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tereza

a poetiza das latinhas

Luiz Zanotti

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Capa: Thiago Zanotti
Diagramação: William Haack

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Prefácio

O aparecimento do fenômeno da globalização


nestes últimos anos, num quadro onde a força do capitalismo
neoliberal aparece como impossível de ser contida, um
capitalismo que apesar de cada vez mais selvagem, se reveste
de uma figura justiceira e cheia das boas intenções com toda a
humanidade, um sistema que busca a dominação através de
uma ideologia hegemônica que prega a homogeneização das
culturas, que lança mão de uma mídia comprometida com esta
maravilha da “globalização”, que comete um verdadeiro
genocídio mediático do que é contra o capitalismo.
Num momento em que a industria cultural que
aniquila a diversidade cultural, contando com todo o aparato e
o poder bélico desta “besta louca” que é o Estado norte –
americano, este país terrorista e territorialista, me foi
apresentada no Bar do Kaminski em Campo Largo, a vereadora
mais votada na ultima eleição para vereadores em Campo
Largo, a Sra Tereza de Jesus Moraes, ou como ficou conhecida
nacionalmente a “Tereza da Latinha”.
Esta senhora de 51 anos, catadora de latas, vinda das
camadas mais baixas da população local, teve comigo, uma
conversa inicial de cerca de dez minutos, contando a sua
ascendente trajetória através de versos construídos de
improviso, numa transparente alusão à importância dada por
esta senhora à palavra e, por conseguinte à cultura, uma cultura
que apesar de local e tradicional se encontra entrelaçada com
os aspectos globais do capitalismo, a medida que é envolvida
pela “Grande Narrativa” da dominação capitalista.
Este encontro fez com que “caísse a minha ficha”, e
notar que a cultura tradicional ou, seja lá como devemos chamar

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esta hibridização entre o velho e o novo, o local e o global, a
homogeneização e a heterogeneização, estava mais do que
nunca viva pela inventividade dos povos que se encontram na
periferia do sistema, numa atitude que embora muitas vezes
inconsciente é claramente efetuada num perfil de resistência.
O seu verso a respeito de fazer com as pedras que lhe
atiraram uma casinha mostra esta resistência não só cultural,
como também política, fazendo de seu posicionamento local,
um contraponto ao próprio Sistema Mundial, mostrando que
o que o Sistema expulsou pela porta da frente retorna pela
porta de trás como uma contra cultura periférica1.
Esta senhora e a sua revolução pelas palavras fizeram
com que voltasse a aparecer aos meus olhos uma possibilidade
real da utopia, ou seja, que um mundo melhor é possível, e que
esta melhoria passa pela assunção dos valores culturais de um
povo, passa pela luta do povo pela libertação da sua própria
forma de vida, pois ao restabelecer a historicidade de sua
cultura, restabelece o controle sobre sua própria existência,
pois a libertação é um ato cultural2, pois:
“Salvar a Cultura é salvar a humanidade”
Além disso, Tereza tem uma profunda religiosidade,
que é demonstrada a cada momento por sua moral cristã, que
ensina a sempre perdoar àqueles que lhes jogaram pedras,
mesmo aqueles que jogaram a primeira pedra sem atentar para
os próprios defeitos, uma consciência que lhe permite acreditar
numa vida possível de ser melhorada, de que objetivos podem
ser alcançados, que mesmo que estejamos no mais profundo
buraco da nossa existência, temos luz própria e só precisamos
ligar o interruptor.
Este encontro me fez ressurgir na memória as palavras
de Juan Bañuelos, intelectual da região de Chiapas, México,
que conta que apesar do governo mexicano estar tentando
consecutivamente destruir a cultura local através de uma

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infinidade de operações paramilitares, operações que já mataram
mais de seis mil e seiscentas, a resistência persiste e aparece
num poema escrito por mulheres indígenas da região:
Vimos despertar seu coração
Damos esta oferenda de fumo
Que não nos cheguem pegar em nossas casas
Desta forma, Tereza, apesar de sua pouca formação
escolar, sabe, porque aprendeu nas esquinas da vida, que a
capacidade de transformar o mundo começa pela semântica,
mas se ensinar o alfabeto é necessário, não é suficiente, temos
que nos preocupar em emancipar as pessoas dando para as
mesmas a capacidade de articulação das palavras que só pode
ser obtida com a leitura regular e neste sentido Dona Latinha
no seu primeiro dia de mandato apresentou um projeto para
abertura de bibliotecas publicas em lugares históricos a serem
restaurados.
A revolução dos livros proposta por Tereza mostra toda
a sua perspicácia em saber que muito mais do que fornecer um
sem numero de informações disparatadas e mesmo alienadas,
temos que dar a ler3, pois as palavras são sempre as mesmas,
mas o que dizem não é nunca o mesmo, sendo em cada vez
uma coisa que pode ser distinta, e entre quem fala e quem
escuta há uma eternidade sem consolo, se quem ouvir não
conseguir entender o significado. Temos que ensinar a pescar
as palavras.
Outra característica da nova vereadora é a sua empatia
com as crianças, as quais ela trata com o mesmo respeito e
consideração que dirige aos seus eleitores adultos, ela parece
estar de acordo com a proposta utópica de Thiago de Melo,
que apresenta a possibilidade de se defender a humanidade a
partir das nossas crianças e adolescentes, preparando-as não
para um futuro, muito abstrato e distante, o futuro é agora, e
que estas crianças e adolescentes exerçam agora e de uma vez

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por todas a sua cidadania, com a total eliminação das armas
atômicas, com uma real preservação das florestas, que possam
ter orgulho da sua nação.
Tereza, assim como a corda manufaturada com lençóis
pelos presidiários para alcançar o mundo na frente das grades,
parece ser a nosso mais profícuo caminho para um mundo livre,
um mundo despojado das imensas diferenças sociais, enfim,
um caminho para um mundo melhor, uma vez que um mundo
melhor é possível4.
Durante estes breves quinze minutos, a cativante
senhora mostrou toda a sua vivencia e sua inteligência, nos
aproximando de maneira real dos problemas da população, mas
esta inteligência e vivencia de pouco valeriam se estivessem
desconectados da sua mais pura emoção que aparece ao nos
contar que a palavra escrita não é que nem a palavra vocal,
pois a palavra vocal tem coração. Um coração de tão grande
magnetismo que faz com que toda população a venere, fato
por mim comprovado quando a convidei para uma festa na
casa da minha sogra, uma senhora polonesa de origem muito
humilde, tendo vivido toda a sua vida num sitio bem afastado
dos centros urbanos. Dona Rosa, ao recebê-la, estava no mais
alto grau de contentamento por poder abraçar uma pessoa tão
ilustre, mas de certa forma tão parecida com ela.
Assim, como “Madre”5 Tereza da Latinha precisamos
nos preocupar com os excluídos, marginalizados, adolescentes,
crianças, enfim todo um povo sofrido e doido, que é o
verdadeiro “povo” brasileiro, o povão. E para a consecução
de nossos objetivos temos que dar importância à intransigência,
pois foi desta maneira que Tereza enfrentou os poderosos de
Campo Largo, e precisamos, assim como nos adverte Frei
Betto, manter a nossa indignação com todo tipo de injustiça, e
não torná-la pasteurizada e produto para se apresentar nos
“casos especiais” ou “globos repórteres” da vida. É primordial

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a defesa dos injustiçados, até mesmo quando não existam claras
evidências de que o mesmo esteja com a razão, pois esta razão
esteve bloqueada por séculos e mais séculos de opressão6.
Precisamos colocar a cultura, as artes plásticas, as
tradições, a comida e o artesanato, a musica e as palavras à
favor e não contra a vida, precisamos acreditar em Chico
Buarque.
“Amanhã vai ser outro dia”

Luiz Zanotti
11/2005

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Capítulo 1. Os caminhos do Dom Rodrigo

Tereza nasceu no dia 10 de outubro de 1953, filha caçula


de uma pródiga família de dez filhos gerados por Vadislau
Karash e Leocádia Novak Karash. Ela nasceu numa localidade
chamada Dom Rodrigo, na propriedade rural da família Portela,
este lugar se encontra afastado cerca de doze quilômetros da
cidade de Campo Largo, a principal cidade da região e que
destaca-se principalmente na indústria da cerâmica, sendo
conhecida como “Capital da Louça e da Cerâmica”. Com
relação a outras atividades, na agricultura destacam-se as
culturas de feijão, da batata e da cebola e na fruticultura existe
uma forte produção local de maçã, pêssego e uva para a
industria vinícola.
Em termos geográficos, a cidade localiza-se no Primeiro
Planalto, ao longo da BR 277, que faz a ligação do porto de
Paranaguá ao norte do Paraná, ela é parte integrante da Região
Metropolitana de Curitiba, ficando distante trinta e um
quilômetros desta capital. Possuí uma altitude quase mil metros
acima do nível do mar e ocupa uma área total de pouco mais
de mil cento e noventa quilômetros quadrados. O clima
apresenta-se fresco no verão e com frio intenso e acontecimento
de geadas durante o inverno.
Campo Largo surgiu pela basicamente como invernada
para a criação de gado e pelo fato de ser um caminho por onde
passavam os tropeiros, que assim como os emigrantes italianos
e poloneses muito contribuíram para a formação do Município
que foi fundado em 2 de abril de 1870 como município de
Campo Largo da Piedade, pertencente a Comarca de Curitiba,
desmembrando-se oficialmente em 23 de fevereiro de 1871.
Sua população atual é de aproximadamente oitenta mil
habitantes.

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As principais atrações do município são a Igreja Matriz
de Nossa Senhora da Piedade construída em 1832, o Parque
Histórico do Mate, um complexo cultural e de lazer com o
objetivo de reconstituir o processo tradicional de produção e
beneficiamento da erva-mate e sua influência nos hábitos,
cultura e economia do Paraná, a Fonte da Saudade inaugurada
em 1882 por Dom Pedro II, a Aldeia Franciscana numa área
de quarenta alqueires cobertos por espessa vegetação e calmos
recantos, Tempo Verde - Chácara Vivência Experimental, uma
área de quase dez hectares para atividades na área de educação
ambiental; a estância hidromineral Ouro Fino que está numa
área de cerca de um milhão de quilômetros quadrados com
piscinas de água mineral, bosques, cascatas e muitas hortênsias
e finalmente a atração que lhe empresta o sobrenome, a industria
da louça e da cerâmica, dada por sua condição geológica, com
ocorrência de granito, calcário, quartzitos, terras argilosas, entre
outros materiais que fizeram que várias industrias optassem
por se instalar na região da cidade.
É neste clima burlesco que nasceu a pequena Tereza,
numa época que não havia nem mesmo uma estrada para fazer
a ligação entre Dom Rodrigo e Campo largo, o que havia era
apenas um estreito caminho de terra, nas palavras da Dona
Latinha: -Estradas cortadas à “cortadeira”, um tipo de uma pá,
ou seja, uma ferramenta de cortar a terra. Coloca-se a ponta
da pá na terra e depois a força terra adentro com a ajuda do pé,
depois se retira a terra por efeito alavanca.
Obviamente um caminho feito com técnica tão
rudimentar não possibilitava a passagem de grandes veículos
ou automóveis, este caminho só se prestava para o trafego de
carrocinhas e o “andar a cavalo”, ainda muito usado na região.
Desta forma, para se vencer os doze quilômetros da viagem
para a cidade, que na maioria das vezes era feita mesmo a pé,
era necessária três horas de caminhada.

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A viagem era realizada a pé porque a carrocinha, um
dos bens mais significativos para a família, só era mais utilizada
quando a “familhagem” vinha vender a colheita do milho e
fazer provisões para o mês. As carrocinhas usavam um tipo de
cobertura semelhante às carroças do velho oeste americano
para se proteger do sol, da chuva e dos gélidos ventos, que
como vimos são constantes numa região ao sul do Brasil.
Esta armação de ferro ou de madeira coberta com lona
era chamada pela população com o estranho nome de “torda”.
A família de Tereza era tão pobrezinha que eles não possuíam
nem mesmo dinheiro para montar uma simples “torda”, fazendo
que as pessoas sofressem nos dias de intempérie.
Aos vinte e dois dias de existência, os pais de Tereza
resolveram que era tempo para que a pequena menina foi
batizada. Arrumaram-na com uma roupa nova e branquinha, e
juntamente com a madrinha subiram na carrocinha e se puseram
a caminho de Campo Largo num dia quente e de céu límpido,
sem nuvens. A madrinha Dona Maria Sarnesc preocupada com
uma possível mudança do tempo que poderia resfriar a menina,
ofereceu-se a pedir a torda emprestada para a sua mãe. Seu
Vadislau, no seu jeito todo poderoso, recusou prontamente tal
proposta, dizendo que ele estava certo que naquele dia tão
festivo, em que sua filha caçula ia ser batizada, não haveria
chuva pra estragar.
O batizado aconteceu de uma forma angelical, com a
pequena Tereza olhando fixamente para a figura de Jesus no
altar da igreja de Campo Largo. Terminado o evento religioso,
a família se pos na carrocinha para a viagem de retorno, o céu
já começava a dar os seus sinais de cinza, as nuvens tinham
rapidamente tomado conta do azul celeste prenunciando uma
chuva vindoura. Daí aconteceu o esperado inesperado, as
nuvens começaram a se desmanchar, fazendo brotar um
aguaceiro sob a carrocinha.

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A madrinha de Tereza, uma senhora que ainda hoje vive
no Dom Rodrigo, assim que viu as primeiras gotas a molhar o
rostinho da criança, não teve duvida, tirou o próprio vestido e
nele enrolou a criancinha. Dona Maria assim agindo evitou
que a menina se molhasse e pudesse vir a ficar doente.
Foi no meio desta chuvarada que Terezinha, uma menina
super saudável, voltou para casa depois do batizado e foi
colocada pela madrinha para dormir, a criança nos seus
primeiros momentos de vida dormia no quartinho de madeira,
um quartinho bem simples onde seus pais repousavam após
um dia de trabalho incessante.
Neste quarto de seus pais, construído com pranchas
de madeira sem ter ao menos lambris, as frestas deixavam passar
a brisa e o brilho da noite, e foi através destas frestas que as
estrelas puderam espreitar para ver aquele nenezinho que um
futuro brilhante esperava, foi por entre as frestas que o brilho
do destino bateu na porta, digo berço, da futura vereadora
pela primeira vez.
Num dia claro de verão, a pequena menina dormia o
sono que só os extremamente justos e os anjos têm o direito,
quando Dona Angélica, a madrinha do irmão da pequena chegou
para a comadre Leocádia e o seu novo rebento, a madrinha
trazia seu também pequeno filho de cinco anos de idade, o
Chiquinho a tiracolo.
Dona Angélica e Dona Leocádia passaram a tarde
fofocando e relembrando os amigos e parentes, os vivos e os
mortos, os bêbados e os beatos, dos casamentos e velórios,
sendo que Dona Leocádia contou alguns dias antes de ainda
antes de falecer que a comadre Angélica assim que adentrou o
quarto do casal e se aproximou do berçinho de Tekinha, olhou
para o filho e disse: -Chico, esta menininha vai ser a sua futura
esposa.

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Ainda rezam as lendas domésticas da família Karash
que a chupeta do nenê tinha caído e Verônica, uma de suas
irmãs não queria pegar a chupeta e colocá-la de novo em sua
boquinha. Dona Angélica vendo que a irmã maior da futura
nora não ia apanhar a chupeta, pediu para o seu filhote que a
pegasse e colocasse na boquinha do nenê. Dona Leocádia
protestou, falando da falta de carência, que a menina não queria
mais a chupeta.
Chico se abaixou, apanhou a chupeta, limpou-a em sua
camisa e como num instante mágico, num momento de profunda
comunhão de almas, ele ofereceu a chupeta para a menina que
a aceitou prontamente. O grande amor de Tekinha acabava de
nascer e aparecer.
A vida na casa dos descendentes de poloneses seguia
na velocidade antiga, num movimento que dava para ver crescer
junto com a pequenina, o feijão, o milho, o arroz e a cebola,
que além de sustentarem a família, eram plantados para a venda
do excedente na cidade. Seu Vadislau, nascido numa família de
agricultores, mantinha a tradição, trabalhando na lavoura desde
os primeiros raios de luz até as primeiras sombras da noite. De
tudo que era plantado, uma terça parte “o terço” era pago para
o Senhor Portela, o dono das terras, ou seja, somente dois
terços da produção virava mantimento e mercadoria para a
comercialização. Fora esta atividade agrícola, a família tinha
como uma atividade secundaria uma pequena criação de galinha
para o próprio consumo.
Dona Leocádia é de uma família de poloneses que teve
seus filhos emigrados para vários locais, entre eles o senhor
Felix Novak, residente hoje em dia num povoado chamado
Sitio do Mato. Este brasileiro descendente de poloneses lutou
na Segunda Guerra Mundial, Tereza lembra, com aparente
orgulho, que há pouco tempo atrás tirou uma foto com o tio
numa cerimônia de honra ao mérito para os pracinhas, que

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aconteceu no Tiro de Guerra, um tipo de treinamento militar
em pequenas cidades que não possuem quartel militar. Ela
lembra ainda de uma outra foto que o tio lhe mostrou, e que
ainda hoje está retida na memória, uma foto onde ele aparece
com os companheiros antes de partir para a campanha militar,
Tereza fica por um momento triste, porque sabe que muitos
deles não voltaram e foram mortos na guerra. A morte é um
assunto sempre presente na sua lembrança, pois os caminhos
que poderiam ter levado Tereza para uma morte prematura se
colocaram na sua frente logo na sua primeira infância.
Muitas vezes, seu pai e sua mãe saiam levando com
eles os irmãos mais velhos, ela que na época tinha dois anos de
idade, portanto por ser ainda muito pequena ficava em caso,
por outro lado apesar de sua pouca idade, ela era a responsável
por “cuidar” da velha avó doente, dona Madalena Koerish,
que morava em sua casa.
Dona Madalena estava muito mal de saúde, tanto que
não conseguia nem ao menos se levantar da cama. A velha
parteira-que tinha ajudado no nascimento de centenas de
crianças -foi a responsável pela iniciação da netinha na função
de “arrumadeira”. A arrumadeira é uma espécie local de
benzedeira, sendo especialista em “arrumar” machucaduras, o
que significa curar entorses de tornozelo, de joelho e outros
tipos de problemas musculares, a “arrumação” é feita, como
teremos oportunidade de contar, costurando-se um paninho.
Apesar do seu estado de saúde, a senhora polonesa
estirada em seu leito de morte, enrolava um cigarrinho de corda
e pedia para a netinha acender o cigarro no fogão de lenha que
ficava na cozinha:
-Dascent cigarete
Ouvindo as palavras em polonês, a pequena
netinha pegava o cigarro de palha com a avó e ia rapidinho no
seu passo miúdo até o fogão de lenha, mexia com a vareta de

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ferro para avivar o fogo nas brasas, estirava o bracinho para
poder encostar o cigarro nelas e voltava ainda mais veloz para
o quarto, onde a avó aguardava ansiosa pelo cigarro aceso.
Acontece, que geralmente, no trajeto de volta, açoitado pelos
ventos que entravam pelas frestas da parede o cigarro apagava.
A velha polonesa desapontada com as diversas vezes que recebia
o cigarro apagado acabou por ensinar para a neta:
-Chupa, chupa o cigarete.
A menininha seguindo o pedido da avó, começou a
puxar a fumaça para acender o cigarro, e obviamente não
demorou muito para acabar se viciando, com a total
cumplicidade da velhinha, que em sua ignorância dos males da
nicotina, passou a lhe fornecer cigarros.
Este vício foi sendo levado e se alastrando até que um
dia, já com quinze anos, a jovem mocinha estava lavando a
louça com um cigarro em seus lábios, ela estava totalmente
entretida com esta tarefa domestica e acabou por nem notar
que o seu pai tinha voltado da roça e estava agora na porta da
cozinha. Seu Vadislau ao ver a menina fumando, ficou
totalmente transtornado. Como poderia a sua filha ter um habito
tão desavergonhado? Ele ficou muito perdido e sem medir as
conseqüências, aplicou um sonoro tapa na menina, que com a
força de sua mão empurrou o cigarro aceso para dentro da
boca de Latinha, queimando não somente sua boca e sua língua
queimadas, mas queimando principalmente seu coração tão
inocente.
Tereza, em toda a sua inocência, e realmente não se
considerando culpada por este vício, herança da sua avó, olhou
bem nos olhos do pai agressor e sem demonstrar nenhuma raiva
ou ressentimento, mas somente clamando pela justiça, lhe
contou a historia de como a avó lhe pedia para acender os
cigarros. Se ela tinha adquirido este hábito, não foi por sua
querência e sim por culpa da mãe dele, da sua avó Madalena.

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Ao ouvir tal revelação, Seu Vadislau se pôs a
chorar como uma criança, notou que tinha sido injusto com a
sua querida filha. Olhou bem nos olhos da menina e pediu
desculpas, fazendo questão porém de alertar a filha para os
malefícios que advinham do uso da nicotina e a aconselhou a
parar com este vício, afirmando que o cigarro não tinha nada
de bom e fazia muito mal à saúde. O conselho do velho
camponês não surtiu efeito, a menina adolescente já estava
muito acostumada ao vicio que tinha desde os dois anos ela já
carregava.
Mas se Dona Madalena logo cedo a iniciou num vício
tão maligno, ela também fez questão de ensinar para a neta o
oficio de benzedeira e a sua devoção católica. Tereza foi
formada moralmente dentro desta tradição cristã que ensina a
perdoar a quem nos quer o mal, e principalmente dividir o pão
de cada dia com aquele que tem fome, com os mais necessitados.
A sua profunda devota pela religião, além de sua forte ligação
com tudo o que é Sagrado, a levou por um caminho iluminado
e por foi assim que ela aprendeu a criar e fazer orações para
ajudar as pessoas, na sua humildade ela mostra toda a sua
sabedoria ao falar que não importa muito com que palavras a
oração é proferida e sim com a força que ela é dita, pois o
poder da cura esta na fé e não em palavras vazias, para se
alcançar os ouvidos de Deus é preciso dar vida para as palavras,
fazê-las voar para a eternidade feito pássaros de luz.
Mas Tereza como uma verdadeira operária das palavras
e da fé, não fica somente teorizando a forma de se obter uma
graça e passa para a pratica ao contar a historia de um enfermo
que conheceu e que obteve a cura pela fé
Este homem enfermo, ela nos conta, era uma historia
acerca de um senhor que tinha uma chaga muito feia em sua
perna. Este senhor já tinha corrido mundo para resolver o
problema desta ferida sem qualquer tipo de sucesso, até que

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um dia cansado de obter somente resultados negativos dos
tratamentos oferecidos pela medicina tradicional, e porque não
dizer, da não tradicional, este homem ouvindo falar dos poderes
de um benzedor que vivia numa área da periferia, bastante
afastada da cidade onde vivia, resolveu ir falar com o benzedor,
mal não faria pensou ele e era talvez a sua última chance.
Ele esperou um dia que prenunciasse bom tempo, e lá
se foi ele à busca de um milagre. Desceu no ponto final do
ônibus inter-bairros, e se apoiando na sua bengala chega numa
pequena casa numa ruinha de terra contígua ao terminal de
ônibus.
Chegou no que poderia se chamado de portão, um
amontoado de madeiras pregadas aleatoriamente e que evitava
que os bichos saíssem para a rua. Bateu palmas e notou a seguir
que da pequena portinhola da casa estava saindo um homem
com o sorriso nos lábios e que aparentava pelas vestimentas
ser um pequeno agricultor.
Em sua ansiedade, nem mesmo responde o “bom dia”
efusivo pronunciado pelo agricultor, e já foi perguntando se o
homem conhecia um homem que efetuava benzeduras e orações
ali pelas redondezas, explicando o motivo, aquela velha ferida
incicatrizável, que o trazia de tão longe.
O homem do campo, muito bondoso de coração, sabia
que o benzedor que aquele homem doente procurava havia
falecido a poucas semanas atrás, porém ao ver o sofrimento
daquela criatura de Deus, com o seu terrível problema sem
solução, resolveu ajudá-lo e apesar de nunca ter benzido
ninguém, percebeu um aviso, uma voz que falava de dentro do
seu coração: - Benza este homem, ajude-o a se restabelecer
desta chaga, você pode fazer.
O caridoso agricultor tomando o pobre sofredor
pelo braço encaminhou-o para um pequeno quartinho à
esquerda da sala, onde provavelmente dormiam os filhos do

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novo benzedor. Ele pegou de cima de uma cômoda a imagem
do seu santo protetor, São Francisco, e de dentro de uma gaveta,
em meio a varias cartas, papel e outros objetos, o rosário e a
bíblia. Abriu a bíblia mais ou menos em sua metade e pediu
com humildade para que o visitante colocasse a sua mão
esquerda encima da mesma e que se concentrasse no Senhor
Jesus Cristo, a seguir iniciou uma oração.
O Senhor é o vencedor
O Senhor vai te curar
Repetiu a oração varias vezes até que se deu
por satisfeito com o volume praticado, desta forma o benzedor
finalizou sua benzedura. Olhando nos olhos do enfermo falou
para que no dia seguinte o paciente tomasse três goles de água
as nove da manhã, mas uma água verdadeiramente cristalina,
não podia ter nem uma gota de cloro, tinha que evitar o seu
contato com qualquer substancia que pudesse causar a sua
poluição. O doente poderia obter esta água pura numa cachoeira
que tinha logo ali na frente próxima de um barranquinho, que
se alcançava através de um caminho no meio do mato.
O agricultor, transformado em benzedor, falou que o
senhor das chagas, ao tomar a água pura às nove horas em
ponto, se livraria daquela chaga, ela ia desaparecer
completamente e que ele ia ficar. Ele fez então o seu único
pedido ao enfermo, que este assim que houvesse sarado, não
deixasse de voltar para a sua casa e lhe contasse o milagre
ocorrido, porque apesar dos médicos dizerem que não existia
cura para a sua enfermidade, Deus tinha falado através deste
pobre homem da periferia que o enfermo ia ficar bom.
Em seguida, o falso benzedor abraçou o postulante a
um milagre, falou para o doente ir embora para sua casa e
descansar, pois em poucos dias estaria curado.
Aquele homem da cidade, rude, tristonho, prepotente
e presunçoso tinha ficado totalmente crédulo, e totalmente

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confiante naquelas orações, prometeu que se ele sarasse, ele
voltaria àquele local para dar uma recompensa, ou seja, um
“bom dinheiro” para o benzedor.
A resposta inesperada do homem do campo apareceu
numa forma imbuída das mais puras e honestas intenções. O
homem enfermo não deveria prometer nada para ele porque
nada ele queria receber, mas que garantia a sua cura porque
era o melhor benzedor das redondezas, ele curava tanta gente
não só pelas suas orações, mas também porque as pessoas
buscavam a Deus.
Quatro meses depois, quando o novo benzedor já tinha
até se esquecido do acontecido, ele vê um carrão importado
estacionando no velho portãozinho. Era o cavalheiro da ferida
que chegava de volta, trazendo muito dinheiro em seu bornéu,
dinheiro que era suficiente para comprar uma fazenda. Tendo
sido curado de sua chaga, o homem que tinha resolvido o seu
problema, e na sua grande euforia queria recompensar o
benzedor, que ele considerava seu próprio salvador.
Porém, apesar da insistência do dono do carrão, o
benzedor negou-se a receber qualquer dinheiro ou beneficio
pessoal. Ele pediu pessoalmente para que todo aquele dinheiro
fosse doado para algumas casas de caridade, ou que fosse
ofertado a uma pessoa bem carente e que também estivesse
sofrendo por causa de uma chaga, ou outra doença, pois seria
muito mais cristão dar a alguém que assim como o próprio
cavalheiro que conseguiu a cura, estivesse sofrendo.
O novo benzedor falou que não precisava de mais nada
em termos materiais e que Deus era muito bom com ele, que
tinha emprego, tinha casa, mulher e filhos sadios, e que por
estes sólidos motivos, não necessitava de mais nada. A sua
recompensa foi a alegria de saber que aquele homem, que tinha
chegado apoiado numa bengala em sua casa, tinha através de

