Anda di halaman 1dari 304

PEDIATRIA GERAL

EMERGÊNCIAS PEDIÁTRICAS
E NEONATOLOGIA
Equipe SJT Editora
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia. São Paulo: SJT Editora, 2016.
ISBN 978-85-8444-103-7

Copyright © SJT Editora


2016 SJT Editora
Todos os direitos reservados.

Diretor editorial e de arte: Júlio César Batista


Diretor acadêmico: Raimundo Araújo Gama
Editor de arte: Carlos Renato
Projeto gráfico: Equipe SJT Editora
Capa: Erick Balbino Pasqua
Editoração eletrônica: Reginaldo Diniz

Contato com o departamento editorial: editora@sjtresidencia.com.br


Contato com o departamento acadêmico: aluno@sjtresidencia.com.br

Avenida Paulista, 949 – 9º andar


Cerqueira César – São Paulo/SP
CEP: 01311-917
Fone: (11) 3382-3000

http://www.sjteducacaomedica.com.br
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

É expressamente proibida a reprodução ou transmissão deste conteúdo, total ou parcial, por quaisquer meios
empregados (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem autorização, por escrito, da Editora.
Este material didático contempla as regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, que vigora no
Brasil desde 2009.
Apresentação à 16ª edição

Apresentamos, à comunidade médica, a mais nova edição do conteúdo didático SJT

Preparatório para Residência Médica.

Entendemos que nossa função não consiste apenas em prepará-lo(a) para as provas de Residência

Médica, mas possibilitar conhecimento e cultura para o desenvolvimento de sua carreira profissional.

O corpo docente do SJT, composto por professores das melhores instituições de São Paulo,

tem como meta de trabalho fornecer o melhor preparo a você, fazendo com que seus planos se tor-

nem realidade, por meio de muito esforço, determinação e vontade.

O material didático SJT 2016 está atualizado com as últimas questões dos concursos de Residência

Médica de todo o país.

Estude com atenção e entusiasmo. Respeite sua agenda, pois aprendizado requer dedicação. O

maior responsável pelo seu sucesso é você. Participe regularmente das atividades do site – o melhor

programa on-line de atividades acadêmicas.

Estamos juntos neste objetivo: Residência Médica 2017!

O contato com o departamento acadêmico deverá ser feito pelo email: aluno@sjtresidencia.com.br.

Você será Residente em 2017!


u n i ve r so
sjt online
www.sjteducacaomedica.com.br
Página inicial do Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)
Visite ao menos uma vez por semana o Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)! Aprender mais significa
investir na sua felicidade. Você é o dono do seu sucesso.

Login
CPF sem pontos e traço.
4 primeiros números
do CPF.

Relação de cursos SJT.


Encontre o seu.

Meu perfil
Calendário com atividades, agenda de
aulas, atualizações, eventos, etc.

Novidades
Notícias atualizadas sobre os temas dos
cursos.

Meu perfil
Perfil do aluno, informações sobre aces-
so, atividades, notas, etc. Mensagens: Por
aqui o aluno poderá trocar mensagens com
professores, tutores e colegas de curso.

Curso atual
Nesta opção você poderá encontrar to-
dos os participantes do curso e navegar pe-
los temas que serão abordados no mesmo.

Meus cursos
Caso você esteja matriculado em mais de
um curso, poderá acessá-los por aqui.

Administração do curso
Área em que o aluno poderá consultar no-
tas em simulados, fóruns e outras atividades.

Configurações de perfil
Nesta opção o aluno poderá alterar seus
dados de perfil, e-mail, imagem, senha, con-
figurações de notificações (Ex.: se receberá
notificações por e-mail, ou apenas pelo AVA).
O Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA)
Neste ambiente você poderá encontrar todo o material didático dos cursos, principais e complementares:
Links para videoaulas; Glossário; Apostilas; Material complementar de leitura (manuais e artigos científicos,
­guidelines, etc); Exercícios de fixação; Fóruns de discussões temáticas
Sumário
1 Síndromes diarreicas em pediatria....................................................................................... 9
2 Desidratação e fluidoterapia em pediatria.................................................................... 21
3 Enteroparasitoses............................................................................................................................. 31
4 Afecções de vias aéreas superiores e médias...........................................................42
5 Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância......................... 62
6 Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila............................................ 78
7 Afecções de vias aéreas inferiores: tópicos de asma em pediatria.......... 94
8 Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)...................103
9 Glomerulonefrite difusa aguda (GNDA) e síndrome nefrítica (SN)...........118
10 Síndrome nefrótica (SN)............................................................................................................ 125
11 Doenças exantemáticas........................................................................................................... 134
12 Doenças de Kawasaki (DK)..................................................................................................... 147
13 Avaliação do recém-nascido......................................................................................................... 151
14 Patologias maternas e suas repercussões neonatais.......................................156
15 Reanimação neonatal................................................................................................................. 159
16 Policitemia............................................................................................................................................174
17 Distúrbios respiratórios.............................................................................................................. 176
18 Distúrbios metabólicos........................................................................................................................193
19 Sepse neonatal................................................................................................................................203
20 Enterocolite necrosante........................................................................................................... 206
21 Infecções congênitas.................................................................................................................. 214
22 Hiperbilirrubinemia.......................................................................................................................228
23 Emerg. Ped. - parada cardiorrespiratória, insuf. respiratória e choque..............236
24 Emerg. Pedi. - sup. básico e avançado de vida (C-A-B da ressuscitação)......241
25 Emergências pediátricas - distúrbios do ritmo.........................................................................250
26 Urgências pediátricas - intoxicações agudas............................................................................. 254
27 Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos................................269
28 Urgências pediátricas - febre sem sinal localizatório.........................................................283
29 Urgências pediátricas - convulsão febril..........................................................................................291
CAPÍTULO

1
Síndromes diarreicas em pediatria

e/ou diminuição da consistência fecal, por aumento


Introdução do teor de água e eletrólitos, decorrentes de um dis-
túrbio nas funções de digestão, absorção ou secreção
A síndrome diarreica é uma das causas mais im- intestinal. Pode ser um fenômeno isolado, reflexo de
portantes de morbidade e mortalidade na infância em uma alteração local, ou representar a manifestação de
todo o mundo. Nas regiões carentes, onde é baixo o po- uma condição sistêmica. A diarreia, de acordo com seu
der aquisitivo, onde não existem água encanada e esgo- comportamento evolutivo, pode ser caracterizada nas
to sanitário, a poucos quilômetros dos centros urbanos, seguintes formas:
ou nas favelas, a mortalidade infantil é alta e a diarreia é � diarreia aguda: quando o início é abrupto e
responsável por muitos desses óbitos, particularmente sua duração não ultrapassa 15 dias. O exem-
as causadas por bactérias. Por outro lado, nas regiões plo padrão dessa condição é representado pelas
urbanas, com infraestrutura de saneamento básico, diarreias infecciosas;
educação em Saúde e alto poder aquisitivo, a mortali-
� diarreia persistente (síndrome pós-enteri-
dade infantil é baixa e a diarreia, geralmente de causa
te): quando uma diarreia aguda, potencialmen-
viral, responde por poucos óbitos. No Brasil vive-se pa- te autolimitada, ultrapassa 15 dias de duração.
radoxalmente essas duas situações, razão que torna não Um exemplo dessa condição costuma ocorrer
tão simples a interpretação etiológica dos casos. em lactentes jovens desnutridos;
� diarreia crônica: diarreia de duração superior a
30 dias, de início variável (abrupto ou insidioso).
Constitui a situação mais frequente de má absor-
Conceito de diarreia ção intestinal. O seu comportamento evolutivo
pode seguir diferentes modelos de curso: surtos
A diarreia, queixa frequente em Pediatria, pode curtos de diarreia entremeados de fases de acal-
ser definida como uma alteração do hábito intestinal mia (curso intermitente), diarreia constante ou,
caracterizada por aumento do número de evacuações ainda, constante com períodos de reagudização.
10
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Deve-se ter especial atenção na caracterização o Na+ é transportado ativamente para fora da célula,
de diarreia em recém-nascidos ou lactentes jovens, através da membrana basolateral. Esse mecanismo é a
particularmente em aleitamento natural, que podem base da terapia de reidratação oral (vide aula Desidra-
ter normalmente evacuações frequentes e amolecidas. tação e Fluidoterapia).
Nesses casos, na caracterização da doença diarreica
A secreção intestinal ocorre principalmente pe-
aguda (DDA), deve-se levar em conta o hábito intes-
los enterócitos da cripta, existindo um aumento da
tinal da criança e outros parâmetros, tais como: com-
permeabilidade da membrana apical ao Cl-, mediados
prometimento do estado geral, diminuição da ingesta
por AMP-cíclico, GMP-cíclico e prostaglandinas. O au-
alimentar, febre, vômitos e irritabilidade.
mento destes mediadores estimula a secreção de cloro
e água pelos enterócitos da cripta.

Fisiologia básica da absorção


Mecanismos básicos na
e secreção de água
patogênese da diarreia
e eletrólitos
A superfície absortiva da mucosa intestinal é, Existem mecanismos básicos na patogênese da
de aproximadamente 200 m2. Isso se deve às pregas diarreia, que podem agir concomitantemente, embora
circulares da mucosa intestinal, às vilosidades e micro- quase sempre um deles, na prática, predomina sobre
vilosidades e a uma estrutura especializada na borda os outros:
luminal do enterócito, a borda em escova. Os enteró- � adesão de micro-organismos à mucosa intesti-
citos migram das criptas para o ápice das vilosidades nal e lesão da borda em escova, onde há desar-
e apresentam funções diferentes. dependendo de sua ranjo e dissolução dessa, com grande redução da
localização. Enquanto os enterócitos da cripta têm superfície de absorção (EPEC);
função predominantemente secretora, os do ápice � adesão de micro-organismos à mucosa intes-
têm função de absorção. A vida média do enterócito tinal e produção de toxinas, que, ao atingirem
é de cerca de três dias e as células do ápice são en- o meio intracelular estimulam a secreção de
tão descamadas. O tubo digestivo executa um grande Cl- (consequentemente Na+ e água), por ativa-
trabalho para a absorção de água e eletrólitos, uma vez ção do AMP-cíclico ou outros mediadores, ins-
que diariamente, chegam à luz intestinal do adulto, talando-se um quadro conhecido como diarreia
aproximadamente 6 litros de líquido e são eliminados secretora (ETEC e cólera, p. ex.);
nas fezes apenas 100 a 200 mL. Portanto, a função de
absorção predomina sobre a de secreção e toda vez que
� micro-organismos que invadem a mucosa, cuja
ocorrer desequilíbrio ocorrerá diarreia. proliferação é intracelular, alternando o funcio-
namento da célula e causando sua morte (EIEC
Há vários mecanismos para a absorção de sódio e Shigella, p. ex.);
no intestino delgado. O principal é o de difusão eletro-
� micro-organismos que invadem a mucosa e
gênica à custa de um gradiente elétrico e de concentra-
proliferam-se na lâmina própria e nos gânglios
ção. A concentração de Na+ é mantida baixa dentro da
mesentéricos, podendo determinar quadros
célula graças à ação da Na+-K+-ATPase (bomba de Na+
sépticos (Salmonella e Campylobacter, p. ex.);
K+), que transporta ativamente o Na+ para o extrace-
lular através da membrana basolateral. Além disso, a � mecanismo osmótico (diarreia osmótica). O
carga elétrica dentro das células é negativa em rela- fenômeno encontrado é a retenção de substân-
ção ao conteúdo da luz intestinal. Dessa forma, o Na+ cias solúveis na luz intestinal que provocam
entra na célula, mas é rapidamente eliminado para o um retardo na absorção de água e eletrólitos,
compartimento interno do organismo através da ação além de, pelo efeito osmótico, induzir movi-
da Na+-K+-ATPase, mantendo a concentração intrace- mentos de água do plasma para a luz intesti-
lular de Na+ baixa e criando gradiente negativo em re- nal. A diarreia osmótica pode ocorrer por in-
lação à luz. A absorção de Na+ provoca absorção de Cl- e gestão de substâncias solúveis não absorvíveis
há difusão passiva de água para manter o equilíbrio (laxantes e erros alimentares p. ex.) ou por de-
osmótico. Outro mecanismo de absorção de Na+ é o feitos na digestão de nutrientes, cujo modelo
acoplado a algum nutriente, particularmente aos açú- é a intolerância aos dissacarídeos, em especial
cares e aminoácidos. Ocorre ligação do soluto, p. ex., a a intolerância secundária à lactose, situação
glicose a um transportador de membrana criando um muito frequente em Pediatria;
sistema que é energizado pelo Na+ e juntos são movi- � mecanismo motor, por hipermotilidade ou por
dos para o intracelular. Como descrito anteriormente, hipotonia muscular intestinal.

SJT Residência Médica – 2016


11
1  Síndromes diarreicas em pediatria

� adesividade: capacidade de aderir à mucosa


Diarreia aguda intestinal e daí não serem varridos pelo peris-
taltismo;
A diarreia aguda, secundária à gastroenteri-
� toxigênese: capacidade de produzir toxinas
te, é um processo normalmente autolimitado, cuja
que alteram o funcionamento normal da célula
duração varia de horas a dias. A desidratação, con-
ou que a destroem;
sequência da perda de líquidos e eletrólitos pelas
fezes é a repercussão clínica imediata mais séria da � invasividade: capacidade de invadir a mucosa
diarreia aguda. Já a sucessão ou recorrência dos episó- e de se multiplicarem nas células epiteliais ou
dios diarreicos, comuns em nosso meio, comprometem nas da lâmina própria.
negativamente o estado nutricional, contribuindo para Alguns agentes caracterizam-se por determinar
a instalação e manutenção da desnutrição energético- mais frequentemente diarreias secretoras, por ade-
-proteica. No Brasil, até pouco tempo, a doença diarrei- rência e produção de toxinas que alteram o funciona-
ca aguda era uma das principais causas de mortalidade mento celular, estimulando mecanismos de secreção
infantil. Quando se fala em mortalidade infantil por intestinal. Como resultado, fezes aquosas, ricas em
diarreia, pensamos nas diarreias primariamente in- eletrólitos, sem produtos patológicos (sangue ou pus)
fecciosas, ocorrendo o óbito na fase aguda por de- e sem dor à evacuação. Outros agentes determinam
sidratação ou, mais tarde, pela tríade diarreia per- diarreia invasora, por aderência, invasão da mucosa
sistente + desnutrição + sepse por enterobactérias. intestinal e multiplicação epitelial ou na lâmina pró-
A diarreia aguda é de ocorrência universal, atin- pria. Elaboram, por vezes, toxinas, colaborando com o
gindo todas as camadas sociais e, dependendo de sua processo inflamatório e determinando concomitante-
etiologia e das condições sanitárias do ambiente, pode mente um quadro secretor. Como resultado, diarreia
se revestir de aspectos endêmicos ou epidêmicos. As aquosa e diarreia exsudativa, mucopiossanguinolenta,
precárias condições de saneamento básico (água com tenesmo e geralmente com febre.
potável, tratamento de esgoto e lixo) e a manipu-
lação e preparo inadequado dos alimentos consti-
tuem fatores predisponentes à doença diarreica. Bactérias
Em classes sociais mais privilegiadas, a diarreia
aguda representa principalmente um fator de morbi- Escherichia coli
dade, ao passo que, nas populações carentes, responsa-
enteropatogênica clássica (EPEC)
biliza-se por altos índices de morbidade e mortalidade.
Nesse último caso a diarreia prevalece em populações Foi a primeira classe de E. coli reconhecida como
que vivem em condições adversas: promiscuidade am- diarreicogênica. Hoje em dia são conhecidos 15 sorogru-
biental, ausência ou deficiência de saneamento básico, pos. É considerada a principal bactéria relacionada a
precariedade de higiene domiciliar e pessoal, baixa ren- diarreias endêmicas em países em desenvolvimento.
da, baixa escolaridade e disponibilidade de alimentos No Brasil, estima-se que 20% a 30% das gastroen-
terocolites tenham esse agente como determinante
reduzida. Nessas situações de miséria, a diarreia aguda,
etiológico. As bactérias aderem intimamente ao ente-
na grande maioria das vezes, é desencadeada por um
rócito e elaboram uma citotoxina que causa dissolução
agente infeccioso que, ao entrar em contato com um
dos microvilos adjacentes a elas, provocando alterações
hospedeiro espoliado nutricionalmente, encontra um
morfológicas e funcionais secundárias importantes.
meio propício para proliferar e gerar desequilíbrios.
De maneira geral, o acometimento do intestino
delgado alto caracteriza-se pela presença de fezes co- Escherichia coli enterotoxigênica (ETEC)
piosas e aquosas, enquanto que o do íleo terminal e do Bactéria não invasora que produz toxinas; uma,
cólon revela-se por fezes com muco e sangue (colites termolábil (LT), tem ação semelhante à da cólera (esti-
por agentes invasivos). mulam o AMPc), provocando graves diarreias secreto-
ras; outra, termoestável (ST), estimula o GMPc também
determinando quadros diarreicos secretores. A ETEC
exerce papel importante na diarreia dos viajantes.
Etiologia da diarreia aguda
A grande maioria dos quadros diarreicos agudos Escherichia coli enteroinvasora (EIEC)
é representada pelas diarreias toxi-infecciosas. É muito semelhante à Shigella, invade o intestino
Esses agentes diarreicogênicos diferem dos mi- grosso e o íleo terminal, penetra nas células epiteliais,
lhões de germes que habitam normalmente o intestino prolifera no seu interior e as destrói. O processo de-
(microbiota ou flora normal), por apresentarem meca- termina reação inflamatória da mucosa intestinal de
nismos de virulência. Esses são representados por: intensidade variável.

SJT Residência Médica – 2016


12
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Escherichia coli entero-hemorrágica (EHEC) Sua capacidade de invadir e lesar anatomica-


mente a mucosa intestinal (intracelular) constitui
Causa colite hemorrágica, podendo também
seu principal fator de virulência, embora essas bac-
associar-se à síndrome hemoliticourêmica (SHU). A
térias também elaborem enterotoxinas semelhan-
observação de uma criança com diarreia, em especial
lactente, que se mostre oligoanúrica, com anemia tes às da E. coli, que têm os seguintes efeitos:
e trombocitopenia e sinais de insuficiência renal, � neurotóxico: provoca paralisia de membros
deve, de modo invariável, alertar para a possibili- em pequenos animais;
dade de SHU típica. A presença de sangue nas fezes
� citotóxico: causa morte celular em culturas
diarreicas é um sinal que amplia esta possibilidade,
considerando-se que a verotoxina de E. coli O157- de tecidos;
-H7 (produz apenas a toxina SLT II), parece estar � enterotóxico: estimula secreção intestinal.
fisiopatologicamente relacionada a essa síndrome.
É transmitida principalmente pelo contato
Outros germes, capazes de determinar diarreia com
com a pessoa infectada (baixo inoculum infectivo:
sangue, como Shigella, Salmonella e Campylobacter, têm
dez organismos podem causar doença), mas pode
sido relacionados, porém, de modo menos consistente.
ocorrer também através da contaminação de ele-
mentos da dieta com fezes de portadores. A pro-
Síndrome hemoliticourêmica pagação dentro de famílias, internatos e creches
Doença aguda da lactância e de crianças pequenas, demonstra a capacidade de baixos números de mi-
geralmente ocorre após um episódio de gastroenterite cro-organismos causarem a doença num esquema
aguda. Menos comumente, pode relacionar-se a uma de transmissão interpessoal.
infecção do trato respiratório superior. Inicialmente As manifestações clínicas das shigeloses são re-
acreditava-se que fosse um distúrbio renal com mani- presentadas por febre, vômitos, anorexia, toxemia, ma-
festações hematológicas secundárias, mas estudos re-
nifestações neurológicas de causa não compreendida
centes indicaram que a síndrome deve ser considerada
(cefaleia, convulsões, meningismo, letargia ou alucina-
uma doença sistêmica. O evento primário na pato-
ções), diarreia (fezes inicialmente líquidas e volumosas,
genia da síndrome parece ser lesão das células en-
seguidas de fezes disentéricas que podem prolongar-se
doteliais. A lesão endotelial dos capilares e arteríolas
até 4 semanas), dor abdominal e tenesmo.
renais acarreta coagulação localizada. Comumente não
se observam evidências de coagulação intravascular Em relação ao tratamento, embora algumas
disseminada. A anemia microangiopática resulta autoridades recomendem a omissão da terapia an-
de lesão mecânica das hemácias quando elas atra- tibacteriana em virtude da natureza autolimitada
vessam a vasculatura alterada. A trombocitope- da infecção, custo das drogas e risco do aparecimen-
nia advém de aderência ou lesão intrarrenal das to de micro-organismos resistentes, há uma lógica
plaquetas. As hemácias e as plaquetas danificadas são convincente em favor do tratamento de crianças
removidas da circulação pelo fígado e baço. Surgem com shigelose. Ainda que não seja fatal na maioria
sinais de anemia hemolítica, trombocitopenia e dos casos, a doença não tratada é de evolução mais
insuficiência renal aguda. Os sintomas surgem após prolongada (mínimo duas semanas), podendo so-
cinco a dez dias do quadro intestinal, com palidez súbi- brevir diarreia persistente. O risco de piora da des-
ta, irritabilidade, letargia, oligúria, desidratação e hepa- nutrição nos casos prolongados e o risco de excre-
toesplenomegalia. O diagnóstico baseia-se nos achados ção continuada e infecção subsequente de contatos
de anemia hemolítica microangiopática (hemácias frag- familiares ou institucionais são outros argumentos
mentadas e de formas bizarras: esquizócitos), trom-
contra a estratégia de omitir os antibióticos. Em
bocitopenia e insuficiência renal aguda.
nosso meio podemos utilizar o ácido nalidíxico (50
mg/kg, 6/6 horas, por 5 dias) ou uma cefalosporina
Shigella de 2ª ou 3ª geração (Ceftriaxona). O espectro de tra-
Estima-se que seja responsável por cerca de tamento com antimicrobiano para Shigella spp inclui
10% das gastroenterites em nosso meio. Embora trimetropim-sulfametoxazol, ampicilina, cefalosporina
atinja qualquer idade, a infecção é mais comum no 2º de 3ª geração e tetraciclina, quando se trata de decisão
ou 3º ano de vida. terapêutica em crianças. Quando se conhece o padrão
Essa bactéria é o protótipo do organismo in- de sensibilidade da Shigella, a medicação de escolha é
vasor que produz disenteria (fezes com muco e san- trimetropim-sulfametoxazol, na dose de 10 mg/kg/dia,
gue). Do gênero Shigella, destacam-se quatro espé- dividida em doses iguais a cada 12 horas por 5 dias. Em
cies: S. dysenteriae, S. flexneri (ambas respondendo crianças está contraindicado o uso de quinolonas, por
por 90% dos casos de shigelose), S. boydii e S. sonnei. possível comprometimento permanente de cartilagens
A S. dysenteriae é responsável por quadros mais graves. de articulações de crescimento.

SJT Residência Médica – 2016


13
1  Síndromes diarreicas em pediatria

Salmonella Rotavírus
As espécies de S. enteritidis contêm mais de É a principal causa de diarreia nas áreas ur-
1700 sorotipos identificados através do antígeno banas em climas temperados, no inverno, quando
somático (O) e o flagelar (H). São elas as mais fre- chega a se responsabilizar por 80% da etiologia
quentes causadoras das gastroenterocolites por das diarreias, principalmente em crianças entre 6
Salmonella (salmoneloses não tifoides). Exibem e 24 meses. As manifestações mais frequentemente
distribuição universal, com incidência relaciona-
associadas à diarreia líquida importante são vômitos
da à disponibilidade de água potável, destinação
(100%), febre (10%), infecção de vias aéreas superio-
do esgoto e práticas de preparação e conservação
alimentar. Acontecem mais frequentemente nos res (20% a 40%) e desidratação. A excreção de partícu-
meses quentes. O número estimado de bactérias las virais nas fezes, na fase aguda da doença é grande
que devem ser ingeridas para causar doença sinto- (1011 por grama de fezes) e como o vírus é resistente
mática em adultos sadios é de 106 a 108. Em virtude e estável às condições ambientais, há um grande po-
desse grande tamanho de inóculo, a ingestão de ali- tencial para infecções cruzadas, principalmente em
mentos é considerada a principal fonte de infecção. ambientes fechados, como berçários, creches e hospi-
Quando ingeridas, as bactérias invadem o in- tais. De fato, o rotavírus é um dos principais agentes
testino delgado e o cólon, sendo sua patogenia devi- encontrados em diarreias intra-hospitalares. Rotinei-
da também a uma ação toxigênica. Elas atravessam ramente o diagnóstico é estabelecido através da pes-
o epitélio mucoso, estabelecendo-se na lâmina pró- quisa de antígenos virais, utilizando-se ensaio imuno-
pria, causando microabscessos, podendo proliferar- enzimático, que é bastante sensível e específico.
-se dentro de macrófagos e atingir várias partes do
organismo, causando quadros sépticos graves. Após a
Protozoários
infecção, as salmonelas não tifoides são excretadas nas
fezes por um período mediano de 5 semanas, período Giardia lamblia
mais longo nos casos graves e em lactentes pequenos. Entamoeba histolytica
Em nosso meio, assumiram papel importante (vide aula: ENTEROPARASITOSES)
como agente etiológico de infecções intestinais, prin-
Uma causa não infecciosa a ser considerada nos
cipalmente em crianças de baixo nível socioeconômi-
casos de doença diarreica aguda (DDA) é a intoxicação
co, além de se transformarem num dos principais mi-
alimentar, após ingestão de toxinas pré-formadas (es-
cro-organismos responsáveis pela infecção hospitalar.
tafilocócicas, Bacillus cereus). São quadros de rápida
instalação (após horas da ingestão) e o processo evolui
Campylobacter jejuni para cura dentro de um a dois dias.
Não se sabe com exatidão seu mecanismo en- Do ponto de vista teórico, a diarreia parenteral,
teropatogênico, mas parece estar associado com sua isto é, aquela produzida por infecções não localizadas
capacidade de invasão da mucosa, principalmente no no tubo digestivo, é tema controverso. São particular-
cólon, e de produção de enterotoxinas. mente responsabilizadas as otites médias agudas e as
infecções urinárias. Convém lembrar que, em crianças
menores, particularmente lactentes, o sintoma diar-
Vírus reia pode ser parte de uma resposta geral a infecções
A patogênese da diarreia viral caracteriza-se pela localizadas em qualquer parte do organismo.
invasão de enterócitos dos vilos, determinando A coprocultura, indispensável para pesquisa clí-
necrose. Há ascensão de células ainda imaturas das nica, tem utilidade prática pequena na grande maioria
criptas, que são secretantes e pouco aptas à absorção, das diarreias agudas. Exame dispendioso e demorado,
especialmente da lactose. Há diarreia aquosa acom- dificilmente alterará a conduta do médico, excetuan-
panhada de vômitos e febre. As lesões são geralmen- do-se em casos muito graves (diarreias invasoras) ou
te focais, poupando áreas que permanecem normais. de infecções hospitalares.
Os principais vírus causadores de diarreia são: rota-
vírus, adenovírus, astrovírus e os calicivírus (Norwalk). A
importância do rotavírus sobrepuja, em muito, a dos ou-
tros vírus. A gastroenterite viral aguda é usualmente uma Diagnóstico etiológico
doença autolimitada, com recuperação histológica do
epitélio intestinal em 7 a 10 dias após ter cessado a
presuntivo da DDA
excreção do vírus. A recuperação funcional do intestino Diarreia secretora: fezes líquidas, abundantes,
ocorre pouco depois. Ocasionalmente em lactentes com claras, sem sangue, muco ou pus, pH normal e sem
menos de 12 meses de idade, pode ocorrer uma enterite substâncias redutoras + desconforto abdominal mas
pós-viral severa que dura até 6 a 12 semanas. sem dor à evacuação + tendência à desidratação + vô-

SJT Residência Médica – 2016


14
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

mitos/febre não clinicamente relevantes = Causa pro-


vável: enterotoxina (ETEC, EPEC ou fase inicial de
Noções terapêuticas da
bactérias invasoras). diarreia aguda
Diarreia viral: fezes líquidas, sem muco, sangue O tratamento efetivo da diarreia aguda precisa ser
ou pus, evacuadas sem dor + vômitos muito frequen- considerado sob os aspectos globais de profilaxia, tera-
tes, que podem preceder a diarreia em 1 ou 2 dias e pia de reidratação, tratamento dietético, tratamento
predominar no quadro clínico + febre na maioria dos sintomático e tratamento específico (etiológico).
casos (24-48 h) = Causa provável: viral (rotavírus,
astrovírus ou adenovírus).
Diarreia exsudativa: diarreia aquosa de grande Profilaxia
volume inicialmente (pode nem ocorrer), que rapida- Genericamente seria o conjunto de medidas que
mente evolui para fezes disentéricas, mucopiossan- assegurassem as melhores condições de defesa ao hos-
guinolenta, eliminadas repentinamente, em pequenos pedeiro e um meio ambiente o menos contaminado
volumes e acompanhadas de dor à evacuação (tenes- possível, que seria obtido com programas de estímulo
mo) + febre alta + achados neurológicos (convulsões, ao aleitamento materno e política de saneamento bá-
cefaleia, letargia, meningismo ou alucinações) eventu- sico adequado.
ais + leucocitose com desvio à esquerda = Causa pro-
vável: bactéria invasora (Shigella, EIEC).
Aparecimento simultâneo de vários casos de
diarreia após ingestão de um mesmo alimento = Terapia de reidratação
causa provável: intoxicação alimentar. Toda criança com diarreia aguda, condição po-
tencialmente capaz de determinar quadros de desi-
dratação, deve receber atenção no sentido de evitar-se
Critérios diferenciadores de diarreia secretora e a instalação dessa (nas crianças sem desidratação) ou,
osmótica
frente a evidências clínicas de algum grau de desidra-
Fezes Diarreia osmó- Diarreia secreto- tação, deve-se instalar prontamente a terapia de rei-
tica ra (Infecciosa) dratação oral (TRO).
Eletrólitos Na+ < 70 mmol/L Na+ > 70
mmol/L
pH <5 <6
Substância redu- presente ausente Tratamento dietético
tora
Volume < 20 mL/kg/dia > 20 mL/kg/dia Objetiva a preservação ou recuperação do estado
Após jejum < 10 mL/kg/dia > 20 mL/kg/dia nutricional do paciente, o que pode ser conseguido:
Sangue/Pús/Gor- presente ou au- ausente � mantendo o aleitamento materno sempre que
dura sente possível;
Tabela 1.1  Atenção! � evitando o jejum para o paciente além da fase de
reidratação (4-6 horas);
� realimentando a criança com dieta normal e ca-
Características e etiologia da diarreia loricamente adequada para a idade o mais pron-
secretora e inflamatória tamente possível. Portanto, via de regra, não se
Diarreia não Diarreia indica modificação da dieta para uma criança
inflamatória inflamatória com diarreia aguda.
Caracterizada por diarreia Caracterizada por � a manutenção da alimentação durante a doença
aquosa e ausência de leucócitos diarreia (fezes diarreica tem os seguintes aspectos positivos:
fecais: sanguinolentas), � protege a mucosa intestinal, evitando a atrofia
Intoxicação alimentar leucócitos fecais e induzida pelo jejum e possibilitando a recupera-
S. aureus eritrócitos: ção mais rápida da mucosa intestinal;
Bacillus cereus Shigella
Escherichia coli enterotoxigê- E. coli invasiva � há indícios de que a alimentação durante a do-
nica Salmonella ença diarreica pode evitar o aumento da perme-
Vibrio cholerae Campylobacter abilidade intestinal associada à diarreia (dimi-
Cryptosporidium Clostridium difficile nui a translocação bacteriana);
Rotavírus Entamoeba histolytica � previne ou reduz os danos sobre o estado nutri-
outros vírus cional causados pela doença, facilitando, ainda, a
Tabela 1.2  Atenção! recuperação nutricional durante a convalescença.

