O GUARANI
A PROTEGER
As águas subterrâneas, entre elas o Aquífero
Guarani, formam um imenso sistema que
abastece grande parte do Estado e do país.
Porém, essa gigantesca reserva está
vulnerável, ameaçada por uso
descontrolado e contaminação
GUILHERME ALMEIDA
Aquífero
Guarani
vulnerável SIMONE SCHMIDT
O
Brasil é o país com maior oferta
Estudo da hídrica do mundo. Cerca de 12%
Agência Nacional da água doce do planeta está
aqui e a maior parte dessa dispo-
de Águas aponta nibilidade, 97%, vem dos subterrâneos. Es-
para a sa reserva teria capacidade para abaste-
cer a população brasileira pelos próximos
possibilidade 2,5 mil anos. E o Aquífero Guarani, parte
dele debaixo de solo gaúcho, é o maior
de contaminação aquífero transfronteiriço do mundo. O
subterrânea por uso, entretanto, já se mostra intenso e as
instituições vão em busca de mais conhe-
indústrias cimento sobre esse “mar” sob o solo.
A Agência Nacional de Águas (ANA),
órgão regulador dos recursos hídricos no
país, apura vulnerabilidades nos locais
de afloramento do Guarani, ou seja, na-
queles pontos mais próximos da super-
fície, por onde a água entra para chegar
às profundezas e de onde também sai. Es-
pecificamente sobre o Rio Grande do Sul,
as primeiras conclusões pedem preven-
ção e cuidado. A totalidade do levanta-
mento tem previsão de divulgação em
agosto, mas os primeiros números adian-
tados pelo coordenador de Águas Subter-
râneas da ANA, Fernando Roberto de Oli-
veira, já servem como alerta. “Foram
identificados 16.014 empreendimentos
pontuais potencialmente contaminantes
enquadrados principalmente nas classes
de indústria de madeira (4.939), transpor-
te, terminais, depósitos e comércio
(2.515) e indústria têxtil, de vestuário,
calçados e artefatos de tecidos (2.067)
com base no cadastro do Ibama. A distri-
buição de riscos potenciais por estado
mostrou que o Rio Grande do Sul e San-
ta Catarina são as unidades federativas
que reúnem o maior número de empreen-
dimentos potencialmente contaminan-
tes”, detalha o documento.
Também tivemos aqui no Estado redu-
ção de 39,7% das áreas de afloramento
do Guarani. Adriana Niemeyer Pires Fer- o documento mostra atividades de empre-
reira, especialista em Recursos Hídricos sas com as quais se deve ter cuidado,
e integrante da equipe de Oliveira, expli- mas assinala: “Não quer dizer que essas
ca que essa redução não significa neces- atividades não possam ser desenvolvi-
sariamente diminuição de água dentro das”. Ela lembrou que o documento serve
do aquífero. Se a entrada de água dimi- mais como alerta para os Estados quan-
nui, a saída também. E a ocorrência, diz do precisarem conceder licenças a empre-
Adriana, pode ser apenas de ordem natu- sas nas regiões do aquífero. A agência re-
ral. Quanto às indústrias e à contamina- guladora, explica, não está produzindo o
ção, Adriana destaca a expressão “poten- material no sentido de reprimir, mas de
cial” escrita no texto para esclarecer que prevenir e mostrar os “potenciais” riscos.
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A Corsan atende
317 cidades.
Grande parte do
abastecimento para
consumo humano é
feito por meio de
águas subterrâneas:
40% das captações
(129 municípios).
Além disso, em outras
90 cidades, 29%, a
situação é mista,
água subterrânea e
superficial.