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Deus alcançado uma graça, que o Senhor tinha proporcionado
o restabelecimento daquela alma sofredora.
Esta fé que curou o cavalheiro é a mesma fé que está
sempre emergindo dos olhos e na boca da vereadora. Ela
também faz as orações, benze, dá conselhos.Ela é muito
procurada para ajudar crianças que estão com problema de
andadura, ou seja, dificuldade de dar os primeiros
passinhos.Muita gente a procura para que ela através das suas
orações alcance alguma graça, e assim ela arruma machucadura
em um bebezinho aqui, tira as pipoquinhas 7da boca de outro
acolá, costura urdidura8, corta cobreiro, etc.
A costura da urdidura é feita num pedacinho de pano
com agulha de costura e fio de linha.O curioso procedimento
prescreve uma inversão de sexo, assim se for um homem que
se machucou a benzedeira pega um retalho de roupa de uma
mulher; caso contrário, uma mulher, ai usa-se então um pedaço
de retalho da roupa de um homem.
Estes machucados são na sua grande maioria derivados
de problemas musculares tais como uma dor nas costas, nervos
torcidos, um mau jeito dado, e a solução do problema só pode
ser obtida através da oração e da costura do retalho. Costura-
se o trapinho de forma que o mesmo fica totalmente amarrado,
seno que a seguir o coloca dependurado num local aquecido,
ao receber esta caloria o trapo que está representando
virtualmente o músculo ou nervo avariado faz com que a
“machucadura” real comece a sarar, e logo no outro dia a pessoa
já fica restabelecida da lesão. Desta forma a benzedeira conta
como funciona sua oração:
-Se você está com dor no lado do corpo, você vai ter
que pegar um trapinho de mulher, daí você vai fazendo a oração
e costurando, costura o retalho,uma simpatia,o segredo da cura
está na costura do pano no lugar do músculo avariado, pois no
pensamento você está costurando a dor que tanto incomoda

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Entre as “ajudas” prestadas por Dona Tereza, ela se
lembra quando logo depois de ganhar a eleição apareceu um
casal com um nenê em seu gabinete. A criança estava com o
pezinho bem machucado, o nenê tinha ido com os pais no
medico, mas este não tinha resolvido o problema da criança. A
nova vereadora, lá do alto do pedestal erguido pelos seus vários
anos de janela, logo percebeu que a doença se tratava de
“cobreiro de sapo”, um tipo de uma assadura muito comum
nos “Mato”, a partir desta constatação, Tereza benzeu a criança
que no dia seguinte já não apresentava mais nenhum sintoma
da doença, estava curadinha da silva.
Mas, a Dona Latinha nos alerta para o fato de nos
mantermos “em dia” com o Senhor após a concessão de graça,
pois se Deus deu, ele também pode tirar. A vereadora nos
apresenta a estória de uma senhora que estava demasiadamente
enferma, tendo a sua perna direita paralisada totalmente, sendo
que esta doença, que possuía um diagnostico desanimador, a
impedia de andar normalmente pelo bairro. Diante desta
impossibilidade de cura, a mulher adoentada resolveu buscar a
ajuda divina para a sua dor, e assim agindo com uma certa
semelhança em relação ao Senhor das Chagas, a senhora
enferma resolveu, como uma última tentativa, rezar, pois através
do milagre da oração sentia a possibilidade de obter a cura.
Então, ela reuniu coragem e foi da maneira que dava,
manquitolando com a sua bengalinha, e aos trancos e barrancos
acabou por chegar na igreja da paróquia local. Lá chegando,
encheu o coração de amor, reuniu a pouca coragem que lhe
restava e fez uma promessa para a sua santa padroeira Nossa
Senhora Aparecida. A mulher prometeu que se a Santa a fizesse
ficar boa de novo, ia mandar fazer um colar de diamante ou de
perola para entregar para entregar para uma pessoa pobre. Além
disso, a mulher ofereceu aos pés do altar da santa e em seu

23
nome uma quantia em dinheiro para a primeira pessoa
pobrezinha que ela viesse a encontrar.
Não demorou muito para que a mulher restabelecesse
a saúde. O milagre tinha acontecido, Nossa Senhora Aparecida
tinha atendido ao pedido da senhora. Ela tinha sarado
totalmente, ficado completamente boa. Assim a mulher
consagrada pela graça foi ao altar da Santa agradecer, sem
levar o colar, que a mesma já tinha feito por esquecer. Feita as
orações, a senhora saiu da igreja, e ao tentar atravessar a calçada
encontrou na sua frente uma velhinha, daquelas bem
pobrezinhas e de pele bem preta. A velha mendiga estava toda
suja, sem banho, desdentada e faminta.
A senhora que convalescia de sua terrível doença ao
encontrar com a mendiga, tirou da sua carteira duas moedinhas
de baixo valor monetário e as ofertou para a mesma velhinha,
que apesar do pequeno valor ofertado, saiu de sua frente
agradecendo, mostrando o seu sorriso desdentado. Enquanto
se afastava, a mulher convalescente pode notar que aquela
senhora muito pobre e muito negra, e que apesar de envolta
naquele xale azul, muito sujo e rasgado, mantinha a sua
plenitude celestial.
Ao chegar em casa a senhora foi tomada por um
sobressalto, não podia acreditar, a sua perna estava de novo
paralisada, o coração palpitou ao lembrar da velhinha negra,
sim ela só podia ser a Nossa Senhora na figura de uma pessoa
tão sofrida. A mulher a quem a santa tinha concedido uma graça
não tinha dado o colar oferecido e nem mesmo uma quantia
generosa porque a pessoa que a receberia era uma velha preta.
Entre outras inúmeras qualidades, esta passagem mostra a moral
religiosa da Tequinha e a sua total complacência com todas as
raças, que para elas são uma só, a raça humana. Ela, por mais
sofrimento que tenha passado na vida, continua a acreditar que
a luz que está no fim do túnel não é um trem que vindo em

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direção contraria e que irá passar por cima de nós, para ela,
esta luz é divina e trará no final a paz desejada, mesmo que
num primeiro momento se apresente como uma eventual
tragédia.
A tragédia que se impôs à vida da menina,
quando aos tenros onze anos de idade, Tereza tomou contato
pela primeira vez com a morte, ela que só sabia da morte através
das historias contadas pela mesma mãe a respeito dos
irmãozinhos que os anjos tinham vindo buscar. Mas agora era
diferente não era uma historia distante e longínqua, ela tinha
ficado órfã de mãe. O falecimento precoce de Dona Leocádia,
vítima de um derrame cerebral que a apanhou aos quarenta e
seis anos de idade, deixou uma menina indefesa nos braços do
Leviatã moderno. Foi mais ou menos nesta época que duas das
muitas irmãs de Tereza resolveram deixar a casa, a mais velha,
Verônica, que possui um forte laço de amizade com a caçula,
no auge das suas vinte e duas primaveras, logo a seguir ao
acidente com sua mãe, casou-se e foi morar com o marido,
que já naquela época se encontrava desempregado. A outra
irmã, na época com dezenove anos, tinha o nome de Eva, nome
também da filha mais nova de Tequinha, trabalhava na Encepa,
uma fabrica produtora de cerâmicas. Eva continua até hoje
nesta empresa, e na época para evitar as freqüentes viagens
entre os “Mato” e o local de trabalho, resolveu ir morar numa
pensão, de onde saiu diretamente para o matrimonio com um
colega da mesma empresa.
Foram poucas vezes, depois de sua partida que Eva
voltou para a casa de Dom Rodrigo, a triste perda da mãe
tinha ficado fortemente na memória. O seu contato com a irmã
Tereza ainda hoje é muito pouco. Assim, a casa de Dom Rodrigo
que apesar de pobre, tinha todo um movimento de vida, com
crianças e jovens, comadres e madrinhas assiduamente
chegando e partindo; com a prematura morte de Dona Leocádia

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tinha se transformado num lugar esquecido e triste. Tereza
estava completamente sozinha, uma vez que sua irmã Maria
de dezesseis anos após algum tempo mudou para Curitiba, de
onde nunca mais deu noticias. A sua solidão contava ainda com
as ausências do irmão José quase nunca aparecia por morar
muito distante, do ausente Adão, abatido como muitos outros
homens dos “Matos” pelo alcoolismo, do João, que só lembrava
de aparecer nas horas das refeições, ou seja, todos tão ausentes
como as irmãs.
O sofrimento da perda da mãe era obliterado pela sua
irmã Maria, esta irmã fez Tereza sofrer demais, era Maria que
logo depois do falecimento da mãe cuidava dos afazeres
domésticos, mas logo no primeiro mês de orfandade, Maria
acabou sendo expulsa de casa pelo pai, esta expulsão a obrigou
de ir morar em Curitiba. Mas embora, Maria não se contivesse
de ralhar com a irmã, de colocá-la em arapucas que armava, a
ainda menina Latinha não conseguia desenvolver a raiva em
seu coração, e ainda hoje lembra da irmã com um misto de
tristeza e carinho, no seu nobre coração só existe lugar para a
vicissitude do amor e para a virtude do perdão. Latinha roga
para que Deus abençoe a Maria, que lhe de um bom juízo, e
aguarda a visita da irmã que ela sabe que um dia vira e será
bem recebida.
Assim, esta diáspora ocorrida em Dom Rodrigo acabou
por deixar Latinha sozinha com o seu pai e foi numa sexta feira
de um março, num mês que apesar de tipicamente de outono,
fazia frio que Seu Vadislau saiu bem cedo para ir para o centro
resolver certos negócios, este homem fruto da rudeza do campo
e de hábitos fortemente conservadores pediu, acreditando
piamente nas habilidades domesticas da filha caçula, para que
Tereza preparasse o almoço, que fizesse uma polenta, ou
qualquer coisa e que cozinhasse a carne do ganso que ele tinha
matado no dia anterior.

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A pequena Tereza ficou apavorada porque a mãe só
tinha ensinado trabalhos básicos de cozinha, porem com a
ruptura na vida da querida mãe, ela teve que ser arrancada do
meio da sua infância e ser jogada mo meio dos afazeres de uma
experiente dona da casa. No meio do apavoramento, a menina
antes de sair para enfrentar um enorme cesto de roupas sujas
que seriam lavadas no rio que corria próximo a sua casa,
colocou água com sal numa panela bem grande, despejou um
pacote de macarrão “chatinho”:- “Aqueles da marca
Todeschini” mostra ela com os dedos, pôs fogo na lenha e
juntou a tudo isto a carne do ganso.
Na hora do almoço, o pai chegou da cidade, faminto e
foi logo sentando na cabeceira da mesa para aguardar a iguaria,
o sonhado pato cosido com polenta que ele veio visualizando
durante a volta da cidade. A menina, feliz da vida, prontamente
tirou aquele “pirão” do fogo e foi logo servir Seu Vadislau na
mesa. O pai colocou a colher na panela e não pode acreditar
no que via, não podia conceber o resultado daquela “arte
culinária”. Transtornado, não pensou duas vezes e atacado pela
fúria de ver o seu delicioso pato “afogado” naquele macarrão,
acrescido por uma fome de anteontem, pegou a menina
desatenta e começou veemente a surrá-la com a sua pesada
cinta de couro.
O pai faminto estava certo que a menina, que realmente
não sabia cozinhar, tinha feito aquilo por pura sacanagem.
Enquanto apanhava, Terezinha implorava o perdão para o pai
para ele perdoá-la pois ela não sabia cozinhar, ela não tinha
noção de cozinha.
Mas como já vimos, no dia seguinte, o pai da Latinha,
que apesar de ser as vezes rude e injusto, tinha um bom coração,
nesta manhã de sábado que amanheceu um tanto dolorido
para a pequena órfã, se dirigiu para a menina e teve a

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hombridade de lhe pedir desculpas tendo os olhos mareados: -
Desculpe minha filha, eu não sabia que você não sabia.
Para evitar novas desventuras culinárias, o pobre homem
resolveu passar aquele dia em casa e ensinar à pequena filha
como lidar com as atividades domésticas da cozinha. Ele a
ensinou a fazer pão, a fazer broa, um tipo de pão elaborado
com a mistura de fubá e trigo. Esta mistura é obtida ao se
“queimar”, ou melhor, cozinhar, salpicando a mistura com a
água fervendo de uma chaleira. Esta mistura “queimada” resulta
numa espécie de polenta que é assada no forno de lenha.
O pai a ensinou também a fazer o “platski”, uma espécie
de broa, mas que possui uma massa mais simples, elaborada
apenas por água e fubá. Esta massa assim meio mole é colocada
numa pá de madeira e colocada para assar no fogão a lenha.
Platski, apesar de ser um nome polonês nos remete
imediatamente a onomatopéia do barulho causado pelo cair da
massa ao ser sacudida dentro do forno de barro.
Este rito de passagem da infância para a maturidade
sem tempo para viver uma adolescência, este descompasso de
tempo de uma pessoa que dormiu criança e acordou mulher,
acabou por forjar uma personalidade única, uma mulher firme
e decidida, mas também uma mulher cheia de amor e esperança.
Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do
planeta9.
Mas se esta mulher mostra todo o seu perfil serio e
maduro por um lado, por outro é o seu lado infantil que se
mostra no incrível relacionamento com as crianças. Desde os
tempos das coletas de latinhas, Tereza faz questão de andar
com uma balinha no bolso de sua blusa, uma balinha que vai
trazer amor e brincadeira, que vai adoçar os doces sorrisos
angelicais dos anjinhos.
Este seu lado jovem e encantador, este seu lado que
apesar das agruras que obteve da vida, continua a dar-lhe forças

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para sonhar com príncipes e princesas, se mostrou claramente
num dia em que comentávamos sobre o título do livro. Ela
sugeriu que deveríamos chamá-lo de “A historia da Tereza da
Latinha”, para ela a Latinha não é ela e sim um outro
personagem, um personagem mágico.
Ela lembra que a pouco tempo atrás ela não sabe se
pensou ou sonhou que haviam fabricado uma boneca à sua
imagem e semelhança. No pensamento ou no sonho, na verdade
pouco importa, ela estava brincando de casinha dentro da fenda
uma velha árvore, esta arvore apesar de velha era robusta, era
assim o esconderijo perfeito, um local bem distante de toda
maldade humana, Latinha dormia profundamente na sua
“casinha” quando alguém bateu com uma bengala no tronco.
Era um belíssimo cavalheiro usando casacas que assim que a
acordou, iniciou sua fala:
-Dona Tereza. Você aceita fazer uma parceria para
produzir a Tereza da Latinha, a boneca que faz rima e que voa,
uma boneca que está sempre sorrindo e todas as crianças do
planeta vão poder comprar uma, porque ela será de graça, e
será também uma graça porque a boneca vai ser vestida com a
roupa da sua campanha. Como vai ser de graça, esta boneca
vai ter uma venda bem grande e ainda por cima a bonequinha
aumentará ainda mais a sua identificação as crianças.
Ao terminar a sua fala, o homem que se trajava
elegantemente com um fraque, tal qual aparece nos bailes nas
novelas, tirou de dentro do seu paletó a boneca da Tereza da
Latinha. A boneca estava vestida com o casaquinho xadrezinho
que é a marca da vereadora, este casaquinho foi usado durante
toda a sua vida, ela costumava vesti-lo ao sair pelas ruas antes
das eleições para conversar com as pessoas e expor as sua
plataforma política, este mesmo casaquinho ela ainda veste hoje
em dia para ao andar pelas ruas e atender os correligionários.
Tereza continua a ser a mesma pessoa, simples e humana,

29
continua a ser ela mesma, assim como o seu casaquinho nada
mudou.
A boneca da Latinha apresentada pelo nobre cavalheiro
vestia um chinelinho de dedo e ao apertar a palma da mão ela
cantava versinhos:

Eu trabalho com capricho


pegue no meu bracinho.

Fosse um pensamento ou um sonho, a verdade é


que não foram poucas vezes que esta menina acordou para
uma realidade que parecia cada vez mais distante do seu mundo
imaginário, mas muito pelo contrário, foram varias as vezes
que ela retornou a esta realidade dolorida e chorou ao lembrar
do seu pai, foram varias as vezes que foi raptada pela realidade,
que foi trazida dos distantes sonhos apolíneos e suas tantas
luzes para uma escurecida embriaguez dionisíaca. Uma
embriaguez que faz com que seu pai, um homem forte como a
grande maioria dos colonos descendentes de poloneses, beba
um pouco a mais da conta, passe da conta, e nada encontre.
Logo no inicio de sua adolescência, a menina do Dom
Rodrigo tomou conhecimento do estrago que a bebida pode
causar, o viúvo polonês bebia a mais da conta nas noites dos
“Mato” e por este motivo não tomava conta da antepenúltima
filha Maria. A menina que era levada da breca, sabendo que o
pai ia beber e dormir profundamente até o dia seguinte
convidava os rapazes da região para irem na sua casa namorar.
Tereza, na época era ainda uma criança, e de ter ficando tantas
vezes assustada com o assedio proporcionado pelos rapazes,
acabou por descobrir uma velha arvore que embora próxima
da casa não era fácil de percebê-la durante a escuridão sertaneja
apesar dela ostentar um grosso tronco, pois apesar de distar
somente vinte metros, já se encontrava em mato fechado.

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Tereza construiu exatamente nesta arvore o seu
esconderijo, era para ela como se fosse seu verdadeiro lar, uma
espécie de uma casinha com uma cama em seus galhos. Lá, ela
se sentia segura e muito longe dos apuros e confusões armadas
pela irmã e os amigos dela. Lá ela podia dormir coberta pelo
seu manto de estrelas e sonhar acordada com os mais variados
mundos, podia sonhar com um mundo idealizado, onde as
pessoas não fossem injustiçadas, um mundo onde se
respeitassem as minorias raciais, os homossexuais e as mulheres.
Ao deitar-se na sua cama encima do feixe de galhos da arvore
pedia a Deus que não chovesse, mas também pedia para que
ela pudesse encontrar um dia a força para fazer as coisas se
modificarem, para que existisse um mundo melhor. Do seu
manto de estrelas, a menina já demonstrava a sua esperança de
um mundo melhor e toda a força sonhadora e religiosa, e
portanto genuinamente política que um dia deveria transformá-
la na defensora dos menos favorecidos.
Numa daquelas noites de vigília, no ano em que deveria
debutar, Latinha estava escondia em seu esconderijo com medo
de ser atacada, ela tentava pensar o futuro a partir da leitura do
brilho lunar e esperava pelo momento adequado para voltar
para casa, ou seja, depois que todos os rapazes tivessem ido
embora, neste seu mundo que sempre se apresenta como uma
mistura de fantasia e realidade, em meio a uma escura e
assustadora noite de setembro e de um mundo que a menina
aos poucos idealizava, ela viu um clarão riscar o céu, se
aproximar e explodir bem perto da arvore, ficar ali parado por
alguns momentos para em seguida explodir novamente e partir
na direção a outras galáxias. Ao contrário de outras luzes que
já tinha visto, luzes como se fossem fogo- fátuos que a
aterrorizavam de maneira diabólica, esta luz parecia provir da
mão de Deus, e foi por isto que esta explosão de luz encheu de
coragem e alegria o coração da pobre menina.

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A partir desta revelação, ela foi pouco a pouco,
começando a aprender a sonhar que estava voando, e foi neste
reino de sonhos e fantasia que a menina acabou por ganhar, ou
seria melhor dizer criar asas, asas que possibilitaram que a
vereadora voadora pudesse viajar pelas noites escuras, saltando
de sua velha arvore para o mundo, do sitio para o Amazonas,
do Paraná ia até a imensidão das estrelas, era uma pessoa
voadora, é uma pessoa para quem não existe o impossível, e
quando coloca algum objetivo na cabeça, pode-se ter certeza
que ele se transformará rapidamente em realidade, e este
objetivo de um dia voar de verdade acabaram por se realizar
na esfera da vertiginosa carreira política da voadora que foi
simplesmente lançada aos céus pelos seus eleitores:
-Eu contava pras pessoas que eu voava e elas me
mandavam pro diabo. Que vai voar nada, hoje ela sabe que
aqueles sonhos do passado se realizaram.
Ela lembra de seus vôos passados, dos seus passeios
de bicicleta, pedalando no ar que nem o “ET”, o simpático
alienígena de Spielberg, lembra das pedaladas pelas noites de
lua cheia, quando via a sua imagem sendo projetada pelos
campos de Campo Largo, se via pedalando, indo embora,
voando, pedalando, montada em um cavalo, vaqueira de um
Arizona Paranaense voando pelos mistérios e milagres do céu.
Mas, nem tudo era sonho, poesia e luzes vindas da mão
divina, a nossa querida Latinha que viajava para lugares tão
distantes, também tinha seus pesadelos e naquela época, ela
via muitas coisa durante as intermináveis noites que passou em
seu refugio. Ela via pequenas luzes que acendiam e depois
apagavam, tinha muito medo porque achava que eram “visage”.
Estas sombras e riscos luminosos, que arrebentavam num clarão
em plena noite, poderiam ser de almas penadas que estariam a
busca de alguma coisa perdida. No entanto, por maior que
fosse seu receio, ela sempre preferiu imaginar que um clarão

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de luz só pode ser do bem e Latinha hoje percebe que estes
clarões eram anjos lhe apontando a caminho a ser seguido.
Caminho do qual ela quase refugou por culpa de sua
irmã mais velha, que na loucura da sua juventude decidiu em
combinação com um rapaz, um moreninho morador do bairro
Bugre, fugir de casa. Para o empreendimento de tal aventura,
Maria estava ávida em obter alguma importância em dinheiro,
e nesta loucura de fugir, ela não pensou duas vezes e acabou
por vender toda a produção de milho que Seu Vadislau tinha
sido colhido na semana, não satisfeita com o resultado auferido,
ela ainda tentou vender a irmã mais nova para um outro rapaz,
um polaco morador das redondezas.
A desajuizada menina havia planejado tudo direitinho,
durante a tarde, longe dos olhos do pai, ela tinha arrumado as
trouxas de roupa dela e da irmã e escondido no meio do mato
próximo a casa. No início da noite, Maria, que tinha tudo
planejadinho, pediu licença ao pai para sair junto com a irmã
para irem vender as rifas de uma bicicleta que elas estavam
rifando com o objetivo de ganhar algum dinheiro. Seu Vadislau
não vendo nenhum inconveniente no passeio já estava
concedendo a licença, quando Latinha, sabedora dos planos
da irmã, de levá-la juntamente nesta louca aventura de fuga,
foi tomada pelo pânico e não restando a ela nenhuma alternativa
de tentar evitar o seu envolvimento em tão bizarra experiência,
a pequena menina resolveu contar para o pai os planos da irmã:-
Pai. Eu não vou não, porque a Maria quer me tirar de casa, ela
vendeu o milho, pegou as minhas roupas e quer me vender pra
um rapaz.
Seu Vadislau ao ouvir o relato da Terezinha não teve
outro remédio a não ser aplicar uma sonora surra na filha mais
velha. Este fato acarretou o nascimento de uma grande
inimizade com a irmã, que se tornou ainda mais implicante
com a Tereza, se tornando uma inimiga poderosa que através

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de seu instinto perverso, procurava por todos os meios alijar a
vida da menina pelo resto do tempo que ainda continuou a
morar no Dom Rodrigo.
Porém, esta inimizade de Maria já vinha de longa data,
e o motivo de tamanha discórdia era a disputa pela atenção do
formoso Chico, o futuro esposo da Latinha, um belo rapaz e
muito namorador, que já tinha se engraçado com a Eva, e depois
chegou a namorar algum tempo com a Maria, e naquela época
já começava a se interessar mais substancialmente pela futura
esposa, tinha se tornado uma pessoa familiar, tendo freqüentado
a casa dos Novak por muito tempo, mas embora estes
relacionamentos com as duas irmãs mais velhas, um
relacionamento na verdade meio infantil, foi pela menina que
tinha carregado no colo que o seu coração se entregou causando
um ciúme no coração da Maria, que nunca perdoou a sua irmã.
Chico que já percebia o quanto gostava da pequena
Latinha, resolveu para evitar envolvimento maior com a Maria,
uma mulher perigosamente apaixonada, sair do Dom Rodrigo
e ir foi trabalhar fora. Durante esta fuga planejada, no entanto,
o seu pensamento estava na casinha lá dos “Matos”, e a saudade
bateu mais forte e depois de poucos meses deste exílio
voluntário, ele voltou para Don Rodrigo para se entregar seu
coração ao destino que há muito já estava traçado. Chico, que
como já vimos era cinco anos mais velho que a adolescente
Tereza, assim que chegou de volta a procurou declarando o
seu amor verdadeiro, iniciou o namoro que acabou por se
concretizar numa união, que embora as dificuldades, já dura
quase quarenta anos, e pode servir de exemplo para uma
geração que ao primeiro problema que encontram na vida a
dois acabam por se separar e evitar uma solução conjunta. Para
Tereza, o que Deus uniu o homem não pode separar. Tereza
casou com Seu Francisco Felício de Moraes após quatro anos
de namoro, casou com o menino que era seu vizinho e que

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dela cuidou quando menina, lembrando os versos de uma musica
que fala:
“Te carreguei no colo, menina, cantei pra ti dormir10.”
Esta união legitimada por Deus se fortificou e frutificou
na figura do nascimento de seis filhos, dos quais infelizmente
apenas três sobreviveram a uma fragilidade do sistema publico
de Saúde, que na época era ainda pior que hoje em dia. Esta
perda acontecida na vida da vereadora tem uma grande
importância em sua luta pela diminuição da mortandade infantil,
ela está sempre visitando os postos médicos e buscando a oferta
de medicamentos para a população pobre, pois só quem sofreu
na própria pele a dor do parto e a dor da perda pode saber
como é triste o fato que um grande numero de crianças não
chegavam a alcançar o primeiro ano de vida por culpa única e
exclusiva dos políticos que comandam a nação.
Fazem parte desta triste estatística os três queridos
filhinhos da Dona Tereza, o primogênito que nasceu com
problema de sopro no coração, e esteve de passagem pela vida
da menina sonhadora de Dom Rodrigo por apenas seis meses,
Edson João, que nasceu com paralisia cerebral, e Ivonete, que
teve o seu parto feito pela parteira, dona Judite, que acabou
por machucar a criança, quebrando as suas perninhas,
acarretando a morte da criança com onze dias. Tereza com os
olhos anuviados, como se ainda pudesse ver os bracinhos da
criança, confidencia:
-Ela já estava até com mal cheiro.
Mas, esta mulher que mostra a vitalidade de uma Joana
D’Arc, que luta com as próprias garras, que demonstra uma
inolvidável vontade de vida e de amor conseguiu, contra todos
os mais otimistas prognósticos, criar com muito carinho e
dedicação a Márcia, a filha sobrevivente mais velha, que lhe
presenteou com dois netinhos; Adão, hoje em dia com 24 anos
e Eva, a querida filha caçula.

