E DAS SEXUALIDADES:
ENCONTROS E DIFERENÇAS
TODAPALAVRA Editora
EDITOR-CHEFE
Hein Leonard Bowles
COEDITOR
José Aparicio da Silva
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Dr. Vitoldo Antonio Kozlowski Junior (UEPG)
Dr. Wolf Dietrich Sahr (UFPR)
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior
GEOGRAFIAS FEMINISTAS
E DAS SEXUALIDADES:
ENCONTROS E DIFERENÇAS
© 2016 Todapalavra Editora
Imagem da capa
“Corpo feminino e árvore” - © Fotolia
ISBN: 978-85-62450-47-1
CDD: 304.23
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Site: www.todapalavraeditora.com.br
Para Doreen Massey,
nosso agradecimento profundo por ter ajudado
na organização deste livro antes de sua passagem.
Jamais nos esqueceremos desse seu gesto
de solidariedade e carinho!
SUMÁRIO
O
s estudos sobre gênero e sexualidades à luz da geografia
brasileira têm sua gênese a partir dos anos 1990, confor-
me aponta Ribeiro (2002)2. Em 2003 surge em Ponta Gros-
sa, Paraná, o Grupo de Estudos Territoriais (Gete), sob a liderança da
geógrafa feminista Joseli Maria Silva e seus companheiros de pesquisa,
dentre eles Marcio Jose Ornat e Alides Baptista Chimin Junior.
Este grupo trouxe novas questões para a análise espacial, pau-
tadas no gênero e nas sexualidades, em contraponto às abordagens
heteronormativas, e que, recentemente, agregou outras facetas iden-
titárias, como as racialidades.
No ano de 2016, o Gete, já consolidado e lugar de referência no
Brasil e no exterior, nos brinda com esta coletânea intitulada ‘Geo-
grafias Feministas e das Sexualidades: Encontros e Diferenças’. São
artigos de pesquisadores de diferentes lugares do mundo, interessa-
dos em tratar de temáticas que fogem às normas vigentes de uma so-
ciedade excludente e preconceituosa.
Em pleno final da segunda década do século XXI, ainda vivemos a
discriminação contra mulheres, gays, bissexuais, travestis, transgêneros
1
Aproprio-me de parte do título do livro organizado por Silva, Ornat e Chimin Junior,
publicado em 2013 pela Todapalavra Editora, intitulado ‘Geografias Malditas: Corpos,
Sexualidades e Espaços’.
2
Trata-se da obra ‘Território e Prostituição na Metrópole Carioca’, que reúne artigos
elaborados nos anos 1990, com questão central pautada na prostituição. Destacam-se
alguns importantes colaboradores, como Jan Carlos da Silva, Rogério Botelho de Mattos
e Rafael da Silva Oliveira.
e transexuais. A violência marca os espaços, tornando tais grupos
sociais vítimas de assassinatos. Não importa a escala espacial, o so-
frimento diário faz parte da sua vivência: em casa, no trabalho, nos
locais de lazer, nas ruas e em qualquer outro espaço público.
Neste contexto, com esforço e coragem, a coletânea apresen-
tada pelo Gete para a sociedade e a academia traz uma importante
contribuição para transformar a discriminação em torno de gênero e
sexualidades a partir do espaço.
A obra é composta de textos críticos à ordem social hetero-
normativa e sexista, abordando identidades fluidas e plurais. Janice
Monk e Susan Hanson discutem o sexismo na organização e produ-
ção da ciência geográfica. Kath Browne, fundamentada na teoria queer,
evidencia a necessidade de superação da bipolaridade de gênero
baseada apenas no masculino e no feminino. Peter Hopkins traz a
religião como marcador de diferença social e cultural, tratando das
experiências de jovens muçulmanos. Doreen Massey (in memoriam)
examina a forma como as dualidades razão/desrazão e transcendên-
cia/imanência são estruturadoras da compreensão do espaço e pro-
põe a desconstrução desse tipo de imaginação geográfica.
O livro traz também uma preocupação com o debate político e
promove uma crítica construtiva acerca das maneiras pelas quais a
perspectiva feminista pode ser incorporada à Geografia. Gavin Brown
faz uma avaliação sobre as mudanças de atitudes sociais em relação
à homossexualidade, bem como sobre a criação de novas homonor-
mas que tensionam a estrutura social vigente na Grã-Bretanha. Outro
debate político é o exame das racialidades na composição da gene-
alogia da AIDS e sua relação com o espaço na cidade de Toronto, no
Canadá, realizado por John Paul Catungal. A austeridade da políti-
ca sexual na Itália, com o aprofundamento do neoliberalismo e os
limites de acesso ao espaço baseados na etnia, gênero, classe, capital
humano e cultural, entre outros, é contribuição de Cesare Di Feli-
ciantonio. Julie Cupples contempla as políticas de desenvolvimento
sustentável na Nicarágua, notadamente como implementadas por
mulheres, para superar as profundas desigualdades econômicas e a
degradação ambiental daquele país. Por fim, Lynda Johnston analisa
a política econômica do turismo matrimonial na Nova Zelândia, com
a criação do simbolismo das paisagens, que se instituem como puras,
exóticas e românticas.
Todos esses textos são instigantes e inovadores. Eles esclare-
cem, defendem e ampliam as abordagens geográficas de gênero, raça
10
Prefácio — Geogra as malditas, malditas geogra as?: a discussão de gênero e
sexualidades segundo diferentes pontos de vista, no mundo
11
Sobre as desobediências
epistemológicas e o testamento
intelectual de Milton Santos
Joseli Maria Silva
Marcio Jose Ornat
Alides Baptista Chimin Junior
E
nquanto pesquisadores da área da geografia com foco nas
relações de gênero e sexualidades, temos recebido ques-
tionamentos sobre um certo afastamento da tradição
epistemológica brasileira, notadamente sobre as teorias socioespa-
ciais, profundamente alicerçadas na produção intelectual de Milton
Santos. Quando decidimos produzir este livro com textos de origem
anglófona, percebemos que era o momento de nos pronunciarmos
sobre uma escolha que envolve diferentes táticas e escalas espaciais
de nossa atuação científica. Realizar a reflexão sobre a ‘geografia do
nosso fazer geográfico’ implica considerar as tensões sutis engendra-
das no campo acadêmico que relacionam os saberes produzidos e os
poderes que são investidos na constituição da disciplina. Afinal de
contas, conforme aponta Bourdieu (2004), não há fazer científico de-
sinteressado, e nosso empenho acadêmico é produzir uma geografia
brasileira capaz de trazer sujeitos generificados, sexualizados e racia-
lizados para o centro do debate científico.
Munidos dessa intencionalidade, num primeiro momento do
texto esclarecemos as formas de apropriação das obras de Milton
Santos que vão sendo reinterpretadas ao longo de nossa trajetória
científica. Ora legitimando o campo1 geográfico instituído, e ora con-
flitando com ele. Posteriormente, abordamos outras imaginações
1
O autor cria a noção de ‘campo’ para escapar a duas tendências de interpretação da
história das ciências. Uma das tendências, considerada interna, imagina a história
como se a ciência se transformasse unicamente por desdobramentos de si mesma pela
superação de enunciados científicos, e a outra, externa, considera a história da ciência
submetida às conjunturas econômicas e sociais. Para ele, não basta compreender apenas
o conteúdo textual de uma ciência, tampouco o contexto de sua produção. Entre essas
duas perspectivas há um universo intermediário que ele denomina campo.
geográficas possíveis, e necessárias, de serem consideradas num
contexto científico globalizado. Nosso interesse aqui é evidenciar a
relevância simbólica das proposições geográficas feministas e das se-
xualidades no campo geográfico brasileiro.2
Milton Santos faz parte das nossas histórias pessoais e profis-
sionais, dado o alcance e força de propagação de sua produção literá-
ria no campo científico geográfico brasileiro. Suas proposições teóri-
cas foram a base de nossa formação, como a de tantas outras pessoas
formadas em geografia nos anos 80 e 90 no Brasil. Os diferentes níveis
de formação acadêmica e rituais de passagem na graduação, mes-
trado e doutorado fundem nossa história particular com a produção
teórica miltoniana. Nossas bibliotecas particulares são repletas de
seus livros, alguns deles guardados como uma relíquia por estarem
autografados pelo grande mestre. Seu legado científico para consoli-
dação da ciência geográfica brasileira é inestimável e, de certa forma,
não mais pertence a ele, porque passou a fazer parte de nós mesmos,
de nossos modos de pensar o espaço geográfico e de construir nossas
práticas acadêmicas de ensino e pesquisa. As imaginações geográfi-
cas que temos hoje certamente têm seu legado.
A forma com que nós constituímos nossas imaginações geográ-
ficas ao longo de determinadas trajetórias acadêmicas sustenta posi-
ções conceituais e as possibilidades de questões que cada pesquisa-
dor é capaz de formular para produzir alguma compreensão sobre a
realidade em que vive. Ao fazermos parte de um determinado campo
científico, entramos num jogo de poder em que as teorias e conceitos
legitimados criam as possibilidades de interpretar a realidade. Fou-
cault (1999) alerta que a vinculação entre os enunciados, objetos e
sujeitos que articulam o poder e o saber também engendram suas
possíveis resistências. As universidades, enquanto espaços discipli-
nares constituídos das condições políticas dos saberes, são lugares
de exercício do saber/poder, mas também do questionamento dos
mecanismos que estruturam a trama do discurso do saber, conforme
argumenta Foucault (1990).
O uso da ideia de genealogia proposta por Foucault (1999, p. 13)
como “acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias lo-
cais” é um caminho interessante para reflexão de nossa trajetória como
profissionais da geografia, posicionados num campo científico forte-
mente estruturado pelas teorias socioespaciais de base miltoniana.
2
Para Bourdieu (1990, p. 46), “o campo científico é um jogo em que é preciso munir-se
de razão para ganhar”.
14
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
15
Foi a compatibilização dessas geografias, as delas e as nossas,
no sentido da genealogia foucaultiana, que produziu nossas primei-
ras resistências e reflexões em torno da forma como os saberes/pode-
res são estruturados na geografia. Foucault (1999, p. 15) questiona as
relações de poder entre os saberes da seguinte forma:
16
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
17
de marfim, cuja capacidade intelectual produz as teorias e modelos
para a compreensão da realidade espacial universal. Ao contrário, o
livro traz notas pessoais, pensamentos inacabados, pouco filtrados
pelas conveniências do campo acadêmico, bem como alguns desa-
bafos de alguém que percebe a finitude de sua existência e se sente
à vontade para romper com algumas regras de conduta próprias de
ocasiões formais que envolvem a produção do texto escrito na acade-
mia. Além disso, a particularidade desta obra é a forma de linguagem
utilizada para a comunicação da maior parte do texto. O predomínio
da utilização da linguagem na primeira pessoa produziu uma pro-
ximidade da escrita de Milton Santos. Na obra, ele deixa de lado a
formalidade científica impessoal que tradicionalmente faz emergir a
suposta neutralidade do saber e a onisciência do cientista.
Por se tratar de depoimentos, é importante marcar que com-
preendemos este texto de Milton Santos como memórias que são
produzidas pelas conexões entre o passado e o presente (Cosgrove,
1998). Como cientista que olha para suas experiências pretéritas, Mil-
ton Santos re-significa os acontecimentos a partir do presente, ne-
gociando seus atos de comunicação de forma intersubjetiva (Pollak,
1992). Na obra em questão, Milton Santos se aproxima da ideia de
formação de campo científico de Bourdieu (2004, p. 20), entendido
como o:
18
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
19
proposto por Michel Rochefort e que vínhamos usando
havia dez aos. Vi que não funcionava e escrevi um tex-
to sobre o Recôncavo Baiano no qual mostro que não é
possível aplicar inteiramente a teoria. Essa foi a minha
primeira tentativa de deformação do que me sugeriam
fazer. Quando vou ensinar na França, cria-se realmente
o primeiro choque, porque compreendo que não podia
continuar ensinando do jeito clássico e começo a re-
pensar a geografia do Terceiro Mundo. Percebo que ela
não cabe naquele esquema intelectual e começo a me
perguntar como sair daquilo, como propor sem chocar,
porque eu era professor e dependendo de renovação
de contrato, não desejava me chocar com colegas. Mas
dois anos depois de estar na França ensinando, cheguei
à conclusão que isso não era possível. (Santos, 2004, p.
19-20, grifos nossos).
20
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
4
Milton Santos (2004, p. 25), ao descrever a trajetória do pensamento, traz as seguintes
marcações conceituais: “propus coisas como a ideia de que o espaço era formado
por fixos e fluxos; depois, que haveria uma relação entre a sociedade e a natureza,
produzindo o que chamei de formação socioespacial, (…) a formação socioespacial e
isso é que me vai levar mais adiante a propor a dissociação entre a noção de paisagem e
a noção de espaço. Este seria uma instância da sociedade, tanto quanto o são a instância
política, a cultural-ideológica e a instância técnico-econômica. (…) Cheguei, por último,
à ideia do espaço como resultado de uma relação indissociável entre sistemas e objetos,
casando duas coisas, ação e materialidade. Depois, continuei a trabalhar até propor que
o que realmente entra na dialética social não é o espaço tal como foi definido antes,
como materialidade, mas o espaço vivido, usado pelos homens.”
21
no contexto anglófono no mesmo período. Nos anos 1980 e 90, no
Brasil, a geografia marxista adquiria status de verdade pouco questio-
nada. Todavia, no contexto anglófono o debate era acalorado em tor-
no das diferenças e da capacidade compreensiva do marxismo sobre
a realidade espacial para a conquista da justiça social num mundo
globalizado.
Importante destacar o debate que envolveu David Harvey, um
dos mais destacados geógrafos de base marxista do contexto episte-
mológico anglófono, a respeito da ideia da diferença, após a publi-
cação, em 1989, de seu livro The Condition of Postmodernity. Entre
seus críticos estavam intelectuais pós-estruturalistas, feministas e
defensores das políticas de identidade que, entre outras observações,
não aceitavam a ideia de que a diferença que realmente importava
socialmente era a diferença de classe. No texto Postmodern Morali-
ty Plays, publicado pelo periódico Antipode em 1992, ele responde a
duras críticas de duas intelectuais feministas5 sobre o tema. Quatro
anos após, para aprofundar a discussão sobre as diferenças, Harvey
publicou Justice, Nature and the Geography of Difference, assimilando
as reflexões acumuladas sobre as críticas recebidas. Resgatar as dis-
putas epistemológicas dos anos 1990 no contexto anglófono nos per-
mite afirmar que a abordagem feminista não poderia ser considerada
um modismo, como afirmado por Santos (2004).
Wright (2006), ao escrever sobre a trajetória intelectual de Da-
vid Harvey, recuperou vários eixos argumentativos do universo aca-
dêmico anglófono que, já nos anos 1980, questionava a análise mar-
xista. Um dos eixos de argumentação foi o da necessidade de superar
a ideia binária de poder (dominantes e dominados) e o fato de existi-
rem sujeitos que não se encaixam nos polos contrastados das classes
sociais (trabalhadores e capitalistas) e que, por isso, acabam por ser
excluídos da análise social. Além disso, há o fato de que a experiência
do trabalho não é homogeneamente partilhada, não produzindo, as-
sim, a mesma consciência e razão. Outro importante eixo crítico foi
a ideia de que não há possibilidade de haver um sujeito universal da
5
Trata-se das críticas de Doreen Massey, em ‘Flexible sexism’, e de Rosalyn Deutsche,
em ‘Boys town’, publicadas em 1991 pela revista Environment and Planning D: Society
and Space. O debate entre estas feministas e Harvey evidencia grandes diferenças
epistemológicas, mas também toda carga de tensionamento entre intelectuais que
francamente se digladiavam, utilizando, inclusive, de ironias e acidez. Massey criou
termos como ‘sexismo flexível’ e marxismo sexista para ironizar Harvey, que, por sua
vez, responde com ‘jogadas da moralidade pós-moderna’ como título de seu texto para
rebater as críticas feministas.
22
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
23
Em Justice, Nature and the Geography of Difference, publicado
em 1996, Harvey assimila a temática da diferença social e constrói um
diálogo com as teorias feministas, trazendo sujeitos corporificados
emaranhados em fluxos capitalistas globais. Segundo ele, para en-
frentar o processo de exploração e promover justiça social, é necessá-
rio criar alianças estratégicas de sujeitos com objetivos semelhantes
que podem nascer do reconhecimento mútuo das diferenças. Com
esta abordagem, em grande parte apoiada pela teoria feminista de
Iris Mary Young (1990), ele reconhece a necessidade de contemplar as
diferenças reivindicadas pelos movimentos sociais que cobravam o
reconhecimento de diferenças para além da luta de classes. Todavia,
ele afirma ainda que as alianças estratégicas devem ser realizadas em
torno da ‘diferença que realmente importa’.
Harvey (1996) estabelece uma análise a partir da ideia marxista
de solidariedade, aliando às suas proposições as teorias relativas à
diferença que promove a opressão em várias formas de identidade
(gênero, sexualidades, raça e classe). Contudo, o desenrolar de seu ra-
ciocínio, mesmo acolhendo a ideia da diferença, continua a reafirmar
como estratégia a solidariedade de classe, já que esta seria derivada
da experiência compartilhada em torno do trabalho e da exploração
capitalista. Assim, as alianças de solidariedade de lutas devem ser fei-
tas em torno da diferença de classe. Seu argumento central é o de que
a classe, acima de outras diferenças sociais, é uma diferença social
que cruza a escala do particular para o universal, sendo, assim, capaz
de enfrentar as mazelas do capitalismo. De acordo com Harvey, nem
o feminismo, nem o ambientalismo ou os movimentos antirracistas
oferecem essa possibilidade.
Participando do debate com o texto Harvey’s complaint with
race and gender struggles: a critical response, Iris Marion Young (1998)
afirma que não vê a necessidade de oposição entre a universal luta de
classes e o particularismo dos movimentos sociais que reivindicam
o reconhecimento das diferenças, como apontado por David Harvey
(1996). Pelo contrário, ela chama atenção para a necessidade de su-
perar tais oposições. Os movimentos sociais pautados na luta contra
o racismo, o heterossexismo, o sexismo e a xenofobia não podem ser
vistos como fragmentadores da possibilidade de reivindicação por
justiça, mas devem ser considerados como aliados à luta de classe.
Para ela, é socialmente contraproducente alegar que esses movimen-
tos retiram energia do foco central de luta contra o capital, em função
de uma pretensa fragmentação reivindicatória. Young (1998) sustenta
que Harvey (1996) ‘convenientemente’ deixou de mencionar o fato de
24
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
25
outras. McDowell (1998) afirma que, embora David Harvey (1996) em
alguns momentos aceite a importância da complexidade das várias
formas de diferença social, ele insiste em julgá-las, atribuindo valor
às diversas formas de diferença social, e, por fim, de modo não realis-
ta, clama em favor de uma onda revolucionária, como se fosse pos-
sível diluir todas as diferenças em torno da solidariedade de classes.
Frente às críticas e mantendo-se leal às análises marxistas, Da-
vid Harvey, ao longo de sua produção intelectual, assumiu e deu visi-
bilidade aos sujeitos, suas diferenças e aos seus corpos em suas aná-
lises, como pode ser visto em sua obra Spaces of Hope publicada em
2000. Entre nós, todavia, a geografia marxista desenvolvida no Brasil
com base miltoniana não promoveu o debate em torno desses ele-
mentos. A última obra publicada por Milton Santos em 2000, Por uma
Outra Globalização: do Pensamento Único à Consciência Universal,
mantém o caráter de agentes de capital e trabalho descorporificados.6
Exercitando nossa liberdade de interpretação textual7 com os
escritos do Testamento Intelectual de Milton Santos, arriscamo-nos a
trazer um fragmento de pensamento ali registrado. Ele nos fez ima-
ginar se os elementos da diferença já faziam parte das preocupações
de Milton Santos naquele momento, mas sua morte, em 2001, o im-
pediu de desenvolver esse debate. Os fragmentos de escrita “… Avan-
ços ainda necessários. Uma epistemologia da existência: geografia
cidadã (não apenas dos pobres)” (Santos, 2004, p. 121) indicam que
Milton Santos estaria assumindo perspectivas de sujeitos para além
da classe e considerando a ampliação da análise espacial a partir de
outras identidades? Tal resposta jamais teremos. Talvez algumas pes-
soas mais próximas a ele possam responder a isso. O fato é que para a
comunidade geográfica brasileira esse debate não aconteceu duran-
te a sua vida, e seus interesses intelectuais foram de outra ordem de
questões.
6
Importante destacar duas produções intelectuais que associam a obra de Milton Santos
às questões raciais: o texto de Cirqueira e Ratts (2010) e o de Cirqueira (2010). Nessas
produções intelectuais há uma busca da abordagem de um intelectual negro em sua
produção teórica. Os autores evidenciam sua trajetória espacial e a consciência de Milton
Santos de sua corporalidade negra. O trabalho de resgate da relação entre corporalidade
negra do pesquisador, suas trajetórias espaciais e o seu conteúdo científico evidencia que
a racialidade foi um elemento periférico. O próprio Milton Santos (1996/1997) afirma,
em Cidadanias Mutiladas, esse aspecto, dizendo, sobre o preconceito racial: “o tema que
me traz aqui não é um tema de minha especialidade, mas de minha convivência” (p.
133).
7
Como discutido em Certeau (1994) e Chartier e Hébrard (1988).
26
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
27
Para finalizar este texto, cuja função é a de contextualizar a
intenção de produção deste livro e introduzir os capítulos subse-
quentes, queremos alertar para o fato de que se trata de textos de
autores anglófonos, geógrafas(os) que fazem parte de outro contex-
to epistemológico com os quais podemos dialogar, aproveitando as
técnicas atualmente disponíveis, apesar das relações de poder que
ainda permeiam as relações intelectuais entre o norte e o sul global.
Assim, convidamos os leitores a aguçar seus sentidos para realizar
‘uma operação de caça’, criando interpretações próprias das escritu-
ras dessas(es) geógrafas(os) e, acima de tudo, convidar a promover a
visibilidade de sujeitos que necessitam ser reconhecidos pelo campo
científico geográfico no Brasil.
REFERÊNCIAS
BARNETT, Clive. Awakening the dead: who needs the history of geography?
Transactions of the Institute of British Geographers, v. 20, n. 4, p. 417-419,
1995.
BELL, David. O que foi, terá sido? A geografia a partir do queer. In: SILVA,
Joseli Maria; SILVA, Augusto Cesar Pinheiro da (Orgs.). Espaço, gênero e
poder: conectando fronteiras. Ponta Grossa: Todapalavra, 2011. p. 201-214.
28
Sobre as desobediências epistemológicas e o testamento intelectual de Milton Santos
29
SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose; CHIMIN JUNIOR, Alides Baptista.
Para além da apresentação das Geografias Malditas: uma análise da
resistência às descontinuidades científicas no campo científico da Geografia
no Brasil. In: SILVA, Joseli Maria; ORNAT, Marcio Jose; CHIMIN JUNIOR,
Alides Baptista (Orgs.). Geografias malditas: corpos, sexualidades e espaços.
Ponta Grossa: Todapalavra, 2013. p. 11-22.
YOUNG, Iris Marion. Justice and the politics of difference. Princeton, New
Jersey: Princeton University Press, 1990.
YOUNG, Iris Marion. Harvey’s complaint with race and gender struggles: a
critical response. Antipode, v. 30, n. 1, p. 36-42, 1998.
30
Não excluam metade da
humanidade da geografia
humana
Janice Monk
Susan Hanson
G
rande parte da pesquisa que se vem fazendo no cam-
po da geografia humana tem adotado, com frequência
inadvertidamente, uma perspectiva sexista. Inicialmen-
te, sugerimos alguns motivos para explicar tal fato e, em seguida, re-
visamos as contribuições feministas em outras disciplinas. O corpo
deste artigo examina alguns exemplos de viés sexista tanto no conte-
údo quanto nos métodos e objetivos da pesquisa geográfica, aponta
a natureza dos danos que tal viés inflige ao conhecimento geográfi-
co e propõe maneiras pelas quais uma geografia não sexista poderá
emergir.
Recentes contestações da aceitabilidade dos papéis de gênero
tradicionalmente prescritos a homens e mulheres foram considera-
das como o mais profundo e poderoso fator de mudança social do
século XX (Smith, R., 1979), e o feminismo é o “ismo” com mais fre-
quência responsabilizado por instigar essa transformação da socie-
dade. Uma das expressões do feminismo é a condução de pesquisas
acadêmicas que reconheçam e explorem os motivos e implicações do
fato de que as vidas das mulheres são qualitativamente diferentes das
vidas dos homens. No entanto, o grau em que a geografia permanece
intocada pelo feminismo é notável, e a escassez de atenção voltada às
questões das mulheres assola, explícita ou implicitamente, todos os
ramos da geografia humana.
Nosso propósito, neste artigo, é identificar alguns vieses sexis-
tas presentes na pesquisa geográfica e avaliar suas implicações para
a disciplina como um todo. Não acusamos os geógrafos de terem
sido ativa ou mesmo conscientemente sexistas na condução de suas
pesquisas, mas ainda assim argumentaríamos que, ao omitirem
qualquer reflexão acerca das mulheres, a maioria dos pesquisado-
res da geografia, com efeito, tem sido passivamente, com frequência
inadvertidamente, sexista. Não é nosso propósito principal criticar
determinados pesquisadores ou as tradições que eles seguem, mas
antes provocar o debate dinâmico e a crítica construtiva acerca das
maneiras pelas quais a perspectiva feminista pode ser incorporada à
geografia.
