a “tolerância repressiva” das institui-
ções italianas (lideradas pela Igreja Católica) em relação às comuni-
dades, aos direitos e à visibilidade LGBT.
A despeito dessas restrições institucionais, as condições coti-
dianas das pessoas LGBT na Itália experimentaram melhoras, como
revelou uma pesquisa recente, a qual salientou que a população
LGBT se sentia mais aceita e legitimada, e reportou uma visibilidade
crescente dessa faixa da população, especialmente nas áreas metro-
politanas (p.e., Bertone et al., 2003; Ross, 2008, 2013). Isso se tornou

250
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

possível graças ao trabalho de diversas associações e ONGs que em-


preenderam projetos antidiscriminação por todo o país, frequente-
mente fundados por instituições públicas. Ainda assim, não pode-
mos subestimar a natureza conflituosa e contínua desse processo, de
forma que não existe um caminho predeterminado rumo à cidadania
que possa ser seguido. De fato, se olharmos para o que aconteceu re-
centemente com os panfletos antidiscriminação recolhidos pelo Mi-
nistério da Educação italiano, veremos como é fácil dar “passos para
trás”. No início de 2014, o ministério retirou de circulação um panfleto
que deveria ser distribuído nas escolas italianas, produzido pela Se-
cretaria Nacional de Combate à Discriminação (UNAR) e destinado à
“educação para a diversidade” e à prevenção ao bullying homofóbico.
Uma das figuras mais eminentes do Vaticano, Arnaldo Bagnasco, pre-
sidente da Conferência Episcopal da Itália (CEI), condenou o folhe-
to com a seguinte declaração: “uma estratégia persecutória contra a
família está em curso, um ataque para desconstruir os indivíduos e,
portanto, a sociedade, pondo-a à mercê dos mais fortes e lucrando à
custa de pessoas que estão perdidas. O Mal age com mais eficiência
em meio ao turbilhão”.5 Logo em seguida a esta forte condenação, o
ministro recolheu o panfleto, afirmando que, para esse tipo de tema,
era necessário algum tipo de “contraditório”: associações católicas
deveriam ter a oportunidade de intervir nas escolas. Apesar de en-
corajar mudanças, a Itália, então, continua a ser a exceção no âmbito
homonormativo da “política sexual do neoliberalismo” (e da austeri-
dade), negando às pessoas LGBT qualquer forma de acesso à plena
cidadania e permitindo que os discursos homofóbicos continuem
hegemônicos sob a “tolerância repressiva” das instituições católicas.

A POLÍTICA SEXUAL DO NEOLIBERALISMO


NA ITÁLIA COMO ORIGEM DA EXCEÇÃO

Na terceira parte deste artigo eu descrevi como a exceção foi


invocada na Itália neoliberal e austera para disciplinar a imigração,
quando o estupro e assassinato de uma mulher foi usado para esta-
belecer novas e severas limitações à imigração proveniente da Europa
(Central e Oriental), ao passo que os dois decreti-legge aprovados após
o assassinato passaram também a ser conhecidos como “anti-Roma”.