Nos 31% restantes,
98 municípios,
a captação é somente
superficial, por meio
de rios, lagos
ou outros locais
na superfície.
o solo. É significativo, mas importante dos e o Rio Grande do Sul tem a segunda po de trabalho é avançar na integração
ressaltar, conforme lembra o geólogo maior extensão no país: 157,6 mil quilô- do Sistema de Informações de Águas Sub-
Maiquel Lunkes, da Corsan, que essa metros quadrados, atrás apenas do Mato terâneas do RS (Siagas) com o Sistema
água usada para beber conta com ge- Grosso do Sul, com 213,2 mil. O tamanho de Outorga de Águas do RS (Siout). O Sia-
renciamento da companhia apenas do aquífero em terras gaúchas é superior gas tem o apoio do Serviço Geológico do
nas áreas urbanas. Em zonas rurais a ao registrado no Uruguai e no Paraguai Brasil (SGB) e é composto por uma base
situação é outra e os poços muitas ve- juntos. Os demais estados brasileiros lo- de dados de poços que é permanentemen-
zes são abertos por pessoas físicas, calizados sobre o aquífero são Santa Ca- te atualizada. Já o Siout busca aperfei-
que não procuram os órgãos compe- tarina, Paraná, São Paulo, Mato Grosso, çoar o gerenciamento das concessões às
tentes para obter a licença, o que reve- Goiás e Minas Gerais. outorgas de uso de água. Se os dois ór-
la uma outra necessidade no levanta- gãos seguirem juntos nesse trabalho, ma-
mento que a Câmara Técnica está pre- POLÍTICA SEGURA peamento e controle deverão ser facilita-
parando: fazer uma grande campanha . dos. “Queremos trazer todos os poços pa-
de regularização desses poços, o que Buscar uma política de águas subterrâ- ra dentro do sistema”, reitera Cardoso,
tornaria mais preciso o levantamento. neas para o Rio Grande do Sul tornou-se lembrando a importância da regulariza-
necessário e é uma preocupação antiga, ção. “O objetivo não é punir”, alerta, lem-
SISTEMA GUARANI mas um trabalho ainda em construção. brando que se a totalidade dos poços pe-
. Os estudos já eram planejados em 2005, lo Rio Grande do Sul estiver listada nos
Vivemos sobre uma reserva subter- quando a Secretaria do Meio Ambiente sistemas de gerenciamento e outorga, co-
rânea gigantesca de água. Além de da época anunciou a confecção de um nhecer detalhadamente quantidades, volu-
consumo humano e de animais, que mapa hidrogeológico do Rio Grande do me e vazão dos subterrâneos do Estado
são prioridades, a água é necessária Sul em convênio com a Companhia de já estaria em “meio caminho andado”.
para a indústria e a agricultura. No Pesquisa e Recursos Minerais (CPRM). O geólogo Maiquel Lunkes, da Corsan,
Brasil, o Sistema Aquífero Guarani é o O objetivo do mapa, segundo noticiava também é integrante da CTAS. Para que
segundo em volume de água. O primei- o site 13 anos atrás, era “a caracteriza- se entenda por que é necessário um ma-
ro é o Sistema Aquífero Grande Ama- ção dos sistemas aquíferos existentes no peamento das águas subterrâneas, ele
zônia, com 162 mil quilômetros cúbi- Estado em termos de qualidade e quanti- traz alguns exemplos práticos. As autori-
cos. O Guarani registra 45 mil quilôme- dade das águas subterrâneas”. De lá pa- zações e pareceres concedidos para a ins-
tros cúbicos de água. ra cá governos mudaram, mas os esfor- talação de poços são importantes porque
Se medirmos essa extensão em qui- ços permanecem. “Precisamos de uma po- uma grande quantidade de perfurações
lômetros quadrados, a área do Guara- lítica de outorga segura”, assinala o dire- concentradas em um mesmo local pode
ni alcança outros três países além do tor de Recursos Hídricos da Secretaria alterar o nível estático de um aquífero.