Parece-nos haver dois caminhos alternativos para atingir o ob-
jetivo de feminizar a disciplina. Um deles é desenvolver uma sólida
linha de pesquisa feminista que se tornaria um fio entre muitos no
espesso cordame da tradição geográfica. Nós apoiamos tal iniciati-
va como algo necessário, mas não suficiente. A segunda abordagem,
pela qual optamos, é encorajar uma perspectiva feminista em todas
as correntes da geografia humana. Desse modo, temas ligados às mu-
lheres (alguns dos quais serão discutidos mais à frente neste artigo)
seriam incorporados a todos os empreendimentos de pesquisa
geográfica. Somente assim, acreditamos, a geografia poderá cumprir
a promessa da profunda transformação social que seria acarretada
pela eliminação do sexismo. Neste artigo, primeiramente faremos
uma breve consideração sobre as razões do impacto escasso do fe-
minismo sobre o campo de estudos em questão, e revisaremos a na-
tureza da produção acadêmica feminista em outras ciências sociais
e nas humanidades. Em seguida, examinaremos a natureza do viés
sexista da pesquisa geográfica e, por meio de exemplos pertinentes,
demonstraremos maneiras pelas quais uma geografia não sexista po-
derá se desenvolver.
32
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
33
tomadas de decisão provavelmente — e em especial no passado —
pertencem ao establishment do poder masculino, um foco sobre as
mulheres, ou mesmo algum reconhecimento delas, seria improvável.
Em suma, a maior parte dos profissionais da geografia tem sido com-
posta por homens, e eles estruturaram os problemas de pesquisa de
acordo com os seus valores, suas preocupações e seus objetivos, to-
dos os quais refletem sua própria experiência. As mulheres não têm
sido criaturas de poder ou posição social, e os pesquisadores interes-
sados nos que detêm o poder refletem esse fato.
A CRÍTICA FEMINISTA EM
OUTRAS DISCIPLINAS
34
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
35
discutem problemas com base na pressuposição de que o objeto do
conhecimento é completamente separado do conhecedor, e veem o
conhecimento como um diálogo que é “um emergente imprevisível e
não um resultado controlado” (Westkott, 1979, p. 426). Esses críticos
vão ainda além, advogando uma nova ortodoxia na qual a subjetivi-
dade seja valorizada. Em vez de aceitar explicações desenvolvidas e
validadas pela experiência masculina como verdade completa e úni-
ca, eles propõem reconhecer todas as explicações como apenas par-
cial e temporariamente verdadeiras, e apontam para a importância
das pesquisadoras femininas para criar uma visão mais integral das
possibilidades humanas (Spender, 1981; Westkott, 1979).
Outras tendências da crítica tomam como alvo a natureza a-his-
tórica do trabalho positivista e a subestimação das variações contex-
tuais de comportamento (Gordon et al., 1976; Parlee, 1979), ambas as
quais são mostradas como contribuintes para interpretações inade-
quadas e estereotipadas das vidas das mulheres. Embora essas várias
correntes críticas tenham muito em comum com posições propostas
por defensores de abordagens hermenêuticas, estruturalistas e mar-
xistas, diferenciam-se claramente por sua atenção às implicações da
cultura patriarcal para o conhecimento acadêmico.
Em associação com os novos direcionamentos metodológicos,
também têm sido verificadas reorientações nas técnicas de coleta
de dados, em parte amparadas em bases filosóficas e em parte em
consequência dos lapsos verificados nos registros de dados sobre as
mulheres. Assim, vemos mais atenção sendo dada a observações na-
turalistas, histórias orais e análises de documentos produzidos por
mulheres, tais como diários, memórias e obras literárias.
A reflexão sobre questões metodológicas e de conteúdo tem
levado, por fim, a um questionamento dos propósitos de pesquisa.
Distinções são traçadas entre obras sobre mulheres, de mulheres e
para mulheres. Sugere-se que a pesquisa para mulheres será motiva-
da por visões de uma sociedade transformada e igualitária (Westkott,
1979). Tendo isso em mente, a pesquisa orientada ao registro e mode-
lagem do status quo é vista como contraproducente. Na seção seguin-
te examinaremos algumas das maneiras pelas quais as mulheres têm
sido excluídas da reflexão empreendida pela pesquisa geográfica. Ao
apontar tais omissões, implicitamente sugerimos caminhos pelos
quais as questões que afetam as mulheres podem ser incorporadas
de maneira frutífera aos projetos de pesquisa da geografia.
36
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
CONTEÚDO
37
de Fall River a alojamentos, sindicatos, associações de trabalhadores
[homens], tavernas e organizações esportivas. Um estudo das vidas
de mulheres poderia ter reforçado ou enfraquecido as conclusões
desses autores. Como se vê, generalizações sobre comunidades são
inferidas unicamente a partir de dados sobre homens.
A omissão da experiência feminina no texto de Muller sobre
suburbanização (Muller, 1981) é mais surpreendente do que omis-
sões similares por parte de estudos históricos, tendo em vista que se
pode presumir que as mulheres passem maior parte de suas vidas
nos subúrbios do que os homens. No entanto, seu capítulo sobre a
organização social dos subúrbios contemporâneos e as consequên-
cias desta para a vida humana deixa de abordar diretamente as vidas
das mulheres. Ele identifica os migrantes dos subúrbios no pós-guer-
ra como “jovens e sérios veteranos de guerra, possuidores de sólidos
valores familiares, que desejavam educar-se, trabalhar com afinco e
conquistar uma boa vida” (Muller, 1981, p. 54). Escreve, ainda, que
“qualquer aumento salarial ou promoção importantes eram imedia-
tamente seguidos de uma mudança para uma vizinhança melhor,
mudança essa que era determinada por um comportamento agres-
sivo orientado para a conquista” (Muller, 1981, p. 35). As mulheres
são apenas acompanhantes passivas que seguem seus maridos para
os subúrbios? Há pesquisas sugerindo que as mulheres são ambiva-
lentes no que diz respeito à vida suburbana, e que maridos e esposas
avaliam as escolhas residenciais de maneira diferente (Michelson,
1977; Rothblatt, Garr e Sprague, 1979; Saegert e Winkel, 1980).
A especificação inadequada pode envolver exclusão tanto mas-
culina quanto feminina quando nenhum desses dois tipos de espe-
cificação errônea parece justificado. Estudos sobre comportamentos
de consumo, por exemplo, adotaram uma mulher consumidora e
analisaram dados provenientes exclusivamente de amostras femini-
nas (p.e., Downs, 1970). Um problema que parece estar relacionado
à percepção que o pesquisador tem do consumidor como mulher é
a presunção, implícita em modelos de escolha do local de consumo
(p.e., Cadwallader, 1975), de que todas as incursões a estabelecimen-
tos comerciais originam-se no lar, em vez de, por exemplo, estarem
associadas ao percurso para o trabalho. Portanto, tais modelos ado-
tam a variável distância-casa-estabelecimento comercial ao invés de
alguma outra, possivelmente mais importante, como a variável local
de trabalho-estabelecimento comercial.
38
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
39
e Schulz (1982), existem marcantes diferenças entre os padrões es-
paciais de bem-estar relativo ou absoluto entre homens e mulheres
nos Estados Unidos. Num tópico relacionado a bem-estar social, a
discussão de Bourne (1978) sobre igualdade no lar concentra-se em
raça e classe como fatores importantes, mas não menciona a discri-
minação com base no sexo. O resultado da omissão geral do gênero
nas pesquisas sobre bem-estar e igualdade é que raça, classe e eco-
nomia política dominam as explicações, enquanto as contribuições
do gênero e da organização patriarcal da sociedade à criação da desi-
gualdade permanecem invisíveis. Enquanto o gênero continuar sen-
do uma variável essencial à compreensão dos processos geográficos
e da forma espacial e para delinear alternativas futuras, explicações
que o omitam estarão, em muitos casos, destinadas à ineficiência.
Claramente, o trabalho teórico ao longo de diversas linhas de pesqui-
sa poderia ter benefícios caso se tornasse atento ao gênero em vez de
continuar cego a ele.
40
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
41
Evitamento de temas de pesquisa que abordem
diretamente as vidas das mulheres
42
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
43
Um corolário que desconsidera a significância das atividades
femininas pode ser decorrente de uma tendência a observar as mu-
lheres principalmente quando estas adentram a esfera masculina ou
perturbam a sociedade tradicional. Os poucos indicadores de Hoy
(1978) referentes às mulheres abrangem a participação feminina na
força de trabalho (remunerada) e as políticas populacionais e sociais
correlatas na União Soviética, no Leste Europeu e na China, e a supos-
ta relação entre emancipação feminina e mazelas urbanas no Japão.
METODOLOGIA
Seleção de variáveis
44
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
Escolha do entrevistado
45
a responsabilidade principal no sustento do lar (Buvinić e Youssef,
1978). A coleta de dados a partir de indivíduos (ou de combinações
apropriadamente variadas de indivíduos) ajudaria a evitar esse viés
masculino na obtenção de dados. Problemas também surgem quan-
do autores indicam que a unidade de amostragem foi o chefe de fa-
mília, mas não indicam se outros membros da família foram entre-
vistados ou não (Downes e Wroot, 1974); ou quando a composição
sexual da amostragem não é fornecida, a despeito da clara impor-
tância teórica de se considerar diferenças de gênero no contexto da
pesquisa em questão (p.e., Horton e Reynolds, 1971). Uma descrição
clara e completa da metodologia de pesquisa e uma especificação
das amostras por gênero atenuariam esse problema.
Práticas de entrevista
46
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
OBJETIVO
47
Índia. As políticas desenvolvidas a partir da difusão da sua pesquisa
podem melhorar a disseminação da informação sobre métodos con-
traceptivos entre mulheres isoladas social e espacialmente, mas uma
mudança mais radical nesse contexto requer uma pesquisa que se
ocupe das condições que levam ao isolamento de tais mulheres.
LITERATURA CITADA
48
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
BLOUET, B. W.; LAWSON, M. P. (Eds.). Images of the Great Plains: the role
of human nature in settlement. Lincoln: University of Nebraska Press, 1975.
BURNETT, P. Social change, the status of women and models of city form
and development. Antipode, v. 5, p. 57-62, 1975.
49
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GOODMAN, R. After the planners. New York: Simon & Schuster, 1971.
GORDON, L.; HUNT, P.; PLECK, E.; GOLDBERG, R.; SCOTT, M. Historical
phallacies: sexism in American historical writing. In: CARROLL, B. A. (Ed.).
Liberating women’s history. Urbana: University of Illinois Press, 1976. p. 55-
74.
50
Não excluam metade da humanidade da geogra a humana
51
KELLY, A. Feminism and research. Women’s Studies International Quarterly,
v. 1, p. 225-232, 1978.
LEE, D.; SCHULTZ, R. Regional patterns of female status in the United States.
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SPENDER, D. (Ed.). Men’s studies modified. Oxford: Pergamon Press, 1981.
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52
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ROCK, C.; TORRE, S.; WRIGHT, G. The appropriation of the house: changes in
house design and concepts of domesticity. In: WEKERLE, G. R.; PETERSON,
R.; MORLEY, D. (Eds.). New space for women. Boulder: Westview Press, 1980.
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SAEGERT, S.; WINKEL, G. The home: a critical problem for changing sex
roles. In: WEKERLE, G. R.; PETERSON, R.; MORLEY, D. (Eds.). New space for
women. Boulder: Westview Press, 1980. p. 41-64.
53
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1979. p. 1-29.
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ZELINSKY, W.; MONK, J.; HANSON, S. Women and geography: a review and
prospectus. Progress in Human Geography (no prelo).
54
Masculinidade, dualidades
e alta tecnologia
Doreen Massey
RESUMO
U
m elemento importante de recentes análises feministas
de gênero tem sido a investigação e a desconstrução do
pensamento dualista. Este artigo retoma um aspecto da
questão das dualidades na construção de gênero. Examina a intera-
ção entre duas dualidades particulares no contexto da vida diária e
na indústria de alta tecnologia na área de Cambridge, na Inglaterra, e
seu entorno. O foco nas dualidades como vivência, como um elemen-
to da prática diária, é importante (ver Bourdieu, 1977; Moore 1986),
pois as estruturas filosóficas não existem “apenas” como proposições
teóricas ou na forma da palavra escrita. São tanto reproduzidas quan-
to, ao menos potencialmente, combatidas e alvo de revoltas na prática
da vida cotidiana. O foco aqui é sobre como determinadas dualidades
podem apoiar e problematizar certas formas de organização social
em torno da indústria de alta tecnologia britânica.
A indústria de alta tecnologia, em suas várias formas, é vista
por todo o espectro político como a esperança para o futuro das eco-
nomias nacionais, regionais e locais (Hall, 1985), e é importante, por
isso, que se esteja ciente das relações sociais que ela apoia e incenti-
va em sua forma atual de organização, incluindo as que giram torno
da questão de gênero.1 No Reino Unido, a alta tecnologia tem sido
objeto de interesse de áreas locais por todo o país, protagonizando
algumas das mais espetaculares histórias de sucesso econômico re-
gional dos últimos anos. Em especial, ela é a base do que se tornou
conhecido como o “fenômeno Cambridge” (Segal et al., 1985). A in-
vestigação relatada aqui trata de cientistas e engenheiros altamente
qualificados que trabalham em diversas empresas do setor privado,
desde empreendimentos de pequeno porte até multinacionais, que
compõem o núcleo deste novo desenvolvimento. São pessoas envol-
vidas principalmente na pesquisa e na concepção de novos produtos.
Trata-se do campo mais valorizado da alta tecnologia. O argumento
deste artigo parte de dois fatos importantes sobre os cientistas que
atuam nesse setor econômico: primeiro, a maioria esmagadora deles
é do sexo masculino; segundo, eles trabalham durante longas horas
num regime que exige elevado grau de flexibilidade temporal e espa-
cial (ver Henry e Massey, 1995). Foi a conjunção destes dois aspectos
que motivou a linha de pesquisa relatada aqui.
1
Apenas um aspecto dessas relações é explorado neste artigo. O trabalho faz parte de
um projeto mais amplo, que trata da alta tecnologia e das relações sociais que orbitam
em torno dela. Esta pesquisa foi financiada pelo Economic and Social Research Council
[Conselho de Pesquisa Econômica e Social, do Reino Unido] — ESRC: R000233004 —,
sob o título “High-status growth? Aspects of home and work around high-technology
sector” [Desenvolvimento de alto nível? Aspectos da casa e do trabalho em torno dos
setores da alta tecnologia], e vem sendo realizada por Nick Henry, atualmente vinculado
ao Departamento de Geografia da Universidade de Birmingham. O projeto faz parte
de um programa mais amplo, que consta de cinco pesquisas acerca da natureza e das
consequências do desenvolvimento no sudeste da Inglaterra, na década de 1980. O
programa é vinculado à disciplina de Geografia da Faculdade de Ciências Sociais de
The Open University, a qual disponibiliza informações adicionais e uma série de Papéis
Esparsos.
56
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
57
da por sua aprendizagem, experiência e conhecimento específicos. A
fim de competir nesse mercado de trabalho (e em outros como ele),
os funcionários devem, além da necessidade de cumprir as longas
jornadas já exigidas pelas respectivas empresas, continuar a repro-
duzir e aumentar o valor de sua própria força de trabalho. Devem
manter-se atualizados, ir a conferências e garantir a capacidade de
colaboração em rede e dialogar com as pessoas certas. Tudo isso é
trabalho adicional, que extrapola as horas exigidas pela empresa con-
tratante e necessárias para o seu sucesso, mas é igualmente neces-
sário para o sucesso individual do empregado. No local de trabalho,
a interação entre os colaboradores pode produzir uma cultura que
glorifica as longas jornadas de trabalho. Novamente, isso pode deri-
var da competição entre os indivíduos, mas também pode resultar de
várias pressões colega-grupo — a necessidade “de não deixar a equi-
pe na mão”, por exemplo, pode se tornar uma forma de compulsão
social (Halford e Savage, 1995).
Nós não somos obrigados a trabalhar mais tempo — acho que as pes-
soas escolhem isso porque gostam do seu trabalho, por causa do seu próprio
projeto... E há também a primazia do cliente.
O relógio de ponto não importa de modo algum. A única restrição para
mim é que eu não gosto de chegar em casa muito tarde. A senhoria me deu
uma chave, mas eu não gosto de chegar muito depois da meia-noite.
Eu tenho tantas folgas no banco de horas que nem sei o que fazer com
elas.
… porque eu gosto disso… gosto do trabalho… gosto de computado-
res… Eu sempre me pergunto o que teria feito se tivesse que arranjar um em-
prego antes que existisse a computação.
Tiveram que mandar uma pessoa para uma conferência no exterior
porque ninguém queria tirar folga para isso.
Mas o que nós descobrimos ao longo dos anos é que as pessoas que
trabalham aqui, e que se envolvem no trabalho, tornam-se viciadas... nós te-
mos dificuldade em fazer algumas pessoas saírem; elas ficam absorvidas de-
mais pela coisa... Esse círculo de pessoas que trabalham no nosso sistema, as
dificuldades os afastam de qualquer outra coisa que possa ser necessária, é
como se eles nem dormissem durante os últimos 40 anos!
58
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
59
podem ser enormes. Em termos de mercado de trabalho, isso normal-
mente tem sido interpretado como uma antecipação de que o valor
de alguém se baseia no conhecimento e na experiência, em vez de,
por exemplo, na ausência de sindicalização ou na aceitação de bai-
xos salários. Além disso, a individualização do mercado de trabalho
deve, em muitos sentidos, ser considerada um avanço; certamente o
é em relação ao tratamento dos trabalhadores como massa, como um
agrupamento de força de trabalho anônima. A ideia, por menos pro-
vável que seja, de estarmos caminhando para uma economia e uma
sociedade baseadas no conhecimento pode ser interpretada como
uma mudança para melhor. Finalmente, o fato de as pessoas gosta-
rem de seu trabalho, e elas gostam em parte precisamente por causa
da produção de conhecimento (gerado pelos próprios trabalhado-
res), pode ser visto apenas como uma melhoria em relação aos tipos
de trabalho que se caracterizam, sobretudo, por uma monotonia que
entorpece a mente e um grande desejo de chegar ao fim do dia. Após
anos denunciando os fatos e os efeitos da requalificação, acho difícil
criticar postos de trabalho por eles absorverem e exigirem muito em
termos de aprimoramento das habilidades! (No entanto, este mesmo
dilema pode apontar para o fato de que o problema tenha sido for-
mulado de maneira errônea. Talvez o foco de nossa atenção devesse
ser a polarização entre desqualificado e superqualificado...?)
Além disso, o segundo e o terceiro dessa série de motivos para
as longas jornadas (a natureza do mercado laboral e o amor pelo tra-
balho), embora talvez menos que o primeiro (a natureza da concor-
rência no setor), são compartilhados por muitas outras ocupações e
áreas da economia, especialmente por setores profissionais e, talvez
mais especialmente, pela academia. Alguns dos aspectos que se apre-
sentam são, portanto, de relevância muito mais geral, ultrapassan-
do os limites do relativamente pequeno setor da alta tecnologia em
Cambridge. No entanto, eles por certo motivaram questionamentos
pessoais de nossa parte, enquanto fazíamos nossa pesquisa. Mesmo
sob outros prismas, a maneira particular com que essas pressões fun-
cionam e os tipos de características sociais às quais elas estão associa-
das são bastante específicos em setores determinados da economia.
60
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
DUALIDADES E MASCULINIDADES
Formulações dualistas
5
Cynthia Cockburn (1985) chamou atenção para algumas das inconsistências e
contradições presentes mesmo aqui — ver o tratamento que ela confere ao conceito de
“intuição” e à relação ambígua dos cientistas para com esta. Na verdade, o próprio fato
de os homens “realmente amarem” seu trabalho, serem “obsessivos” e assim por diante,
toca em domínios externos ao da razão pura. Mas, como já foi apontado no parágrafo
de abertura, a coerência nunca foi o atributo marcante do funcionamento dessas
dualidades, nem a inconsistência parece ser grande impedimento a seu poderio social.
61
construída como masculina (é ele que sai para o mundo e faz histó-
ria), em oposição ao feminino que “meramente” vive e se reproduz.
Como Lloyd (1984, p. 101) argumenta:
62
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
Práticas dualistas
63
ser feito com elas, incorporam a ciência com a qual os empregados
estão envolvidos. São auxílios e estímulos para o pensamento lógico.
Por outro lado, sua relativa previsibilidade (e, portanto, controlabili-
dade) enquanto máquinas isola-as das incertezas, e possivelmente
das exigências emocionais, da esfera social (ver abaixo).
O aspecto de transcendência transparece nas caracterizações
do emprego como “luta” contra problemas, como “obtenção de pro-
gressos”; se esses trabalhadores se consideram ou distanciados, ou
enfrentando diretamente a questão, então existe a noção de uma
“fronteira” técnico-científica. Certo cientista, refletindo sobre os mo-
tivos de suas longas jornadas de trabalho, falou em ser “movido pelo
sucesso” e do fato de “estar chegando cada vez mais alto”. Um cientis-
ta da mesma empresa, que era bastante crítico das horas trabalhadas
por outros, argumentou que, para algumas pessoas, a crise faz parte
da cultura de trabalho: “é uma espécie de emblema da coragem”. Ou-
tras palavras também refletem o esforço e a luta envolvida em tudo
isso: “Se eu sair daqui cambaleando às 11 horas da noite, realmente
não me sinto a fim de ir para casa e cozinhar”. Há a busca: “Como pai,
eu tento passar o máximo de tempo que puder com [a criança], mas,
na minha busca pelo que quer que seja, eu tendo a trabalhar demais”.
Há a compulsão: “Se você tem que fazer algo, então você faz”. E, feliz-
mente, há o triunfo:
64
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
65
Finalmente, alguns dos comentários feitos sobre os cientistas
por (algumas das) parceiras foram especialmente afiados e revelado-
res, descrevendo-os como:
66
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
7
Essas interconexões entre análise de gênero e aspectos do crescimento econômico, e,
especificamente, a geografia econômica, serão mais exploradas em um próximo artigo.
67
uma estruturação da ação de relações e dinâmica sociais, e que deri-
vam sua codificação masculino/feminino a partir dos fundamentos
sociofilosóficos profundos da sociedade ocidental.
O limite casa-trabalho
O fato de que tudo isso pode ser — e tem sido — severamente cri-
ticado simplesmente por sua precisão descritiva, mais particularmente
a partir de uma perspectiva feminista, não destruiu seu poder enquan-
to sistema conotativo. O que está em questão acerca do poder ideo-
lógico dessas dualidades não são apenas os fatos relevantes aos quais
eles (muitas vezes apenas de maneira muito imperfeita) se relacionam
(muitas mulheres também não gostam de trabalho doméstico e muitas
8
Embora a distinção casa-trabalho possa ser validamente interpretada como uma
instanciação dessa dicotomia, deve-se ressaltar que há muito mais envolvido nas
possibilidades de “imanência” do que ter filhos e fazer o trabalho doméstico.
68
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
9
A função do “trabalho doméstico”, quem e como o realiza, e as complexas negociações
intrafamiliares ligadas a ele serão tema de um artigo futuro.
69
da outra (o trabalho remunerado). Isso pode ser ilustrado por toda
uma diversidade de maneiras. O elevado grau de flexibilidade, em
termos temporais, do número de horas de trabalho resulta, na práti-
ca, numa flexibilidade que tende muito mais numa direção do que na
outra. Enquanto se corresponde às demandas, e atrações, da função
com trabalho noturno, nos fins de semana, nos feriados nacionais e
assim por diante — e espera-se que seja assim, pois trata-se do “com-
prometimento” e da “flexibilidade” necessários para que se possa ser
aceito nesse setor da economia —, as horas extras assim acumuladas
são compensadas com muito menos frequência e, na verdade, têm de
ser negociadas de maneira muito mais formal; as demandas do lar se
intrometem muito menos no trabalho do que vice-versa (ver Henry e
Massey, 1995). Os limites espaciais também são deslocados, já que o
trabalho é com muita frequência levado para casa. Uma alta propor-
ção desses funcionários tem máquinas, modems e/ou escritórios no
espaço da esfera doméstica, mas não há uma presença equivalente
das preocupações de casa dentro do espaço central do trabalho (no
nível mais básico, por exemplo, nenhuma das empresas que pesqui-
samos tinha creche). Um dos representantes de empresa que entre-
vistamos falou que os funcionários estariam “praticamente aqui” (no
local de trabalho), mesmo quando trabalham em casa, graças aos
links de telecomunicação instalados entre os dois lugares. Além dis-
so, esse quadro indica um terceiro e muito importante aspecto dessa
invasão de sentido único. Muitos dos nossos entrevistados falaram
da dificuldade enfrentada pelos cientistas para desligar seus pen-
samentos do trabalho, de não continuar pensando num problema
mesmo quando, fisicamente, fazem algo completamente diferente.
Os homens se perguntavam se deveriam cobrar o tempo que gasta-
vam pensando na empresa durante o banho. Alguns homens e suas
parceiras falaram de episódios em que eles se levantaram no meio
da noite para ocupar-se de algum problema de difícil solução. Os ho-
mens, as parceiras e às vezes as crianças comentaram sobre a mente
estar em outro lugar quando era hora de brincar com os filhos ou en-
quanto dirigia o automóvel. Aqui há uma verdadeira divisão “espa-
cial” entre mente e corpo; uma cápsula do espaço-tempo ‘virtual’ do
trabalho, dentro do local concreto da casa. Enquanto o corpo executa
os rituais da esfera doméstica, a mente está ocupada com os interes-
ses e preocupações do trabalho:
70
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
10
Esse ponto de vista foi reforçado em alguns casos pelo contraste entre a atitude para
com as habilidades empregadas no trabalho, de um lado, e no âmbito doméstico, de
outro. Assim, considerando que suas parceiras fazem quase todo o trabalho doméstico,
uma série de cientistas depõe que “ela é melhor nisso”. O interessante aqui é que não
parece haver nenhuma compreensão de que essa habilidade pode ser aprendida. Em
contraste com os empregos altamente intelectuais, para os quais muito aprendizado
foi necessário, a habilidade para o trabalho doméstico parece ser vista, ainda que
implicitamente, como inata.