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Mas, esta vida que muitas vezes é sinônimo de dor,
ainda não tinha se contentado com as peças que tinha pregado
naquela alminha que vivia pelas trilhas da sucata, pelos caminhos
esquecidos da Cidade da Porcelana. Esta verdadeira cidadã do
mundo um dia notou que o pequeno Adão apresentava algumas
características estranhas, e rapidamente acabou por perceber
que aquele querido nenê tinha nascido com problemas físicos e
mentais. Mais uma vez, o temperamento decisivo de Latinha
se pos a frente do problema e cuidou do menino com a mesma
alegria que dava para as duas meninas e hoje o rapaz apesar de
as vezes possuir um comportamento extremamente agressivo,
consegue ter uma vida de carinho e compreensão.
Uma vida de carinho e compreensão que Tereza nunca
se negou a ofertar àquela criaturinha indefesa que devido aos
problemas de saúde, acordava durante a noite, causando uma
enorme aflição à jovem mãe, pois nestes caminhos de agruras,
ela tinha descoberto pouco depois do casamento que o seu
galã, o seu homem, aquele que a tinha carregado no colo, o
seu amado marido tinha assim como o seu pai problemas de
alcoolismo.
Chico dormia após um mergulho meio suicida numa
garrafa de cachaça, e se fosse acordado pelo choro da criança
enferma, acordava muito alterado, esbravejando e colocando
pânico nas crianças. Por este motivo, Latinha, em sua doce
profissão de mãe, buscava agradar de todas as maneiras o filho.
Hoje ela diz que apesar do pequeno Adão ficar tão mimado e
deste ser o possível motivo de suas agressividades, diz que
faria tudo outra vez. O seu amoroso coração de mãe está sempre
pronto para perdoar, perdoar o fato de que o filho não atende
a seus pedidos, mas que apesar de tudo, respeita o pai.
Este coração de mãe que continua a cuidar ainda hoje
da filha caçula Eva que esta tendo dificuldades financeiras por
causa de um acidente. Na verdade, Eva, mãe de três dos cinco

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netos, o Marcio, a Camila, a Luana, o Carlinhos e a Taiane,
não é a única dependente do apoio moral e financeiro da mãe,
porque ela também prove o sustento do filho e do marido que
embora ainda jovem, com 55 anos, devido aos tragos da
juventude encontrou os estragos na maturidade e já não se
encontra em condições de trabalhar. Um homem bonito e forte
que era capaz de puxar o arado por todo um dia de sol, mas
que ainda moço, como muitos outros que viveram e morreram
neste pedaço de terra roxa e brasileira que é o Estado do Paraná,
se viu acabado pelos amargos e demasiados tragos.

Capítulo 2. O caminho das latinhas

Foi um pouco antes do casamento, que Tereza na época


com vinte e uma primaveras juntamente com o futuro marido
resolveram tentar a sorte na grande cidade. Esta mudança dos
“Matos” para um grande centro foi no inicio da vida de casada
da “Latinha” um tanto quanto triste. Ela e o Chico se
empregaram numa fabrica de louças chamada Schimidt, uma
importante empresa empregadora na região de Campo Largo.
Tereza e o seu príncipe encantado começaram a
trabalhar neste emprego, emprego que seria o único “de carteira
assinada” que ela teve na vida, emprego que logo lhe foi
usurpado pela incongruência da vida. Após pouco tempo de
labuta, a recém casada menina dando ouvidos ao seu brio moral,
acabou por pedir demissão devido a uma briga com outra
funcionaria.
A briga em questão se deu pelo fato que a sempre muito
dedicada menina, dava grande valor ao trabalho, o que a fazia
muito responsável pelos seus diversos afazeres que lhes eram
atribuídos, tais como o estampo de asinhas para as xícaras,
que Tereza conta não dando conta que seus olhinhos de
passarinho se obscureceram, que estas asinhas eram obtidas

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através do preenchimento com massa de porcelana ou cerâmica
de uma forma com o formato da “asa”, esta forma, explica ela,
é igual àquelas de fazer “geladinhos”, depois de modeladas, os
moldes eram levados para o difícil trabalho de cozimento junto
ao forno.
Outras tarefas designadas para ela e que eram
desempenhadas com vigor diziam respeito às operações de
“raspadura”, ou seja, tirar as farpas que ficavam nas junções
dos moldes, a retirada das placas de xícaras do forno, e ainda o
próprio trabalho de limpeza geral da fábrica.
Enquanto ela se ocupava com xícaras e moldes, o futuro
marido trabalhava como ajudante de motorista na dura tarefa
de “puxar” lenha do mato, e apesar de trabalharem na mesma
empresa, ao invés de ficar cuidando dos passos do belo marido,
a operaria se preocupava somente em cuidar para fazer da forma
mais eficiente os seus diversos afazeres na linha. Tereza, a moça
bonita de olhos de sabiá era muito trabalhadora não conhecia
o significado da palavra ciúme; e sem nenhuma maldade deixava
para o mundo “lá fora” os momentos de amor e carinho, com
aquele que havia conquistado o seu coração.
Acontece, que esta malvada vida madrasta sempre
encontrou ocasião para atazanar a vida da nossa passarinha e
numa certa ocasião, uma nova funcionária, sobrinha de uma
antiga trabalhadora da fabrica, foi contratada pela empresa e
alocada para trabalhar na mesma seção de Tereza.
A nova operaria, cujo nome era Lourdes, já nas primeiras
voltas que o relógio de ponto tinha dado, fez questão de
confidenciar para a tia, operaria como ela, que ela tinha um
namorado que já trabalhava na empresa, o belo Chico. A tia,
que conhecia muito bem o casal vindo do Dom Rodrigo,
estranhou a historia e achou melhor repassá-la para Tereza, e
assim na primeira oportunidade, ao encontrá-la no horário do
café, se achegou sorrateiramente da esposa do Chico e

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confidenciou-lhe que a sua sobrinha andava falando aos quatro
ventos que era namorada do Chico, que gostava muito dele e
ele dela e que ela faria qualquer coisa na vida para ficar com
ele. A mulher, na verdade ainda uma menina, a nossa futura
poetiza das latinhas, ficou um tanto quanto indignada ao ouvir
tal relato, mas que apesar de muito nova, ao invés de criar um
baita bafafá preferiu através de sua já costumeira calma e
sabedoria, pensar com calma:
-Mas, não é possível. Mas se for verdade e ela quiser
ser a namorada do Chico, eu vou terminar com ele, mas como
é que eu devo fazer?
Passados alguns dias, num dia de trabalho normal, a
diretora da empresa, Dona Irmã, pediu para ela, que era uma
funcionaria exemplar, para que cuidasse do pessoal da seção,
uma vez que a coordenadora do setor tinha faltado.
Ao cobrir a falta da coordenadora, Latinha ensinou para
as novatas que tinham sido recém contratadas a localização do
banheiro, controlou as idas e vindas para o intervalo e acabou
por se aproximar da operaria que competia pelo seu amor.
Assim, naquele quase final de manhã de um dia lindo de inverno,
quando a sirena anunciou a chegada da hora do almoço, ela
saiu para o pátio que dava para o refeitório da empresa, saiu
caminhando junto com a tal de Lourdes, quando que de repente
notou o namorado mais lá na frente e Lourdes apontando para
o Chico, falou para a Latinha que aquele rapaz de olhos claros
era o seu namorado. Latinha engoliu em seco, ficou calada,
não ia entrar no jogo da rival que ao cutucá-la buscava enervar
a jovem menina que sonhava com o casamento que vinha tão
próximo, fazendo com que a mesma perdesse as estribeiras.
Tequinha chegou em casa sem nada mencionar para o
futuro marido, esquentou a bóia noturna e se pos a pensar no
“como resolver aquela situação”. No dia seguinte, a moça tão
controlada, mas já cansada com toda aquela ladainha, mostrou

39
para a rival a que ponto poderia chegar na busca da verdade.
Verdade que para Dona Latinha, não só é a maior das
qualidades, mas também, o grande princípio que devemos seguir
cegamente tenha a conseqüência que tiver.
A solução veio através da idéia de ir para a fabrica
armada com uma navalha, daquelas que antigamente e
raramente hoje são usadas para o corte de cabelo ou da barba.
Foi com esta navalha, que Tereza possui até hoje, que ela
procurou a Lourdes na hora do almoço. Ao sair com a mentirosa
garota para o pátio, ela mostrou a navalha que levava por
debaixo do avental e a ameaçou, ordenado que a mesma fosse
chamar o Chico e que em sua presença confirmasse tudo aquilo
que a marota andava falando. A garota a princípio recusou-se,
mas percebendo que a Tereza não estava brincando e que se
ela prontamente não chamasse o rapaz acabaria por ser
degolada, lá se foi atrás do príncipe encantado.
Lourdes chamou o Chico, que chegou meio sem saber
o que acontecia, para a presença das duas. Latinha relatou os
fatos que Lourdes vinha contando aos quatros ventos sobre o
seu envolvimento como o rapaz, que ele era seu namorado,
blá, blá, blá... Chico ao ouvir tais absurdos, com os seus olhos
claros injetados de uma fúria repentina, não resistiu, e aplicou
uma violenta bofetada no rosto da falsa namorada, alertando-
a para que ela nunca mais contasse semelhante mentira, nem
para a sua querida futura esposa nem a quem quer que seja,
pois este tipo de mentira poderia gerar grandes problemas para
ele e sua mulher. Depois de desabafar e mais calmo, o jovem
ajudante beijou sua querida esposa na testa e uma vez que tinha
terminado o horário do almoço voltou ao trabalho.
As duas garotas também retornaram às suas atividades,
continuando a trabalhar na mesma seção, só que num primeiro
momento Lourdes evitava a todo custo se aproximar da
perigosa menina, fugindo da mesma como o diabo foge da cruz,

40
e nunca mais alguém ouviu a mentirosa e ladina operária falando
qualquer coisa, ou mesmo mencionando o nome do querido
Chico. Mas passados alguns dias Lourdes começou de uma
certa forma, a tentar se aproximar de Tereza, trazendo-lhe
biscoitos e outros agradinhos, e Tereza que além de ser muito
bem vista pela administração, por seu caráter integro e alegre,
tinha um enorme coração sempre pronto a perdoar fez as pazes
com a antiga rival.
Finalmente, após alguns meses que pareciam não mais
terminar, Tereza foi levada para o altar por Chico, mas como
eles não tinham nenhum tostãozinho para viajar, a sonhada lua
de mel durou só aquele dia. No dia seguinte quando o sol ainda
relutava a acordar, o casal de pombinhos já estava de volta ao
trabalho, o dia ia decorrendo preguiçoso como o sol daquela
manhã de inverno, Tequinha lidando com as asinhas das xícaras
e Chico no mato carregando lenha.
Mas, a alegria sempre dura pouco na vida da menina
das luzes e foi novamente no apitar da sirena chamando para o
almoço, que uma outra guria falou para a menina recém casada
que gostava do formoso Chico. Tequinha ainda com a lembrança
de sua boda nupcial, da benção obtida na frente de Deus, não
acreditou quando aquela guriazinha de uma forma provocante
e enfrentando-a lhe disse que aquele rapaz forte e formoso ia
ser seu marido. A nova desafiante contava com a ajuda de uma
amiga para buscar uma briga com a jovem senhora. Tereza
contou até dez e depois até mil para retomar a sua calma habitual
e com uma velha sabedoria presente numa mente tão jovem
conseguiu evitar uma briga, que sabia ela era um confronto
desnecessário, uma vez que Chico já era seu e o ambiente onde
trabalhava sempre foi para ela um lugar tão sagrado como um
templo religioso.
Lá estava Latinha raspando as beiradas das xícaras,
varrendo o pó de cerâmica do chão, mas lá também estava a

41
nova pedra no sapato de Tequinha, a garota a incomodando e
chamando para a briga, assim foi até que um dia, ela resolveu
procurar o encarregado para quem relatou o ocorrido. O
encarregado sabedor que era da fidelidade da menina com o
trabalho acolheu com muita atenção a queixa, prometendo-lhe
uma solução, já que conhecia bem a funcionaria, que Latinha
sempre tinha sido uma operaria direita, leal e muito esforçada,
diferentemente daquelas meninas que a estavam provocando,
que não queriam saber de nada, só gostavam de arrumar
confusão, e que eram a praga da seção, que eram quase umas
“vagabundas” e que ele a tempo estava esperando um momento
para demiti-las.
A idéia do encarregado para resolver o problema da
Tequinha foi armada através de uma operação nada
convencional. A estratégia era da menina atirar um jato d’água
a partir da mangueira com que as funcionárias adversárias
lavavam os jarros fabricados, ela pegaria a mangueira por um
breve instante e atiraria o jato d’água em suas costas quando
ele estivesse distraído. Como Latinha estaria neste momento
estampando as asinhas para as xícaras, a culpa recairia nas duas
outras gurias que estariam fazendo operações onde se utiliza
água para a lavagem dos jarros fabricados. No final daquele
mesmo turno, o encarregado se aproximou da linha de produção
e ficou de costas o tempo necessário para a inteligente menina
se apoderar por alguns segundos da mangueira da rival e lavar
as costas do rapaz que ao se virar para checar de onde viria
aquele jato encontrou as meninas briguentas com a mangueira
que tinham arrancado das mãos de Tequinha. A idéia foi um
sucesso e o encarregado se livrou das duas brigonas que
passavam o dia arrumando “tretas” com as outras funcionarias.
Mas se as situações que poderiam trazer um ciúme
doentio para Latinha foram por ela resolvidas de uma maneira
inteligente e sagaz, o inverso não foi verdadeiro e esta

42
embaraçada vida maracutaia que adora velar e esconder os
momentos de calma e felicidade da nobre vereadora acabou
por aprontar mais uma das suas brincadeiras, e Chico começou
a torturar a sua mulher por causa de um ciúme infundado, o
homem tinha ciúme de tudo e de todos. Era ciúme do
encarregado, do motorista, da própria sombra, ciúme que
acabou por levá-la a pedir demissão e deixar este emprego que
ela tanto amava para não criar problemas com o seu outro
amor.
Latinha saiu do emprego baixo a uma tristeza muito
grande do encarregado que a tinha como uma espécie de braço
direito, ou como se fala “um pau pra toda obra”, aquela moça
dos “Mato” não tinha boca para dizer não ou não sei, trabalho
duro ou delicado, tudo era feito com a mesma dedicação. Num
contraponto a esta total dedicação e vontade de vencer na vida
se encontrava Chico, que logo depois que a mulher saiu da
empresa, o ajudante de motorista acabou por ser despedido da
empresa, o seu encarregado não agüentava mais as suas
freqüentes faltas e sua pouca vontade de trabalhar.
O álcool aparecia novamente trazendo o seu cheiro
ácido e azedo para enjoar a vida da ex-operaria, Chico se
entregava cada vez mais à bebida, a cachaça que foi o principal
motivo para que ele perdesse vários dias de trabalho e acabasse
por perder o próprio emprego. As portas do trabalho formal e
razoavelmente remunerado acabavam de se fechar para o jovem
alcoólatra, ele e a sua jovem esposa que nunca mais obteriam
um emprego formal, nunca mais teriam uma carteira de trabalho
“assinada”, estavam no triste caminho da volta para os “Mato”,
num lugar denominado Itambézinho, localizado ainda além do
Taquaral, um local já bem distante da cidade.
Lá nos “Mato” a vida do casal se alterou um tanto,
com eles morando num pobrezinho rancho de pau a pique,
longe da cidade, convivendo com onças e “leão”, que muitas

43
vezes durante a noite chegavam mesmo a arranhar as paredes
de madeira do casebre, tudo isto num tempo em que ainda
existia bicho “brabo” na região. Era nesta região inóspita e
selvagem que muitas vezes a jovem senhora ficava esperando
pela volta do marido que tinha ido baldear lenha por alguma
outra região ou estava a se embebedar por algum boteco,
sempre distante desta moradia perdida na mata.
- Não sei se era bicho ou visage, mais às vezes a gente
via gente andando pelo meio do mato, bem próximo à casa, eu
levantava acendia a lamparina de querosene, saia lá fora e não
era nada.
Nesta proximidade com uma vida envolta pela Natureza,
Tereza em meio a esta solidão da mata, muitas vezes procurou
perceber a chegada do marido, olhando através das frestas das
paredes de madeira, pela luz da lua que aparecia entre as frestas
formadas por aquela floresta repleta de arvores e de imaginação.
Um raio acertava seu coração quando percebia uma
vida em meio àquela vegetação, àquela natureza morta, saía
correndo para na certeza do encontro se aproximar da fresta
de luz e finalmente na imensa decepção notar que não era o
seu amado Chico, não era nada não, era apenas uma
representação, uma “visage”. Tereza com um nó no coração
voltava para as suas amigas frestas, continuando a buscar a
figura do companheiro perdido, porem alerta com outras figuras
que queriam povoar a sua cabeça, pois só quem já viveu no
meio da floresta sabe que o pensamento sempre procura se
apresentar de uma maneira racional e busca separar o que é
natural do sobrenatural evitando assim a chegada da loucura.
Mas no meio dos “Mato” este pensamento nem sempre encontra
sua validade e muitas vezes parece que esta validade já está
vencida.
Dona Tereza passou por situações liminares entre a vida
e a morte, entre o natural e o sobrenatural, vivenciou situações

44
difíceis, ao encontrar gente que não era gente nesta floresta
misteriosa, nesta solidão premeditada misturada aos eflúvios
efeitos da cachaça, que ela também tinha começado a consumir,
que também a tinha dominado e que sem dúvida alguma
produziram o efeito de uma bomba psicológica com seus
diversos efeitos tal qual um caleidoscópio.
Aquela forte e solitária mulherzinha, cansada dos porres
intermináveis do seu marido e das agruras que a vida lhe
proporcionada tinha sido vencida por Dionísio, o rei da
embriaguez tinha se mostrado como um vislumbre, como uma
forma de desfazer todo este sofrimento da vida, proporcionando
a ela uma fuga para um lugar sem formas e sem angustia, sem
amargura. No entanto, aquela mulher, ainda uma menina, que
tinha sido abençoada pela estrela rascante, que tinha todo um
futuro brilhante como a luz desta estrela, estava deixando o
barquinho da sua vida naufragar nas promessas mentirosas da
embriaguez, nos ideais que por uma época eram fatídicos e
que agora se apresentavam e logo se escondiam por debaixo
da tampinha metálica da cachaça, garrafa que o vício e o medo
sobre-humano que aquela fonte de esquecimento pudesse faltar,
faziam com que a menina alcoólatra a enterrasse debaixo da
terra evitando que o marido a encontrasse. E neste enterro,
para bem baixo da terra se foi também todo um sonho, toda
uma vida. Toda a luz da estrela rascante ficaria encoberta pelo
manto alcoólico de um marido presente somente através de
seu hálito azedo da bebida, e toda a sua pureza seria coberta
pelos vergões e machucaduras provenientes das surras
constantes que o outrora bondoso Chico dava na sua jovem
mulher.
Dionísio tanto fez que quase conseguiu colocar por terra
aquela estrela, que apesar de encoberta, insistia em brilhar no
mais alto do céu, bem acima do manto da embriaguez, bem
encima da cabeça desta mulher sofredora. Mas Dionísio não

45
conseguiu seu intento porque apesar das bebedeiras e das surras,
ela com a luz da estrela que iluminava a sua alma, continuava a
perdoar o marido, um garoto perdido nas malhas do alcoolismo,
continuava a perdoar todos aqueles amigos de cachaça do seu
marido, perdoava a vida em seu insistente caminho de tristeza
e desesperança e perdoava principalmente a si própria, sabedora
e consciente da nossa condição humana, que na maioria das
vezes é impregnada pelo erro.
Mas as rodas ovais da carruagem da sua vida
continuavam no seu rodar saltitante e inebriado, carruagem
que na verdade, nem de carroça velha podemos chamar, uma
vez que a nossa Cinderela de Campo Largo, tinha todos os
motivos para querer abandonar de vez esta vida doída. Uma
existência que a partir da assunção de Dionísio como a solução
para as dores do mundo, tinha obrigado a esta carroça a rumar
por um caminho frenético de ir e vir, de uma rota daqui pra ali,
de acolá pra cá, tocando os cavalinhos desta vida errante num
movimento tonto, tortuoso e torturante. O fato é que a menina
Tereza e o marido ao adotarem o malvado “mé” como fonte
inesgotável de esquecimento e de alegria, tinham abandonado
a casinha do Itambézinho e viviam pra lá e pra cá como
maltrapilhos fazendo com que os jovens andarilhos acabassem
por perder as contas de quantas idas e vindas aconteceram
entre os “Mato” e a cidade, de quantas palhoças e casas de pau
a pique habitaram, de quantas fugas noturnas eles foram
obrigados a fazer para se livrarem do pagamento de aluguéis
atrasados.
E assim foi a carroça de suas vidas aos trancos e
barrancos sendo levada, carroça que os levou por mais de trinta
mudanças durante os oito anos que se separaram até a vinda
para o bairro onde mora atualmente, o bairro do Itaboa. Uma
carroça que não conheceu nenhuma parada duradoura e que

46
nunca permaneceu mais do que quatro meses em uma
localidade.
-Assim que descobriam que nós não pagávamos aluguel,
éramos obrigados a nos mudar.
Nesta época de uma diáspora sem fim, o pouco dinheiro
que era ganho por Chico nos pequenos trabalhos que fazia, era
imediatamente canalizado para os bares e altares etílicos. As
dividas contraídas na compra de alimentos, as coisas básicas e
o valor do aluguel nunca eram prioridade e ficavam sem serem
pagas.
Mas como miséria pouca, como diz o senso comum, é
bobagem, a vida se apressou a aprontar mais uma de suas
trapaças e a medida, que a memória etílica de Tereza na época
permite ela lembra que sete anos depois do casamento, numa
destas idas e vindas incessantes, ela, seu marido e Márcia, que
tinha acabado de nascer estavam morando no Taquaral, num
local do interior, porém mais próximo da cidade de Campo
Largo. Era um momento em que as coisas começavam a se
refazer, e que com o nascimento da criança, movido por novas
responsabilidades o já homem maduro Chico estava se
restabelecendo, evitando beber e conseqüentemente
abandonando os porres homéricos, trabalhando árdua e
duramente baldeando lenha. Porém entre as árvores das quais
Chico trabalhava, a vida tecia mais um véu de amargura e ao
combinar esta dura labuta em meio a floresta, esta esgotante e
estafante tarefa de carregar pesadas toras de madeira, com um
organismo que apesar de jovem já se encontrava debilitado
pela bebida, esta vida sem qualquer ressentimento acabou por
ocasionar para o jovem pai um sério problema de trombose e
de coluna.
Tereza tinha agora um marido doente, um homem que
não podia garantir o sustento nem dele próprio e muito menos
da sua família, e foi entre outras tantas vindas e idas que

47
finalmente, Tereza com mais dois filhos que nasceram nestes
caminhos da região da Cerâmica foi morar no Itaboa, a jovem
mãe ciente da necessidade de arrumar o sustento para toda
família, com um marido adoentado, um filho com problemas e
ainda duas meninas, começou a procurar trabalho nas casas de
família e para poder exercer a sua labuta colocou a sua filha
caçula Eva, uma bonita menina de apenas um aninho de idade
numa creche, enquanto Márcia ficava em casa cuidando do pai
enfermo e do irmão.
Tereza trabalhava diariamente como diarista na casa de
algumas famílias, mas o clarão da estrela que estivera apagado
por tanto tempo voltava a brilhar fortemente naquela festa de
final do ano na creche onde Eva freqüentava. Os professores
da creche queriam presentear as mães das crianças, a maioria
delas muito pobrezinhas, e por este motivo perguntaram para
elas, o que gostariam de ganhar de presente de natal. A maioria
das mães, preocupadas somente com o dia a dia, optou por
receber de presente cestas básicas, com artigos típicos de natal
como panetones, uvas passas, etc, mas a menina da estrela
rascante, ao invés de buscar saciar sua fome presente, num
lampejo de sabedoria e sonhando com a possibilidade de ganhar
um bom dinheiro para a sua família como jardineira,
conscientemente pediu de presente uma maquina de cortar
grama. Ela contou para os seus amigos professores de seu
imenso sonho de possuir uma maquina de cortar grama, que
serviria para que ela conseguisse ganhar um soma em dinheiro
para as necessidades básicas de sua família.
A futura jardineira já sabia na época que é mais
importante que doemos a vara e o anzol e ensinamos a pescar
do dar tão somente o peixe, e pelo fato dela, além dela ter
solicitado um pedido tão nobre, ser uma assídua voluntária
nos trabalhos de distribuição de refeições e apoio à creche, os
professores cotizaram-se e conseguiram comprar o sonhado

48
equipamento para ela. Este presente que ela guarda até hoje
faz com que ela esteja sempre ao lado dos professores em suas
reivindicações, pois a atual Latinha sabe como ninguém a
importância dos mesmos para a educação e formação de toda
uma nação brasileira.
No dia da festa da creche, Tereza não só recebeu a
maquina de cortar grama, como também uma bacia para dar
banho nas crianças, artefato que ela apesar dos filhos pequenos
ainda não tinha tido oportunidade financeira de comprar. Logo
após a festa, a alegre Tereza já começou a trabalhar na sua
nova profissão e como trabalhava duramente e com muito amor,
ela era muito requisitada para os serviços de jardinagem, sendo
que na vila das Águas Claras ela era responsável por quase
todos os jardins. Assim, em pouco tempo, a esforçada jardineira
conseguiu a custa de sua nova profissão ganhar o sustento da
sua família.
O dinheiro obtido em seu trabalho de jardinagem que
possibilitou o início de uma nova vida não foi, no entanto,
suficiente para apagar as maculas no coração tão machucado
da jardineira e quem lhe veio perguntar sobre a sua tristeza - O
jardineira porque estás tão triste?- não foi um folião e sim o
nosso temível vilão, deus da cachaça, Dionísio que a entregou
novamente, sem dó e nem piedade aos braços da “marvada”.
Era a “marvada” que a esperava em todo fim de tarde
para acariciá-la com o seu odor enamorado e moribundo,
esperava na prateleira de alguma vendinha a espreita da sua
vitima que inocentemente todo final de dia, antes de ir para
casa a ela se abraçava, um litro de pinga embaixo de cada braços,
um que era colocado encima da mesa da pequena casa e outro
que era escondido em algum esconderijo, a paranóia de que a
panacéia alcoólica pudesse escapar pelas frestas das paredes
de madeira.
-Eu era pinguça mesmo, não tenho vergonha de contar.