Brasil, mas é aqui que está a maior Estadual do Meio Ambiente, o geólogo Por estático entende-se o nível de água
parte, segundo informa o Ministério Fernando Meirelles. Além disso, pode-se no aquífero medido em repouso, ou seja,
do Meio Ambiente. Temos 840 mil qui- acrescentar à declaração de Meirelles a sem bombeamento. Seria a distância en-
lômetros quadrados contra 225 mil na observação do presidente da Câmara Téc- tre a boca e a superfície da água dentro
Argentina, 71,7 mil no Paraguai e ou- nica de Águas Subterrâneas (CTAS), geó- do poço. Uma das dificuldades, explica o
tros 58,5 mil no Uruguai. No Brasil, a logo Sérgio Cardoso. Ele lembra que uma geólogo, é que quando são feitas perfura-
água subterrânea passa por oito esta- das necessidades verificada por seu gru- ções sem controle e quando há poços em
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GUILHERME ALMEIDA
GUILHERME ALMEIDA
mas em outros três países por onde turística em algumas situações. Poder
suas águas passam, tanto que um acor- “ver” uma parte do Guarani, por exem-
do foi firmado em 2010. Um decreto le- plo, desperta atenções. Como um aquífero
gislativo também foi aprovado no Con- não é algo regular, pode estar a mil me-
gresso no ano passado, uma ratifica- tros de profundidade em alguns lugares,
ção do documento firmado há oito mas próximo da superfície em outros.
anos. O texto assinado em San Juan, Imaginar sob a terra um morro ao contrá-
na Argentina, estabeleceu, entre outros rio ou de cabeça para baixo, como se esti-
pontos, que Brasil, Argentina, Uruguai vesse refletido na água de um lago, seria
e Paraguai são responsáveis por ações uma forma simplificada mas possível de
de cooperação que devem facilitar a explicar, ao menos em parte, como se lo-
troca de informações técnicas e a res- caliza um aquífero debaixo da terra. Por
peito de estudos e obras que tenham re- isso a profundidade pode ser tão diferen-
lação com o Aquífero Guarani, tudo pa- te, dependendo de como a camada de pe-
ra defender o meio ambiente e as pró- dra está ali desenhada. Na Serra do Cor-
prias águas. Cada parte deve informar vo Branco (foto da capa desta edição do
às outras sobre suas atividades e, em Correio do Povo), por exemplo, no esta-
caso de algum prejuízo, o causador de- do de Santa Catarina, a estrada corta
ve adotar medidas para a solução. dois paredões medindo 90 metros de altu-
As águas subterrâneas são estuda- ra. Essas paredes seriam partes “visí-
das há décadas pelo professor Marcos veis” do Aquífero Guarani, pontos onde
Imério Leão, geólogo e professor do ele aflora. O local é uma área importante
Instituto de Pesquisas Hidráulicas de recarga na região, segundo observa o
(IPH) da Ufrgs. Ele reitera que as secretário municipal de Turismo de Urubi-
águas de um aquífero representam ci, André Monsores. Em um dos lados dos
realmente uma grande riqueza, mas paredões a umidade é visível. As áreas de
faz observações. A perfuração de po- recarga são aquelas por onde a chuva po-
ços, por exemplo, precisa ser cuidado- de penetrar e alimentar o aquífero. Aqui
sa, já que cada região pode ter caracte- no Estado é possível ver um afloramento
rísticas específicas. “Deve-se usar, do Guarani em Santo Antônio da Patru-
mas com critérios técnicos.” Perfurar lha quase na divisa com Rolante, em uma
um poço, lembra, é um processo caro. estreita estrada de chão. No estado vizi-
São necessários estudos do solo onde nho, o geólogo Arel Hadi, proprietário de
se quer captar a água e, dependendo uma empresa especializada em geologia,
do uso que se pretende fazer, nem lembra que na região do Corvo Branco,
sempre o uso para beber é apropriado. embora a rocha esteja exposta, não signi-
Há pontos onde podem ser detectados, fica exatamente que esta seja a melhor
por exemplo, flúor ou sódio em exces- zona para alimentar o aquífero. “Os areni-
so. O flúor, se estiver em uma quanti- tos, apesar de estarem expostos, não ne-
dade acima do permitido, ao contrário cessariamente constituem a região de re-