SJT Residência Médica – 2016


15
1  Síndromes diarreicas em pediatria

Tratamento sintomático Uso de antibiótico e colite


Felizmente pouco prescritas, mas ainda muito pseudomembranosa
utilizadas por automedicação, não há evidências de
que as chamadas drogas sintomáticas tragam bene- A colite pseudomembranosa é uma condição
fícios reais para os pacientes. Pelo contrário, o risco grave, vista em pacientes que recebem antibioticote-
de efeitos colaterais e o fato de inibirem respostas rapia. O Clostridium difficile é o agente mais implicado.
fisiológicas contraindicam sua prescrição. Alguns dias após o início do uso de antibióticos (espe-
cialmente clindamicina, ampicilina e cefalosporinas).
Drogas inibidoras da motilidade (antiespas- O diagnóstico no lactente é mais difícil devido à taxa
módicas) como opiáceos, difenoxilato, loperamide e relativamente elevada de portadores do C. difficile. A
atropínicos, por aumentarem o tempo de trânsito re- taxa de colonização é de cerca de 20% nos neonatos,
presentam um risco maior para os pacientes, princi- 30%-40% nos lactentes, 10% nas crianças maiores e
palmente se infectados com agentes enteroinvasivos 5% nos adolescentes.
ou enterotoxigênicos.
O quadro clínico se caracteriza por febre, queda
Drogas adsorventes (caolim-pectina, carvão ati- do estado geral associado a diarreia profusa, que pode
vado), que dão consistência às fezes, não alteram a ser aquosa ou mucoide, sendo geralmente esverdeada,
perda de água pelas evacuações e espoliam eletrólitos fétida, sanguinolenta. O diagnóstico é feito pela sig-
(Na+ e K+), o que deve contraindicar sua prescrição. moidoscopia, que revela placas ou nódulos pseudo-
Por fim, a ação sedativa dos antieméticos pode membranosos e pela detecção da toxina bacteriana.
dificultar a terapia de reidratação oral, devendo tam- Se a doença não é agressiva, as crianças pode-
bém evitar sua utilização. A hidratação da criança é o rão ser tratadas com a retirada do antibiótico e os
melhor tratamento antiemético. cuidados de suporte adequados. As crianças mais
gravemente enfermas deverão ser tratadas com van-
comicina ou metronidazol, com eficácia terapêutica
Tratamento etiológico superior a 95% dos casos. A complicação mais grave
e letal é o megacólon tóxico e suas complicações per-
Os antimicrobianos não devem ser utilizados ro- furativas e sépticas.
tineiramente na gastroenterite aguda de etiologia não
determinada pelos seguintes motivos:
� a diarreia aguda é normalmente um processo
autolimitado;
� a antibioticoterapia não altera o quadro clíni- Diarreia persistente
co da maior parte dos casos e pode prolongar
o tempo de eliminação de determinadas bacté- A adequada abordagem da doença diarreica agu-
rias como, por exemplo, Salmonella; da, com a priorização da terapia de reposição oral, a
� os antimicrobianos promovem alteração da
manutenção da alimentação adequada para idade du-
microbiota intestinal, podendo selecionar uma rante o episódio diarreico e o uso criterioso de medi-
população bacteriana resistente; camentos, determinou a redução da mortalidade por
diarreia aguda, principalmente com a diminuição de
� efeitos colaterais adversos dos antibióticos po-
óbitos por desidratação. Entretanto, atenção deve
dem existir; ser dada para uma proporção de casos de diarreia
� aumenta o custo do tratamento. aguda que apresentam evolução por tempo supe-
rior a 14 dias (2% a 20% dos casos), determinando
um maior comprometimento nutricional e riscos
de óbito. Nas últimas décadas, a OMS passou a re-
Indicações de antibioticoterapia na
comendar o termo diarreia persistente para deno-
síndrome diarreica aguda
minar essa condição patológica.
� pacientes imunodeprimidos ou imunossuprimidos;
Alguns fatores são relacionados ao maior risco
� recém-nascidos, particularmente prematuros;
do desenvolvimento dessa condição:
� suspeita de disseminação do processo intestinal
(sepse); 1. Idade: primeiro ano de vida.
� cólera; 2. Estado nutricional: nos desnutridos a dura-
� surto epidêmico de Shigella em crianças instituciona- ção da diarreia é mais longa e a incidência de diarreia
lizadas, com o intuito de diminuir o tempo de elimi- persistente é mais elevada.
nação de bactérias pelas fezes. 3. Baixo peso ao nascer e prematuridade: rela-
Tabela 1.3 cionados à imaturidade morfofuncional e imunológica.

SJT Residência Médica – 2016


16
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

4. Deficiências imunitárias. bacteriana sobre os carboidratos no cólon. Este gás é


5. Episódios anteriores de diarreia: lesões pre- absorvido e eliminado pelos pulmões. Não existe, no
gressas na mucosa intestinal. organismo, nenhuma outra fonte de produção de H2,
o que torna o teste bastante confiável.
6. Alimentação: o leite materno tem uma ação
protetora. Crianças não amamentadas tem um risco Na prática, o tratamento da diarreia persistente
25 vezes maior de ter diarreia aguda e é possível que é uma continuação do tratamento da diarreia aguda,
tenham maior risco da diarreia persistente. Mudan- redobrando-se os cuidados com a nutrição e hidrata-
ças na dieta habitual da criança durante a diarreia é ção da criança e procurando identificar os fatores que
um fator que contribui para o agravamento do esta- estão contribuindo para a persistência da diarreia.
do nutricional.
7. Medicamentos utilizados durante o quadro
agudo (medicamentos que interferem com o peristal-
tismo ou com a microbiota normal intestinal). Diarreia crônica
8. Condições socioeconômicas e educacionais:
moradia, renda familiar, saneamento básico e nível
educacional dos pais. Desnutrição energético-proteica
A mucosa intestinal tem rápida reposição de cé- Na desnutrição primária pode haver diarreia,
lulas epiteliais, que pode ser afetada na desnutrição, cuja causa está ligada a vários mecanismos: infecções
quando ocorre diminuição do número de células e da de repetição, lesões tróficas de mucosa, deficiência
migração de células da cripta para a vilosidade. Além de dissacaridases, insuficiência pancreática e déficits
disso, o alimento na luz intestinal é um dos mais imunológicos, além de uma frequente associação com
importantes fatores tróficos que promovem a re- as parasitoses intestinais.
novação celular. A redução final das microvilosi-
dades acaba por diminuir a capacidade absortiva e
digestiva da mucosa intestinal. Parasitoses intestinais
Agressões à mucosa intestinal podem facilitar a Destaca-se, em nosso meio, a giardíase e a ame-
absorção de macromoléculas que levariam à sensibili- bíase, como causas de quadros de diarreia crônica.
zação local, ao processo inflamatório e à má absorção. (Vide aula: Enteroparasitoses.)
O supercrescimento bacteriano no intestino delgado e
a desconjugação de ácidos biliares também colaboram
para a lesão da mucosa e a má absorção. Síndrome do intestino irritável
A má absorção de açúcares é um dos fatores mais (cólon irritável) ou diarreia crônica
importantes na manutenção da diarreia, e a intole- inespecífica
rância secundária à lactose é o primeiro diagnóstico a
ser lembrado nos casos de diarreia persistente. Alguns Esta é uma das causas mais frequentes de diar-
agentes como E. coli enteropatogênica e o rotavírus reia crônica no consultório pediátrico. É uma entidade
determinam diminuição da atividade das dissacari- clínica, cujos conceitos fisiopatológicos e de diagnósti-
dases. Estabelece-se, então, a intolerância secundária cos são ainda controversos e pouco esclarecidos.
aos dissacarides, que estão comprometidos na seguin- Alguns autores consideram que o cólon irritável
te ordem: lactose, sacarose e maltose. O açúcar mal ab- é um reflexo de alterações de motilidade intestinal
sorvido sofrerá hidrólise bacteriana, transformando- (dismotilidade), como forma de reação do indivíduo a
-se em monossacarides, ácidos orgânicos e gases, que uma série de estímulos na sua relação com o ambiente.
aumentam a pressão osmótica na luz intestinal e exa- Assim, no recém-nascido aparecem as cólicas, no lac-
cerbam o peristaltismo. tente e pré-escolar as diarreias crônicas inespecíficas,
Cólicas com evacuações aquosas e abundantes no escolar a dor abdominal recorrente e, na vida adul-
(efeito osmótico), flatulência, borborigmo, distensão ta, o cólon irritável do adulto.
abdominal, fezes explosivas, dermatite perianal e Caracteristicamente, a criança, entre seis me-
perineal são achados clínicos frequentes nessa con- ses e três anos de idade apresenta três ou mais
dição. A determinação do pH fecal com valor menor evacuações diárias recorrentes, sem dor, com fezes
que 6, juntamente com a presença de substâncias volumosas e sem forma. O quadro diarreico nor-
redutoras nas fezes, sugerem o componente de má malmente se alterna com fezes normais. O estado
absorção de carboidratos. nutricional, apetite, crescimento e o desenvolvimento
Atualmente, um teste diagnóstico disponível é o não são afetados. Há remissão da diarreia em torno
do hidrogênio no ar expirado após sobrecarga de lacto- dos três a quatro anos de vida. São comuns a história
se. Baseia-se no princípio da formação de H2 pela ação familiar de colite inespecífica, constipação intestinal

SJT Residência Médica – 2016


17
1  Síndromes diarreicas em pediatria

e outros distúrbios funcionais do aparelho digestivo. A alergia alimentar é uma entidade clínica
Essas relações fazem suspeitar da existência de fato- resultante da resposta imunológica anormal (hi-
res psicológicos individuais e familiares envolvidos na persensibilidade) de um indivíduo quando exposto
patogênese dessa condição. Comumente existe grande a uma ou mais proteínas alimentares, absorvidas
ansiedade familiar, contrastando com o bom estado através de uma mucosa intestinal permeável. Vários
geral e o bem-estar do paciente. alérgenos alimentares foram descritos, sendo os mais
frequentemente citados o leite, soja, trigo, ovo, peixe,
Existem associações entre as alterações da mo-
tomate, laranja, nozes e chocolate. O leite de vaca é o
tilidade intestinal e fatores dietéticos, tais como su-
alérgeno alimentar mais representativo para o gru-
peralimentação e excesso de ingestão de sucos hipe-
po pediátrico (maior potencial alergêncio e melhor
rosmolares. Aceita-se que há aumento no trânsito estudado). O leite de vaca contém mais de 20 com-
intestinal, com movimentos de segmentação e peris- ponentes proteicos, dotados de diferentes graus de
taltismo exaltados. Alimentos frios e soluções com atividade antigênica. A fração betalactoglobulina é
alta osmolaridade podem exacerbar os movimentos a fração que mais frequentemente induz sensibiliza-
de propulsão nas crianças com cólon irritável. Alguns ção. Para que a alergia se desenvolva em um indivíduo,
estudos demonstram espasticidade do segmento colô- é necessário que haja absorção do antígeno pela muco-
nico inferior, dificultando a chegada do bolo fecal para sa intestinal e consequente sensibilização, ocasionando
a reabsorção final de líquidos. Dessa maneira, quan- lesões teciduais e manifestações clínicas.
do ocorre evacuação em resposta aos movimentos de
Acredita-se que uma série de fatores possa in-
propulsão desencadeados pela ingestão de alimentos,
tervir como predisponentes ao desenvolvimento de
as fezes são eliminadas com grande conteúdo de líqui-
sensibilidade à proteína do leite. A imaturidade do
dos. Durante a noite, ocorre relaxamento do segmen-
trato gastrointestinal com aumento de permeabi-
to retoanal, sendo possível a dessecação das fezes. Isso lidade a macromoléculas alergenizantes e a imatu-
explica o fato de a criança não evacuar à noite e ter ridade do sistema imunológico com deficiência de
uma evacuação mais sólida no início da manhã. Ou- IgA secretório somam-se à exposição aos antígenos
tro fator considerado na etiologia do cólon irritável alimentares favorecida pela prática habitual da
refere-se à dieta ingerida. Uma baixa quantidade de introdução precoce do leite de vaca e de alimen-
gorduras diminui o tempo de esvaziamento gástrico. tos sólidos. Crianças em aleitamento materno estão
Uma dieta em que menos de 30% das calorias derivam mais protegidas por receberem IgA secretora e fatores
de gorduras constitui um fator de piora, de manuten- tróficos que aceleram a maturação intestinal, além de
ção ou mesmo de instalação da diarreia. Uma dieta serem poupadas da exposição aos antígenos da dieta.
com baixo teor de fibras leva à piora dos sintomas. A
ingestão aumentada de sucos de frutas com taxa de A grande maioria das alergias alimentares está
frutose/glicose elevada tem sido documentada como presente na infância. Sua ocorrência envolve predis-
fator agravante da diarreia (maçã, pera). Preparados posição genética, idade, poder alergênico do alimento
industrializados com excesso de sorbitol (açúcar não e natureza da exposição. Como a proteína do leite de
vaca é um dos primeiros antígenos que a criança
digerível) exercem efeito osmótico na luz intestinal.
tem contato, as reações alérgicas às proteínas do
Diante de um quadro clínico muito caracterís- leite são as mais frequentes.
tico, não estão indicados exames complementares,
As manifestações gastrointestinais podem ser:
quando excluídas, em nosso meio, as parasitoses. O
tratamento consiste na orientação e tranquilização � síndrome aguda: anafilaxia gastrointestinal;
dos pais, sendo contraindicados medicamentos ou � síndrome crônica: enteropatia induzida pelo
dietas restritivas. leite de vaca ou formas atípicas (cólicas, vômi-
tos, obstipação intestinal crônica, obstrução in-
testinal).
Alergia à proteína do leite de vaca
As manifestações clínicas da alergia à proteína
De modo geral, trata-se de uma entidade consi- do leite de vaca podem ser, além de numerosas, bas-
derada pouco frequente. Até pouco tempo, a alergia à tante variadas, dependendo dos órgãos-alvo atingidos
proteína do leite de vaca era uma justificativa diagnós- e dos mecanismos imunológicos envolvidos. A alergia
tica para uma diversidade de casos pouco esclarecidos, à proteína do leite de vaca é um fenômeno transitório
contribuindo para uma situação na qual essa doença de duração variável. Os sintomas, em geral, apare-
era superdiagnosticada. Grande parte dos casos de cem nos primeiros três meses de vida. Manifestações
diarreia que melhora após supressão do leite da gastrointestinais são as mais comuns, variando, em
dieta deve-se à intolerância secundária à lactose. É frequência, entre 50% a 80%, seguidas por manifesta-
fundamental a postura crítica diante de um diag- ções dermatológicas (20% e 40%) e respiratórias (4%
nóstico tão controvertido, em face dos problemas e 25%). Vale ressaltar que, embora as manifestações
que a exclusão do leite e dos derivados da dieta cos- no TGI predominem, costumam estar associadas a
tumam trazer para a criança e para a família. quadros respiratórios ou dermatológicos.

SJT Residência Médica – 2016


18
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O diagnóstico é essencialmente clínico; correla- pode estar presente na enterocolite induzida pela pro-
ção alimentar observada, início precoce à exposição teína do leite de vaca. Deve-se também afastar outras
do leite de vaca, características das manifestações causas de intolerância ou falsas alergias ao leite de
clínicas, antecedentes de gastroenterites de evolu- vaca (mamadeiras com concentrações elevadas de leite
ção prolongada e antecedentes familiares alérgicos ou farinhas e mamadeiras contaminadas, por exemplo).
são elementos importantes a serem considerados.
O tratamento é dietético e consiste na exclusão
Anafilaxia gastrointestinal: minutos a poucas ho- da proteína do leite, que se acompanha da remissão
ras após ingestão do alérgeno, com náuseas, vômitos, dos sintomas dentro de dois a três dias. A substitui-
diarreia, flatulência, distensão e dor abdominal. Às ção ideal seria pelos preparados à base de hidrolisados
vezes febre, simulando GECA (gastroenterite-simile). proteicos (elevado custo). Pode haver reação cruzada à
Nas formas crônicas, os sintomas ocorrem horas proteína de soja (50%). A reintrodução do leite ou de
e dias após a exposição ao alérgeno alimentar e em seus derivados não deve ser feita antes dos 12 meses
muitos casos não se consegue uma associação níti- de vida e essa deverá ser lenta e cuidadosa.
da entre ingestão do alimento e início dos sintomas
(diagnóstico difícil). Por outro lado, alergia alimentar
e infecção intestinal coexistem com frequência, difi-
cultando mais ainda o diagnóstico. As manifestações
Causas menos frequentes
crônicas podem ser: Diante de uma criança que evolui com diarreia
� má absorção intestinal (lesões em intestino crônica de longa duração, apresentando sinais de má
delgado); absorção, expressos no déficit de crescimento ponde-
roestatural, e afastadas outras causas etiológicas mais
� colite (lesões em intestino grosso). frequentes, deve-se pensar na possibilidade de se tra-
Esses quadros são englobados sob a denomina- tar de doença celíaca ou doença fibrocística (mucovis-
ção enteropatia induzida por leite de vaca, com fe- cidose), duas doenças que, embora raras, são conside-
zes líquidas e explosivas, ou semipastosas, atraso de radas na literatura como as principais causas de má
crescimento e achados laboratoriais de má absorção. absorção em crianças.
� síndrome de Wilson Lahey: existe tão somen-
te perda de sangue oculto (1 a 10 mL/dia) pelas Doença celíaca (enteropatia indu-
fezes, mais comum no primeiro ano de vida;
zida pelo glúten)
� gastroenteropatia com eosinofilia induzi-
da por leite de vaca: em geral < seis meses, A doença celíaca é caracterizada pela atrofia
poucos sintomas gastrointestinais, nenhum das vilosidades da mucosa intestinal consequente à
sistêmico, sangue oculto positivo, eosinofilia presença de glúten na dieta e que se manifesta por
periférica e tecidual; quadro de diarreia crônica acompanhada de má ab-
sorção. A intolerância ao glúten pode ser conside-
� proctocolite: evacuações mucossanguinolen- rada como um estado de resposta imune anormal,
tas ou enterorragia. manifestada por indivíduos geneticamente pre-
O desaparecimento dos sintomas após a elimina- dispostos (é comum a recorrência de vários casos na
ção do leite da dieta e o reaparecimento dos sintomas mesma família).
dentro de 48 horas após reintrodução poderia repre- Existe uma relação evidente entre o início dos
sentar um critério diagnóstico. Entretanto, pelos riscos sintomas com a ingestão do glúten (fração peptídica
de exposição (principalmente nas reações mediadas por existente no trigo, no centeio, na aveia, na cevada
IgE), esse critério é questionável para o diagnóstico. e no malte). O tempo de latência entre a ingestão dos
Sobrepõe-se, ainda, a intolerância à lactose, cujo dife- referidos alimentos e as primeiras manifestações clí-
rencial, por esse critério, ficaria prejudicado. nicas é variável (cerca de três meses). A diarreia pode,
Até o presente momento não se dispõe de ne- inicialmente, ser intermitente, acompanhando qua-
nhum exame laboratorial para o estabelecimento de- dros de infecção respiratória alta ou surtos de infecção
intestinal; posteriormente, torna-se crônica. As fezes
finitivo do diagnóstico de alergia ao leite de vaca. Os
exames que permitem especular sobre o mecanismo são volumosas, amarelas, brilhantes e com odor bas-
imunológico envolvido são: RAST (teste in vitro para
tante desagradável; contêm alimentos mal digeridos,
variando a frequência entre uma e cinco vezes ao dia.
anticorpos IgE) e os testes cutâneos. Entretanto, resul-
Embora a diarreia seja o sintoma mais comum, ela pode
tados negativos não afastam a doença, pois são inefi-
estar ausente em 10% a 25% dos casos, principalmente
cazes para avaliar mecanismos independentes de IgE.
nas crianças maiores. O apetite torna-se diminuído e
O diagnóstico diferencial mais importante a ser instala-se uma desnutrição progressiva. A criança é
feito é o da intolerância secundária à lactose. Diferen- irritada, muito dependente, e chora facilmente. Há
ciação difícil, pois a intolerância secundária à lactose déficit acentuado de ganho de peso e altura, abdome

SJT Residência Médica – 2016


19
1  Síndromes diarreicas em pediatria

volumoso, hipotrofia muscular, especialmente em nalículos biliares e posteriormente risco para cirrose
região glútea e raízes de membros, com enrugamen- biliar. No pâncreas a doença canalicular exócrina
to característico da pele nessas regiões. De maneira acarreta insuficiência pancreática com defeito da
geral, observa-se uma involução no desenvolvimento digestão de gorduras, proteínas e amido. Azoospermia
motor; com frequência, a criança deixa de caminhar por obstrução é assinalada nos adolescentes e adultos.
ou mesmo de ficar de pé. Anemia é um achado comum, É uma doença genética, com transmissão autos-
assim como quadros de disvitaminoses. É fundamental sômica recessiva, com incidência 1:2.000 – 1:3.000 nas-
destacar que os quadros típicos e com exuberante sinto- cidos vivos. Mais de 400 mutações gênicas são descritas,
matologia correspondem a menos da metade dos casos. mas todas ocorrem no braço longo do cromossomo 7,
As dificuldades diagnósticas ocorrem justamente dian- num gene que codifica a proteína reguladora transmem-
te das formas clínicas mais leves. Uma vez que o com- brana da FC (RTFC), que expressa-se nas células epiteliais
prometimento maior ocorre nas porções proximais do das vias aéreas, do trato gastrointestinal, das glândulas
intestino delgado, pode haver compensações absortivas sudoríparas e do sistema genitourinário. A mutação
nos segmentos distais. A variação do tempo de latência mais prevalente da RTFC (70%) resulta da deleção de
dificulta a correlação entre a introdução dos cereais e as um resíduo de fenilalanina no aminoácido 508.
manifestações clínicas.
A manifestação respiratória da doença em geral
O diagnóstico é confirmado pela biópsia jeju- se faz com tosse, inicialmente com ou sem broncoes-
nal feita por via oral (diagnóstico de certeza). Com
pasmo, que torna-se recorrente e de caráter progressi-
a exclusão do glúten o paciente entra em remissão
vo, com expectoração espessa e purulenta, que coinci-
clínica e histopatológica. Da mesma forma, existe
de com as exacerbações infecciosas.
uma piora clínica com a reintrodução dos referidos
cereais na dieta. A diarreia crônica, na qual destaca-se a esteator-
A pesquisa da gordura fecal é positiva e o tes- reia, é causada pela insuficiência exógena do pâncreas;
te da d-xilose mostra diminuição da absorção dessa as manifestações dependem da intensidade do com-
pentose. Anticorpos antigliadina são encontrados prometimento da função pancreática.
em mais de 90% das crianças com doença celíaca O quadro típico é constituído pela diarreia crô-
não tratada e seus títulos diminuem à medida da nica que pode iniciar-se desde o nascimento, com fe-
restrição dietética. A dosagem dos anticorpos an- zes volumosas, de odor desagradável, gordurosas e
tiendomísio em associação com a dosagem de an- com muco. A criança apresenta, desde o nascimento,
ticorpos antigliadina pode alcançar 100% de sen- déficit de ganho de peso e altura. O apetite é con-
sibilidade e especificidade. Esses testes facilitam servado ou mesmo excessivo (chora de fome). Estas
o diagnóstico e a seleção dos casos que devem ser crianças se assemelham aos celíacos, faltando, con-
biopsiados. O diagnóstico de certeza é indispensá- tudo, a anorexia característica da doença celíaca. As
vel pelas implicações dietéticas e suas repercussões infecções respiratórias frequentes (P. aeruginosa, Cepa-
psicoemocionais na criança. cia e S. aureus) têm grande importância no comprome-
O tratamento é realizado com a exclusão dietéti- timento do ganho de peso. A síndrome da obstrução
ca do trigo, do centeio, da aveia e da cevada. Proíbe- intestinal distal leva à obstrução do intestino delgado
-se, por exemplo, o uso de pão, macarrão, farinha de tri- em cerca de 3% dos pacientes. Quadro de intussuscep-
go, aveia, bolos, biscoitos e papinhas industrializadas. ção (geralmente requer intervenção cirúrgica) e prolap-
so retal fazem parte das manifestações gastrointesti-
nais e são mais comuns nas crianças.
Mucoviscidose (fibrose cística) No pâncreas, a doença canacular exócrina,
acarreta insuficiência pancreática com defeito na
Outra entidade rara a ser considerada no diag- digestão de gorduras, proteínas e amido. Cerca de
nóstico diferencial dos casos de má absorção primária, 7% dos casos evoluem com insuficiência endócrina
afastadas, primeiramente, as causas mais comuns, é a e diabetes melito.
fibrose cística do pâncreas (mucoviscidose). A doença O diagnóstico de fibrose cística deve ser lem-
fibrocística é de múltiplas manifestações, pode carac- brado nas crianças com diarreia crônica de início
terizar-se por diarreia crônica com déficit de cres- precoce e déficit ponderoestatural associados à
cimento, frequentemente acompanhado de quadro presença dos sintomas respiratórios. A dosagem
respiratório (principal causa de morbidade, resultan- de cloro no suor é fundamental para o diagnóstico;
te das infecções pulmonares crônicas). valores entre 60 e 80 mEq/L são suspeitos; o exame
O primeiro sintoma costuma ser o íleo meconial, deve ser repetido e os níveis acima de 80 mEq/L são
pois a falta de enzimas pancreáticas comprometem o bastante sugestivos.
processo digestivo normal. A sintomatologia pulmo- A dosagem de gordura das fezes está aumenta-
nar caracteriza-se por processos bronquiectásicos da e a prova da absorção da d-xilose apresenta resul-
e infecções repetidas. No fígado há oclusão dos ca- tados normais, o que diferencia da doença celíaca.