71
... eles têm filhos e esposas e estão sempre relatando as
queixas de suas esposas... Essa é uma queixa constante...
Há uma queixa permanente de que os parceiros nunca
as veem e de que eles não saem daqui. Na verdade, as
parceiras tendem a vir aqui e trabalhar à noite, porque é
onde o outro está; elas têm diferentes tipos de emprego,
mas podem trazer o trabalho com elas e fazê-lo aqui.
11
Isto é amplamente verificável na maioria dos locais de trabalho, embora em graus
diferentes. As caixas sem janelas de muitas fábricas modernas demonstram precisamente
o desejo de não deixar o olho/a mente se perder “do lado de fora” durante o horário
de expediente. Mas nos tipos de emprego em discussão aqui, juntamente com alguns
outros, isso é especialmente notável.
72
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
Espaços abstratos
73
vedada a intrusões; e também pela natureza daquilo em que eles são
especializados), têm consequências — na estruturação do cotidiano
e das identidades dos cientistas que trabalham dentro deles. Mais
especificamente, desde sua circunscrição e dedicação exclusiva ao
pensamento abstrato até a exclusão das outras coisas, esses locais
de trabalho tanto refletem quanto proporcionam uma base material
para a forma particular de masculinidade que hegemoniza esse tipo
de atividade profissional. Não só a natureza do trabalho e a cultura do
local de trabalho, mas também a construção do espaço de trabalho
em si, portanto, contribuem para a moldagem e o reforço dessa mas-
culinidade. Conforme escreve Lefebvre (1991, p. 89):
74
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
RESISTÊNCIA
75
Neste contexto, é profundamente irônico que um dos mecanis-
mos importantes de resistência, e que é adotado por bom número
dos homens, é precisamente insistir na necessidade e na imperme-
abilidade da fronteira entre trabalho e casa. Dado que a tendência
é o trabalho invadir a vida doméstica, um mecanismo óbvio de re-
sistência é protegê-la contra a intrusão. Isso acontece de numerosas
maneiras. Alguns homens (apenas poucos, mas afinal os resistentes,
ao todo, não constituem uma proporção elevada da população) deci-
diram não levar trabalho para casa, preservando, assim, o espaço do-
méstico e o tempo nele gasto da invasão empreendida pelas deman-
das do trabalho. Às vezes isso vai envolver uma invasão em termos
temporais: pode envolver uma permanência mais longa no local de
trabalho, a fim de terminar uma tarefa lá em vez de levá-la para casa.
A resistência, nesse caso, é contra a violação do espaço da casa. Ou-
tros homens — novamente poucos — criaram para si regras relativas
ao tempo e insistem em manter uma rotina diária regular e em chegar
e sair do local de trabalho em horários determinados. A longo prazo,
é possível que isso seja prejudicial para as suas carreiras (ver Henry
e Massey, 1995), mas esses homens estão cientes disso e, de fato, em
alguns casos eles têm adotado tal estratégia por causa de outros pro-
blemas (estresse pessoal, problemas com a saúde ou relacionamen-
tos pessoais) gerados outrora pelo comprometimento com a intensa
pressão e as longas jornadas típicas dessas empresas, de modo geral.
Deve-se enfatizar que essa não é a única maneira de enfrentar as pres-
sões do trabalho. Outros cientistas, e casais, têm encontrado formas
alternativas para lidar com tais demandas e compulsões, mas o que
chama a atenção na resistência com base no tempo e no espaço é a
sua ironia. O “problema”, como argumentamos acima, configurou-se
através da organização na vida cotidiana de algumas das principais
dualidades das formas de pensamento ocidentais. No entanto, na au-
sência de resistência coletiva, de ações legislativas ou de mudanças
culturais mais amplas, as tentativas individuais de lidar com alguns
conflitos assim provocados podem resultar num reforço da expressão
dessas mesmas dualidades. As dicotomias são enrijecidas a fim de se
proteger uma das esferas (a casa, o “resto da vida”) da invasão pela
outra (abstração científica, transcendência). Os problemas desperta-
dos pelas dualidades resultam em seu reforço.
76
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
CONCLUSÕES
12
Um ardil 22 — ou Catch-22, no original em inglês, é uma expressão cunhada pelo
escritor estadunidense Joseph Heller no romance que leva esse título, a qual se refere
a uma situação cuja resolução se torna impossível em função de regras ou normas
contraditórias. O apelo a um ardil 22 para resolver determinado problema gera
necessariamente outro problema, o qual, por sua vez, remete o apelante de volta ao
problema original. (N.T.)
77
A longo prazo, o objetivo deve ser levar o questionamento
adiante, para tentar encontrar as soluções que possam existir em
níveis “mais profundos”. Em especial, isso significa questionar as
próprias dualidades, eu sugiro. Em vez de tentar interminavelmente
conciliar as incompatibilidades e resolver as ambiguidades que, na
realidade, apontam para contradições, é importante minar e romper
as polarizações que estão produzindo o problema, em primeiro lugar.
Na filosofia e, em especial, na filosofia crítica feminista, essa posi-
ção é atualmente bem estabelecida. O objetivo agora é, em geral, não
apenas valorizar o polo anteriormente desprivilegiado de uma duali-
dade (como fez Simone de Beauvoir [ver acima]), mas também minar
completamente a estrutura dualista.
Tais críticas fundamentais podem ser transportadas para outras
áreas. Assim, tal como indicado no começo deste artigo, após anos
criticando a desqualificação na indústria, acho que é difícil criticar
empregos por serem muito absorventes. Outra ironia, sem dúvida!
No entanto, como já foi apontado, pode ser que este grande dilema
sugira que a questão seria mais bem colocada de outra maneira. Em
vez de fazer crítica da desqualificação ou da superqualificação em si,
é a polarização entre elas que deve ser o foco da atenção crítica. O que
está em questão aqui — e é uma questão que novamente nos envolve
como acadêmicos — é a divisão social entre concepção e execução,
entre os intelectuais e o restante.
O que eu acho mais problemático enquanto questão política é
a divisão das vidas dos cientistas, descritas neste documento, entre
trabalho abstrato e completamente “mental”, de um lado, e o “resto
da vida”, de outro. Na versão deste documento que foi enviada para
os pareceristas, eu havia aplaudido sem reservas as poucas tentativas
com as quais nos deparamos em nossa pesquisa de resistir à compar-
timentalização da vida em tempos-espaços mutuamente isolados.
Pelo menos um perito questionou isso, perguntando simplesmente
“por que é bom resistir à compartimentalização?” E de minha parte
eu sei que uma coisa completamente prazerosa é sentar-me no espa-
ço isolado e privativo da Sala de Leitura do Museu Britânico e dedi-
car-me por inteiro a pensar e escrever. E, no entanto — retornando
a Lefebvre —, queremos realmente vidas seccionadas em comparti-
mentos, em tempos-espaços exclusivos: para o intelecto, para o lazer,
para fazer compras...?
Esse dilema pode estar relacionado a uma análise — e ser par-
cialmente abordado por ela — da grande dualidade discutida neste
trabalho — aquela na qual a própria “ciência” está envolvida. Pode
78
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
AGRADECIMENTOS
79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DINNERSTEIN, D. The rocking of the cradle and the ruling of the world.
London: The Woman’s Press, 1987.
HO, M. W. The rainbow and the worm: the physics of organisms. London:
World Scientific, 1993.
80
Masculinidade, dualidades e alta tecnologia
TURKLE, S. The second self: computers and the human spirit. London:
Granada, 1984.
81
Desenvolvimento rural em
El Hatillo, Nicarágua: gênero,
neoliberalismo e risco ambiental
Julie Cupples
RESUMO
INTRODUÇÃO
E
l Hatillo, uma comunidade rural de 350 habitantes no vale
do Sébaco, no planalto centro-norte da Nicarágua (Figura
1), pode ser classificada como vulnerável tanto econômi-
ca quanto ecologicamente. A localidade sofre com a erosão de sua
base de recursos, os altos níveis de pobreza e a alta suscetibilidade a
catástrofes naturais, especialmente secas e enchentes. A segurança
nesse território, como na maioria das áreas rurais da Nicarágua, é pre-
cária. O desmatamento indiscriminado nas encostas circundantes,
que tem levado a uma considerável degradação do solo e diminuição
da sua fertilidade, também torna a comunidade particularmente vul-
nerável a deslizamentos de terra e inundações com as fortes chuvas.
Visitei El Hatillo pela primeira vez no início de 1999, apenas
alguns meses após o furacão Mitch ter devastado aquela área, des-
truindo casas e plantações, e também a estrada e a ponte sobre o Rio
Grande de Matagalpa, que ligavam El Hatillo a Sébaco, o centro ur-
bano mais próximo. Mais tarde naquele ano, o Departamento de Ma-
tagalpa, onde El Hatillo se situa, sofreu fortes inundações. As chuvas
tiveram um impacto seríssimo sobre El Hatillo, isolando-a tanto de
Matagalpa quanto de Sébaco. A estrada, acessível a custo, tornou-se
intransponível, e durante várias semanas eu me vi incapacitada de
chegar até lá para realizar minhas entrevistas. Finalmente, consegui
fazer isso por uma rota alternativa, muito mais longa e bastante pre-
cária.
84
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
85
mulheres enquanto atores sociais de posições múltiplas e usuárias
dos recursos que foram organizados com a finalidade de implemen-
tar iniciativas destinadas a mitigar o risco ambiental e aliviar a pobre-
za. O artigo recorre, ainda, à teoria pós-estruturalista que considera
os discursos e práticas discursivas tanto como constitutivos do mun-
do social quanto como inerentemente instáveis. Consequentemen-
te, embora os discursos hegemônicos de gênero possam legitimar e
reproduzir desigualdades estruturais de gênero, esses mesmos dis-
cursos estão constantemente abertos a desafios e contestações, par-
ticularmente quando em interseção com outros processos políticos,
econômicos, culturais e ambientais. Considerando que processos
neoliberalizantes, portanto, se entrecruzam com práticas implemen-
tadas localmente, com políticas e construções de masculinidade e fe-
minilidade, análises especificamente localizadas podem ser contes-
tadoras dos discursos universalizantes do neoliberalismo (ver Laurie
et al., 1999; Hurtig et al., 2002). Essa abordagem também contribui
para o crescimento crítico do paradigma de gênero e desenvolvimen-
to (GED). O GED emergiu como crítica ao paradigma predominante
da mulher em desenvolvimento (MED), que se concentra principal-
mente em trazer mulheres para os processos de modernização e tor-
nar visível seu desenvolvimento. Os analistas do GED insistem que as
relações de poder entre mulheres e homens precisam ser adequada-
mente consideradas no processo de desenvolvimento, e que elas vêm
se tornando, cada vez mais, componentes das políticas de desenvol-
vimento de governos nacionais e de organizações não governamen-
tais (ONGs) (ver Rathgeber, 1990; Moser, 1993). Tanto MED quanto
GED foram acusados de etnocentrismo, devido ao modo como ten-
dem a homogeneizar as mulheres e tratá-las como vítimas de suas
próprias culturas (Chua et al., 2000).
Meus objetivos neste artigo são tríplices. Primeiro, delineio
maneiras pelas quais meus participantes, mediante o manejo de re-
cursos e através de técnicas destinadas a aliviar a carência, fizeram
tentativas de enfrentar as múltiplas facetas da pobreza rural e do risco
ambiental, ambas as quais são exacerbadas pelas políticas de ajuste
estrutural. Segundo, exploro as relações ambientais com característi-
cas de gênero (Nesmith e Radcliffe, 1993) que existem em El Hatillo, e
as consequências desses relacionamentos tanto para o gênero quanto
86
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
2
Para uma discussão sobre os fatores internos e externos que contribuem para isso, ver
Cortés Domínguez, 1990; FSLN, 1990; Vilas, 1990; Castro e Prevost, 1992; Walker, 1997.
87
à exportação. Embora a economia nicaraguense venha crescendo de
maneira uniforme desde 1995, esse crescimento é frágil, direcionado
ao consumo e não à produção, e seus benefícios não alcançaram a
maioria pobre (Dijkstra, 1999; Vargas, 1999; Brown, 2000). Além disso,
a Nicarágua continua a enfrentar uma das mais altas dívidas externas
per capita do mundo. O pagamento desse débito requer uma ênfase
contínua na exportação.
A globalização das economias da América Latina, que graças ao
ajuste estrutural vem promovendo uma ênfase contínua na explora-
ção dos recursos naturais, representa uma séria ameaça aos ecossis-
temas locais (Gwynne e Silva, 1999; Murray, 1999). Embora a retórica
da sustentabilidade e do desenvolvimento sustentável seja hoje lu-
gar-comum na Nicarágua e outros lugares da América Central, vários
comentadores têm salientado as desastrosas consequências ambien-
tais das políticas de ajuste estrutural, e particularmente o fato de que
estas vêm conduzindo à hiperexploração dos recursos naturais (ver
Green, 1995; Bendaña, 1999; CCER, 1999; Vargas, 1999; Lane, 2000).
É relativamente fácil identificar o que não é sustentável na economia
rural da Nicarágua. A ênfase no crescimento orientado à exportação,
um elemento central das políticas de ajuste estrutural, tem empur-
rado agricultores marginalizados para meios ainda mais à margem,
para encostas de morros e vulcões ou avançando floresta adentro, re-
correndo a queimadas para implantar lavouras de subsistência. Tais
processos aceleram o desmatamento, intensificando a degradação
das terras e a erosão do solo e tornando mais frequentes as inunda-
ções, os deslizamentos de terra e as secas prolongadas. Como argu-
mentou Faber (1991, citado por Larson e Perez, 1999, p. 2), “a base de
recursos de grande parte do campesinato da América Central alcan-
çou o ponto do colapso ecológico”.
O fim do controle de preços significa que os campesinos es-
tão agora livres para cobrar valores mais altos pelas suas colheitas
(Green, 1995). No entanto, a privatização do setor bancário gerou
escassez de crédito para os produtores agrícolas de pequeno porte,
diminuindo a produtividade, aumentando a precariedade da posse
de terras e impelindo muitos fazendeiros à falência. Os bancos, que
agora são forçados a operar de acordo com critérios de rentabilidade,
relutam em fazer empréstimos aos pequenos agricultores que culti-
vam lavouras para o consumo doméstico. O Banco de Desenvolvimen-
to do Estado (BANADES), que disponibilizava crédito aos produtores
rurais com taxas vantajosas durante a década de 1980, foi fechado. Ao
mesmo tempo, a liberalização do comércio sob as políticas de ajuste
88
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
89
(Bendaña, 1999; Delaney e Schrader, 2000). Analistas na mídia,
a sociedade civil e a comunidade acadêmica viram a devastação
causada pelo furacão não como um fenômeno extremo e inevitável,
mas como consequência do cultivo de terras marginais e também
do desmatamento, sem medidas de conservação do solo e manejo
adequado dos reservatórios de água, um processo agravado pela
marginalização crescente da população nicaraguense. Uma publicação
da Coordinadora Civil para la Emergencia y la Reconstrucción
(CCER, 1999, p. 18-19), uma coalização civil de 320 ONGs criada na
esteira do furacão Mitch para coordenar e supervisionar o processo
de reconstrução, declarou que os “efeitos devastadores provocados
pelo Mitch estão intimamente relacionados com as consequências
do modelo histórico de desenvolvimento e do modelo econômico
neoliberal predominante”. Pobreza e marginalização são percebidas
como consequências diretas de práticas transnacionais, num meio
em que corporações transnacionais e grandes proprietários de
terras cultivam lavouras extensivas nas terras mais férteis, enquanto
campesinos são forçados a desmatar as terras mais marginais para
plantar e construir. Estima-se que 80% de todos os grãos e 90%
do feijão (lavouras produzidas para consumo doméstico) sejam
cultivados em encostas (CCER, 1999), uma evidência da extensão
em que os campesinos são relegados às terras marginais. A situação
é agravada por outros aspectos das políticas neoliberais de ajuste
estrutural, como os cortes de gastos com saúde e educação e a falta
de acesso aos programas de crédito para pequenos produtores
agrícolas, levando ao aprofundamento das desigualdades e,
consequentemente, aumentando a vulnerabilidade a catástrofes
(Bendaña, 1999; CCER, 1999; Mowforth, 1999; Vargas, 1999). Foram
tais condições econômicas que aparentemente criaram um desastre
em tão grande escala e que tornam a recuperação tão difícil.3
3
Há na Nicarágua a preocupação de que a ênfase na vulnerabilidade e o processo de
desenvolvimento em si estejam se tornando um novo paradigma. Embora a maioria
dos danos tenha sido causada a pessoas e lares em ambientes de risco, algumas
terras bem capitalizadas e irrigadas em Matagalpa e Jinotega também foram afetadas.
Pesquisadores da Universidad Centroamericana (UCA), em Manágua, acreditam que o
“desenvolvimento” proposto como solução total vem retardando outras estratégias de
prevenção e atenuamento de possíveis desastres, como a implementação de práticas
agroecológicas potencialmente benéficas (Equipo Nitlapán-Envío, 1999; Rocha e
Christoplos, 2001).
90
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
91
em 1999, havia uma presença significativa de ONGs ali, e tanto o Mo-
vimento Comunitário quanto a FACS disponibilizavam fundos para
construção de casas, reflorestamento e reabilitação da agricultura.
Nem todas as comunidades que haviam sido afetadas pelo fu-
racão, nas quais eu trabalhei, receberam ajuda para reconstrução. A
capacidade de reconstrução de uma comunidade após um desastre
depende com frequência dos níveis de organização dessa comunida-
de, tanto em termos de habilidade para lidar com o problema quanto
para captar fundos de ONGs e agências de assistência. Parecia que
as comunidades mais organizadas, com mais altos níveis de mobili-
zação social, eram as mais eficientes para atrair ajuda, independen-
temente dos danos sofridos. As mulheres entrevistadas em El Hatillo
estavam organizadas em vários grupos exclusivamente femininos
que se envolveram em toda uma série de medidas de mitigação do
desastre e de reconstrução. Estas incluíam a liberação de estradas
e a construção de gabiões, projetos de reflorestamento e desenvol-
vimento de canteiros (huertos familiares). Os grupos femininos na
localidade também conseguiram garantir recursos da Espanha para
prover todas as mulheres da comunidade com suas próprias vacas
leiteiras (vacas paridas), que podiam fornecer leite e coalhada para o
consumo familiar. Em 1999, o grupo passou a documentar idade, al-
tura e peso de todas as crianças da comunidade para realizar um cen-
so dos níveis de desnutrição infantil, de posse do qual pressionaram
com sucesso agências de assistência e garantiram fundos para reabrir
o comedor infantil. Também realizaram oficinas de saúde reproduti-
va, destinadas principalmente a capacitar os jovens a se protegerem
contra doenças sexualmente transmissíveis. O programa de educa-
ção de adultos foi particularmente bem-sucedido em aumentar os
níveis de alfabetização na comunidade. As mulheres de El Hatillo es-
tenderam seu senso de sacrifício para além dos familiares imediatos,
de forma a abranger toda a comunidade, desempenhando grandes
volumes de trabalho não remunerado, de forma rotativa:
92
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
93
Nós temos um nível de organização muito alto e eu es-
pero que ele não caia, mas que em vez disso ele aumente
— existem pessoas que vêm se tornando mais motiva-
das... eu realmente acho que estamos nos saindo bem.
Graças a Deus, e àquele grupo de mulheres muito corajo-
sas, como nós as chamamos. Elas aprenderam a valorizar
seu trabalho, e ele envolve tanto mulheres jovens e adul-
tas, quanto as da minha idade, algumas já velhas, todas
estamos trabalhando e temos três comitês, um para as
mais jovens, outro para as de meia-idade e um para as
mulheres mais velhas, e somos nós que dirigimos o tra-
balho... estamos fazendo planos, para o caso de morrer-
mos amanhã e não haver ninguém para continuar nosso
trabalho... Mas sabemos como usar as mãos e os pés, e
por isso continuaremos lutando para o bem-estar da co-
munidade. (Silvia Montiel, 10 de outubro de 1999)
94
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
95
As vulnerabilidades ambientais crônicas de El Hatillo tornaram-
se evidentes durante as fortes chuvas do final de 1999. As tempesta-
des testaram duramente as medidas adotadas pela comunidade para
minimizar catástrofes naturais, especialmente os gabiões que eles
construíram depois do Mitch. Silvia assim me descreveu a situação:
96
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
IGUALDADE DE GÊNERO E
EMPODERAMENTO
97
O trabalho de reconstrução após o desastre pode tornar as
mulheres mais visíveis em espaços dominados por homens, como
aconteceu em El Hatillo, mas também aumenta consideravelmente
sua carga de trabalho, e o estresse decorrente pode retardar a recu-
peração. Bradshaw (2001) indicou que a participação no processo
de reconstrução após o furacão Mitch não trouxe necessariamente
benefícios para as mulheres, pois reforçou mais do que contestou
papéis de gênero “tradicionais”. Considerando que as mulheres de
El Hatillo suspenderam suas próprias atividades produtivas para se
concentrarem no trabalho de reconstrução após o desastre, pode pa-
recer óbvia a conclusão de que, por conseguinte, as mulheres tiveram
desvantagens pelo seu envolvimento nos processos de reconstrução
e que as iniciativas de reabilitação agrícola promovidas por ONGs
trouxeram benefícios maiores para os homens. Mudanças nas rela-
ções de gênero parecem não ter acontecido. No entanto, quando nos
concentramos não apenas nas relações de gênero, mas também nas
identidades de gênero, torna-se claro para mim que esses processos
não são tão uniformes e que pode haver efeitos contraditórios, como
demonstra o envolvimento no esquema de leite bovino.
Para reiterar isso, as mulheres de El Hatillo engajaram-se prio-
ritariamente no trabalho não remunerado da comunidade ou na
agricultura de subsistência, enquanto o trabalho mais rentável era
totalmente controlado pelos homens. Laurie (1999) apontou que o
paradigma GED tendia a relegar esses tipos de atividade desempe-
nhados por mulheres ao universo do “feminino” e do “tradicional”
e a presumir que eles não podiam implicar empoderamento. As fe-
ministas que atuam na Nicarágua criticaram o fato de que as ONGs
que trabalhavam em comunidades rurais tendiam a promover tais
atividades de subsistência — conhecidas como “economía de patio”,
literalmente, economia de quintal — para as mulheres, em vez da
agricultura mais ampla e rentável, como a criação de gado ou a pro-
dução de café (Haydee Castillo, comentarista feminista, publicada no
periódico Esta Semana, 2001). Quando visitei El Hatillo em 1999, as
mulheres estavam buscando recursos de uma agência de assistên-
cia espanhola para o programa de leite bovino, principalmente para
aquisição de gado para o consumo familiar. Quando retornei à comu-
nidade em 2001, a primeira fase do programa estava em andamento;
20 mulheres possuíam suas próprias vacas, com um capital rotativo
de C$ 20.000,00 (cerca de 1.400 dólares). Eu não esperava uma res-
posta tão empolgante, mas Silvia Montiel disse-me com alegria que
tinha uma vaca que produzia seis litros de leite por dia no inverno.
98
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
99
culturais quanto pelos processos de distribuição do auxílio, conse-
guiram ainda assim negociar respeito e liberdades consideráveis com
seus companheiros homens, o que sugere que as relações e identi-
dades de gênero são com frequência redefinidas de maneiras ines-
peradas. Embora as mulheres de outras comunidades expressassem
desespero diante de sua situação, as de El Hatillo demonstravam um
sentimento ao mesmo tempo de libertação e de alegria pelo modo
como conseguiram negociar o tempo e o espaço para experienciarem
a si próprias de maneira positiva, e não apenas por meio da organiza-
ção social e política, mas também da música, do esporte e da religião:
100
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
7
Rosa Laviana, por exemplo, falava sobre o quanto havia sofrido no passado por causa
da infidelidade ostensiva e desavergonhada de seu marido. Mas, em vez de deixá-lo, ela
me disse que conseguiu regenerá-lo com a ajuda da Igreja Católica. Sonia Aguirre, uma
mãe adolescente, nunca havia morado com o pai de seu filho antes de 2001, quando a
criança tinha já quatro anos de idade. Durante esse período, o pai nunca lhe deu apoio,
quer emocional, quer financeiramente. Sonia disse-me que ele aparecia bêbado em sua
residência, revirava a casa, depois retornou no meio da noite para “raptá-la” com seu
filho. Não tenho certeza se ela partiu com ele por amor ou por medo. Oito dias depois,
os pais dele visitaram os dela para garantir-lhes que “se iba a componer”, que ele iria
tomar jeito e tornar-se um “santo hombre”, um santo. Quando as mulheres de El Hatillo
contavam essa história, faziam isso rindo (inclusive Sonia), com o sentimento de que
um mal havia sido reparado e que Sonia estava agora numa situação melhor. O pai do
primeiro filho de Silvia Montiel foi morto na guerra dos Contra, na década de 1980 —
quando ela ainda estava grávida e tinha apenas 15 anos. Ela tomou um novo parceiro
muito mais tarde e teve mais dois filhos. Comparando os dois homens, ela me disse que
a vida com o marido atual simplesmente não era a mesma. Ela reclamava do egoísmo
dele; que ele tratava de modo diferente seus filhos biológicos e a filha que ela tivera com
outro homem. Por outro lado, seu primeiro parceiro era descrito de modo mais favorável:
ele era “um bom homem”. A heterossexualidade romântica é persistente na Nicarágua
e é muito ligada ao fato de que os homens que caíram na guerra com os Contra eram
construídos como heróis e mártires no discurso revolucionário; existe a crença de que
eles deram suas vidas para o bem do país, o que faz deles “bons homens”.