49
Latinha, na sua incessante vontade de verdade, não tem
vergonha de confessar que bebeu até vinte anos atrás, e só
conseguiu se desvencilhar dos braços de Dionísio quando a
estrela rascante, esta luz divina que sempre a acompanhou, e
que por muitas vezes ela não quis enxergar, resolveu de uma
vez por todas pairar feito uma aureola sobre o seu coração,
resolveu brilhar com mais intensidade dentro da sua cabeça e a
forçou a largar a má companhia que Dionísio lhe ofertava.
Aquela imensa luz que agora dominava todo o seu ser, que
corria como sangue por suas veias, a direcionou para o encontro
de uma forma totalmente inusitada com a garrafa de cachaça,
a luz comandou os movimentos da “antiga pinguça” fazendo-
a pegar um litro que estava ainda de cachaça e encher um copo
até a boca, este comando se repetiu até que não sobrasse uma
só gota dentro da garrafa. Ao beber o ultimo gole que restava,
Latinha já não conseguir mais reter a ânsia de vomito e desta
forma vomitou toda a gosmenta cachaça para dentro do copo,
a luz interior não se fez de rogada e a obrigou a beber aquela
gosma vomitada, que voltou sucessivamente ao copo, cada
vez mais repugnante, e que novamente foi bebida.
Durante esta verdadeira sessão de exorcismo alcoólico,
enquanto impelida por aquela divina força que fazia com que
ela repetisse a operação por diversas vezes, Tereza xingava,
dizia nomes infames, falava como se estivesse expulsando o
diabo do alcoolismo do seu corpo. Passados breves momentos,
que para a antiga pinguça pareceram uma eternidade, ela não
mais resistindo ao cheiro e odor daquele copo coberto de
náusea, caiu num sono tranqüilo e profundo. A partir do dia
seguinte, uma nova era acontecia para a menina das estrelas
que tinha dominado Dionísio e nunca mais na sua vida ela
haveria de se embriagar, mesmo convivendo com um marido,
que não muito raramente chegava bêbado em casa e que por
diversas vezes não acreditando na força da sua companheira

50
que tinha exorcizado o demônio da bebida, ficava atentando a
corajosa mulher mostrando-lhe um copo com pinga, sendo que
numa destas noites em que Chico chegou “coalhado” em casa,
ele queria porque queria que Tereza tomasse um gole e pegando
uma caneca cheia de aguardente quis fazê-la a beber a força, e
como a assustada mulher se negou, começou a surrá-la, mas
qual não foi a sua surpresa ao sentir a reação da doce Tereza,
que depois de tanto sofrimento para sair deste maldito vicio e,
portanto, certa de que o melhor caminho era ficar longe do
mesmo, agarrou os cabelos do marido, e aplicou um sem
numero de tapas em seu traseiro.
Foi uma verdadeira e sonora surra, que fez com que ele
percebesse a desistência de Latinha para com aquele antigo
vício, se ele quisesse continuar a beber, que bebesse pois daquele
jeito a sua vida não ia durar muito tempo.
Chico, surpreso com a reação daquela mulher, que
sempre tinha sido tão submissa, acabou por pedir ajuda a esposa
para deixar a bebida, o que foi conseguido através de seu
internamento numa clinica para dependentes. Assim, a luz que
brilhou para Tequinha acabou por se refratar pelo coração do
doce Chico quer já está sem beber a mais de doze anos, e ainda
que as tenham ficado algumas seqüelas que o impedem de
trabalhar, sem a ajuda da sua corajosa mulherzinha e a sua
devoção à luz divina, que é Deus, ele já teria se despedido
desta vida carroça, e não teria tido a possibilidade de ver a
nossa querida “Gata Borralheira” se transformar na queridinha
da imprensa e dos vereadores do Paraná.
Este “velho” rapaz catador de lenha, que ainda muito
moço, no apogeu de seus quinze anos de idade foi obrigado
com a morte prematura de seu pai a assumir a responsabilidade
de prover o sustento para os irmãos menores e para mãe, não
estaria vivo para ler nas paginas do jornal a reportagem da
eleição de Latinha como melhor vereadora da cidade de Campo

51
Largo em 2005, pois a sua vida dolorida foi quase exterminada
pela cachaça, e ele teve muita sorte em possuir uma mulher de
valor como é a estrelada Tereza, uma mulher que sofreu na
vida quase como o que Jesus sofreu em seu calvário, mas que
apesar desta vida calvário, continua na sua luta diária, tentando
aplicar e mostrar os valores morais, que hoje dia estão tão em
desuso, valores como a honestidade, o trabalho, o amor, mas
não somente o amor pela família, mas também pelo próximo,
por toda uma humanidade e pela natureza, um amor que
somente as pessoas que acreditam em Jesus Cristo podem ter.
Um amor que frente a um combalido marido, que de uma certa
forma, até a carroça da vida perdeu e que agora na falta do que
construir e que em tudo busca um defeito numa atitude inútil e
desoladora, se mostra ainda mais singelo e pulsante. Um amor
que ao olhar o marido em sua crítica sem fim, ao olhar para
este pobre homem que acha que tudo está errado e que a vida
nada vale e que não vale a pena ser vivida, tem a mesma
paciência de um monge budista e vai tentando lentamente
desvelar para ele os segredos de uma vida que apesar de
dolorosa pode nos dar grandes alegrias se observarmos aquela
luz que está dentro de nós, e que as vezes está fraquinha, mas
apesar de fraca, ninguém pode apagar.
Ninguém podia apagar a reavivada chama da alegria
dos olhinhos de sabiá da reavivada jardineira, que agora liberta
das agruras da bebida, estava cada vez mais animada a alegrar
os jardins de Águas Claras, e nem mesmo a crise econômica
que abalou a classe media e fez com que eles cortassem não a
grama do jardim, mas sim gastos chamados supérfluos como é
o corte da grama, conseguiu entristecer a nossa Tereza. A classe
média não tendo grana, e ela não tendo grama para cortar,
optou como fizeram milhares de brasileiros e passou a coletar
latinhas para vender.

52
Tereza agora ingressava num exército de
aproximadamente cento e sessenta mil pessoas que viviam
exclusivamente da coleta de latas de alumínio e que segundo
dados da Abralatas 11, forma responsáveis em 2003 pela
reciclagem de quase noventa por cento das latas
comercializadas. Ao ingressar neste exército, Latinha tomou
consciência de como as classes dominantes desperdiçam
materiais, objetos e alimentos e que este desperdício que poderia
ser tão bem utilizado por outras camadas sociais acabam por
acarretar problemas para sua dissolução nos aterros públicos.
Aterros que acabam por se transformar em verdadeiros
postos de trabalho e de disseminação de doenças para os
catadores que vem atrás deste dinheiro que vem do lixo. A
atual vereadora ainda lembra e se relaciona intimamente com
estes homens, mulheres e crianças que trabalham no lixão, um
trabalho inserido numa realidade surrealista para quem vive do
lado de cá dos portões da pobreza. Estas pessoas passam o dia
inteiro dentro do lixo na busca pelo sustento, e apesar de muitos
terem uma profissão, já estão a tanto tempo desempregados
que perderam a esperança de um emprego formal. Esta
desesperança aparece na fala de Almir Lima dos Santos, um
catador de quarenta e dois anos da região de Olinda em
Pernambuco: “Não vou morrer de fome e do jeito que está a
gente tem que dançar conforme a gravação12”
Dança que assim como Almir, Tereza iniciava
diariamente às cinco da manhã, caminhando de sua casa no
Itaboa até o centro da cidade, onde tomava um fôlego para
uma nova caminhada, desta vez até o bairro Popular Novo. Lá
chegava por volta das nove horas da manhã e imediatamente
começava o trabalho de garimpo no meio dos sacos de lixos
colocados pelas donas de casas e suas empregadas para que os
caminhões da prefeitura os recolhessem. Este extenuante
trabalho de garimpo se estendia até as três horas da tarde, com
53
uma breve pausa para o almoço, isto é, se alguma alma caridosa
o ofertasse.
Este duro trabalho de garimpo se estendendo por um
quase todo um dia e esta disputa desenfreada contra os
“caminhões” da Prefeitura, mostram bem, o quadro desolador
e triste da realidade brasileira. Uma realidade que é quase única
de Norte a Sul, de Leste a Oeste, uma vida desprezada que é
semelhante para o catador de uma região rica como é ao Sul,
mas que se apresenta o mesmo cenário na imagem da carroça
de Almir. Uma triste imagem deste ex-pedreiro e a sua disputa
em meio a uma roda viva dos catadores que ao avistar um
caminhão de lixo se lançam num bailado frenético para
selecionar o material que pode oferecer uma maior
rentabilidade. É nesta luta pelo luxo de pegar o lixo, de obter o
alumínio, o vidro, o plástico e o cobre, é nesta dificuldade de
consegui-lo que a ex-catadora Tereza, apesar de tão diferente,
muito se assemelhava deste Almir nordestino, os dois tinham
que dançar muito para obter o luxo do lixo. Uma semelhança
que se faz notar através dos sonhos, que se de um lado foram
realizados por Tereza, parecem que nunca encontraram um
porto seguro na vida do pobre catador nordestino. Mas mesmo
assim, Almir ainda tem muitos sonhos, e o principal deles é sair
do lixão, deixar este trabalho de coleta, que ele assim como a
nobre vereadora, evita levar seus filhos. Mas que contrariamente
a Tereza, acabou por ser obrigado a encarar a triste face da
realidade, uma vez que a sua filha mais velha, sem ter recursos
para uma vida melhor, mora num barraco dentro deste mesmo
lixão, com os filhos, os queridos netos que Almir não queria
ver nesta situação. Neste lixão, local de seu trabalho, a sua
filha busca a sobrevivência como catadora, seguindo a mesma
sina do pai, a de correr atrás do lixo13.

54
A nova fase da vida de Tereza se mostra ainda mais
cruel, com muitas das donas de casa evitando que ela garimpasse
o lixo de suas casas. Estas mulheres imbuídas de uma maldade
que não se pode considerar como normal, usavam das
estratégias mais mesquinhas para não possibilitar a coleta do
lixo reciclável pela Dona Latinha, elas esperavam até a última
hora para colocar a lixo na rua, fazendo que não houvesse
tempo de se pesquisar este lixo antes do recolhimento por parte
dos caminhões. Algumas chegavam a brigar com a Dona
Latinha, quando a surpreendiam remexendo no lixo caseiro,
nestas oportunidades a catadora pegava rapidamente as latinhas
e saia correndo com medo das ameaçadoras “vassouradas” que
estas verdadeiras bruxas prometiam lhe acertar.
Desta forma, apesar da importância desta coleta e
posterior reciclagem, não só por seus aspectos ecológicos ou
de uma postura politicamente correta, mas também pela incrível
economia dos custos de produção efetuados pelas empresas,
que assim aumentam consideravelmente os seus resultados ao
baixar os custos com a energia elétrica, com a matéria-prima e
com a mão-de-obra, este “boom” da reciclagem nas grandes
cidades brasileiras não se refletiu num desenvolvimento para
os catadores.
Os catadores são os grandes responsáveis por esta
incrível economia de energia elétrica na produção de latinhas,
que muitas vezes gira acima dos noventa e cinco por cento, ou
para se ter uma breve idéia, uma economia de energia suficiente
para se manter uma televisão ligada por três horas a partir da
reciclagem de uma única latinha de alumínio, ou ainda que se
evite na produção de um único quilo de alumínio a retirada de
aproximadamente cinco quilos de bauxita - o minério que
produz o alumínio - do subsolo. Acontece, porém, que ao invés
de se reconhecer esta atividade como digna e mesmo essencial
para a conservação do meio ambiente, os catadores são
55
totalmente discriminados, e sofrem todo tipo de estigma e
preconceito por parte da sociedade que os vê como marginais
e ladrões.
Uma sociedade que está baseada numa tradição
ocidental que se desenvolveu fazendo uma divisão entre o
homem, ou seja, a cultura num contraponto com a natureza,
numa tradição que fundou o completo domínio do homem sobre
toda a Natureza, uma Natureza que foi posta em suas mãos
para servi-lo e que aparece claramente neste trecho da Gênesis:
“Tremam e tremam em vossa presença todos os animais da
terra, todas as aves do céu, e tudo que tem vida e movimento
na terra. Em vossas mãos pus todos os peixes do mar. Sustentai-
vos de tudo o que tem vida e movimento”14.
Este “direito humano” sobre a Natureza é a primeira
grande causa da catástrofe ambiental em que se encontra o
mundo atual, um direito cultural que se reserva a classificar
como bichos, todos aqueles que possuem uma maior sua
aproximação a mesma, fazendo com que os catadores, assim
como os índios e os negros, passem de uma certa forma a serem
reconhecidos como bicho, e daí para o reconhecimento como
escória e como lixo, é só mais um passo.
A maior parte da população não só não os valoriza,
como importantes agentes na cadeia de economia de energia e
preservação da natureza, como não lhes dão apoio,
considerando-os perigosos inimigos que estão a espreita para
executar um ataque fatal. Nenhuma palavra de estima a uma
jovem gestante, nenhum gesto de carinho para o menino que
ela traz nos braços, eles vem do lixo e, portanto é tudo bicho,
pois somente bicho vive no meio do lixo e o catador vive assim.
E foi assim, que Tereza aprendeu a driblar as donas de casa,
que maldosamente evitavam colocar o lixo antes dela passar.
Tereza aprendeu que para conseguir o valioso lixo tinha que

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passar uma primeira vez vagarosamente na porta da dona de
casa atenta com sua presença, logo após da sua passagem, a
mulher acreditando que Latinha já tinha ido embora, colocava
finalmente o saco de lixo no suporte. Latinha, percebendo que
o seu estratagema tinha dado certo, voltava sorrateiramente e
mergulhava avidamente neste verdadeiro tesouro, retirando
rapidamente as melhores coisas que estavam mais facilmente
ao seu alcance e sumia pelas ruas do bairro com aqueles
esplêndidos troféus em suas mãos.
“ Se eu não cato na primeira, cato na segunda”. O caro
remédio do pequeno Adão estava mais uma vez salvo, o dinheiro
com a venda daquelas latinhas seria o suficiente para um vidro
de gadernal.
As latinhas, que tanta alegria davam a esta guerreira,
que prospectava as ruas na busca não só do dinheiro que
compraria o remédio do filho querido, mas o dinheiro que
poderia oferecer aos seus filhos, o maior conforto possível.
Tereza, mesmo sendo uma mulher sem recursos, não
conseguia deixar de se levar pelos pedidos dos filhos numa
loja de brinquedos. Ela chegava a sacrificar artigos de extrema
necessidade em beneficio do pedido de um brinquedinho que
Eva queria. Tereza relembra com os lacrimejados olhos de sabiá
que pagou uma “nota” num radio do “Paraguai” que ela
comprou para Eva e que a menina “moeu” no mesmo dia, brava
que ficou por não conseguir colocar uma fita que “não estava
do lado certo”.
Seus olhos de sabiá executam uma volta ao passado, se
remoçam ao lembrar que a filha que é muito parecida com ela
e tem um temperamento muito parecido.
- “Eu sou geniosa, se eu disser que tem ser, tem que ser
e pronto, num tem de ser de outra forma”.
Forma que não conseguiu acabar com o egoísmo de
parte das classes dominantes que procura de todas as maneiras

57
evitar o contato com a parte suja da vida, com o lixo que eles
mesmo produzem, um egoísmo que faz com que o infortunado
catador entre de gaiato neste processo de desvalorização da
natureza ao remexer na parte suja da existência humana. Um
catador, um pobre coitado que passa rapidamente da posição
de vítima para algoz, pois incomoda os olhares por detrás dos
portões da pobreza e nesta incrível transmutação que o torna
simulacro desta mesma sociedade, ele retorna como o lixo,
com os seus olhos famintos pela porta da frente da casa, após
ser expulso pela porta do fundo nas entranhas da madrugada.
Nesta estranha e obtusa inversão de papeis, o coitado
do catador, não tem nem forças para lutar contra a sociedade e
não pode nem sofrer em paz. O seu sofrimento assistido pelos
vitrais da porta da sala incomoda e apesar do silêncio destes
inocentes, da falta de reação, da não violência ou de uma
ausência de destruição, eles são irremediavelmente taxados
como delinqüentes, enquanto os verdadeiros elos desta corrente
do mal se encontram em Brasília e nos salões governamentais
dilapidando o patrimônio publico através de seus “mensalões”
e acordos parlamentares.
-O pobre só vira ladrão pela necessidade.
Tereza conta que um dia em que a coleta de lixo não
tinha rendido quase nada, ela cansada de andar, encostou-se
no balcão de um bar e pediu um copo d’água, a dona do bar,
logo depois de gentilmente atendê-la, saiu para dentro do
estabelecimento, deixando a catadora ao lado de uma caixa
registradora com a gaveta completamente aberta e que se
mostrava para quem quisesse cheia de dinheiro. Tereza apesar
da triste situação, não se aproveitou da situação, não passou
por sua cabeça a idéia de roubar, mas ela confidencia que na
verdade pensou que se ela tivesse este dinheiro não ia passar
tanta precisão. Sabedora que a sua moral não lhe permitiria tal
ato, a catadora permaneceu ao lado daquela gaveta até a dona
58
voltar e como tinha uma outra pessoa no bar ela pediu para a
proprietária do boteco conferir se o dinheiro estava certo, pois
não queria de forma alguma ser considerada uma ladra, caso
algum dinheiro “desaparecesse”.
E lá ia Tereza no dia seguinte para uma nova odisséia,
descendo e subindo as ladeiras, num caminhar curto pelas ruas
e vielas, o lixo pendurado nos muros, deixados sobre as
calçadas, sacos de plástico de cor azul celeste depositados
gentilmente nos suportes feitos de metal. Alguns suportes
bruscos como as de grelhas de ferro, outros delicados como
uma cestinha de natal, e ainda a originalidade de um suporte de
lixo feito com a roda de um caminhão toda perfurada para
drenar a água. Nesta caminhada de vinte quilômetros diários,
Terezinha podia analisar e ter a visão mais perfeita de toda
uma cidade, da vida contada pela parte suja, pelos dejetos e
objetos despejados, pelas esquinas e meninas com a mão
estendida pedindo um pedaço de pão, pelas camisinhas perdidas
nas contra-mãos, nas bitucas de cigarros ainda acesas, na
carteira que o bêbado perdeu, no bêbado esquecido pela
carteira, no cachorro ao lado do bêbado estendido no chão, no
brilho da estrela da manhã.
Caminhava serpenteando as ruas, esta rua sobe lá, esta
desce cá, lá encima a gente dobra, vira lá, num perfeito
ziguezaguear, um caminhar por todas as ruas, um depois volta,
um desce lá, um toda a manhã toda tarde, as crianças abanando
as suas pequenas mãozinhas, trazem marmitas, gritando o nome
da Latinha, o lixo na frente de um portão de gradinhas mal
pintadas que dava acesso a uma casa laranja: - “Nesta casa, a
mulher me atropelou”. O saco de lixo dependurado no muro
descascado de cal: -“Esta mulher sempre guardava as latinhas
pra mim, o seu marido só toma Skoll”.
Da casa ao lado a esquerda ela lembra da vez que estava
catando latas no lixo desta casa, quando a mulher que lá morava

59
veio correndo bramindo uma vassoura contra ela, Tereza
disparou a correr pela rua, gritando pela proteção divina,
enquanto fazia com a mão direita que estava livre da sacola
com as latas o sinal com o nome do pai, do filho e do espírito
santo. Bem ao lado da casa desta bruxa e sua vassoura, Tereza
no seu ziguezaguear de final de tarde pelas ruas da sua jazida,
sempre observava as palavras escritas bem acima do umbral da
porta “Jesus Cristo é o único caminho”.
Aquelas palavras parecem que reativaram as forças de
uma Tereza já naquela altura da tarde completamente fatigada,
porem não derrotada pelo cansaço. E assim, andava a futura
vereadora, garimpando pelos caminhos coloridos do lixo,
observando a beleza que há no lixo, um lixo que Joãozinho
Trinta15 expôs para a sociedade através do desfile de sua Escola
no carnaval de 1988 dizendo: “Quem gosta de pobreza é
intelectual, pobre gosta mesmo é de luxo”.
Outro dia típico das manhãs de inverno campolarguense,
um dia de frio e de garoa, somente algumas poucas pessoas se
arriscam a sair de casa com este tempo, somente quem tem a
necessidade premente de conseguir o “lixo nosso de cada dia”
e assim Tequinha, cedo pela manhã, sai de casa, alcança a
primeira ladeira a ser vencida e rapidamente no seu andar
curtinho de sabiá se dirige ao centro da cidade. A catadora
avança destemida, atravessa a estrada que nos traz de Ponta
Grossa, e assim, mais ou menos protegida pelo seu inseparável
blusãozinho xadrez, fruto de um garimpo bem sucedido, não
tendo as mãos nenhum guarda-chuva chega à praça da matriz.
Aguarda que a chuva diminua um pouco e assim do
jeito que chegou e sem nenhuma cerimônia retoma o caminho
para o garimpo mais adiante. A pequena passarinha é muito
forte e raramente fica gripada, e quando acontecia de pegar
uma gripe, a mesma era tratada a base de alho, quando estava
resfriada ela comia muito alho: - “Alho, alho, alho, ninguém

60
chegava perto de mim”, dispara a vereadora numa gostosa
gargalhada.
Graças a este alho que a pôs longe dos vampiros do
Capitalismo com o seu incessante sugar, a vereadora consegue
manter o humor que faz com que todos abram um sorriso ao
vislumbrarem esta figurinha carimbada, este baluarte da
humanidade, a dama das latinhas, que ainda hoje caminha pelas
ruas de Campo Largo com o seu blusão xadrez e que está
sempre pronta para dividir com os mais necessitados o pão ou
a latinha nossa de cada dia.
Ao chegar debaixo da chuva no seu lugar de garimpo,
Tereza sobe e desce as ruelas, e neste trabalho-garimpo ela
observa através dos sacos de lixo, verdes, azuis, pretos se eles
escondem alguma preciosidade, alguma coisa boa, mas apesar
de seu traquejo na lida com o lixo, ele sempre ensina alguma
coisa nova. Com a experiência de vários anos na prospecção
de latinhas, a catadora não precisa mais colocar a mão dentro
do saco de lixo para notar que naquela cesta não tem nada que
lhe servira, ou seja, latas ou artigos recicláveis. Mas se agindo
assim, por um lado, ela evita de se contaminar com algum
material cortante ou infectado, por outro é sempre possível
que com esta conduta ela perca de achar no meio do lixo, um
pedaço de papelão, uma pequena colcha de retalhos, que bem
podem ser úteis para alguma pessoa. Pode com esta atitude se
perder as migalhas que a sociedade devolve para aqueles que
na maioria das vezes nem migalhas encontram.
Coletores que tem como um sonho muitas vezes
inatingível, um misero carrinho, um equipamento extremamente
necessário para o exercício de uma função onde se sobressai o
volume de material a ser transportado, Tereza lembra que na
sua época de catadora ela não tinha nem mesmo um simples
carrinho e por este motivo sofria pois não tinha como levar o
lixo mais pesado, como garrafões, latas que não amassáveis

61
como Nescau, lata de óleo, e outros. Esta observação que numa
primeira análise pode parecer por demais obvia, nos mostra
como que nós de cima dos pedestais do capitalismo, não temos
olhos para perceber que na sociedade dos coletores o carrinho
acaba por ser um símbolo de status, ou seja, em terra de
coletores quem tem um carrinho é rei.
Assim, na falta de um carrinho, o material que Tereza
recolhia pelas ruas era armazenado na casa da Dona Maura e
de uma senhora polonesa até o final da tarde, quando ia buscá-
los para levar para um comprador intermediário. Com relação,
a outros materiais, como os garrafões, como não conseguia os
carregar, ela os presenteava a Seu Antonio, mostrando a sua
grande afeição dono de um boteco nas redondezas, local que
sempre a recebia de braços abertos para uma refeição.
Este bar foi o nosso ponto de partida quando saímos
pelas ruas do Popular Novo para que ela me mostrasse os
caminhos da coleta, nós paramos em frente da casa com um
saco de lixo no portão, a Tereza para me mostrar como
averiguava os sacos, apanhou o saco do lixo do chão no exato
momento em que a dona da casa aparecia na janela com um
olhar não muito amistoso, o que fez a ex-catadora dizer num
jeito meio brejeiro para a mulher na janela: “-Não se preocupe,
que eu não vou levar nada, agora eu só junto projetos”.
A seguir, a nossa querida poetiza das latas faz pose, diz
que quer tirar uma foto, agradece a mulher da janela, sorri e
nós nos despedimos para logo mais adiante, efetuarmos mais
uma simulação de exploração de lixo e mais uma vez somos
flagrados por uma senhora, dona de um dos botecos da região,
que passava de carro pelo local. A senhora ao ver a velha
conhecida mexendo no lixo parou o seu carro e não acreditou
que Tereza pudesse estar de novo nas ruas catando lixo, já que
agora era vereadora. Tereza que estava neste dia muito alegre
e feliz por retornar às suas queridas ruas de garimpo teve mais

62
uma vez, que explicar que agora catava somente projetos de
dentro das ruas da sua cabeça, projetos que tinham sido jogados
como lixo da memória há muito tempo atrás, mas que agora
retornavam e devidamente reciclados poderiam ajudar a vida
de muita gente excluída pela sociedade.
A alegria de Tereza é obscurecida quando ela ao olhar
mais detidamente para as suas outrora ruas de garimpo notar
que o lixo, que era abundante em sua época, tinha ficado agora
um artigo de luxo, que o nível de pobreza da população era
tanto que esta população tinha acabado com ele. No meio de
tanto desemprego, de tanta carestia, de tanta penúria, cada vez
mais as pessoas buscavam os caminhos das ruas como única
possibilidade de obter alguma coisa para vender ou coisa para
poder comer. Ela lembra, que antigamente, neste bairro de
classe média em Campo Largo, algumas poucas pessoas sempre
que iam jogar alguma coisa fora, mas que poderia ter algum
valor para os catadores, ao invés de colocar no lixo, guardavam
o material a ser despojado em algum canto da casa, naquele
quartinho da “bagunça”, e o entregavam pessoalmente ao
catador que tinha “adotado”. Mas, atualmente a situação se
tornou tão grave, que algumas destas pessoas envolvidas num
quadro onde as dificuldades financeiras são a regra, acabam
por vender o que era para ser doado, e mesmo as latinhas que
eram guardadas para algum pobre catador, acabam por
complementar o orçamento familiar.
Apesar da concorrência atual devida a uma grande
massa trabalhadora desempregada, Tequinha ainda continua a
incentivar o pessoal a catar latinhas, pois sempre é possível
conseguir um dinheirinho, e quem está trabalhando não tem
tempo de pensar bobagens. O sinal desta crise se evidencia
para ela no enorme numero de catadores que ela está
encontrando nos dias de chuva, com vento e muito frio, um
clima que apesar de muito freqüente na região, antigamente

63
costumava afastar os catadores das ruas, pois estes ficavam
com o medo de adoecer, arriscando pegar uma gripe ou uma
pneumonia. Acontece que com o arrefecimento da concorrência
pelas latas e recicláveis, eles estão saindo, mesmo quando está
aconteceu uma chuvarada, é necessidade de acordar pela
madrugada na eterna luta contra os caminhões, se eles perdem
o horário desta saída pela manhãzinha, tudo está perdido, não
adianta mais nada, o caminhão já passou, levando com ele as
latinhas da esperança e eles que já perderam quase tudo na
vida acabaram agora por perder também seu tempo.
Tempo que Latinha não achou perdido numa vez em
que ela garimpava as suas latinhas e foi obrigada a intervir
numa briga de casal que acontecia numa casa próxima de onde
se encontrava, a determinada coletora ao notar que um homem
bastante musculoso estava surrando uma mulher num
sobradinho próximo, largou o seu saco cheio de latinhas
previamente amassadas e se colocou entre o homem e a mulher,
e num movimento certeiro acertou com o seu pequeno pezinho
a canela do agressor que surpreendido pela agilidade da coletora
não teve nem tempo de revidar pois Latinha assim que acertou
o pontapé, saiu pela rua correndo numa carreira que só cessou
quando teve certeza que o homem não a tinha perseguido.
Sorrateiramente a valente senhora retornou ao local onde tinha
deixado a sacola com as latinhas e após se certificar que o
homem não mais se encontrava no local se dirigiu à mulher
agredida para verificar se tudo estava bem.
A jovem menina agradeceu efusivamente à Latinha lhe
recomendando que para o seu próprio bem que ela não voltasse
mais a catar latinhas naquele bairro porque o marido era
extremamente violento.
Latinha que necessitava demais daquele bairro para o
seu garimpo que era a fonte de subsistência dela, do marido
alcoólatra e do filho deficiente, não levou a sério a

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recomendação daquela mulher agredida e algumas semanas
mais tarde, após o seu duro dia de trabalho, enquanto voltava
do garimpo, serpenteando as ruas, num vira aqui, dobra lá, ela
deu de cara com o agressor numa das ruas da Popular velha.
Naquele finalzinho de tarde de um dia escuro de inverno, ela
se preparava para voltar a pé para casa, pois o seu “catar” não
tinha dado nem para pagar a condução, e na sua costumeira
atitude de não querer incomodar os seus amigos, pedindo-lhes
dinheiro para a condução, preferia voltar a pé para casa.
Foi neste caminho de volta que Tereza ao cruzar com
ele, não teve o menor receio e olhou fixamente bem nos seus
olhos do rapaz. O forte rapaz ao reconhecer a sua agressora
parou, e inesperadamente começou a pedir desculpas para
Tereza, dizendo ter reconhecido o seu erro e que não era correto
o que ele havia cometido naquele dia. Tereza que por ter
passado por situações parecidas com o marido, não pode deixar
de defender as mulheres agredidas, com o seu olhar que tema
dureza dos que muito sofreram, mas também tem o olhar que
oferece compaixão, perdoou o rapaz com a condição de que
daquele dia em diante ele vivesse em harmonia com a sua
mulher.
“Apanhou e ainda pediu desculpa, ele sabia que estava
errado”. A menina da estrela rascante nunca pode admitir
nenhum tipo de injustiça, por mais perigoso que possa ser ela
se coloca sempre ao lado do oprimido, e para quem só estudou
até o terceiro ano primário demonstra um surpreendente
conhecimento da legislação.- “Não pode ficar por ai batendo
nas mulheres, por mais errada que a mulher esteja, se não quer
mais manda embora, manda catar coquinho, mas bater, não
pode não”. Este sentimento de justiça vem de muito longe,
desde que ela morava no mato, que era uma menininha, menina
que reencontro no olhar desconfiado da filha Eva.