SJT Residência Médica – 2016


20
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O tratamento deve ser realizado com acompanhamento de especialistas; as exacerbações pulmonares me-
recem atenção especial. São crianças portadoras de doença crônica, de evolução entremeada por intercorrências
e com um prognóstico não favorável. O tratamento dietético consiste na redução da ingestão de gorduras e em
dietas hipercalóricas com alto teor de proteínas. O tratamento medicamentoso consiste na suplementação enzi-
mática e na reposição de vitaminas lipossolúveis. De um modo geral, quanto melhor o estado nutricional, mais
lento o declínio da função pulmonar.

Acrodermatite enteropática
Distúrbio autossômico recessivo raro caracterizado por diarreia crônica e dermatite. A erupção
cutânea consiste em lesões de pele vesicobolhosas, eczematosas, secas, descamativas ou psoriasiformes,
distribuídas simetricamente nas áreas perioral, perineal, bochechas, joelhos e cotovelos. Os cabelos exi-
bem uma matiz avermelhada e algum grau de alopecia é típico. Ela é enteropática devido à acentuada
queda dos níveis de zinco secundário ao déficit de absorção intestinal. São manifestações associadas: fo-
tofobia, conjuntivite, blefarite, estomatite, glossite, paroníquia, distrofia ungueal, atraso na cicatrização de
feridas e atraso do crescimento.
Esta dermatite pode ser observada em crianças mantidas por longos períodos em nutrição parenteral total,
com quantidades insuficientes de zinco e em recém-nascidos muito prematuros devido às reservas diminuídas.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

2
Desidratação e fluidoterapia
em pediatria

A água é o solvente mais importante e o prin- Numa criança mais velha, portanto, de cerca
cipal componente do organismo; por ser um meio de 30kg, 18 litros serão água. Esses 60% de água
estável, é nela que ocorre a maioria das trocas vitais corporal total tem a seguinte distribuição: 40% no
para a manutenção da homeostase. A quantidade de espaço intracelular e 20% no espaço extracelular
água no organismo humano (água corporal total) (15% no intersticial e 5% no intravascular). Mas
varia desde 80% do peso de um recém-nascido, di- nem sempre a distribuição foi assim. Na criança
minuindo para 65% no fim do primeiro ano de vida, pequena, existe uma diferença na distribuição
até atingir cerca de 60% do peso adulto. Sendo a desse fluido nos compartimentos orgânicos. À
criança um ser em crescimento, portanto, não so- medida que ocorre o crescimento e o desenvolvi-
mente o volume, mas também a distribuição dos mento do organismo, há um aumento progressivo
fluidos se alteram nesse processo. Basicamente, a da celularidade e, por consequência, do líquido in-
água distribui-se em três compartimentos: extra- tracelular como um todo, havendo um decréscimo
celular (inclui o volume plasmático, o volume do proporcional na quantidade de líquido extracelu-
fluido intersticial e o volume linfático), intracelu- lar (LEC). Essa diminuição do líquido extracelular
lar e transcelular (líquidos cerebroespinhal, intra- ocorre rapidamente durante o primeiro ano de
ocular, pleura, peritoneal, sinovial, etc). As reações vida e após, lentamente, até a adolescência. A Tabela
bioquímicas vitais ocorrem especialmente no espaço 2.1 apresenta a composição corporal e a distribui-
intracelular, enquanto o compartimento extracelular ção dos fluidos no primeiro ano de vida, compara-
serve como meio de transferência das substâncias en- tivamente ao adulto. Observe que, no decorrer do
volvidas nessas reações e de seus metabólitos. Assim, primeiro ano, há nítida diminuição da água corporal
o meio extracelular se relaciona, por um lado, com o total (80% para 65%), com mudança da distribuição;
meio externo (absorção e excreção de substâncias) e, do predomínio do líquido extracelular nos primeiros
por outro, diretamente com as células, conduzindo meses para o predomínio intracelular a partir do se-
nutrientes e removendo catabólitos. gundo semestre de vida do bebê.
22
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

RNPT RNT 1 ano Adulto


Peso corpóreo (kg) 1,5 3 10 70

Área corpórea (m2) 0,15 0,2 0,5 1,7

% de água do peso 80 78 65 60
LEC (% do peso) 50 45 25 20
LIC (% do peso) 30 33 40 40
Tabela 2.1  Distribuição da água corporal total.

Os principais fatores responsáveis pela redução da água extracelular com o crescimento são o aumen-
to da massa muscular, dos ossos e do tecido conjuntivo.
Os três compartimentos que compõem a água total do organismo também diferem em composição. O po-
tássio (K+), representa o principal cátion na água intracelular, e os fosfatos e as proteínas, os principais ânions.
Grande parte do sódio (Na+) é eliminada desse compartimento por processos que requerem energia (bomba só-
dio/potássio). Assim, o sódio é o principal cátion do líquido extracelular, enquanto o Cl- e o HCO-3 representam
os principais ânions. A importância do Na+ está relacionada com o controle que ele exerce na distribuição da água
em todo o organismo. O número de moléculas de sódio por unidade de água determina a osmolalidade do LEC.
Se o Na+ é perdido, a água é excretada na tentativa de manter a osmolalidade normal, e se o Na+ é retido, a água
também deve ser retida para diluí-lo. Para fins didáticos, as composições iônicas do plasma e do líquido intersti-
cial podem ser consideradas idênticas, embora existam pequenas diferenças resultantes da concentração desigual
de proteína. A Tabela 2.2 apresenta a composição eletrolítica dos compartimentos intra e extracelular.

Composição eletrolítica dos compartimentos intra e extracelular


Extracelular Extracelular
Intracelular
intravascular interstício
Volume (% peso) 35-40 5-8 15
Sódio (mEq/L) 10 135-145 144
Potássio (mEq/L) 150 3,5-5,0 4
Cálcio (mEq/L) - 4,5-5,3 2,5
Cloretos (mEq/L) 2 98-106 114
Bicarbonato (mEq/L) 10 24-28 30
Fosfato (mEq/L) 140 2 2
Proteínas (mg%) 40 15-20 0
Tabela 2.2 

As diferenças na composição entre o líquido intracelular (LIC) e o LEC são mantidas ativamente pela mem-
brana celular. Essa é uma membrana semipermeável, uma vez que é totalmente permeável à água, porém é seleti-
vamente permeável a outras substâncias. As forças osmóticas, portanto, determinam a distribuição de água entre
os vários compartimentos hídricos do organismo.
O lactente possui superfície corpórea relativamente maior que o adulto. As perdas insensíveis basais são
relativamente maiores que dos adultos. A morbidade pediátrica da criança pequena é desidratante, por definição
(diarreias, vômitos, febre, taquipneia). Todos esses aspectos associados às particularidades da fisiologia renal da
criança pequena (menor ritmo de filtração glomerular, dificuldade de concentração urinária) e à composição cor-
poral com predomínio de líquido no espaço extracelular favorecem o fenômeno de desidratação, bastante comum
em Pediatria e, mais ainda, em crianças pequenas, diante de agravos que comprometem o equilíbrio hídrico.

Desidratação: conceito e classificação


Os distúrbios hídricos e eletrolíticos estão entre as ocorrências mais comuns na prática pediátrica, exigindo do
médico atenção especial para o reconhecimento e o manejo adequados, particularmente em situações de emergência.

SJT Residência Médica – 2016


23
2  Desidratação e fluidoterapia em pediatria

Da mesma forma, a manutenção de um equilíbrio Portanto, quanto menor a criança maior sua vulnerabi-
hidroeletrolítico adequado faz parte dos cuidados bási- lidade para instalação de um quadro de sub-hidratação.
cos de atenção a qualquer paciente pediátrico, indepen-
A desidratação pode ser classificada de acordo
dentemente de sua doença de base.
com a magnitude do déficit de água, estimada através
Define-se desidratação como um evento pato- de sinais clínicos e pela perda ponderal, em leve ou
lógico em que ocorre a contração do volume extrace- de 1º grau (perdas de até 5% do peso), moderada ou
lular, secundário às perdas hídricas e eletrolíticas, de 2º grau (perdas de 5% a 10% do peso) e grave ou
cuja gravidade depende da magnitude do déficit em re-
de 3º grau (perdas de mais de 10% do peso). A Tabela
lação às reservas corpóreas e da composição da perda
2.3 apresenta, portanto, essa forma clássica de classi-
líquida (relação entre o déficit de água e de eletrólitos,
ficar a gravidade de desidratação; entretanto, deve-se
particularmente o sódio).
saber, que essa divisão é mais teórica do que prática
As perdas de fluidos representam perda de pois os sinais clínicos se sobrepõem e a informação
maior fração da água corporal total da criança.
sobre a perda ponderal da criança muito raramente
Portanto, as crianças e, particularmente, os lacten-
é disponível. Mais adiante, apresentaremos uma for-
tes, representam um grupo bastante vulnerável às
perdas hídricas e às manifestações clínicas da de- ma muito mais prática, definidora de condutas, e que
sidratação. É também na infância que sobrevêm as hoje deve ser utilizada para classificar uma criança
principais causas de perda hídrica, principalmente diante de um estado de perda hídrica. As classifica-
a doença diarreica aguda. Num recém-nascido, uma ções atuais agruparam as desidratações leves e mo-
diarreia de apenas 50 ml a cada 3 horas resulta numa deradas em um único grupo denominado algum grau
redução de quase 50% do volume de líquido extracelular de desidratação. Aproveite, entretanto, a Tabela 2.3
em um período de 36 horas, o que é equivalente, num para lembrar todos os pontos do exame físico para na
adulto, a uma perda de 8 litros de líquido extracelular. avaliação da hidratação de uma criança.

Classificação clínica do grau de desidratação


Leve (1º grau) Moderada (2º grau) Grave (3º grau)
Estado geral Alerta, com sede Agitada, muita sede Deprimida, comatosa
Seca, com língua seca Muito seca, lábios às vezes Lábios cianóticos
Boca e língua
e saburrosa cianóticos e pálidos
Olhos Normais ou pouco fundos Fundos Muito fundos
Lágrimas Presentes Ausentes Ausentes
Fontanela Normal Deprimida Muito deprimida
Fria, acinzentada,
Quente, seca, elasticidade Extremidades frias,
Pele elasticidade muito
normal elasticidade diminuída
diminuída
Pulsos Normais Finos Muito finos
Enchimento
Normal (até 3 s) Lentificado (3-8 s) Muito lentificado (> 8 s)
capilar
Perda de peso Até 5% 5% a 10% Acima de 10%
Déficit
Até 50 mL/kg 50 a 100 mL/kg > 100 mL/kg
estimado
Tabela 2.3 

O melhor parâmetro para a avaliação da umidade de mucosas é através da boca: a avaliação da quantidade de
saliva e sua fluidez. Para a avaliação da circulação periférica (enchimento capilar), o examinador deve comprimir com a
própria mão a mão fechada da criança durante 15 segundos e, logo após, liberá-la, observando-se o tempo necessário
para a volta da coloração normal (rubor) da palma da mão. O turgor (elasticidade) da pele e do tecido subcutâneo é pes-
quisado fazendo-se uma prega na pele sobre o tórax, epigástrio, flancos ou testa. Nos quadros de desidratação a prega
se desfaz lentamente (como acontece normalmente com uma prega feita no cotovelo, com o braço estendido). A diurese
é um bom parâmetro para avaliação da hidratação. É preciso lembrar, entretanto, que pode estar presente nos quadros
de desidratação com diabetes (glicosúria, diurese osmótica) e nas desidratações hipotônicas (comuns nos desnutridos).
Outra forma de classificar a desidratação se baseia no nível sérico do sódio resultante dessas perdas. Assim,
tem-se a desidratação isotônica, hipotônica ou hipertônica.

SJT Residência Médica – 2016


24
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

reto dos soros de hidratação oral representa uma


Desidratação isotônica ou causa comum. Crianças de baixa idade são predispos-
isonatrêmica tas a apresentar desidratação hipernatrêmica mais
rapidamente. O conjunto taquipneia-perspiração in-
sensível (espoliação de água livre) e sudorese (líquido
É o tipo mais frequente de desidratação, hipotônico), associado com a presença de febre alta
particularmente a secundária às perdas gastrointestinais (que também pode ser consequência da desidratação
nos quadros de diarreia aguda. É caracterizada por sódio hipernatrêmica) ou de pneumopatia, determina uma
sérico entre 130 e 150 mEq/L. Há uma depleção de só- tendência à hipernatremia. Vômitos intensos que
dio e água, com uma perda proporcional à concentração comprometem a ingestão hídrica ou simplesmente
do fluido extracelular. Não há, portanto, gradiente os- a falta de oferta de líquidos predispõem à instalação
mótico entre os compartimentos intra e extracelular e dos quadros de desidratação hipertônica. É um tipo
fluxos secundários de água. de desidratação que pode trazer dúvidas diagnósti-
cas, sendo os sinais clínicos mais discretos e menos
perceptíveis, exceto se ela for muito grave. Os si-
nais clínicos clássicos de desidratação, como vimos,
Desidratação hipotônica ou são fundamentalmente reflexos da desidratação
extracelular. Chamam a atenção na hipertônica, no
hiponatrêmica entanto, a sede intensa e a oligúria pronunciada,
determinada pela ativação, via osmorreceptores,
Caracterizada por sódio sérico abaixo de 130 do hormônio antidiurético (ADH). Perda de peso
mEq/L (alguns autores, 125 mEq/L). Há uma depleção sem sinais evidentes de desidratação são dados suges-
de sódio e água, porém com uma perda proporcional tivos de desidratação hipernatrêmica. A hipernatre-
excessiva de sódio em relação à perda hídrica. A hipo- mia pode causar lesão cerebral de mecanismo predo-
tonicidade do líquido extracelular gera um gradiente minantemente vascular: congestão capilar e venosa e
osmótico com consequente movimentação de água do hemorragias. A hipernatremia é causa importante de
espaço extracelular para o intracelular, o que agrava lesão cerebral, de difícil recuperação, uma vez instala-
o déficit extracelular, acentuando-se os sintomas e da (potencial de sequelas).
sinais de desidratação (diminuição do turgor do sub-
cutâneo, abaixamento de fontanela, sinais de hipo-
perfusão, colapso vascular e choque). Há ausência de
sede e a diurese pode estar presente (o que confunde
Tratamento da desidratação:
a avaliação do desidratado, principalmente do desnu- fluidoterapia
trido que tem dificuldades de concentrar a urina). O Independentemente da causa da desidratação,
fator predisponente mais importante é a desnutrição que pode ser muito variável, os princípios gerais de
grave. Choque, letargia e crises convulsivas são mais tratamento são os mesmos, devendo-se levar em con-
frequentes. A movimentação de água para o intrace- sideração o grau das perdas de água (gravidade) e o
lular pode determinar edema cerebral e sinais neuro- nível de sódio (tipo). É preciso lembrar que outros
lógicos. A hiponatremia é sempre uma condição grave distúrbios eletrolíticos e metabólicos poderão estar
que deve ser identificada e tratada. presentes, merecendo atenção especial os distúrbios
acidobásicos e os níveis de potássio.
De um modo geral, a desidratação leve e modera-
Desidratação hipertônica ou da pode ser tratada através da via oral, terapia de reidra-
tação oral (TRO), reservando-se a via parenteral para os
hipernatrêmica casos mais graves, para a correção dos distúrbios eletro-
líticos graves e para os pacientes com vômitos incoercí-
veis ou com perdas continuadas muito intensas.
Caracterizada por sódio sérico maior que 150
mEq/L (alguns autores, 145mEq/L). Há depleção de
sódio e água, porém com uma perda proporcional
maior de água. Há, portanto, gradiente osmótico,
sendo que a maior tonicidade do meio extracelular
Terapia de reidratação oral
leva à desidratação celular com graves sintomas (TRO)
secundários, principalmente relacionados ao siste- A TRO é o tratamento de escolha para os pa-
ma nervoso central. A desidratação hipernatrêmi- cientes com desidratação decorrentes de perdas pelo
ca pode ocorrer em pacientes com gastroenterite trato gastrointestinal. Determina, geralmente, a reso-
associada à pouca ingestão de água e/ou elevada
lução do problema em curto tempo, sem a necessidade
ingestão de sais, lembrando que o preparo incor-

SJT Residência Médica – 2016


25
2  Desidratação e fluidoterapia em pediatria

de grande manuseio da criança e instalação de um acesso


A solução clássica (1975) recomendada
vascular. Na diarreia aguda, há inibição da absorção de pela Organização Mundial de Saúde
Na+ acoplado ao Cl- (e da água que essa absorção acarre- tem a seguinte composição
ta). No entanto, a absorção de Na+ (e de água correspon-
dente) acoplada à absorção de glicose está preservada. A Sódio: 90 mEq/L
TRO baseia-se na observação de que a glicose facilita Potássio: 20 mEq/L
a absorção de sódio pelas células intestinais, mecanis-
mo que permanece inalterado mesmo na vigência de Cloro: 80 mEq/L
um quadro diarreico. Essa absorção é mais eficiente Bicarbonato: 30 mEq/L (ou citrato 10 mEq/L)
quando a glicose se encontra em concentrações de 56
a 150 mmol/L e está em relação equimolar com o só- Glicose: 111 mol/L (20 g/L)
dio. Se houver deficiência de glicose, a absorção será Osmolaridade: 311 mOsm/L
prejudicada e o excesso provocará diarreia osmótica.
Por esse mesmo motivo a osmolaridade total da fór- Composição por sais
mula de reidratação não deve ultrapassar a do plasma (em gramas por envelope – para 1 litro)
(300 mOsm/L). A fórmula deve ainda conter todos os Cloreto de sódio: 3,5
eletrólitos perdidos nas evacuações diarreicas (Na+,
K+, Cl- e bicarbonato). Citrato trissódico diidratado: 2,9
Nos processos diarreicos, há descamação epi- Cloreto de potássio: 1,5
telial, que impediria a absorção dos eletrólitos,
Glicose: 20
mas geralmente o processo é focal, quase sempre
existindo áreas íntegras que permitem a absorção. Tabela 2.4 

A partir de 2002, a OMS, após estudos multicêntricos, chegou ao desenvolvimento de uma SRO mais eficaz
e segura. Essa solução, de menor osmolaridade (245 mOsm/L), tem redução de 90 para 75 mEq/L de sódio, e de
glicose de 111 mOsm/L para 75 mOsm/L. Essa solução é utilizada em muitos países; ainda não disponível em nosso
meio. A mistura de sais e glicose, acondicionada em pacotes aluminizados, parece ser mais estável com citrato
de sódio do que com bicarbonato de sódio. O bicarbonato de sódio é um sal alcalino e o citrato de sódio é um
sal alcalinizante. O bicarbonato de sódio, ao ser ingerido, sofre a reação: Na+ + CO3- + HCl = NaCl + H2O + CO2,
em que eleva-se o pH gástrico e há produção de gás. A ingestão de citrato gera 3 CO3- somente após metabolizado,
principalmente no fígado, sem aqueles inconvenientes.
A OMS também recomenda a administração de água adicional na proporção de uma parte de água para
cada duas partes da solução, principalmente nas crianças de baixa idade, devido ao risco de hipernatremia,
visto que, na diarreia infantil inespecífica, as perdas fecais de sódio não são altas e as perdas insensíveis da
criança pequena são mais elevadas.
A TRO está indicada no tratamento e na prevenção da desidratação infantil. Para a prevenção não é neces-
sário um esquema terapêutico rígido, basta orientar os familiares quanto à evolução da doença diarreica e reco-
mendar a administração da solução hidratante, água e outros líquidos após cada evacuação amolecida da criança.
A utilização de soluções de reidratação caseiras (o popular soro caseiro) deve ser reservada aos locais
sem assistência, em casos em que uma solução mais completa não pode ser adquirida. O preparo inadequado
dessas soluções caseiras (erros de medida das pitadas e punhados) pode ocasionar agravos significativos ao
equilíbrio hidrossalino.

Terapia de reidratação parenteral


A terapia de reidratação intravenosa consiste em três fases, com objetivos terapêuticos distintos, que
devem ser conhecidos: fase de reparação (expansão), fase de manutenção e fase de reposição. Para entender
a escolha da melhor solução para cada uma dessas fases, deve-se conhecer a composição e, particularmente,
a osmolaridade (esta define se o soro é isotônico ou hipotônico em relação ao plasma) de cada um dos pro-
dutos comercialmente disponíveis. Na Tabela 2.5 encontram-se os dados sobre a composição das principais
soluções disponíveis para hidratação parenteral. De forma geral, hoje, preferem-se as soluções isotônicas
para a hidratação pediátrica.

SJT Residência Médica – 2016


26
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Composição eletrolítica e osmolaridade das


principais soluções disponíveis para hidratação parenteral
Eletrólito mEq/mL SF 0,9% Ringer Lactato SG5%/SF Holliday Segar Plasma
Sódio 154 130 77 30 136-145
Potássio - 4 - 0,025 3,5-5
Cloreto 154 109 77 55 98-106
Lactato - 28 - - -
Osmolaridade (mOsm/L) 308 274 154 110 285-300

Tabela 2.5 

(densidade urinária menor que 1010), desde que se-


Fase de reparação ou jam afastadas outras causas de poliúria (hiponatremia
expansão (ou fase rápida) e hiperglicemia com diurese osmótica). Não se deve in-
É a primeira fase do tratamento, objetivando terromper a fase rápida quando houver a primeira mic-
o restabelecimento rápido da perfusão normal dos ção, pois isso pode apenas representar urina já retida na
órgãos vitais, eliminando o déficit de água e de só- bexiga, e não melhora das condições de perfusão renal.
dio. A eliminação do déficit de água e sódio é conse-
guida quando se restaura o peso da criança ao nível
normal, desaparecem todos os sinais de desidratação
e há diurese abundante. Não há melhora permanen-
te das condições circulatórias e de perfusão tecidual Fase de manutenção
sem a restauração completa do volume extracelular.
A restauração do volume extracelular só é conseguida (fase lenta)
quando a quantidade de fluidos administrada e retida Essa fase tem por objetivo repor as perdas
é próxima daquela que foi perdida. fisiológicas normais de água e eletrólitos da
Algumas mudanças mais recentes ocorreram na criança , quais sejam: as perdas insensíveis (pele
escolha sobre qual a melhor solução para ser utilizada e trato respiratório), as perdas renais (dependen-
em uma expansão na criança. A solução habitualmente tes da carga de soluto a ser excretada) e as perdas
utilizada para a reidratação dos quadros secundários
fecais normais.
às doenças diarreicas era composta de uma mistura de
partes iguais de solução glicosada a 5% (SG5%) e solu- As necessidades diárias hídricas, eletrolíticas e
ção de cloreto de sódio a 0,9% (SF 0,9%), cuja concen- de glicose basais de uma criança, tradicionalmente,
tração final será de 77 mEq/L de sódio e cloro e 2,5% de variam de acordo com as perdas fisiológicas e em fun-
glicose, um soro claramente hipotônico. ção de sua atividade metabólica, esta estimada, em
Entretanto, hoje, o tratamento da desidratação nosso meio, através da regra de Holliday & Segar, pro-
secundária às perdas gastrintestinais do choque hipo- posta em 1957:
volêmico secundário a outras causas de perda hídrica
(queimaduras, hemorragias etc.) deve ser realizado com
os soros isotônicos disponíveis (soro fisiológico ou Rin- Peso Dispêndio calórico
ger) conforme orientação do Pediatric Advanced Life
Support (PALS), que recomenda a utilização desses so- Até 10 kg 100 kcal/kg/dia
ros na velocidade de urgência de 20 mL/kg em 20 mi- 10-20 kg 1.000 kcal (decorrentes dos 10 kg
nutos (aberto) em situações de maior gravidade ou, esse iniciais) +
mesmo volume, com velocidades menores de infusão em 50 kcal/kg/dia para cada kg que exce-
situações menos urgentes, seguidas de constantes rea- de 10 kg
valiações. Em função dessas avaliações e dependendo
mais de 1500 kcal (decorrentes dos 20 kg ini-
da intensidade da depleção, novas cotas de 20ml/kg
podem ser repetidas até a correção da desidratação. 20 kg ciais) +
20 kcal/kg/dia para cada kg que exce-
A fase de reparação termina quando desapa-
de 20 kg
recem os sinais clínicos de desidratação e quando
a criança apresenta duas micções com urina clara Tabela 2.6

SJT Residência Médica – 2016


27
2  Desidratação e fluidoterapia em pediatria

Definido o gasto energético basal, são calculadas Cal metabolizadas), adiciona-se NaCl 20% (3,3 mEq/
as necessidades hidroeletrolíticas e de glicose, da se- ml) na concentração e 136 mEq/L ou aproximadamente
guinte forma: 40 mL/L. Além disso, adiciona-se o potássio, na forma
Água: 100 mL para cada 100 kcal metabolizadas; KCl 19,1% (2,5 mEq/ml), na quantidade já apresenta-
da e proposta por Holliday, de 2,5mEq para cada 100
Sódio (Na+): 3 mEq para cada 100 kcal;
kcal metabolizadas. Temos então um soro que oferece
Potássio (K+): 2,5 mEq para cada 100 kcal (ou 1 a quantidade hídrica para a criança, glicose, potássio e
mL de KCl 19,1% = 2,5 mEq de K); sódio em uma concentração isotônica, que previne risco
Glicose: 8 gramas para cada 100 kcal. de hiponatremia hospitalar. Esse ainda é um conceito
Observa-se que as necessidades são definidas para muito novo e a maioria dos pediatras ainda deve infe-
o dispêndio calórico da criança e não diretamente para lizmente demorar para rever seus conceitos sobre os
o seu peso. Assim, até os 10 kg, como o gasto é de, por velhos paradigmas sobre o soro de Holliday.
exemplo, 100 mL de água para cada 100 kcal e para cada
kg, diz-se 100 mL de água por kg. Ou, ainda, 2,5 mEq de
K+ para cada 100 kcal para cada kg, diz-se 2,5 mEq por
kg. Entretanto, após os 10 kg, esse cálculo não é direto
Fase de reposição
e deve ser realizado baseado na Regra de Holliday, pelo Essa fase visa à reposição das perdas anor-
consumo calórico. Assim, em uma criança de 15 kg, o mais continuadas de água e eletrólitos, evitando
volume, por exemplo, de água é de 1.000 mL + 250 mL a reinstalação de déficits. O déficit é descrito como
(100 mL para cada 100 kcal, sendo 50 kcal x 5 = 250 perdas por quilograma de peso corporal. A estimativa
kcal) = 1.250 mL e não 100 mL/kg (1.500 mL). das perdas diarreicas ao longo de 24 horas é variável
Obviamente, a criança que está recebendo um e, portanto, o volume e a composição da solução de
soro de manutenção, também conhecido como soro reposição devem ser continuamente reavaliadas no
básico ou basal, na condição de estar internada por decorrer da terapia de hidratação. Via de regra, na
diarreia e/ou vômitos, nessa etapa do tratamento já reposição de perdas fecais em diarreias leves e mo-
está recebendo líquidos e alimentos por via oral. Em deradas, utiliza-se solução de partes iguais de SG
tese, o soro de manutenção oferece suas necessidades 5% e SF 0,9%, com volumes de 30 a 60 mL/kg, com
básicas como se a criança estivesse em jejum. Existem, reavaliação clínica contínua. Nas diarreias mais in-
entretanto, inúmeras condições clínicas que a criança tensas, que necessitem de volumes de reposição maio-
recebe, por via parenteral, suas necessidades diárias, res, normalmente faz-se necessária uma proporção
como, por exemplo, no tratamento de suporte das maior de soro fisiológico, sendo possível até utilizar
doenças em que a criança tem comprometimento de SF exclusivamente.
sua ingesta habitual ou em períodos pré-operatórios. O soro de reposição é infundido ao longo de 24
Todo médico deve saber confeccionar um soro de ma-
horas, adicionado ao volume da solução de manu-
nutenção basal para uma criança.
tenção. Este volume deve ser reavaliado e reajustado
O soro de manutenção, calculado sob esses prin- a cada 6 horas, com base nos parâmetros de ganho e
cípios apresentados, é, em tese, uma solução hipotôni- perda de peso, número e quantidade das evacuações
ca. Veja: embora ofereça a necessidade eletrolítica para ou presença de vômitos.
a criança em 24 horas, suas necessidades basais, é um
As perdas gastrointestinais de potássio são
soro hipotônico. Trabalhos recentes têm demonstrado
frequentes (fundamentalmente as perdas diarrei-
um risco de disnatremia em pacientes hospitalizados
com inúmeras condições clínicas, como nas pneumo- cas). Existem também perdas renais, decorrentes
nias, bronquiolites, meningites, etc. São pacientes com do fato de a hipovolemia estimular a aldosterona,
certa gravidade, geralmente com comprometimento de que, por sua vez, aumenta a reabsorção renal de
sua ingestão oral e, portanto, candidatos à soroterapia. sódio no túbulo distal, trocando-o por potássio. O
O risco de fazer hiponatremia devido a um quadro de déficit corpóreo de potássio deve, portanto, tam-
secreção inapropriada de ADH existe e não deve ser bém ser reposto e uma quantidade de 2,5 a 5 mEq/
negligenciado. A administração de líquidos isotônicos kg de potássio (dobrar ou triplicar o potássio do
minimiza esse risco, de maneira que, hoje, a solução soro de manutenção) deve ser acrescentada à so-
de manutenção mais recomendada deveria ter uma lução de reposição ou manutenção a ser infundida
concentração de sódio maior, em torno de 136 mEq/L, em 24 horas. Deve-se salientar que o nível sérico de
isotônica. Uma sugestão de confecção desse soro é: em potássio tem valor limitado no diagnóstico do dé-
uma base de soro glicosado 5%, cujo volume continua ficit total de potássio corpóreo e, portanto, o nível
a ser calculado com a regra de Holliday (100 mL/100 sérico normal não contraindicará essa reposição.

