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Pesquisa. Research
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do arroz, soja e produtos de subsistência para
de roupas que usavam (não eram transparen-
o consumo familiar.
tes, curtas, justas ou decotadas); à personali-
Rev Esc Enferm USP Com exceção de uma das colaboradoras, que dade extrovertida delas; o aceitar carona de
2003; 37(3): 82-7. era de origem alemã, as demais eram de origem um homem, estando sozinha ou mesmo com
os filhos, etc. Este controle acontecia em senti- teciam diálogos entre o casal (em relação a
A sexualidade como
do único, isto é, somente dirigido às mulheres. assuntos pertinentes à intimidade matrimo- uma construção cultural:
nial), e melhorava muito o relacionamento reflexões sobre
preconceitos e mitos
AS CRENÇAS E OS MITOS deles em vários aspectos. inerentes a um grupo
de mulheres rurais
REVELADOS NO GRUPO Algumas mulheres entendiam que a mater-
nidade e o instinto do amor materno era algo
Foi percebido, neste estudo, que as mu- “natural” inerente ao ser feminino, como um
lheres aceitavam o mito da virgindade femini- papel naturalmente preparado para elas, não
na e o valorizavam, atribuindo-lhe um signifi- como uma função adicional na vida delas, à
cado de “valor, objeto de troca, honra”. Con- semelhança do que é discutido no trabalho de
sideravam tal mito como um “selo de garan- Badinter(20) e de Beauvoir(21). Elas imputavam a
tia”(15), sendo assim imperativo sua preserva- falta de desejo sexual à maternidade, pois rela-
ção até o casamento. cionavam o desejo sexual à reprodução, ou seja,
Entendiam a relação sexual como um com- para haver uma gravidez, era preciso haver o
promisso no casamento, portanto, só neste desejo sexual. Desse modo, elas se reportavam
contexto permitida. Havia a concepção de que à condição assexuada que a imagem de mãe
a relação sexual era uma “necessidade orgâni- pode reproduzir nas mulheres(15-16).
ca” para os homens e uma “obrigação” para as Um outro mito muito difundido entre essas
mulheres. Essa concepção é constatada por mulheres era o referente à menstruação. No gru-
Studart(16), quando se refere às normas, códi- po pesquisado, as mulheres que tiveram boas
gos e mitos criados pelos homens para “natu- experiências com a menarca, vivenciavam sem
ralmente” serem acatados pelas mulheres. preconceito o seu período menstrual e manti-
Também emergiu, das narrativas, o mito da nham normalmente suas atividades, inclusive as
passividade e da frigidez feminina, entendido sexuais. Elas entendiam que a menarca represen-
por elas como o resultado de uma rígida e tava um rito de passagem para a vida adulta e a
repressora formação sexual, que as impedia de possibilidade da maternidade. Já as outras que
tomar a iniciativa no ato sexual, porque reforça- vinculavam o sangramento menstrual à sujida-
va a idéia de que cabe ao homem as iniciativas. de, à nojeira, à repugnância(19), o que era mais
Outras justificativas, advindas de situações de comum, eram levadas à abstenção sexual nesse
cansaço pelas atividades domésticas executa- período e a outros impedimentos, tais como: não
das ao longo do dia, por fatores externos ou lavar a cabeça, não comer alimentos gelados, não
pelo cotidiano familiar, geradores de estresse, preparar maionese, não ordenhar, dentre outras
eram consideradas causas da a frigidez femini- atividades. Essas atitudes também são confir-
na, esta entendida por elas como uma doença madas no estudo de Costa(22).
orgânica. Sabemos que a frigidez feminina pode
A situação de desconhecimento sobre a
ter causas fisiológicas e psicológicas, mas é pre-
sexualidade na menopausa(23-24), também, foi
ciso ressaltar as causas de ordem cultural, que
muito referida nas narrativas. Representan-
acabam criando e reforçando rótulos para as
do um enigma para a maioria das colaborado-
mulheres, depreciando-as sexualmente e trazen-
ras, ou seja, sendo entendida como um mito,
do um controle à sexualidade delas(16). Nesta
pois vincula o fim da atividade sexual femini-
comunidade focada, a infidelidade masculina era
na com o fim do período reprodutivo.
justificada pelas colaboradoras, que partiam da
idéia de que, se a mulher é frígida e o homem Foi constatada uma rejeição muito grande
tem ”necessidade orgânica” de relação sexual, no grupo em relação à masturbação, acordan-
ele deve ser “atendido” de qualquer forma. do com os registros de Suplicy(25). Ao mesmo
Foram narradas, também, situações de tempo em que as mulheres insinuavam enten-
exigências constrangedoras criadas para obri- der o que era, expressavam um desconhecimen-
gar a mulher a manter relação sexual com seu to a respeito do assunto, pois condenavam essa
marido, sem que ela desejasse, semelhante as prática, relacionando-a a algo proibido, a algo
expostas nos trabalhos(17-19). errado, que poderia trazer prejuízos físicos e
psicológicos. Expressavam o sentimento de
Algumas mulheres submetiam-se a isso, vergonha pela substituição ao ato sexual “nor-
entendendo tal tomada de atitude como uma
obrigação marital, que evitaria maiores con-
flitos com o cônjuge; outras conseguiam ex-
mal” entre duas pessoas (no caso, homem/mu-
lher). No entanto, algumas mulheres entendiam
a masturbação como autocarícia(16) e como co-
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pressar a falta de desejo e, a partir daí, acon- nhecimento do próprio corpo; algo que pudes- 2003; 37(3):82-7.