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Eva nos conta com o seu olhar um tanto desconfiado
que a mãe sempre lutou pra chegar onde queria, uma verdadeira
guerreira que não se importava com o quanto de sacrifício
que teria de fazer para alcançar um determinado objetivo, que
ia assim sempre assim, na busca de suas metas, mesmo que
fosse aos trancos e barrancos, mas sempre teve em mente em
sua luta diária, a possibilidade de uma vida melhor para si e
principalmente para os seus filhos. Mas Eva acrescenta que a
mãe também nunca se esqueceu do resto da população que era
tão pobre como ela.
As pessoas, de uma maneira geral, sempre a criticavam,
imputando uma certa presunção na Dona Latinha, mas a
verdade aparece de maneira clara e definitiva nos claros
olhinhos de Eva, eles não deixam duvida de que Tereza foi
uma boa mãe, uma mãe amiga, que buscava proteger os filhos
de um pai rigoroso e nem sempre justo devido aos devaneios
etílicos, mas se Tereza controlava os filhos com as rédeas curtas,
também sabia o momento de aos poucos ir afrouxando, uma
mãe que embora não tivesse a oportunidade de estudar,
incentivava os filhos para estudarem, filhos como Eva que não
aproveitou a oportunidade e agora busca recuperar o tempo
perdido.
Tempo que a menina perdeu quando aos três anos de
idade tomou um vidro inteiro de um remédio chamado gardenal,
um medicamento muito forte e que era usado pelo irmão Adão.
Tereza lembra do desespero sofrido quando ao retornar para a
sua casa depois de passar a tarde toda carpindo o mato que
crescia ao redor da mesma, o encontro da pequena Eva caidinha
no chão, desmaiada. Tereza rapidamente acudiu a menina,
levando-a ao medico que prescreveu que era necessário esperar
de quatro a cinco dias para passar o efeito do remédio e que a
única coisa que a jovem mãe podia fazer durante este período
era rezar e para ofertar bastante leite para a menina.

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O sofrimento da jovem mãe durou três longos dias e
três longínquas noites, tempo que a nenezinha passou dormindo.
– “Eu trocava ela e dava mamar, e aquele nenezinho só
dormindo, todo molinho”.
Mas Eva sobreviveu e assim como a mãe está de volta
aos bancos escolares para terminar os estudos, com o infinito
e infindo apoio da mãe, sonha em cursar uma Universidade,
ser uma administradora de empresas, e assim como a mãe
esquecer o tempo em que vivia num mar de discórdia em que o
pai alcoólatra persistia em navegar. Um período em que a mãe
caída em total desespero enveredou-se pelos caminhos dos
jogos de azar. Nesta época Tereza passava a maioria do seu
tempo a jogar, não escolhia lugar, podia ser um bar, uma casa
de jogo, uma rodinha na rua, a mãe desesperada se encontrava
num interminável embaralhar das cartas, e neste embaralhar da
vida num simples jogo de caxeta, ocasionou até a insólita atitude
de vender as roupinhas dos filhos para poder alimentar o vício
pelo jogo.
Capítulo 3- O caminho dos votos

A sua vitoriosa caminhada rumo a Câmara Municipal


de Campo Largo começou a muito tempo atrás, mesmo antes
da futura vereadora sequer possuir um titulo de eleitor. A gênese
da sua campanha está nos distantes dias dos devaneios nos
galhos de seu refugio do Dom Rodrigo, está crença de acreditar
que um futuro melhor é possível, está num nunca esmorecer,
num nunca se entregar, está finalmente em sua consciência
ecológica forjada num mundo que se recicla e a todos recicla a
cada momento.
Tereza que sabe assim como Newton que na Natureza
nada se perde, tudo se transforma, que as dores do passado
são a sabedoria do presente, que os erros admitidos um dia

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irão se transformar em virtudes e que o que é lixo para os
ricos, é luxo para os pobres.
Assim a campanha da vereadora relembra os velhos
tempos quando os rios corriam límpidos pelo Dom Rodrigo,
relembra a época que se podia olhar por todo um horizonte
onde se erigiam as roças, de um breve mas saudoso momento
em que os agricultores plantavam e semeavam a terra, e que
aqueles imensos grupos de trabalhadores desbravavam as
plantações, as lindas plantações de feijão, os grandes milharais,
os magníficos trigais, os campos sonhadores de centeio.
A sua caminhada se inicia através dos seus pequeninos
olhos castanhos de sabiá, na profundidade da sua alma de
passarinho, num novo canto do amanhecer, e num sentimento
de nunca mais.
- “Hoje não se vê mais nada, hoje não se conhece mais,
não se vê, tem que procurar nos mais profundos “Interior””.
Mas apesar de seu apelo a Ecologia, de seu apelo ao
antigo, a um tempo em que se havia tempo para trabalhar, que
a modernidade e seus robôs ainda não tinham substituído o
homem, não o tinham transformado num catador de latinhas,
Tereza tem a consciência límpida de que o progresso é
inevitável, mas mesmo afirmando que tudo era melhor
antigamente, reconhece que:
- “Antigamente era “antigamente””.
E já que o que passou, passou, nos incita a olhar o hoje
em dia, o agora mesmo com os seus olhos de Sabiá para a sua
cidade de Campo Largo, antigo lar das araucárias, olhar para
uma cidade muito rica, mas que ao jogar por muito tempo
“dinheiro fora”, ao desperdiçar recursos públicos, faz com que
nos confrontemos em suas ruas com muita gente passando
fome. Esta visão só pode ser encontrada num passarinho que
viajava pelas ruas, que vivia nas ruas, que desde as cinco horas
da manhã, enquanto a cidade ainda dormia envolta nos braços

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de Morfeu, sobrevoava as esquinas escuras mas ainda repletas
de luas na busca insana de uma migalha caída.
Um passarinho que nas madrugadas de muita sorte, era
recompensado a voltar ao ninho por volta das oito horas da
manhã para alimentar os filhotes com estas sobras da
madrugada. Sobras que, às vezes, vinha na figura de uma
recompensa paga por um distraído cidadão que havia perdido
alguma coisa de valor na escuridão da madrugada, que o nosso
Sabiá metamorfoseado numa águia encontrava ao espreitar os
vãos da manhã fria que chegava.
A recompensa, que as vezes era um simples obrigado,
pelo objeto perdido significava o pãozinho e o leite para as
crianças que ainda não tinham acordado. O obrigado era para
ela uma prova de atenção para com a sua honestidade, o que
na verdade doía era que muitas destas pessoas não falavam
sequer um “muito obrigado”. Mas nem por isto “Latinha” se
sentia prejudicada, e nem ficava revoltada com esta falta de
atenção e “pãodurismo” e já naquela época, de dentro do seu
coração brotava um versinho:
A pessoa não agradecia
mas Deus me agradecia.
Por aquilo que eu fazia
e daí, o que acontecia?
Que dali eu saía.
E bem por ultimo minha fia
Abria a porta todo dia
Pra tudo aquilo que eu achava
Era isto que eu vendia
A plataforma desta incrível vereadora passarinha dos
Campos Largos também se encontra na sua preocupação com
a falta de arvoredos no centro da cidade, ela tem pensado
seriamente em projetos para que sejam plantadas mais árvores

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nas praças da cidade, pois no seu parecer, sente que elas estão
se acabando, que os homens estão exterminando com todas.
A gênese de sua campanha também está de uma maneira
enfática na incrível relação que a senhora passarinha tem com
as crianças, ela tem uma verdadeira empatia com elas, e neste
sentido é de grande importância, a sua experiência de muito
sofrimento com as mortes de três de seus seis filhos que Deus
lhe ofertou. Sofrimento sempre relembrado na figura do seu
primeiro filho, que em seu nascimento uma desatenta parteira
acabou furando os dois olhinhos, num sinal de evidente
desatenção. Uma displicência que aliada a uma total falta de
estrutura culminou por fraturar as perninhas do nenê, forçadas
que foram durante o parto.
Este difícil parto no qual a criança só sobreviveu por
onze dias, não lhe saí da lembrança, e por este motivo ela ao se
candidatar à vereança, não esqueceu de afirmar que se fosse
eleita lutaria para que Campo Largo dispusesse de um
atendimento médico, para que as mães desta cidade não
tivessem que passar pelo sofrimento de ver um filho falecer
sem uma assistência adequada, que não precisassem colocar
num pequeno caixão, uma criança que acabava de morrer com
infecção generalizada, que não precisassem sentir o mau cheiro
que tem a morte.
Morte que não poupou o seu outro filho Edson João,
que embora já tivesse oito meses de idade não conseguia ficar
de pé.
- “Punha ele sentado, ele num firmava as pernas, tudo
mole. Daí um dia o médico acho que tinha dado paralisia
cerebral por que ele nasceu com paralisia nas pernas e deu
paralisia nas pernas”.
E finalmente, ela prometeu lutar por um atendimento
que teria evitado a morte da pequenina filha que nasceu com
problemas cardíacos. A menina que nasceu com “sopro no

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coração” poderia estar viva se tivesse sido feita uma
implantação de marca-passos.
Filha que Tereza pressentiu a morte numa noite em que
o marido chegou “meio tontinho” do serviço, e ela que não era
muito e falar, ouviu uma voz de dentro dela, que ela própria
não sabia explicar, uma voz que falava que a menininha ia
falecer. Tereza contou o acontecido para o marido que não
levou em conta a premonição da mulher e brincou um pouco
com a menina e adormeceu juntamente com a mulher. Na hora
da mamadeira do nenê o relógio tocou, quando Tereza foi lhe
dar a mamadeira, a menina já estava morta.
Estes fatos passados na vida de Tereza são de
suma importância e tornam impossível que ela esqueça a
necessidade do Estado oferecer serviços de saúde de excelente
qualidade, porque a mortalidade infantil não é apenas uma
estatística que o governo busca mostrar numa positiva tendência
que faz os números caírem ano a ano, mas sim a dor de uma
mãe que carrega em seu ventre o germe da esperança por nove
meses, e que vê aquela vidinha esvair-se pelos dedos da miséria
e do descaso daqueles que ao receberem o mensalão, sentenciam
a morte milhares de crianças.
Mas Tereza sabe que não são somente a saúde e a saúva,
como dizia Monteiro Lobato, os males do Brasil, e que tudo
começa com uma boa alimentação, pois saco vazio não para
em pé.
E esta profunda preocupação da Tereza da Latinha é
totalmente diferente da dos políticos em geral que costumam
usar um programa fictício de alimentação para aumentar a
possibilidade do desvio de recursos, que vão engordar, não a
população faminta, mas sim as contas fantasmas existentes em
paraísos fiscais como o das Ilhas Caimã.
Pois a posição de Tereza não está vinculada aos jantares
regados a champanhe francesa, e sim às suas memórias de uma

71
época lá na chácara, em que a sua família passava fome num
clima de miséria total , está posição esta atrelada aos momentos
de desespero, que ela mandava a sua filha Eva ir na vizinha, na
Dona Geni para pedir qualquer coisa que pudesse aplacar a
fome que devorava as suas entranhas.
Esta posição a favor de uma fome realmente zero está
na volta da filha Eva trazendo um único pedaço de pão, que
por vergonha desta fome trazia escondido de baixo do braço e
que graças a Dona Geni seria tudo o que família tinha para
comer naquele dia. Latinha quer combater e eliminar de uma
vez por todas com esta fome que a fazia comer qualquer coisa
que achava na rua tendo como único tempero, um bocadinho
de salitre, salitre que segundo ela é um veneno para ajudar no
crescimento das plantas, e por ser salgado era usado no lugar
do sal.
Mas Latinha de cima do seu palanque sabe que apenas
e tão somente o atendimento médico e um programa alimentar
não podem ser totalmente suficientes para a população, pois é
ainda de suma importância a educação, o trabalho e o
planejamento familiar. Planejamento que Tereza foi obrigada a
fazer num momento de desespero, num daqueles momentos
que ela geralmente pára para “conversar com ela mesmo”, com
esta estrela rascante que ela traz no coração e visualizou que
precisava fazer uma laqueadura, uma operação para evitar uma
nova gravidez.
Acontece que naquela época, por incrível que possa
parecer hoje em dia, este tipo de operação só era permitida
para casos de mulheres doentes ou de má reputação e, além
disso, necessitava da aprovação do marido, coisa que Chico
jamais permitiria que ela fizesse esta operação pois a mesma ia
de encontro com os seus princípios religiosos.
Não podendo contar com a ajuda do parceiro, Tereza
dirigiu infinitas tentativas para ser operada, sendo todas elas

72
negadas. Ela pedia a ajuda de Deus, acreditando que com suas
rezas diárias, ela conseguiria superar o problema, um dia veio
o aviso, ela depois de limpar um galo, única carne disponível
para o almoço, sentou-se numa cadeira montada para as crianças
brincarem, com o peso de um adulto, a frágil cadeira cedeu,
fazendo com que ela caísse dentro de uma bacia que estava ao
lado onde estava armazenada uma barrigada de porco.
Tereza sentiu na mesma hora que tinha “descolado”
todos seus órgãos por dentro, mas mesmo assim, não falou
nada pra ninguém e ao entrar casa adentro percebeu que o
marido e o irmão dele estavam numa extraordinária bebedeira.
A dor que ela sofria pela queda no tanque era muito menor,
que a dor que sentiu a presenciar tal cena, naquele dia Tereza
tinha carinhosamente pedido para que Chico não bebesse, para
que ele tivesse um mínimo de juízo, mas o que ela verificou era
que os dois irmãos estavam se chafurdando na pinga. Era pinga,
pinga e pinga.
Ela ao constatar o estado em que se encontravam os
irmãos, passou pelos dois que mal a perceberam devido ao
avançado etílico que se encontravam, vestiu um casaco e foi
falar com o vizinho:
-Eu quero que você assine a aprovação da laqueadura
como se fosse meu marido, depois eu te pago ou te ajudo em
alguma coisa, mas eu quero que você assine como meu marido
porque o outro só presta mesmo pra beber e fazer filho e depois
num quer saber de assumir.
E assim combinado os dois forma para o hospital, onde
o vizinho seguindo a orientação de Tereza mentiu para os
médicos, retratando a vizinha, como sendo sua esposa, porém
uma mulher da pior espécie.
- Pioienta, calça suja, eu falei xinga, xinga mesmo.
Aí, o medico falou, falou, falou, mas finalmente foi feita
a operação de laqueadura. Logo após a operação e

73
contrariamente a recomendação dos médicos, a recém laqueada
mulher voltou para a sua casa, levando com ela a recomendação
de ficar em repouso absoluto, mas assim que Tereza chegou
em casa e viu o tanque de roupa repleto, imediatamente foi
lidar com a roupa.
O resultado esperado se deu com a abertura de todos
os pontos da cirurgia.
- “Veio tudo pra fora, dai me disseram que sordinha
era bom, soldava osso, soldava tudo”.
Sordinha é um tipo de erva, um cipó que dá numa árvore
chamada arueira, ela tem uma folha larga e seu caule é tal qual
uma cordinha grossa. Seguindo os ensinamentos populares, a
enferma Tereza passou a erva no local dos pontos e se enfaixou
e se obrigou a ficar uma semana de cama. A vizinha Dona Rosa,
preocupada com o estado da amiga ia lá, mas a enferma não
contou nada de sua dor, não contou pra ninguém, ficou lá
sozinha e “cozinhando”, até que os pontos se fecharam.
Durante este período em que estava convalescendo, ela
passou noites de pavor com o marido, pois temia que ele a
tentasse espancá-la, e desta forma abrisse novamente os pontos.
Foi aí que ela bolou uma estratégia que a deixaria dormir
tranqüilamente sem os sobressaltos e temores de ser apanhar
do marido, assim quando de noite o companheiro chegava para
dormir, chegando totalmente inebriado pelos prazeres ofertados
por Dionísio, ela pedia ao marido para pular no paiol, que ficava
ao lado do quartinho do casal, para pegar palha para ela fazer
um cigarrinho, ai ela posicionava a escada para ele passar para
o lado do paiol, onde ele apanhava a palha e jogava para a
esposa ladina. Em seguida o atencioso marido pedia para que
Latinha jogasse a chave pois ele tinha que sair pela porta do
paiol e somente ela retinha a chave. Depois de pedir calmamente
algumas vezes, ele acabava por ficar nervoso e gritava.

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-Me acuda! Me acuda! Mas Latinha ainda
convalescente dizia que não poderia ajudá-lo pois a chave tinha
se extraviado, Chico depois de alguns impropérios, acabava
por ser vencido pelos eflúvios dionisíacos e dormia como um
anjo encima da palha do paiol, deixando a jovem esposa na
segurança do leito matrimonial.
Enfim, os caminhos de Latinha para a vereança também
se encontra na sua firme convicção que o homem nasceu como
um coletor, que Deus colocou Adão no mundo com tudo que
tinha de bom e melhor para ele se servir e em nenhum momento
lhe sugeriu que ele era um ser menor por ser um catador.
O homem se aprimorou na Idade da Pedra, um homem
que sobrevivia da coleta de frutos e de restos do que os animais
carnívoros deixavam. E assim caminhou a humanidade até que
os homens inventassem a arma e o fogo, fazendo a passagem
de um estado totalmente natural para um estado, onde
apareceria pela primeira vez a sociedade e a cultura, ou
parafraseando o antropólogo Levy Strauss, passando do cru
para o cosido16.
Assim, depois de mais de milhares de séculos e no
momento que encontramo-nos frente a frente ao fenômeno da
globalização, no momento em que as comunicações zarpam
através dos ares com as suas ondas celulares, temos ainda que
nos preocupar com a situação de extrema pobreza em que vivem
nossos irmãos, os catadores.
E é da perspectiva de um catador, que a candidata a
vereadora vislumbrou a possibilidade de ajudar a construir um
mundo novo, um mundo livre dos sentimentos de revanche e
de revolta, um mundo que proporcionaria a todos as mesmas
chances na vida, um mundo que aprendesse de novo a palavra
“piedade”.
Piedade que apareceu em seu coração, quando num
certo dia de inverno, ela estava sentada num barzinho, tomando

75
fôlego para a distante volta a pé para casa. No bolso apenas
algumas notas de um real, objeto da venda de jornais, num dia
em que não tinha conseguido achar uma única latinha. O
estomago doía, mas ela não podia gastar nada daquele dinheiro
que seria aplicado no pagamento da conta de luz já atrasada a
algum tempo e passível de tornar o corte do fornecimento em
uma realidade a curto prazo.
Tereza já se encontrava na porta do bar, se endireitando
para seguir seu rumo, quando chegou uma menina bem humilde
que se dirigindo ao balcão confidenciou para um senhor vestido
como um brilhante advogado, que estava sentado próximo ao
balcão, a sua fome terrível e pediu-lhe qualquer dinheiro para
comprar um salgado.
-Tio, paga um “sargado”.
O homem respondeu com um mau humor incrível
e com uma certa dose de desprezo que estava sem dinheiro.
Vendo a negativa a seu pedido e com a certeza que não
agüentaria mais muito tempo sem colocar alguma coisa no
estomago, a menina pediu para a proprietária do bar, Dona
Neide, que falou que infelizmente aquele dia ela não poderia
ofertar nada, pois o movimento estava muito fraco e ela tinha
vendido muito pouco. Dando as costas para a menina, a pequena
comerciante voltou às suas atividades, lavando os copos sujos
que repousavam na pia, não sem antes prometer que se a menina
passasse no dia seguinte ela daria um jeito de arrumar alguma
coisa.
Acontece que a jornaleira que amansava a sua própria
fome para voltar para casa, sabe pela sua própria experiência
que as pessoas sempre dizendo “hoje não” faz com que o
amanhã nunca chegue, e que como o estomago não tem relógio
e nem neurônios para racionalizar o amanhã, não vai esperar.
Dai surgiu para ela aquela palavrinha que anda
atualmente tão esquecida nos dicionários do coração “piedade”

76
e Tereza mesmo em detrimento do pagamento das suas contas
falou para a dona do boteco ver para a menina dois bolinhos,
uma coxinha, e também um refrigerante.
Com o dinheiro contado para pagar a conta de luz ela
pagou a despesa da menina, sem nenhum arrependimento e
saiu. Passado alguns dias ela encontrou numa de suas andanças
pela cidade aquele senhor, parecido com um advogado, que
tinha negado o “sargado” para a menina. Ele ao reconhecer a
Tereza fez questão de interromper o seu caminho para declarar
no meio de um grande sorriso que ele tinha ficado muito
desolado com a sua atitude naquele dia e como retribuição e
mesmo uma forma de mostrar o seu arrependimento ele e toda
a sua família iam nela votar.
O senhor que parecia um advogado tinha ficado
emocionado com a solidariedade da pequena senhora, e ao
reconhecer a generosidade da mulherzinha, confessou que ao
sair do bar tinha ficado muito triste, porque estava com o
dinheiro sobrando no bolso e mesmo assim não tinha tido a
piedade para pagar um salgado para aquela jovem pessoa.
Tereza que nunca entra em juízos de valores, falou para
o senhor que parecia com um advogado, para que numa próxima
vez não cometesse tal mesquinharia, explicando que ela tinha
prontamente pago o lanche para aquela menina porque é muito
duro passar fome e ela já tinha passado.
É tão ruim e duro como não ter teto para dormir e
Tereza muitas vezes não teve, esta defensora dos pobres por
diversas vezes dormiu no meio da rua, porque não tinha nenhum
lugar onde dormir, ela comenta que nas noites quentes de verão
até que tudo bem, ela ficava observando a sua estrela rascante,
o céu estrelado, e mais tarde contava as estrelas como se
carneirinhos fossem até que o sono viesse, mas tudo ficava
muito mais triste quando chovia. Sua vivência do lado podre
da existência, deste lado mais desumano da vida faz que Latinha

77
não consiga ficar insensível quando percebe alguém numa
situação difícil, é impossível que ela não ajude ao moribundo,
por pouco que seja e por maior que seja o seu prejuízo, ela
procura sempre encontra alguma forma:
-Eu não penso que aquilo que eu dei pode me fazer
falta, pois tudo aquilo que a gente dá a gente deve esquecer.
Mas não são todas pessoas que agem assim, Tereza
conta que perto da sua casa tem uma família cuja matrona do
lar tem o dom da benzedeira, esta senhora, contrariamente a
Latinha, cobra pra benzer, cobra como se fosse uma consulta,
e para Tereza um dom que foi recebido de Deus não pode ser
usado em beneficio próprio.
Não bastasse esta utilização de um dom divino de uma
maneira errada, a vizinha ainda tem um grande defeito, pois
sempre quando faz o bem para os outros, sempre acaba
cobrando, seja através de um pedido de favor, seja na sua
intromissão na vida alheia, que parece justificada pela ajuda
ofertada.
A benzedeira vivia ofertando cestas básicas para a família
de Latinha, acontece que o que ela dava com uma mão ela
puxava com a outra, pois quase que diariamente convocava o
debilitado Chico para carpir um mato aqui, pintar um muro ali,
ou seja, a doação segundo as contas da Tereza acabava por
sair por mais de dois salários mínimos de “bicos” que o marido
fazia. A engenhosa manobra da vizinha acabou por detonar a
reação de Tequinha que proibiu terminantemente o marido de
lá ir trabalhar, se ela soubesse que ele estava arrumando alguma
coisa na casa ao lado, ela o buscaria de cinta na mão. A partir
desta época e com as freqüentes negativas de Chico de efetuar
pequenos trabalhos, as cestas que eram doadas pela vizinha
não mais apareceram.
Era um dia frio de inverno quando a nossa poetisa
voltava para a casa com o pensamento martelando a vontade

78
de comer uma orelhinha de porco, o dia tinha sido muito bom
e pela primeira vez no mês ela poderia passar no mercado para
comprar uma “mistura” para cozinhar com o feijão. Dito e feito,
ela entrou no mercado, de onde saiu feliz da vida, com dois
quilos de “orelhinha e pézinho” em sua sacola. Chegou em
casa, lavou metade da quantidade comprada e pegou a outra
metade para ir guardar na casa de uma outra vizinha - não era
a benzedeira - pois naquela ocasião ela ainda não possuía
geladeira. Ao atravessar a área que a separava sua casa da
vizinha, ela sentiu o brilho da estrela rascante cortar o céu
alertando-a para tomar cuidado, mas apesar do aviso Latinha,
cansada que estava de um dia de trabalho duro, descuidou-se e
no escuro do lusco fusco do final de tarde, ao passar pelo poço
descoberto se distraiu e sua perna esquerda escorregou para o
buraco a céu aberto ocasionado fraturas em três lugares, uma
no tornozelo e duas na tíbia.
Tereza notando a gravidade de sua situação e sentido
uma dor dilacerante pediu àquela luz divina que ainda a pouco
a tinha prevenido da provável desgraça, ao seu Deus todo
poderoso que a ajudasse a perna quebrada daquele poço
criminoso, e do fundo da sua alma jurou que aquele buraco
malvado nunca mais machucaria alguém, pois ela venceria na
vida e compraria este terreno e acabaria com aquele poço para
que ele não causasse mais novas dores.
- “Porque o poço, que pode ser a fonte da vida quando
está ativo e nos oferta da água, quando não está sendo utilizado
vira apenas um buraco, escuro e úmido como a vida do
catador”. Hoje este poço que a incomodava e oferecia perigo
aos passantes foi aterrado e virou um canteiro onde Tereza
planta e cuida das suas florzinhas.
Foi durante o período que a futura vereadora
convalescia de sua perna quebrada, que a vizinha benzedeira
voltou a visitá-la e ao sair prometeu ajudá-la com uma cesta

79
básica. Tequinha, que não guarda magoa, nem rancor no
coração, agradeceu efusivamente a ajuda pois como estava
impossibilitada de caminhar não teria como catar as latinhas
ou vender os jornais que possibilitavam o sustento de sua
família. No dia da entrega da cesta, a casa da Tereza estava
repleta de gente que tinha vindo visitá-la, entre os quais algumas
pessoas de descendência afro-brasileira, a vizinha entregou a
cesta rapidamente, e com cara de pouco amiga e retirou-se do
local.
No dia seguinte, a primeira coisa que a benzedeira falou,
ao encontrar Seu Chico na porta da casa, é que nunca mais
compraria cesta básica para a Tereza, pois ela tinha ficado
horrorizada ao ver numa casa de gente pobre como a dele um
monte de gente. Como poderia uma mulher adoentada ficar
dando de comer a esta corja de vagabundos?
Tereza ao ouvir a história contada pelo marido ficou
muito triste, pois outro ponto importante que ficou bem definido
na sua rota à Câmara, uma outra qualidade nata da Tereza é
jamais discriminar qualquer tipo de raça, cor ou gênero.
Discriminação feita pelo marido que era, quando moço,
movido pelo preconceito racial. Não foram poucas as
oportunidades, em que Chico no portão da casa, ao ver um
afro-descendente passar, falava numa brincadeira de obvio mau
gosto que ia chover, pois já tinha até começado a escurecer.
Tereza, que nunca fez nenhum tipo de discriminação,
profetizava para o marido que era para ele parar de tirar “sarro”
pois Deus providenciaria com sua justiça divina um genro negro.
Chico não ouvia as queixas da mulher, afirmando que a
filha dele não casaria com um negro de jeito nenhum, ao que
Latinha replicava, pare de falar assim porque se Deus quiser, e
Deus quer, a minha filha vai casar com um escurinho.
Acontece que por um momento, apesar do desejo de
Tereza que sua profecia se realizasse, ela achou que não ia