5
Fonte: http://comunicazionedigenere.wordpress.com/2014/02/23/

251
Assim, uma ampla preocupação social no contexto italiano, como a
violência contra a mulher (para conhecer os dramáticos dados a esse
respeito, ver Karadole e Pramstrahler, 2012), foi usada para impor
limites à imigração, criando novas exceções dirigidas a cidadãos da
União Europeia que não têm condição de garantir seu próprio sus-
tento ou que representam um perigo para a “segurança pública”. A
narrativa do perigoso e violento imigrante estuprador foi promovi-
da em lugar da denúncia de que a maior parte da violência contra a
mulher (incluindo o assassinato) é doméstica (Peroni, 2012).6 No en-
tanto, a exceção foi invocada e praticada também para regular sexua-
lidades, corpos e práticas, sendo um dos casos mais emblemáticos o
do trabalho sexual.
Ao suprimir os bordéis, a Lei Merlin (n. 75/58), de 1958, tornou
a prostituição legal no contexto italiano, embora sob um viés aboli-
cionista, de modo que qualquer forma de favorecimento, organiza-
ção, exploração ou obtenção de lucro com o trabalho sexual por uma
terceira parte é ilegal (Garofalo Geymonat, 2014). Apesar de várias
tentativas nesse sentido — sendo a mais recente delas a iniciativa da
ministra da igualdade de oportunidades, Mara Carfagna, em 2008,
que tentou importar o chamado sistema abolicionista sueco —, a lei
não foi modificada desde então. Após o escândalo de Berlusconi com
trabalhadoras do sexo, o governo não conseguiu finalizar os esforços
de Carfagna e a lei permaneceu intocada (Peano, 2012). Porém, essa
ausência de intervenção normativa não permaneceu isolada, pois vá-
rias municipalidades intervieram para limitar e disciplinar o trabalho
sexual, e, nesse processo, os corpos e comportamentos femininos e
transexuais. Vimos, na terceira parte, que as municipalidades da Itá-
lia dispõem da possibilidade de introduzir ordinanze amministrative
especiais em casos de “necessidade” e “urgência”, e que, nos últimos
anos, elas começaram a usar esse poder excepcional de maneira fre-
quente. Entre os vários pontos de preocupação de diferentes cidades,
a prostituição de rua ocupa uma posição de grande destaque (Simo-
ne, 2010). Como pode a prostituição de rua representar um assunto
de “necessidade” e “urgência”, exigindo que os municípios interve-
nham imediatamente, acima das leis nacionais? Para compreender
como essa intervenção foi concebida (e suas consequências para a

il-triste-caso-dei-libretti-unar-per-ilcontrasto-al-bullismo-omofobico-nelle-scuole/
6
Apesar da recente campanha lançada pelo (extinto) Ministério de Igualdade de
Oportunidades em novembro de 2013, abordando o tema da violência doméstica por
meio de quatro mensagens que convidavam as mulheres a denunciar maridos/parceiros
violentos e a deixá-los.

252
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

regulação dos corpos e espaços públicos), podemos tomar em consi-


deração o caso de Roma.
Alguns meses depois de sua eleição, o ex-prefeito de Roma, o
direitista Gianni Alemanno, promoveu uma ordinanza amministra-
tiva (n. 242/2008) destinada a “confrontar a prostituição de rua e de-
fender a segurança urbana”.7 A ordinanza proibia a prostituição de
rua em qualquer espaço público do município, mas “especialmente
nas ruas principais, onde existe risco mais alto de acidentes sérios”.
Os motivos alegados no texto da ordinanza para proibir a prostitui-
ção nas ruas são variados:

• A prostituição está muito disseminada nas ruas do município;


• As prostitutas de rua são frequentemente vítimas do tráfico e
do contrabando, exploradas por organizações criminosas;
• As prostitutas de rua frequentemente assumem comporta-
mentos indecorosos e indecentes, gerando episódios de tensão
entre os cidadãos;
• Os lugares geralmente frequentados por prostitutas de rua
apresentam condições de higiene perigosas para a saúde
pública;
• A prostituição perturba a segurança das ruas, uma vez que
motoristas adotam comportamentos imprudentes quando
estão em busca de serviços sexuais;
• Os trajes indecorosos e indecentes das prostitutas distraem os
passantes, frequentemente causando acidentes.

Além desses motivos controversos empregados para proibir ati-


vidades e comportamentos sexuais legais, a ordinanza dá um passo
adiante na disciplina dos corpos e comportamentos, proibindo tam-
bém “assumir atitudes e trajar vestimentas que demonstrem inequi-
vocamente a intenção de praticar a prostituição”. Como interpretar
um enunciado tão controverso? Reconhecendo a dificuldade de es-
tabelecer o que são vestes “indecorosas”, o Sindicato dos Trabalha-
dores da Polícia Municipal (SULPM) e o próprio município instaram
publicamente as jovens a evitarem “trajes sumários”, especialmente
7
O texto da ordinanza está disponível online: http://www.comune.roma.it/PCR/
resources/cms/documents/Ordinanza_antiprostituzione.pdf.