101
Em El Hatillo, as mulheres da comunidade disseram-me que haviam
começado a se orgulhar de sua aparência, que era interpretada por
elas como evidência de que haviam se tornado liberadas. Anterior-
mente, elas não penteavam seus cabelos, não usavam maquiagem
nem se arrumavam para evitar ciúmes ou suspeitas dos maridos.8
Tudo isso havia mudado, elas me disseram, e as mulheres agora po-
diam cuidar da própria aparência. No entanto, elas não perdiam
tempo em condenar as duas ou três mulheres da comunidade que
sabidamente tinham casos extraconjugais e cujo comportamento era
visto como exemplo de perda de valores. Isso sugere que a sexualida-
de feminina em El Hatillo pode se expressar num contexto de higiene
pessoal, mas também deve ser policiada.
As mulheres de El Hatillo não são inteiramente dependentes ou
independentes, tradicionalistas ou emancipadas. As restrições estru-
turais em suas vidas, como o sexismo e a pobreza, são enormes, mas
suas respostas a essas restrições são estratégicas e calculadas. Gra-
ças à participação delas em projetos de desenvolvimento definidos
de maneira autônoma e num trabalho de reconstrução que simulta-
neamente era não remunerado/feminizado e envolvia intenso traba-
lho físico/masculinizado, elas criaram espaços nos quais as relações
de gênero na comunidade puderam ser retrabalhadas. Essas reela-
borações são frequentemente positivas em termos de renegociação
de identidades. As negociações de gênero que ocorrem em El Hatillo
demonstram o grau em que as construções de masculinidade e femi-
nilidade estão constantemente se reelaborando, à medida que elas se
envolvem nos processos de desenvolvimento e respondem tanto ao
neoliberalismo quanto ao risco ambiental.
CONCLUSÕES
102
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
103
tanto da vida rural quanto do gênero. Essa abordagem possibilita que
vejamos como uma nova geografia crítica do desenvolvimento, que
integra a prevenção de desastres, o alívio da pobreza e a igualdade de
gênero, vem sendo construída a partir de uma posição de marginali-
dade.
AGRADECIMENTOS
REFERÊNCIAS
104
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
CASTRO, V.; PREVOST, G. (Eds.). The 1990 elections in Nicaragua and their
aftermath. Lanham: Rowman and Littlefield, 1992.
105
GWYNNE, R. N.; SILVA, E. The political economy of sustainable development.
In: GWYNNE, R. N.; KAY, C. (Eds.). Latin America transformed. London:
Arnold, 1999. p. 153-180.
106
Desenvolvimento rural em El Hatillo, Nicarágua: gênero, neoliberalismo e risco ambiental
107
Mulheres, homens, posicionalidades
e emoções: fazendo geografias
feministas da religião
Peter E. Hopkins
RESUMO
Nos últimos dez anos, geógrafos vêm se ocupando cada vez mais da religião
como importante marcador de diferença social e cultural. Valendo-se de tais
esforços como base de discussão, este artigo mapeia algumas vias poten-
ciais a serem seguidas por futuros trabalhos sobre geografias feministas da
religião. Recorro simultaneamente a tendências já existentes na disciplina e
a minhas experiências de pesquisa de campo com jovens muçulmanos para
sugerir caminhos pelos quais abordagens feministas poderiam ser empre-
gadas na pesquisa em geografia da religião. Ao fazer isso, concentro-me par-
ticularmente em três áreas da investigação geográfica feminista: relações de
gênero, posicionalidades e emoções.
INTRODUÇÃO
A
compreensão das maneiras como as mulheres experien-
ciam o espaço e o lugar, o desenvolvimento das perspec-
tivas que tomam a natureza do conhecimento geográfico
como saber localizado, bem como a construção da crítica do caráter
sexista e excludente da sociedade (e da geografia enquanto disciplina)
são apenas algumas das muitas contribuições que os geógrafos femi-
nistas fizeram, e continuam a fazer, para o conhecimento geográfico
(p.e., Rose, 1993). Pode-se afirmar que a geografia feminista é hoje uma
subdivisão bem estabelecida da disciplina, e isso se evidencia nas re-
centes publicações de Geography and Gender Reconsidered, do Women
and Geography Study Group [Grupo de Estudos Mulheres e Geografia],
da Royal Geographical Society — Institute of British Geographers
(RGS-IBG) [Real Sociedade Geográfica — Instituto dos Geógrafos
Britânicos] (Sharp, Browne e Thien, 2004); do Companion to Feminist
Geography [Compêndio de Geografia Feminista], pela editora Blackwell
(Nelson e Seager, 2005); e também no sucesso duradouro do periódi-
co Gender, Place and Culture [Gênero, Lugar e Cultura], iniciado em
1994. Isso não quer dizer que a igualdade de oportunidades seja ex-
perimentada por todas as mulheres — longe disso —; ao contrário,
ainda há muitas contribuições que os geógrafos feministas poderiam
prestar ao entendimento das maneiras pelas quais o sexismo — e ou-
tras desigualdades e relações de poder — age para marginalizar os
indivíduos, influenciar sua espacialidade e determinar suas chances
de sucesso na vida. Linda Woodhead (2007) observa que a sociologia
da religião tem demonstrado certa lentidão para levar em conta a sig-
nificância do gênero, e o mesmo se poderia dizer das geografias da
religião. Se há uma área do conhecimento geográfico que teve pou-
ca interação com as geografias feministas, é o estudo da religião, e
o principal propósito deste artigo é discutir algumas maneiras pelas
quais os pesquisadores poderiam fazer geografias feministas da reli-
gião. Consequentemente, sob diversos aspectos, este artigo propõe
perguntas em vez de fornecer respostas. Lily Kong (1990, p. 355) ob-
servou que tomar a geografia e a religião como “um valioso campo
de investigação nem sempre foi algo evidente de imediato”. Embora
trabalhos recentes tenham começado a levar a religião a sério como
objeto da pesquisa geográfica (Brace, Bailey e Harvey, 2006; Kong,
2001; Olson e Silvey, 2006), exemplos de abordagens feministas para
o entendimento das geografias da religião são relativamente limita-
dos do ponto de vista numérico (embora exceções notáveis incluam
Dwyer, 2000; Kay, 1997; Mohammad, 1999; e as recentes coletâneas
editadas por Aitchison, Hopkins e Kwan, 2007; Falah e Nagel, 2005;
Morin e Guelke, 2007). No entanto, há muito espaço para que os geó-
grafos feministas façam intervenções importantes nas paisagens e lu-
gares dos religiosos, e eu agora passo a considerar alguns dos modos
pelos quais essas e outras geografias feministas trouxeram informa-
ções para as minhas próprias experiências na prática das geografias
da religião.
Este artigo está dividido em quatro partes principais. Na pri-
meira delas, detenho-me sobre um tema que tem sido fundamental
ao projeto feminista no âmbito da geografia: o estudo das relações de
gênero. Na segunda, desenvolvo essa discussão para explorar com-
preensões acerca das posicionalidades dos pesquisadores e do rela-
cionamento entre pesquisadores e pesquisados. Na terceira, faço al-
gumas sugestões para consolidar e estender as maneiras pelas quais
110
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
RELAÇÕES DE GÊNERO
111
performativos (em vez de já serem dotados de existên-
cia). Assim, indivíduos nascem masculinos ou femini-
nos, mas, ao longo do tempo, adquirem uma identidade
de gênero, que é uma compreensão do que significa ser
um homem ou uma mulher (WGSG, 1997, p. 53). Essa
identidade de gênero é definida como masculinidade ou
feminilidade.
112
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
113
e temores associados às suas experiências cotidianas com o racismo
e a intolerância religiosa. Isso demonstra a importância dos grupos
de rapazes e da presença de outros homens de sua faixa etária para
a construção das identidades religiosas, raciais e de gênero desses
jovens. Além disso, Susan Smith e eu também argumentamos haver
uma tendência geral entre os jovens muçulmanos a se recolherem à
privacidade dos seus lares após o 11 de setembro de 2001, como re-
sultado da hostilidade e da ausência de conforto que eles associam às
negociações necessárias para a convivência diária nas ruas (Hopkins
e Smith, 2008).
EXPLORANDO POSICIONALIDADES:
DIFERENÇAS, ALTERIDADES E
SIMILARIDADES
114
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
Party1 e que por isso usaria o que eles dissessem para encorajar a
circulação de literatura islamofóbica (Hopkins, 2007b). Além disso,
muitos supuseram que eu pertencesse a um grupo religioso, referin-
do-se à Bíblia como o “meu livro”, e perguntaram se eu era católico ou
protestante. Também indagaram minha postura em relação ao Islã.
Estes são apenas alguns exemplos de como minhas posições, atitu-
des e opiniões foram questionadas pelos participantes da pesquisa.
Muitas dessas questões e objeções são fundamentais para o proje-
to feminista no âmbito da geografia, pois problematizam o papel do
pesquisador, contestam a importância das relações de poder nas reu-
niões de pesquisa e salientam a significância dos marcadores de dife-
rença social em vários contextos.
Existe uma vasta literatura, tanto na geografia feminista quanto
nas ciências sociais como um todo, explorando as perspectivas se-
gundo as quais os pesquisadores podem tentar interrogar suas po-
sicionalidades. Como eu queria “examinar de maneira reflexiva a
minha personalidade” (Rose, 1997, p. 305), senti-me particularmen-
te atraído pelos textos da geografia feminista que desconstroem “a
barreira entre a academia e as vidas das pessoas que ela declara re-
presentar” (Kobayashi, 1994, p. 73). Entretanto, dentro das geografias
feministas, há toda uma gama de perspectivas segundo as quais os
pesquisadores poderiam refletir sobre suas posicionalidades. A abor-
dagem que considerei mais útil considera que o pesquisador nunca
é completamente igual, nem inteiramente distinto dos seus partici-
pantes. Níveis de diferença e similaridade podem variar ao longo do
projeto de pesquisa, em diferentes lugares e diferentes períodos. Essa
negociação constante entre vários graus de diferença e semelhança
pode ser vista como uma posição de “intermédio”:
1
O British National Party, ou Partido Nacional Britânico, em português, é uma
organização política de extrema-direita no Reino Unido.
115
Robina Mohammad (2001) considera-se uma ocupante dos es-
paços de intermédio. Ela se vê como “uma britânica, paquistanesa
muçulmana (de nascimento), mas não praticante e não crente, um
pouco marxista, um tanto feminista, originária da classe média tra-
balhadora” (Mohammad, 2001, p. 107). A pesquisa de Mohammad
ocupa-se da situação de educação e emprego das mulheres paquis-
tanesas, e por isso a maioria das pessoas, incluindo muitos dos par-
ticipantes de sua pesquisa, a considera uma “integrante”. No entan-
to, Mohammad era também divorciada, e estava grávida, num rela-
cionamento com um homem branco. Portanto, também ocupa um
espaço “alheio” à comunidade paquistanesa local, uma vez que ela
possui nível educacional, religiosidade e valores sociais diferentes.
Mohammad é claramente sensível às posições múltiplas, entremea-
das e frequentemente contraditórias que podem existir entre o pes-
quisador e seus participantes.
No entanto, geógrafas feministas, como Gillian Rose (1997, p.
317), têm plena consciência de que as “negociações que fazem parte
de um processo de pesquisa não são inteiramente cognoscíveis”, e
isso pode fazer com que alguns pesquisadores considerem impro-
fícua a análise das suas posicionalidades no processo de pesquisa.
Eu concordo que nunca teremos plena consciência das nossas po-
sicionalidades, de como elas se manifestam durante o projeto de
pesquisa, de como outros as interpretam e de como elas influenciam
os participantes da nossa pesquisa. Essa incapacidade de conhecer
por inteiro nossas posicionalidades poderia encorajar pesquisado-
res a perceber a importância da pesquisa que estão realizando e dos
métodos que estão empregando. Entretanto, sugerir que, com isso,
não seja profícuo considerar a influência das posicionalidades dos
pesquisadores é uma saída fácil para um problema complexo. Fazer
isso é ignorar um aspecto potencialmente significativo do processo
de pesquisa. Por esses motivos, é importante que eu busque explorar
tais questões em minha pesquisa com jovens homens muçulmanos.
Como Mohammad (2001) e Nast (1994), eu me vejo ocupan-
do um espaço de “intermédio”. Estou simultaneamente posicionado
numa variedade de diferentes grupos de categorias sociais que me si-
tuam em vários níveis de similaridade e diferença em relação aos parti-
cipantes da pesquisa. Muitos desses participantes ocupam um espaço
de similaridade (indiferença) comigo porque somos jovens, escoceses
e masculinos. No entanto, ao contrário dos participantes da pesquisa,
eu não sou muçulmano, nem sou “negro” ou “asiático”. Esse comen-
tário sobre similaridades e diferenças retrata minha posicionalidade
116
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
117
modo de vestir, comportamento e antecedentes de maneira geral,
podem também influenciar as reuniões de pesquisa (para um exce-
lente estudo de alguns desses temas, ver Vanderback, 2005).2
Os aspectos apresentados acima salientam as complexidades
envolvidas quando se levam em consideração as posicionalidades do
pesquisador. Os sentimentos de Audrey Kobayashi (2003, p. 347-348)
correspondem aos meus:
2
Um tema adicional de reflexão — e controvérsia — diz respeito à minha identidade
como homem e meu engajamento na geografia feminista. Não há espaço neste artigo
para discutir isso a fundo, porém. Trata-se de um tema com o qual eu me debati por
algum tempo (e continuo a fazê-lo) e tenho particular consciência do(s) frequentemente
“contraditório(s) posicionamento(s) de homens que atuam na geografia feminista” (Butz
e Berg, 2002, p. 88). Este é um tema que claramente teria a ganhar com o envolvimento,
a discussão e o debate crítico dos geógrafos interessados em fazer uso das metodologias
e filosofias feministas.
118
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
GEOGRAFIAS EMOCIONAIS
119
e, portanto, deixar suas emoções de lado” (Sharp, Browne e Thien,
2004). Claramente, as emoções não são unicamente experienciadas
ou restritas às geografias feministas, porém, são geralmente estas que
têm proporcionado mais contribuições ao desenvolvimento das geo-
grafias emocionais como significativo subcampo dentro da geografia
humana.
Anderson e Smith (2001, p. 7) observaram o “silenciamento da
emoção tanto na pesquisa social quanto na vida pública”, notando
que, no âmbito da geografia humana, “as poucas discussões sobre
emoção que existem, ocorrem decididamente nos nichos culturais (e
frequentemente feministas) da disciplina”. Eles prosseguem comen-
tando as maneiras pelas quais as topografias emocionais poderiam
ser inscritas nas geografias econômicas, nos estudos de moradia, po-
pulacionais e de migração internacional (Anderson e Smith, 2001).
Tanto quanto prestar uma contribuição a estes subcampos da geo-
grafia humana, eu gostaria de sugerir que o recente pico de interesse
pelas geografias emocionais tem muito a contribuir para o desenvol-
vimento contínuo e o aprimoramento das geografias da religião. Uma
abordagem como essa não se limita a oferecer explicações aprofun-
dadas, pessoais e corporalizadas sobre a importância da religião para
as experiências cotidianas das pessoas: as emoções e sentimentos as-
sociados a determinados locais, eventos e períodos religiosos podem
também ser mais bem compreendidos.
Os jovens muçulmanos que participaram dos grupos de discus-
são e das entrevistas individuais comigo frequentemente contextua-
lizavam as narrativas de suas experiências diárias recorrendo a dis-
cursos emotivos sobre suas sensações e sentimentos acerca de deter-
minados lugares, momentos e eventos. Muitos consideravam a mes-
quita como lugar significante, pelo sentimento de ligação emocional
e conexão com seus pares muçulmanos que tais locais despertam, e
outros sentiam que o lar lhes oferecia um lugar de conforto e conten-
tamento, apartado da hostilidade, do medo e do racismo das ruas da
comunidade local, após 11 de setembro de 2001 (Hopkins e Smith,
2008). Além disso, alguns rapazes expressavam sua raiva e frustração
pela campanha racista e excludente do British National Party (Hopkins,
2007b), além de expressar sua dedicação, compromisso e forte empa-
tia para com a nação escocesa (Hopkins, 2004; Hopkins, 2007c). Em
suma, os vários sentimentos emotivamente expressos pelos jovens
em relação a diferentes aspectos de suas experiências corporais, lo-
cais e nacionais enfatizam os indícios de que uma abordagem infor-
mada por geografias emocionais pode contribuir para enriquecer as
geografias feministas da religião.
120
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
HOMENS, MULHERES,
RELIGIÃO, ESPAÇO
121
se ocupar das masculinidades (por exemplo, Berg e Longhurst, 2003;
Longhurst, 2000; Van Hoven e Horschelmann, 2005). De um modo
geral, Jackson (1991, p. 199) atribui o interesse nas masculinidades
tanto a uma resposta ao feminismo quanto, em menor extensão, ao
florescimento de “uma consciência gay progressivamente politiza-
da”. Longhurst (2000) considera a atenção nos homens e nas mas-
culinidades como parte da mudança de foco do feminismo, mais do
que numa resposta a este. No entanto, essas ocorrências resultaram
num reconhecimento de que formas dominantes de masculinidade
são ao mesmo tempo “economicamente predatórias e socialmente
opressivas” por natureza (Jackson, 1991, p. 199). Embora se possa
sugerir que os estudos sobre homens e masculinidades na geogra-
fia alcançaram recentemente uma massa crítica na disciplina (por
exemplo, Berg e Longhurst, 2003; Van Hoven e Horschelmann, 2005),
os geógrafos da religião idealmente se posicionam de modo a fazer
importantes intervenções nesse trabalho quando pesquisam experi-
ências religiosas de homens e mulheres, e os modos pelos quais essas
experiências se informam mutuamente. Geógrafos feministas, como
Linda McDowell (2003), demonstraram recentemente que, embora
muitas mulheres ainda experimentem o sexismo e sejam marginali-
zadas na sociedade, certos grupos de homens (neste caso, jovens da
classe trabalhadora no Reino Unido) também são excluídos de certos
aspectos da masculinidade hegemônica. Essas complexas relações
de poder e hierarquias seriam um interessante aspecto das relações
sociais e espaciais a ser pensado pelos geógrafos da religião ao longo
do seu trabalho.
Há muitas vias pelas quais este trabalho poderia se desenvol-
ver, abordando diferentes geografias, várias formas de religião e prá-
ticas religiosas e diversos grupos de homens e mulheres. É importan-
te pensar nas maneiras pelas quais diferentes experiências religiosas
de gênero influenciam e são influenciadas por enfoques e contextos
geográficos. O trabalho sobre as geografias do Islã empregou uma
gama de escalas geográficas de análise: Rachel Silvey (2005) explo-
rou a importância da religião em experiências de migração transna-
cional e Ghazi-Walid Falah (2005) ocupou-se em nível nacional do
modo como as mulheres muçulmanas/árabes são representadas em
jornais dos EUA. A obra de Kevin Dunn (2005) inquiriu a interseção
de temas nacionais e locais com referência à política envolvida no
desenvolvimento das mesquitas em Sidney, e Abdi Ismail Samatar
(2005) explorou as contestações à implantação de uma mesquita de
mulheres na Somália. O trabalho com as geografias feministas da
122
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
123
CONCLUSÕES
124
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
AGRADECIMENTOS
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128
Mulheres, homens, posicionalidades e emoções: fazendo geogra as feministas da religião
129
“Uma perfeita geezer-bird
(mulher-homem)”1:
os lugares e olhares de
corporalização “feminina”
Kath Browne
RESUMO
1
Esta foi uma expressão usada por Julie, uma das participantes da pesquisa pós-doutoral
em que este artigo se fundamenta. As duas gírias inglesas “geezer” e “bird” referem-se a
homens e mulheres, respectivamente, e ilustram a ambiguidade e a existência entre as
categorias de homem e mulher, que são centrais neste artigo.
INTRODUÇÃO
C
ada vez mais, na cultura popular, na literatura que trata de
identidades lésbicas “machonas” e na academia, a aten-
ção se volta para mulheres que transgridem as fronteiras
da masculinidade (por exemplo, Ainley, 1995; Armadiume, 1987; Boys
Don’t Cry, 1999; Browne, 2004, 2005b; Cream, 1995; Devor, 1987, 1989,
1993, 1996; Feinberg, 1993; Halberstam, 1998; Lee, 2001; Munt, 1998,
2001; Namaste, 1996; Venus Boyz, 2002). Halberstam (1998), em seu
pioneiro livro Female Masculinity [Masculinidade feminina], propõe
que a masculinidade feminina contesta as premissas de que a mascu-
linidade pode ou deve se reduzir ao corpo masculino. À medida que
as mulheres cruzam e recruzam as fronteiras que delimitam homem
e mulher, elas turvam e contestam essas categorias, assim como a
coerência que representam. Este artigo investigará como, mediante
processos de avistamento (termo aqui usado para designar atos de vi-
são/interpretação) e sítios de (re)constituição/recuperação do corpo
(este conceito será mais explorado abaixo, mas pode ser entendido
inicialmente como a matriz complexa de materialidades, significa-
dos, símbolos, interações e sinais que vemos como o “nosso corpo”),
as fronteiras fluidas do corpo sexuado são continuamente solidifica-
das nas divisões binárias homem/mulher. O artigo analisará, ainda,
como as dicotomias de sexo/gênero são (re)formuladas tanto no sítio
do corpo quanto através de avistamentos desarranjadores de corpos.
Estes últimos se manifestam em práticas de policiamento que (re)
criam dicotomias sexuais pela exclusão daquilo que desestabiliza o
binário eu-outro (ver também Browne, 2004). Especificamente, ex-
plorarei momentos de encontro (Ahmed, 2000) em que mulheres2 são
confundidas com homens e como essas transgressões/(más) inter-
pretações são, então, (re)feitas no sítio do corpo, dentro do binário
homem/mulher.
Este artigo recorre aos estudos queer expandidos que examinam
questões de transgressão de gênero, e que trabalharam com ques-
tões, e questionamentos, de gênero e sexo (ver, por exemplo, Queen e
Schimel, 1997). As geografias da sexualidade têm argumentado que as
sexualidades são fluidas, encenadas contextualmente e, o que é mais
2
A categoria “mulher” é usada aqui para designar o modo como as participantes deste
estudo identificam a si próprias. Seria insultuoso, e mesmo doloroso, para essas mulheres
se eu contestasse essas identificações, alinhando-me assim com as discriminações que
serão exploradas neste artigo.
132
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
3
O termo refere-se, aqui, às culturas camp. Estas são geralmente associadas aos
homens gay e vinculadas ao exagero e à hipérbole — frequentemente também à atitude
efeminada. Existe uma vasta literatura em língua inglesa acerca das culturas camp,
embora tais teorias sejam mais predominantes nos anos 1990.
133
Antes disso, é importante reconhecer os temores políticos des-
pertados por essa forma de teoria. Tem havido um questionamento
da teoria queer e um movimento para restabelecer o lugar da catego-
ria “mulher” (ver Butler e Scott, 1992; Hartsock, 1990; Ussher, 1994).
Isso se baseia num retrocesso ao que é percebido como uma perigosa
e prematura desconstrução pós-moderna da categoria “mulher”, exa-
tamente quando as mulheres começam a ter um particular ganho de
poder (ver Hartsock, 1990; Ussher, 1994). Autores que seguem esse
viés postulam que as categorias de mulher são necessárias para a
colaboração à luz da continuidade do patriarcado e da desigualda-
de entre homens e mulheres. No âmbito das geografias feministas,
o uso continuado e com frequência não questionado das categorias
homem/mulher sugere que estas ainda precisam ser extensamente
problematizadas (no entanto, ver Cream, 1995; Namaste, 1996). Re-
correndo à teorização que considera as sexualidades fluidas, contin-
gentes e a (re)formação dos espaços e lugares re-encenada contex-
tualmente (ver Bell et al., 1994; Kitchin, 2002; Knopp, 2004; Knopp e
Brown, 2003), assumo a posição de que, ao lado das discussões do pa-
triarcado e outros estudos que partem da premissa de relações de po-
der dicotomicamente sexuadas (que são com tanta frequência o foco
das geografias de gênero), a contestação da oposição binária mascu-
lino/feminino pode contestar o próprio sistema de opressão (Butler
1992). Em outras palavras, ao contestarmos a dicotomia homem/
mulher e questionarmos a naturalização dessa divisão como uma fic-
ção reiterada, podemos problematizar a hierarquização dessas cate-
gorias fabricadas, considerando-as contextualmente contingentes e
formadas em — e (re)formando — lugar e espaço. Além disso, o foco
aqui reside nos sítios do corpo que são re-locados fora da divisão ho-
mem/mulher e, por conseguinte, em experiências de discriminação
que não podem ser entendidas dentro dessas hierarquias.4
Este artigo investiga a que ponto os corpos generificados/se-
xuados são experienciados e, especificamente, o avistamento do
“anormal” (fora de homem/mulher, masculino/feminino) que (re)
forma os lugares do corpo sexuado; neste caso, o avistamento e (re)
formação de mulheres que não “se enquadram” nos limites das nor-
mas femininas. Usarei nove relatos de mulheres sobre suas experi-
ências de serem tomadas por homens, embora elas se considerem
4
Devor (1989) usa o patriarcado para explicar a discriminação e problematiza a
experiência das mulheres que são confundidas com homens. Eu argumentaria que
isso ignora a transgressão das categorias sexuadas (homem/mulher) sobre as quais as
discussões do patriarcado se apoiam.