80
acontecer pois Márcia, sua filha mais velha tinha adquirido o
mesmo hábito desprezível do pai de subjugar os afro-
descendente, utilizando sempre palavras pejorativas tais como
“o negadinha” para a eles se referir.
Um dia Márcia chegou em casa com o braço machucado
dizendo para a mãe que tinha apanhado de umas meninas afro-
descendente, em suas palavras, “uma negada do diabo”,
recebendo como resposta uma tremenda reprimenda, Tereza
tinha achado que era bem feito para a filha, uma vez que era
ela que mexia e caçoava das garotas. Depois do ocorrido,
Márcia ficou por vários dias sem sair de casa com medo das
meninas que estavam querendo bater nela.
Logo depois de voltar às ruas e refeita do susto, acabou
se concretizando a profecia de Tereza e Márcia acabou por se
apaixonar perdidamente por um mulato muito feio e rabugento
que vivia nas redondezas. Márcia, apesar da resistência do pai,
acabou casando com o rapaz. Um rapaz de muita má índole, e
que batia muito em Márcia. Tereza, no entanto, ao invés de
acudi-la achava “bem feito” pois este era o castigo divino por
ela caçoar de uma raça.
Tantas foram as sovas que Márcia acabou separando
do marido malvado, mas a sua paixão pela raça continuou e
hoje em dia ela vive num mar de rosas com o seu marido atual,
que Tereza classifica como um mulatinho loco de bonzinho e
muito trabalhador. Mostrando todo afeto que ela tem pelo genro
Eloir, o chama carinhosamente de negrão.
Tereza se dá bem com todos os tipos de pessoa, e
embora nos seus tempos de coleta estivesse profundamente
atarefada, ela não negava uns minutinhos para tirar um dedinho
de conversa.
Fosse uma pessoa rica, fosse preta, muito feia, um pouco
suja, muito limpa, a nossa eterna menina passarinha tinha as
suas asas sempre prontas para cumprimentar e abraçar a um

81
amigo ou mesmo um estranho, que após alguns minutos de
prosa, se transformava também num amigo, ou ainda, um
minutinho para trazer mensagens de esperança de um dia
melhor, da necessidade de acreditar em Deus, da estrela que
brilhava para aquela pessoa desesperada, sempre com palavras
que previam um futuro mais afortunado, a possibilidade de
sonhar com um amanhã mais feliz, e para isto dava a formula
mágica e infalível, só era preciso que a pessoa não desista nunca,
não entregasse os pontos, que batalhasse por esta meta, dia
após dia, no frio ou no calor, que nunca tivesse vergonha de
ser o que era, pois a partir do reconhecimento do que a pessoa
realmente é, um filho de Deus igual a todos os outros, a pessoa
irá vencer com certeza.
Nunca desistir talvez seja o principal lema desta lutadora
incansável, que sabe que se ao tentar quebrarmos uma pedra
desistirmos na centésima marretada podemos estar perdendo
o esforço efetuado nas noventa e nove marretadas efetuadas e
perder o momento glorioso de ver a pedra se espatifar no
momento da centésima tentativa. Assim, logo que ficou
ligeiramente restabelecida da perna quebrada, Tereza voltou a
sua rotina diária da venda de jornais, da coleta de latinhas e
artigos para a lojinha em sua casa, percorrendo os vários bairros
de Campo Largo, indo inclusive na Prefeitura e na Câmara
Municipal, sem ainda vislumbrar que um dia ela lá estaria, não
como uma simples jornaleira e sim como uma figura ilustre,
responsável e defensora dos oprimidos, cobrando um lugar ao
sol também para os coletores, para os jornaleiros e todos demais
trabalhadores, um lugar longe dos buracos que a estrada da
vida nos oferece.
E lá ia a nossa querida Tereza manquitolando pela Rua
Centenário, passava pelo Fórum, vendia para o Seu Jorge da
Loja Batista, para o pessoal da HJ, uma loja de tinta da região,
apoiada nas muletas que feriam cada vez mais os seus braços

82
que precisavam suportar além de todo peso da jornaleira, a
sacola pesada de jornais que trazia envolta do pescoço.
Um dia, estes braços que tanto ninaram seus filhos e
netos acabaram por ficarem paralisados e não tinha o que desse
jeito, com a sua obstinação em nunca desistir, ela após cada
árduo dia de trabalho, ao voltar para casa não tinha força sequer
para erguer uma colher para tomar a fraca sopa que tinha para
jantar. Foi neste momento que ela foi consolada por sua netinha
Camila de sete anos, que invertendo os papéis tradicionais,
dava a papinha pra a vovó, a ajudava nos banhos e nos exercícios
de fisioterapia, Camila mudava o sentido do movimento da
carruagem da historia. Carruagem que Tereza apanhou para
nunca mais largar as rédeas.
“A historia é um carro alegre cheio de um povo contente
que atravessa indiferente todo aquele que a negue. O que brilha
com luz própria nada lhe pode apagar, seu brilho pode alcançar
a escuridão de outras coisas17”, ou seja a escuridão do buraco.
Escuridão de um buraco que foi iluminado pela luz da
estrela da vereadora e a impeliu para uma candidatura, a impeliu
a deixar de ser uma simples coletora para atuar na política em
beneficio de seu povo. No início da sua triunfante caminhada
rumo a Câmara Municipal, Tereza não contou com nenhum
apoio em sua casa, Eva nos conta que no dia em que sua mãe
chegou em casa e falou que ia ser candidata, todo mundo levou
aquela noticia como uma piada, e nem mesmo prestaram
atenção ao fato que a partir daquela época, a candidata dos
mais humildes começou chegar mais tarde em casa.
Depois de algum tempo, Eva preocupada com os atrasos
que se tornavam freqüentes da mãe, começou a perguntar-lhe
qual era o motivo daquelas demoras, ao que a mãe respondia
invariavelmente o fato de estar numa reunião do Partido. Pouco
a pouco, a desconfiada Eva, conhecedora de como a mãe era
firme na busca de seus objetivos, começou a acreditar mais na

83
veracidade da candidatura materna, apesar da idéia ainda não
ter sido aceita pelo pai e pela outra irmã. O pai que era
totalmente descrente chegava a declarar que se a esposa
ganhasse, ele tiraria toda a roupa do corpo e subiria pelado no
poste que existe na frente de sua casa.
Durante a campanha, Eva continuou trabalhando
na lojinha, que Tereza montou na própria casa, nesta lojinha
eram comercializadas as mercadorias recicladas ou
reaproveitadas que a mãe encontrava no lixo, tinha de tudo um
pouco, prego, ferro velho, pedaço de bicicleta, roupa velha,
chapéu, e assim por diante.
A consciência ecológica naturalmente desenvolvida pela
coletora nos ensina que tudo tem algum valor para a população
mais pobre, uma blusa com meia vida de uso, um guidão de
bicicleta, um garrafão de vinho vazio, pois todos podem ser
utilizados, para se proteger do frio, para arrumar uma bicicleta
amassada, para armazenar a água, e esta consciência nos diz
ainda que a própria população pobre também tem seu valor,
pois não ela, na maioria das vezes, não sabe o que é a
desonestidade, esta sempre pronta para ajudar a outras pessoas,
são imbuídos da boa vontade, bem diferente da maioria da classe
política completamente submersa num poço de corrupção.
Foi no dia em que Eva estava abrindo a lojinha
que ela finalmente acabou por dirimir qualquer duvida a respeito
da campanha. Assim que abriu a porta da frente, chegou um
pessoal que tinha ido buscar material de campanha. O pai e a
irmã ainda continuaram zombando, e a “ficha deles só foi cair”
quando a uns quinze dias antes da eleição, eles viram Latinha
sendo apresentada como candidata na televisão.
Nesta época, Eva acabou por se aborrecer com a mãe
por causa das trovas que ela fazia, tudo era trova, se estava na
cozinha, falava através de trovas, em todo lugar, inclusive no
banheiro, tudo era comunicado através das trovas. Esta

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insistência em tudo poetizar acabou por enervar a garota, de
maneira que quando ela chegou a seu limite, pediu para a mãe
ficar quieta e por caridade deixar a trova pra fora de casa. Eva
conta que uns dias antes da eleição ela já estava irritada demais
com a mãe que não perdia uma oportunidade de trovar, até
mesmo quando a mãe pedia uma toalha que porventura faltasse
no banheiro, o pedido vinha através de versinhos.
As trovas, que se tornaram tão desagradáveis para a
filha, apareceram no início da campanha com Tereza
confessando que antes desta época ela nem sabia o que era
isso. E como tudo que acontece na sua vida, estas trovas
surgiram como uma voz que veio de dentro, como uma
claridade de uma estrela que fez com que a idéia surgisse assim,
tudo assim tão simples, brotando do fundo da sua alma.
Mas foi esta sua forma de comunicação que possibilitou
que ela desenvolvesse junto a cada eleitor amigo ou “inimigo”
uma imagem de uma pessoa que está buscando fazer política
com dignidade, sem apelar para golpes sujos e dossiês
incriminando adversários, que ela pudesse dizer aquilo que era
pertinente para o momento, mas sempre evitando palavras duras
ou que tivessem algum caráter agressivo, pois para Tereza a
política se faz com amor e amizade e não numa disputa
sangrenta.
Ela evitou sobremaneira o jargão comum, o mote da
maioria dos políticos de carreira que distribuem promessas
como se distribuem balinhas, numa típica estratégia para adoçar
a boca dos eleitores, mas que passada a eleição acabam por
ocasionar uma diabete política nos pobres coitados que
acreditaram na possibilidade de emprego, na ajuda alimentícia
ou de medicamentos que estes políticos açucareiros prometeram
e acabam por sofrer na mão destes farsantes que, como bem
alerta o pagodeiro Bezerra da Silva, imploram o voto e passada
a eleição manda a policia te bater.

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A sua campanha se desenvolveu no meio do seu povo,
no íntimo contato com o seu povo, no calor dos abraços do
seu povo, ali na calçada, em plena rua, no carinho dos beijos
das crianças, no diálogo aberto com as pessoas na rua. Numa
destas oportunidades, uma destas pessoas do povo lhe
perguntou à respeito das pedras, Tereza pega assim de surpresa,
estranhou a pergunta porque não lembrava do que se tratava.
Aí, ela fechou os olhos de Sabiá por um instante, procurando
nas pequenas dobras da memória as pedras mencionadas,
imediatamente apareceu o filme que a fazia lembrar das pedras,
fazendo com que sua memória fosse repovoada e nesta tela
repleta de neurônios apareceu finalmente a imagem de uma
pessoa lhe zombando.
A pessoa estava presente num destes seus diálogos de
rua zombando da candidata, procurando desacreditá-la por sua
humilde origem, por ser uma simples catadora de lixo. Assim,
que esta pessoa parou de humilhá-la, Tereza imediatamente
proferiu a sua resposta nem um pouco agressiva em forma de
trova:
Eu vou dar a propaganda em sua mão
Vou pedir colaboração
pra você pegar e não jogar no chão
Mas uma coisa eu vou dizer
o seu problema um dia eu vou resolver
Agora eu vou falar
Cada pedra que jogarem em mim
Eu vou pegar com carinho,
vou guardar lá na minha casa
pra que eu possa construir o meu castelo
e também o meu ninho
Esta pessoa que a pedra atira,
Deus a ele vai abençoa
Ela não sabe o quanto ela vai me ajudar,

86
Pois muita gente esta me ajudando
Por mais que esteja me maltratando,
Pois com certeza eu estou vencendo
e estas pessoas vão ficar do meu lado.

Tereza depois de um breve lapso de tempo relembrou


que aquela pessoa que a abraçou e beijou e perguntou pelas
“pedras” era justamente a pessoa para a qual ela tinha dado a
resposta à zombaria. Uma resposta que não continha um pingo
de raiva, pois ela não estava brava, e sim uma resposta de amor
e fé que serviria para mostrar que em seu coração não tem
lugar para a competição, para a desarmonia, para o ódio e o
desamor.
Uma resposta dada a uma pessoa que mesmo falando
contra ela, dava-lhe atenção e dentro do paradigma “falem bem
ou mal, mas falem de mim”, tinha a sua importância. Tereza
sabia que quanto mais falassem contra ela mais o seu “Ibope”
subia, pois ela era conhecida do povo, era gente do povo, e as
pessoas sabiam que ela tinha o direito de lutar pelo povo de
Campo Largo.
A cidade quase que por unanimidade já conhecia a
candidata há muito tempo e sabiam que ela não era nada daquilo
que eles a acusavam, e ficava cada vez mais nítida a força da
velha menina passarinha, pois os adversários falavam pra a
atacar e tentar desmoralizá-la, tentavam atirar pedras com seus
estilingues da maldade na candidata, livre e pura como os
passarinhos. Mas estas pedras que eles atiraram foram evitadas
pela candidata passarinha através de suas trovas rasantes, com
os seus vôos da compreensão da alma do povo, e como ela nos
conta pegou estas pedras com carinho e com elas construiu a
sua casa, o seu ninho. A história de Latinha se confunde com a
musica que ela cantarola:

87
“Todas pedras que andam um dia elas vão se
encontrar”. Assim, ela continua dizendo que todas as pedras
que continuarem jogando contra ela vão servir de matéria prima
para poder construir o edifício da solidariedade, e que muitas
vezes, as pessoas mesmo gostando de você acaba por tentar
alvejá-la. Isto acontece, ela nos conta, porque esta pessoa não
tem Deus no coração e por causa disto não sabe nem “gostar”.
Esta maneira de gostar não gostando, ela sorri maliciosamente,
chamasse “maus tratos do amor”.
Durante a campanha, enquanto algumas
pessoas tratavam bem a Tereza, outras faziam questão de
maltratá-la no seu trabalho de coleta e foi dentro deste quadro
de desprezo que acabou por se instalar um medo medonho,
medo das pessoas, mas esta atitude tão perversa do povo contra
uma indefesa bichinha do mato não a impediu de continuar a
ser a cidadã educada e prestativa, sempre buscando uma palavra
para apaziguar os espíritos atormentados que andam penados
na modernidade das grandes cidades. Ela sempre evita o
confronto porque sabe que ele que nada constrói.
Apesar da candidata atravessar os longos dias que a
separavam da eleição com longas caminhadas, infinitas trovas
cantadas e mal-tratos alheios, ela ainda possuía forças quando
chegava em casa e deitava na sua cama para trabalhar com a
sua “memória” pensando nos seus ideais e sonhos.
Ela ficava no quarto da sua casa por mais de duas horas
pensando em como poderia ajudar a toda aquela gente sofrida
que tinha encontrado em seu caminho diurno, enfim se
entregava aos reinos apolíneos e sonhava embalada pela certeza
da possibilidade dos projetos futuros, na esperança que se não
poderia solucionar, poderia, ao menos, diminuir o problema
da pobreza que tanto a aflige, dormia como uma criança nos
braços do Senhor.

88
O dia seguinte a acordava, em seu mais sublime sonho,
inaugurando uma nova obra para os mais necessitados, e ela
só saía deste estupor, que só se desvanecia, quando após o
café, ela voltava para as ruas e para as noticias, para um mundo
cruel e egoísta das maletas de Brasília. Mas muitas vezes mesmo
durante o ligeiro café quando sua filha chamava sua atenção,
perguntando se ela a estava, Latinha lá do fundo de sua alma
respondia que não a escutava porque estava trabalhando com
a memória.
E foi trabalhando com esta incrível memória
que lhe permitiu produzir os mais singelos versinhos antídotos
para as mais agressivas confrontações, com esta memória
carregada de rimas que deram a este passarinho do mato a
coragem para enfrentar os deboches e humilhações dos
poderosos que não queriam a sua eleição pois tinham medo do
significado de uma pessoa do povo assumir uma cadeira na
Câmara, mas que apesar de todas as tentativas de excluí-la, de
desmoralizá-la tiveram que engolir, tiveram que assistir a
entrada desta tão discriminada senhora pela porta principal desta
excelsa casa, que ela nem sabia direito onde era e o que fazia,
e tiveram que chamada de Vossa Excelência.
Ao entrar na câmara pela primeira vez como vereadora,
Tereza ainda lembrava de como tinha sido pisada na campanha,
mas que o que passou, passou, e ela já tinha perdoado aqueles
que a tinham espezinhado.
Eu também fui pisada,
mas por Deus fui chamada,
eu encontrei, eu sempre perdoei
e sempre vou perdoar,
como penso, como candidata,
eu andava pelas ruas,
eu achava que se eu fosse pedir votos,
eu ia receber um não,

89
ai eu inventei um versinho
e pedi com Deus no coração,
Deus me atendeu e fez com que
eu conquistasse a população.
Eu conquistei o coração da população
e com a minha capacidade ,
com a minha humildade e com o sofrimento,
porque eu sofri,

Uma senhora que lutou quase que sozinha por


esta cadeira na Câmara não se importou com as reprimendas
da filha a respeito de seus versinhos, que esperou o anuncio do
resultado, de forma tranqüila e serena, pois sabia que tinha
efetuado um trabalho digno e honesto junto à população.
Inversamente a confiança da mãe, Eva ao saber do resultado
quase teve um “treco”, ela acabou sentindo, por causa do seu
sistema nervoso, sintomas de arritmia cardíaca. Um resultado
que era tão esperado por ela, mas que nunca poderia imaginar
que sua mãe pudesse ser a primeira colocada.
- “ E a gente que num tem nada quando acontecesse
uma coisa assim de repente, tudo na mão, a gente sofre um
choque”.
No entanto, no seu caminho para a vereança nem tudo
foi espinho, e tiveram aqueles que reconheceram o valor da
catadora de latinhas, entre estes amigos, um dos mais leais foi
o administrador e comerciante Julio. Amigo de longa data, a
futura vereadora o conheceu em sua loja de brinquedos “Meu
Cantinho”, que está situada na Rua XV de Novembro, bem no
coração de Campo Largo.
A catadora de latinhas buscando aumentar a sua renda
familiar, começou a comprar brinquedos para revender na loja
deste filho tradicional de Campo Largo, bisneto e neto de
antigos prefeitos, Coronel José de Almeida Torres e Coronel

90
César Torres. Tereza comprava as mercadorias e saía para
vender pelas ruas e bares, sendo que logo na primeira compra,
ela, mesmo depois de pagar as mercadorias que tinha levado
em consignação, obteve um lucro de duzentos reais no dia.
Felicíssima com o dinheiro ganho mas preocupada em ficar
com toda aquela importância, ela pediu a Julio que ficasse com
parte daquele dinheiro que serviria para financiar futuras
compras e para que ela comprasse o seu sustento de sua família.
A alimentação básica da família de Tereza era, como
normalmente acontece nas camadas mais pobres da população,
uma dieta pobre em proteínas. No dia a dia são servidos o
feijão, a farinha, a polenta e a salada, mesmo o arroz é tido
como supérfluo e por isso servido somente aos domingos ou
quando aparece uma visita.
Tereza na sua labuta diária, no calvário da coleta, nos
conta que as vezes almoçava, as vezes não, pois na maioria das
vezes não dependia dela e sim dos convites dos amigos.
Convites que devido a simpatia da catadora eram
freqüentemente feitos por alguns moradores dos bairros pelo
qual perambulava. Livrando o seu almoço, o que a catadora
ganhava de mantimento ia direto para a boca dos filhos, marido
e netos.
Nos finais de semana, pouco modificava nos hábitos
alimentares, raramente aparecia no cardápio uma maravilhosa
vina, ou uma farofa preparada com cebola frita e farinha, frutos
de uma semana que tinha sido proveitosa na venda dos produtos
do “Meu Cantinho”.
Estes processos de compras e vendas, depósitos e
retiradas de dinheiro acabaram por estabelecer uma grande
amizade entre a vendedora ambulante e o comerciante Julio,
um rapaz que apesar de ter crescido em meio aos políticos
preferiu o caminho árduo do comercio, opção feita a mais de
vinte e três anos. Neste contato freqüente com o Julio que,

91
apesar de ser comerciante, tem no sangue a política que fez do
seu pai, Sebastião Torres, alcançar a vereança diversas vezes,
acabou por imbuí-la da idéia de adentrar ao cenário político.
Julio, que hoje em dia abandonou o negócio de
brinquedos e passou a comercializar bijuterias, foi o primeiro
que acreditou no potencial eletivo e intelectual da catadora, e
como sua pessoa de confiança, foi nomeado seu assessor
legislativo. Ele a ajuda na elaboração de projetos tal qual o
projeto cultural que já foi inclusive promulgado que busca trazer
o conhecimento para a população, bem como o resgate do
patrimônio histórico e a preservação cultural.
Tereza lembra com emoção dos dias felizes em que
comprava chocalhos para nenês, carrinhos e bonecas feitas de
plástico e de pano por um real e nove e nove centavos e vendia
pelas ruas e bares por três reais e cinqüenta centavos, mas isto
aconteceu bem antes da proposta de filiação apresentada pelo
amigo Julio, que conjuntamente como seu pai que era candidato
a prefeito, a convidou a concorrer à vereança pelo PPS.
Julio que tinha um contato freqüente com a Tereza na
sua loja, um dia estava no comitê, quando lhe ocorreu que
aquela senhora que vivia de vender brinquedos pelos bares,
sorvetes e jornais pelas ruas e comitês políticos tinha um enorme
potencial político, pois a nossa “Cora Coralina” andava por
Campo Largo inteirinho, nesta vida sofrida de sol a chuva,
correndo atrás de latinha e por este motivo conhecia quase
toda a população da cidade e por ela era respeitada.
Respeito que faltou numa noite de domingo, quando
um dos tradicionais político das “Antiga”, falou zombando da
humilde catadora, que ainda estava por decidir se aceitava o
convite, que ela seria a candidata mais votada da cidade. Tereza,
que não consegue responder agressivamente mesmo quando é
diminuída, respondeu com seu sorriso brejeiro de passarinha,
que agradecia a confiança nela depositada, e se ela tinha alguma

92
duvida se devia ou não concorrer ao pleito, este senhor tinha
acabado de dirimi-la, e que ela se filiaria ao Partido já na manhã
seguinte. E assim respondendo, e diante de um senhor
estupefato com a resposta, a agora candidata Tereza continuou
calmamente mordiscando a sua solitária e saborosa vina, que
ela pediu sem pão para economizar, sentada num banquinho
da lanchonete“Au au do rei”, que fica situada na praça Getulio
Vargas.
Ao terminar a “fausta” refeição, a agora candidata
mexida nos seus brios, se afasta da praça no seu costumeiro
caminhar de passarinha, no seu andar imponente e singelo, sem
se incomodar com a zombaria feita. O seu pensamento voa
longe, voa tal qual as folhas levadas pelo vento nas noites frias
do inverno de Dom Rodrigo, como quando ela ficava horas e
horas se aquecendo frente ao fogão de lenha, sonhando com
um futuro ainda distante. O que se precisa fazer para se filiar a
um partido? Se nem mesmo ela sabia direito o que era filiar-se.
No dia seguinte ao encontrar com o senhor zombeteiro
e antes que ele lhe dirigisse a palavra, a recém filiada candidata
fala triunfantemente que na próxima eleição vai sair para
vereadora, o choque o deixa meio confuso e sem saber se
deveria acreditar naquelas palavras, e ao ver retirarem a sua
camuflagem, de explodirem as paredes feitas pela argamassa
das antigas ideologias oligárquicas, e apavorado com os ventos
de nova realidade, cala-se por um momento, para em seguida
se restabelecer e lançar mão de um lacônico sorriso debochado
para dizer para a catadora “largar a mão”, pois esta candidatura
era uma brincadeira de mau gosto e que ninguém acreditaria
realmente na sua candidatura.
Julio, no entanto, vislumbrou a nossa Latinha não como
uma pilhéria e sim como uma mulher aguerrida, uma digna
representante das mulheres de Campo Largo, e porque não
dizer do Brasil. Uma mulher brasileira que ficou por vários

93
anos sem legitimidade política na época da Velha Republica,
mas virou na atualidade uma peça fundamental nos partidos
políticos. Não tanto por sua obrigatoriedade prevista pela lei
que exige dos partidos possuir ao menos trinta por cento de
candidatos do sexo feminino, mas sim pela certeza que as
mulheres tem um maior pudor nas atividades políticas, e como
mães que são, olham o futuro com olhos diferentes, olhos como
os de passarinho de Dona Tereza.
Olhos que percorrem Campo Largo inteiro e que
conhecem a realidade dura das esquinas, mas que também se
apresentam como a esperança de renovação de um modo geral,
uma esperança que foi constatada em sua extraordinária votação
obtida, com cerca de dois mil e oitocentos votos, ou seja, quase
5 % dos votos validos, ficando a mais de mil votos acima do
segundo candidato mais votado numa disputa duríssima em
que competiram mais de cento e sessenta candidatos, muitos
deles com campanhas com grandes volumes de recursos
financeiros.
Recursos financeiros que muitas vezes são usados como
um investimento a resgate futuro, pois assim que eleitos este
tipo de político sabe muito bem como fazer este investimento
triplicar. Recursos que neste momento aparecem no meio dos
mal cheirosos ares de Brasília através de noticias de quantias
fenomenais obtidas para financiamento de campanhas políticas,
de malas e cuecas voadoras cruzando os ares deste Brasil dos
catadores, malas e cuecas que levam somas que inclusive temos
dificuldade de imaginar, pelo numero de zeros subscritos.
E é no meio destas abstratas quantias de milhares e
milhares de zeros que os cidadãos da Capital da Porcelana
tiveram a honra de eleger uma senhora que iniciou a sua
campanha com um único zero, sem ao um misero tostão furado,
mas que com sua piedade e com sua dignidade, duas palavras
que estão em desuso, e tendo como bandeira, uma promessa

94
de um mandato honesto e idôneo, uma bandeira um tanto
quanto velha, rasgada e puída, mas que conseguiu conquistar
o coração do povo da cidade das araucárias.
A população desde o inicio emprestou o seu apoio no
difícil caminho da coleta de lixo até a cadeira de vereança na
Câmara. O Bar do Kaminski providenciou os adesivos, as lojas
Catarina e Nina Malhas forneceram algumas poucas, mais muito
importantes camisetas para serem estampadas, que deram uma
injeção de animo na candidata.
Mas para estampar era necessária a tela de serigrafia e
cadê dinheiro para isto? E como poderia a catadora abraçar
uma difícil campanha se tinha inclusive problemas para
conseguir o pão nosso de cada dia. E foi aí que a futura
legisladora começou a demonstrar a sua incrível capacidade
de resolver difíceis situações. A vida tinha lhe ensinado a nunca
esmorecer, e resolver o difícil através do caminho mais simples,
foi desta forma que ela conseguiu sobreviver a este mundo que
a tudo consome, retirar vida das mesmas ruas que muitas vezes
matam.
Ruas, que ela se pos a trilhar na busca de algum dinheiro
emprestado para fazer a tela de serigrafia para as camisetas,
ruas que por lhe serem conhecidas, a levou a ser presenteada
com a tela pelo próprio fabricante chamado Reliance, e que no
meio de um maremoto de pedidos para as diversas campanhas,
ainda teve a generosidade de imprimi-la e entregá-la em tempo
recorde. Apesar da torcida contra de uma parte da velha
oligarquia, estes primeiros da candidata já deixavam vislumbrar
um resultado que rapidamente se evidenciava, um prognostico
favorável na figura da volta da candidata voltando da rua com
a tela pronta em menos de duas horas, enquanto os outros
candidatos esperavam pelo menos dois dias para a obtenção
do mesmo.