se proporcionar prazer e satisfação. A maioria Outra fonte de aprendizagem informal nar-
Lúcia Beatriz Ressel
Dulce Maria Rosa Gualda
das narrativas evidenciava a impregnação de rada pelo grupo, porém muito mais ativa e influ-
valores morais rígidos em relação ao contato ente, foi a conversa com as amigas (conversas
com o próprio corpo e, ainda, desconhecimen- íntimas, particulares ou em turma), favorecendo
to, medo e preconceitos. o amadurecimento, a mudança de comportamen-
to e o esclarecimento dos próprios valores(25).
O mito criado e mais rejeitado nesse gru-
po foi em relação à homossexualidade, en- Entendo que num estudo que envolve uma
tendida como uma anormalidade orgânica e interpretação cultural, não é pertinente generali-
não como uma opção sexual(17). zar para não incorrer em discriminações e pre-
conceitos(10-11). Saliento que, nessa descrição
bastante sintética optei por apresentar os ele-
A CONSTRUÇÃO CULTURAL DA
mentos mais comuns ao comportamento do gru-
SEXUALIDADE NO GRUPO
po, procurando não inferir que todas se caracte-
rizavam do mesmo modo. Houve sincretismo,
Tentando compreender como se deu a cons- posicionamentos diferentes, contrários, que con-
trução da aprendizagem da sexualidade, para viviam no mesmo espaço cultural. Esta pesquisa
esse grupo de mulheres, analisei a relação que permitiu a manifestação de particularidades, de
elas tiveram com as diversas agências educativas, diferenças, dentro do universo em que esse gru-
que as influenciaram culturalmente. Dentre es- po de mulheres vivia; permitiu também entender
sas verifiquei que, com os pais, havia pouco di- os significados e as interpretações singulares que,
álogo e as orientações aos filhos eram dadas em conjunto, formavam uma identidade.
como se fossem “alertas” ou “proibições”, por
meio de repressão, dando-se, assim, o controle COMENTÁRIOS FINAIS
social e cultural. Este era diferenciado para meni-
nas e meninos, permitindo para os meninos uma
A interpretação cultural dos eventos, es-
maior liberdade e apresentando para as meninas
pecialmente sobre a sexualidade, nos subsi-
um maior rigorismo e rigidez. Desse modo, fica
dia para o cuidado com a pessoa, possibili-
confirmada a diferente condição de socialização
tando vislumbrá-la como um ser social, cultu-
para homens e mulheres, que aparece em diver- ral e único. No que se refere à sexualidade, é
sos estudos(18-19,26-28). importante não exacerbar o anormal e o pa-
A igreja, como instituição religiosa, cumpriu tológico, não falar de risco e sim de prazer, não
seu papel conservador dos valores sociais, por reduzir ao ato sexual e à reprodução, já que
intermédio da impregnação do medo religioso, tais atitudes facultam a transformação de indi-
do pecado. Ela tentou manter a vergonha ligada víduos com vivências e histórias singulares,
a tudo que se relacionasse a sexo; defendeu a em números, em casos clínicos, em problemas.
manutenção da virgindade feminina e a aceita- Acreditando que cada indivíduo possui
ção da relação sexual somente após o casamen- sua própria visão de mundo, reforço que a
to, instituindo, dessa forma, o controle da sexua- compreensão cultural possibilita a expressão
lidade feminina. No entanto, a intensidade da das diferenças, das peculiaridades; valoriza
ação religiosa sobre o grupo pesquisado foi bem o indivíduo, enquanto sujeito de sua própria
menor do que a ocorrida na geração anterior, vivência; permite a contextualização desse
contudo influenciou, indiretamente, através dos indivíduo e promove um olhar dialético em
valores transmitidos na socialização(29-32). relação ao nosso agir.
A escola, como agência educativa, pou- Nesse sentido e conduzido pelos estudos
co contribuiu para a aprendizagem sexual des- de Heilborn(4,8), este artigo relaciona a sexuali-
se grupo; quando o fez, foi de forma carrega- dade como um componente cultural de nossa
da de preconceitos e eventual, não tendo ca- forma de vivenciar o mundo, o que lhe garante
ráter permanente nos currículos. Ela deteve uma dimensão de construção. Finalizando, sali-
suas informações somente sobre as partes ento que a sexualidade é entendida, aqui, como
do corpo humano. Quanto à menstruação e o resultado de uma construção histórica e cul-
gravidez, apenas eram lembrados os perigos tural, que se integra à rede de significados do
do sexo, o que se assemelha ao referido por grupo social específico, possibilitando a mani-
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Saffioti(33), quando estudou a evolução do
ensino formal dado às mulheres no Brasil, o
qual sugere o reduzido empreendimento e o
festação de toda e qualquer expressão relativa
ao sexo. Ela é, portanto, uma experiência pesso-
al, única e marcada profundamente pela cultura
2003; 37(3): 82-7. rigoroso preconceito nessa área. em que cada pessoa está imersa, na qual vive.
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