134
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
5
Em outro texto, discuti o conceito de generismo, que foi definido como “instâncias
de discriminação baseadas nas descontinuidades entre o sexo/gênero com o qual um
indivíduo se identifica e a maneira como outros, numa variedade de espaços, interpretam
seu sexo/gênero” (Browne, 2004, p. 332).
135
LUGARES CORPORIFICADOS, CORPOS AVISTADOS:
A (RE)PRODUÇÃO RELACIONAL DOS CORPOS
136
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
137
... a identidade não acontece, simplesmente, no âmbito
da relação do sujeito consigo próprio. Em vez disso, ela
se dá nos encontros diários com os outros, os sujeitos são
perpetuamente reconstituídos: o trabalho de formação
da identidade nunca termina. (2000, p. 7)
138
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
139
Lorraine: Não consigo acreditar que as pessoas sejam ru-
des a esse ponto, pois eu já fui ao banheiro com você.
140
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
Janet: E sabe que eles nem olham para o meu rosto nem
nada, eles só olham pro meu feitio, olham pra minha al-
tura, olham pro meu corte de cabelo, e na mesma hora
concluem que eu sou algum homem sujo no toalete fe-
minino.
Janet acredita que, embora seu rosto seja feminino, seu corpo
é interpretado como masculino. O sítio do seu corpo é “feito” de um
modo que contesta as normas de gênero. Ela menciona particular-
mente o seu “feitio” (modo pelo qual ela se refere à sua estrutura mus-
cular e óssea) e a sua altura. Atributos físicos, como corpos grandes,
podem com frequência ser associados a homens, construindo a visão
do corpo como masculino e, consequentemente, “fora de lugar” nos
banheiros exclusivamente femininos (Browne, 2004; Cresswell, 1996).
É interessante que Janet também se refira aos seus cabelos. Cortes de
cabelo e estilos de vestir são frequentemente associados à moda e
contrastam com a suposta fixidez dos corpos sexuados, sendo vistos
como mutáveis e possíveis de serem alterados. Quando corpos não se
encaixam harmoniosamente na dicotomia homem/mulher, o modo
como eles estão vestidos ou penteados pode receber a culpa pelas
(más) interpretações. O sítio do corpo é, então, apresentado “errone-
amente”, em vez de contestar a fixidez das categorias sexuadas que
são centrais à inteligibilidade social como “humanas”.
Amparando-se em entendimentos do “eu” que dependem de
normas sexuadas dicotômicas e ligadas a códigos de gênero, os indi-
víduos podem entender que as interpretações de seus corpos como
não “femininos” são sua “culpa”:
6
Ver também Browne (2004, p. 337).
141
Essa “garota” vê o estilo que adota para o seu corpo como “parte
do problema”. No entanto, ela argumenta que seu corpo não “condiz”
com roupas destinadas aos corpos femininos. É interessante que ela
se desloque entre o corpo e os estilos da moda para ilustrar que a
estilização dos corpos é um nexo entre constituição física, cabelos e
roupas que são interpretados dentro e por meio de determinados dis-
cursos sexuados. Tentativas de corresponder às convenções de vesti-
menta feminina não deteriam as experiências problemáticas de essa
mulher ser confundida com um homem (generismo), porque seu
corpo a “trairia” e ela pareceria um “homem travestido”. Ao contrário,
as dicotomias masculino/homem e feminino/mulher, que a fazem,
com frequência simultaneamente, inteligível (em sua corporalidade)
e ininteligível (nas interpretações de outros), não são baseadas uni-
camente em performances individuais. Na verdade, essas dicotomias
se constituem dentro do “dinamismo cronotópico tripartite — do so-
cial, do corpo e do eu” (Wilton, 2000, p. 251). Assim, o “eu-generifi-
cado não é produzido puramente de maneira social, mas é produto
do menisco entre o corpo e o social” (Wilton, 2000, p. 249). Localizar
as explicações para os processos de policiamento de gênero no lugar
dos corpos individuais é não reconhecer a intermediação constituti-
va que incorpora os sítios corporais, assim como seus avistamentos,
na formação das corporalidades sexuadas.
Devor (1987) argumenta que, uma vez que o esquema social
dominante permite apenas a possibilidade de “homens e mulheres,
e nenhuma outra condição de gênero, essas mulheres se veem tor-
nando-se homens por falta de alternativas” (Devor, 1987, p. 22). No
entanto, Halberstam (1998) oferece uma visão menos estruturada de
sustentação dessas identidades, em termos de apresentações e per-
formances de gênero ambíguas. Tais identidades são mais bem des-
critas como “processos com múltiplos lugares de vir a ser” (Halberstam,
1998, p. 21). Tal visão reconhece a importância do contexto na inter-
pretação de corpos como “mulheres” e a (re)formação mútua das cor-
poralidades sexuadas através das performatividades e das interpreta-
ções dos corpos. A integração da comunicação entre os eus sexuados e as
percepções sexuadas do eu coloca as formações corpóreas nos inters-
tícios entre as identidades corporais convencionais e os avistamentos
de corpos. Isso contesta o corpo individualizado de Butler (1990), por
enfatizar a centralidade das inter-relações na constituição de espaços
corporais. No entanto, apoia seus argumentos de 1993 (p. 121), que su-
gerem que um sujeito é levado a ser em parte pelas formações sociais
que podem ser vistas como opressivas. No exemplo oferecido por ela,
142
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
SÍTIOS/AVISTAMENTOS SEXUAIS:
INTERPRETANDO O SEXO,
(RE)INTERPRETANDO A SEXUALIDADE
143
ingênuas” da homossexualidade pura. O que essas discussões críticas
do par macha/fêmea também revelam é que as relações entre corpos,
em termos de relações íntimas, podem ser inseridas numa estrutura
(hétero)sexual particular que reconstitui os que se encontram nesses
relacionamentos como opostos. Stevi, por exemplo, acreditava que
era mais provável que ela fosse percebida como um homem por cau-
sa do seu relacionamento com Virgínia:
144
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
145
A instabilidade dos sexos e da sexualidade fica clara quando Ja-
net transgride a divisão convencional masculino/feminino e outras
mulheres cruzam a fronteira hétero/gay. No entanto, esses movimen-
tos não são compreensíveis onde as identidades de mulher e homem,
hétero e gay são percebidas como fixas. Janet defende que mulheres
“heterossexuais” acham o cruzamento dessas fronteiras ameaçador
e, como resultado, são hostis em relação a ela. Talvez porque a outra
(lésbica) não poderia ser distinguida da igual (heterossexual) e, por-
tanto, criá-la; as identidades sexuais são desafiadas e é o corpo de
Janet que é interpretado como ameaçador. Interações entre Janet e
“mulheres hétero” demonstram que não são simplesmente os corpos
femininos os reconstituídos mediante avistamentos (equivocados);
suas interações e relacionamentos com mulheres também são (re)
formados. Os momentos de incompreensibilidade e a necessidade
de refigurar Janet dentro dos códigos dicotômicos, ao lado da sua
presença continuada nas fronteiras homem/mulher, homossexual/
heterossexual, ilustram a contingência das corporalidades sexuadas
(e sexualizadas). Sua reconstituição (imperfeita) dentro das normas
sexuais mostra a importância da dicotomia homem/mulher e revela
como as instabilidades de gênero, sexo e sexualidade são investidas
de sentido mediante a atribuição da corporalidade de Janet como
“ameaçadora”. A ameaça não está simplesmente numa expulsão do
“outro”, ela é uma tentativa de restabelecer a debilidade da dicotomia
eu-outro.
Pode-se argumentar que Janet nunca é plenamente (re)loca-
da como “mulher” e, assim, em alguns sentidos ainda é interpreta-
da como “masculinizada”. Ela continua a ser ameaçadora e sujeita a
discriminação e abuso com base nessa premissa. A desidentificação
que Butler (1993, p. 131) reconhece no que Senft (2004) interpreta
como o que ocorre quando alguém se desloca de “sou/não sou” para
“acredito ser isso, agora não acredito mais” pode ser apropriada por
mulheres que são confundidas com homens. Nesse caso, “acredito
ser mulher, agora não acredito mais” pode estar relacionado a con-
ceptualizações individuais do eu devidas a (más) interpretações dos
corpos. Entretanto, aqui podemos ver que essa desidentificação pode
estar associada a visões do corpo individual e a avistamentos de cor-
pos. Os processos que estabelecem o eu (eu sou) e o outro (eu não
sou) também são postos em questão quando os observadores acre-
ditam que a pessoa que está diante deles é um homem, e depois não
acreditam mais. Nesses momentos de disjunção, Janet e outras mu-
lheres que são confundidas com homens tornam-se intensamente
146
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
KB: No pride?
Lorraine: Espreitando.
7
O Pride, ou orgulho, é um festival de lésbicas, gays e bissexuais que acontece por todo
o mundo, com várias roupagens diferentes. Janet está se referindo a um evento Pride
na Inglaterra, onde deveria haver um espaço seguro para lésbicas, particularmente na
tenda das mulheres.
147
sabe disso. Deixa eu ficar aqui.” Mas ela não queria nem
saber. (Janet e Lorraine, grupo em estudo)
148
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
149
que John nunca tinha atendido e ela tinha visto o nome do
motorista. Então ela chegou na porta e disse: “oi, qual de
vocês é o John?” (risos) Eu fiquei tipo (Jenny ri)... “hello!”
Eu estava com essa coisa cinzenta, esta coisona verde cha-
mativa por cima do corpo, por isso eles [seus seios] esta-
vam escondidos. (Jenny e Angela, grupo em estudo)
150
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
151
reconhecer que as dissonâncias foram atribuídas aos observadores/
intérpretes desses corpos. O modo como essas “mulheres” se enten-
dem como femininas não foi questionado. Portanto, embora as mu-
lheres não sejam simplesmente o sujeito das normas sociais, elas po-
dem construir-se em relação a, e às vezes dentro de, subjetividades
sexuadas dicotômicas.
CONCLUSÃO
152
“Uma perfeita geezer-bird (mulher-homem)”: os lugares e olhares de corporalização “feminina”
sexuados, e isso fica claro quando mulheres são tomadas por homens
e seu sexo assumido, o de “mulher”, é desafiado. O artigo argumenta
que a interação entre esses avistamentos e performances corporali-
zadas (re)cria o binário homem/mulher. Embora o intérprete contes-
te o eu visto, ambos buscam (re)situar as interpretações dissonantes
dentro do que é percebido como sexos fixos (enquanto se pode ver
que são esses mesmos processos que trazem os sexos dicotômicos
à existência, Butler, 1990, 1993). Eu argumentei que essas transgres-
sões, frequentemente “acidentais”, com frequência contestam a in-
teligibilidade das mulheres como “humanas”. As práticas através das
quais as mulheres que são confundidas com homens reafirmam seus
sítios corporalizados, como a de mostrar os seios, e recorrem a ex-
plicações como a das vestimentas para deferir questionamentos ao
seu sexo, capacitam-nas a “fazer sentido” de seus corpos e dos avis-
tamentos dissonantes destes. As contestações ativas ao policiamento
de outras pessoas às normas sexuais chamam atenção para a tenta-
tiva de excluir aqueles que desestabilizam as dicotomias eu-outro.
Isso, paradoxalmente, reforça tanto a mutabilidade dos corpos di-
cotomicamente sexuados quanto a necessidade de “ser” homem ou
mulher para ser humano.
As interações entre observador/observado, enquanto relações
de poder que são tanto sexuadas (no sentido de que aqueles que são
questionados são (re)feitos como “seguros” de seu sexo) quanto sexi-
zantes (elas (re)formam os corpos sexuados), podem ser dolorosa-
mente constitutivas. As práticas do eu e os processos de policiamento
de outros (re)criam e mantêm os regimes sexuados do lugar do cor-
po, de tal forma que alguns corpos permanecem “outros”, ou são de-
sidentificados (Butler, 1993), mesmo quando (re)locados dentro da
categoria “mulher real”. Talvez porque conceitos filosóficos e palcos
metafóricos (Brown, 2000) (aparentemente) não firam, a análise es-
pacial da (re)formação de lugares corporificados leva a mais do que
teorizações das relações de poder: ela capacita-nos a explorar os mo-
mentos pungentes que (re)criam espaços vividos.
AGRADECIMENTOS
153
Aitchison, Andrew Church e Becky Elmhirst, e a Lawrence Knopp e
A. H. Devor por suas revisões esclarecedoras e cuidadosas. Por fim,
gostaria de agradecer a Larry Berg, por seu apoio editorial.
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157
“I do down-under”: naturalizando
paisagens e amor através do turismo
matrimonial na Nova Zelândia
Lynda Johnston
RESUMO
1
A expressão “down under”, que equivaleria aproximadamente a “lá embaixo”, em
português, é comumente empregada em referência à Austrália ou à Nova Zelândia.
Deve-se ao fato de que esses países localizam-se muito ao sul em relação a outras nações
de língua inglesa. (N.T.)
INTRODUÇÃO
“
Um casamento exótico no Pacífico Sul e uma lua-de-mel
na Nova Zelândia são 100% puro romance” (http://www.
chc-weddings.co.nz/), segundo o site da agência Cashmere
Heights Weddings. Clientes interessados em casar-se são atraídos
para “a romântica Nova Zelândia” por imagens de geleiras brancas,
montanhas inóspitas, densas e verdes florestas subtropicais, costas
de mar azul e praias douradas. Também fui atraída por esse anúncio,
não para me casar na praia, entre os arbustos ou numa montanha,
mas sim para pensar criticamente sobre heterossexualidade, paisa-
gens, natureza, amor e turismo.
Phil Hubbard (2000) observa que a geografia tem sido tímida
para examinar a heterossexualidade. O trabalho valioso sobre sexua-
lidade e espaço tem apresentado um enfoque seguro sobre as geogra-
fias queer, mas há uma escassez de escritos sobre desejos (e aversões)
heterossexuais. No âmbito do amplo campo acadêmico dos estudos
de turismo, exames críticos da heterossexualidade encontram-se au-
sentes. Além disso, o poder conceitual da heterossexualidade é su-
bestimado pelos estudos sobre o turismo. Alguns acadêmicos abor-
daram o turismo e as luas-de-mel (Dubinsky, 1999), assim como a
promoção de lugares sexualizados e com marcas de gênero (Goss,
1993), mas ainda não voltaram sua atenção aos casamentos. Minha
pesquisa responde à alegação de Hubbard (2000, p. 206), segundo a
qual: “parece haver pouca reflexão observável sobre até que ponto as
performances morais heterossexuais são naturalizadas numa varie-
dade de locações sociais ‘cotidianas’, sejam elas públicas ou privadas”.
Casamentos podem ser entendidos como a parte de perfor-
mance pública festiva da heteronormatividade. Enquanto rituais,
parte da ação deles é apresentar um tipo de heterossexualidade “na-
tural” que oculta mudanças históricas e materiais. Embora nenhum
casamento opere como uma janela transparente para as estruturas
sociais, essas instituições podem ser, porém, poderosos marcadores
da “normalidade”, da moralidade e da produtividade de um casal e
de subjetividades de gênero “apropriadas”. Hubbard (2000, p. 194, em
itálico no original) analisa
160
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
161
apropriadas, respeitáveis, morais e normais. Hubbard (2000) discute
ideias de moralidade que serviram para naturalizar a visão de que o
sexo deve se amparar numa troca que é significativa tanto emocional
quanto materialmente. Casamentos são ritos de passagem simbóli-
cos para que homens e mulheres heterossexuais entrem na institui-
ção do casamento e, como tal, eles formalizam o caminho moral para
a aceitabilidade sexual.
Este artigo inicialmente delineia a literatura associada à hete-
rossexualidade, aos destinos de viagens de casamento e aos discursos
morais dominantes que ajudam a sustentar e reproduzir sua hege-
monia. Ofereço uma espécie de revisão das teorias correntes sobre
heterossexualidade, espaço e turismo. Num segundo momento, vol-
to minha atenção a estudos de casos específicos acerca de destinos
de viagens matrimoniais na Nova Zelândia e tomo em consideração
suas geografias morais. Argumento que local e heterossexualidade
tornam-se mutuamente constituídos como “românticos e 100% na-
turais”. Mais do que isso, as paisagens assumem o papel da família e
dos amigos dos que estão “fugindo” lá para baixo a fim de se casarem.
Ao longo deste artigo, tento desarranjar corpos heteronormativos e
espaços naturais.
162
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
163
imaginação (Aitchison, 1999). Gillian Rose (1993, p. 89) afirma que
“seja escrita ou pintada, espontânea ou construída, os significados de
uma paisagem apelam a códigos culturais da sociedade para a qual
ela foi criada”. As novas geografias culturais enfatizam que corpos “di-
ferentemente engajados e empoderados, apropriam-se e contestam
suas paisagens” de diferentes maneiras (Bender, 1993, p. 17).
164
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
165
Klaus e Petra, da Alemanha, expressam imaginações discursi-
vas semelhantes acerca da paisagem da Nova Zelândia:
Klaus: Acho que ouvi falar pela primeira vez deste país
quando era menino, num canal de televisão em que ha-
via um documentário sobre os fetos arborescentes daqui
e diziam que eles eram especiais na Nova Zelândia. Não
se pode vê-los em nenhum outro lugar do mundo. Então,
eu vi isso e quis vir para a Nova Zelândia. É como um so-
nho.
166
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
167
tradução japonesa de puro contém umas seis palavras,
mas na verdade significa “aberto a você”, im-, imaculado
ou impoluto. Mas também na nossa [pākehā/europeu ou
neozelandês “branco”], em nossas atitudes, nós de certa
forma vemos o contrário de sujo como puro. Puro é sem-
pre bom. (entrevista individual, 15 de fevereiro de 2006, a
ênfase em itálico é do original)
168
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
A SÓS NA NATUREZA
169
meio de separar um casal de laços e obrigações mais abrangentes”
(Freeman, 2002, p. 11).
Retornando ao documentário de televisão neozelandês I Do
Down-Under, o casamento de Arianne e Sebastiaan, segundo obser-
va Leeming, ocorre “numa praia isolada da costa oeste [Punakaiki] e
possibilita uma sensação real da Nova Zelândia durante toda, toda
a cerimônia, pois era isso que o casal queria — um verdadeiro casa-
mento neozelandês” (TVNZ, 2004). Leeming conta-nos que: “legal-
mente, eles não podem se casar em dois países diferentes. Por isso
eles escolheram fazer uma cerimônia que reflita seu relacionamento,
mais do que uma cerimônia de relacionamento” (TVNZ, 2004). A vida
conjugal e os casamentos têm sido regulados por uma sequência so-
breposta de instituições e diferentes estados. O controle do Estado
sobre o casamento é relativamente recente e por isso o enlace pode
ser entendido como mais do que simplesmente um ritual estatal.
Para o casamento de Arianne e Sebastiaan, Leeming providen-
ciou cabeleireiros, maquiagem, flores, fotógrafos, um celebrante e
acomodação. Arianne traja um vestido branco esvoaçante e Sebastiaan,
um terno. Eles caminham descalços na areia da praia. O espaço natu-
ral de seu casamento — uma praia deserta — é inteiramente assimi-
lado pelo casal, pois seus corpos são regulados por convenções tanto
de casamento quanto de vestimentas de praia. A praia deserta reforça
a ideia do casamento neozelandês como remoto, exótico, puro e iso-
lado. O casal escolheu a natureza para testemunhar seu enlace em
vez da família e dos amigos. Sebastiaan e Arianne explicam:
170
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
171
certa familiaridade. Os noivos se casam sem o “agito” da presença dos
familiares e amigos.
Depois da cerimônia, o casal, ainda trajando as vestes de casa-
mento tradicionais, passeia de canoa no rio Avon. Resíduos coloniais
tornam esse enlace turístico inteligível tanto como “em casa” quanto
“longe de casa”. A paisagem está inscrita no imperialismo britânico
graças aos topônimos — Christchurch, Sumner, Avon. A natureza ali é
domesticada e controlada, mas ainda exótica. As práticas discursivas
e o imaginário da colonização fazem com que, para Kristine e Gavin,
aquele espaço natural se pareça com o lar. Estão ambos “em seu lu-
gar” e confortavelmente “fora de lugar” (Cresswell, 2005). A praia e o
rio tornam-se suas testemunhas, familiares e amigos.
As fotografias de casamento são elevadas a um alto patamar
de importância e, no dia seguinte, Kristine e Gavin exultaram com
seu álbum fotográfico novinho em folha. A paisagem (e suas várias
permutas fotográficas) funciona de modo a legitimar e naturalizar o
casamento (Crang, 1999).
Han e Christine, do Reino Unido, observam que seus amigos sen-
tem inveja do que eles são capazes de fazer na Nova Zelândia e que todos
recomendaram que eles “tirassem muitas fotos”. Enquanto lhe faziam o
penteado, Christine é indagada sobre como era estar longe da família e
dos amigos: “Acho que estar sem a família e os amigos mais íntimos num
dia tão especial significa que algo está faltando. Ao mesmo tempo, nós
estamos fazendo isso do jeito que queremos” (TVNZ, 2004).
Um testemunho online no site de Leeming reforça a ideia de
fuga e segredo:
172
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
173
“tradicional” e permite que os casais tenham tempo para se compro-
meter integralmente um com o outro (mas não, necessariamente,
com as famílias e amigos um do outro). Casar-se no que se tornou um
dos mais valorizados espaços naturais do mundo — a Nova Zelândia
— implica um total comprometimento com a relação que contrasta
com o stress e a agitação dos casamentos em casa, com a família. A
ideia de natureza é usada para apoiar a heteronormatividade e pos-
sibilitar uma defesa das relações de poder existentes na construção e
realização dos relacionamentos sexuais (Little, 2003).
Em resumo, o turismo matrimonial separa o casal de sua rede
de relacionamentos sociais anteriores, glorifica seu relacionamen-
to mútuo acima dos seus laços com os pais, estendido à família, aos
amigos e a outros amantes, passados e presentes. No lugar destes, a
natureza se apresenta. Fugir para um casamento turístico na Nova
Zelândia romantiza tanto a natureza quanto a heterossexualidade.
O casal, como as paisagens, passa a ser considerado puro, natural,
excitante e romanticamente “destinado um ao outro”. Casamentos
turísticos nos espaços naturais da Nova Zelândia fazem com que a
heterossexualidade pareça natural, inevitável e sagrada.
CONCLUSÕES
174
“I do down-under”: naturalizando paisagens e amor através do turismo matrimonial na Nova Zelândia
REFERÊNCIAS
175
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178
O casamento e o quarto de hóspedes:
explorando a política sexual de
austeridade na Grã-Bretanha
Gavin Brown
RESUMO
H
eteronormatividade e homonormatividade estão co-
nectadas. Com muita frequência, comentadores con-
centram-se no modo como heteronormas determinam
expressões (e atitudes) dominantes de homossexualidade. Relações
que fluem em outra direção tendem a ser desconsideradas. No entan-
to, a mudança de atitudes sociais em relação à homossexualidade e a
criação de novas homonormas influenciam a mudança das normas
sociais em torno da heterossexualidade. Estudar a emergente política
sexual de austeridade é importante para se considerar como atitudes
sociais normativas, tanto as que dizem respeito a relacionamentos
hétero quanto homossexuais, vêm mudando no período atual. Com
esse propósito, este breve estudo examina duas recentes medidas de
política social adotadas no Reino Unido. Ele interroga os debates so-
bre “igualdade matrimonial” para casais do mesmo sexo juntamente
com as recentes mudanças nos benefícios sociais, particularmente o
“Bedroom Tax” [imposto do dormitório], que penaliza locatários de
moradias sociais que recebem subsídios de habitação, caso se julgue
que eles residem em acomodações que dispõem de mais quartos do
que necessitam. Nesse processo, sugiro que a linha de separação da
política sexual no Reino Unido foi deslocada de sua localização (ini-
cial) ao longo do eixo binário homo/hétero.
Desde 2010, o governo de coalizão na Grã-Bretanha vem ado-
tando políticas sociais e econômicas que solaparam os recursos da
previdência estatal, terceirizando a prestação de serviços essenciais
para contratadores privados e encorajando os cidadãos que dispõem
de recursos a assumir a responsabilidade por seu próprio bem-estar
no setor privado. Políticos atiçaram o pânico moral em relação aos
“parasitas da previdência”, agravando o aviltamento dos desempre-
gados, dos que passam por longos períodos de invalidez e dos traba-
lhadores pobres (Tyler, 2013). Ao mesmo tempo em que essas políti-
cas economicamente conservadoras ganhavam terreno, continuava
a haver uma liberalização das atitudes sociais em relação ao homos-
sexualismo na Grã-Bretanha, incluindo a adoção do casamento entre
pessoas do mesmo sexo, em 2014. No censo Atitudes Sociais Britâni-
cas de 2013 (BSA30), quase metade dos entrevistados (46,7%) decla-
raram acreditar que “as relações sexuais entre dois adultos do mesmo
sexo não são reprováveis de modo algum” e outros 10% afirmaram
que tais relacionamentos eram “raramente reprováveis” (Park et al.,
2013). Este artigo argumenta que, embora essas políticas sociais e
180
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
A POLÍTICA SEXUAL DO
NEOLIBERALISMO
181
Atitudes sociais, jurídicas e políticas em relação à homossexua-
lidade estão se tornando cada vez mais desiguais e (aparentemente)
polarizadas ao redor do mundo. Enquanto alguns países põem em
prática uma legislação cada vez mais repressiva ou revogam avan-
ços anteriores rumo ao relaxamento de leis antigays, algo próximo
da plena igualdade jurídica para lésbicas e homens homossexuais1
vem sendo alcançado num número crescente de países. Estudiosos já
observam essa tendência há mais de uma década, e muitos deles vêm
debatendo intensamente o porquê de a liberalização das atitudes em
relação à homossexualidade ter ganhado impulso a partir do início
dos anos de 1990 (Duggan, 2002; Richardson, 2005; Weeks, 2007). Es-
sas mudanças foram descritas como novas expressões da “homonor-
matividade” (Duggan, 2002).
