Tais escritos abordam diversos temas como educação, saúde e energia, todas
atravessadas por um mesmo processo: a contraprodutividade e o monopólio radical. Nas
sociedades industrializadas (capitalistas e socialistas), os meios se converteram em fins,
gerando o fenômeno da contraprodutividade, defendia Illich. A contraprodutividade
designa o modo como o desenvolvimento e o progresso carregam em si sua
destruição; tanto biofísica, quanto social e também política (contraprodutividade
das ferramentas, instituições e da sociedade industrial). Illich verificava isso nos
transportes, na educação e na saúde – três temas importantes para a análise já que,
segundo o autor, são os elementos do desenvolvimento e da modernidade por
excelência.
Segundo o comentário de Boaventura de Sousa Santos (1975) sobre o panfleto “Energia
e Equidade”, Illich buscava provar a lei hegeliana da transformação da quantidade em
qualidade. Veja-se o caso do consumo de energia: ultrapassando-se determinado limite,
há um "efeito corruptor do poder mecânico" (ILLICH, 1975, p. 27), qual seja a
transformação desse poder mecânico em necessidade, e a necessidade converte-se em
um monopólio:
Tal monopólio institui-se quando a sociedade se adapta aos fins daqueles que
consomem o total maior de quanta de energia, e enraíza-se irreversivelmente quando
começa a impor a todos a obrigação de consumir o quantum mínimo sem o qual a
máquina não pode funcionar. ILLICH, 1975, p. 60.
Quando tudo é reorganizado em torno dos meios de transporte motorizados, não resta
espaço para outra forma de transitar (por exemplo, as bicicletas), e as pessoas veem-se
obrigadas a se transportarem por meio de um produto industrial. Isso significa que o
produto industrial converte-se em necessidade – a necessidade de locomoção
transforma-se em necessidade de ter um carro – como se a indústria e o processo
técnico passassem a deter um monopólio radical sobre as necessidades. A esse
processo de inversões Illich dá o nome de coisificação e afirma inspirar-se em Marx e
Freud: "por coisificação quero significar a consolidação da percepção das necessidades
reais numa procura de produtos manufaturados de massa. Ou seja, a transferência da
sede para a necessidade de uma Coca-Cola" (ILLICH, 1973c, p. 210). A "rendição da
consciência social às soluções pré-acondicionadas" se dá na medida em que
organizações burocráticas conseguem dominar a imaginação dos consumidores –
sobretudo pela propaganda.
O monopólio cria, então, duas alienações: a primeira diz respeito ao alheamento das
necessidades, que passam a ser produzidas externamente, pelo processo técnico e
industrial; a segunda vem do fato de que só mercadorias produzidas pela indústria serem
capazes de satisfazerem essas necessidades forjadas. Daí a expressão monopólio radical
para designar o duplo controle da indústria e das instituições sobre a vida humana
(criando falsas necessidades e sendo as únicas a disporem de meios para satisfazê-las).
Illich e o Transporte
Com relação à indústria do transporte, Illich argumenta que houve uma configuração do
espaço em função do transporte motorizado, provocando a extinção das relações
humanas e do comércio local, bem como ocasionando uma dependência do carro para
qualquer deslocamento. "Ao ultrapassar certo limite de velocidade, os veículos
motorizados criam distâncias que só eles conseguem reduzir" (ILLICH, 1975, p. 48), e
quem não dispõe de veículos motorizados, não consegue se locomover. O carro também
reduz a liberdade de trânsito no sentido que reduz as possibilidades de destino – quem
está a pé pode mudar sua rota, parar onde quiser, enquanto quem está de carro não pode
fazê-lo e tem que seguir rotas desenhadas especificamente para automóveis.