de contribuir na saúde dos dentes, vai carga mais importante”, ressalta. O cami-
destruí-los. Essas substâncias estão nho que essa água fizer poderá ser mais
presentes nas águas subterrâneas jus- longo que em outros locais até chegar
tamente porque se alojam dentro da aos subterrâneos, se pensarmos que na
pedra. Uma água que entrar e sair pe- região de Urubici a Serra chega a 1,8 mil
las pedras em um período de 10 mil metros de altitude. A vazão, por outro la-
anos terá composição diferente de ou- do, parece ser uma vantagem. O arenito
tra que ficar ali depositada por mi- que forma o Aquífero Guarani na zona de O geólogo Maiquel
lhões de anos, já que quanto mais tem- Urubici é do tipo Botucatu, com um dos Lunkes, da Corsan,
po em contato com os minerais, mais melhores potenciais de vazão, segundo o lembra que a
eles podem ser absorvidos. Por isso os CPRM, Serviço Geológico do Brasil. São companhia, em muitos
levantamentos geológicos e químicos 200 mil litros por hora em média. Os ti- casos, auxilia
em cada região onde se explora água pos Mata e Caturrita, por exemplo, resul- prefeituras que
são importantes. Outra característica tam em bem menos: 5 mil litros por hora. precisam perfurar
é a temperatura. A cada 33 metros de De qualquer forma, Hadi alerta que poços em áreas rurais
profundidade há aumento de um grau mesmo que as quantidades de água se- mas que ela apenas
gerencia o
centígrado. Nesses casos, estações ter- jam grandes, a preservação é fundamen-
abastecimento em
mais para turismo são as mais benefi- tal. “Basicamente é importante ressaltar áreas urbanas
ciadas. Se na superfície a medição po- que não temos uma grande caixa d'água
de estar entre 18 e 20 graus, por exem- de uso comum em nível estadual, por
plo, dependendo da profundidade é exemplo. Mas em nível municipal pode
possível captar água com até 42 graus. ser realizado um trabalho de conscienti-
zação do uso dos aquíferos locais.” O
LONGA TRAJETÓRIA Aquífero Guarani é apenas uma das pos-
SOLO ABAIXO sibilidades de água subterrânea. Acima
. do Guarani, formado por arenito, há ou-
Há um mundo de água subterrânea tro aquífero, o Serra Geral. Essa camada
a mil metros de profundidade ou até é formada por outra pedra, o basalto,
mais em alguns casos. O tema encanta mais duro e impermeável, que não absor-
e já aconteceu de respeitadas emisso- ve água como o arenito, mas permite pas-
ras de TV veicularem em programas sagem entre “veios” ou fissuras. Também
de grande audiência infográficos que da camada de basalto é retirada água pa-
não correspondiam exatamente à reali- ra poços. O Serra Geral se expande por
dade. As ilustrações mostravam ima- Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Para-
gens semelhantes a “piscinas” debaixo ná e parte do estado de São Paulo.
do solo para retratar a água de um
aquífero, o que é um engano. Mesmo NA REDE SOCIAL,‘VENDA’.
que fosse possível uma pessoa chegar GOVERNO NEGA
lá em baixo, milhares de metros de .
profundidade na Terra, não haveria Diante de quantidades tão generosas, a
possibilidade de “sair nadando”. O água em território brasileiro pode ser
Aquífero Guarani, por exemplo, guar- mesmo considerada uma riqueza que
da sua imensidão de água no arenito, atrai interesses das empresas multinacio-
pedra porosa que esfarela facilmente e nais que exploram água mineral. Essas
que é conhecida por revestir calçadas corporações usam a água, mas precisam
de rua. Por ser poroso, o arenito fica de licença dos órgãos públicos para isso.
encharcado, em um processo seme- A lei 9.433/1997 trata da política nacional
lhante ao de uma esponja. É assim que de recursos hídricos. Questões que vão
a água se acumula: dentro da pedra. desde autorização para perfurar um poço
Existem inúmeras ilustrações sobre até combate à poluição por meio de ações
o que é todo o sistema, mas a curiosi- preventivas estão entre os artigos da le-
dade persiste e acaba virando atração gislação. Comentários em redes sociais
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