Mesmo quando novas leis referentes à igualdade passam a ope-
rar, os efeitos de tais mudanças sociais são frequentemente comple-
xos e contraditórios. Os benefícios dessas mudanças não são sentidos
universalmente, e algumas minorias sexuais e de gênero têm como
resultado certas perdas (materiais e simbólicas). Casais estáveis e de
relacionamento duradouro que dispõem de recursos sociais e econô-
micos para prover o seu bem-estar mútuo são enaltecidos por políticos
de todos os perfis — parece que a vida lésbica e gay foi domesticada.
Quando Duggan (2002, p. 179) definiu pela primeira vez “a
nova homonormatividade”, conceptualizou-a como uma expressão
da política sexual do neoliberalismo. Quando se leva em conta essa
definição, é útil abordar o neoliberalismo não apenas como teoria
econômica, mas também como um modo de governabilidade que
promove a responsabilidade pessoal e também expressões de auto-
nomia individual articuladas predominantemente por meio da “livre
1
Neste contexto, referi-me deliberadamente a “lésbicas e homens homossexuais” (e não
a pessoas “LGBT” ou “LGBTQ”) por diversas razões. Em primeiro lugar, porque acredito
que a dinâmica dos movimentos em prol do reconhecimento jurídico e da igualdade
formal para o público trans no Reino Unido é diversa e distinta daqueles em favor de
lésbicas e gays. Em segundo lugar, embora algumas mudanças legais tenham buscado
enfrentar e tornar ilegal a discriminação baseada na “orientação sexual” (inclusivamente),
debates em torno do “casamento entre pessoas do mesmo sexo” tendem a apresentar-
se de um modo que perpetua a invisibilidade social de pessoas bissexuais. Em outro
momento deste artigo, quando quero me referir de maneira mais geral às minorias
sexuais e de gênero, tendo a usar o acrônimo “LGBTQ” (embora reconheça que este
é contestado e não capta adequadamente algumas minorias sexuais emergentes). Na
medida em que recorro ao termo “queer” neste artigo, uso-o especificamente para me
referir à teoria queer e para correlatar formas de ativismo que são identificadas como
“queer” pelos seus participantes.
182
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
183
na condição de “queer commons” [espaços coletivos queer] na déca-
da de 1970. Floyd (2009) pensa primeiramente os “queer commons”
como locais públicos onde pessoas gays e trans encontravam-se em
busca de sexo e criavam contrapúblicos. Tais espaços foram progres-
sivamente privatizados (tanto em termos de propriedade quanto de
função) pela especulação imobiliária. Podemos, também, pensar nas
redes espontâneas de amigos e voluntários que foram criadas para cui-
dar dos enfermos e moribundos nos primeiros anos da pandemia de
AIDS como antigos “queer commons” que progressivamente se profis-
sionalizaram e assumiram o controle da comunidade de usuários. Não
se trata, porém, de uma sugestão de que todos os “queer commons”
tenham sido desapropriados por processos de acumulação capitalista
— alguns deles persistem (ainda que de modo precário) e novos espa-
ços comuns se formaram (ver também Brown, 2009, p. 1505).
Em contraste, o dispositivo da “subsunção” remete à obra de
pensadores (na tradução do marxismo autonomista italiano) que
reinterpretaram “a noção foucaultiana de biopolítica à luz do seu en-
tendimento de capitalismo baseado no conhecimento” (Rossi, 2013,
p. 351). Esses autores teorizaram “a dinâmica do capitalismo contem-
porâneo como impulsionada pela real subsunção da ‘própria vida’”
(Rossi, 2013, p. 351). Para teóricos como Hardt e Negri (2000), isso
“está transformando a própria natureza do capitalismo por meio da
incorporação de conhecimentos, emoções, afetos e qualidades lin-
guísticas ao processo capitalista de produção e socialização” (Ros-
si, 2013, p. 359). A crítica queer com frequência ocupa-se das falhas
das correntes mais assimilacionistas dos movimentos lésbico e gay,
cujas reivindicações amparadas em direitos resultaram na legislação
pela igualdade homonormativa das últimas duas décadas. No entanto,
uma atenção ao processo de subsunção sugere que os aspectos mais
dionisíacos das subculturas gays masculinas também têm sido recu-
perados de várias formas. A apropriação do “trabalho vivo” em forma
de conhecimento, informação, imagens e relações sociais tornou-se
essencial para a reprodução do capitalismo contemporâneo (Hardt e
Negri, 2009, p. 142-144). Aqui podemos pensar nas maneiras comple-
xas com que os movimentos sociais de lésbicas e gays que reivindicam
“igualdade” (e, até certo ponto, também as críticas queer a esses movi-
mentos) foram utilizados para desenvolver novas formas de controle
biopolítico (o que, eu sugiro, também afeta a população heterossexual)
e novos mercados para o consumo. No contexto deste artigo, podemos
pensar em novos bens e serviços associados ao mercado voltado a ca-
sais do mesmo sexo (mas há muitos outros exemplos).
184
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
2
Há cinco outras maneiras, relativamente pequenas, pelas quais a nova legislação
falha em oferecer plena igualdade jurídica. Estas incluem: diferenças nas bases para a
anulação de um casamento; custos adicionais que incidem no registro de instalações
religiosas aptas a oficiar casamentos entre pessoas do mesmo sexo; algumas limitações
aos direitos de pensão e herança de cônjuges homossexuais viúvos; desigualdades no
que diz respeito ao estado civil de algumas pessoas transexuais; a continuidade do
impedimento de uniões civis entre parceiros do mesmo sexo.
185
Embora os debates parlamentares sobre esse projeto de lei te-
nham provocado algumas declarações virulentas de cunho homofó-
bico por parte de uma pequena minoria de políticos, a legislação pas-
sou por ambas as casas do Parlamento com maiorias muito confor-
táveis. Ao longo do processo, a votação revelou alguns padrões muito
elucidativos — por exemplo, enquanto alguns parlamentares invoca-
vam sua ética cristã para se oporem à legislação, todos os membros
do parlamento de religião muçulmana votaram a favor do casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
Porém, meu interesse aqui reside não tanto na oposição ao ca-
samento entre pessoas do mesmo sexo quanto em alguns argumen-
tos mobilizados para defendê-lo, pois creio que estes revelam muito
mais sobre os pressupostos e expectativas que sustentam a política
sexual contemporânea no Reino Unido. Quando da submissão da
legislação proposta à consulta governamental pelas organizações de
defesa de lésbicas e gays, Stonewall (2012, p. 5) argumentou:
186
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
187
Tomando como ponto de partida o reconhecimento civil de
casais do mesmo sexo, primeiro pelas uniões civis e agora pelo ca-
samento, Wilkinson (2013, p. 206) questionou se “a inclusão de rela-
cionamentos de pessoas do mesmo sexo poderia ser vista como uma
medida que simultaneamente abre e restringe o círculo encantado
das intimidades ‘apropriadas’”. A autora sugere que “apesar da su-
postamente crescente aceitação da diversidade sexual, uma retórica
excludente dos ‘valores familiares’ ainda continua a circular no seio
das políticas que buscam criar igualdade” (Wilkinson, 2013, p. 206).
Wilkinson (2013) registra uma convergência de ansiedades acerca
da desintegração da família nuclear entre políticos tanto de centro-
direita quanto de centro-esquerda. Ser “pró-família” já não é neces-
sariamente uma posição oposta a ser socialmente liberal quanto ao
reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo. Wilkinson
(2013, p. 207) reconhece: “a cidadania já não é necessariamente fun-
dada sempre numa dualidade entre heterossexual/homossexual, mas
entre casados e não casados”. A incorporação dos recentemente reco-
nhecidos casais de mesmo sexo teve efeitos materiais sobre aqueles
cujos relacionamentos (ou ausência deles) não correspondem a este
ideal reconfigurado de vida familiar (Taylor, 2013a; Wilkinson, 2013).
Wilkinson (2013, p. 211) reconhece, porém, que a mudança rumo
a mais direitos legais para casais de mesmo sexo não foi conquistada
puramente com base nos valores liberais de “justiça, inclusão e igualda-
de”. Um fator que motiva esses debates também tem sido “o crescente
custo econômico da previdência do estado” (Wilkinson, 2013, p. 211).
A igualdade matrimonial foi decretada num período em que muitos
países (europeus) se confrontam, num futuro próximo, “com um nú-
mero crescente de pessoas que necessitam de assistência, porém com
menos pessoas capazes de prestá-la” (Wilkinson, 2013, p. 211). Um re-
latório sobre uniões civis publicado pelo Departamento de Indústria e
Comércio britânico (2004, p. 16; citado por Wilkinson, 2013, p. 211)
afirma que “fortalecer relacionamentos de casais adultos benefi-
cia não apenas os próprios casais, mas também outros familiares a
quem eles prestam apoio e cuidados”. Isso ressalta a já antiga deman-
da feminista pelo reconhecimento do trabalho não remunerado que
é empregado (na maior parte por mulheres) nos afazeres domésticos.
Embora seja útil levar em conta as maneiras pelas quais a extensão da
“igualdade matrimonial” reconfigura os significados ligados à econo-
mia doméstica, é também importante lembrar os efeitos biopolíticos
da recentralização do casal autossuficiente. A igualdade matrimonial
permite uma nova privacidade àqueles casais que são considerados
188
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
O BEDROOM TAX
189
pelo jornal Independent (Dugan, 2013) sugerem que simplesmente
não existem moradias de interesse social de um e dois dormitórios
em número suficiente para relocar 96% dos locatários que estão sen-
do penalizados pelo Bedroom Tax.
Além desses cortes de gastos, os critérios para a concessão de
vários benefícios sociais foram reconfigurados e novas sanções pu-
nitivas foram implementadas para os que não fornecem evidências
suficientes de estarem procurando trabalho de maneira ativa. Com
a eloquência habitual de sua crítica, o geógrafo urbano Tom Slater
observou a centralidade das narrativas sobre traços familiares disfun-
cionais no discurso conservador da “Grã-Bretanha falida”. Ele sugere
(2012, p. 17) que essas
190
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
191
a responsabilidade social dos casais do mesmo sexo são muito menos
preocupantes politicamente para os governantes contemporâneos
do que uma família monoparental de baixa renda e dependente da
previdência. Os que são capazes de planejar financeiramente o seu
futuro são recompensados com “um sentimento de segurança num
mundo inseguro” (Valentine e Harris, 2014, p. 91), e são encorajados
a olhar com desprezo os que não conseguem, como eles, se prote-
ger da pobreza e da dependência de programas sociais. Todavia, para
muitos a suficiência desses planos individualizados para preservar a
segurança financeira e os cuidados de saúde nunca é algo garantido.
Isso pode ser uma fonte adicional de ansiedade. O Institute of Pre-
carious Consciousness [Instituto da Consciência Precária] (2014, n.p.)
sugere que, através do imperativo da seguridade individual e privada
para uma parcela da população, e a ameaça de cortes e sanções nos
benefícios sociais daqueles que não estão em condições de mobilizar
qualquer recurso privado significativo, as pessoas se confrontam com
“uma absurda não-escolha entre inclusão dessocializada e dessocia-
lização excludente”, cujo efeito é que a ansiedade social resultante
ameaça romper “todas as coordenadas de conectividade ao estabele-
cer um perigo constante”, com efeitos profundos sobre a psiquê dos
indivíduos.
CONCLUSÕES
192
O casamento e o quarto de hóspedes: explorando a política sexual de austeridade na Grã-Bretanha
REFERÊNCIAS
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5 August, 2013. Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/uk/
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to-move-face-penalty-for-having-spare-room-8745597.html>. Acesso em:
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VALENTINE, Gill; HARRIS, Catherine. Strivers vs skivers: class prejudice and the
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196
Refúgios etnoespecíficos na
zona de contato liberal: política
racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na
cidade multicultural global de
Toronto
John Paul Catungal
RESUMO
198
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
199
“essas pessoas não se parecem comigo” foi proferida com frustração,
e eu creio que isso se deve ao fato de que se parecer com pessoas
numa organização é outro modo de reclamar espaço de representa-
ção e acesso ao espaço que não reflete de maneira mais ampla a mul-
ticulturalidade demográfica.
Este artigo investiga como a interligação das políticas da sexua-
lidade, de raça e de saúde deu forma ao setor de AIDS em Toronto, es-
pecificamente mediante uma análise das genealogias racializadas de
organizações etnoespecíficas de assistência a pacientes de AIDS na
cidade.1 Ele argumenta que a atual coexistência entre organizações
de assistência a pacientes de AIDS etnoespecíficas e convencionais
pode ser situada historicamente no posicionamento da sexualidade
acima de outras identidades, incluindo raça e etnia, no ethos político
e organizacional do setor de AIDS, nos anos de 1980. Este artigo, por-
tanto, examina como a adoção de tal abordagem por organizações de
assistência aos portadores de HIV convencionais afeta negativamente
o acesso de pessoas de cor a informações e serviços de saúde sexual.
Argumento que a centralização da identidade sexual serviu para pri-
vilegiar corpos sexuais particulares — homens brancos gays — como
sujeitos dos programas de saúde sexual. Isso gerou organizações de
assistência aos portadores de HIV como espaços racialmente cegos que
privilegiam os brancos e levam a vivências de alienação e à exclusão das
pessoas de cor, tanto queer quanto hétero, das então nascentes organi-
zações oficiais de enfrentamento do HIV/AIDS. Em resposta à formação
desses espaços de atendimento brancos aos pacientes de AIDS, líderes
1
Este artigo baseia-se nos resultados de uma dissertação em fase de elaboração,
referente a uma pesquisa financiada pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais
e Humanidades (SSHRC), que trata da emergência de espaços etnoespecíficos para
o atendimento em saúde sexual na cidade de Toronto. As vinte e duas entrevistas
semiestruturadas e orais que usei para este trabalho foram aplicadas a participantes e
ex-participantes, em sua maioria membros do quadro funcional, voluntários e membros
diretores de importantes ASOs etnoespecíficas. A pesquisa em arquivos foi conduzida
nos Canadian Lesbian and Gay Archives (CLGA) [Arquivos Canadenses sobre Gays
e Lésbicas], no centro de Toronto. Acervos referentes a e-ASOs, incluindo coleções de
material de promoção à saúde (p.e., folhetos, cartazes), boletins informativos, relatórios
anuais e atas de reuniões foram analisados para elucidar as histórias e práticas dessas
organizações. Com o auxílio do pesquisador Thomas Perry, também investiguei a
cobertura da imprensa sobre as e-ASOs mediante a coleta de artigos jornalísticos
conservados em arquivos, provenientes tanto dos sites dos próprios periódicos (p.e.,
jornais locais e nacionais, como o Toronto Star e o Globe and Mail, ou publicações
comunitárias menores, como as revistas Xtra e FAB Magazine) quanto dos acervos
de bibliotecas. Também foram coletados vistos e analisados DVDs e cópias online de
documentários sobre e-ASOs, quando disponíveis.
200
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
201
sede das matrizes nacionais de muitas empresas canadenses e im-
portante protagonista no comércio nacional e internacional. Roger
Keil e Harris Ali (2006), entre outros, citaram as geografias demográ-
fica e econômica de Toronto como evidências de que se trata de uma
“cidade global multicultural”2.
O lema da cidade, “diversidade é nossa força”, representa o bri-
lho e a glamorização da “cidade global” como espaço de diferença
racial (http://www.toronto.ca/diversity/; Wood e Gilbert, 2005). O
discurso da diversidade urbana é com frequência usado como me-
canismo diferenciador, elevando a diversidade demográfica a ferra-
menta de competitividade econômica (Mitchell, 1993; Goonewardena e
Kipfer, 2005). No entanto, tal visão é incompleta: a ideia romântica de
diversidade-como-força ampara-se no conceito liberal de um campo
nivelado entre os participantes do corpo social urbano. Muitos es-
tudiosos observaram que a cidade de Toronto está longe de ser um
espaço igualitário e que as geografias sociais da cidade são caracteri-
zadas pela persistência do poder, da hierarquia e da diferenciação so-
cial, particularmente na forma de uma polarização socioespacial e de
uma desigualdade crescentes (cf. Walks, 2001; Hulchanski, 2007). O
necessário neste contexto de uma cidade radicalmente desnivelada
é outro vocabulário que conteste a idealização liberal da diversidade
em grande parte do discurso público multicultural. Muito necessário
é que tal léxico dedique intensa atenção à produção da desigualdade
socioespacial. Recorro aqui a um vocábulo oferecido por Mary Louise
Pratt: a ideia de “zona de contato”.
A zona de contato de Pratt “invoca o espaço e o tempo onde
sujeitos antes separados geográfica e historicamente estão simulta-
neamente presentes, o ponto em que suas trajetórias ora se intercep-
tam” (Pratt, 2008, p. 8). Na sua formulação dessa co-presença, Pratt
rejeita a política liberal do “encontro” multicultural. Trata-se de uma
teorização do contato que põe em primeiro plano relações de poder
desiguais: para ela, o termo “refere[-se] aos espaços sociais onde cul-
turas se encontram, se chocam e se digladiam, frequentemente em
contextos de relações de poder altamente assimétricas” (Pratt, 1991,
2
Neste artigo, recorro ao espírito da intervenção de Benton-Short et al. (2005) na
literatura sobre as “cidades globais”, na qual enfatizam a importância da migração, do
transnacionalismo e (em certa medida) da diferença etnorracial na constituição das
cidades globais. Uso a denominação “cidade global multicultural” para enfatizar que a
condição global de Toronto é produzida não apenas por suas ligações econômicas com o
mundo todo, mas também pela densidade da presença de migrantes e de comunidades
e redes etnorraciais que a conectam com outros sítios do globo.
202
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
3
Stoler (2002) também defende a tese de que a governança da sexualidade e da
intimidade eram cruciais no regime colonial. Vista sob esse prisma, a noção de “contato”
na expressão proposta por Pratt assume toda uma nova camada de significado. Devido
a restrições de espaço, concentro-me aqui principalmente no “contato” em termos
de grupos diferentemente racializados que encontram uns aos outros em condições
altamente desiguais no contexto das organizações dedicadas à AIDS em Toronto. A
extensão em que ASOs e e-ASOs participam na governança de intimidades (e contatos)
inter-raciais requer uma análise mais extensa. Ver as notas 9 e 10, mais abaixo.
203
politicamente falando, podemos aprender com a institucionalização
da racialização via a regulamentação da sexualidade e da saúde?
A obra seminal de Kay Anderson (1991) sobre a geografia histó-
rica da Chinatown de Vancouver fornece um importante exemplo de
raça, sexualidade e saúde reunidas para criar espaços de exclusão.4
Embora justamente enaltecida como uma excelente obra sobre a
geografia urbana da racialização, Vancouver’s Chinatown de Ander-
son também merece ser reconhecida como uma importante, ainda
que subvalorizada, obra sobre a geografia política da saúde. Nessa
publicação fundamental, Anderson (1991) deixa claro que a produ-
ção do espaço racializado de Chinatown foi conseguida em grande
parte mediante o uso político da figura do “imigrante doentio” pelas
instituições estatais da cidade. O livro revela em minúcias a cumplici-
dade entre as instituições de saúde pública locais e as forças policiais
do município na criação de Chinatown como uma forma efetiva de
literalmente encerrar em quarentena os imigrantes chineses na cida-
de de Vancouver, no final do século XIX. Nesse momento histórico-
geográfico, os imigrantes chineses foram considerados seres abjetos
pela construção de sua imagem como uma ameaça à cidade colo-
nial emergente. Isso foi conseguido em parte mediante a veiculação
pública da ideia de que as práticas do “estilo de vida” chinês eram
insalubres, que o povo chinês estava culturalmente habituado a viver
em condições de imundície e que era predisposto ao vício no ópio
pelos seus antecedentes raciais e culturais. Havia um particular com-
ponente sexual e moral nessas afirmações, uma vez que os homens
chineses foram posteriormente construídos no discurso público —
especialmente pela mídia — como uma estirpe degenerada, propen-
sa à violência culturalizada e, portanto, deveria haver restrições à sua
união heterossexual com mulheres brancas (Dua, 2007). De modo
semelhante, as mulheres chinesas foram tratadas como ameaças ao
corpo político colonial branco mediante uma construção discursiva
que as apresentava como prostitutas e potenciais vetores de doenças
(Dua, 2007).
Essas histórias prefiguram alguns dos processos mais recentes
em curso na cidade de Toronto, em torno das respostas à crise do HIV/
AIDS, no que diz respeito a saúde pública e raça, ou seja, como as iden-
tidades raciais e sexuais entram em jogo no campo da promoção da
4
Esse exemplo tem paralelos em práticas similares adotadas em outras cidades norte-
americanas. Por exemplo, Craddock (2000) salienta o trabalho do Comitê de Saúde de
São Francisco, que literalmente patologizou o bairro Chinatown daquela cidade como
fonte de todas as formas de doença e insalubridade, de ratos e pulgas a varíola e sífilis.
204
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
205
ajudam a consolidar quais questões e quais corpos estão em seus lu-
gares, ou fora deles, no campo político da organização e promoção
da saúde sexual. Em outras palavras, o processo de enquadramento
tem consequências materiais para a condução do trabalho ligado à
saúde sexual na cidade. Como veremos em seguida, a emergência do
enquadramento dominante (racialmente cego) é problematizada em
parte mediante a emergência de enquadramentos alternativos (orga-
nizações etnoespecíficas).
A definição de populações-alvo em respostas organizadas ao
HIV/AIDS é necessariamente uma questão biopolítica, pois implica o
estabelecimento de parâmetros acerca do que deve e do que não deve
ser governado. Na zona de contato liberal da cidade multicultural
global, onde a diferenciação etnorracial é produzida por padrões de
imigração históricos e contemporâneos e pela racialização cotidiana
e sancionada pelo estado, pode parecer surpreendente que a história
da organização em torno do HIV/AIDS tenha um início acometido de
cegueira racial. Embora eu reconheça que houve momentos na his-
tória inicial do setor em que respostas a questões etnorraciais já exis-
tiam, como, por exemplo, quando a ACT trabalhou em conjunto com
as populações da diáspora haitiana que viviam em Toronto no início
dos anos 1980 para contestar as construções midiáticas que repre-
sentavam os haitianos como vetores de doenças, de um modo mais
geral, as primeiras organizações dedicadas ao HIV/AIDS em Toronto
giravam principalmente em torno da sexualidade e suas políticas, ex-
cluindo em grande parte outros eixos proeminentes de diferença.
Em suas primeiras avaliações sobre a relação entre o ativismo
ligado à AIDS e o estado canadense, Rayside e Lundquist (1992, p. 37)
argumentam que a epidemia do HIV no Canadá urbano “representa
enormes desafios para as comunidades gays e lésbicas canadenses”.
A epidemia consolidou no discurso público que já estava em circula-
ção conceitos que ligavam [homo]sexualidade, doença, imoralidade
e risco. Na prática, o trabalho de organização em torno da AIDS nas
comunidades gays e lésbicas foi caracterizado tanto pela prestação
de serviços quanto pelo engajamento político com o estado. Organi-
zados em torno de um comprometimento político de prestar atendi-
mento predominantemente a homens gays nas cidades canadenses,
os quais eram afetados de forma desproporcional pela AIDS no início
dos anos de 1980 (ver também Brown, 1997), os que se organizaram
em torno da rubrica do ativismo da AIDS também buscaram adquirir
proteções e apoio por parte do estado (em nível local tanto quanto em
outros níveis de governo) para as pessoas marginalizadas em função
206
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
207
Lundquist, 1992, p. 52), a intercessão entre racialização e sexualidade
não recebeu grande atenção por parte do setor AIDS convencional na
cidade, nesse período.
A pesquisa de David Churchill (2003) sobre a política racial
do movimento gay em Toronto6 oferece algumas percepções sobre
o motivo por que a racialização não figura na emergência do setor
AIDS na Toronto da década de 1980. Ele argumenta, em sua análise
de uma controvérsia em torno de um anúncio racista na publicação
local Body Politic [Política do corpo], que a libertação gay e a política
antirracista eram com frequência enquadradas por alguns ativistas
da libertação gay, mas de modo algum todos eles, como nada tendo
a ver uma com a outra e, como resultado, “lésbicas/gays de cor per-
cebiam-se [na situação de terem de escolher] entre a libertação ‘gay’
e a política de combate ao racismo e de identidade racial”. É prová-
vel, considerando o íntimo elo genealógico entre os movimentos de
libertação gay baseados em Toronto e o setor AIDS, que tais atitudes
e abordagens políticas racialmente cegas e centralizadas nos gays te-
nham se transferido para estes últimos, especialmente à medida que
respostas locais à AIDS tenham se consolidado em ASOs em grande
medida convencionais, nos anos de 1980. Como observo abaixo, os
primeiros trabalhadores e ativistas das e-ASOs compreendiam esse
conceito como crucial à exclusão de pessoas racializadas e suas preo-
cupações da política voltada à AIDS naqueles anos iniciais.
208
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
209
Essa cegueira de cor teve o efeito de produzir uma abordagem
de tamanho único que severamente negligenciou, quando não ne-
gou, o papel do poder, da desigualdade e da hierarquia, definidos ao
longo de linhas etnorraciais, nas zonas de contato da cidade global.