SJT Residência Médica – 2016


28
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Abordagem prática nas crianças com desidratação


Para o caso de qualquer criança que apresentar um quadro potencialmente capaz de determinar desidrata-
ção, em nosso meio, ressalta-se a importância dos quadros diarreicos; de acordo com seu estado de hidratação, há
a seguinte classificação:
1. Sem desidratação
2. Com algum grau de desidratação
3. Com desidratação grave

Classificação dos casos de diarreia aguda conforme o estado de hidratação


Dados clínicos Sem desidratação Algum grau de desidratação Desidratação grave
Aspecto Alerta Irritada com sede Deprimida, comatosa

Circulação (rubor) <3s 3-8 s >8s

Pulso Cheio Fino Impalpável

Elasticidade da pele Normal Diminuída Diminuída

Olhos Normais Fundos Fundos

Fontanela Normal Deprimida Deprimida

Mucosas Úmidas Secas Secas

Tabela 2.7 

Crianças sem desidratação


O objetivo do tratamento nas crianças sem desidratação é manter o estado de hidratação, através de
ações educativas para a família e profilaxia da desidratação. Líquidos devem ser oferecidos frequentemente
(mais do que o habitual) aos poucos e em livre demanda. A alimentação não deve ser suspensa, da mesma
forma que o leite materno, uma vez que é uma excelente solução de hidratação oral. A alimentação não deve
ser alterada, apenas oferecida de maneira fracionada e com maior frequência.
As mães devem receber pacotes da solução de reidratação oral (SRO) e ser instruídas em relação ao correto
modo de preparo e diluição (em um litro de água filtrada ou fervida, em temperatura ambiente, pois o soro
gelado tem maior tempo de esvaziamento gástrico). A SRO deverá ser oferecida toda vez que a criança
evacuar. É importante a orientação de alternância da SRO com outros líquidos caseiros, particularmente
a água (e também chás, suco de limão e de outras frutas, água de coco etc.), particularmente nos casos
em que a criança não tenha uma boa aceitação da SRO. O melhor indicador para a necessidade de fluidos é
a própria sede da criança, um dos sinais mais precoces de hipo-hidratação. A SRO, após preparada, deve ser
descartada após 24 horas. Os refrigerantes, de uso comum, possuem um conteúdo muito alto de carboidratos e
muito baixo de eletrólitos e, por isso, não devem ser usados com a finalidade de hidratar a criança.
As mães devem receber orientação quanto aos sinais clínicos de desidratação e devem procurar um serviço
médico caso os mesmos venham a ocorrer.

Crianças com desidratação de algum grau (DAG)


Nestes casos está indicada a terapia de reidratação oral (TRO), com exceção dos casos em que
ocorrer alguma condição clínica que impeça a criança de ingerir líquidos: vômitos incoercíveis, íleo
paralítico, sinais de irritação peritoneal e evidências de sepse. Essas crianças deverão ser submetidas
à hidratação parenteral.

SJT Residência Médica – 2016


29
2  Desidratação e fluidoterapia em pediatria

Não havendo contraindicação à TRO, inicia-se a é o desaparecimento dos vômitos. Os antieméticos mais
fase de expansão com a SRO, de acordo com os seguin- clássicos, como o dimenidrato, são contraindicados, par-
tes critérios: ticularmente, pela sedação que provocam.
1. Não suspender o aleitamento materno e, Terminada a expansão, inicia-se a alimentação
nesses casos, as necessidades de SRO serão meno- normal da criança, podendo receber alta, com as orien-
res. O leite de vaca e os demais alimentos só deve- tações determinadas para a criança sem desidratação.
rão ser suspensos na fase de expansão.
2. Pesar a criança sem roupa no início de cada
hora, dado de maior importância na avaliação do
sucesso da TRO.
Crianças com
3. Oferecer TRO ad libitum, ou toda vez que a
criança quiser com colher (menor chance de vômi- desidratação grave
tos), sem limitação rígida do volume a ser ingerido. Considera-se como desidratada grave a criança
Não há maneira objetiva de determinar, previa- que apresenta, pelo menos, um dos seguintes achados
mente, qual será a quantidade de SRO necessária
clínicos: pulso muito fino ou impalpável ou sinais de
para hidratar a criança. A ingestão média é de 25 a
hipotensão (estados de choque), fluxo periférico
30 mL/kg/hora, mas com uma variação muito gran-
maior que cinco segundos, alteração de consciência
de (10 a 70 mL/kg/hora). É impossível, portanto,
fazer recomendações rígidas em relação à quan- e oligúria ou anúria prolongada.
tidade total de SRO que deve ser administrada. A Nesses casos, e também naqueles em que hou-
regra prática mais valiosa para o sucesso da TRO é in- ver contraindicação à TRO, está indicada a hidra-
sistir e persistir, mas sem forçar. tação parenteral, nas 3 fases, conforme discutido
4. O tempo para que seja completada a hidra- anteriormente neste capítulo. Mesmo em casos de
tação dever ser entre 4 a 6 horas. desidratação grave, em situações em que a hidratação
parenteral é impossível por falta de recursos, é possí-
5. Calcular a retenção de cada hora, com base
no volume da solução ingerida e no ganho ponde- vel salvar algumas crianças com hidratação oral inten-
ral, de acordo com a fórmula: siva. Também nos casos em que a hidratação venosa se
impôs, a hidratação oral deve ser mantida ou iniciada
tão cedo quanto for possível.
Retenção = Pesoatual) – Peso(inicial) × 100/volume ingerido A doença diarreica aguda frequentemente é
acompanhada de acidose metabólica, traduzida cli-
A retenção maior que 20% é satisfatória e in- nicamente pela respiração de Kussmaul (fome de ar:
dicativa de sucesso na TRO. Se a retenção for me- movimentos respiratórios profundos, rápidos e sem
nor que 20% na primeira hora, pode-se aguardar pausa). A acidose intracelular pode comprometer se-
até o final da segunda hora, que será decisiva. En- riamente o trabalho da célula, exigindo atenção no
tretanto, caso a retenção permaneça baixa, ou seja, as manuseio dessas situações. Nessas circunstâncias,
perdas forem maiores que a capacidade de ingestão, pode-se acrescentar o bicarbonato de sódio à solução
opta-se por TRO em sonda nasogástrica ou, o que é de reparação, para que a acidose mais grave se torne
mais frequente na prática, a hidratação parenteral. menos intensa, facilitando o trabalho celular. A cor-
6. A TRO por sonda nasogástrica inicia-se na reção completa da acidose ocorrerá espontaneamente
quantidade e velocidade de 30 mL/kg/hora nos pri- após a reidratação da criança.
meiros minutos, podendo aumentar, desde que bem Em linhas gerais, admitem-se três mecanismos
tolerada, até o valor de 60 mL/kg/hora. determinantes da acidose metabólica: superprodu-
7. A hidratação oral deve ser suspensa quando ção de ácidos orgânicos (hipóxia e hipoperfusão);
houver vômitos incoercíveis, crise convulsiva (pro- mecanismo renal: diminuição da capacidade renal de
vável distúrbio eletrolítico), distensão abdominal excretar hidrogênio, consequente à hipoperfusão re-
e valores de retenção persistentemente baixos nas nal e diminuição do aporte de precursores para a sín-
primeiras 2 horas de hidratação. Nesses casos indi- tese de amônia; mecanismo intestinal: produção de
ca-se a hidratação parenteral. ácidos orgânicos na luz intestinal, com retenção dos
A expansão oral tem sucesso na grande maio- íons hidrogênio.
ria dos casos. O bicarbonato de sódio poderá ser acrescenta-
Diante dos vômitos, que são frequentes na doença do à solução de expansão da seguinte forma: corrigir
diarreica, deve-se suspender a administração de líquidos acidose quando houver pH < 7,10 e/ou bicarbonato <
durante 10 ou 15 minutos e retomá-la após, mais vaga- 8 (situações em que, geralmente, ocorrem manifesta-
rosamente. À medida que a criança se hidrata a tendência ções clínicas), de acordo com a seguinte fórmula:

SJT Residência Médica – 2016


30
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

mEq de Bic a ser infundido = (15 – Bic inicial) × 0,3 × peso (desnutrição). Em outras ocasiões ocorre hiponatre-
mia do tipo dilucional (Na total normal), na síndrome
O bicarbonato administrado pode ser a 3% (1 mL de secreção inapropriada do hormônio antidiurético
= 0,36 mEq), diluído meio a meio com água destilada, (SSIHAD) e na intoxicação hídrica.
sendo a infusão prescrita em 2 horas. Nos casos de Na sérico inferior a 120 mEq/L,
A reposição pode ser progressivamente diminu- pelos riscos de manifestações neurológicas (edema
ída de acordo com a maior ingestão oral da criança e cerebral) indica-se correção imediata e cuidado-
concomitante diminuição de perdas. Suspensa a repo- sa, configurando-se uma emergência metabólica.
sição, inicia-se a retirada da manutenção (50 mL/kg a A correção é realizada num período de 4 horas, até o
cada 6 horas). Deve-se ter certeza de que a ingesta oral nível de 125 mEq/L ser atingido, baseando-se na utili-
supera as perdas, uma vez que estas persistem, ainda zação da seguinte fórmula:
que de forma mais branda. Quando a manutenção for
completamente suspensa, a criança deve permanecer
Na+ (mEq) = (Na+desejado – Na+atual) × peso × 0,6
em observação por um período mínimo de 6 horas,
para garantir que, via oral, sua capacidade de ingestão ou seja,
supere as perdas. Pode então receber alta hospitalar, Na+ (mEq) = (125 – Na+atual) × peso × 0,6
com as mesmas recomendações válidas para os pa-
cientes com diarreia e hidratados.
Utiliza-se uma solução de NaCl a 3%, sendo que
cada mL contém 0,5 mEq de sódio.

Hiponatremia Ultimamente, tem sido dada atenção cada vez


maior à velocidade com que são corrigidos os distúr-
bios hiponatrêmicos. Tal preocupação se deve à possí-
O sódio (Na) é o principal regulador da osmola- vel ocorrência de desmielinização osmótica da ponte
ridade catiônica extracelular, que pode ser calculada quando o sódio é corrigido de forma rápida, principal-
pela seguinte fórmula: mente em hiponatrêmicos crônicos. Esse fenômeno é
conhecido como mielinólise central pontina e carac-
Osm = 2 (Na+ + K+) + Ureia / 2,8 + Glicose / 18 teriza-se clinicamente por paraparesia, quadriplegia,
disartria, disfagia, alteração da consciência e coma.
Nos casos de desidratação, o objetivo dessa corre-
A concentração plasmática de Na+ varia entre ção, além de evitar os sintomas neurológicos, é trans-
130 a 150 mEq/L. Alguns autores hoje consideram formar a desidratação hiponatrêmica em isonatrêmica,
entre 135 e 145mEq/L. A urina é sua principal rota para a posterior reparação habitual da desidratação.
de regulação e excreção, embora pequenas quantida-
des sejam também excretadas nas fezes, no suor, nas Se o sódio for inferior a 130 e superior a 120
lágrimas e em outras secreções. A maioria das altera- mEq/L, pode-se realizar uma correção de forma len-
ções da concentração do sódio plasmático que se vê na ta, em 24 a 48 horas, corrigindo-se para 130 mEq/L e,
prática clínica não se deve a uma alteração primária portanto, utilizando-se da seguinte fórmula:
do metabolismo do sódio, e sim a um transtorno da
regulação da água corporal total.
Na+ (mEq) = (130 – Na+atual) × peso × 0,6
A hiponatremia é o mais frequente dos distúrbios
eletrolíticos e caracteriza-se por sódio sérico menor que
130 mEq/L (<135mEq/L), ocasionando diminuição da Nas situações em que não há possibilidade de
osmolaridade e consequente hipovolemia, diluição do confirmação laboratorial de hiponatremia e a criança
interstício e, finalmente, edema intracelular, assumin- apresentar fortes suspeitas clínicas (alteração do nível
do, então, maior gravidade, com manifestações neuro- de consciência, micções claras com sinais de desidra-
lógicas, especialmente em situações em que os níveis tação presentes) pode-se administrar NaCl 3% 12 mL/
de sódio são menores que 120 mEq/L. A maioria dos kg em uma hora, quantidade suficiente para elevar o
pacientes não apresenta sintomatologia atribuível à hi- sódio sérico em 10 mEq/L.
ponatremia, pois as concentrações de sódio não estão Nas hiponatremias dilucionais, especialmente
tão diminuídas (Na entre 120 e 135 mEq/L); entretan- a secundária à secreção inapropriada do hormônio
to, níveis menores que 120 mEq/L têm graves repercus- antidiurético, sugere-se primeiro restringir o volume
sões clínicas e merecem pronta intervenção. hídrico (50% a 70% das necessidades), associado a
A hiponatremia pode ocorrer por diminuição do diuréticos, visando diminuir o excesso de água livre.
sódio orgânico total, ocasionado por perdas (uso de A correção da natremia somente seria indicada nos ca-
diuréticos, tubulopatias, perdas fecais) ou por carência sos severos ou sintomáticos.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

3
Enteroparasitoses

As manifestações clínicas atribuíveis aos parasitas,


Considerações gerais quando existem (os quadros são comumente assinto-
máticos), são muito semelhantes em sua maioria, sendo
As infestações parasitárias constituem um im- difícil responsabilizar um ou outro agente pelos sinais
portante capítulo da Saúde Pública nos países em de- e sintomas clínicos apresentados pelo hospedeiro. En-
senvolvimento, representando, em nosso meio, um tre esses sintomas inespecíficos citam-se: anorexia,
expressivo problema médico-sanitário e social. Em irritabilidade, distúrbios do sono, náuseas, vômitos
determinadas regiões do Brasil, o poliparasitismo, ocasionais e alterações do funcionamento intestinal
ou seja, a ocorrência simultânea de duas ou mais (mais frequentemente, diarreia). A intensidade do
espécies de parasitas é a regra, e sua influência so- acometimento clínico das infestações parasitárias
bre as condições de saúde, não somente da popula- depende de fatores do agente, do hospedeiro (imu-
ção infantil, podendo interferir em seu crescimen- nidade e estado nutricional) e ambientais (grau de
to e desenvolvimento normais, como na capacidade exposição). As doenças parasitárias fazem parte do
laborativa dos adultos e os custos sociais da assis- diagnóstico diferencial de várias outras doenças gas-
tência médica criam um círculo vicioso que só po- trointestinais. Na investigação de diarreia crônica, por
derá ser rompido com o desenvolvimento socioeco- exemplo, deve ser sempre descartada a possibilidade de
nômico e cultural. A distribuição das parasitoses na doenças parasitárias como causa principal ou associa-
população reflete as desigualdades no desenvolvimen- da. Os episódios diarreicos da infecção parasitária
to das regiões e as diferenças de condições de vida da (frequentemente protozoose), costumam ser, em
população. A ocorrência de parasitoses predomina nas sua maioria, autolimitados, com sintomatologia
zonas rurais e na periferia das grandes cidades, onde moderada, sendo a desidratação pouco habitual em
habitam as camadas sociais de baixa renda. crianças eutróficas. Dor abdominal, náuseas e vômi-
As helmintíases e protozooses são causas fre- tos são também sintomas que podem ocorrer em qual-
quentes de manifestações clínicas que, em geral, quer parasitose intestinal, geralmente acompanhando
apresentam períodos de acalmia e de exacerbação. o quadro de diarreia. Nos casos de dor abdominal
32
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

recorrente (DAR), condição comum em Pediatria,


é imprudente limitar a abordagem da criança com Diagnóstico laboratorial
essa queixa à prescrição de vermífugos. Essa condu- Embora o diagnóstico das enteroparasitoses
ta parte do pressuposto de que, como a parasitose possa ser realizado por diferentes métodos, como tu-
intestinal é de alta prevalência em nosso meio, ela bagem duodenal, provas sorológicas e intradérmicas,
é responsável pela maioria dos casos de DAR, ape- avaliação radiológica, o exame parasitológico de fe-
sar da não existência de estudos controlados con- zes é o método mais simples, específico e de menor
firmando tal hipótese. No entanto, a abordagem da custo. Visa identificar a presença, na matéria fecal, de
criança com DAR é mais complexa, pois verifica-se ovos ou larvas de helmintos e de formas trofozoíticas
que vários pacientes, apesar da cura parasitológica, ou císticas de protozoários. Não há consenso sobre o
permanecem com a queixa. Assim, recomenda-se número de amostras que devem ser examinadas, sen-
que, nos casos de DAR, as parasitoses intestinais do uma amostra única não suficiente para a definição
sejam investigadas e tratadas, sem, contudo, inter- da etiologia das parasitoses (eliminação cíclica). Para
romper a investigação diagnóstica. pacientes com fatores de risco epidemiologicamente
Outra expressão comum da parasitose é a eli- muito baixos, uma amostra pode ser suficiente; ao
minação de parasitas, fato que deve sempre ser contrário, os pacientes com alto índice de suspeição,
valorizado na história referida pela mãe: vermes mais de três amostras podem ser necessárias.
cilíndricos com as fezes (Ascaris) ou os curtos fios
Os principais métodos para os exames de fezes são:
de linha branca que se movimentam ativamente em
região anal (enterobíase). � direto a fresco: pesquisa de cistos e trofozoí-
tas de protozoários e ovos de helmintos;
Os parasitas intestinais favorecem o apareci-
mento ou o agravamento de desnutrição que, por � Faust et al: centrífugo-flutuação para cistos de
outro lado, torna-os mais agressivos. A anemia da protozoários e ovos de helmintos;
ancilostomíase, o prolapso retal e a enterorragia da tri- � Hoffman: sedimentação espontânea em água,
curíase, a hepatoesplenomegalia da esquistossomose e para ovos pesados de helmintos após uma hora
a obstrução intestinal da ascaridíase acometem quase e ovos leves de helmintos e cistos de protozoá-
exclusivamente crianças distróficas. Os distúrbios gas- rios após 24 horas de sedimentação;
trointestinais crônicos que podem levar à perda de peso � Swab anal ou método da fita Durex®: ovos
e à anemia, pioram sobremaneira o estado nutricional. de Enterobius
Outros fatores que determinariam maior gravi- � Kato-Katz: quantificação de ovos de helmintos,
dade seriam infecções maciças e tendências de o pa- empregadas na esquistossomose, ascaridíase, anci-
rasita colonizar sítios menos habituais. Protozoários, lostomíase e tricocefalíase, que permitem avaliar a
como a Giardia e Criptosporidium, na maioria das ve- intensidade da infecção e a eficácia do tratamento.
zes, causam má absorção em pacientes imunodeprimi-
dos, por infestação maciça. Nos pacientes imunodepri-
midos ou com Aids as parasitoses assumem extrema
importância pela gravidade do quadro clínico.
Nematoides
A convivência crônica com o parasita parece do-
tar o indivíduo de algum grau de resistência ao apa- A infecção por nematódeos intestinais é o tipo
recimento de doença e, também, de uma tendência mais comum de helmintíase no homem. Os nemató-
à autolimitação dos sintomas. Em áreas endêmicas, deos intestinais infectam o homem diretamente por
os nativos apresentam menos sintomas, enquanto ingestão de ovos maduros ou por meio da penetração
os viajantes que estabelecem o primeiro contato fre- na pele por larvas. As infecções por nematoides in-
quentemente desenvolvem quadros clínicos mais exu- testinais mais prevalentes em crianças são discu-
berantes. Esse fator de resistência adquirida junto tidas em função de sua localização final no tubo
com os hábitos infantis de maior contato com o digestivo: intestino delgado (Ascaris lumbricoi-
solo e a maior possibilidade de ciclo oroanal fazem des, Ancylostoma duodenale, Necator americanus e
das crianças o grupo etário que mais sofre as conse- Strongyloides stercoralis), ceco (Enterobius vermi-
quências das parasitoses. cularis) e intestino grosso (Trichuris trichiura).

Resumem-se, portanto, os fatores predisponen-


tes ao aparecimento das enteroparasitoses:
nível socioeconômico (quanto mais baixo,
Ascaridíase

maior a frequência);
� locais onde existem aglomerações huma- A infecção por Ascaris lumbricoides é a helmin-
nas (creches, por exemplo); tíase humana mais prevalente. Estima-se que 25%
� hábitos alimentares e má higiene. da população mundial esteja infestada. O estágio in-

SJT Residência Médica – 2016


33
3 Enteroparasitoses

fectante do A. lumbricoides é o ovo maduro contendo Os vermes adultos podem causar doença pela
larvas. Os indivíduos infectados eliminam ovos nas obstrução do intestino ou da árvore biliar e por
fezes, que amadurecem até uma forma infectante comprometimento da nutrição do hospedeiro. En-
em cinco a dez dias, sob condições ambientais favo- tretanto, o estado nutricional das crianças com
ráveis. Após a ingestão pelo hospedeiro humano, as ascaridíase parece estar mais influenciado por sua
larvas são liberadas dos ovos e penetram na parede condição socioeconômica e história nutricional do
intestinal, ganhando a corrente sanguínea através que pelos efeitos da infestação por Ascaris. A pre-
do sistema porta. A seguir, nos pulmões, atingem os sença de vermes adultos no intestino delgado está
espaços alveolares, ascendem pela árvore brônquica e associada a queixas vagas, como dor, desconforto
pela traqueia e são novamente deglutidas. Alcançando e distensão abdominal. A obstrução resulta de uma
o intestino delgado, as larvas desenvolvem-se em vermes massa de vermes em crianças com infecção maciça. O
adultos maduros, de formato cilíndrico (o macho mede início, em geral, é súbito, com dor abdominal em cólica
15 a 25 cm x 3 mm e a fêmea 25 a 35 cm x 4 mm). O ciclo intensa e vômitos, progredindo rapidamente, seme-
interno do verme (período de migração das larvas) é de lhante à obstrução intestinal aguda de qualquer outra
aproximadamente duas semanas; porém, adquire a ca- etiologia. Radiologicamente, a imagem do novelo de
pacidade reprodutiva após cerca de 60 dias. Cada fêmea áscaris lembra o aspecto de miolo de pão.
tem a vida média de um a dois anos e é capaz de produzir
Migrações anômalas nas grandes infestações (par-
e eliminar cerca de 200 mil ovos por dia.
ticularmente durante a terapêutica) podem ocorrer para
A contaminação do solo e as condições pre- vias biliares, ducto pancreático, apêndice cecal e tubo
cárias de higiene são os fatores insalubres mais digestivo superior, com eliminação de vermes adultos
importantes que propiciam a endemicidade da as- pela boca, pelo nariz e penetração na tuba auditiva.
caridíase. O modo de contaminação para o homem é
da mão para a boca; os dedos são contaminados pelo Os vermes fêmeas adultos depositam ovos que
contato com o solo. De outro modo, os alimentos (em podem ser detectados e quantificados por exame dire-
particular aqueles consumidos crus) e a água tornam- to de fezes. As infecções bissexuais resultam na excre-
-se infectados por fezes humanas ou moscas (dirt ea- ção de ovos férteis maduros, ao passo que se observam
ting). Colabora com a alta endemicidade do A. lum- ovos inférteis em indivíduos infectados apenas com
bricoides, a altíssima produção de ovos dos vermes vermes fêmeas. Não se detectam ovos nas infestações
e a sua resistência em condições ambientais desfa- somente por machos.
voráveis. Os ovos são extremamente resistentes, su-
portam temperaturas altas e baixas e, em solo úmido,
permanecem viáveis e infectantes por meses.
A morbidade da ascaridíase pode manifes-
Terapêutica
tar-se durante a migração das larvas através dos Várias drogas são eficazes contra a ascaridíase.
pulmões ou estar associada à presença de vermes Nenhuma, entretanto, é útil durante a fase pulmonar
adultos no intestino delgado. A maior parte das in- da infecção. Deve-se ter cautela no tratamento, sobre-
fecções é assintomática. tudo de crianças com infecções maciças.
A ascaridíase pulmonar pode ocorrer após A suboclusão e a oclusão intestinal são emer-
exposição maciça e também é comum em indivídu- gências infecciosas que necessitam todos os cuidados
os que vivem em áreas de transmissão sazonal da dispensados a qualquer abdome agudo. O paciente
infecção (pneumonite sazonal). As manifestações deve ser mantido em jejum, com passagem de sonda
mais típicas são: tosse, escarro tinto de sangue e nasogástrica, sendo administrado óleo mineral (repe-
eosinofilia. Esse quadro, semelhante à síndrome tidamente) para uma tentativa de facilitar a elimina-
de Löeffler (comum a outras parasitoses com ciclo
ção dos vermes. Quando o óleo começa a ser eliminado
pulmonar), pode acompanhar-se de infiltrados pul-
pelo ânus, inicia-se a administração de piperazina. A
monares difusos e transitórios. O escarro tem eosi-
piperazina acarreta paralisia neuromuscular do para-
nófilos e cristais de Charcot-Leyden, que são grânulos
sita e a expulsão dos vermes ocorre pelo peristaltismo
eosinofílicos em degeneração. Em crianças, a dife-
intestinal. É, portanto, a droga de escolha para infes-
renciação entre esse quadro e o de larva migrans
tações maciças e quadros semiobstrutivos.
visceral (toxocaríase) pode ser difícil, mas sinais
ou sintomas abdominais são muito raros na ascari- O anti-helmíntico específico para a ascaridíase é
díase pulmonar. A patogenia desses quadros é desco- o levamisol (isômero do tetramisol), que inibe a ati-
nhecida, embora um fenômeno de hipersensibilidade vidade da succinato desidrogenase (contratura sus-
possa estar envolvido. O alérgeno do Ascaris é o mais tentada da fibra muscular do parasita). Possui baixa
ativo de todos os de origem parasitária, encontrando- toxicidade, baixo custo, 90% de eficácia e deve ser
-se em todas as fases do ciclo vital do parasita. Pode utilizado quando há somente esse helminto e não há
determinar reações de hipersensibilidade nos pul- infestação maciça, onde há riscos de quadros oclusivos
mões, pele, e tubo digestivo. após morte dos vermes ou migração anômala.