253
em paradas de ônibus durante a noite (uma vez que, supostamen-
te, prostitutas de rua costumam parar em pontos de ônibus).8 Desse
modo, moças “decorosas” evitariam receber a multa destinada às tra-
balhadoras do sexo que atuam nas ruas.
Assim, podemos ver que, mediante esse tipo de norma, múlti-
plas éticas colidem entre si: uma atividade legalizada em todo o ter-
ritório nacional é proibida em locais específicos através de medidas
excepcionais por ser considerada arriscada ou perigosa. Ao mesmo
tempo, a exceção é aplicada não apenas para remodelar e limitar
uma conduta sexual, mas também para definir corpos, vestimentas
e comportamentos apropriados, especialmente para moças/mulhe-
res e pessoas transexuais, disciplinando assim os papéis e as normas
de gênero. De fato, homens foram praticamente excluídos pela ordi-
nanza amministrativa e pela regulação de vestimentas. Uma extensa
literatura documentou como o trabalho sexual tornou-se progressi-
vamente um importante tema de preocupação para a regulamenta-
ção do espaço público (urbano) em tempos neoliberais (de gentrifi-
cação), na medida em que é percebido como arriscado e perigoso ou
associado com violência de gênero, “imoralidade” ou outras questões
sociais (p.e., Bernstein, 2007; Hubbard, 1998, 2004). Uma vez que a
prostituição de rua é associada cada vez mais à imigração (ilegal), o
paradigma vítima/criminoso tornou-se hegemônico no âmbito das
representações públicas das trabalhadoras do sexo do gênero femini-
no, sendo este o caso também na Itália (p.e., Crowhurst, 2012; Peano,
2012). Adotando a definição de Agamben de “estado de exceção”, Pe-
ano (2012) ressaltou que a criminalização dos trabalhadores do sexo
e dos imigrantes na Itália atende à lógica do poder soberano em tem-
pos neoliberais. De acordo com suas palavras: “a criminalização de
certos sujeitos, ou seja, prostitutas e/ou imigrantes sem documentos,
está relacionada a uma estrutura de soberania na qual o poder é ca-
racterizado por sua capacidade de suspender a lei, permitindo a cer-
tos sujeitos uma liberdade aparentemente irrestrita, enquanto nega
qualquer subjetividade política a outros, que são assim reduzidos à
‘vida nua’” (ibid., p. 429).
No entanto, o caso das ordinanze amministrative parece dar um
passo além: a exceção ligada à (i)moralidade e ao decoro é invocada
não apenas no caso dos trabalhadores do sexo (e)imigrantes, mas é
praticada também para regular corpos e comportamentos, criando
uma divisão ao longo da linha da “adequabilidade” estabelecida para

8
Fonte: http://www.inviatospeciale.com/2008/09/prostituzione-multe-e-minigonne/

254
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

os comportamentos e vestimentas das mulheres. De fato, a ordinan-


za n. 242/2008 não representa um caso isolado, pois, na maioria das
cidades, novas ordinanze foram propostas para proibir o trabalho se-
xual, tratando-o como questão de segurança pública, ou, indo além,
chegando a proibir vestes específicas para mulheres jovens em es-
paços públicos por causa do perigo representado para a segurança
das ruas. A esse respeito, o caso mais discutido foi o do ex-prefeito de
Pescara (uma pequena cidade na costa do Adriático), que, em 2011,
proibiu mulheres jovens de vestir roupas curtas nas áreas mais popu-
losas da cidade (como o calçadão à beira-mar e outras ruas impor-
tantes no centro da cidade) das 22h às 7h (Il Corriere della Sera, 28 de
maio de 2011). Em todos esses casos, a exceção para a proibição da
prostituição de rua é invocada em referência a uma narrativa baseada
nas ideias de perigo, risco e segurança, e todos esses dispositivos bio-
políticos foram usados também para a regulação das (homo)sexuali-
dades em espaços urbanos, como veremos na próxima parte do texto.

RISCO E PERIGO SÃO OS NOVOS REFRÕES DA


GOVERNANÇA URBANA DAS
(HOMO)SEXUALIDADES (EMPREENDEDORISMO SOFT)