Foi nesse contexto político de total recusa de ver a raça como
algo que importa nos serviços de saúde dirigidos ao HIV que as e-ASOs
emergiram. Embora, na superfície, a insistência delas quanto à impor-
tância da raça pudesse ser interpretada como uma re-racialização do
HIV, era possível, em vez disso, argumentar que o que as e-ASOs de
fato combatiam era sua exclusão dos serviços de saúde sexual e dos
espaços de tomadas de decisão e estabelecimento de prioridades que
existiam no âmbito desses serviços. Em vez de insistir em sua inclu-
são num setor imerso numa “correnteza branca”9 e em serem objetos
de governança externa (branca), as e-ASOs emergiram como crítica
direta às organizações convencionais como forma de insistir em ser
sujeitos ativos no trabalho de apoio e atendimento em saúde sexual
etnoespecífico e baseado na comunidade, “por nós e para nós”.10
É em face dessa recusa e dessa negligência que nascem das lu-
tas comunitárias organizações como a Asian Community AIDS Ser-
vices (ACAS), a Alliance for South Asian AIDS Prevention (ASAAP) e a
Black Coalition for AIDS Prevention (Black CAP), para responder de
forma cultural e linguisticamente apropriada à crescente crise do HIV
na Toronto da década de 1980 e início da de 1990. Vale a pena recon-
tar as histórias dessas e-ASOs aqui porque elas enfatizam, em grande
extensão, a severidade das lacunas nos serviços de saúde sexual para
pessoas de cor. Mais importante, elas proporcionam exemplos rele-
vantes de como a cegueira racial das “correntezas brancas” no setor
de AIDS produziu condições de vida e morte para as pessoas de cor.
A Asian Community AIDS Services (ACAS) foi fundada oficial-
mente em dezembro de 1994, mas tem uma genealogia mais lon-
ga, enraizada na década de 1980, através do Gay Asian AIDS Project
(GAAP) do Gay Asians Toronto (GAT). O GAAP — nomeado assim para
identificar a existência de uma lacuna nos serviços de atendimento à
AIDS para pessoas racializadas, particularmente as de ascendência
asiática — foi fundado em 1989. Segundo um de seus fundadores, o
Dr. Alan Li:
9
Agradeço a Roland Sintos Coloma pela sugestão da expressão “correnteza branca”.
10
Agradeço a Eric Olund por este argumento.
210
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
211
inflexões etnorraciais, eram frequentemente excluídas dos primeiros
serviços de atendimento à AIDS. Isso pode ser explicado, como decla-
ra um dos entrevistados, pela íntima relação entre o setor HIV/AIDS
inicial e os movimentos de libertação gay da década de 1980, em To-
ronto.
A Black CAP foi formada em 1987, a partir dos esforços de vá-
rios membros das comunidades negras de Toronto, com o propósito
de gerar consciência e educação sobre a transmissão e prevenção do
HIV. Doug Stewart, que trabalhou na ACT antes de se tornar o primei-
ro diretor executivo da Black CAP, faz o seguinte comentário sobre os
primeiros estágios dessa organização: “[Os organizadores] estavam
preocupados com a quantidade de pessoas que tentavam ter aces-
so aos serviços e não conseguiam obter atendimento competente no
sistema de saúde”. A organização foi oficialmente incorporada em
1991.
Essas e-ASOs são parte de uma ecologia social mais ampla do
setor HIV/AIDS. Essas três organizações não são as únicas que aten-
dem comunidades racializadas. Outras existem como ASOs indepen-
dentes, tais como a Africans in Partnership Against AIDS (APAA) [Afri-
canos em Parceria contra a AIDS], ou como programas vinculados a
organizações de serviço social mais abrangentes, como o programa
de prevenção ao HIV/AIDS do Centre for Spanish Speaking People
[Centro de Falantes de Espanhol]. Tomadas em conjunto, seu sur-
gimento e a necessidade de abranger as comunidades racializadas
como “populações de risco” em estado embrionário, nas décadas de
1980 e 1990, indicaram a inabilidade e o fracasso dos modos conven-
cionais de responder a questões de saúde sexual e também a neces-
sidade de atacar o elo entre as políticas raciais, sexuais e de saúde
fora de uma estrutura acometida de cegueira racial. Como resultado,
a presença dessas organizações no setor HIV/AIDS pôde ser prioriza-
da como a formação de uma divisão de trabalho racializada dentro
do setor. Ao menos na primeira década, ou mais, do setor de HIV/
AIDS, a presença contínua de ASOs etnoespecíficas aponta para a
persistência da necessidade de tais organizações, apesar dos recentes
esforços dentro das ASOs convencionais para ao menos tentar desen-
volver formas mais apropriadas culturalmente e, em certa extensão,
antirracistas de prestação de serviços sociais.11
11
Assim como as ASOs convencionais se adaptam em resposta às mudanças nas
políticas de saúde sexual, isso também acontece com as e-ASOs. Por exemplo, e-ASOs
adotam e respondem a mudanças nos contextos municipais e de financiamento, de
forma a modificar prioridades epidemiológicas e dinâmicas multiculturais da cidade.
212
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
Um exemplo disso, que está além do âmbito deste trabalho, mas que sem dúvida
requer uma análise mais detalhada, tem a ver com a maneira como e-ASOs reagiram
à recente legislação canadense que tentou criminalizar a não notificação do HIV, a
qual tendia a atingir pessoas de cor, especialmente imigrantes e homens negros. Em
dezembro de 2010, o African and Caribbean Council of HIV/AIDS [Conselho Africano
e Caribenho para o HIV/AIDS] de Ontário (ACCHO) organizou um simpósio intitulado
“Criminosos e vítimas? Raça, lei e notificação do HIV em Ontário”, reunindo peritos para
discutir o impacto das respostas criminológicas e jurídicas da não notificação do HIV,
particularmente sobre as comunidades africanas, negras e caribenhas de Ontário. A
descrição do simpósio observa que o assunto é uma preocupação particular da ACCHO,
uma vez que “as comunidades africanas, caribenhas e negras infelizmente tornaram-se
a face da questão perante a mídia”, de modo que um desproporcional índice de 64% da
cobertura jornalística do Toronto Star aborda diariamente casos envolvendo réus negros
masculinos (Mykhalovskiy e Betteridge, 2012, p. 46).
12
A noção de segurança nos “refúgios” pode ser interpretada de múltiplas formas.
Considerando as restrições espaciais, atenho-me a algo próximo da definição de
Pratt, observando que as práticas antirracistas de criação de lugares [placemaking]
buscam produzir espaços etnoespecíficos onde as pessoas racializadas possam sentir-
se seguras para acessar serviços culturalmente apropriados e solidários. No entanto,
quero reconhecer que o termo “segurança” é problemático em relação ao HIV/
AIDS, considerando os efeitos governamentalizantes dos discursos de “sexo seguro” e
213
Além disso, a centralidade da etnoespecificidade na organização dos re-
fúgios contesta ativamente a cegueira racial do mainstream. Trata-se
também, portanto, de um espaço incrivelmente político.
Como muitos geógrafos observaram, espaços são produtos do
trabalho humano e são constantemente criados, reproduzidos e con-
testados. De modo semelhante, espaços e-ASOs como refúgios etno-
específicos são também produzidos pelas práticas sociais e decisões
políticas de pessoas neles envolvidos, frequentemente em resposta
direta ao modo como o setor convencional foi organizado histori-
camente, através de abordagens e práticas racialmente cegas. Isto é,
e-ASOs não são “refúgios” à revelia. Elas são refúgios por causa do
trabalho ativo empregado na sua produção contínua enquanto espa-
ços como esses. Em outras palavras, e-ASOs como refúgios não são
naturalmente refúgios simplesmente em virtude de sua diferencia-
ção em relação ao mainstream. Elas o são porque sua diferenciação
em relação ao mainstream é obtida em parte por práticas de criação
de lugar, ou da performance ativa e contínua da etnoespecificidade
mediante o uso de discursos, imagens e práticas alternativos.
214
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
PRÁTICAS DE AUTORREPRESENTAÇÃO:
A CRIAÇÃO DE ESPAÇOS NA E ATRAVÉS
DA PRÓPRIA IMAGEM
215
na citação acerca da EGALE que inicia este artigo, mas também quan-
to ao uso de imagens para definir espaços relativos a indivíduos. Por
exemplo, um voluntário observa que
216
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
217
O uso de imagens é estratégico, mas elas frequentemente re-
querem planejamento. Historicamente, num contexto de orçamen-
tos limitados e, portanto, capacidade limitada para produzir cartazes
e outros itens de cultura material destinados à promoção da saúde
sexual, os organizadores e trabalhadores das primeiras e-ASOs preci-
saram ser cuidadosos quanto a quais imagens empregar. Por exem-
plo, um dos primeiros fundadores da ACAS comentou:
218
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
219
traduzidas para formas multilinguísticas e multiculturais. A obra tra-
duzida das e-ASOs aparece em forma de panfletos, revistas e sites que
podem ser acessados em diferentes idiomas. Ela também implica a
capacidade de prestar serviços pessoalmente em múltiplas línguas.
Como aponta um entrevistado, em relação ao Comitê de AIDS de To-
ronto (ACT), uma organização convencional:
220
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
também por vias mais corriqueiras, como, por exemplo, quando pes-
soas que falam inglês como segunda língua são levadas a se senti-
rem deslocadas nas ASOs convencionais quando sua fluência é ques-
tionada durante conversações triviais com funcionários ou outros
usuários desses espaços. O policiamento das interações sociais por
intermédio do policiamento do idioma falado é, portanto, um exer-
cício de discriminação entre quem está em seu devido lugar ou não
nos espaços convencionais. Como alternativa a esse quadro, algumas
e-ASOs adotaram políticas explícitas em torno da língua, que servem
como alternativas às práticas das organizações convencionais. Um
entrevistado deu-me este exemplo:
221
culturalmente específicos em seu trabalho. Elas fizeram isso em re-
conhecimento ao fato de que as mensagens dominantes não podem
ser traduzidas com facilidade de um contexto socioespacial e cultural
para outro e que compreensões culturalmente específicas de sexuali-
dade e saúde são decisivas porque reconhecem a importância da di-
nâmica cultural para a promoção da saúde. Como observa Manalan-
san (2003) no contexto da globalização da palavra “gay” como termo
de identidade, a fricção de diferenças geográfico-culturais significa
que termos populares frequentemente colidem com outras formu-
lações e entendimentos — na verdade, construções vernáculas — de
identidades e políticas sexuais, uma vez que o uso hegemônico do
termo ocidental “gay” tem a tendência de omitir a “dinâmica social”
culturalmente específica de termos vernaculares para sexualidades
alterizadas (Manalansan, 2003, p. 24). De modo semelhante, concei-
tos codificados nas mensagens de promoção à saúde sexual também
precisam negociar essas dinâmicas culturais, uma vez que frequente-
mente são de difícil tradução entre fronteiras etnorraciais.
Alguns funcionários de e-ASOs articulam a complexidade da
tradução — como mais do que simplesmente linguística — apontan-
do para a importância dos conhecimentos vernaculares para o fazer
da promoção da saúde sexual. Um desses trabalhadores usa o exem-
plo dos marcadores de identidade para relacionamentos sociais e se-
xuais que são específicos de grupos determinados:
222
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
223
foram realmente úteis porque essa era verdadeiramente
a chave para reunir os membros da comunidade. E tra-
tava-se de construir uma comunidade baseada na sexu-
alidade, que tinha na saúde sexual um componente real-
mente grande, o que era muito importante. (Entrevista,
voluntário)
224
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
225
Não podia ser asiático e gay ao mesmo tempo, nessa época... a ACAS
realmente — ela realmente foi capaz de reunir minhas identidades...
você não precisava escolher. Você podia ser você mesmo”. De modo
semelhante, o documentário F3: a Queer Asian Youth Conference [F3:
Uma conferência da Juventude Queer Asiática], que registra a con-
ferência Facts for Friction [Dos fatos para a fricção], promovida pela
ACAS, descreve desta forma a inclusão de bubble tea na programa-
ção da conferência: “o salão de bubble tea do evento foi uma versão
em grande escala de um outro evento que a ACAS já promovia havia
três anos... Esse evento reforçou nossa crença de que o apoio social
é um componente essencial para melhorar os determinantes sociais
da saúde” (Chan et al., 2005). Como o ambiente da cozinha no caso
do programa da Cozinha Comunitária, o salão de bubble tea também
funciona como espaço político e de construção de comunidade. Ele
possibilita, ainda que temporariamente, a convivência entre pessoas
queer racializadas, com o propósito de cultivar e viabilizar o apoio so-
cial de um modo que frequentemente não é possível, ou pelo menos
não é afirmado, em outros espaços.
Finalmente, a presença cotidiana da comida nos espaços das
e-ASOs contribui para torná-los espaços diários de pertencimento
para os seus participantes. A comida desempenha um papel de des-
taque no modo como esses participantes ocupam e usam o espaço
da organização. Conforme argumentam Longhurst et al. (2009), a ex-
periência da alimentação é frequentemente corriqueira; no caso dos
espaços das e-ASOs, a comida funciona para marcar o espaço como
íntimo e, até mesmo, análogo ao lar. Num texto publicado no boletim
Black CAP Links, Camille Griffith escreve para celebrar o antigo espa-
ço da organização na Parliament Street, dando ao seu poema o título
Sweet 103 em referência ao número do escritório (Conjunto 103). Es-
crito depois que a Black CAP se mudou para outro endereço, na Bay
Street, esse poema começa descrevendo o espaço “como um lar pra
todos nós”. Na quarta estrofe, há uma alusão à comida como marca
de espaço compartilhado e de comunidade:
226
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
CONCLUSÃO: O “REFÚGIO”
COMO ESPAÇO NEGOCIADO
227
sociais: em ambos os espaços, a diferença social — principalmente
em termos de racialização — anima a interação social, a organização
e as instituições. Conforme argumentei, amparando-me em Mary
Louise Pratt (1991, 2008), na “zona de contato liberal da cidade glo-
bal”, a intimidade física e o compartilhamento de espaços necessá-
rios para a aproximação de estrangeiros multiculturais nem sempre
se traduz em espaços sociais solidários, mesmo em setores e insti-
tuições que fazem parte do sistema social de assistência, inclusive e
especialmente as instituições de saúde. Sugeri que a história das res-
postas institucionalizadas ao HIV/AIDS em Toronto é uma história de
racialização, a qual resulta da mobilização de maneiras racialmente
cegas de fazer o trabalho de saúde sexual nas organizações conven-
cionais. A emergência de formas etnoespecíficas de trabalhar com a
saúde sexual como refúgios criados por e para pessoas de cor contes-
ta essa racialização ao nomear a materialidade da raça na vida coti-
diana, seja sexualmente ou de outra maneira.
No entanto, não se sugere que as e-ASOs são imunes às questões
de poder e desigualdade. Na verdade, eu sugeriria que as e-ASOs são
heterotopias, em oposição a utopias. Como refúgios que são, hete-
rotopias são locações materiais apresentadas como espaços seguros
para os outros excluídos, mas são produzidas material e continua-
mente em vez de serem locais cristalizados e permanentemente per-
feitos, como ocorre com a ideia de utopia (Foucault, 1986). Em outras
palavras, as e-ASOs estão em constante negociação, não apenas por-
que as práticas e instituições que contribuem para a racialização se
modificam (por exemplo, falando de maneira geral, as ASOs conven-
cionais tornaram-se, ao longo do tempo, mais sensíveis às questões
de raça, etnicidade e cultura), mas também porque os participantes
das e-ASOs são, eles próprios, junções ou interseções de múltiplas
identificações e subjetivações. Não se pode e não se deve esperar, por
exemplo, que haja sempre de prontidão uma base imutável de unida-
de entre homens racializados e mulheres racializadas, uma vez que
as políticas de gênero ainda são tremendamente importantes, par-
ticularmente em termos de saúde sexual (ver Dyck, 2006). De modo
semelhante, embora exista um grau significativo de racialização
compartilhada entre os que são amplamente constituídos enquanto
“negros”, “asiáticos” ou “sul-asiáticos”, divergências na racialização
no interior dessas categorias, e também entre elas, estão igualmente
presentes e requerem mais investigação [ver Pulido (2006) sobre a ra-
cialização das pessoas de cor em relação umas às outras].
228
Refúgios etnoespecí cos na zona de contato liberal: política racial, construção de espaço e as
genealogias do setor de AIDS na cidade multicultural global de Toronto
AGRADECIMENTOS
229
em Saúde e Sociedade] (Universidade de Toronto, 2011) e na sessão
especial do Seattle 2011 AAG [encontro da Associação Americana de
Geógrafos, em Seattle] “Sexualities, Health, Politics, Place 1” [Sexuali-
dades, Saúde, Política, Local 1]. Gostaria de agradecer aos que parti-
ciparam dessas apresentações, particularmente minhas colegas bol-
sistas do CPHS, Dra. Deb Cowen e Dra. Lisa Forman. Agradeço, tam-
bém, aos participantes da minha pesquisa por dividirem seu tempo
e suas perspectivas comigo, e a meus supervisores Deborah Leslie e
Matthew Farish por sua orientação decisiva. Agradeço, ainda, a Ca-
therine Nash e Kath Browne por seus generosos comentários sobre
este artigo, assim como a Eric Olund e Judy Han por suas revisões e
comentários incisivos sobre o texto. O fomento a esta pesquisa foi
generosamente proporcionado pelo Conselho de Pesquisa em Ciên-
cias Sociais e Humanidades, pelo programa de bolsas de graduação
de Ontário [Ontario Graduate Scholarships] e pela Fundação Lupina.
Aplicam-se aqui as ressalvas habituais.
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235
A política sexual do neoliberalismo
e a austeridade num país
“excepcional”: a Itália
Cesare Di Feliciantonio
RESUMO
INTRODUÇÃO
E
m 2000, dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas
de Roma para reivindicar visibilidade pública e reconheci-
mento de seus direitos civis: a World Pride Rome desafiou a
resistência das instituições políticas conservadoras que tentaram proibir
a manifestação. Estas operavam sob a influência das hierarquias do
Vaticano, enquanto a cidade abrigava o Jubileu Sagrado — uma das
mais importantes celebrações da Igreja Católica, que geralmente
ocorre a cada 25 anos. Quatorze anos mais tarde, dezenas de milha-
res de pessoas tomaram novamente as ruas da cidade para reclamar
o reconhecimento de direitos básicos de cidadania. Nesse intervalo,
a maioria dos países europeus e ocidentais registrou a aprovação de
novas leis acerca de uniões civis, casamentos e adoções, com o ob-
jetivo de incluir a população LGBT nas políticas nacionais de cida-
dania. “Homonormatividade” e “homonacionalismo” tornaram-se
termos amplamente disseminados, indicando uma nova tendência
nos projetos neoliberais nacionais de cidadania, que então passaram
a acolher o ótimo e abastado consumidor “rosa” (e branco) (Bell e
Binnie, 2004; Binnie, 2004; Duggan, 2002; Puar, 2007). Nesse aspecto,
o caso italiano parece ser um “retrocesso” em comparação à Europa
“moderna” (e ao restante do Ocidente), percepção que se tornou uma
narrativa disseminada entre alguns grupos de defesa LGBT conven-
cionais (Colpani e Habed, 2014). No entanto, alguns traços que têm
sido associados à “homonormatividade” enquanto “política sexual
do neoliberalismo” (Duggan, 2002) podem ser também encontrados
no contexto italiano: a criação de vilas gays e rainbow zones, uma nar-
rativa pública impulsionada por instituições formais que reconhece
a importância do turismo e do comércio rosas, um novo discurso he-
gemônico centrado no amor e no “bom gay”. Tais tendências refle-
tem uma domesticação generalizada das vidas de lésbicas e gays e
o declínio de uma esfera pública queer (Duggan, 2002; Richardson,
2005). Então, a Itália é meramente um exemplo de país “retrógrado”
seguindo (vagarosamente) o caminho que leva à realização plena da
“modernidade” e ao neoliberalismo? Ou o caso italiano poderia se re-
velar algo mais relacionado ao caráter variegado e “excepcional” do
neoliberalismo e do capitalismo (e suas políticas sexuais)?
O artigo trata essas tensões adotando a perspectiva da exceção
como traço predominante do neoliberalismo — sendo este o argu-
mento central do livro de Aihwa Ong, Neoliberalism as Exception:
Mutations in Citizenship and Sovereignty [Neoliberalismo como exce-
ção: mutações da cidadania e da soberania] (2006). Ong oferece-nos
uma análise brilhante da complexidade, da fragmentação e da desar-
ticulação da cidadania nos espaços neoliberais de exceção, na medi-
da em que estes assinalam um projeto ilimitado, sempre sujeito à (re)
negociação. Ao (re)atribuir um papel central ao Estado e às narrativas
das elites nacionais sem construir uma visão homogênea/uniforme
238
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
1
De acordo com Agamben (1988), o estado de exceção é o dispositivo central da
soberania, separando pessoas que são reconhecidas como cidadãos dentro de um
sistema legal daquelas que não o são; destituídas, portanto, de qualquer proteção
política e jurídica.
239
sociais condicionado ao trabalho) (ver Handler, 2004) —, integrando
espaços de soberania nacional às geografias mais complexas do capi-
talismo europeu/global. Portanto, a cidadania é atualmente ligada a
uma multiplicidade de fatores, redefinidos e reimaginados conforme
o lugar e a observância de diferentes éticas, de forma que o espaço do
estado-nação resulta fragmentado e estendido através de diferentes
escalas e grupos (Ong, 2006, p. 7-8). Todo o processo é assim cons-
truído sobre a interação e as tensões entre o “neoliberalismo como
exceção” e as “exceções aos neoliberalismo”.
Seguindo tal arcabouço teórico, este artigo mostra como esse
caráter excepcional pode ser encontrado também nas tendências
contrastantes da política sexual italiana sob o neoliberalismo (e a
austeridade), superando assim a temporalidade monolítica e uni-
direcional demonstrada quando se recorre a categorias como “ho-
monormatividade” e “homonacionalismo”. Na verdade, alguns co-
mentadores encontraram traços dessas tendências no caso italiano
(p.e., De Vivo e Dufour, 2012; Ferrante, 2013), transpondo as teorias
da homonormatividade, de Duggan (2002), e do homonacionalis-
mo, de Puar (2006), sem qualquer ajuste crítico ao contexto da Itália
nem qualquer reflexão sobre os modelos neoliberais. Em contraste,
quando analiso as políticas sexuais e a cidadania na Itália neoliberal,
almejo construir minha argumentação de modo a incluir diferentes
subjetividades (pessoas LGBT, trabalhadores do sexo, mulheres), se-
guindo o princípio foucaultiano de que a governabilidade neoliberal
é primariamente biopolítica, destinada a disciplinar corpos e com-
portamentos (Foucault, 2008).
Ao discutir algumas das principais características da política
sexual da Itália nos últimos 20 anos, este artigo as situa no âmbito de
uma reflexão mais genérica sobre neoliberalismo e austeridade, to-
mando-as como interconectadas. De fato, as políticas de austeridade
adotadas desde a erupção da atual crise fiscal e financeira são vistas
como um continuum natural, o último passo das políticas neolibe-
rais implementadas desde, pelo menos, o início da década de 1990.
Nesse aspecto, sua política sexual pode ser também interconectada,
uma vez que o que emergiu nos últimos anos não assinalou qualquer
ruptura com modelos anteriores. Isso reflete o caráter sempre contí-
nuo, sempre em construção, do neoliberalismo, o qual levou muitos
estudiosos a falar em “neoliberalização”, para enfatizar sua natureza
de projeto (inacabado) sempre em negociação entre diferentes atores
e parâmetros (p.e., Brenner e Theodore, 2002; Castree, 2006; Peck e
Tickell, 2002).
240
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
241
de Duggan, a homonormatividade indica uma visibilidade geral de
certas formas de cultura gay e lésbica na esfera pública (na mídia,
na política, e assim por diante), a qual reflete novas representações
e discursos de grupos LGBT predominantes a respeito de questões
como “igualdade”, “liberdade” e “direito à privacidade”, uma vez que
estas se tornaram palavras de ordem do neoliberalismo. Segundo ela:
242
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
243
Em termos mais gerais, essas alegações geográficas contestam
o uso de casos “paradigmáticos” para investigar geografias da (homo)
sexualidade por dois motivos principais: a) eles reforçam o foco da
análise sobre as “modernas” áreas metropolitanas do Hemisfério
Norte que são tomadas como “padrões”, produzindo assim um co-
nhecimento hegemônico sob a lente do anglo-americanismo, o qual
exclui o Hemisfério Sul e os países pós-socialistas da Europa Central
e Oriental (Brown et al., 2010; Kulpa, 2011; Moss, 2014; Visser, 2013);
b) eles oferecem uma narrativa monolítica do Hemisfério Norte, apa-
gando completamente as experiências tanto das “cidades comuns”
quanto de cidades/países que não seguem a trajetória do Atlântico
Norte (p.e., Brown, 2008; Lewis, 2013).
No entanto, essas críticas levantadas por Brown podem ser am-
pliadas se considerarmos que essas perspectivas que representam a
homonormatividade como abrangente e visualizam o neoliberalis-
mo por toda parte criam uma narrativa monolítica e estável do pró-
prio neoliberalismo. De fato, o que emerge é a imagem de um neo-
liberalismo que sempre extrai valor da diversidade sexual, tentando
incorporar subjetividades sexuais afluentes específicas nas agendas
da cidadania nacionalista. Essa ontologia da fixidez do neoliberalis-
mo colide com as principais percepções recentemente originadas no
seio das ciências sociais críticas (geografia, antropologia, economia
política, urbanismo, e assim por diante), as quais salientam que o
caráter do neoliberalismo (e do capitalismo) é irregular e variegado,
incluindo as formas de reprodução e regulação sociais (p.e., Brenner
et al., 2010; Harvey, 2005b; Peck e Theodore, 2007). Ao analisar o caso
da política social italiana nos últimos 20 anos, este artigo situa a críti-
ca da homonormatividade no âmbito da conceptualização proposta
por Ong para as tensões entre o “neoliberalismo como exceção” e as
“exceções ao neoliberalismo”. A abordagem de Ong oferece a possi-
bilidade de enfatizar o fato de que, sob o neoliberalismo, diferentes
éticas colidem entre si. Por exemplo, na Itália, a negação nacional de
direitos às pessoas LGBT colide com formas de “empreendedorismo
soft”, desenvolvidas por instituições locais para favorecer o comércio
e atrair o “pink money”, as quais ao mesmo tempo permitem que pes-
soas LGBT residam e desfrutem de espaços “seguros” para encontros
e entretenimentos (ver partes 4 e 5).