SJT Residência Médica – 2016


34
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A ascaridíase intestinal não complicada também pode ser tratada com o mebendazol – anti-helmíntico de
amplo espectro – (dose de 100 mg, duas vezes ao dia, por três dias, com retratamento após duas semanas) ou
com o albendazol (posologia de 400 mg/dia, em dose única), esse último, não devendo ser utilizado em crianças
menores de dois anos de idade.

Tratamento da Ascaridíase
Medicamen- Apresentação Doses
to
Levamisol 1 cp = 80 mg Lactentes:
1 cp = 150 mg 40 mg via oral
1 a 7 anos:
80 mg via oral
7 anos ou mais: 150 mg via oral
dose única; repetir após 3 semanas
Mebendazol 5 mL = 100 mg 100 mg via oral 2 x/dia durante 3 dias; repetir após 3 semanas
(amplo espec- 1 cp = 100 mg
tro)
Nitazoxanida 1 a 3 anos:
(amplo espec- 100 mg 12/12 h, 3 dias
tro) 4 a 12 anos:
200 mg 12/12 h, 3 dias
Adultos:
500 mg 12/12 h, 3 dias.
Piperazina 5 mL = 500 mg 50-100 mg/kg/dia via SNG durante 2 a 5 dias. Indicado na suboclusão intestinal ou
ascaridíase maciça
Albendazol 1 fr = 10 mL = 400 400 mg via oral, dose única (discute-se a ação larvicida)
mg
1 cp = 200 ou 400
mg
Tabela 3.1

Atualmente a erradicação da ascaridíase é uma meta praticamente inatingível, visto que depende direta-
mente da melhora das condições socioeconômicas com investimentos pesados em saneamento básico, educação
em saúde e serviços médicos. A OMS recomenda, como medida de impacto em curto prazo, o emprego de anti-
-helmínticos em massa para as populações com altos índices de prevalência.

Ancilostomíase (amarelão)
As larvas infestantes dos ancilóstomos (duas espécies de maior importância: Ancylostoma duodenale e Ne-
cator americanus, sendo a última predominante no Brasil) são encontradas no solo (geo-helmintos) úmido e
quente (por 5 a 6 semanas) e atingem o hospedeiro humano penetrando na pele, mais comumente pelo pé. O
hábito de andar descalço na zona rural, nas favelas e na periferia dos grandes núcleos urbanos contribui decisivamente
para o incremento da perpetuação desse parasita em nosso meio. A infecção também pode ser adquirida pela ingestão
de água contaminada ou por ingestão de terra. As larvas migram da pele ou da parede intestinal para a circulação
venosa e são levadas até os pulmões, onde alcançam os espaços alveolares, migram pelas vias respiratórias e são
deglutidas para atingir seu hábitat final no intestino delgado proximal. Os vermes adultos, de cerca de 10 mm,
desenvolvem-se em 2 a 4 semanas. Existem estruturas bucais nesses vermes que os ajudam em sua fixação à mucosa je-
junal e na hematofagia. Secretam substâncias anticoagulantes, responsáveis por um sangramento contínuo nos locais
de fixação. Em 6 a 9 semanas atingem a maturidade sexual e começam a depositar ovos, que são excretados nas fezes.
As infecções são geralmente assintomáticas; doença clínica significativa ocorre numa pequena porcentagem
de indivíduos infectados. As lesões produzidas pelo ancilóstomo podem ocorrer durante a fase migratória da in-
fecção ou estarem relacionadas à presença de vermes adultos no intestino delgado. A primeira exposição da pele
a larvas infectantes pode ocasionar prurido e lesões papulares eritematosas (dermatite pruriginosa ou coceira da
terra), que desaparecem dentro de uma semana.

SJT Residência Médica – 2016


35
3 Enteroparasitoses

Lesões pulmonares e sintomas respiratórios (as- chados coletivos). Os ovos eclodem no estômago
matiformes), semelhantes aos descritos na ascaridía- e as larvas migram para a região cecal, onde ama-
se, podem ocorrer durante a migração larvária. durecem até vermes adultos. O ciclo evolutivo dessa
Embora existam infestações assintomáticas, helmintíase é do tipo direto (não há passagem sistê-
a presença de vermes adultos no intestino delgado mica das larvas). Os parasitas são brancos e peque-
acarreta anemia e desnutrição. A anemia, principal nos (0,5 – 1 cm), lembrando o aspecto de linhas; as
manifestação patológica da infestação, é relacio- fêmeas grávidas migram à noite para a região pe-
nada à carga de vermes (grau de infestação) e ao rianal para a deposição dos ovos. Os ovos não ne-
balanço de ferro do hospedeiro (espoliação versus cessitam obrigatoriamente do solo para tornarem-se
dieta). A perda de sangue varia segundo a espécie de infectantes, podendo haver (mais raramente) retroin-
ancilóstomo (0,03 a 0,3 mL de sangue/verme/dia); a fecção, onde as larvas que eclodem na mucosa anal mi-
infecção por A. duodenale causa perdas maiores do que gram para a região cecal.
por N. americanus. Sintomas de dor abdominal, perda A irritação perianal durante a oviposição por
do apetite, plenitude pós-prandial e diarreia são atri- vermes fêmeas produz prurido e irritação na pele
buídos à fase intestinal da ancilostomíase. perianal. Os ovos levados sob as unhas são trans-
O exame direto do esfregaço fecal permite a pes- mitidos diretamente ou disseminados no ambiente
quisa e a quantificação dos ovos e das larvas do para- para infectar outros indivíduos ou alimentos. O ho-
sita. Esses achados, associados à anemia microcítica e mem é o único hospedeiro natural do E. vermicularis.
hipocrômica da ferropenia, permite o diagnóstico da
Indivíduos sintomáticos queixam-se mais comu-
infestação pelos ancilóstomos.
mente de prurido anal noturno e insônia. Como não
O Ancylostoma brasiliense é um parasito de cães, ocorre invasão tecidual na maioria dos casos de en-
frequente em nosso meio e que pode penetrar na terobíase, não se observa eosinofilia. Pode ser cau-
pele humana, ocasionando uma dermatite, a larva sa de vulvovaginite na infância, manifestando-se
migrans cutânea. com corrimento genital inespecífico.
O diagnóstico definitivo é estabelecido pelo
achado de ovos do parasita ou isolamento dos ver-
mes. Os ovos são facilmente detectados numa fita
Terapêutica adesiva pressionada contra a região perianal no
Consiste no tratamento da anemia, com reposi- início da manhã (método da fita gomada). A posi-
ção do ferro oral e na administração de drogas anti- tividade do método aumenta se a coleta for feita logo
-helmínticas, como o mebendazol e o albendazol, nas cedo pela manhã. Pode haver necessidade de exames
posologias já descritas para ascaridíase. repetidos e, em certas situações, aconselha-se o exame
de todos os familiares.

Tratamento da ancilostomíase
Medicamento Apresentação Dose
Mebendazol 5 mL = 100 mg 100 mg via oral 2 x/dia Terapêutica
1 cp = 100 mg durante 3 dias. Repetir As orientações higiênicas e terapêuticas devem
após 3 semanas abranger o indivíduo infestado, a família e outras pes-
Tabela 3.2 soas que convivam com o hospedeiro, principalmente
em instituições do tipo creches e orfanatos. A medica-
ção específica é o pamoato de pirvínio na posologia
Enterobíase (Oxiuríase) de 10 mg/kg, em dose única tem eficácia de 90%-95%.

A infestação por Enterobius vermicularis ocorre


no mundo todo e compromete indivíduos de todas as Tratamento da oxiuríase
idades e níveis socioeconômicos, mas é especialmente Medicamento Apresentação Doses
comum em crianças. Disputa o primeiro lugar em fre- Mebendazol 5 mL = 100 mg 100 mg via oral 2 x
quência de helmintíases humanas com a ascaridíase. 1 cp = 100 mg ao dia durante 3 dias
A infecção é essencialmente inofensiva e causa mais Albendazol 1 frasco – dose 400 mg via oral
problemas sociais do que médicos nas crianças. (10 mL = 400 mg) dose única
1 cp = 400 mg
As pessoas infectam-se ao ingerir ovos em-
brionados, que geralmente se encontram em unhas Pamoato 5 mL = 50 mg 10 mg/kg/dia via
(adquiridos após coçadura), vestes, roupa de cama de pirvínio 1 cp = 100 mg oral dose única
ou poeira doméstica (aspiração em ambientes fe- Tabela 3.3

SJT Residência Médica – 2016


36
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Recomenda-se a repetição mensal das dosagens um quadro dispéptico. A diarreia com eliminação de
durante um período de seis meses. Todos os comu- muco pode alternar-se com períodos de obstipação. A
nicantes do paciente devem ser submetidos ao trata- estrongiloidíase crônica pode acarretar uma síndrome
mento, inclusive os assintomáticos. semelhante à má absorção, com enteropatia perdedo-
ra de proteína e perda ponderal.
Na estrongiloidíase disseminada há invasão lar-
var dos órgãos internos acompanhada de bacteremia
Estrongiloidíase polimicrobiana secundária por gram-negativos, qua-
dro de relevante gravidade e mortalidade elevada.
A infecção pelo Strongyloides stercoralis, à
diferença daquela que ocorre por outros vermes,
pode causar autoinfestação com invasão maciça
e subsequente morte do hospedeiro. Essa compli- Terapêutica
cação é mais frequente em crianças desnutridas
ou imunossuprimidas. A infecção por S. stercoralis é O agente terapêutico mais amplamente usado
amplamente distribuída nas regiões tropicais e tempe- é o tiabendazol. A droga é administrada por via oral
radas, embora seja menos comum que a infecção por numa dose de 25 mg/kg duas vezes ao dia durante três
outros nematódeos intestinais. dias. Sugere-se a repetição do tratamento após duas
semanas. Não se deve ultrapassar a dose de 3 g/dia e a
Os indivíduos infectados eliminam larvas nas
administração deve ser restrita a crianças maiores de
fezes; esses parasitas desenvolvem-se em adultos
dois anos. O albendazol, na posologia de 400 mg/dia
de vida livre no solo ou se transformam em lar-
por três dias consecutivos, possui boa eficácia e tole-
vas filariformes infectantes. Estas últimas formas
penetram na pele humana, ganham a corrente
rância. A ivermectina (200 mcg/kg – dose única), em
sanguínea até os pulmões e seguem por uma via crianças com mais de 15 kg apresenta eficácia seme-
semelhante às larvas dos ancilóstomos e Ascaris lhante ao tiabendazol, com menos efeitos colaterais.
até atingir seu hábitat final no intestino delgado
proximal. Os vermes maduros (2,2 mm de compri-
mento) escavam a mucosa intestinal e começam a Tratamento da estrongiloidíase
liberar ovos aproximadamente 4 semanas após a Medicamen- Apresentação Doses
infecção, que eclodem rapidamente e pequenas lar- to
vas são eliminadas nas fezes. As larvas são capazes Tiabendazol 5 mL = 250 mg 25 mg/kg – 2
de infectar o mesmo indivíduo, penetrando em sua 1 cp = 500 mg x/dia por 2-5
parede intestinal ou na pele perianal. Essa caracte- dias.
rística peculiar do ciclo evolutivo do Strongyloides Repetir após
permite que o parasita sobreviva por muitos anos 7-14 dias
no interior do mesmo hospedeiro (20 a 30 anos) e Cambendazol 5 mL = 30 mg 5 mL/kg/dose
eventualmente cause infecção devastadora. 1 cp = 180 mg única, após o
Fatores do hospedeiro, como a nutrição e o es- jantar.
tado da imunidade desempenham um papel crucial Repetir após
no desenvolvimento da síndrome de hiperinfecção. 7-14 dias
Albendazol 1 cp = 200 mg ou 400 mg 400 mg/dia - 3
Os sinais e sintomas da estrongiloidíase 1 frasco-dose = 400 mg dias consecu-
ocorrem em apenas pequena porcentagem dos in- tivos
divíduos infectados ou naqueles com a síndrome
Tabela 3.4
de hiperinfecção. A penetração inicial da pele por
larvas infectantes, em geral, não produz lesões
patológicas. Às vezes, observa-se um quadro de
eosinofilia e sintomas respiratórios discretos (Sín-
drome de Löeffler) durante a migração das larvas
através dos pulmões. A eosinofilia também pode Tricuríase
ocorrer quando fêmeas adultas escavam a mucosa
intestinal, podendo ser, muitas vezes, a única in- (tricocefalíase)
dicação da fase intestinal da infecção. Os sintomas
de dor abdominal, vômitos e diarreia são causados O Trichuris trichiura ou tricocéfalo causa uma das
por vermes adultos no intestino delgado proximal. helmintíases humanas mais comuns. A infecção ad-
Esses sintomas ocorrem numa frequência incerta vém da ingestão de ovos do parasita, que são elimi-
e podem ter início abrupto, com recidivas periódi- nados nas fezes de indivíduos infectados e amadu-
cas. A dor abdominal frequentemente é epigástrica recem em 2-4 semanas se as condições de umidade
e assume características de queimação, simulando e temperatura do solo forem ideais, podendo per-

SJT Residência Médica – 2016


37
3 Enteroparasitoses

manecer viáveis no solo por até 5 anos. Após a in- ativam pelas alterações hormonais da prenhez, reini-
gestão, os ovos eclodem e as larvas penetram as vi- ciando o processo de migração somática no animal. Os
losidades do intestino delgado, onde permanecem anti-helmínticos para uso veterinário não são capazes
por 3 a 10 dias antes de moverem-se lentamente de eliminar as larvas encistadas nos tecidos das fême-
em sentido distal no intestino e amadurecer até as e, portanto, não previnem a ativação das larvas e
vermes adultos. O hábitat final do T. trichiura cor- sua transmissão transplacentária para os filhotes; tor-
responde ao ceco, cólon ascendente e sigmoide, po- na-se necessária, portanto, a vermifugação de cadelas
dendo aí viver de 3 a 8 anos. e filhotes (maior contaminante do ambiente) após
A maioria dos indivíduos infectados é assinto- 15 dias do parto. A ingestão de ovos pelo homem é
mática; contudo, queixas abdominais vagas, cólica e seguida por penetração do trato gastrointestinal
distensão abdominal estão associadas à infecção. A pelas larvas e migração para o fígado, pulmão e, às
diarreia crônica é o quadro clínico mais frequente e vezes, outros locais (sistema nervoso central, olho,
deve-se à deficiência na reabsorção de água no cólon, rim e coração). As larvas não se desenvolvem além
consequente à lesão inflamatória da mucosa intesti- desse estágio no hospedeiro humano. O ser huma-
no é um hospedeiro paratênico ou intermediário
nal. O Trichuris adulto suga cerca de 0,005 mL de
(não habitual, em que o agente não completa seu
sangue/verme/dia e somente infecções maciças
ciclo de vida).
produzem anemia, diarreia sanguinolenta/ente-
rorragia e prolapso retal. Esses casos são chamados A larva migrans visceral é particularmente
de tricuríase maciça do lactente e muitas vezes es- mais comum em crianças de 1 a 5 anos de idade,
tão associados à shigelose e a infecções por proto- particularmente naquelas com perversão do apeti-
zoários do trato gastrointestinal. O prolapso retal te (geofagia) e nas que têm contato com cães e ga-
(mucosa prolabada, edemaciada, ulcerada e repleta tos (os ovos infectantes dependem de alguns dias no
de vermes a ela fixados) se deve à hipermotilida- solo para evoluírem para a forma embrionada – não
de intestinal provocada pela penetração na parede são, portanto, infectantes, após a imediata eliminação
pelo verme adulto e o sangramento, à lesão direta pelo animal); a toxocaríase ocular ocorre mais fre-
da mucosa. quentemente em crianças maiores.
As larvas do Toxocara geralmente suscitam uma
resposta granulomatosa caracterizada por grande
número de eosinófilos, células mononucleares e ne-
Terapêutica crose tecidual. Essas lesões são encontradas no fíga-
Mebendazol (cura de 75% a 80%), albendazol em do, pulmão e outros órgãos através dos quais o hel-
dose única (65% a 80% de eficácia) ou albendazol por minto migra.
3 a 5 dias (eficácia 92%) representam opções terapêu- A reação inflamatória é bem menos intensa no
ticas, seguindo as mesmas posologias já mencionadas olho, onde as lesões consistem principalmente em cé-
para as respectivas drogas. lulas mononucleares e alguns eosinófilos.
O espectro de manifestações da SLMV relaciona-
-se diretamente com o grau de parasitismo, intensi-
dade da resposta inflamatória e localização tecidual
Toxocaríase (síndrome de das larvas. Na grande maioria dos casos, a SLMV se
comporta como uma doença benigna e de curso limi-
larva migrans visceral – tado. A forma assintomática (subclínica) decorre da
SLMV) infecção por um pequeno número de larvas, podendo
se caracterizar apenas por eosinofilia que desaparece
espontaneamente.
A larva migrans visceral é causada por infes-
tação com larvas de Toxocara sp., sendo uma antro- As principais manifestações da toxocaríase sin-
pozoonose cosmopolita em expansão. Caracteriza- tomática (forma visceral) são: febre (80%), tosse com
-se basicamente por febre, hepatomegalia, doença sibilância (60%-80%) e convulsões (20%). A dificul-
pulmonar e eosinofilia. O Toxocara canis (áscaris do dade respiratória pode ser intensa o suficiente para
cachorro, mais importante) e o Toxocara catis são pa- justificar a hospitalização. Dor abdominal pode even-
rasitas comuns de cães e gatos que infectam o homem tualmente estar presente. Os achados físicos também
quando este ingere ovos do helminto. Os vermes adul- compreendem hepatomegalia (65%-85%), estertora-
tos do Toxocara residem no trato gastrointestinal de ção pulmonar (40%-50%), lesões cutâneas papulosas
cães e gatos e liberam grande número de ovos, elimi- ou urticariformes (20%) e adenomegalia (10%).
nados nas fezes. Chama atenção a eliminação acentu- Os pacientes com toxocaríase ocular apresentam-
ada do agente após o parto da cadela (cerca de quatro -se mais comumente com redução da acuidade visual
semanas), pois as larvas encistadas em seus tecidos re- (75% dos casos), por vezes associada ao estrabismo,

SJT Residência Médica – 2016


38
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

dor ocular ou edema periorbitário. O exame fundoscó- pescoço e corpo formado por proglotes). Comu-
pico do olho, em geral, revela lesões granulomatosas mente é um parasita solitário e é hermafrodita (em
solitárias situadas na retina próximas à papila óptica cada proglote existem os elementos macho e fêmea
ou à mácula. de reprodução). No gado bovino é encontrada na
forma larvária. As proglotes grávidas desprendem-
Faz-se o diagnóstico com base nas manifesta-
-se do verme durante ou após a evacuação, ou,
ções clínicas e testes sorológicos. O único teste confiá-
nessa espécie, ativamente. As proglotes elimina-
vel (padrão-ouro) é um ensaio de imunoabsorção ligado das (uma proglote grávida pode eliminar cerca de
à enzima (Elisa), que utiliza ovos de T. canis como antíge- 50.000 ovos), contaminam água, alimentos e solo,
nos. Esse ensaio é positivo em cerca de 75% dos casos de podendo ser ingeridos pelos animais. No intestino
larva migrans visceral e em frequência menor nos indiví- animal, o embrião, por meio da circulação, che-
duos com diagnóstico clínico de toxocaríase ocular. ga aos músculos, onde se transformam em larvas
Eosinofilia (até 50%) está presente em quase to- (canjiquinha). O homem se contamina com a inges-
dos os indivíduos com síndrome visceral, mas é bem ta dessa carne malcozida. A sobrevida dos vermes no
menos comum nos indivíduos com doença ocular. In- intestino humano é de cerca de 20 a 30 anos.
tensas eosinofilias devem provocar suspeita de toxo- A Taenia solium é muito semelhante à anterior,
caríase. A eosinofilia pode durar meses. tendo como hospedeiro intermediário o porco. Atin-
Os achados inespecíficos podem incluir elevações ge um tamanho bem maior (até 2 metros). No para-
de gamaglobulinas séricas e isohemaglutininas em vir- sitismo humano pela T. solium existe a possibilidade
tude das larvas do toxocara compartilharem antígenos de o homem tornar-se hospedeiro intermediário,
de superfícies com hemácias humanas). Embora se pos- abrigando a forma larvária do verme, condição co-
sam encontrar larvas ao exame de cortes teciduais, a nhecida como cisticercose. Esta pode ocorrer pela
ingestão pelo homem de água ou alimentos conta-
biópsia hepática ou de outros órgãos, em geral, não é
minados por ovos (não larvas) e também por autoin-
indicada porque os dados clínicos e laboratoriais forne-
festação, em indivíduos que já têm teníase, quando
cem evidências suficientes para definir o diagnóstico.
a seu estômago chegam anéis (proglotes) maduros
O esquema terapêutico dependerá da forma clí- de tênia; geralmente por refluxo do conteúdo intes-
nica e da gravidade da sintomatologia. Nos casos as- tinal. A digestão da casca pelo suco gastrointestinal
sintomáticos, considerando o caráter autolimitado da libera o embrião que penetra na parede intestinal,
infecção, o tratamento pode ser expectante. Tiaben- atinge a circulação e invade os tecidos, provocando
dazol é uma droga clássica descrita para o tratamento quadro muito grave quando invade o SNC, determi-
dos sintomáticos graves. Mebendazol pode ser utili- nando quadro de neurocisticercose, quadro clínico
zado também, na dose de 100 mg, 2 x/dia, por 5 dias. semelhante à neurotuberculose.
A sintomatologia da teníase, na maioria dos ca-
sos, é escassa ou inexistente. A queixa mais frequente
Tratamento da toxocaríase
é o desconforto causado pela migração das proglotes
Medicamento Apresentação Doses pelo ânus, no caso da T. saginata. Sintomas como náu-
Tiabendazol 5 mL = 250 mg 25 mg/kg, 2 x/dia, (máxi- seas, vômitos e diarreia de intensidade variável, de
1 cp = 500 mg mo: 3 g/dia) por 5 a 7 dias curta duração, podem ocorrer.
Tabela 3.5
As drogas utilizadas no tratamento da teníase
(cestocidas) são o praziquantel (primeira escolha),
mebendazol (em doses maiores, quando comparadas
em relação ao tratamento de outras helmintíases) e o
albendazol (três dias).

Cestódeos
Teníase (Solitária) Trematódeos
É a infestação parasitária do intestino por dois
tipos de tênia: Taenia solium (hospedeiro intermediá-
rio é o porco) e Taenia saginata (hospedeiro intermedi- Esquistossomose
ário é o boi). A esquistossomose é uma parasitose causada
A Taenia saginata, no estado adulto, parasita pelo Schistossoma mansoni, vulgarmente conheci-
exclusivamente o intestino do homem. Pode medir da em nosso meio como barriga d’água ou doença
até 10 cm de comprimento, apresentando-se sob a do caramujo. Torna-se importante no Brasil, pela gra-
forma de uma fita achatada e segmentada (cabeça, vidade de suas formas complicadas. Embora seja mais

SJT Residência Médica – 2016


39
3 Enteroparasitoses

prevalente em áreas rurais do Nordeste, existem focos


importantes da doença em zonas urbanas, inclusive Principais protozooses
no estado de São Paulo (litoral e Vale do Paraíba). A intestinais em pediatria
doença é adquirida pelo homem quando entra em
água doce contaminada pelos ovos do S. mansoni e
infestada pelo caramujo do gênero Biomphalaria,
o hospedeiro intermediário do verme. Os ovos eli- Giardíase
minados nas fezes, ao contato com a água, liberam A Giardia lamblia é um protozoário flagelado que
as formas larvárias (miracídeos) que, dentro do parasita mamíferos, de distribuição cosmopolita e que
molusco, dão origem às cercárias. Estas penetram compromete principalmente crianças. É o protozoá-
rio patogênico intestinal mais comum no mundo
na pele das pessoas e causam prurido (lagoas de
(20% da população dos países em desenvolvimento).
coceira), ocasionalmente acompanhado de um qua-
A suscetibilidade à infecção com manifestações clíni-
dro de dermatite. O quadro de dermatite ocorre nas cas decresce com a idade e aumenta com a carga de pa-
primeiras 24 horas após a penetração das cercárias; na rasitas ingerida. A Giardia se apresenta sob as formas
maioria dos casos, entretanto, a infecção passa des- de trofozoíta e cisto, habitando preferencialmente as
percebida. Ao penetrar no organismo, o verme atin- porções mais altas do intestino delgado.
ge a circulação, migra para os pulmões e se aloja no Em nosso meio, embora a prevalência de giardíase
intestino. Nessa fase, que corresponde à matura- seja maior nos grupos sociais menos favorecidos, essa pa-
ção do verme e início da oviposição, surgem as ma- rasitose é encontrada em todas as classes sociais. No en-
nifestações agudas da doença, que são observadas tanto, na criança desnutrida e exposta a quadros infeccio-
sos mais constantemente, a giardíase assume um papel
em apenas 0,3% dos esquistossomóticos de áreas
importante como agente etiológico da diarreia crônica.
endêmicas.
Os cistos, responsáveis pela disseminação da
A fase aguda ocorre quatro a oito semanas doença, podem permanecer viáveis em ambientes
após a infecção, observando-se febre, cefaleia, úmidos por três meses, inclusive na água clorada. A
mialgia, tosse e broncoespasmo, exantema, dor transmissão pode ser de forma direta, pessoa a pes-
abdominal e eosinofilia. Ocasionalmente ocorre soa, sendo frequente em creches e outras instituições
hepatomegalia dolorosa e diarreia ou disenteria. similares ou, de forma indireta, pela ingestão de água
O quadro de esquistossomose aguda geralmente é ou alimentos contaminados (transmissão fecal-oral).
autolimitado, evoluindo com resolução espontânea Os cistos, após ingeridos, rompem-se, liberan-
em duas a três semanas. Na fase aguda o diagnós- do os parasitas (trofozoítas) que, por divisão binária,
tico é difícil, pois o indivíduo não elimina ovos do multiplicam-se intensamente e se fixam à mucosa do
intestino delgado. O poder de adesão é suficiente para
esquistossomo nas fezes. A suspeita é feita por meio
impedir que sejam arrastados pelos movimentos pe-
do quadro clínico, dados epidemiológicos (viagem ristálticos normais. Tal fato explica o motivo de a for-
para áreas endêmicas e banhos em córregos e lagos) ma trofozoíta ser encontrada, praticamente, apenas
e do hemograma (leucocitose com eosinofilia) e a con- nas fezes liquefeitas. Os cistos são encontrados nas
firmação será realizada posteriormente com a identifi- fezes formadas, mas sua eliminação não é constante
cação dos ovos no material fecal. Após essa fase aguda, (encistamento errático), podendo desaparecer das fe-
zes por um período de 7 a 10 dias.
o indivíduo fica assintomático ou com sintomatologia
inespecífica (evolução lenta pra a cronificação). A sintomatologia pode variar desde quadros de
diarreia aguda aquosa autolimitada, até quadros crô-
Na fase crônica, assintomática em 90% dos nicos, persistentes ou intermitentes. No curso crônico
casos, os indivíduos disseminam a doença. Podem pode haver alternância de períodos de diarreia e perí-
ocorrer manifestações associadas à presença de odos com eliminação de fezes normais ou ressecadas.
ovos e formação de granulomas em diversos ór- Em nosso meio, deve-se levantar suspeita de giardía-
gãos, especialmente em fígado e baço; observa-se se em toda criança com diarreia crônica. Apesar de a
diarreia ser uma marca da infecção por Giardia, for-
hepatoesplenomegalia com fígado endurecido e su-
mas assintomáticas podem ocorrer. Além da síndrome
perfície nodular. A fase de descompensação hepática diarreica, a giardíase sintomática pode se manifestar
é tardia, rara na infância (fibrose hepática e hiperten- com inapetência, dor abdominal, flatulência, náuseas,
são porta). vômitos, dor epigástrica (dispepsia-like, com plenitu-
de pós-prandial), déficit de absorção (fator mecânico
O diagnóstico definitivo é feito pela identifica-
de proliferação do parasita na mucosa).
ção dos ovos do S. mansoni nas fezes, empregando-se
No exame parasitológico, a positividade encontra-
o método de Kato-Katz. O exame parasitológico de-
da para uma amostra de fezes é de cerca de 50% a 75%,
veria ser repetido pelo menos cinco vezes nos casos enquanto que, para três amostras (preferencialmente
suspeitos, para aumentar a sensibilidade; porém, na de dias alternados – com intervalo de 3 dias), aumenta
fase crônica, às vezes é necessária a biópsia retal. para aproximadamente 90%. A pesquisa de antígenos