Em seu livro I corpi del reato [Os corpos de delito] (2010), a soció-
loga italiana Anna Simone fez uma análise brilhante de como a gover-
nança neoliberal na “sociedade de risco” (p.e., Beck, 1992; Luhmann,
1996) desenvolve múltiplos dispositivos destinados a prevenir “des-
vios” e restaurar a “legalidade”. Nesse quadro, perigo, risco e seguran-
ça passaram a exercer um novo papel, na medida em que existe uma
preocupação política e midiática em torno das novas emergências
sociais. No caso italiano, essas palavras tornaram-se chaves para as
políticas sexuais do neoliberalismo e da austeridade não apenas para
os trabalhadores do sexo, mas também para a governança urbana das
(homo)sexualidades. Esta subdivisão do texto trata desse processo,
mostrando como tais dispositivos favoreceram a emergência de uma
nova governança urbana das (homo)sexualidades, com base numa
espécie de “empreendedorismo soft”.
A procura por ambientes seguros e “amigáveis” representa uma
importante preocupação para as pessoas LGBT, uma vez que o es-
paço público mantém um caráter profundamente heteronormativo,
frequentemente levando à discriminação e à violência contra sujeitos

255
não conformistas (Hubbard, 2008; Kirby e Hay, 1997). Por esse mo-
tivo, espaços comerciais (urbanos) LGBT e “guetos gays” têm sido
com frequência descritos como espaços de emancipação na “busca
queer por identidade” (Knopp, 2004), uma vez que eles rompem a
heteronormatividade (p.e., Blidon, 2007; Leroy, 2009). Não obstante,
espaços LGBT podem ainda ser percebidos pelas pessoas que inte-
gram esse grupo como arriscados e perigosos, especialmente quando
passam a atrair muitos frequentadores heterossexuais, como foi re-
gistrado, por exemplo, no bem documentado caso do Gay Village de
Manchester (p.e., Casey, 2004; Skeggs, 1999). De fato, a pesquisa ino-
vadora de Moran et al. (2003) demonstrou que “o Gay Village, longe
de ser experienciado pelos seus mais frequentes usuários gays como
um lugar seguro, era sentido como um lugar de perigo e uma locali-
dade insegura” (p. 191), especialmente entre as pessoas que mais o
frequentavam (p. 192). No caso da Itália, uma pesquisa anterior (Di
Feliciantonio, 2012) mostrou que uma tendência geral manifestou-se
no Gay Village em Roma, pois, em 2009, a cidade testemunhou uma
suposta “emergência homofóbica”. De fato, uma série de episódios
de violência e ataques ocorreu em alguns dos principais pontos de
encontro LGBT da cidade, incluindo o Village romano, o que levou a
mídia a proclamar uma emergência homofóbica, fazendo com que
as pessoas LGBT figurassem cada vez mais no discurso público como
expostas a risco e perigo. A resposta da municipalidade, conduzida
pelo acima mencionado prefeito Gianni Alemanno, tomou como
base a ideia de “garantir a segurança” para os indivíduos LGBT, uma
vez que os negócios ligados a esse grupo representam uma importan-
te fonte de recursos para a cidade. Por esse motivo, medidas de con-
trole foram implementadas nos dois principais locais de encontro da
cidade (o Gay Village e a “Rua Gay”) (ibid.).
Como se pode ver, as ideias centrais que acompanham a criação
da exceção dentro das políticas sexuais do neoliberalismo e da
austeridade na Itália, tais como risco, perigo e segurança, tornaram-
se palavras-chave para representar a comunidade de consumidores
LGBT. Na verdade, tais dispositivos não foram desenvolvidos para
reconhecer novos direitos e combater a discriminação, mas para
favorecer e defender atividades comerciais, confirmando assim a
ideia de Bell e Binnie de que o neoliberalismo franqueia acesso a
lésbicas e gays primeiramente como “cidadãos consumidores” (2004).
Essa proteção do comércio (rosa) e das atividades empresariais pode
tornar-se particularmente relevante numa fase de profunda crise
econômica, de declínio da economia, ou em cidades “de aspiração