Illich e a Medicina
O mesmo se passa com a medicina: assim como o transporte motorizado implica
imobilidade e escravização da maioria das pessoas ao carro, a medicina prolonga o
tempo da doença e cria novas normas a cada nova doença descoberta. A esse fenômeno
da produção de doenças, sofrimento e morte pela própria medicina Illich dá o nome de
iatrogênise. Soma-se a isso o encarecimento dos serviços médicos, cujo efeito é a
criação de uma população submissa e dependente, que ao mesmo tempo que não
consegue mais recorrer a seus próprios meios para a cura, não tem acesso aos serviços
médicos (ILLICH, 2006a). Antes, a cultura oferecia mitos, tabus e padrões éticos para
tratar a vida, a doença e as relações sociais. Com a legitimação da medicina, a dor, a
doença e a morte são tratadas por vias institucionais, de modo que quem não se
submeter a esses mecanismos não consegue mais lidar com a dor e com a morte. Como
destaca Illich, “a promessa do progresso conduz à recusa da condição humana e à
aversão à arte de sofrer” (ILLICH, 1999 s. p.).
Illich e a Educação
A educação é outra dimensão na qual o monopólio radical e a contrapodutividade se
verificam, quando o aprendizado se reduz à escolarização. O direito a aprender só se
realiza pela escola (ILLICH, 2006d) e, mais do que isso, só por seu intermédio podem
ser formadas as elites dirigentes e profissionais que orientam a sociedade. Em países
pobres, a escolarização é ainda mais difundida, na medida em que somente pela escola
que se obtém um diploma, o qual é necessário para a inserção na sociedade de
consumidores disciplinados da tecnocracia (ILLICH, 1973d).
Nos países latino-americanos investiu-se em educação com vistas a "tirar a maioria não-
rural da sua marginalidade nos bairros de lata e numa agricultura de subsistência e levá-
la para o tipo da fábrica, de mercado e de vida cívica correspondentes à tecnologia
moderna" Embora as aproximações com Bourdieu e seus trabalhos sobre a
escolarização na França sejam muitas, Illich não faz referências a este e não consta, nos
comentários consultados, qualquer sinal de que tenha existido alguma relação entre
ambos (ILLICH, 1973e, p. 140). Mas concretamente a educação não gerou os frutos
prometidos. Ao contrário, a escola produziu frustração porque aparece como garantia de
integração social, mas não a realiza porque, na medida em que marginaliza aqueles que
não a seguem, produz uma classe de pobres impotentes, ao lado de uma elite
escolarizada (ILLICH, 2006d). A escolarização, que nasceu para incorporar as pessoas
ao Estado industrial e que serviu para derrubar o feudalismo, tornou-se um "ídolo
opressor" que só protege aqueles que já foram educados, produzindo desigualdades.
Essa realidade não é exclusiva de países pobres, assevera Illich. Nos EUA a educação
também é aquilo que designa quais pessoas são qualificadas ou não. A diferença maior
é: enquanto em países ricos há escola para todos, em países pobres, não há. Mas nestes,
a escola aparece como o único meio de acender à riqueza, de modo que representa um
fardo (ILLICH, 1973e, p. 155). Era o caso de Porto Rico, que investira 30% de seu
orçamento governamental em educação, mas apenas pequena parcela chegava ao mundo
universitário. Nas palavras de Illich, Porto Rico foi escolarizado, mas não instruído.
Ao tentar contornar a questão das classes, Illich oscila entre duas explicações. Ora é o
sistema que cria as desigualdades, ora ele se impõe a uma realidade já cindida. Os
diplomas criam uma diferenciação social, mas essa diferenciação só se dá a partir de
uma diferença anterior: os que tiveram e os que não tiveram acesso ao ensino formal,
conseguiram diplomas e tiveram acesso a bons empregos. Com os carros, passa-se uma
ambiguidade semelhante. Illich afirma que o automóvel nasceu como produto de luxo, o
que quer dizer que existem ricos e pobres antes que o trânsito se transforme em espaço
exclusivo de veículos motorizados. E uma vez que isso ocorre, os transportes criam uma
desigualdade social entre os que têm e os que não têm carro, mas Illich não incorpora
essa questão em seus trabalhos.
Bibliografia Citada:
ILLICH, I. A Igreja sem poder. In: Libertar o futuro. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1973a.
ILLICH, I. Escola: a vaca sagrada. In: Libertar o futuro. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1973d.