SJT Residência Médica – 2016


40
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

fecais através da técnica Elisa pode ser superior ao exa- apresenta boa eficácia, com a vantagem de seu es-
me direto, entretanto tem a desvantagem de não averi- pectro antiparasitário amplo. Essa indicação ainda
guar simultaneamente a presença de outros parasitas. é controversa para alguns autores. Outra droga re-
Há controvérsias sobre o tratamento de indiví- centemente liberada para o tratamento de giardíase
duos eutróficos assintomáticos, portadores de Giardia. é a nitazoxanida.
O tratamento de portadores assintomáticos (adultos e
crianças) em áreas altamente endêmicas não tem de-
monstrado eficácia no controle de epidemias em cre- As três principais apresentações de giardíase
ches e instituições (taxa de reinfecção alta). A maioria Estado de portador assintomático
dos autores ainda assim considera o seu tratamento, Má absorção crônica e retardo do crescimento
particularmente nos manipuladores de alimento. Gastroenterite aguda com diarreia e distensão abdominal
No tratamento da giardíase, os derivados imidazó-
Confiabilidade dos métodos diagnósticos
licos, representados pelo metronidazol, tinidazol e secni-
para giardíase
dazol, são, atualmente considerados drogas de primeira
escolha, sendo os dois últimos vantajosos por serem em Única amostra de fezes para pesquisa de trofozoítos ou
dose única. A furazolidona, apesar de apresentar índices cistos: 50 a 70%
de cura mais baixos que os derivados imidazólicos, ao re- Três amostras (uma a cada 72 horas): 90% a 95%
dor de 80%, apresenta como vantagem o baixo custo. Única amostra e Elisa para detecção de antígeno: 95%
Alguns estudos têm demonstrado que a admi- Biópsia e aspirado duodenal (padrão-ouro): quase
nistração de albendazol, na dose de 400 mg/dia, du- 100%
rante cinco dias, em crianças maiores de dois anos, Tabela 3.6

Medicamento Dose
Furazolidona 5 a 7 mg/kg/dia, via oral, dividido em 4 doses durante 7 dias.
Adulto: 400 mg/dia, 4 x/dia, por 7 dias
Metronidazol 50 mg/kg/dia, 3 x/dia
250 mg, 3 x/dia, por 5 a 10 dias
Tinidazol 50 mg/kg/dia dose única
Adulto: 2 g/dose única
Albendazol 400 mg via oral por dia durante 5 dias.
Secnidazol 30 mg/kg, dose única, após refeição
Adulto: 2 g, dose única
Nitazoxanida 100 mg 2 x/dia (1 a 3 anos), 3 dias
200 mg 2 x/dia (4 a 12 anos), 3 dias
Adultos: 500 mg, 2 x/dia, 3 dias
Tabela 3.7

Amebíase
Designa a protozoose humana causada pela Entamoeba histolytica. A transmissão ocorre pela ingestão
de água ou de alimentos contaminados com cistos do parasita ou por contato direto, pessoa a pessoa, por meio
de mãos sujas com fezes contaminadas. Os cistos ingeridos chegam intactos até a porção inferior do intestino
delgado, onde evoluem para a forma trofozoítica. Estes se movimentam por pseudópodes e habitam a parede e a
luz do intestino grosso (ceco e cólon). Alimentam-se por fagocitose do material fecal e de bactérias e se multiplicam
por divisão binária. Algumas amebas se encistam e são eliminadas pelas fezes para perpetuar o ciclo do parasita.
Os trofozoítas na luz intestinal podem invadir a parede do intestino grosso, multiplicarem-se, destruindo os
tecidos e provocando ulcerações intestinais ou, mais raramente, necroses e abscessos em outros órgãos.
A forma mais comum de infecção é o portador assintomático (90%), onde o agente vive como comensal intra-
luminal, sem tradução clínica expressiva. O parasito pode conviver pacificamente por longos períodos e ser eliminado
sob a forma de cistos pelas fezes.
Quando invade a mucosa, mais comumente manifesta-se como colite amebiana não disentérica. O
quadro caracteriza-se por início insidioso, com aparecimento de crises de diarreia com um pequeno número (2 a
4) de dejeções de fezes moles ou pastosas, com muco ou sangue, que se acompanham por desconforto abdominal,
flatulência, geralmente sem febre, alternados de períodos de melhora (eventualmente com obstipação).
A colite amebiana disentérica é a forma expressiva mais clássica da amebíase aguda não complicada. Esta
pode ser abrupta e é caracterizada pela tríade: evacuações frequentes com muco e sangue (8 a 10/dias), cólicas
abdominais e tenesmo. As fezes são líquidas, muco-sanguinolentes ou muco-pio-sanguinolentas, já traduzindo
lesão ulcerativa e inflamação do intestino. Podem estar acompanhadas de manifestações dispépticas e anorexia.
Pode haver elevação moderada da temperatura e calafrios (há confusão com quadros disentéricos bacterianos).

SJT Residência Médica – 2016


41
3 Enteroparasitoses

O diagnóstico de certeza da amebíase intestinal é feito pelo encontro do protozoário no exame de fezes. A re-
tossigmoidoscopia ajuda na caracterização da forma disentérica, permitindo a visualização das úlceras intestinais e
permitindo coleta para exame histopatológico.
As principais complicações intestinais, decorrentes da atividade invasora, são a colite necrotizante (necrose, isque-
mia e hemorragia com subsequente peritonite e altísima mortalidade) e o ameboma (reação desencadeada pelo parasita
no tecido conjuntivo com formação de massa granulomatosa e subsequente edema e estreitamento da luz intestinal).
Ao invadir a submucosa do intestino e penetrar na corrente circulatória, a ameba pode translocar-
-se para outros setores do organismo atingindo principalmente o fígado. É a forma de amebíase invasiva
extraintestinal mais frequente. Em decorrência de uma hepatite amebiana aguda, formam-se áreas de necrose
pela formação de múltiplos abscessos, que se fundem em um único (geralmente no lobo direito). A clínica carac-
terística é de dor em hipocôndrio direito, febre e hepatomegalia dolorosa.
Amplo é o arsenal terapêutico para a amebíase. A etofamida e o teclosan são amebicidas de ação direta sobre o
protozoário, não absorvíveis e eficazes na luz intestinal (amebicidas de contato ou luminais). Esses medicamentos não
tem difusibilidade tecidual e, desta maneira, não atuam sob trofozoítos invasores na disenteria amebiana aguda ou na
amebíase extraintestinal. Dos amebicidas de ação tecidual, destacam-se os imidazólicos (metronidazol, tinidazol e sec-
nidazol) que são eficazes na luz intestinal, na parede intestinal e no fígado (boa concentração em todas as localizações).
Todos os portadores assintomáticos devem ser tratados, pois, além de atuarem como fonte de propagação da
doença, existe o risco de desenvolverem a forma invasiva da amebíase. Nesses casos, recomenda-se o uso de um
amebicida de ação luminal exclusivamente ou um imidazólico. Nos sintomáticos e nas colites sugere-se metronidazol
ou secnidazol. Abaixo, algumas doses dos principais medicamentos disponíveis para tratamento da amebíase.

Medicamento Doses
Metronidazol 30-50 mg/kg/dia VO divididos em 3 doses por 7 a 10 dias
Adulto: 750 mg/dose (3 x/dia)
Etofamida 100 mg/dose, 12/12 h, 3 dias
Adultos: 500 mg 12/12 h, 3 dias
Tinidazol 50 mg/kg dose única VO
Adulto: 2 g/dia dose única VO
Secnidazol 30 mg/kg/dia dose única VO
Adulto: 2 g/dia, dose única VO
Tabela 3.8

Aspectos gerais do tratamento


A adequada abordagem terapêutica das parasitoses intestinais depende, além do tipo de verme ou protozoá-
rio propriamente dito, do estado imunológico do hospedeiro e da gravidade de suas manifestações.
A melhoria das condições gerais de vida da população, com o acesso à Saúde e à Educação em Saúde, ao
saneamento básico e água potável, são algumas das condições básicas para a melhoria do problema das enteropa-
rasitoses em nosso meio.
Quando houver suspeita de helmintíase intestinal, pela presença de sintomas e sinais sugestivos desse
diagnóstico, ou mesmo relatos de eliminação do parasita, o tratamento deve ser realizado mesmo sem a confir-
mação do exame protoparasitológico. A espera por exames confirmatórios, em amostras seriadas, frequentemente
leva ao retardo diagnóstico e terapêutico ou perda de seguimento do paciente. Exceção deve ser feita em relação à
esquistossomose, que é de notificação compulsória em algumas localidades e que necessita de tratamento específico.
Recomenda-se tratamento para todas as parasitoses consideradas patogênicas, mesmo que no momento do
diagnóstico o paciente se encontre assintomático.
Nos casos de poliparasitismos (frequentes em nosso meio), quando não houver possibilidade de uso de uma
mesma droga com ação sobre todos os parasitas, deve-se, primeiramente, tratar os agentes que apresentam possi-
bilidade de migração no trato gastrointestinal, como por exemplo o Ascaris ou o Strongyloides. A verminose a ser
tratada em primeiro lugar deve ser a potencialmente mais grave. Nos indivíduos multiparasitados, dependendo do
grau de infestação, o índice de eficácia do tratamento é menor que os obtidos no tratamento de um único parasita.
Recomenda-se a realização de exames para diagnóstico de ascaridíase e, especialmente para estrongiloidí-
ase, antes de se iniciar um tratamento imunossupressor, particularmente o uso de corticosteroides, pelo risco
de migração e disseminação dos parasitas. Havendo urgência no início do tratamento imunossupressor, administrar
concomitantemente antiparasitários nos casos em que existir suspeita epidemiológica de infecção. Em relação ao tra-
tamento das protozooses intestinais, nos últimos anos, vários relatos têm associado alguns protozoários intes-
tinais considerados como comensais, portanto, não patogênicos, com manifestações gastrointestinais. Nesse
contexto, encontra-se em estudo a patogenicidade do Blastocystis hominis e da Entamoeba coli.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

4
Afecções de vias aéreas
superiores e médias

Afecções do nariz Distúrbios congênitos do nariz


A atresia de coanas (ou imperfuração coanal) é a
e seios da face anomalia congênita mais frequente no nariz e consis-
te num septo ósseo ou membranoso, uni ou bilateral
Além da olfação, o nariz assegura outras funções entre o nariz e a faringe. É mais comum no sexo fe-
respiratórias importantes: filtra partículas, aquece e minino e o comprometimento unilateral é duas vezes
umidifica o ar inspirado. As vias nasais contribuem mais frequente que o bilateral. Quase 50% dos neo-
com até 50% da resistência total da respiração normal. natos afetados apresentam outras malformações as-
O batimento de asa do nariz, sinal clássico de insufici- sociadas, sendo que uma das mais clássicas descritas
ência respiratória, diminui a resistência do fluxo ins- é a Síndrome CHARGE (coloboma of the eye, heart
piratório, na tentativa de melhorar o processo ventila- malformations, choanal atresia, retarded growth or
tório. A mucosa nasal é mais vascular, especialmente development, genital hypoplasia, ear malformation).
na região das conchas, do que nas vias aéreas inferio- Quando é unilateral, o neonato geralmente não apre-
res; contudo, o epitélio de revestimento é semelhante, senta sintomas intensos ao nascer e pode ficar assin-
com células ciliadas, células caliciformes, glândulas tomático durante longo período. Ao contrário, nas
submucosas e um cobertor de muco. Nas vias aéreas atresias bilaterais, há sintomatologia mais exuberan-
superiores há contiguidade desse epitélio; processos te. Os RN que têm dificuldade em respirar pela boca
irritativos ou infecciosos que aí ocorrem determinam (grande parte dos neonatos) fazem tentativas vigoro-
uma resposta orgânica conjunta dessas estruturas. sas de inspirar, muitas vezes com cianose. Os que são
43
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

capazes de respirar pela boca encontram dificuldade A infecção viral das vias aéreas superiores (IVAS)
para sucção e deglutição (cianose ao mamar). O diag- é a doença mais comum na população pediátrica e adul-
nóstico é estabelecido pela incapacidade de introdu- ta. De caráter benigno e autolimitado, na maioria das
zir um cateter ou sonda pela narina por 3-4 cm até a vezes, tem sua importância sobretudo como uma en-
nasofaringe, procedimento esse que deve ser realizado tidade que determina inúmeros dias de absenteísmo
na própria sala de recepção do neonato. A endoscopia escolar e no trabalho. A população pediátrica é parti-
nasal e a tomografia computadorizada são os exames cularmente suscetível às infecções respiratórias, sendo
de imagem de escolha para complementação diagnós- as creches e escolas espaços socialmente mais densos e
tica. O tratamento é cirúrgico. palcos de alta prevalência dessas afecções virais.
De acordo com os atuais consensos, o termo ri-
nossinusite tem sido preferido para denominar os
processos infecciosos que acometem a mucosa nasal
Infecções de vias aéreas e os seios paranasais, uma vez que, quase sempre, a
superiores rinite e a sinusite são doenças em continuidade.
São as infecções que atingem as estruturas do Os sintomas/sinais de tosse, coriza, espirros, obs-
trato respiratório acima da laringe. Entretanto, a trução e prurido nasais, caracterizam as infecções respi-
maioria das doenças respiratórias afeta simultânea ratórias altas que, em sua grande maioria são causadas
ou sequencialmente as partes superior e inferior do por agentes virais. Crianças apresentem uma média de
trato respiratório. 6 a 8 IVAS/ano. Eventualmente, o quadro pode compli-
Muitos microorganismos diferentes, sobretudo car-se (em cerca de 5%) com uma infecção bacteriana
vírus (causadores da maioria dos quadros de infec- secundária dos seios da face, a rinossinusite bacteriana
ções respiratórias) são capazes de determinar doença aguda. Sendo a IVAS a infecção de maior incidência e
primária do trato respiratório. O mesmo micro-orga- frequência na infância, tem-se, portanto, um grande
nismo pode causar infecção inaparente ou sintomas número de complicações para sinusite ou otite média
clínicos de intensidade e extensão variáveis de acordo aguda (uma outra complicação da IVAS). Entretanto,
com fatores do hospedeiro, como idade, contato pré- chama a atenção, na prática, o excesso de diagnósticos
vio com agente, estado nutricional e predisposição de sinusites e, por consequência, da prescrição de an-
alérgica. Por exemplo, entre membros diferentes de timicrobianos para quadros que, em uma análise mais
uma família, um único vírus pode produzir ao mesmo detalhada, não mereciam nada mais além da higieniza-
tempo um resfriado típico nos pais, bronquiolite no ção e lavagem nasal com soro fisiológico, analgesia e hi-
lactente, crupe numa criança um pouco maior, farin- dratação da criança. Alguns autores cunharam o termo
gite em outra, e uma infecção subclínica em outro. As “epidemia de sinusites” alertando a necessidade de me-
crianças que frequentam creches têm maior risco para lhores parâmetros para o diagnóstico e tratamento das
infecções respiratórias. verdadeiras complicações bacterianas sinusais. Diante
dessa situação, recentes guidelines internacionais e
Embora exista uma superposição considerável, consensos nacionais esclarecem critérios diagnósticos
alguns micro-organismos são mais propensos a pro- e condutas, visando o uso racional de antibióticos em
duzir determinada síndrome respiratória do que ou- afecções de vias respiratórias pediátricas.
tros, e certos agentes são mais propensos a definir
quadros de maior gravidade. Assim, o vírus sincicial A rinossinusite infecciosa aguda viral (resfriado
respiratório é o principal causador de bronquiolite, comum) é o tipo de rinite mais comumente observado.
mas pode determinar quadros de pneumonia, larin- É a doença humana (adultos e crianças) mais frequente,
gite ou mesmo doença febril indeterminada. O vírus embora se destaque o número de ocorrências na popu-
parainfluenza é o grande responsável pelo crupe viral lação pediátrica. É uma afecção aguda e autolimitada;
(laringite), mas pode produzir bronquite, bronquiolite entretanto representa situação na qual inúmeras pres-
ou mesmo um quadro de resfriado comum. Os adeno- crições inadequadas de antibióticos em todo o mundo
vírus são responsáveis por cerca de 10% das doenças são identificadas. Inúmeros medicamentos OTC (over-
respiratórias, muitas das quais leves e assintomáticas; -the-counter), difundidos pela mídia e vendidos sem
a faringite e a febre faringoconjuntival são as manifes- orientação médica, também nos preocupam, por não
tações mais comuns em crianças. Entretanto, podem apresentarem indicação precisa e serem responsáveis
causar infecção grave do trato respiratório inferior. por quadros de intoxicação nas crianças.
Os rinovírus e os coronavírus geralmente limitam-se O quadro clínico do resfriado comum é causado
ao trato superior (síndrome do resfriado comum). Os por representantes de inúmeras famílias de vírus; os
coxsackie vírus A e B produzem doença principalmen- mais comuns são cerca de 100 sorotipos de rinoví-
te na faringe. Outros vírus respiratórios determinam rus, que representam cerca de 50% dos agentes dessa
manifestações sistêmicas associadas, por vezes gra- doença. Outros vírus implicados são o vírus sincicial
ves, como é o caso do vírus do sarampo. respiratório, parainfluenza, adenovirus, coronavirus,

SJT Residência Médica – 2016


44
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

enterovírus não-polio (echovirus e coxsackievirus) e sinal pode ser reconhecido como parte da evolução na-
metapneumovírus humanos. Embora alguns desses tural de uma IVAS viral não específica; a coloração é
vírus produzam imunidade duradoura, como os ri- devida à presença de leucócitos polimorfonucleares e
novírus, isso, na prática, não interfere nos resfriados não de bactérias.
subsequentes pelo grande número de sorotipos de ví- Na IVAS, descreve-se uma disfunção mucociliar
rus existentes. de duração de cerca de 10 dias; portanto, durante
O resfriado comum ocorre em qualquer época do esse período é habitualmente esperado sintomas de
ano; todavia, é mais incidente nos meses chuvosos e de tosse e rinorreia. Como veremos posteriormente, a
outono/inverno e tem alta prevalência familiar. Quanto possibilidade diagnóstica de rinossinusite bacteriana
à sazonalidade, devemos considerar a grande variabili- ocorrerá fundamentalmente em quadros mais pro-
dade em nosso país com dimensões continentais. longados do que esse.
A disseminação parte de crianças, particular- O diagnóstico do resfriado comum é fundamen-
mente, que frequentam creche ou escola. As crianças talmente clínico.
com idade inferior a dois anos têm maior concentra-
O resfriado comum é erroneamente denominado
ção de vírus na via aérea superior, por um período de
de gripe. O termo gripe (influenza) deveria ficar reser-
tempo maior, assim, constituindo-se transmissores
vado à clássica doença causada pelo vírus influenza,
mais importantes do que os adultos.
com um maior comprometimento sistêmico, cefaleia,
A transmissão ocorre por via respiratória ou mialgia, além das manifestações catarrais altas, e de
transferência do agente pelas mãos que entram em disseminação extremamente rápida (características
contato com as secreções respiratórias das mucosas. O epidêmicas). Frequentemente encontramos leigos e
principal mecanismo de disseminação das IVAS (parti- até médicos que, ao tentarem diferenciar as IVAS, di-
cularmente por rinovírus) é a transmissão de secreções zem que gripe cursa com febre e resfriado não. Essa
infectadas de mãos contaminadas para membranas informação não tem nenhum substrato, pois a maio-
mucosas do nariz e olhos para um receptor suscetível. ria das IVAS, causadas por diversos vírus, pode cursar
Daí a fundamental importância da higienização das com quadro febril, inclusive febre alta, mantendo-se a
mãos, particularmente de cuidadores de creches. denominação de resfriado comum. Esse resfriado co-
Adultos costumam ter dois a quatro resfriados mum não deve ser tratado com antibióticos.
por ano, com média de duração de três a cinco dias; Evidências recentes sugerem que o resfriado co-
crianças podem ter de seis a oito por ano, com média mum inclui, obrigatoriamente, o acometimento sinu-
de duração de cinco a sete dias. O contato com outras sal, pois a mucosa que reveste internamente as cavida-
crianças e a suscetibilidade individual a infecções do des paranasais é a mesma que recobre as fossas nasais.
trato respiratório superior podem ocasionar múltiplos Na fase aguda do resfriado pode ocorrer hiperemia de
episódios ou complicações com eventuais infecções membrana timpânica (sem a necessidade de haver oti-
bacterianas secundárias. te bacteriana), hiperemia e odinofagia (agravada pelo
A apresentação clínica varia com a idade da crian- ressecamento secundário à respiração bucal), mialgia
ça. O quadro pediátrico difere do adulto; esse último pelo comprometimento sistêmico e tosse, sinais que
costuma ser menos sintomático. O resfriado comum não devem assustar o clínico.
geralmente inicia-se com dor ou desconforto na gar- Na terapêutica das rinossinusites agudas virais
ganta. Nos escolares e adolescentes predominam a ri- não há indicação de antibióticos, descongestionantes
norreia, obstrução nasal, irritação faríngea, mal-estar, tópicos ou sistêmicos (principalmente em lactentes),
tosse e secreção retrofaríngea; entre 25% e 50% têm mucolíticos, antitussígenos, anti-inflamatórios ou vita-
reações febris e conjuntivite. mina C. O tratamento se baseia em medidas de suporte,
Nos lactentes, a febre é mais frequente; de leve/ com hidratação, fluidificação e remoção de secreções.
moderada intensidade, no início da infecção, por cer-
ca de 48 a 72 horas. Há irritabilidade, vômitos e/ou
diarreia e a obstrução nasal e a coriza interferem na
aceitação alimentar e no sono. Portanto, os resfriados Sinusite bacteriana aguda
são mais intensos (e com risco maior de complicações) Os seios paranasais se desenvolvem nos ossos
em crianças pequenas, quando comparadas às maio- faciais como células aeríferas revestidas com epité-
res, adolescentes e adultos. lio colunar pseudoestratificado ciliado e secretor de
A descarga nasal inicia-se clara e aquosa, tornan- muco. Lembre-se da contiguidade mucosa do epitélio
do-se mais espessa e mucoide e, depois, escura e opaca respiratório das vias aéreas superiores para o enten-
(purulenta), particularmente pela manhã por vários dimento das afecções aí localizadas; assim, qualquer
dias. Embora alguns acreditem que a rinite mucopu- processo inflamatório que ocorre na mucosa nasal
rulenta indique a presença de sinusite bacteriana, este pode acometer a mucosa sinusal.

SJT Residência Médica – 2016


45
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

O desenvolvimento dos seios começa aos três ranasais, garantindo arejamento adequado e pronta
a cinco meses de gestação, mas ocorre fundamental- eliminação de partículas ou microorganismos intro-
mente após o nascimento. Os pequenos seios etmoi- duzidos na cavidade sinusal.
dais e maxilares são os primeiros a se formar e são os A retenção de secreções nos seios paranasais é
principais acometidos nos processos infecciosos de devida a um ou mais dos seguintes fatores: diminuição
lactentes. Deve-se lembrar, portanto, que sinusite em da função mucociliar (disfunção do aparelho ciliar),
lactente é maxilo-etmoidal. Os seios frontais em geral obstrução dos óstios sinusais (edema de mucosa ou
começam sua ascensão no segundo ano; entretanto, efeito mecânico direto) e hiperprodução ou mudança
tornam-se pneumatizados aos 5-6 anos de idade (eles da viscosidade das secreções. A Tabela 4.1 apresenta
não são observáveis radiologicamente até essa idade). os principais fatores predisponentes para sinusite.
Os seios maxilares, etmoidais anteriores e fron- Deve-se lembrar que a IVAS determina uma disfunção
tais drenam para uma área conhecida como complexo mucociliar e perda de células ciliadas que pode persis-
óstio-meatal (COM), no meato médio. Em particular, tir até dez dias após a cura do processo infeccioso vi-
ral; esse fato, portanto representa um dos principais
a via de saída do seio maxilar está em um posiciona-
fatores facilitadores para a infecção sinusal. Processo
mento que dificulta a drenagem gravitacional; a remo-
inflamatório alérgico, espessamento de secreções na
ção de secreções é, portanto, dependente da adequada
fibrose cística e outras alterações da função ciliar são
drenagem mucociliar da mucosa.
exemplos de facilitadores para a infecção dos seios da
Qualquer obstáculo de drenagem ou compro- face. A pressão negativa da cavidade sinusal obstruída,
metimento no COM promove a estase das secreções permite a migração de bactérias do nariz e nasofarin-
dentro das cavidades paranasais. A manutenção dos ge, que associadas à produção de muco, contribui para
óstios abertos é fundamental na higidez dos seios pa- o início da reação inflamatória.

Patogênese e fatores predisponentes para a rinossinusite bacteriana


Obstrução dos óstios sinusais
Causas Funcionais Causas Mecânicas
Edema da infecção viral da via aérea superior Atresia coanal
Edema da rinite alérgica Desvio do septo
Trauma facial Corpo estranho
Natação ou mergulho Hipertrofia de adenoide
Rinite medicamentosa Pólipos nasais
Tabagismo passivo
Espessamento de secreções nasais
Disfunção mucociliar
IVAS
Fibrose cística
Outras causas de imotilidade ciliar
Tabela 4.1  Fonte: elaborada pelo autor.

A aspiração do conteúdo sinusal, procedimento complexo e não realizado rotineiramente, permitiu o conhe-
cimento da microbiologia da sinusite. Vários estudos da década de 1980 evidenciam que os principais agentes
relacionados à etiologia da sinusite aguda são: Streptococcus pneumoniae, Haemophilus influenzae (não-tipável)
e Moraxella catarrhalis e patógenos virais. O pneumococo foi descrito como o agente mais comum, em 40 a
50% dos casos. Entretanto, poucos estudos de punção sinusal foram realizados posteriormente e, além disso, a
microbiologia da flora da nasofaringe de crianças sofreu mudanças importantes na última década. Como a pa-
togênese da otite média aguda (OMA) é semelhante à da sinusite, e, sendo a cavidade da orelha média, um dos
seios paranasais, dados obtidos de timpanocentese ajudam a entender a mudança no perfil etiológico das otites e
sinusites. Desde a introdução das vacinas conjugadas para pneumococo (7-valente e, posteriormente, 10-valente
ou 13-valente) houve uma mudança dos patógenos da OMA, com diminuição dos casos causados pelo pneumo-
coco e aumento relativo dos casos por hemófilos. Lembre-se que a vacinação antihemófilos não muda o perfil de
morbidade das vias aéreas superiores pois a vacina é direcionada para Haemophilus influenzae tipo b causador de
infecções graves e invasivas.
O principal desafio para o médico diante de uma criança com IVAS é distinguir um quadro viral simples de
uma sinusite bacteriana aguda, que poderão se beneficiar de tratamento antimicrobiano.