256
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

global” (Rushbrook, 2002). No restante desta seção, discuto dois


exemplos que evidenciam claramente esse processo no caso italiano.
O primeiro deles é o de Milão, uma cidade “de aspiração global”
abrigando um megaevento internacional (a Expo 2015), mas inserida
num contexto nacional de política de austeridade. O segundo exemplo
é o de Palermo, uma cidade que passa por forte declínio econômico e
é duramente afetada pela crise atual.
Milão pode certamente ser considerada a capital econômica do
país, uma cidade-mundo nos domínios da moda e das finanças, na
linha de frente da economia urbana nacional, “com novas melhorias,
reestruturação das áreas mais antigas, e aumento e diminuição de
popularidade em diferentes áreas da cidade” (Aalbers, 2007, p. 178).
Em 2015, a cidade hospeda a Expo 2015, um megaevento considera-
do de importância crucial para revitalizar internacionalmente a ima-
gem do país, numa fase de intensa crise econômica. A literatura já
reconheceu fartamente que os megaeventos ocupam um papel espe-
cial no mantra neoliberal da competitividade urbana, pois eles geram
intensas mudanças em termos de gentrificação, desalojamentos, pri-
vatização de espaços, ocupação da cidade e novas formas de controle
e disciplina (p.e., Hiller, 2000; Olds, 1998; Shin, 2009). Considerando
a fase de crise financeira e de políticas de austeridade que precedeu
a Expo 2015, o evento foi altamente contestado em todo o país por
causa de seus altos custos, mas muitos comentadores salientaram os
potenciais benefícios de redesenhar o desenvolvimento territorial da
cidade (e da região da Lombardia), embora denunciassem potenciais
riscos socioambientais (p.e., Di Vita, 2008; Erba, 2009). Nesse esforço
para conferir uma moldura “global” para a cidade (Gonzales, 2007),
um traço específico de política sexual recentemente veio à tona. De
fato, como discutido de maneira brilhante por Rushbrook (2002), na
competição transnacional para atrair investimentos, turismo e no-
vos residentes (abastados), cidades “de aspiração global” necessitam
promover uma imagem de diversidade e tolerância (de acordo com a
teorização do guru neoliberal Richard Florida, 2002). Por esse motivo,
espaços étnicos e queer encontram legitimidade como estratégia de
marketing, um rótulo para promover a atitude aberta e acolhedora de
uma cidade “multicultural”. O caso de Milão corresponde perfeita-
mente à teoria de Rushbrook. Com a aproximação do megaevento (e
dos turistas gays e lésbicas aguardados para participar dele), e numa
cidade que carece de uma “área propriamente gay”, a municipalida-
de e um grupo de empreendedores lançaram a ideia de criar uma
“rua gay” numa área central (mas ainda subvalorizada), habitada

257
principalmente por comunidades de imigrantes (a via Sammartini,
ver Milano Today, 9 de abril de 2014). No entanto, em consequência
da carência de fundos e recursos que a municipalidade enfrenta na
atual fase de austeridade, o projeto de requalificação da área acabou
por incluir apenas intervenções muito básicas, como uma nova ilu-
minação e a repavimentação das calçadas.9 Embora limitadas, essas
intervenções objetivam estimular a iniciativa privada ao longo da
rua para torná-la propriamente “gay” (atualmente existe ali um bar,
uma sauna, um clube, um ponto de encontros, um disco/bar e um
sex-shop); a “rua gay” foi inaugurada oficialmente em 21 de março de
2015 (um mês antes do início da Expo) por alguns representantes do
município.
Ao contrário de Milão, Palermo é uma cidade com problemas
socioeconômicos de longa data, os quais se agravaram com a atual
crise fiscal e financeira, especialmente no que diz respeito aos níveis
de pobreza e (des)emprego. Além do mais, a cidade registra uma taxa
extremamente alta de endividamento familiar (139% da média na-
cional), e as únicas expectativas positivas para a economia da cidade
provêm do turismo (Osservatorio Economico della provincia di Pa-
lermo, 2013). Talvez tenha sido em decorrência dessas expectativas
depositadas no turismo que a municipalidade adotou uma postura
muito ativa por ocasião da “nacionalmente relevante” passeata do
Orgulho Gay, em março de 2013. Na verdade, até essa data, uma ci-
dade diferente era escolhida a cada ano na Itália para hospedar essa
passeata de “relevância nacional”, enquanto outras cidades (incluin-
do Roma) sediavam formalmente passeatas “locais”. No caso da Palermo
Pride 2013, a municipalidade empreendeu uma intensa promoção
do evento, adotando uma narrativa centrada não apenas nos direi-
tos, mas também nos dividendos econômicos ligados ao turismo. De
fato, na conferência de imprensa convocada para promover o evento,
o prefeito Leoluca Orlando proclamou: “esta iniciativa trará à cidade
alguns milhões de euros em consumo, atividades e desenvolvimento
econômicos. Envergonha-me fazer cálculos econômicos sobre uma
iniciativa tão pura e louvável” (fonte: La Sicilia, 17 de março de 2013).
Portanto, o caso de Palermo nos mostra como, em tempos de crise e
austeridade, a política sexual pode ser mobilizada para atrair mais
dinheiro (e visitantes), revelando-se assim a natureza contraditória
das paradas de Orgulho Gay sob o neoliberalismo: por um lado elas
9
Fonte online: https://www.comune.milano.it/portale/wps/portal/CDM?WCM_
GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/ContentLibrary/giornale/giornale/
tutte+le+notizie+new/lavori+pubblici/via_sammartini_luce_marciapiedi