Antes de analisar a exceção no âmbito das políticas sexuais,
vale a pena uma introdução sobre como a exceção rapidamente se
tornou um traço predominante na política italiana, de maneira geral,
com a implementação de políticas neoliberais e de austeridade nos
últimos vinte anos.
244
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
NEOLIBERALISMO EXCEPCIONAL E
AUSTERIDADE AO ESTILO ITALIANO2
2
Ao refletir sobre as formas, instrumentos e medidas excepcionais dirigidas a
subjetividades específicas reunidas sob a égide do neoliberalismo na Itália, meu propósito
não é “desalojá-las” da história social e política do país. Na verdade, como já especificado
aqui, algumas dessas medidas encontram legitimação na constituição republicana de
1948 e algumas das mesmas narrativas e instrumentos já foram experimentados nos
anos 1970. Este fato está ligado ao caráter de “colagem” do neoliberalismo, o qual é
resultado de diferentes relações de poder, interesses e histórias territoriais e culturas
específicas (p.e., Ong, 2007).
245
dos mercados. Além disso, a atual fase de austeridade política não
assinalou qualquer real ruptura em relação a medidas (neoliberais)
adotadas previamente, sendo o maior exemplo disso: os cortes de
verbas destinadas a aposentadorias (de baixa renda), à educação e às
universidades, à saúde pública, aos serviços sociais; e também as res-
trições à contratação de novos quadros para o funcionalismo públi-
co. Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho tornou-se cada vez mais
precário para os trabalhadores e novas medidas fiscais regressivas fo-
ram implantadas (por exemplo, o aumento do ICM ou a taxação de
combustíveis). Seguindo-se a isso, identifico um continuum entre o
neoliberalismo e a política de austeridade na Itália, pois ambos com-
partilham da mesma (suposta) racionalidade de mercado: redução
dos bens e serviços públicos, privatização de serviços e recursos es-
tratégicos, e uma forte redistribuição de capital dos grupos de baixa
para os de alta renda (Gallino, 2012).
O uso da exceção, enquanto traço marcante da austeridade
neoliberal, não se limitou às arquiteturas políticas e institucionais do
país, mas estendeu-se a vários domínios da vida social e econômica,
especialmente: a) para favorecer o crescimento econômico mediante
a realização de megaprojetos e megaeventos; b) para governar e dis-
ciplinar grupos e corpos específicos em casos de “emergência”, risco
e perigo.
No primeiro caso, a literatura reconhece amplamente que,
sob o neoliberalismo, os imperativos do crescimento econômico, da
competitividade e da eficiência substituíram as ideias de redistri-
buição e redução de desigualdades sociais do Estado fordista (p.e.,
Fougner, 2008; Harvey, 2005a, 2005b). A Itália registrou as mesmas
características, com o crescimento econômico e a competitividade
sobrepujando por completo a coesão territorial e a redistribuição de
renda, enquanto objetivos da intervenção política. Com a finalidade
de buscar o crescimento econômico (a curto prazo) baseado princi-
palmente na posse de terras e na especulação imobiliária, qualquer
atenção a territórios e ao planejamento urbano redistributivo foi su-
primida com a implementação de “emendas” às leis de zoneamento
urbano e de proteção ambiental/territorial (p.e., Berdini, 2010; Bono-
ra, 2009, 2012). Quanto a isso, o instrumento mais emblemático foi o
representado pela “anistia imobiliária” (condono edilizio), adotada por
duas vezes pelos governos de Silvio Berlusconi (em 1995 e 2003), que
possibilitou uma oportunidade de sanear e regularizar edifícios irre-
gulares mediante o pagamento de uma compensação monetária (Ber-
dini, 2010). Novamente, vemos como um instrumento excepcional foi
246
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
3
Dados disponíveis online: www.osservatoriosullefonti.it
4
Fonte: Ministério do Interior.
247
um dos principais domínios de intervenção, tendo-se usado a ideia
de emergência repetidamente nos últimos 20 anos para estabelecer
uma “tautologia do medo” (Dal Lago, 1999). Entre outros, podemos
considerar os dois decreti-legge aprovados pelo governo (de esquer-
da) no final de 2007, após o estupro e assassinato de uma mulher ita-
liana por um romeno radicado em Roma. Esses decretos introduzi-
ram a possibilidade de expulsar do país cidadãos da União Europeia
incapazes de garantir suas próprias subsistências ou por “razões de
segurança pública”. A principal narrativa que acompanhou o episó-
dio foi que imigrantes masculinos são os principais perpetradores de
violência contra mulheres. Isso nos leva a considerar que a exceção,
o risco e o perigo tornaram-se as palavras-chave da política sexual
na Itália em tempos (neoliberais) de austeridade, como veremos nas
seções seguintes.
248
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
249
foi progressivamente apagada e abandonada, sequer chegando a ser
discutida pelo parlamento (Hofer e Ragazzi, 2008). Parece ser isso o
que acontece atualmente com o governo liderado por Matteo Renzi,
que prometeu aprovar uma lei sobre uniões civis antes de se tornar
primeiro-ministro, porém sua promessa desapareceu da agenda po-
lítica do parlamento e do governo.
Em sua recente análise da política LGBT durante os anos dos
governos de Berlusconi, Charlotte Ross salientou que esses gover-
nos não representaram uma anomalia no que diz respeito a questões
LGBT, uma vez que “as experiências da população LGBT sob Berlus-
coni caíram num ‘continuum legislativo’, pois seus direitos permane-
ceram desrespeitados antes, durante e depois desse período” (2009,
p. 204). Na verdade, ela reconhece que a Igreja Católica é, por certo,
o mais arraigado adversário dos direitos e das comunidades LGBT,
o que também explica a rejeição ao disegno di legge que tratava das
uniões civis durante os anos de governo de centro-esquerda (2006-
2008). A posição de Ross não é isolada; pelo contrário, a maioria dos
comentadores reconheceu a feroz oposição das instituições ligadas
ao Vaticano a qualquer forma de visibilidade e de direitos das pessoas
LGBT. O caso mais bem documentado é o das paradas do Orgulho
Gay, uma vez que instituições católicas locais tentaram, em várias
ocasiões, impedir sua realização, alegando serem “inapropriadas”
quando coincidem com festividades religiosas (p.e., Trappolin, 2004,
2009, sobre a parada do Orgulho Gay em Pádua). Por exemplo, no
caso da World Pride de 2000, o Vaticano opôs-se fortemente à realiza-
ção da manifestação por se tratar de um ano “sagrado” para a cidade,
estendendo sua influência a instituições locais e nacionais, que ten-
taram repetidamente cancelar o evento, mas sem obter sucesso (p.e.,
McNeill, 2003; Mudu, 2002). O primeiro-ministro Giuliano Amato
chegou a declarar que adoraria proibir a passeata, mas que isso não
seria possível, uma vez que a Constituição ainda garantia o direito a
manifestações públicas (L’Unità, 25 de maio de 2000). Segundo Mudu
(2002), a World Pride 2000 revela a “tolerância repressiva” das institui-
ções italianas (lideradas pela Igreja Católica) em relação às comuni-
dades, aos direitos e à visibilidade LGBT.
A despeito dessas restrições institucionais, as condições coti-
dianas das pessoas LGBT na Itália experimentaram melhoras, como
revelou uma pesquisa recente, a qual salientou que a população
LGBT se sentia mais aceita e legitimada, e reportou uma visibilidade
crescente dessa faixa da população, especialmente nas áreas metro-
politanas (p.e., Bertone et al., 2003; Ross, 2008, 2013). Isso se tornou
250
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
5
Fonte: http://comunicazionedigenere.wordpress.com/2014/02/23/
251
Assim, uma ampla preocupação social no contexto italiano, como a
violência contra a mulher (para conhecer os dramáticos dados a esse
respeito, ver Karadole e Pramstrahler, 2012), foi usada para impor
limites à imigração, criando novas exceções dirigidas a cidadãos da
União Europeia que não têm condição de garantir seu próprio sus-
tento ou que representam um perigo para a “segurança pública”. A
narrativa do perigoso e violento imigrante estuprador foi promovi-
da em lugar da denúncia de que a maior parte da violência contra a
mulher (incluindo o assassinato) é doméstica (Peroni, 2012).6 No en-
tanto, a exceção foi invocada e praticada também para regular sexua-
lidades, corpos e práticas, sendo um dos casos mais emblemáticos o
do trabalho sexual.
Ao suprimir os bordéis, a Lei Merlin (n. 75/58), de 1958, tornou
a prostituição legal no contexto italiano, embora sob um viés aboli-
cionista, de modo que qualquer forma de favorecimento, organiza-
ção, exploração ou obtenção de lucro com o trabalho sexual por uma
terceira parte é ilegal (Garofalo Geymonat, 2014). Apesar de várias
tentativas nesse sentido — sendo a mais recente delas a iniciativa da
ministra da igualdade de oportunidades, Mara Carfagna, em 2008,
que tentou importar o chamado sistema abolicionista sueco —, a lei
não foi modificada desde então. Após o escândalo de Berlusconi com
trabalhadoras do sexo, o governo não conseguiu finalizar os esforços
de Carfagna e a lei permaneceu intocada (Peano, 2012). Porém, essa
ausência de intervenção normativa não permaneceu isolada, pois vá-
rias municipalidades intervieram para limitar e disciplinar o trabalho
sexual, e, nesse processo, os corpos e comportamentos femininos e
transexuais. Vimos, na terceira parte, que as municipalidades da Itá-
lia dispõem da possibilidade de introduzir ordinanze amministrative
especiais em casos de “necessidade” e “urgência”, e que, nos últimos
anos, elas começaram a usar esse poder excepcional de maneira fre-
quente. Entre os vários pontos de preocupação de diferentes cidades,
a prostituição de rua ocupa uma posição de grande destaque (Simo-
ne, 2010). Como pode a prostituição de rua representar um assunto
de “necessidade” e “urgência”, exigindo que os municípios interve-
nham imediatamente, acima das leis nacionais? Para compreender
como essa intervenção foi concebida (e suas consequências para a
il-triste-caso-dei-libretti-unar-per-ilcontrasto-al-bullismo-omofobico-nelle-scuole/
6
Apesar da recente campanha lançada pelo (extinto) Ministério de Igualdade de
Oportunidades em novembro de 2013, abordando o tema da violência doméstica por
meio de quatro mensagens que convidavam as mulheres a denunciar maridos/parceiros
violentos e a deixá-los.
252
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
253
em paradas de ônibus durante a noite (uma vez que, supostamen-
te, prostitutas de rua costumam parar em pontos de ônibus).8 Desse
modo, moças “decorosas” evitariam receber a multa destinada às tra-
balhadoras do sexo que atuam nas ruas.
Assim, podemos ver que, mediante esse tipo de norma, múlti-
plas éticas colidem entre si: uma atividade legalizada em todo o ter-
ritório nacional é proibida em locais específicos através de medidas
excepcionais por ser considerada arriscada ou perigosa. Ao mesmo
tempo, a exceção é aplicada não apenas para remodelar e limitar
uma conduta sexual, mas também para definir corpos, vestimentas
e comportamentos apropriados, especialmente para moças/mulhe-
res e pessoas transexuais, disciplinando assim os papéis e as normas
de gênero. De fato, homens foram praticamente excluídos pela ordi-
nanza amministrativa e pela regulação de vestimentas. Uma extensa
literatura documentou como o trabalho sexual tornou-se progressi-
vamente um importante tema de preocupação para a regulamenta-
ção do espaço público (urbano) em tempos neoliberais (de gentrifi-
cação), na medida em que é percebido como arriscado e perigoso ou
associado com violência de gênero, “imoralidade” ou outras questões
sociais (p.e., Bernstein, 2007; Hubbard, 1998, 2004). Uma vez que a
prostituição de rua é associada cada vez mais à imigração (ilegal), o
paradigma vítima/criminoso tornou-se hegemônico no âmbito das
representações públicas das trabalhadoras do sexo do gênero femini-
no, sendo este o caso também na Itália (p.e., Crowhurst, 2012; Peano,
2012). Adotando a definição de Agamben de “estado de exceção”, Pe-
ano (2012) ressaltou que a criminalização dos trabalhadores do sexo
e dos imigrantes na Itália atende à lógica do poder soberano em tem-
pos neoliberais. De acordo com suas palavras: “a criminalização de
certos sujeitos, ou seja, prostitutas e/ou imigrantes sem documentos,
está relacionada a uma estrutura de soberania na qual o poder é ca-
racterizado por sua capacidade de suspender a lei, permitindo a cer-
tos sujeitos uma liberdade aparentemente irrestrita, enquanto nega
qualquer subjetividade política a outros, que são assim reduzidos à
‘vida nua’” (ibid., p. 429).
No entanto, o caso das ordinanze amministrative parece dar um
passo além: a exceção ligada à (i)moralidade e ao decoro é invocada
não apenas no caso dos trabalhadores do sexo (e)imigrantes, mas é
praticada também para regular corpos e comportamentos, criando
uma divisão ao longo da linha da “adequabilidade” estabelecida para
8
Fonte: http://www.inviatospeciale.com/2008/09/prostituzione-multe-e-minigonne/
254
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
Em seu livro I corpi del reato [Os corpos de delito] (2010), a soció-
loga italiana Anna Simone fez uma análise brilhante de como a gover-
nança neoliberal na “sociedade de risco” (p.e., Beck, 1992; Luhmann,
1996) desenvolve múltiplos dispositivos destinados a prevenir “des-
vios” e restaurar a “legalidade”. Nesse quadro, perigo, risco e seguran-
ça passaram a exercer um novo papel, na medida em que existe uma
preocupação política e midiática em torno das novas emergências
sociais. No caso italiano, essas palavras tornaram-se chaves para as
políticas sexuais do neoliberalismo e da austeridade não apenas para
os trabalhadores do sexo, mas também para a governança urbana das
(homo)sexualidades. Esta subdivisão do texto trata desse processo,
mostrando como tais dispositivos favoreceram a emergência de uma
nova governança urbana das (homo)sexualidades, com base numa
espécie de “empreendedorismo soft”.
A procura por ambientes seguros e “amigáveis” representa uma
importante preocupação para as pessoas LGBT, uma vez que o es-
paço público mantém um caráter profundamente heteronormativo,
frequentemente levando à discriminação e à violência contra sujeitos
255
não conformistas (Hubbard, 2008; Kirby e Hay, 1997). Por esse mo-
tivo, espaços comerciais (urbanos) LGBT e “guetos gays” têm sido
com frequência descritos como espaços de emancipação na “busca
queer por identidade” (Knopp, 2004), uma vez que eles rompem a
heteronormatividade (p.e., Blidon, 2007; Leroy, 2009). Não obstante,
espaços LGBT podem ainda ser percebidos pelas pessoas que inte-
gram esse grupo como arriscados e perigosos, especialmente quando
passam a atrair muitos frequentadores heterossexuais, como foi re-
gistrado, por exemplo, no bem documentado caso do Gay Village de
Manchester (p.e., Casey, 2004; Skeggs, 1999). De fato, a pesquisa ino-
vadora de Moran et al. (2003) demonstrou que “o Gay Village, longe
de ser experienciado pelos seus mais frequentes usuários gays como
um lugar seguro, era sentido como um lugar de perigo e uma locali-
dade insegura” (p. 191), especialmente entre as pessoas que mais o
frequentavam (p. 192). No caso da Itália, uma pesquisa anterior (Di
Feliciantonio, 2012) mostrou que uma tendência geral manifestou-se
no Gay Village em Roma, pois, em 2009, a cidade testemunhou uma
suposta “emergência homofóbica”. De fato, uma série de episódios
de violência e ataques ocorreu em alguns dos principais pontos de
encontro LGBT da cidade, incluindo o Village romano, o que levou a
mídia a proclamar uma emergência homofóbica, fazendo com que
as pessoas LGBT figurassem cada vez mais no discurso público como
expostas a risco e perigo. A resposta da municipalidade, conduzida
pelo acima mencionado prefeito Gianni Alemanno, tomou como
base a ideia de “garantir a segurança” para os indivíduos LGBT, uma
vez que os negócios ligados a esse grupo representam uma importan-
te fonte de recursos para a cidade. Por esse motivo, medidas de con-
trole foram implementadas nos dois principais locais de encontro da
cidade (o Gay Village e a “Rua Gay”) (ibid.).
Como se pode ver, as ideias centrais que acompanham a criação
da exceção dentro das políticas sexuais do neoliberalismo e da
austeridade na Itália, tais como risco, perigo e segurança, tornaram-
se palavras-chave para representar a comunidade de consumidores
LGBT. Na verdade, tais dispositivos não foram desenvolvidos para
reconhecer novos direitos e combater a discriminação, mas para
favorecer e defender atividades comerciais, confirmando assim a
ideia de Bell e Binnie de que o neoliberalismo franqueia acesso a
lésbicas e gays primeiramente como “cidadãos consumidores” (2004).
Essa proteção do comércio (rosa) e das atividades empresariais pode
tornar-se particularmente relevante numa fase de profunda crise
econômica, de declínio da economia, ou em cidades “de aspiração
256
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
257
principalmente por comunidades de imigrantes (a via Sammartini,
ver Milano Today, 9 de abril de 2014). No entanto, em consequência
da carência de fundos e recursos que a municipalidade enfrenta na
atual fase de austeridade, o projeto de requalificação da área acabou
por incluir apenas intervenções muito básicas, como uma nova ilu-
minação e a repavimentação das calçadas.9 Embora limitadas, essas
intervenções objetivam estimular a iniciativa privada ao longo da
rua para torná-la propriamente “gay” (atualmente existe ali um bar,
uma sauna, um clube, um ponto de encontros, um disco/bar e um
sex-shop); a “rua gay” foi inaugurada oficialmente em 21 de março de
2015 (um mês antes do início da Expo) por alguns representantes do
município.
Ao contrário de Milão, Palermo é uma cidade com problemas
socioeconômicos de longa data, os quais se agravaram com a atual
crise fiscal e financeira, especialmente no que diz respeito aos níveis
de pobreza e (des)emprego. Além do mais, a cidade registra uma taxa
extremamente alta de endividamento familiar (139% da média na-
cional), e as únicas expectativas positivas para a economia da cidade
provêm do turismo (Osservatorio Economico della provincia di Pa-
lermo, 2013). Talvez tenha sido em decorrência dessas expectativas
depositadas no turismo que a municipalidade adotou uma postura
muito ativa por ocasião da “nacionalmente relevante” passeata do
Orgulho Gay, em março de 2013. Na verdade, até essa data, uma ci-
dade diferente era escolhida a cada ano na Itália para hospedar essa
passeata de “relevância nacional”, enquanto outras cidades (incluin-
do Roma) sediavam formalmente passeatas “locais”. No caso da Palermo
Pride 2013, a municipalidade empreendeu uma intensa promoção
do evento, adotando uma narrativa centrada não apenas nos direi-
tos, mas também nos dividendos econômicos ligados ao turismo. De
fato, na conferência de imprensa convocada para promover o evento,
o prefeito Leoluca Orlando proclamou: “esta iniciativa trará à cidade
alguns milhões de euros em consumo, atividades e desenvolvimento
econômicos. Envergonha-me fazer cálculos econômicos sobre uma
iniciativa tão pura e louvável” (fonte: La Sicilia, 17 de março de 2013).
Portanto, o caso de Palermo nos mostra como, em tempos de crise e
austeridade, a política sexual pode ser mobilizada para atrair mais
dinheiro (e visitantes), revelando-se assim a natureza contraditória
das paradas de Orgulho Gay sob o neoliberalismo: por um lado elas
9
Fonte online: https://www.comune.milano.it/portale/wps/portal/CDM?WCM_
GLOBAL_CONTEXT=/wps/wcm/connect/ContentLibrary/giornale/giornale/
tutte+le+notizie+new/lavori+pubblici/via_sammartini_luce_marciapiedi
258
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
259
(através das ideias de risco, perigo e segurança), quanto legislativos/
institucionais (pelo recurso às ordinanze amministrative, um poder
especial que os prefeitos deveriam usar somente em caso de urgência
e necessidade). No caso de Roma, os mesmos instrumentos retóri-
cos acompanharam a mudança rumo a uma governança urbana das
(homo)sexualidades baseada em mais controle da segurança, uma
proteção destinada primeiramente a resguardar o comércio e a co-
munidade consumidora. Portanto, em tempos de crise e austeridade,
a necessidade de promover a cidade com fins econômicos pode le-
var as municipalidades a se engajarem em projetos específicos des-
tinados ao público LGBT, como se vê nos casos de Milão e Palermo.
Entretanto, restrições financeiras convertem esse processo num “em-
preendedorismo soft”, em que os municípios realizam unicamente
intervenções em escala menor.
Teorizar a exceção como um traço central do neoliberalismo e
das políticas de austeridade gera a possibilidade de pensar sobre o
caráter variegado e localizado dos diferentes processos (sociais, polí-
ticos, econômicos, culturais, e assim por diante) compreendidos pelo
neoliberalismo, pois não há relações sociais previamente organiza-
das que o caracterizem em todos os lugares. Pelo contrário, as tecno-
logias de governança neoliberal são ensambladuras dinâmicas (Ong,
2007), situadas ao longo de diferentes eixos, percursos sócio-históri-
cos e relações de poder. Tal reconceptualização da política sexual do
neoliberalismo e da austeridade oferece importantes possibilidades
(ainda a serem exploradas) para que se possam entender as conse-
quências desiguais da atual crise fiscal e financeira e das medidas
de austeridade a ela vinculadas. Na verdade, não apenas diferentes
locais são afetados de maneira não uniforme pela crise e as medi-
das de austeridade, mas essas consequências desiguais são também
registradas em comunidades e por grupos no interior dessas comu-
nidades. Portanto, uma pesquisa futura poderia partir dessa recon-
ceptualização do neoliberalismo e sua política sexual para investigar
o impacto desigual da austeridade sobre as vidas de LGBT e dissiden-
tes sexuais em diferentes espaços, territórios e sistemas jurídicos. Por
exemplo, podemos considerar que os cortes de empregos durante a
crise e as medidas de austeridade têm impacto desigual sobre as vi-
das dos LGBT, a depender, entre outros fatores, de terem eles casa
própria (ou financiamento). Podemos também tentar retraçar essa
linha divisória internacionalmente, pensando, por exemplo, no im-
pacto diferencial que a crise de financiamento exerce sobre unidades
familiares lésbicas e gays de acordo com seu contexto legislativo. O
260
A política sexual do neoliberalismo e a austeridade num país “excepcional”: a Itália
que acontece em contextos nos quais esse tipo de parentesco não en-
contra reconhecimento legal? Além disso, poderíamos refletir sobre o
impacto das medidas de austeridade em termos de serviços de saú-
de pública: por exemplo, quais as implicações, para as pessoas LGBT
com algum tipo de invalidez, dos cortes de serviços médicos locais
em muitas províncias italianas? Ou, ainda: quais as consequências
da progressiva privatização do sistema de saúde para o público LGBT
(ou feminino), uma vez que a maioria dos hospitais privados italia-
nos é católica?
Essas questões deveriam chamar nossa atenção para o fato de
que mudanças (similares) que ocorrem no âmbito da política sexual
de muitos países do Ocidente/Hemisfério Norte podem não ocorrer
necessariamente em qualquer outro país (ocidental, seja do Hemis-
fério Norte ou do Hemisfério Sul) que tenha adotado reformas e me-
didas neoliberais. Uma abordagem mais cosmopolita no âmbito da
geografia das sexualidades (e da economia política) deveria, então,
reconhecer que não há nenhuma lógica específica de necessidade ou
causalidade ao longo dos processos (continuamente renegociados e
em construção) de neoliberalização: na verdade, novas e inesperadas
exceções podem surgir em diferentes contextos, para então serem ex-
portadas para outros lugares.
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267
SOBRE OS AUTORES
Cesare Di Feliciantonio (cesaredif@gmail.com)
Doutor em Geografia pela Universidade de Roma. Atualmente faz
pós-doutorado na Universidade de Dublin. Além de pesquisar sobre
geografia econômica e geografia urbana, também tem explorado as
geografias das sexualidades, com destaque para políticas neoliberais
de espaços comerciais LGBT e políticas de ativismo.
Doreen Massey (d.b.massey@open.ac.uk)
Professora de geografia na Open University e uma das mais impor-
tantes geógrafas radicais feministas das últimas décadas, com inú-
meras obras. Faleceu em 11 de março de 2016, aos 72 anos, deixando
uma inestimável contribuição à geografia mundial.
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Sobre os autores
271
Geografias Feministas e das Sexualidades: Encontros e Diferenças foi
organizado por Joseli Maria Silva, Marcio Jose Ornat e Alides Baptista
Chimin Junior e editado por TODAPALAVRA Editora, em Ponta Grossa, Paraná,
no ano de 2017.
Dados técnicos
ISBN: 978-85-62450-47-1
Formato fechado: 16x23 cm
Fontes utilizadas: Heuristica, Champagne & Limousines
Revisão por Hein Leonard Bowles
Capa, projeto gráfico e diagramação por Dyego Marçal
Impressão por Gráfica e Editora Pallotti
Tiragem: 500
Miolo: com 272 páginas em papel offset 90g/m²
Capa: cartão supremo 250g/m²
Acabamento: Laminação fosca, costurado