SJT Residência Médica – 2016


46
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Três padrões de apresentação são descritos para A tomografia computadorizada (TC) pode ser
a sinusite bacteriana. O primeiro, mais comum, é o da útil na suspeita de complicações. As complicações po-
IVAS que se prolonga. Os sintomas respiratórios, com dem ser orbitais (celulite peri e orbitária, abscesso),
congestão e secreção nasal, com graus variáveis de tos- envolver o sistema nervoso central (meningite, abs-
se, persistem por mais de dez dias (resfriado “arrasta- cesso cerebral, trombose do seio venoso) ou a estrutu-
do”). A chave para reconhecer e distinguir essa apre- ra óssea (osteítes). O seio frontal e etmoidal são os que
sentação de uma IVAS simples é a ausência de melhora mais comumente apresentam complicações, particu-
após dez dias de quadro. larmente esse último devido às suas paredes finas que
A segunda apresentação é a dos sintomas bifási- facilitam propagação da infecção para a órbita, que são
cos (referida na literatura internacional como double as complicações mais comuns. Sinais de infecção orbi-
sickening) ou de agravamento clínico. Esses pacientes tal incluem edema palpebral, proptose e comprometi-
apresentam uma melhora inicial de uma IVAS simples, mento da musculatura ocular. Os seguintes achados
seguindo-se de uma piora significativa, com exacerba- devem alertá-lo para a possibilidade de complicações
ção da tosse, congestão ou descarga nasal. Pode haver orbitárias ou intracranianas:
reaparecimento da febre. � edema e hiperemia periorbital/orbital, com ce-
faleia persistente e vômitos;
A terceira apresentação da sinusite bacteriana é a
de início grave. Os pacientes apresentam febre alta (39 � vômitos e cefaleia que necessitem de internação
graus) acompanhada de secreção nasal purulenta, por hospitalar, particularmente em crianças mais
um período de três dias. velhas;

A sinusite bacteriana pode ter sintomas e sinais


� alteração do nível de consciência;
específicos de infecção, incluindo febre, dor facial e � déficits neurológicos focais;
um certo grau de toxemia. Esse estado clínico geral da � sinais de irritação meníngea
criança também ajuda na distinção de um quadro de
Uma importante dica para diferenciar uma ce-
IVAS viral. A cefaleia, muito comum no adolescente e
lulite periorbital (preseptal) de uma celulite orbital:
no adulto, não é sintoma habitual da criança com si-
nessa última, situação mais grave, além do edema e
nusite, talvez porque a criança dificilmente verbalize.
eritema de pálpebras, pode haver proptose, quemose,
A tosse é um dos sintomas mais importantes em Pe-
dor e limitação de movimento ocular. A investigação
diatria: é presente durante o dia, mas, classicamente é
imagenológica (TC) é necessária para a detecção de um
relatada como sendo pior à noite.
eventual abscesso subperiosteal.
Há descrição do clássico “sinal de gota”, observa-
A necessidade de tratar a sinusite com antibióticos
do no exame da orofaringe da criança com uma espá-
é controversa. De forma geral, o tratamento com anti-
tula, provocando-se sutilmente um reflexo nauseoso
bióticos é benéfico quando as crianças são diagnosticas
no paciente quando então se observa secreção espessa
com sinusite utilizando critérios clínicos rigorosos.
escorrendo na região da retrofaringe, um verdadeiro
véu purulento nessa região. As recomendações mais recentes para o tratamen-
to das sinusites indicam o início do tratamento antimi-
O diagnóstico de sinusite é essencialmente clí-
crobiano nos casos de apresentação clínica grave ou nas
nico. O estudo radiológico não é necessário para con-
crianças com quadros de IVAS com manifestações bifá-
firmar o diagnóstico de rinossinusite não complicada
sicas, onde observa-se piora dos sintomas após a me-
na criança. A radiografia simples para avaliação dos
lhora inicial (double sickenning). Obviamente também
seios frontal e maxilares, embora seja uma alternati-
se inicia a antibioticoterapia nos casos de complicações
va à tomografia computadorizada (padrão-ouro para e em crianças com doenças de base facilitadoras de qua-
visualização dos seios da face), não deve ser realizada dros infecciosos mais graves (imunodeficientes, asmáti-
rotineiramente para o diagnóstico de sinusite, parti- cos, anormalidades anatômicas, por exemplo).
cularmente para lactentes menores de dois anos de
idade. Os seios etmoidais e maxilares, que são mais Para a apresentação clínica da IVAS que se perpe-
acometidos nessa faixa etária, têm dimensões reduzi- tua, por mais de 10 dias, e não há gravidade nem piora
das, sendo frequentes os falsos velamentos. Os seios progressiva, pode-se adotar a estratégia de prescrição an-
frontais raramente são acometidos antes dos seis anos timicrobiana ou de três dias de observação clínica (trata-
de vida. Achados anormais da radiografia incluem a mento expectante), pois essas crianças podem melhorar
opacificação do seio, espessamento mucoso e presen- sem o uso da medicação específica, apenas com intensifi-
ça de nível líquido. Entretanto, tem sido demonstrado cação da lavagem nasal e fluidificação das secreções.
que muitas crianças e adultos têm alterações em exa- Para que se entenda a melhor prescrição antibió-
mes de imagem realizados até mesmo na vigência de tica para a sinusite (e outras doenças respiratórias), de-
uma IVAS viral não complicada o que torna o exame vemos compreender o padrão de suscetibilidade e resis-
mais um elemento de confusão do que de ajuda. tência dos patógenos aos antimicrobianos disponíveis.

SJT Residência Médica – 2016


47
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

O pneumococo é a principal agente etiológico var a dose aumentada de amoxicilina para crianças com
bacteriano de pneumonias e de doenças invasivas em riscos de desenvolvimento de resistência: menores de
crianças em países em desenvolvimento. O uso não ju- dois anos, frequentadoras de creches e que receberam
dicioso de antibióticos para sinusites e otites tem-se antibioticoterapia recentemente (<30 dias).
associado ao surgimento de cepas resistentes aos an- Assim, no tratamento antimicrobiano, a droga
timicrobianos. A resistência dos pneumococos à peni- de primeira escolha é a amoxicilina, na dose habitual
cilina deve-se a alterações na afinidade das proteínas de 45 a 50mg/kg/dia, administrada duas vezes ao dia.
ligadoras de penicilina ao antibiótico, decorrente de
alterações cromossômicas da bactéria. Diferentemen- Dez dias de tratamento geralmente são suficien-
te de outras bactérias, lembre-se que a resistência do tes para os pacientes que apresentam rápida respos-
pneumococo à penicilina não envolve a produção de ta clínica; para aqueles que respondem em um ritmo
enzimas beta-lactamases, que destroem o anel beta- mais lento, mantém-se sete dias de tratamento após a
-lactâmico do antibiótico, inativando-o. A frequência resolução clínica do caso.
de pneumococos resistentes (resistência intermedi- Não havendo resposta clínica entre 48 e 72 horas,
ária ou total) à penicilina varia entre as diversas co- a associação da amoxicilina a um inibidor de beta-lacta-
munidades, vem crescendo, mas ainda é pequena em mase, como o clavulanato é uma opção justificável.
nosso país. Assim, orientações sobre prescrição de an- Não se deve esquecer do tratamento antipirético,
tibióticos oriundas de outros países para as infecções analgésico e a lavagem nasal com solução fisiológica
respiratórias devem ser vistas com ressalvas. Além que ajuda prevenir formação de crostas, facilitando a
disso, a grande maioria dos estudos são realizados liquefação dos fluidos sinusais. A redução na viscosi-
com cepas isoladas de infecções invasivas. dade e a melhora da qualidade do muco pode ajudar
Dados brasileiros mais recentes (2012) do estudo na resolução da infecção. Não existe recomendação
SIREVA (grande estudo sentinela de vigilância epide- de anti-histamínicos nas crianças que não tenham
miológica conduzido pela Organização Panamericana um componente alérgico subjacente; podem espessar
de Saúde na América Latina para monitorar infecções a secreção contribuindo para a obstrução do óstio de
invasivas causadas por S.pneumoniae, H.influenzae e drenagem. Descongestionantes tópicos devem ser evi-
N.meningitidis) identificou 92,5% de pneumococos tados: seu uso prolongado (>5 dias) pode causar va-
(isolados e identificados em não-meningites em me- sodilatação rebote e congestão, situação denominada
nores de 5 anos) sensíveis à penicilina e 7,5% com re- rinite medicamentosa.
sistência intermediária. A resistência ou a sensibilida-
de intermediária não representa uma limitação ao uso
da penicilina porque corresponde a cepas da bactéria
que necessitam de níveis séricos mais elevados do an- Rinite alérgica
tibiótico, os quais já são normalmente obtidos com as A rinite alérgica é a manifestação mais comum
doses usadas habitualmente para o tratamento. dos distúrbios alérgicos, conhecendo-se hoje a nítida
A produção de beta-lactamase é o mecanismo de predisposição atópica familiar. Trata-se de uma infla-
resistência antibiótica dos demais agentes de sinusite: mação da mucosa nasal, mediada por anticorpos IgE,
entre 10 a 40% dos H. influenzae são produtores dessa que ocorre após exposição a alérgenos. Uma vez que
enzima e virtualmente, em nosso meio, 100% da M. o revestimento das cavidades nasossinusais pode ser
catarrhalis a produzem também. considerado único e contínuo, todo o processo infla-
Alguns fatores de risco para o desenvolvimento matório que acomete a mucosa nasal determina al-
de resistência bacteriana são as crianças: teração da mucosa sinusal; daí o termo preferencial
rinossinusite alérgica hoje difundido. Os principais
� que habitam áreas com frequências altas de re- sintomas da rinite alérgica são espirros em salva, pru-
sistência;
rido nasal, rinorreia aquosa e congestão nasal. Prurido
� menores de dois anos; ocular, hiperemia conjuntival, lacrimejamento e foto-
� frequentadoras de creche; fobia podem estar associados. Os sintomas imediatos
após a exposição alergênica são consequência da ativa-
� que fizeram uso de antibióticos nos últimos 30
dias; ção imunológica e da liberação de mediadores no muco
e na mucosa nasal. Os antígenos difundem-se para
� não imunizadas com a vacina para pneumococo. dentro do epitélio e, em indivíduos atópicos, genetica-
Publicações internacionais sugerem altas doses mente predispostos, desencadeiam a produção de IgE
de amoxicilina associada ao clavulanato (90mg/kg/dia) local. A liberação (estimulada pela IgE) de mediadores
como primeira linha para o tratamento da sinusite, vi- dos mastócitos (pré-formados e neoformados), deter-
sando-se melhor cobertura para pneumococo que têm mina o subsequente recrutamento de elementos infla-
resistência intermediária e para os hemófilos produto- matórios. As reações subsequentes acarretam muco,
res de beta-lactamase. Em nosso meio, pode-se reser- edema, inflamação, prurido e vasodilatação. Os princi-

SJT Residência Médica – 2016


48
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

pais alérgenos ambientais desencadeantes são: poeira, desse anticorpo, como a exposição crônica ao tabaco
ácaros, fungos, pólens e epitélio de animais. Odores e parasitoses intestinais. Assim, a determinação de
fortes e fumaça de tabaco são os principais irritantes IgE sérica total não deve ser utilizada como parâmetro
inespecíficos (mecanismos não imunológicos). diagnóstico de rinite alérgica. A pesquisa de IgE séri-
ca específica é importante na avaliação da rinite. Para
Frequentemente a criança alérgica pode ser reco-
avaliar a presença de anticorpos específicos, utilizam-
nhecida por alguns maneirismos faciais: franzimento
-se os testes cutâneos in vivo ou in vitro (a prova de
do nariz (nariz de coelho) e saudação alérgica, prega radioalergoabsorção – RAST), que avalia a presença de
transversa nasal (crista horizontal na junção da ponta anticorpos IgE para vários antígenos. O teste cutâneo
bulbosa com a ponte nasal mais rígida), e olheiras por é menos dispendioso e tecnicamente fácil de executar.
estase venosa decorrente da mucosa nasal edemacia- Além disso, existe uma faixa mais larga de antígenos
da. Essas características da expressão nasal são rara- disponíveis, e os resultados podem ser interpretados
mente observadas antes dos quatro ou cinco anos de imediatamente. O RAST é indicado para o paciente
idade. Há um aumento progressivo das manifestações muito pequeno, no qual o teste cutâneo é difícil de ser
alérgicas com a idade e suas formas mais típicas são executado, ou quando não se pode interromper o tra-
observadas nos adolescentes. tamento com anti-histamínicos.
Dependendo da intensidade dos sintomas, as A terapêutica da rinite alérgica envolve a identi-
crianças com rinite podem ter alteradas suas condi- ficação e a remoção dos alérgenos, tratamento farma-
ções de vida diária, sua capacidade de concentração, cológico e, eventualmente, a imunoterapia.
apresentar irritabilidade ou sono alterado, diminuin- O afastamento do paciente aos alérgenos seria a
do, assim, a sua qualidade de vida. melhor terapêutica para doenças alérgicas. Isto inclui
O exame da cavidade nasal evidencia uma mucosa medidas de higiene ambiental, como eliminação de
edemaciada, coloração pálida e a presença de secreção pelos de animais, controle da poeira doméstica, espe-
aquosa principalmente se a criança estiver em crise. cialmente no quarto da criança, entre outras.
A base do tratamento farmacológico consiste
A classificação da rinite alérgica está baseada na
no uso de anti-histamínicos. Entretanto, apesar da
frequência dos sintomas e na gravidade do quadro clíico.
variedade de medicamentos disponíveis, a ação sobre
obstrução nasal costuma ser pobre. Para o início do
tratamento, a utilização concomitante de corticoides
Rinite alérgica – Classificação tópicos (beclometasona ou budesonida, por exemplo)
e anti-histamínico via oral tem mostrado maior eficá-
Intermitente Persistente cia na redução da obstrução.
< 4 dias por semana > 4 dias por semana A imunoterapia ou terapia de hipossensibili-
ou < 4 semanas e > 4 semanas zação consiste em provocar aumento progressivo de
anticorpos circulantes bloqueadores e uma redução na
liberação de histamina dos mastócitos, com a adminis-
tração gradativa e crescente de antígenos específicos
após serem previamente identificados por meio de
Leve Moderada-grave
testes cutâneos.
Sono normal Sono comprometido
Atividades normais Atividades
(trabalho, escola, comprometidas
lazer e esporte) Sintomas incomodam
Sintomas não Pólipos nasais
incomodam
Os pólipos nasais são tumores pedunculados be-
nignos, formados de mucosa nasal edematosa e croni-
Figura 4.1  camente inflamada. Em geral, originam-se do seio et-
moidal e se apresentam, na grande maioria das vezes,
no meato médio. Pólipos muito grandes ou múltiplos
Embora a rinite alérgica seja doença de diagnós- podem obstruir completamente a via nasal.
tico predominantemente clínico, na investigação do
paciente alérgico, alguns exames laboratoriais podem A fibrose cística é provavelmente a causa infantil
ser úteis. As secreções nasais de pacientes com rinite mais comum de polipose nasal; até 25% dos pacientes
alérgica geralmente contêm um número aumentado apresentam pólipos. Toda criança com polipose nasal
de eosinófilos: 10% a 20% de células no citograma deve ser investigada para fibrose cística, mesmo na
nasal. O hemograma pode apresentar eosinofilia. ausência dos sintomas respiratórios e digestivos típi-
Embora a determinação dos níveis séricos de IgE to- cos. A polipose nasal também está associada à sinusite
tal seja rotineiramente na pesquisa de sensibilização crônica de outras etiologias, rinite alérgica crônica e
atópica, outras condições podem ocasionar aumento asma. A síndrome de polipose nasal, asma e intolerân-
cia à aspirina é conhecida como asma em tríade.

SJT Residência Médica – 2016


49
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

A obstrução das vias nasais com hipofonação das adenoides e tonsilas palatinas funcionam como
nasal e respiração bucal é proeminente. Também primeiro sistema de defesa do organismo contra agen-
pode ocorrer rinorreia mucoide ou mucopurulenta. tes agressores.
O exame das vias nasais evidencia massas cinza, re-
Os quadros infecciosos faringoamigdalianos são
luzentes e semelhantes a uvas espremidas entre as
chamados de anginas (do latim angere: sufocar):
conchas nasais e o septo. Os pólipos são facilmente
distinguíveis do tecido bem vascularizado dos corne-
tos nasais, que é róseo ou vermelho. Os pólipos de-
vem ser removidos cirurgicamente se sobrevier obs-
trução completa ou rinorreia profusa; entretanto, se Anginas inespecíficas
o mecanismo patogênico subjacente não for elimina-
do, os pólipos logo retornam. � Angina eritematosa: ocorre mais comumente
nos quadros de origem viral (vírus influenzae,
adenovírus, parainfluenzae e rhinovirus). Mucosa
faríngea congesta, edemaciada e hiperemiada,
sendo o quadro acompanhado de dores muscu-
Afecções da garganta lares, coriza, tosse, febre, sintomas gastrointes-
tinais e lesões aftoides.
A dor de garganta é uma das queixas muito co- � Angina eritematopultácea: tem como prin-
muns em crianças e adultos, sendo as faringotonsi- cipal etiologia a bacteriana. Mucosa de aspecto
lites afecções pediátricas extremamente frequentes. semelhante à anterior, associada à presença de
Por vezes, constituem situações de uso não criterioso exsudato purulento e petéquias no palato. Febre,
e indiscriminado de antimicrobianos, justificado pelo odinofagia e adenite cervical dolorosa acompa-
medo das complicações supurativas e não supurativas nham o quadro. Pela confluência do exsudato
(febre reumática e glomerulonefrite aguda) das infec- purulento, pode-se formar uma estrutura de as-
ções causadas pelo Streptococcus pyogenes do grupo pecto pseudomembranoso (angina difteroide).
A. Embora a infecção da orofaringe por esse agente
constitua indicação apropriada para a utilização de � Angina de Ludwig: presença de celulite gangre-
antibióticos, diversos estudos demonstram que ape- nosa dos espaços submandibular e sublingual.
nas 10% a 20% das faringotonsilites são causadas por Normalmente tem origem em um foco bucal
essa bactéria. Entretanto, apesar de a grande maioria (infeccioso ou traumático). Os agentes etiológi-
das infecções das tonsilas e da faringe ser de origem cos podem ser aeróbios, anaeróbios ou fusoespi-
viral, estima-se que, em todo o mundo, 30% a 70% das roquetas. A celulite pode estender-se por vários
crianças com queixa de dor de garganta recebem pres- planos e obstruir as vias aéreas superiores.
crição de antimicrobiano.
Toda a superfície interna da faringe é forrada por
uma mucosa, chamada mucosa faríngea, que é revesti-
da superficialmente por um epitélio de natureza cilín- Anginas específicas
drica ciliada vibrátil, ao nível da nasofaringe, e do tipo
pavimentoso estratificado, ao nível da orofaringe e da
hipofaringe. Abaixo da camada epitelial da mucosa en- Angina diftérica
contramos uma estrutura denominada cório, rica em � Angina fusoespiralar ou de Plaut-Vincent:
glândulas mucíparas e folículos linfoides. A mucosa fa- causada pela simbiose entre o bacilo fusiforme
ríngea, em determinados pontos, sofre pregueamento (Fusobacterium plauti-vincenti) e o espirilo
múltiplo, abrigando no seu interior um conglomerado (Borrelia vincentii), saprófitos normais da ca-
de nódulos linfocitários que constituem as chamadas vidade bucal. O quadro clínico caracteriza-se por
tonsilas, sendo elas as linguais, palatinas, peritubárias disfagia dolorosa unilateral, geralmente sem fe-
e faríngeas (vegetações adenoides). Assim, todo esse bre e, ao exame, observa-se ulceração da tonsila
conjunto de formações amigdalianas forma um verda- comprometida com pseudomembranas, necrose
deiro círculo: o anel linfático de Waldeyer, sendo que e exsudato de odor fétido. Há lesões (ulcerações)
as tonsilas palatinas constituem, sem dúvida, o prin- gengivais concomitantes. A angina de Plaut-
cipal elemento deste conjunto. -Vincent é infecção pseudomembranosa aguda
Existem fortes evidências de que esse anel seja de faringe ou amígdalas, acompanhada de febre
responsável pela produção de células T e B e pela re- e linfadenopatia. Pode haver dificuldade no diag-
gulação e secreção de imunoglobulinas, constituindo nóstico diferencial com difteria, mas o achado da
um mecanismo de proteção das vias aerodigestivas associação fusoespiralar, ao exame direto do ma-
superiores. As IgAs secretoras presentes na superfície terial de orofaringe, confirma o diagnóstico.

SJT Residência Médica – 2016


50
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

minantemente entre os 2 e 15 anos de idade, sendo


Angina da mononucleose:
infrequente em lactentes (faixa etária na qual as in-
Na mononucleose pode haver uma angina do fecções virais ganham em importância) e adultos mais
tipo eritematoso ou mesmo eritematopultáceo. Há velhos. A grande questão diagnóstica é, diante de uma
linfadenopatia cervical, hepatoesplenomegalia, febre, faringite aguda, determinar se a etiologia é viral ou
cefaleia e mal-estar generalizado. Situação comum em bacteriana. Prescrever ou não antibióticos diante de
adolescentes e jovens. O agente etiológico é o vírus uma faringotonsilite? A grande maioria das faringo-
Epstein-Barr. Comumente no hemograma há linfoci- tonsilites agudas é causada por vírus e, portanto, não
tose com mais de 10% de linfócitos atípicos. suscetível aos antimicrobianos, tornando esse método
terapêutico desnecessário e inócuo.
Herpangina: Os princípios do uso cuidadoso de antibióticos
nas faringotonsilites devem observar:
Quadro causado pelo vírus Coxsackie dos tipos A
� diagnóstico feito com testes laboratoriais (cul-
e B. Há edema com erupções vesiculares, com rompi-
tura/teste rápido antigênico), associados a
mento das mesmas e ulceração do palato mole, tonsi-
achados epidemiológicos e clínicos compatíveis;
las palatinas e parede posterior da faringe, sem com-
prometimento da mucosa bucal. Outra manifestação � tratamento apenas das infecções causadas pelo
da coxsackiose é a síndrome mão-pé-boca, na qual há Streptococcus pyogenes do grupo A ou outras
associação das lesões orais com presença de vesículas etiologias bacterianas específicas;
nas palmas das mãos e na planta dos pés. � seleção da penicilina, que continua sendo o an-
timicrobiano de eleição.
Alguns achados clínicos são considerados clássi-
cos de faringotonsilites estreptocócicas:
Faringotonsilite � início abrupto da doença em criança maior de
estreptocócica dois anos de idade. Nas faringoamigdalites que
O Streptococcus pyogenes do grupo A continua ocorrem antes dos dois anos de idade, somente
sendo um grande problema no mundo inteiro, sendo 4% são pelo estreptococo; entre os cinco e oito
anos esse número sobe para 50%;
a sua sequela mais grave a febre reumática, com danos
às válvulas cardíacas. A febre reumática (FR) ainda re- � febre elevada;
presenta uma questão de Saúde Pública, em especial � dor de garganta, com hiperemia e presença de
nos países em desenvolvimento. Além da FR, essa in- lesões petequiais em palato e pilares tonsilares;
fecção pode complicar-se com glomerulonefrite, abs- � exsudato tonsilar (há, entretanto, alguns vírus
cesso peritonsilar, escarlatina e infecções purulentas que produzem um exsudato semelhante aos de
invasivas (síndrome do choque tóxico estreptocócico – infecção bacteriana);
fasciite necrosante). Outro ponto que deve ser ressal-
� linfonodos cervicais anteriores aumentados e
tado é que o Streptococcus pyogenes do grupo A é al-
doloridos, de aparecimento, por vezes, prévio
tamente transmissível, disseminando-se rapidamente ao exsudato tonsilar;
na família e em populações fechadas, como em escolas
ou creches (o indivíduo passa a ser minimamente con- � ausência de sintomas/sinais de infecções respi-
tagioso após 24 horas de início da antibioticoterapia) ratórias virais como conjuntivite, tosse, coriza
ou diarreia;
Existem, entretanto, portadores assintomáticos
� náuseas, vômitos e dor abdominal.
do estreptococo. O portador sadio é definido como
uma criança assintomática que tem a presença do O diagnóstico laboratorial da faringotonsilite pelo
agente em sua via aérea superior, sem qualquer evi- Streptococcus pyogenes do grupo A pode ser de difícil
dência de uma resposta sorológica para esse micro- estabelecimento, especialmente quando o custo dos
-organismo, ou seja, se for medido um anticorpo con- testes laboratoriais constitui uma barreira. O padrão-
tra o estreptococo, como o ASLO (antiestreptolisina -ouro para o diagnóstico é a cultura da faringe/tonsila.
O), num determinado momento e, novamente, três a Quando a criança já está em uso de antibióticos há re-
quatro semanas após, não houver elevação dos títu- dução da colonização da orofaringe, tornando mais di-
los de anticorpos, mesmo que a criança tenha cultura fícil a detecção do estreptococo. Atenção especial deve
positiva de orofaringe. Sabemos que cerca de 20% da ser dada à coleta, no sentido de não colher material da
população é portadora do Streptococcus pyogenes do base da língua (e não tocá-la na retirada do swab), e sim
grupo A, especialmente a população em idade escolar. das tonsilas e da parede posterior da faringe.
No portador sadio, não há a ameaça da febre reumáti- As dosagens de antiestreptolisina O, antiDNAse
ca ou da glomerulonefrite. É importante lembrar que e anti-hialuronidase não têm valor na fase aguda, já
a infecção pelo estreptococo do grupo A ocorre predo- que os anticorpos séricos aumentam na fase de conva-

SJT Residência Médica – 2016


51
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

lescença. Os testes rápidos para detecção do estrepto-


coco são de grande especificidade (poucos falso-positi-
O problema das tonsilectomias
vos). Na prática, esses testes são pouco acessíveis para Nos últimos anos ocorreram grandes avanços no
a maioria dos pediatras e a opção pela antibioticotera- entendimento e controle das infecções do anel linfá-
pia continua baseada em critérios clínicos. tico de Waldeyer (anel configurado pelas tonsilas pa-
latinas, faríngeas, peritubárias, linguais e pelo tecido
Os objetivos terapêuticos para a faringotonsi- linfoide da parede posterior da faringe) e houve uma
lite estreptocócica são: redução da intensidade e du- redução drástica das indicações das tonsilectomias.
ração de sintomas/sinais, prevenção de complicações Por outro lado, os danos decorrentes da respiração
e prevenção do contágio (erradicação do agente). O bucal crônica na estrutura craniofacial e os riscos da
benefício clínico desse tratamento está relacionado à apneia obstrutiva do sono passaram a ser mais bem
introdução precoce do antibiótico (preferencialmente estudados. Atualmente, uma proporção significativa
primeiras 24 a 48 horas), embora existam discussões das tonsilectomias é realizada por causas obstrutivas.
sobre a inibição da resposta individual ao agente nos A hipertrofia fisiológica do anel de Waldeyer ocor-
tratamentos instituídos muito precocemente, com ris- re até os quatro ou cinco anos, com posterior involu-
co aumentado de recorrência. ção desse tecido. A hipertrofia de adenoides constitui a
O tratamento com antibioticoterapia para as in- principal causa de obstrução nasal em pré-escolares. A
partir da faixa etária escolar e na adolescência, os qua-
fecções estreptocócicas é realizado com penicilina, que
dros alérgicos (rinite) sobrepujam-se em frequência.
é o antibiótico de eleição para esses casos, não haven-
do, ainda, descrição de resistência. A maioria das amígdalas hipertróficas está na
verdade de tamanho normal; o erro de interpretação
São as seguintes opções terapêuticas para as fa- advém da incapacidade de constatar que as amígdalas
ringotonsilites estreptocócicas: normalmente são maiores durante a infância do que
� penicilina benzatina em dose única intramus- em anos posteriores.
cular (via preferencial, pois, a via oral tem o
inconveniente de que, na maioria dos casos, as-
Indicações absolutas para a Tonsilectomia
sim que haja melhora, a tendência do paciente
é abandonar o tratamento; portanto, para o tra- Apneia obstrutiva do sono
tamento por via oral a terapêutica deve ser de Cor pulmonale
dez dias); Dificuldade para alimentação por causa de hipertrofia
importante
� penicilina V, oral, durante 10 dias; Hemorragia persistente ou recorrente
� amoxicilina, oral, durante 10 dias (com garantia Indicações relativas para a Tonsilectomia
de tempo completo de tratamento!). Tonsilites agudas recorrentes ou recidivantes
Nos casos de hipersensibilidade à penicilina ou Tonsilite crônica
derivados, os macrolídeos estão indicados. Deve-se Abscesso peritonsilar
lembrar que os macrolídeos induzem resistência, exis- Indicações absolutas para a Adenoidectomia
tindo atualmente bolsões de resistência dos Strepto- Apneia obstrutiva do sono
coccus pyogenes, superando 25% em algumas regiões Cor pulmonale
da Europa. Indicações relativas para a Adenoidectomia
Adenoide obstrutiva
Alguns erros terapêuticos são frequentemente
Sinusite crônica/recorrente
observados no tratamento das faringotonsilites bac-
Otite média crônica/recorrente
terianas:
Tabela 4.2 
1. a associação trimetroprima/sulfametoxazol é
ineficaz para erradicação do agente na orofaringe; � A situação denominada cor pulmonale pode decor-
2. terapêuticas com duração menor de 10 (dez) dias rer de uma obstrução crônica das vias aéreas supe-
também são ineficazes para eliminação do estreptococo; riores que causa anomalias pulmonares na relação
ventilação/perfusão, onde a existência de áreas
3. cefalosporinas ou azitromicina representam hipoventiladas (hipercapnia e hipoxemia crônicas
terapêutica de maior custo, maior risco de pressão e acidose respiratória) conduzem à vasoconstrição
seletiva sobre as bactérias (favorecendo a dissemina- arterial pulmonar, com aumento da resistência
ção de cepas resistentes) e de efeitos adversos. Ainda, vascular e sobrecarga crônica ao ventrículo direi-
to, com instalação de um quadro de insuficiência
alguns estudos mais recentes começam a demonstrar
cardíaca. O quadro pode ser reversível quando re-
que a azitromicina pode não ser tão eficaz quanto a tirada a causa obstrutiva. A apneia obstrutiva do
penicilina para a erradiação do estreptococo das infec- sono também pode causar alterações cardiovascu-
ções de garganta. lares, arritmias e insuficiência cardíaca direita.