95
Com relação, ao dia a dia de sua campanha, a sua
conhecida e prezada honestidade foi a chave para que o Senhor
Naldo se dispusesse a ajudá-la, este generoso senhor adiantou
um empréstimo para a candidata, que precisava manter a família
com a promessa que Dona Tereza, vencendo ou não a eleição
devolveria tintim por tintim da importância emprestada. As
passagens de ônibus para o deslocamento durante a campanha
foram financiadas pelo Kaminski e pelo Bastião que fizeram a
mesma exigência e agora estão sendo religiosamente pagos.
Esta garra e esta coragem surpreenderam Julio, que
mesmo já possuindo uma profunda admiração por esta
guerreira, não esperava que ela se movimentasse com tanto
desenvoltura com tão pouco tempo de campanha. Surpresa e
admiração que se renovavam a cada um dos comícios, a cada
bairro visitado, fazendo um enorme sucesso, com o
comparecimento de centenas de pessoas e adeptos mesmo nos
bairros em regiões onde ela nunca tinha pisado, como é o caso
do afastado bairro da Ferraria, uma região ligada a Campo
Largo pelo Rio Passauna, e que deixou o seu futuro assessor
entusiasmado ao ver a sua popularidade num lugar que pode
se caracterizado como mais intimamente ligado à capital
Curitiba.
Tereza, independente das figuras famosas e conhecidas
na região, era sempre a primeira a ser aclamada e convidada a
falar. A população pedia e aplaudia freneticamente a querida
Latinha. Fosse qual fosse o município, mesmo aqueles
afastados, a mais de vinte quilômetros do centro da cidade,
onde ela chegava era dia de Festa. Nestes comícios, Tereza
empunhava o microfone, e de improviso iniciava o seu
pronunciamento e foi no bairro da Ferraria, reduto eleitoral do
seu suplente Zezo, que ela solicitada por ele que fizesse um
grande discurso, respondeu na sua costumeira tranquilidade

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para que ficasse calmo, que falaria sim, só não sabia ainda o
que queria falar.
Pouco depois Tereza foi chamada para o seu discurso,
sendo muito ovacionada pela população local, e sem nenhum
papel previamente escrito para ler, somente usando a voz do
coração, iniciou o comovente discurso:
Boa noite povão,
não adianta falar e
ninguém nada poder aproveitar.
Falo lentamente,
aquilo que meu coração esta vendo pela frente.
falo de coração,toda esta votação,
se precisarem de mim
podem contar comigo na câmara
com certeza
pode contar que pra vocês eu vou votar
maior alegria é ser princesa
conte com a Tereza.

As palavras simples, mas verdadeiras da Latinha calaram


fundo o coração daquela gente humilde, cansada de ser passada
para traz pelos falcões da política e ao termino de sua fala
aplaudiram freneticamente a futura vereadora e foi com este
tipo versinho que a candidata das latinhas apresentou pelos
mais diversos bairros da sua região eleitoral de uma maneira
simples e objetiva o seu compromisso de estar em continua
vigília na Câmara, de acompanhar os diversos projetos,
examinando os mesmos, não com os olhos dos ricos e poderosos
que só tem olhos para a acumulação capitalista, mas sim com
o olhar de um passarinho que precisa pouco pra viver, um ninho,
um pouco de alimentação e uma grande dose de amor, estima
e consideração.

97
Capítulo 4. O caminho para um mundo melhor

Alguns analistas políticos da região consideraram o


fenômeno da eleição da vereadora como a mais votada como
uma simples forma de repudio de uma parte da elite insatisfeita
com os rumos da política da cidade, um fenômeno que já
apareceu outras eleições, na figura do Cacareco, e outras
zombarias típicas dos brasileiros. Porém, mais do que ser eleita,
como fruto deste repúdio, como vimos a candidata circulou
por várias áreas da região, uma região que apresenta, de acordo
com os dados relativos ao senso demográfico efetuado na
cidade no ano de 2000, aproximadamente dez por cento de
uma população de noventa e dois mil habitantes vivendo
debaixo da linha da pobreza.
Estas mais de nove mil pessoas que vivem assim como
Tereza, desempregadas e vivendo com apenas vinte e cinco
por cento do valor do salário mínimo, claramente exerceram a
sua opção política por um candidato igual a elas, pessoas que
inclusive conheciam a Tereza, e votaram na candidata na
esperança de uma representante que lutasse por melhores
condições de vida para esta população esquecida.
Uma população que mora ao lado da vereadora, que
segue os seus passos políticos e que acabou por elegê-la a
vereadora do ano em 2005. Uma vereadora que apesar de
atualmente não precisar mais sair de casa tão cedo para se
locomover na caminhada de mais de 12 quilômetros até o bairro
Popular, uma singela avó que poderia ficar até mais tarde
acalentando os seus netinhos, mas que troca estas horas a mais
em sua casa e sai logo de manhã para a sua caminhada na luta
pelos oprimidos. Caminhada pelas mesmas ruas que a levaram
à Câmara e onde ela gasta a maior parte do seu tempo, junto à
sua população, apoiando-a firmemente e mais do que tudo,

98
procurando explicar a necessidade de se exercer uma militância
política.
A nova vereadora lembra quando antigamente ela olhava
para os vereadores, e pensava consigo mesma, eles ganham
bem e podem ajudar todo o município. Mas depois da vitória a
vereadora percebeu, que a historia é um pouco diferente, e
que estas verbas que o imaginário popular sempre enxerga como
uma arvore repleta de frutos, e a Prefeitura como sendo um
imenso baú onde tudo se encontra, não passa de uma caixa de
Pandora. A verdade estarrecedora é que um município como
Campo Largo, não possui recursos ilimitados, e com sua baixa
arrecadação tem enormes dificuldades em manter pelo menos
uma estrutura básica para o ensino e a saúde.
Mas se o Estado não pode resolver os problemas dos
eleitores da vereadora, não lhe resta outra solução, a não ser
muitas vezes ajudar com dinheiro do seu próprio bolso as
inúmeras pessoas que a procuram com as mais variadas doenças,
doenças muitas vezes gravíssimas, como AIDS, tuberculose,
câncer, etc, pessoas que vem dos mais distantes rincões, a
maioria subnutrida, muitas acidentadas, todas com uma réstia
de esperança na vereadora.
A vereadora, sempre que pode empresta não só o
dinheiro necessário, mas também toda a sua solidariedade e
incentivo, mostrando que um mundo melhor é possível, mas
que é necessária uma luta diária e que não se deve esmorecer,
que não podemos simplesmente desistir e colocar toda a culpa
de nossa desgraça nos outros, e sim acreditar em Jesus Cristo,
que está eternamente nos observando.
Ela também chama a atenção para a importância de uma
escolha política bem feita, pois ao contrário, estaremos sempre
na mão do cartéis e dos coronéis. Estes empréstimos, que
sabemos, são verdadeiras doações, são utilizados por esta
população descalça para pagar os exames de sangue, não

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cobertos por uma Previdência Social que assiste impunemente
escorrer por entre os seus dedos, os milhões de reais, furtados
sorrateiramente, mas na luz clara do dia pelos “valérios” da
vida.
Em sua boca não existe a palavra não, pois ela a teve
por muito tempo como um brinco nos seus ouvidos. Não existe
a palavra negativa, porque hoje em dia, Tereza sabe a
importância de receber um soldo mensal e como é bom ter o
próprio dinheiro, ganho com o trabalho nosso de cada dia, e
embora a situação da população pobre se deteriore a cada
minuto, chegando-se ao triste fato da existência de mais de
cento e sessenta mil catadores em todo Brasil, numa
inconseqüente luta pelo lixo, que acabou por se tornar
fundamental na subsistência destas pessoas.
Um lixo cada vez mais difícil de se encontrar, mas que
a antiga catadora continua a incentivar as pessoas a coletar,
pois o trabalho é uma terapia no apoio no tratamento do
alcoolismo e de suma importância que a pessoa consiga obter
pelo menos algum valor para o seu sustento, e se é impossível
se encontrar material para reciclagem, alguma coisa a pessoa
tem que fazer, não pode ter vergonha e desistir, bate nas casas
e pede roupa usada, uma roupa velha que não serve mais ou
uma roupa rasgada que iriam jogar fora pode ser consertada e
vendida e com esta venda já dá para tirar o dinheiro para
comprar o leite e o pão.
Além dos conselhos para as pessoas buscarem o trabalho
por mais difícil que ele pareça e redirecionar a vida, a vereadora
tem sempre uma palavra como que tirada dos livros de auto-
ajuda para uma pessoa deprimida. Ensina a fazer uma oração,
olhar e pedir para Deus ajudar, porque partindo da sua sofrida
experiência de vida, ela lembra de quantas vezes ela não tinha
chegado no fundo do poço, e sentia que a luz da sua estrela
desapareceria, tragando a sua alma para a escuridão da tragédia

100
total. Eram nestes momentos que ela mais orava e buscava em
Deus, o alivio para a sua sofrida existência, alivio para as dores
do corpo e da alma.
Ela é o exemplo vivo de que a fé derruba barreiras, de
que a força do credo remove montanhas, ela acredita, com
toda a sua veemente crença, que se alguém colocar um objetivo
na cabeça com firmeza e decisão vai conseguir atingi-lo porque
Deus vai ajudar a esta pessoa e ela vai conseguir esta benção
sagrada:
-“A primeira coisa, como por exemplo: Deus vai me
ajudar a aprender, a fazer prova, ele vai dar a inteligência e
você vai conseguir. Deus ajuda a pessoa a se desenvolver e a
tirar todo este sentimento ruim, o desanimo, esta coisa ruim
no coração. Por mais triste que você esteja não se desespere
que Deus vai lhe mostrar o caminho”.
Este caminho pelo qual a vereadora quando
menina sonhava em poder guiar os mais necessitados, e que
um dia pressentiu na imagem de um grande futuro, quando na
solidão da casinha da árvore, viu uma estrela cortar o céu,
ultimamente tem se apresentado um pouco obliterado pelas
figuras impunes dos homens dos mensalões e cuecões, que a
tudo explicam na estratégia do pagamento de despesas com a
campanha.
Despesas que a vereadora esta saldando com seus
próprios honorários, e que não são as dividas advindas da
produção de grandes cartazes, de fabulosos shows pirotécnicos
ou ainda de distribuição de bens de valor, ou comestíveis na
troca pelo voto; e sim, despesas efetuadas com o sustento da
sua família, uma vez que durante a campanha, Tereza teve que
parar com suas atividades que lhe gerava alguns trocados, ao
se ver totalmente envolvida em seus comícios, o único espaço
disponível para uma candidata sem recursos mostrar as bases
de seu programa político para a população.

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Assim, para que ela pudesse sobreviver, pagando o
aluguel, a luz da casa e comprando, é verdade que nem sempre,
algumas vinas, a maneira peculiar deste povo, misto de alemães
e polacos denominarem a famosa “salchicha”, ela foi obrigada
a fazer empréstimos que está religiosamente pagando.
Mas se por um lado Tereza não gastou um centavo
pedindo voto, mas mesmo assim acabou por formar um passivo
alto para pagar devido aos vários meses sem uma atividade
remunerada, envolvida que estava de cabeça e alma na
campanha a favor do povo mais humilde, por outro lado, a
partir de seu ingresso na Câmara, muitos dos seus antigos
clientes, devedores dos produtos que tinham comprado fiado
decidiram não pagá-la, acreditando que ela tinha ficado
milionária.
Esta crença ocasionou um fenômeno duplamente cruel
para Latinha, pois nenhuma das pessoas que tinham comprado
fiado apareceu em seu gabinete para saldar as dividas e o seu
telefone não para de tocar, com os credores buscando obter o
pagamento dos empréstimos efetuados ou de mercadorias
fornecidas. Os mais diversos valores são cobrados, e mesmo
dividas de “um real” são cobradas com afinco. Dívidas
contraídas há muito tempo e que já estariam pagas ou vencidas
pelo tempo, as chamadas dividas do tempo do “epa” também
ressurgiram com uma incrível ferocidade. A vereadora se mostra
um pouco aborrecida com este comportamento, e desabafa:
-Olha. Eu não tenho nem palavras pra dizer o quanto
isto me dói, pois pra me pagar ninguém vem, mas Deus está
vendo o esforço e ele vai me dar saúde para eu pagar todos os
trocadinhos que eu estou devendo, pagar todas estas pessoas
que parece que não tem Deus no coração, não sabem esperar,
querem sempre tirar algum proveito, que não estão fazendo
isto com boa intenção, estes que vem cobrar, buscam algo mais
que a própria dívida.

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Tereza, no entanto, não deixa de ressaltar que também
existe muita gente boa, e que ela não quer cometer uma injustiça,
pois estas pessoas emprestaram importâncias bem maiores e
não ficam ligando para ela a cada segundo para cobrar, porque
sabem da sua total honradez. Dentro destas pessoas a quem
Latinha é grata sobressai fulgurantemente a figura do Seu
Naldo, que tinha um filho, já falecido que nutria pela vereadora
grande afeição, e ela sabe que este empréstimo nasceu de como
uma homenagem que Seu Naldo fez ao seu filho.
Mas esta tristeza logo se transforma em alegria e a
vereadora finalmente acaba por perdoar os cobradores também,
na forma que mais gosta de se comunicar, usando a poesia que
a fez a vereadora mais querida dos paranaenses:
Quando entrei na eleição
O povo que ficou me devendo
Nenhum veio me pagar
Só vieram me cobrar
Mas um dia com certeza
Deus vai me ajudar
Aquelas pessoas que vieram me cobrar.
Um dia, Deus vai abençoa.
E com a ex-catadora se equilibrando na corda bamba
das finanças, maneirando aqui, economizando lá, atendendo
alguns pedidos no seu gabinete, alguns na escola onde voltou a
estudar, ou mesmo na rua, que de uma certa forma, não deixa
de ser seu gabinete, ela chega a triste conclusão:
- “Aqui na Câmara, se você tiver dez mil reais no bolso,
no final do dia você está liso”.
No afã de ajudar um de seus pobres eleitores em
dificuldade, Tereza já chegou inclusive a pedir dinheiro
emprestado para outros vereadores, mas nem sempre ela
consegue resolver o problema e muita gente, apesar de não ter
sido contemplada com a sua ajuda, sai da Câmara um pouco

103
mais confiante, pois vêem na vereadora a possibilidade de uma
vida melhor. Pois se foi possível para a Tereza, porque não
seria possível para eles?
A virada na sua vida a partir da eleição lhe reservou
outra surpresa que se mostra na inflação dos preços para ela,
uma verdadeira extorsão que fez com que todos os preços sejam
reajustados quando o vendedor atende a Tereza, se ela não
souber o preço da mercadoria antecipadamente, o preço
ofertado é rapidamente acrescido em duas ou três vezes, então
Tereza com a voz tranqüila de quem sabe que não é enganada
facilmente e abrindo aquele sorriso maroto da menina que se
escondia na arvore, confidencia:
-Eu testei uma loja. Perguntei quanto era o preço de
uma mercadoria, obtendo por resposta trinta reais, daí eu sai
da loja e pedi para a minha filha, que não é conhecida perguntar,
o valor tinha desabado para dez reais. Antes eu andava de pé,
hoje eu ando com as mãos pro chão, tudo que caí no meu
bolso escorrega pra fora.
É final do dia de trabalho no gabinete da Câmara, e ela
após ter atendido a quase duzentas pessoas neste dia, não parece
cansada e sim como se tivesse acabado de levantar de um sono
que a revitalizou, ela com a sua calma e segurança obtida ao
atravessar os mais difíceis momentos nos apresenta sempre uma
segurança de quem acredita que está sendo guiada por uma
luz divina, que nunca a abandonara.
Dia seguinte, dia de nova labuta, dia de votação de
projetos na Câmara, Tereza acorda com as forças redobradas e
com sua permanente convicção cultivada entre os sacos pretos
de lixo, sob os olhares atentos dos urubus e sobre a terra
descalça, uma convicção vinda do seu mais profundo “eu” que
alerta aos oportunistas de plantão, aos inimigos do povo que
se não for para ajudar o povo, ela não vota não.

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-Foi por isto que eu entrei, eu entrei para poder olhar,
brigar e vencer, se eu venci a eleição, eu quero ajudar a
população.
No novo dia de trabalho em seu gabinete da Câmara
ela vai passar o dia atendendo as mais diversas pessoas que
vão pedir desde cestas básicas, remédios, trabalho, informação,
orientação, ou ainda um pedido de incentivo na imagem de
uma mulher que aparece como a única que foi capaz de sair
vitoriosa contra um sistema que se reproduz ao infinito, e a
cada ciclo destrói parte da humanidade com suas garras de
leopardo, um sistema que ao invés de defender o oprimido
acaba por sentenciá-lo ao silêncio da carestia.
A resposta para estas pessoas que se encontram na linha
limite da pobreza é algo indescritível, as pessoas chegam
vencidas por este demônio que extermina a auto-estima das
pessoas empobrecidas e saem revigoradas ao ouvir da vereadora
as varias maneiras de enfrentá-lo, desde o próprio sentimento,
da boa vontade, do dom, do próprio ser de cada um, que na
verdade nós mesmos não sabemos bem. Esta postulação
metafísica de uma pessoa que somente agora está terminando
o ensino fundamental desconcerta, ela afirma que muitas vezes
nos não sabemos exatamente o que somos, e muito menos temos
ciência das nossas capacidades e potencialidades:
-Eu não sabia que eu era assim e só fui descobrir quando
entrei na política.
A sua inteligência e a sua perspicácia só foram
percebidas por ela quando se desvelou o imenso véu de pobreza
que a encobria, que não deixava aparecer a sua estrela radiante,
uma estrela que não é um rabiscar de triângulos justapostos
preenchidos pelo vermelho, que hoje faz chorar de vergonha
as pessoas que entregaram a vida por partidos ditos de esquerda
e que chafurdam no lamaçal da corrupção.

105
A sua estrela é realmente um objeto que brilha ao refletir
toda a sua vontade de vida e de luta pelos iguais, uma estrela
que cada dia passado se torna mais resplandecente, com um
aprendizado continuo que a torna cada vez mais e mais
consciente da triste realidade nacional, mas que também a faz
descobrir coisas boas dentro da fé que move a sua existência.
Pouco antes de começar a campanha eleitoral ela teve
uma conversa muito séria com o Senhor:
-Senhor você nunca me abandonou, nunca deixou eu
morrer de fome, nunca me deixou sofrer acima daquilo que eu
tivesse capacidade de suportar, eu sei que não vai ser agora
que irá me abandonar, me coloca na boca as palavras certas
para as pessoas certas, que eu possa vencer. Ajude-me Senhor,
me tire deste tipo de sofrimento que é a duvida de estar no
caminho certo. Eu estou sofrendo com carinho e eu sempre
vou lutar, sempre no Senhor eu vou confiar, sempre no seu
nome eu vou lembrar.
É dentro desta posição mística que a vereadora
encontra forças para buscar entender o que acontece nos
calabouços do poder, em seu imaginário aparecem políticos
que envidam os maiores esforços para macular o mandato de
quem está tentado agir com integridade, estes verdadeiros
mercenários dos votos querem acabar com a verdade e chegam
a oferecer grandes quantias para afastar do caminho as pessoas
que possam atrapalhar os seus planos sinistros. Foi dentro deste
imaginário que Tereza ficou com medo de que pudessem querer
dar um fim a sua vida, lembro do nosso primeiro contato, eu
como a primeira pessoa que se aproximou buscando a
possibilidade de contar a sua historia. Eu a convidei para me
visitar em casa para melhor nos conhecermos, ela traumatizada
pelo que passava na sua cabeça, ficou atemorizada,
confidenciando mais tarde, depois de ganhar mais confiança,
que achou que ia ser seqüestrada.

106
E o dia corre lento pelo gabinete da vereadora onde
com a sua voz tranqüila, ela continua a atender a população.
Apresenta a cadeira para o visitante se sentar, oferece um
cafezinho, uma água gelada, uma balinha para a criança que
muitas vezes acompanha o adulto e diz da sua vida:
-Nasci no Don Rodrigo e lá eu fui criada
perdi a minha mãe com onze anos de idade
criança, muito jovem, muito batida, muito maltratada
eu vim pra cidade e fiquei jogada
tinha dias onde não tinha onde dormir
ia dormir na casa dos outros, dos colegas
nada de mal comigo aconteceu
fiquei desempregada,
passei por tudo em minha vida
Terminada a sua historia, que se apresenta como se fosse
um verso, ela se compromete a fornecer o pedido, que sempre
é adquirido com os parcos recursos da vereadora, este pedido
de um pacote ou uma lata de leite, por exemplo, é acompanhado
de um conselho exemplar para que no dia seguinte a pessoa
levante bem cedinho, apanhe uma sacola e vá para as ruas buscar
materiais passiveis de venda. Ela continua a bater na mesma
tecla:
- “Não tenha vergonha de trabalhar, se você não tiver
coragem, venha aqui que eu vou com você, eu trabalho o dia
inteiro pra você, só pra você ver como é maravilhoso, como é
bom ter o próprio dinheiro”.
Esta recomendação é ouvida pelas pessoas porque é
dada por alguém que nasceu no meio da miséria do Dom
Rodrigo, mas com seu próprio esforço e mérito alcançou o
Olimpo do poder municipal. Tereza continua a se emociona
com a dor de um igual, se comprometendo inclusive a voltar
para as ruas para ensinar o semelhante na coleta de matérias

107
recicláveis, ela quer mostrar o caminho das pedras para o
desesperado.
Ela exorciza os demônios da vergonha, e afirma que a
coleta se nem sempre traz os recursos suficientes para encher
a barriga dos pequenos, é um inicio de caminho para a melhora
da auto-estima. A princesa das latas, com o olhar sonhador,
com o coração lançado na humanidade e com a firmeza de
quem andou por muitas ruas através de vários mundos,
confidencia que gostaria de salvar não só os pobres de Campo
Largo, mas sim do mundo inteiro. Daí, cai o terrível véu da
realidade, e ela reconhece que este objetivo é distante, e volta
a falar sobre o seu principal objetivo que é exterminar a mais
terrível das epidemias que assola este mundo tão real como é a
realidade do desemprego.
A eleição virou a vida da catadora de ponta cabeça, e
ao falar sobre o desemprego uma imensa tristeza obscurece a
sua felicidade, gera uma imensa sombra sobre o futuro dos
seres que habitam as ruas, que vivem das ruas, assim como ela
antes de entrar na campanha, na política, povo que ela nem
sempre pode ajudar por falta de recursos, inclusive pessoais.
-Eu era vendedora
vendia tudo, juntava roupa usada
abri uma loja aonde eu vendia
e era com isto quem a gente vivia
só que o povo que devia
nenhum foi me paga
quem eu devo
todo mundo vem me cobrar
Este verso depoimento traz a imagem de uma pessoa
que no meio da sua alegria pela eleição, sofre pela falta de
possibilidade de ajudar as pessoas carentes que vão à prefeitura
na busca de um apoio. E daí, pelo fato da vereadora ter
acarretado grandes prejuízos com a inadimplência de seus

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fregueses, ela reclama por não possuir uma importância em
dinheiro para o trabalho filantrópico, o valor pago pelo seu
trabalho de vereança que ela recebe num dia é todo voltado
para pagamento de dívidas, pois a honra é um valor realmente
atual para esta “Lady” das ruas que não pode imaginar ficar
devendo para quem quer que seja.
Ela faz questão de levar tudo sempre “certinho”, morre
de medo de que possam considerá-la uma “velhaca”, e assim
ela vai acertando todos os seus débitos, pois seu objetivo é
estar sempre “limpa” com a população e não quer de maneira
alguma ficar devendo, e principalmente devendo para o povo.
E esta divida com a população se reflete no seu grande
sonho que é o projeto para a constituição de uma Usina, uma
OSCIP18 que já foi criada em Araucária, e que está servindo de
modelo, para que seja aprovada pelo Ministério da Justiça.
Tereza já deu o primeiro passo na direção da concreção de
uma usina de re-processamento, que criaria uma forma de
desenvolvimento auto-sustentável, o “Instituto Sócio-
Ambiental Latinha da Solidariedade -Recicla”.
Enquanto ela está cuidando da parte documental para
a criação de uma OSCIP, o seu assessor Julio estuda o estatuto
da OSCIP de Araucária com afinco, de forma que no menor
espaço de tempo, seja possível, a partir da aprovação da Recicla,
enviar para a aprovação o projeto de lei.
Este projeto de interesse público, que conta com o apoio
de vários deputados federais do partido, necessitará de um
terreno que será pleiteado junto a Prefeitura, verbas para a sua
instalação, está dentro da bandeira da vereadora, que aposta
na sua aprovação, criando uma possibilidade de melhoria de
vida para aqueles que são iguais a ela.
Este projeto contempla ainda a conscientização da
população com relação ao meio ambiente, um trabalho junto
aos super mercados para que forneçam sacolas plásticas

109
coloridas para elaboração da coleta seletiva de lixo,
padronização de lixeiras, organização dos carrinheiros,
incentivos do Provopar, e principalmente a preocupação com
a educação. A volta destas pessoas para a escola, pois como
bem nos ensina José Marti, importante poeta cubano:
“Ser culto é a única maneira de ser livre.”
Uma volta escola que foi encampada pela própria Tereza
desde o primeiro dia de mandato e rememora os seus oito anos,
idade quando saiu da escola chamada Rosário, escola da qual
ela muito gostava, e que guarda muitas boas recordações.
Tequinha era uma aluna muito aplicada, mas o seu pai a tirou
da instituição para que ela cuidasse de um sobrinho.
O seu grande sonho que era poder estudar para que
conseguisse um salário digno se esvaiu antes que completasse
dez anos, mas como isto não foi possível, hoje uma das suas
grandes lutas é possibilitar a educação para as classes menos
favorecidas como forma de conseguirem um emprego melhor.
A sua volta a escola deu-se de maneira soberba, e o
estudo é a principal tônica para a brilhante aluna de Dona Lídia,
professora da Escola do Sesc. Tereza é uma aluna que está
sempre adiantada com os deveres e que mesmo na sua posição
de estudante não deixa de ajudar uma senhora, colega de classe
que entra na sala com uma receita médica prescrita para um
filho com problema grave.
A velha senhora passou pelo “postinho” de Balsa Nova,
cidadezinha próxima a Campo Largo e lá não havia o remédio.
Tereza puxa para si a responsabilidade de obtenção do remédio
apesar da mulher não ser sua eleitora e nem mesmo da cidade.
Para ela tudo isto são detalhes, o que importa é que ela é
representante d todos os povos, e não somente dos seus
eleitores. Pega a receita e deixa a aula por um momento para ir
até o “postinho” de saúde de Campo Largo para conseguir o
remédio para o filho da velha mulher.

