de Machado de Assis
Helena Tornquist
romance será por certo prazeroso, pois, como bem lembra Brito Broca, Machado de
Assis era desses escritores em que nunca deixamos de descobrir uma novidade,
sempre que a ele voltamos 1 Como lembra o Conselheiro Aires, personagem que, de
certo modo, conduz a essa narrativa, para o entendimento das coisas, o melhor é ler
com atenção.2 Especialmente por que na obra de Machado de Assis já se observa o que
relacionando-se entre si, os enunciados criam redes de sentido, do mesmo modo que
manuscritos de Aires, de acordo com a Advertência que precede a narrativa, pode ser
lido como um balanço do legado da escritura que próprio Machado deixou a todo os
seus leitores.
Professora Adjunta da Universidade Federal de Santa Catarina
1
BROCA, BRITO. Machado de Assis e a Política. Prefácio de Silviano Santiago. São Paulo: Polis, 1983, p. 259.
2
MACHADO de ASSIS, J.M. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro: Jackson, 1957, p 28
3
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1922 p.188 et sqq.
2
inclusive o título de um conto que integra o volume Papéis Avulsos. Com efeito, em
própria negação dessa prática, pois sua única disposição era a exigência de que fosse
Essa coincidência, como outras menos explícitas, reforça a idéia de que, em sua
Sua compreensão do modo como os textos se influenciam fica clara também nos
críticos, é uma das marcas de uma escritura sempre em construção, que deve ser
levada em conta. Atentar para elas é seguir os caminhos da criação, embora sabendo
que se está diante de um processo complexo no qual muitas são as vias e muitos os
no fundamental, pois havia introduzido as alterações que o gosto das platéias de sua
época exigiam. Machado sublinha que o valor da peça estava precisamente nos
elementos que ele de sua casa introduziu...4 O dramaturgo não foi um simples
imitador, mas um homem de talento que soube ser autêntico, buscando construir
que Machado dialogasse com os textos de teatro que lia por dever de ofício e,
principalmente, com os que ele mesmo selecionava. Está nesse caso uma comédia de
Alfred de Musset intitulada Il faut qu’une porte soit ouverte ou fermée 5, pois ela
serviu de ponto de partida para O caminho da porta, sua primeira peça encenada na
Corte. Nessa comédia provérbio, que aludia à indecisão humana, Musset concretizava
esse texto, Machado atribuiu-lhe outro sentido, pois adaptou o dito sentencioso, quase
porta” que, obviamente, implicava a decisão de ir embora. Mas a prova de que a peça
4
O comentário foi publicado na Revista Brasileira em 1872. Cf. MACHADO de ASSIS, J. M. Crítica teatral. Rio de
Janeiro: Jackson,1957,v.27, p.271-291.
5
MUSSET, Alfred de. Comédies et proverbes. Paris: Garnier, 1950. v1
4
lhe causara viva impressão está nas referências que seriam feitas mais tarde nas
quando compara o drama Fechamento de portas que acabara de assistir, com o texto
imperioso tomar uma decisão, citada na comédia inicial, iria reaparecer em Lição de
Botânica, escrita em 1906, portanto dois anos após Esaú e Jacó. Nesta peça, o título
mais de quarenta anos, certamente inscrita no quadro dos temas obsessivos do autor,
Flora, incapaz de abrir a porta de seu coração para um dos pretendentes, também
Outro elemento a ser destacado no presente percurso, e que está entre os motivos
muitas coisas entre o céu e a terra que o homem não pode explicar, lembrada no conto
“A Cartomante” pelo narrador que cita Hamlet, também reaparece com freqüência,
seja nos comentários semanais, seja em textos ficcionais. Entre as figuras com acesso
6
MACHADO DE ASSIS, J.M. Bons Dias. São Paulo: Huicitec, 1990. p.116. (crônicas de 16 de setembro e 28 de
outubro de 1888).
5
casaca aparece o verso David olhando em face a Sibila de Cuma, com nota
explicativa remetendo ao Dies Irae, um hino religioso da Idade Média. Por outro viés,
“Teste David cum Sybila”, entrará também no romance Esaú e Jacó como título para
espírita e a popular, com raízes autóctones, já que a cabocla vivia em um morro mais
Mostrar a preocupação das pessoas comuns com seu destino estava entre os
assuntos prediletos do escritor, tanto que em várias passagens das crônicas aparecem
da narrativa, tanto que o romance tem início com a subida de Natividade ao morro do
numa demonstração de que o autor sabia falar “ao público de sua casa” a consulta a
uma simples cabocla era a contrafação da consulta feita aos oráculos dos templos
antigos.
discussão sobre o amor, na qual a mulher é associada a uma castelã, sendo necessário
7
MACHADO DE ASSIS, J.M. TC. Relíquias da Casa Velha. Rio de Janeiro: Jackson, 1957. v.12. p.169.
6
sitiar a praça a ser conquistada,8 numa crônica da década de 90, o Dr. Semana revela
as mesmas idéias dos personagens daquela peça quando diz: que é o amor mais que
9
uma guerra, em que se vai por escaramuças e batalhas, em que há mortos e feridos
os pais dos gêmeos: citando Empédocles, que atribuíra à guerra o papel de mãe de
todas as coisas, conclui: o amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer que
anos, como lembra Sonia Brayner,11 foram o verdadeiro laboratório da prática textual
que explica o trânsito entre os textos de jornal e suas criações ficcionais. Assim, a
leitura atenta do que ele escrevia nesses comentários permite que se chegue mais
para falar sobre seu processo de criação. Em outras palavras, o crítico do folhetim
Assis, tendo já publicado uma obra considerável, parece estar nesse momento fazendo
8
A metáfora do amor como conquista guerreira já vinha dos séculos precedentes, tendo Molière em Don Juan
explicitado essa situação.