258
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

expressam o poder econômico hegemônico (sujeição), por outro elas


favorecem novos espaços de subjetificação por meio das manifesta-
ções de massa, uma vez que o Palermo Pride 2013 mobilizou cerca de
100.000 pessoas.
Os exemplos de Milão e Palermo nos mostram que, na atual
fase de austeridade, governos municipais recorrem a comunidades,
espaços e eventos LGBT com propósitos de crescimento econômi-
co através de diferentes canais (turismo, requalificação urbana). No
entanto, restrições financeiras fazem disso um “empreendedorismo
soft”, uma vez que as municipalidades carecem dos recursos (finan-
ceiros) requeridos para estabelecer projetos de renovação urbana em
grande escala (no caso de Milão) ou para categorizar a cidade como
destino turístico gay internacional (no caso de Palermo). Novamente,
vemos como uma das principais características do neoliberalismo, a
de atribuir valor à diversidade sexual (p.e., Rushbrook, 2002), é forta-
lecida em tempos de austeridade.

CONCLUSÕES: PENSANDO A EXCEÇÃO NEOLIBERAL


PARA ENTENDER AS CONSEQUÊNCIAS DESIGUAIS
DA AUSTERIDADE

Este artigo tentou fornecer uma análise abrangente da política


sexual do neoliberalismo e da austeridade na Itália sob a perspecti-
va teórica da “exceção”, desenvolvida por A. Ong (2006), ao mesmo
tempo em que demonstra que a exceção tem sido invocada diversas
vezes sob os auspícios do neoliberalismo, em diferentes domínios
da política italiana. Na verdade, considerar a interação entre “neoli-
beralismo como exceção” e “exceções ao neoliberalismo” possibilita
pensar além da ideia de “retrocesso” comumente associada à política
sexual na Itália. O caso italiano continua sendo muito peculiar, uma
exceção à “política sexual do neoliberalismo”, conforme demonstrou
Duggan em sua conceituação de homonormatividade, uma vez que
não há reconhecimento dos plenos direitos de cidadania das pessoas
LGBT e que a homofobia permanece hegemônica no discurso públi-
co. Por outro lado, novas exceções têm sido invocadas e aplicadas em
relação à política sexual, especialmente no que diz respeito ao tra-
balho sexual e aos corpos e comportamentos de mulheres e transe-
xuais, de maneira geral. Na sociedade neoliberal de risco, a exceção
tem sido aplicada mediante múltiplos dispositivos, tanto narrativos