110
Nova decepção, também lá não existe o remédio, mas
a senhora de Balsa Nova, não pode voltar de mãos abanando
sem o medicamento para o querido filho, e ai como faz muitas
vezes, a vereadora vai conseguir esse remédio, comprando com
os próprios parcos recursos o remédio para a colega, remédio
que compra fiado para pagar quando receber o soldo municipal,
pois ela nos confidencia que dinheiro na sua mão não dura.
Mas não é só na escola e no gabinete que Tereza
cuida dos seus povos, ela também não esquece daqueles que a
ajudaram quando mais precisava, e tira um tempinho para visitar
seus velhos amigos das Vilas Populares.
A primeira visita é na casa de Dona Maura, cujo marido,
ao observar a catadora revirando os latões de lixo, a chamou e
disse que tinha bastante latinha na sua casa, e que ele e sua
esposa gostariam de ajudar os catadores de lixo, pois eles
achavam uma injustiça trabalhar nesse trabalho pesado.
Tereza concorda com a lembrança do amigo e conta
dos seus planos da Usina, pois reconhece que a atividade de
coleta é muito dura e que acabam ficando com a menor parte
do ganho, pois o lucro acaba mesmo é no bolso dos
atravessadores, que ficam sentados em suas poltronas
confortáveis esperando os catadores entregarem a produção
diária por míseros tostões.
E ao lembrar da dificuldade que esta enfrentando para
criar a sua Usina de Reciclagem, ela, na sua lógica humanista
que lhe é peculiar, singelamente propõe:
- “Se cada pessoa de Campo Largo doasse dez centavos,
quantos mil reais num dava? Dava para construir um barracão
de reciclagem de lixo, e evitar ao atravessamento”.
Latinha fica ainda mais triste ao perceber a
dificuldade que é a coleta de latas, pois nem mesmo as latas as
pessoas querem dar hoje em dia, e ela conta do sofrimento que
lhe corta o coração toda vez que vê passar um carroceiro com

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seu carrinho vazio, e daí lembra das trovas feitas sob o
ensurdecedor calor dos dias de verão, e que ainda remoem nos
seus ouvidos, e fazem latejar a sua alma:

Queria ganhar pra poder viver


Ganhar para parar de sofrer

Tereza conhece como ninguém o conceito de


solidariedade humana, pois quantas vezes ela não deixou de
trabalhar para si, para ajudar a feliz nova proprietária de um
carrinho, que apesar da ferramenta, não sabia trabalhar direito
na coleta. Mas, por outro lado, ela teve pessoas como a Dona
Maura, que guardava coisas dela e ainda arrecadava
mercadorias velhas com os vizinhos para ela, esta solidariedade
possibilitava ainda a certeza de duas refeições garantidas por
semana, uma na casa de Dona Maura e outra na casa do Seu
Antonio.
Seu Antonio, outro dos grandes amigos e protetores
de Latinha, para quem ela deu um armário, que apesar de jogado
no lixo, posto fora da casa, estava ainda em muito boas
condições.Tereza ao concluir que não valeria a pena pagar um
carro para levar a mercadoria para a sua lojinha, ao invés de
largar o objeto e continuar sua ronda, ela não poupou trabalho
em carregar o móvel até o bar do amigo fazendo um presente
a uma pessoa que sempre a ajudou. Esta sua preocupação com
o próximo, esta sua maneira de ser que apesar de toda a pobreza,
não a deixa se transformar numa pessoa mesquinha e lhe permite
sem demagogia dizer que ela nunca quis para si própria, ela
sempre quis para todos.
A segunda parada foi na casa do dono do barzinho,
onde Tereza foi recebida como uma rainha por ele e sua esposa.
Seu Antonio, com os olhos rasos d’água, emocionado ao ver a
velha amiga, começa a nos contar às vezes que ela ia almoçar

112
em sua casa, às vezes ela comia no seu bar, e ele sabedor que
seria a única refeição do dia, lhe ofertava um pão com
mortadela.
Durante a campanha ele não cansou de pedir para que
todos os fregueses e amigos que votassem em Tereza, porque
para ele se alguém merecesse ser eleito era esta mulher, mas
lembra que não esquecia de aconselhar a Tereza, que se ela
conseguisse alcançar o poder não deveria esquecer das pessoas
pobres e que tivesse muita fé em Deus porque ele estaria sempre
do seu lado caridoso.
Seu Antonio ainda recorda dos dias de um frio intenso,
nos quais ela quase que não conseguia andar, e que depois da
sua recomendação de que ela deveria estar na cama, a catadora
seguia o seu caminho por entre a sujeira e os restos que o
mundo lhe ofertava, cobrando um preço descomunal que era a
sua saúde.
As lagrimas rolam pelo rosto, ao mesmo tempo duro
pelo sofrimento de uma vida difícil, mas também cheio das
marcas da compaixão, ao declarar-se emocionado, ao afirmar
que no dia da eleição ao saber do resultado, chorou como uma
criança, pois a vitória da velha amiga foi como se fosse também
a sua vitória. A seguir, lembra-se de uma vez, logo depois da
operação de laqueadura que Tereza tinha sofrido, eram nove
horas de uma noite fria e chuvosa, e Seu Antonio a viu andando
na busca do sustento, ele assim como Tereza sabe o que é a
fome:
-A gente é tudo gente simples, a gente pode presta favor
e ajuda sempre com carinho.
Seu Antonio aproveita para se queixar do
comercio que está muito parado, diz que não tem nada na vida,
mas que é um sonhador, e assim vai vivendo tocando o seu
comercio. Na continuidade da conversa, o dono do barzinho,
embora grande amigo da vereadora não deixa de comentar que

113
os campos do bairro não foram roçados ainda, e que existe um
certo esquecimento do bairro, ao que a vereadora mostra-se
ao par do assunto, ao relatar que tem reclamado da conservação
dos bairros nas reuniões plenárias, e ela sabe que as ruas não
receberam ainda nenhum tratamento, mas que é difícil fazer o
serviço quando num deixam o governo governa, e que apesar
do seu bom dialogo com o prefeito não tem conseguido nada
porque ele está preso.
Tereza ainda faz questão de visitar um restaurante, que
Tereza às vezes pagava e as vezes acabava por ganhar a refeição
grátis. Este restaurante lhe trás gratas lembranças pois foi nesta
rua que ela encontrou o senhor dos ácaros, um livreiro que
profetizou a gloria breve para a sua amiga.
Era também aqui que toda sexta feira, Dona Marivani,
proprietária do Restaurante Pingo de Ouro, ao receber a oferta
de compra do jornal da amiga jornaleira, que dizia precisar
vender o jornal para poder comer, respondia com o seu singelo
sorriso, o jornal não vou querer não, mas pode comer assim
mesmo. Dona Marivani relembra o senhor dos ácaros, que um
dia parou Latinha na rua e lhe dirigiu umas palavras de esperança
num futuro melhor, e que Latinha julgou que estava doido.
Este senhor que tinha problemas com ácaros, uma
incrível alergia que fazia com que ele somente pudesse dormir
de pé, pois os seus ouvidos ulcerados não podiam entrar em
contato com nada, esta pessoa que a jornaleira considerou como
a mais triste que tinha visto, o viajante da dor noturna uma vez
lhe disse:
- A sua velha amiga e companheira de caminhada, a
Estrela, está brilhando pra você, você vai ser a pessoa mais
famosa da cidade, vai andar de avião, de navio, vai crescer na
vida, só cuidado porque você vai ser muito assediada, mas
você vai ser uma pessoa muito famosa. Eu quero que você
lembre-se de mim com muito carinho, porque eu sofro muito,

114
e a sua vitória vai contribuir para acalmar a minha dor. Você
vai ser muito famosa, não se desespere, siga seus objetivos e
procure a salvação do mundo, como eu um dia já tentei.
A jornaleira voltou para casa onde contou a sua
conversa com um velho louco lá de Campo Largo, acontece
que os fatos mais loucos muitas vezes se transformam em
realidade, ou não seria loucura, falar da vinda de Cristo antes
da sua efetiva visita aos nossos lares.
Continuamos, mais um tempo parados na porta do
restaurante, olhando para a velha livraria agora abandonada
devido ao prematuro desaparecimento do Senhor dos ácaros,
Tereza observava com atenção um casal de andarilhos próximos
a nós.
Tereza rompe aquele momento de silêncio ao dizer que
desde o seu tempo de infância, ou seja, não era de hoje, que ela
notava que alguns tipos de mendigos, às vezes não querem ser
ajudados, eles vivem desta forma por que gostam. Tereza
consegue entender a diversidade dos padrões de vida, cada um
escolhe o seu destino.
Esta liberdade que ela verifica nos andarilhos
parece puxar pelas lembranças do tempo em que ela era mais
livre, que podia tomar o seu “amarguinho” tranqüilamente, sem
ser notada, que podia se arrastar horas a fio numa conversa,
lembrança de um tempo que às vezes num tinha dinheiro pro
ônibus, mas que caminhava anônima e livremente pelos
caminhos das latas.
Hoje, toda a tragédia, todos os problemas buscam nela
a solução, a maior parte da população pobre procura seu
gabinete na Câmara, uma força no planejamento de um bingo
em beneficio para um menino de onze anos com câncer, o
mesmo para uma menina chamada Rafaela com o mesmo
problema, uma prenda pra se fazer um bingo deixada acolá,
pedidos de moradias, de empregos, de remédios fazem parte

115
desta triste rotina estigmatizada de um município pobre dentro
de um pais miserável. Assim Tereza, se não pode resolver
totalmente o problema, pelo menos ameniza e mostra a
vitalidade da representante dos pobres.
Toda sua atividade tem como objetivo o bem das
populações esquecidas pelo município, suas decisões estão
sempre atreladas ao seu coração, está sempre pensando no
amanhã, por que o hoje é hoje, e a nossa educação está muito
ruim, faltam escolas e professores.
Tereza, do fundo do coração, acredita que o governo
deveria liberar o trabalho do menor, porque se ele estiver
trabalhando nas horas fora da escola, carpindo um terreno,
pintando um portão, ele vai ganhar um “deizão” para poder ir
numa festinha, se ele estiver trabalhando ele não vai ter tempo
para roubar e usar droga. Outra preocupação é com a
documentação dos carrinheiros muitos deles não tem sequer o
registro de nascimento, não tem como se aposentarem, não
conseguem nada com a assistência social.
Mas existe também a percepção de que a cultura
também se dá através do artesanato, e que aquilo que é
encontrado no lixo, pode ser utilizado de maneira a virar luxo,
como é o caso dos abajures feitos com latinhas que são vendidos
no mercado Francês a trezentos dólares a peça, ou no caso da
velhinha da ferinha do Largo da Ordem que utiliza o lixo para
criar bonecas, ou no caso que tive oportunidade de verificar
em Cuba, onde o artesão construiu um simulacro de uma
maquina fotográfica usando latinhas.
A demora em colocara a Usina de Reciclagem em
funcionamento a deixa apreensiva, pois com ela, os catadores
poderiam obter um melhor rendimento com a coleta, mas a
sua luta não se resume a aspectos econômicos e sociais, ela
sabe da importância da sua condição de mulher, e pobre ainda
por cima. Um dia convidada para uma reunião eminentemente

116
machista, um jantar de vereadores só para homens, ao chegar
no local é aconselhada por um dos vereadores a não permanecer
no evento, uma vez que era um evento masculino, mas Tereza
do alto dos seus um metro e sessenta se agigantou para dizer
em alto e bom som que ela era uma mulher macho e que lutava,
enfrentava qualquer batalha, que lutava e enfrentaria o que
tivesse que enfrentar, que enfrentaria até a morte, para provar
a igualdade entre os gêneros masculino e feminino:
-Vô e vô ficar e vo ficar. Você apesar de homem
e instruído não tem capacidade nem de cuidar dos projetos.
Seu malandro.
Ela tinha colocado o político em seu devido
lugar ao chamá-lo de malandro.
É final do dia de trabalho no gabinete da Câmara, e ela
após ter atendido a quase duzentas pessoas neste dia, não parece
cansada e sim como se tivesse acabado de levantar de um sono
que a revitalizou, ela com a sua calma e segurança obtida ao
atravessar os mais difíceis momentos nos apresenta sempre uma
segurança de quem acredita que está sendo guiada por uma
luz divina, que nunca a abandonara.
Saindo de seu gabinete, ela ainda tem vigor para um
passeio pelas ruas da cidade, uma conversa ali, uma proseada
aqui, o que tem de errado no seu bairro, um “estimas melhoras”
para um doente ou ainda “uma passadinha” num velório para
prestar a solidariedade para a família em luto. Depois de fazer
a ultima visita, ela vai para casa, antigamente, antes da eleição,
a vereadora podia tomar um amarguinho e investir um ou dois
reais jogando nas maquinas caça níqueis que existia no
Kaminski, mas agora, prefere o sossego de sua casa, longe dos
olhares que buscam qualquer motivo para incriminá-la, ou pelo
menos depreciá-la.
Lá ela pode tomar um golinho do vinho de pêssego, ou
quem sabe um amarguinho, raiz amarga, que ela demonstrando

117
um profundo conhecimento, fala dos vários tipos desta bebida
de raiz amarga, mas ela só gosta de uma que é engarrafada
num litro com uma placa branca, eu não gosto muito daqueles
de placa preta e de placa verde.
A sua atitude de evitar atualmente de tomar um
traguinho no final da tarde num local publico, demonstra mais
uma vez o preconceito com as classes mais baixas, uma vez
que o hábito de beber é transpassado por pesos e medidas
diferentes dependendo da posição social do individuo, posição
dada por esta postura elitista de desprezar as pessoas com
menor nível de renda ou instrução, assim se um político
proveniente das classes menos favorecidas bebe é bêbado, mas
se um famoso político como o falecido deputado Ulisses
Guimarães toma um grande porre de poire19 ele estava
brilhantemente discutindo os futuros da nação.
Bem vereadora, acho que já está na hora de tomar um
vinho de pêssego, ou quem sabe um amarguinho daqueles que
é engarrafado num litro com uma placa branca e contar as
histórias que só Vossa Exa sabe contar.

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Capítulo 5- Histórias da Latinha

O encontro com pessoas que já morreram

A vereadora que já foi na vida operária, catadora de


latas, jornaleira, vendedora ambulante, sorveteira, jardineira,
mãe, avó, defensora de mulheres que estavam apanhando,
trovadora, poetiza, e sei mais o que. É acima de tudo uma
grande contadora de histórias, de modo que cada vez que eu
me preparava para finalizar o livro, encontrava a Tereza e lá
vinham novas histórias, histórias que ela recicla como o alumínio
das latinhas.
Desta forma, resolvi dedicar esta parte final do livro à
transcrição das ultimas historias que ela me contou, deixando
espaço para muitas outras que aparecerão com certeza para a
próxima edição pois Tereza entende e interpreta o imaginário
popular como ninguém.
Ela conta que certa vez que encontrou com uma pessoa
que já tinha morrido a mais de cinco anos, mas que ela não
sabia. Estava voltando do trabalho para casa de sua irmã, onde
deixava a pequena Eva durante o dia pra ir trabalhar, quando
no caminho passou pelo Seu João com quem trocou uma meia
dúzia de palavras.
Chegando na casa da irmã comentou que tinha
encontrado com o Seu João da Maria, aquele que vizinho que
morava ali perto.
- “Uai! Mas ele morreu faz muitos anos”. Respondeu
uma incrédula irmã.
- “Pois é. Eu vi ele agorinha mesmo”. Falou Tereza
achando que a irmã estava mangando com ela, achando
impossível tal afirmativa devida a conversação entabulada
minutos atrás.

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Como a irmã não negava a sua afirmação inicial, Tereza
resolveu ir até a casa do suposto vizinho. Lá chegando, qual
não foi a surpresa de Latinha, ao ver a mulher do morto não só
confirmar a sua morte ocorrida a mais de cinco anos, como
também mostrou a lembrança do falecido, o santinho com a
foto daquela pessoa que ela tinha acabado de conversar.
Tereza conta que estas visitas de pessoas mortas são
muito comuns nas cidades do interior paranaense e estes tipos
de ocorrência aconteceram varias vezes no tempo em que era
mais moça, era normal ela chegar em casa e comentar com
marido, ter visto certa pessoa, ao que o marido respondia que
era impossível pois esta pessoa tinha morrido a muito tempo.

O sobrinho canalha

Esta mesma irmã que Tereza pagava para cuidar do seu


filho doente e da Eva, e que era casada com um dos irmãos do
Chico, um dia convidou Tereza para ir junto com ela na casa
de seu filho Jair. Na casa do sobrinho, ela notou que o rapaz
tinha tomado uns goles a mais, ele não estava bêbado, mas um
pouco alterado. Tereza, muito jovem numa época de muito
calor, apesar de estar usando uma saia curta, agia de uma forma
séria sem dar maiores chances de sequer por um momento
imaginarem alguma tolice, e além disso a menina sempre
acreditou que o valor das pessoas esta nas atitudes e não
simplesmente no pacote que a reveste.
Como a casa do sobrinho estava suja a irmã de Latinha
pediu licença e foi buscar uma vassoura para varrer o chão,
deixando os dois a sós por um momento. Assim que sua mãe
se afastou, o sobrinho começou a falar umas palavras de baixo
calão para Tequinha :- “Ele falou que ele queria que eu fosse a
mulher dele.”

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Indignada com as palavras do sobrinho, ela foi embora
logo que a irmã voltou, sem nada contar, porém ao chegar em
casa ela percebeu a enrascada em que tinha se colocado, pois
se contasse para o Chico ele ia querer matar o sobrinho, se
contasse para a irmã, ela não ia acreditar.
Nesta triste situação, a pobre menina passou vários dias
num estágio de depressão profundo com o que lhe tinha
acontecido, chorava o tempo todo. Ia trabalhar chorando,
voltava chorando para buscar os filhos na casa da irmã.
Com o passar dos dias, Latinha foi adoecendo, ela
começou a apresentar uma terrível dor de barriga, mas que
não era uma dor verdadeira, era aquilo que tava guardado,
trancado, querendo explodir. Ela foi ao medico que lhe
prescreveu vários remédios entre eles, o Neoptil e o Gripol.
No dia seguinte ao se levantar, Tereza na sua peculiar
prosa consigo mesmo, nos seus trabalhos que faz com o próprio
pensamento, falou em voz alta para consigo mesma: “- Toma
vergonha Tereza volta no medico e devolve todos os remédios”.
O marido ao ouvi-la falando sozinha comentou que
achava que a mulher tinha perdido o juízo de vez.
Tereza na sua costumeira firmeza respondeu de novo
para si mesma:
- “Eu não vou perder o juízo por causa de louco tarado,
eu vou ficar sã, perfeita”, e decidida em seu caminho rumou
diretamente para a farmácia onde relatou que aqueles remédios
eram de uma vizinha que já tinha ficado boa e por este motivo
era para ele doar os medicamentos para quem estivesse
realmente precisando.
Após o seu belo ato, que mesmo em meio a um turbilhão
mental, teve forças para ao invés de jogar o remédio fora,
lembrar que poderia haver alguém podia estar precisando deste
medicamento, Tereza voltou para casa e contou o ocorrido
para o marido, não sem antes adverti-lo que ela estava contando

121
o ocorrido para se livrar do turbilhão que estava em sua cabeça,
e que não era para ele mexer com o aquele sobrinho metido a
Don Juan, pois caso contrário ela o arrebentaria de porrada.
Tereza não quis ser o pivô de uma briga que se
prenunciava sangrenta e o motivo para contar o ocorrido era
que o marido precisava saber o tipo de sobrinho que ele tinha,
e mais que se um dia, o sujo sobrinho precisasse de ajuda, ela
ajudaria. Em seguida foi diretamente para a casa da sua irmã,
sentou num banco da cozinha e começou a contar a triste
história, falando da sua decisão de contá-la, pois o seu silencio
a estava deixando louca, estava ficando com problema sério e
até ao psiquiatra ela já tinha ido por culpa do sobrinho.
Enquanto ela contava o acontecido, o sobrinho sem
saber que a tia lá se encontrava, se adentrou pela cozinha.
Tequinha, percebendo a sua presença, pulou como um gato e
segurando-o pelos cabelos aplicou sonoras bofetadas no seu
rosto: - “Sem vergonha, bandido, você está pensando o quê,
você é meu sobrinho”.
Desde este episodio Tereza nunca mais encontrou o
sobrinho canalha e ela conta a história para mostrar a
importância de resolvermos situações que se apresentam
embaraçosas, pois se ela não tivesse botado um ponto final na
historia, ela estaria até hoje fazendo um desnecessário
tratamento psiquiátrico, ou seja, a vereadora Latinha não deixa
por menos resolve sempre os problemas até o fim.
A importância da sua história está na semelhança com
muitas outras que ela conhece, e que por falta de pulso firme,
de um final terrível, que ela saber que é melhor que um terror
sem fim, muita gente ficou doida, perturbada por causa deste
tipo de situação.
Assim ela sugere que se você tiver um sentimento que
esteja incomodando, não se deve tomar remédio para controlar
este pensamento, o remédio e você soltar aquilo que te

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incomoda, pegar um pedaço de pau e malhar, ou atirar uma
pedra, ou chegar na pessoa e resolver, pois ela diz que se ela
tem qualquer coisa ela não consegue guardar.
Ela me conta que quando nos conhecemos ela pensou
que eu estava com a intenção raptá-la, e mesmo este pequeno
sentimento ela faz questão de contar porque se ela não põe pra
fora e deixa guardada uma coisa que ela pensou e não era
verdade, pode um dia virar realidade em seus pensamentos.

O senhor dos ácaros

Mas de todas historias que Latinha me contou talvez a


mais excepcional diz respeito a um senhor que ela encontrou,
que era dono de uma livraria. Este senhor, já falecido, tinha um
problema alérgico com ácaros, organismos microscópicos
presentes em maior número em ambientes mofados, como é o
caso do pó de dos livros. Estes microorganismos atacavam
por dentro dos seus ouvidos lhe causando uma espécie de
alergia, fazendo com que andasse inclinado tal qual a Torre de
Pisa, com a cabeça amarrada por uma espécie de lenço.
A lembrança deste homem desaba em sua mente cada
vez que fecha os olhos, a adoração por esta figura desabrocha
em suas palavras, na lembrança de um dia triste quando
caminhava pelas ruas sem nada nos bolsos, esvaziados que
tinham sido por um ladrãozinho sem escrúpulos, numa angústia
da lembrança que até mesmo os fregueses de jornal estavam
inadimplentes.
Já tendo perdoado o larápio que tinha tomado todo o
seu dinheiro, notou que a raiva não tinha brotado, e que em
seu peito só restava uma sensação de angústia e dó por aquele
malfeitor, que não tinha se importado de assaltar uma pessoa
indefesa, ela no seu rumo, na sua rua quase trombou com seu
Abilio. Ele após as saudações habituais, e depois do relato das

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agruras da velha amiga, colocando a sua mão na cabeça de
Latinha pediu para uma senhora que o acompanhava que
buscasse uns ovos em sua residência pois sentia que tinha
alguém que estava precisando.
Latinha não entendendo o motivo de tal pedido, achou
que aquele senhor estivesse variando, que estivesse fora do
controle de suas atitudes, ou seja, que estivesse “loqueando”.
Porém, assim que a senhora saiu para buscar dos ovos
solicitados, Seu Abilio perguntou pelo nome da jornaleira, e
ao receber a resposta lhe falou:
-Dona Tereza, olha lá pra cima, a senhora esta vendo
aquela estrela?
No meio de um dia claro de inverno ela não acreditou
ao ver resplandecendo no imenso azul claro do céu aquela
estrela rascante que há muito a acompanhava, mas que
ultimamente parecia a ter abandonado. O senhor dos ácaros
então lhe contou que aquela estrela estava próxima de se
deslocar, de riscar e cingir os céus, e quando isto acontecesse
ela se transformaria na pessoa mais famosa, uma verdadeira
celebridade, alguém muito importante, conhecida de Norte a
Sul, de Leste a Oeste neste imenso pais continente que é o
Brasil. Em sua visão ele previa ainda, viagens de avião, ônibus
e até de navio, ela conhecia navio?
Cada vez mais intrigada com aquela loucura
desenfreada, ela respondeu que só conhecia navio por
fotografia, e avião somente os que passavam bem longe no céu
e que nas noites passadas no Matão lhe enchiam de pavor ao
confundi-los com “visagens”.
-Pois é, mais você vai viajar por diversos campos de
aviação, vai para Brasília, vai passar por situações que você
nem imagina. Você vai ficar inebriada de tanta glória, porque
você vai ser uma pessoa muito poderosa. Aliás, você já é

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poderosa e é pena você não saber quanto poder tem dentro da
sua cabecinha aí.Quanta inteligência tem dentro dela.
Quando a senhora voltou com os ovos, ela se despediu
do casal, não sem antes agradecer efusivamente, o seu
pensamento balançava entre aquilo que o senhor tinha dito a
respeito do seu futuro talvez distante e o futuro imediato do
que fazer com aqueles ovos, uma vez que ainda teria que andar
um bocado carregando uma pesada sacola abarrotada da ultima
edição da Folha de Campo Largo.
Um pouco á frente, Tereza encontrou com o seu genro
caminhando num gingado triste e desolado, o rapaz ao avistá-
la, abordou-a no meio da rua iniciou a conhecida ladainha de
problemas, porque cortaram a água, a luz, e tal e coisa. Tereza
se livrou rapidamente do “reclamão” e se dirigiu para a creche
onde trabalha sua filha Márcia. Lá chegando mostrou os ovos
que tinha ganhado e contou a história do velhinho dos ácaros,
e de sua previsão a respeito da necessidade de alguém pelos
ovos, mas apesar de toda aquela boa vontade, ela não queria
manter os ovos, que já tinham quase espatifados, com ela.
Ela teria ainda uma longa tarde no árduo trabalho da
venda de jornais e toda movimentação que sem duvida
acarretaria que os mesmos se transformassem numa enorme
omelete a céu aberto. Os olhinhos de Márcia brilharam ao dizer
para a mãe que aqueles ovos tinham sido uma obra divina, pois
ela e o marido estavam sem nada para dar de comer as crianças,
já que estavam com dinheiro certo para o pagamento das contas,
e que aqueles ovos seriam a refeição a tempo esperada pelos
pequenos.
Uma parte daquilo que o velho livreiro tinha previsto
acabava de acontecer, agora era Latinha esperar pelo próximo
episodio. Ela que sempre acreditou na estrela que riscou o céu
em Don Rodrigo no dia de seu aniversario, tinha a certeza que
um novo mundo ia começar a se descortinar no cenário da sua

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vida. A verdade é que mesmo quando ela se sentia um verdadeiro
trapo, a crença em Deus nunca a deixou cair em desespero, e
ela mostrou e continuar a mostrar para as pessoas que a
procuram e que estão desesperadas.

Notas:

1 Conforme Sahlins, M. em “O pessimismo sentimental”, Mana, Rio de Janeiro, 1997.

2 idem

3 Conforme Fernando Larossa em “Dar a ler”

4 Conforme Fidel Castro em

5 Aqui abuso da liberdade poética para relacioná-la a Madre Tereza de Calcutá que teve

grande atuação pelos pobres de todo mundo.

6 É mister lembrar que com relação aos negros só de escravidão forma trezentos anos,

fora a exclusão sofrida após a alforria.

7 Aquelas feridinhas que conhecemos como afta.

8 Urdiduras são machucaduras de origem muscular tais como entorses, mal jeito,

torcicolo, etc.

9 Conforme Milton Nascimento na música “Maria, Maria”

10 Paulinho Nogueira em sua música “Menina”.

11 Abralatas é a abreviatura de Associação Brasileira de Reciclagem de latas

12 Conforme a fonte CEMPRE

13 Idem

14 conforme Thomas, K. em “O homem e o mundo natural”, 1989, Companhia das

Letras, São Paulo

15 Sambista da Escola de Samba Beija-Flor.

16 O cru e o cozido-livro de Levy Strauss

17 Conforme canção pela unidade americana de Pablo Milanês e Chico Buarque.

18 Organização de sociedade civil de Interesse Público

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19 Se diz “poaire” em francês, um tipo de aguardente de pêra vendida por um preço

médio de quatro dólares em restaurantes grã finos.

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