9
MACHADO de ASSIS, J.M. Crônicas.v.27.
10
_________________. Esaú e Jacó, p. 66.
11
BRAYNER, Sonia.Labirintos do espaço romanesco.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.55
7
narrativas que vinham da época romântica na alusão ao livro deixado entre os escritos
leitor, procedimento típico dos narradores machadianos, assume em Esaú e Jacó uma
inflexão bem mais complexa, sugerindo a participação do leitor na obra; cabia a este
epígrafe que pretendia apor ao romance: esta era um modo de por lunetas para que o
cada passo na ficção: é, pois, natural que o teatro esteja presente também nesse
romance.
como foi observado José Barreto Filho na entrada e saída dos personagens, nos
“Entre um ato e outro”. Trata-se do capítulo 46, quando a trama ainda está iniciando,
sendo o leitor convidado a “fazer de conta que está no teatro, entre um ato e outro,
pois tudo o que diz “é verdade pura e sem choro”. 16 Como se vê, em Esaú e Jacó está
sabido que, na segunda metade do século XIX, a observação do cotidiano foi levada
por muitos ao extremo, chegando ser tomada como sinônimo de verdadeira atitude
Não por acaso Machado, citando Boileau, lembra freqüentemente que o belo pode, às
vezes, não ser verossímil. Mesmo assim, em seus comentários sobre peças de teatro,
como se pode ver na análise da peça Primeiros Amores de Pedro Mendes de Leal, a
recebe um tratamento singular, como, aliás, seria de esperar depois dos romances da
década de 80. Como bem lembra Gilberto P Passos, a verossimilhança tem papel
fundamental neste romance, mas ele se revela em sua face encobridora. 19 O mundo em
decorada com luxo e gosto burguês. É visível o esforço do narrador para conseguir
16
Loc.cit.
17
LABERT e MIZRACHI (Orgs.). L’Art Poétique de Boileau.. Paris: Union Générale d'Editions, 1966. p.24.
18
MACHADO DE ASSIS, J. M. Op. Cit. p.179 et sqq.
19
PASSOS, G. P. Op. Cit. p 130.
9
manter o tom geral daquele teatro, com o qual Machado dialogava. No capítulo LX,
detalhes, a intenção de dar tom verossímil aos fatos evocados. É digno de nota este
fato: num romance cheio de pontos obscuros, fato já apontado pela crítica, encontram-
sala, um quarto, a rua em dado momento, – às vezes até validado pelo narrador que
faz considerações sobre seu procedimento. Ao descrever uma cena de rua, recordada
anos depois, adverte o leitor de que essa outra vozearia, maior e mais remota não
escolhas feitas para descrever a ida do casal Santos à missa, num bairro afastado do
pela intenção de escrever as coisas tais quais se passaram; chega a brincar com o leitor
que, se der mais explicações elas vão tomar tempo e papel, e prolongar a ação o que
atenção aos pormenores tem uma conotação irônica, já que alude aos não-ditos de sua
fala, que muitas vezes é tudo. Os elementos descritivos da ida do casal à igreja
modesta, numa carruagem de luxo, eram uma crítica ao gosto pelas aparências e à
Exemplo disso é a alusão indireta às diversões com que a sociedade ociosa preenchia
20
MACHADO de ASSIS, J. M. Esaú e Jacó, p. 143.
21
_____________. Op. Cit. p.28
10
seu tempo – entre as quais o baile. Em vários momentos da ficção, a descrição de uma
cena de dança está associada a uma festa mais refinada. É um prazer para os sentidos e
ao mesmo tempo um prazer fugaz para o casal do conto “Terpsícore que o organizara,
Ilha Fiscal, - que passaria à história como a última aparição da família real – do qual
as famílias Santos e Batista haviam participado, não recebe o mesmo destaque, apesar
associada à queda da Monarquia, passa quase desapercebida, sendo vista apenas pela
reação dos diferentes personagens, a dança nos dois textos tem um sentido duplo. Para
vida da alta sociedade, que logo se esvai; já entre as pessoas que foram à Ilha Fiscal,
havia quem o tomasse como um prazer para os olhos, mas para D. Cláudia, a
ambiciosa mulher de Batista, o baile era um fato político, era o baile do ministério,
uma festa liberal que poderia abrir ao marido as portas de alguma presidência.23
como observa Ivo Barbieri, ele fez da narrativa o lugar privilegiado de revelação da
história. 24
22
_____________. Terpsícore. São Paulo: Boitempo, 1966.
23
MACHADO de ASSIS, J. M. Esaú e Jacó, p. 187.
24
BARBIERI, Ivo.Machado e a história: um tempo de longa duração In: Espelho. Revista Machadiana, PoroAlegre,
UFGRS,1995.n.1 p.27.
11
motivos de um texto a outro, de uma época a outra, de uma cultura a outra, a obra de
leitura.25
25
BRITO BROCA, Op.cit. p. 159