259
(através das ideias de risco, perigo e segurança), quanto legislativos/
institucionais (pelo recurso às ordinanze amministrative, um poder
especial que os prefeitos deveriam usar somente em caso de urgência
e necessidade). No caso de Roma, os mesmos instrumentos retóri-
cos acompanharam a mudança rumo a uma governança urbana das
(homo)sexualidades baseada em mais controle da segurança, uma
proteção destinada primeiramente a resguardar o comércio e a co-
munidade consumidora. Portanto, em tempos de crise e austeridade,
a necessidade de promover a cidade com fins econômicos pode le-
var as municipalidades a se engajarem em projetos específicos des-
tinados ao público LGBT, como se vê nos casos de Milão e Palermo.
Entretanto, restrições financeiras convertem esse processo num “em-
preendedorismo soft”, em que os municípios realizam unicamente
intervenções em escala menor.
Teorizar a exceção como um traço central do neoliberalismo e
das políticas de austeridade gera a possibilidade de pensar sobre o
caráter variegado e localizado dos diferentes processos (sociais, polí-
ticos, econômicos, culturais, e assim por diante) compreendidos pelo
neoliberalismo, pois não há relações sociais previamente organiza-
das que o caracterizem em todos os lugares. Pelo contrário, as tecno-
logias de governança neoliberal são ensambladuras dinâmicas (Ong,
2007), situadas ao longo de diferentes eixos, percursos sócio-históri-
cos e relações de poder. Tal reconceptualização da política sexual do
neoliberalismo e da austeridade oferece importantes possibilidades
(ainda a serem exploradas) para que se possam entender as conse-
quências desiguais da atual crise fiscal e financeira e das medidas
de austeridade a ela vinculadas. Na verdade, não apenas diferentes
locais são afetados de maneira não uniforme pela crise e as medi-
das de austeridade, mas essas consequências desiguais são também
registradas em comunidades e por grupos no interior dessas comu-
nidades. Portanto, uma pesquisa futura poderia partir dessa recon-
ceptualização do neoliberalismo e sua política sexual para investigar
o impacto desigual da austeridade sobre as vidas de LGBT e dissiden-
tes sexuais em diferentes espaços, territórios e sistemas jurídicos. Por
exemplo, podemos considerar que os cortes de empregos durante a
crise e as medidas de austeridade têm impacto desigual sobre as vi-
das dos LGBT, a depender, entre outros fatores, de terem eles casa
própria (ou financiamento). Podemos também tentar retraçar essa
linha divisória internacionalmente, pensando, por exemplo, no im-
pacto diferencial que a crise de financiamento exerce sobre unidades
familiares lésbicas e gays de acordo com seu contexto legislativo. O

260
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália

que acontece em contextos nos quais esse tipo de parentesco não en-
contra reconhecimento legal? Além disso, poderíamos refletir sobre o
impacto das medidas de austeridade em termos de serviços de saú-
de pública: por exemplo, quais as implicações, para as pessoas LGBT
com algum tipo de invalidez, dos cortes de serviços médicos locais
em muitas províncias italianas? Ou, ainda: quais as consequências
da progressiva privatização do sistema de saúde para o público LGBT
(ou feminino), uma vez que a maioria dos hospitais privados italia-
nos é católica?
Essas questões deveriam chamar nossa atenção para o fato de
que mudanças (similares) que ocorrem no âmbito da política sexual
de muitos países do Ocidente/Hemisfério Norte podem não ocorrer
necessariamente em qualquer outro país (ocidental, seja do Hemis-
fério Norte ou do Hemisfério Sul) que tenha adotado reformas e me-
didas neoliberais. Uma abordagem mais cosmopolita no âmbito da
geografia das sexualidades (e da economia política) deveria, então,
reconhecer que não há nenhuma lógica específica de necessidade ou
causalidade ao longo dos processos (continuamente renegociados e
em construção) de neoliberalização: na verdade, novas e inesperadas
exceções podem surgir em diferentes contextos, para então serem ex-
portadas para outros lugares.

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267
SOBRE OS AUTORES

Alides Baptista Chimin Junior (alides.territoriolivre@gmail.com)


Doutor em Geografia, com temática de gênero e geografia política.
Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste e membro da
Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualidades.

  
Cesare Di Feliciantonio (cesaredif@gmail.com)
Doutor em Geografia pela Universidade de Roma. Atualmente faz
pós-doutorado na Universidade de Dublin. Além de pesquisar sobre
geografia econômica e geografia urbana, também tem explorado as
geografias das sexualidades, com destaque para políticas neoliberais
de espaços comerciais LGBT e políticas de ativismo.

 
Doreen Massey (d.b.massey@open.ac.uk)
Professora de geografia na Open University e uma das mais impor-
tantes geógrafas radicais feministas das últimas décadas, com inú-
meras obras.  Faleceu em 11 de março de 2016, aos 72 anos, deixando
uma inestimável contribuição à geografia mundial.

Gavin Brown (gpb10@leicester.ac.uk)


Doutor em Geografia pela King’s College London. Professor de geo-
grafia humana na University of Leicester, atua na área de pesquisa
de geografia cultural, geografia política e geografia das sexualidades
e de gênero. Atualmente é editor do periódico Social and Cultural
Geography.

Janice Monk (jmonk@email.arizona.edu)


Professora emérita e pesquisadora da School of Geography and
Development da University of Arizona. Tem atuado no Southwest
Institute for Research on Women e desenvolve pesquisas na área de
geografias feministas e gênero. Atualmente tem colaborado com a
Gender Commission of the International Geographical Union.
John Paul Catungal (catungalj@geog.utoronto.ca)
Doutor em Geografia pela University of Toronto. Atualmente faz pós-
doutorado no Institute of Gender, Race, Sexuality, and Social Justice
da University of British Columbia. Tem desenvolvido pesquisas que
envolvem feminismos, racialidades, sexualidades e críticas à produ-
ção do conhecimento.

Joseli Maria Silva (joseli.genero@gmail.com)


Doutora em Geografia, coordenadora do Grupo de Estudos Territo-
riais e membro da Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexualida-
des Ibero Latino-Americana (REGGSILA). Docente da Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG), atua no Programa de Pós-gradua-
ção em Geografia e é editora da Revista Latino-Americana de Geogra-
fia e Gênero.

Julie Cupples (julie.cupples@ed.ac.uk)


Professora de geografia humana da University of Edinburgh e co-editora
da Global Development Academy. Faz pesquisas nas áreas de gêne-
ro e sexualidades, riscos ambientais e desenvolvimento da América
Latina na perspectiva decolonial. Mais recentemente, seu campo de
interesse científico passou a incluir também a geografia cultural, com
o estudo de mídias.

Kath Browne (k.a.browne@brighton.ac.uk)


Professora de geografia humana na School of Environment and
Technology. Sua pesquisa se concentra em justiça social e desigual-
dades, notadamente as relações entre espaço, gênero e sexualidades.
Ativista LGBTQI, é uma das fundadoras do Space, Sexualities and
Queer Research Group, na Royal Geographical Society.

Lynda Johnston (lynda.johnston@waikato.ac.nz)


Professora de geografia humana na University of Waikato, Nova Ze-
lândia. Tem trabalhado com várias formas de exclusão espacial, com
destaque para racismo, homofobia e sexismo. Atualmente é presi-
dente da Gender and Geography Commission da  International
Geographical Union. Foi editora do periódico Gender, Place and Culture:
A Journal of Feminist Geography, entre 2011 e 2016.

270
Sobre os autores

Marcio Jose Ornat (geogenero@gmail.com)


Doutor em Geografia, vice-coordenador do Grupo de Estudos Terri-
toriais e membro da Rede de Estudos de Geografia, Gênero e Sexuali-
dades Ibero Latino-Americana (REGGSILA). Docente da Universida-
de Estadual de Ponta Grossa (UEPG), onde atua no Programa de Pós-
graduação em Geografia, e membro do conselho editorial da Revista
Latino-Americana de Geografia e Gênero.

Peter E. Hopkins (peter.hopkins@newcastle.ac.uk)


Professor de geografia social na School of Geography, Politics and So-
ciology da Newcastle University. Desenvolve pesquisas sobre várias
formas de discriminação e desigualdade e a respeito dos desafios da
diversidade. Seu foco de pesquisa tem trazido a perspectiva intersec-
cional entre gênero, espaço, religião e geração. É membro da comis-
são editorial dos periódicos Gender, Place and Culture e Children’s
Geography.

Susan Hanson (shanson@clarku.edu)


Professora emérita da Clark University, foi diretora da Clark’s School
of Geography nos períodos 1988-1995 e 2002-2004. É geógrafa urbana
com interesse em gênero e economia, transporte, mobilidade, mer-
cado laboral e sustentabilidade. Contribui com os seguintes periódi-
cos científicos:  Urban Geography, Economic Geography, Annals of the
Association of American Geographers e The Professional Geographer.

271
Geografias Feministas e das Sexualidades: Encontros e Diferenças foi
organizado por Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista
Chimin Junior e editado por TODAPALAVRA Editora, em Ponta Grossa, Paraná,
no ano de 2017.

Dados técnicos
ISBN: 978-85-62450-47-1
Formato fechado: 16x23 cm
Fontes utilizadas: Heuristica, Champagne & Limousines
Revisão por Hein Leonard Bowles
Capa, projeto gráfico e diagramação por Dyego Marçal
Impressão por Gráfica e Editora Pallotti
Tiragem: 500
Miolo: com 272 páginas em papel offset 90g/m²
Capa: cartão supremo 250g/m²
Acabamento: Laminação fosca, costurado

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