SJT Residência Médica – 2016


52
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

� Uma criança com hipertrofia adenoidiana e ton- � quase inexistência de tecido celular subcutâneo,
silar pode também manifestar: aderindo intimamente ao pericôndrio e periós-
� história positiva de ronco noturno e respiração teo, fato que explica a magnitude da otalgia em
seus processos inflamatórios;
bucal e, quando ocorrem episódios de pausas
respiratórias e apneia, manifesta sonolência � folículos pilosos, glândulas sebáceas e glându-
excessiva durante o dia e queda do rendimento las especializadas, produtoras de cerúmen, ele-
escolar; mento básico na manutenção da umidade e pH
do CAE, indispensável na integridade do tecido
� disfunção da tuba auditiva e otites recorrentes; de revestimento.
� rinossinusites recorrentes; O CAE constitui uma estrutura de proteção e
� problemas de deglutição; limpeza própria: as secreções altamente viscosas
das glândulas sebáceas e as secreções pigmentadas
� redução de olfato e paladar – pode não comer,
ceruminosas do canal combinam-se às células su-
pois não consegue sentir o odor do alimento e
perficiais esfoliadas da pele para formar um reves-
nada tem sabor agradável; timento protetor, uma película acidificada, cérea,
� problemas de fala; que repele a água. A pele do conduto auditivo ex-
terno tem seu próprio mecanismo de limpeza, que
� anormalidades no crescimento facial. A crian-
carreia para fora o cerúmen e pequenas impurezas,
ça com hipertrofia geralmente manifesta res-
dispensando o uso de instrumentos para sua higie-
piração bucal, fácies adenoidiano típico (face
ne. A exposição frequente do canal auditivo externo
alongada, dificuldade de fechamento bucal, fala
à água, à instrumentalização ou à limpeza excessiva
hiponasalada e distorcida tipo batata quente,
com o emprego usual de hastes flexíveis de algodão
alterações dentárias, palato fundo), necessitan-
removem as secreções protetoras da pele do condu-
do quase obrigatoriamente de tratamento orto-
to auditivo externo, modificam o seu pH e alteram o
dôntico funcional em algum momento de seu
principal fator de resistência às infecções.
desenvolvimento.
A otite externa é definida como o processo infla-
A avaliação da obstrução pode ser realizada com
matório da orelha externa, de múltipla etiologia. As
a nasofibroscopia, que permite um exame dinâmico da
mais comuns são as formas difusas das otites bacte-
adenoide e de quanto ela obstrui as coanas. A radio- rianas das piscinas (otite do nadador ou otite das pis-
grafia de perfil da nasofaringe (cavum) somente forne- cinas) e, ocasionalmente, a forma localizada dessas
ce uma ideia estática da adenoide. infecções, como o furúnculo do CAE.
O mecanismo de instalação da otite externa, na
grande maioria dos casos, envolve fatores intrínsecos
ou extrínsecos, que predispõem o seu aparecimento.

Afecções da orelha
Os fatores intrínsecos são:
Otite externa 1. Variantes anatômicas do CAE: condutos es-
treitos e sinuosos que dificultam a limpeza natural,
A otite externa é bastante comum em pessoas acarretando retenção de material seroescamoso e va-
que vivem em países tropicais como o Brasil, onde o riações de umidade.
clima úmido e quente na maior parte de seu extenso
território, e os hábitos de imersões frequentes (ba- 2. Alterações de pele (descamações, dermatite
nhos de mar, piscina e prática de esportes aquáticos) seborreica, dermatite de contato por medicamentos
favorecem o aparecimento de afecções da pele que re- tópicos).
veste o canal auditivo externo (CAE). 3. Presença de otorreia secundária à perfuração
A orelha externa é constituída pelo pavilhão da membrana timpânica ou drenada pelos tubos de
auricular e pelo CAE, conduto esse anatomicamente ventilação.
formado, em seu terço lateral, por tecido cartilaginoso
e, nos 2/3 mediais (próximos à membrana timpânica)
com arcabouço ósseo. A porção mais estreita do CAE Os fatores extrínsecos são:
é a junção fibrocartilaginosa com a parte óssea, local 1. Manipulação excessiva do CAE, objetivando
mais comum da impactação dos corpos estranhos in- falsa limpeza e lavagem da orelha.
seridos na orelha. A orelha externa e o CAE são reves-
tidos em sua totalidade por pele, que apresenta carac- 2. Exposição à água e umidade excessivas.
terísticas próprias: 3. Traumatismos (digitais ou por corpo estranho).

SJT Residência Médica – 2016


53
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

O diagnóstico da otite externa é baseado nos si- A terapêutica baseia-se na analgesia (analgé-
nais e nos sintomas, e fundamentalmente na otoscopia. sico + calor local) e em preparações óticas tópicas
O sintoma predominante é a dor de ouvido, acentuada contendo antimicrobianos ou uma mistura contendo
por manipulação do pavilhão auricular e por pressão so- antibióticos-corticosteroides. É indicada a limpeza do
bre o trago, cuja intensidade pode ser desproporcional CAE, para ter melhor contato com a medicação tópica.
ao grau de inflamação pelas características de fixação da Pode-se utilizar soluções acidificantes (ácido acético
pele. O prurido é um precursor frequente da dor e geral- 0,25%) e agentes secantes, como o álcool boricado 2%.
As preparações óticas com antimicrobianos são mais
mente é um sinal característico do comprometimento
acidificantes do que as oftalmológicas e por isso mais
crônico do canal. A surdez condutiva pode decorrer do
indicadas; alguns pacientes não toleram a acidificação
edema, das secreções ou do espessamento crônico da e preferem gotas oftálmicas mais neutras.
pele do CAE. Edema, eritema e otorreia amarelo-esver-
deada são sinais proeminentes de doença aguda. Na otite externa localizada aguda (furunculose
do conduto auditivo externo), o edema é localizado e
Algumas vezes fica difícil a comprovação do sítio limitado a um quadrante, enquanto na otite externa o
primário de infecção (orelha externa ou orelha média), edema é concêntrico. Geralmente ocorre no terço ex-
em especial quando há comprometimento da orelha terno e é causada pelo S. aureus. O uso do calor local,
média com perfuração da membrana timpânica, exsu- analgésico e antibiótico oral é necessário. A presença
dato, dor e edema no CAE. A dor, quando a membra- de flutuação indica incisão e drenagem.
na timpânica está perfurada, drenando secreção, não
é importante, pois neste caso a efusão não está sob
pressão. Outro dado diferencial é que a otite externa Miringite bolhosa
secundária à perfuração ocorre cerca de 24 a 48 horas O termo miringite refere-se à inflamação da mem-
após o início da otorreia. O médico pode ainda lançar brana timpânica. Esta consiste em coleção intraepitelial
mão da otoscopia pneumática quando a membrana de fluidos na membrana timpânica, em geral associados
timpânica estiver íntegra: a cavidade da orelha média a infecções das vias respiratórias superiores. O ouvido
sem efusão permite uma boa movimentação da mem- apresenta-se bastante doloroso, havendo bolhas he-
brana timpânica. morrágicas ou serosas sobre a membrana. O diagnósti-
Nos lactentes, o diagnóstico diferencial entre a co diferencial com a otite média pode ser difícil, pois, no
otite externa e a otite média pode ser muito difícil. A início, o tímpano pode apresentar bolhas. Considerar
criança não se queixa de otalgia, mas agita-se e chora etiologia viral ou por Mycoplasma. Os quadros infec-
muito; manipula em demasia a orelha. Nessa faixa etá- ciosos por Mycoplasma pneumoniae caracterizam-se
ria, é difícil ocorrer otite das piscinas. Estatisticamente, por acometer crianças maiores, particularmente escola-
uma criança pequena com otalgia tem maior possibili- res e adolescentes (nestes últimos, mais comumente) e
dade de estar com otite média. Ao contrário da história manifestar quadro de tosse persistente, cefaleia e febre.
típica de otite externa, em que o escolar ou o adolescen- Um exantema maculopapular, principalmente em tron-
te, no meio do verão, apresenta-se com otalgia, edema co, pode ocorrer. A infecção pneumônica é, na maioria
do CAE, presença de secreção e exsudato sem febre. das vezes, de aspecto intersticial ou broncopneumôni-
ca. A presença de miringite bolhosa associada corrobo-
Em alguns pacientes com otite externa, o edema
ra a suspeita etiológica.
periauricular pode ser tão intenso que o pavilhão au-
ricular é empurrado para a frente, numa condição que
pode ser confundida com mastoidite aguda; entretan- Otite média
to, na mastoidite a prega pós-auricular é obliterada,
A inflamação da orelha média é a doença de maior
enquanto que na otite externa a prega é mantida.
prevalência na infância depois das infecções virais do
Nas crianças com história de remoção de corpo trato respiratório. O diagnóstico e o tratamento cor-
estranho da orelha, em que ocorra hiperemia ou trau- retos da otite média são importantes, não apenas
matismo do CAE, justifica-se a utilização de gotas an- porque é uma enfermidade bastante comum, como
tibióticas por cinco a sete dias. também porque, às vezes, é sucedida por complicações
A microbiota normal do conduto externo consis- significativas, como disseminação intracraniana da in-
te em Staphylococcus epidermidis, Corynebacterium (dif- fecção, com meningite e inflamação aguda do ouvido
teroides), Micrococcus sp e, ocasionalmente, S. aureus médio, seguida por derrame local persistente durante
e Streptococcus viridans. A maioria das otites externas um período de tempo variável. O último pode acarre-
é causada por bactérias gram-negativas, mais comu- tar significativa perda de audição condutiva, podendo
mente por Pseudomonas aeruginosa (50%-60%), prejudicar o desenvolvimento da fala e da linguagem.
Enterobacter aerogenes, Proteus mirabilis, Kleb- Quase 85% das crianças apresentam pelo menos
siella pneumoniae, estreptococos (9%-15%), S. epi- um episódio de otite média aguda até os três anos de
dermidis e fungos como Candida e Aspergillus. idade; 50% têm dois ou mais episódios.

SJT Residência Médica – 2016


54
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A alta incidência da otite média aguda e sua re- e aumento relativo dos casos por hemófilos. Lembre-
corrência em crianças provavelmente refletem uma -se que a vacinação para hemófilos não muda o perfil
combinação de fatores, dos quais os mais importantes de morbidade das vias aéreas superiores pois a vaci-
são a disfunção tubária e a suscetibilidade infantil a na é direcionada para Haemophilus influenzae tipo
infecções respiratórias altas recorrentes. A tuba infan- b causador de infecções graves e invasivas. Não exis-
til é diferente da adulta, pois é mais curta e horizontal: tem trabalhos recentes brasileiros que estabeleçam a
nos adultos, a tuba tem um ângulo de 45 graus em re- distribuição relativa entre esses agentes para a OMA;
lação ao plano horizontal, enquanto que nas crianças alguns autores sugerem que o pneumococo ainda seja
esta inclinação é de somente 10 graus. Sua abertura, o o principal agente (aproximadamente 40%), enquanto
outros já apontam equivalência na frequência entre o
óstio da tuba, costuma ter numerosos folículos linfoi-
pneumococo e o hemófilos. A M. catarrhalis é menos
des ao seu redor. A criança também tem adenoides que
frequente (10%). Esse aspecto deve ser levado em con-
preenchem a nasofaringe, obstruindo mecanicamente
sideração na escolha da antibioticoterapia.
o nariz e o óstio da tuba auditiva, ou atuando como
foco de infecção, que pode contribuir para o edema e a Outra informação a ser mencionada é a resis-
disfunção da tuba. A trompa de Eustáquio (tuba audi- tência antibiótica dos microorganismos responsáveis
tiva) tem pelo menos três funções fisiológicas impor- pelas OMA. Tem sido cada vez mais descrito, em dis-
tintos países, o aumento da prevalência de cepas do
tantes para a orelha média: (1) proteção do ouvido das
pneumococo penicilina-resistente, mediada por pro-
secreções nasofaríngeas, (2) drenagem na nasofaringe
teínas ligadoras de penicilina. Considera-se que, no
de secreções produzidas no ouvido médio e (3) venti-
Brasil, a resistência do S. pneumoniae não seja tão
lação da orelha média para equilibrar a pressão aérea elevada quanto em outros países do mundo. Dados
com a do conduto auditivo externo. Quando ocorre brasileiros mais recentes (2012) do estudo SIREVA
comprometimento dessas funções, há aumento da (grande estudo sentinela de vigilância epidemioló-
quantidade de líquido favorecendo a infecção e com- gica conduzido pela Organização Panamericana de
prometimento da saída de secreções (obstrução); essa Saúde na América Latina para monitorar infecções
secreção pode, portanto, sofrer contaminação por bac- invasivas causadas por S.pneumoniae, H.influenzae
térias que participam da microflora da região. e N.meningitidis) identificou 92,5% de pneumococos
A otite média aguda (OMA) é definida pelo apa- (isolados e identificados em não-meningites em me-
recimento de fluido ou secreção na orelha média, as- nores de 5 anos) sensíveis à penicilina e 7,5% com re-
sociada a sinais ou sintomas de doença aguda local ou sistência intermediária. A resistência ou a sensibilida-
de intermediária não representa uma limitação ao uso
sistêmica. Diferencia-se da otite média com efusão
da penicilina porque corresponde a cepas da bactéria
(OME), definida quando houver a presença de fluido
que necessitam de níveis séricos mais elevados do an-
na orelha média com ausência de sinais ou sintomas tibiótico, os quais já são normalmente obtidos com as
de infecção aguda do ouvido, situação também conhe- doses usadas habitualmente para o tratamento.
cida como otite média secretora ou otite média serosa.
Tanto o Haemophilus influenzae quanto a Mo-
A incidência de otite é mais alta no inverno e raxella catarrhalis podem produzir as betalactamases,
mais baixa no verão, o que, epidemiologicamente, enzimas que hidrolisam a penicilina e seus derivados.
coincide com a maior incidência das infecções das vias Relata-se na literatura que 30% a 50% das cepas de
aéreas superiores (IVAS). São descritos outros fatores H. influenzae e ao redor de 100% das Moraxella catar-
predisponentes para as otites, além das IVAS: frequ- rhalis são atualmente produtoras de betalactamases,
ência em creches, curta duração do aleitamento ma- o que confere um problema importante à terapêutica
terno, alimentação em posição horizontal (com reflu- das otites médias.
xo de líquidos para a orelha média), pais tabagistas e
antecedentes atópicos. A título de curiosidade: dados recentes america-
nos apontam a seguinte distribuição dos otopatóge-
A microbiologia da OMA foi identificada a partir nos bacterianos: S.pneumoniae 12% (20% resistentes
de aspirados da orelha média obtidos por timpano-
à amoxicilina), H. influenzae 56% (50% resistentes à
centese. Infecções por bactérias, vírus ou coinfecções
amoxicilina) e M. catarrhalis 22% (100% resistentes
por esses dois tipos de agentes podem ocorrer. Os mi-
à amoxicilina). É importante destacar que esses dados
crorganismos bacterianos historicamente e mais co-
mumente encontrados nas OMA são o Streptococcus são americanos o que não necessariamente correspon-
pneumoniae, Haemophilus influenzae não capsulado de à distribuição e padrão de resistência local.
(não -tipável) e a Moraxella catarrhalis. Essa tradi- Existe um quadro sindrômico particular, chama-
cional ordem de frequência dos agentes bacterianos do de síndrome otite-conjuntivite. Trata-se de um qua-
da OMA tem sofrido modificações recentes. Desde a dro onde a dor de ouvido inicia-se ao mesmo tempo ou
introdução das vacinas conjugadas para pneumococo dentro de três dias após o início dos sintomas oculares
(7-valente e, posteriormente, 10-valente ou 13-va- (conjuntivite purulenta). O agente causador desse qua-
lente) houve uma mudança dos patógenos da OMA, dro é mais comumente o H. influenzae. Geralmente os
com diminuição de casos causados pelo pneumococo sintomas da OMA são mais leves e a febre é baixa.

SJT Residência Médica – 2016


55
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

O termo “otite média” engloba dois subtipos em Historicamente se descreve o uso de otoscopia
sua classificação: a otite média aguda (OMA) e a otite pneumática para melhorar a precisão diagnóstica. Para
média com efusão (OME). Essa é uma subclassifica- tanto, uma cabeça de otoscópio que permita a insersão
ção prática que facilita o entendimento do fenômeno de um insuflador, a adequada vedação do espéculo no
patológico subjacente. A otite média aguda (OMA) é conduto auditivo, contenção da criança e experência
definida pelo aparecimento de fluido ou secreção na técnica do examinador é necessária. A pneumootos-
orelha média, associada a sinais ou sintomas agudos copia permite a vizualização da mobilidade da MT que
de inflamação da orelha média. Diferencia-se da otite encontra-se reduzida na presença de líquido na orelha
média com efusão (OME), definida quando houver a média e, particularmente dolorosa na OMA.
presença de fluido na orelha média com ausência de As manifestações clínicas de uma OMA podem
sinais ou sintomas de infecção aguda do ouvido, situa- se confundir com as de uma IVAS; OMA quase sempre
ção também conhecida como otite média secretora ou ocorre no contexto de uma infecção viras das vias aé-
otite média serosa. reas superiores, entre o terceiro e sétimo dia. Assim,
essas crianças tem rinorreia, congestão nasal, e, even-
Os critérios diagnósticos para OMA estão mais tualmente temperatura corporal elevada. Podem es-
refinados nas publicações mais recentes. O quadro tar irritadiças e dormindo mal. Os clínicos (e pais) pre-
abaixo apresenta as principais informações sobre o sumem que uma criança puxando as orelhas tem uma
diagnóstico de OMA publicados nas recomendações OMA. No entanto, mesmo o puxar da orelha não é
da Academia Americana de Pediatria. uma manifestação clínica exclusiva e clara de OMA ou
OME. Quando a MT se retrai, como frequentemente
� Os médicos devem diagnosticar OMA em crianças ocorre nas IVAS, a mudança de posição da membrana
que apresentam moderada a grave abaulamento da causa desconforto e a criança pode apontar a orelha.
membrana timpânica (MT) ou surgimento de otorreia O diagnóstico de OMA baseia-se, portanto, no
não devido a otite externa aguda. conjunto de achados da otoscopia associados aos sin-
� Os médicos podem diagnosticar OMA em crianças tomas de suspeição como otalgia, febre, irritabilidade,
que apresentam leve abaulamento da MT, recente (me- otorreia recente e outros sintomas inespecíficos como
nos de 48 horas) aparecimento de dor de ouvido (ou mão no ouvido, diarreia (muito comum), rinorreia e
criança não-verbal segurando, puxando ou esfregando outras manifestações sintomáticas das vias aéreas su-
a orelha) ou intenso eritema da MT. periores; na OME, a maioria das crianças é assintomá-
� Os médicos não devem diagnosticar OMA em crian- tica ou algumas se queixam de ouvido entupido ou de
ças que não têm efusão do ouvido médio. estalidos no ouvido, e têm o diagnóstico na consulta
de rotina do pediatra.
Pelo exposto nos critérios diagnósticos, o exa- Assunto controverso, embora o uso de antibió-
me da membrana timpânica deve fazer parte da prá- ticos tenha tido pouco impacto sobre a incidência da
tica clínica rotineira em crianças. Note que o princi- OMA e seja sabido que a resolução espontânea, sem
pal aspecto de consenso para a identificação da OMA tratamento, acontece em 80% dos casos, ainda assim
está no achado otoscópico de abaulamento da MT, a antibioticoterapia tem a sua importância na OMA.
Os antibióticos têm impacto sobre as complicações da
obviamente associado à presença de líquido na orelha
OMA e na melhora mais rápida dos sintomas. Portanto,
média. O achado da MT abaulada é frequentemente
desde que o diagnóstico da OMA tenha sido criteriosa-
descrita pelos americanos como membrana bagel ou
mente realizado, a antibioticoterapia deve ser instituí-
membrana donut. Devido à inflamação e presença da da, acompanhada de drogas analgésicas e antitérmicas.
efusão, tipicamente a membrana torna-se espessa e
perde a translucência, podendo ficar completamente Como consequência da imprecisão dos sintomas
de OMA e sua semelhança com os sintomas de uma
opaca. Portanto, a membrana transparente não é as-
IVAS ou OME, assim como dificuldades em visualizar
sociada à OMA. A presença de transparência normal
a MT e realizar otoscopia pneumática, às vezes o diag-
e líquido na orelha média é compatível com o diag-
nóstico de OMA é incerto. Isto é especialmente ver-
nóstico de OME. A hiperemia isolada da membrana dadeiro em lactentes e crianças jovens, nos quais os
também não é um sinal muito valioso para o diagnós- sintomas são leves ou se sobrepõem com os sintomas
tico de otite; embora, em condições normais a MT de uma IVAS. Além disso, cerume pode impedir a vi-
não apresente vascularização visível, várias situações sualização adequada da MT. Nos casos em que a incer-
podem se apresentar com a membrana congesta, in- teza ocorre, se a criança não está com dor e não tem
clusive choro e febre da criança. Uma exceção seria a febre, pode ser adotada uma conduta expectante, des-
diferença de lateralidade da hiperemia, com presença de que haja possibilidade de acompanhamento e con-
de efusão na orelha média que poderia indicar o iní- tinuidade de cuidados. Ausentes quaisquer um desses
cio do quadro inflamatório. elementos, a opção de observação não é aconselhável.

SJT Residência Médica – 2016


56
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O uso de analgésicos orais é recomendado para rências esporádicas. A duração do tratamento antibi-
todas as crianças com OMA e que tenham dor: dipiro- ótico deve ser de 7 a 10 dias. Crianças pequenas (< 2
na, paracetamol ou ibuprofeno. O uso de analgésicos anos) e com quadros mais graves devem ser tratadas
tópicos tem pouco benefício comprovado, não deven- por 10 dias.
do ser prescrito rotineiramente. A dose de amoxicilina é de 50 a 90mg/kg/dia, di-
Para a decisão de utilizar antibióticos, deve-se vidida em duas doses diárias. Para a escolha da dose
considerar a história natural de resolução espontânea maior de amoxicilina, considerar: exposição recente a
da OMA, o risco de aumento das taxas de resistência antibióticos (≤ 3 meses), frequência em creche/edu-
bacteriana, e ainda a possibilidade de evolução com cação infantil, estado vacinal e o perfil de resistência
complicações (meningite, mastoidite, otite média com do S. pneumoniae em sua comunidade, que, conforme
efusão). Os principais fatores a serem considerados vimos anteriormente, é baixo no Brasil.
para o tratamento antimicrobiano da OMA são: idade Uma segunda opção é a prescrição de amoxici-
da criança menor que seis meses, bilateralidade da oti- lina-clavulanato (50mg/kg/dia), que amplia a cober-
te, temperatura maior ou igual a 39ºC nas últimas 48 tura para os agentes produtores de beta-lactamase.
horas, otalgia por mais de 48 horas, estado toxêmico Esse antibiótico é particularmente indicado em crian-
/ sintomas sistêmicos, membrana timpânica do ouvi- ças com risco de infecção por agentes produtores da
do infectado não intacta (otorreia), episódio prévio de beta-lactamase (uso de beta-lactâmico nos últimos
OMA nos últimos três meses, sinais iminentes de per- 30 dias), nos casos de síndrome otite-conjuntivite e
furação do ouvido infectado e a percepção do médico quando há falha terapêutica.
de que a família não tem condições de avaliar a piora
clínica da criança. A tabela abaixo apresenta de forma Os macrolídeos (azitromicina, claritromicina e
sucinta e didática as recomendações mais atuais para eritromicina) são alternativas para pacientes alérgicos
o manejo antimicrobiano da OMA em Pediatria. à penicilina (anafilaxia, urticária, angioedema e mani-
festações IgE-mediada)
Pacientes com outras manifestações alérgicas po-
OMA OMA dem ser tratados com cefalosporinas, como a cefuroxi-
OMA com bilateral unilateral ma (30mg/kg/dia, 10 dias) ou ceftriaxone (50mg/kg/
Idade
otorreia sem sem dose, de 1 a 3 dias, mais comumente em dose única).
otorreia otorreia
< 6 meses antibiótico antibiótico antibiótico Não é recomendada outra terapêutica para OMA:
Antibiótico
antihistamínicos, corticosteroides, descongestionan-
6 meses - favorável ao favorável ao tes, antibióticos tópicos e anti-inflamatórios não hor-
ou
2 anos antibiótico antibiótico monais.
observação
Antibiótico Se iniciado somente o uso de analgésicos, uma
favorável ao favorável à
> 2 anos ou reavaliação deve ser garantida em 48-72 horas, caso
antibiótico observação
observação não haja melhora. O tratamento com antibiótico deve
Obs: antibioticoterapia imediata também para: OMA ser introduzido se após 48-72h os sintomas não se re-
complicada, aparência toxêmica, otalgia persistente solverem ou ocorrer piora.
por mais de 48h, temperatura > 39 graus (48h) e dú-
Embora ocorra melhora da sintomatologia em
vidas quanto à possibilidade de seguimento da criança
48 a 72 horas, é esperado que a efusão permaneça na
Tabela 4.3  Conduta para OMA em Pediatria orelha média por algumas semanas, após cada surto,
sendo o fluido estéril (70% até a segunda semana, 40%
Caso a conduta expectante seja cogitada é fun- até a quarta semana, 20% até o segundo mês e 10%
damental a discussão com os pais da criança e a verifi- até o terceiro mês). A efusão persistente (OME) não
cação da possibilidade de reavaliação breve da criança. requer antibioticoterapia e não deve ser considerada
Crianças maiores de dois anos, imunocompetentes, falha terapêutica. A persistência de efusão por mais de
sem anormalidades craniofaciais, com quadro leve de três meses requer avaliação especializada. Esta com-
OMA unilateral sem otorreia pode ser acompanhada plicação é de importante diagnóstico, já que está asso-
apenas com analgesia. ciada à perda auditiva condutiva, podendo estar rela-
Embora a Academia Americana de Pediatria, para cionada também com o atraso no desenvolvimento da
crianças de 6 meses até 2 anos, com OMA não grave, linguagem e mau rendimento escolar.
permita uma abordagem conservadora (vide quadro Recomendamos para crianças com OMA recor-
2) apenas com analgésicos, muitos autores sugerem rente com menos de um mês do 1º episódio ou que fez
também o tratamento com antibiótico nessa situação. uso de antibióticos por outras razões no último mês e
Na maioria das OMA, a amoxicilina tem sido a que apresenta OMA atual, a introdução de antibiótico
droga de escolha para tratamento inicial e nas recor- alternativo à amoxicilina isolada: amoxicilina-clavula-
nato (90mg/kg/dia amoxicilina e 6,4mg/kg/dia clavu-

SJT Residência Médica – 2016


57
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

lanato. Não há evidências para prolongar ou utilizar dem sofrer colapso com maior facilidade que outras, o
antibióticos profiláticos em OMA recorrente. que explica as diversas apresentações clínicas. O tecido
supraglótico não contém cartilagem, por isso, sofre co-
Deve-se ter critério ao analisar as recomenda-
lapso mais facilmente na inspiração (o estridor obser-
ções internacionais para manejo antibiótico das OMA
vado geralmente é inspiratório). Por este motivo, doen-
em virtude da diversidade de perfis de etiologia e de
ças que causam obstrução supraglótica são as que têm
sensibilidade dos microorganismos aos antibióticos potencial mais letal. Por outro lado, a glote e a traqueia,
disponíveis. Nas recomendações da Academia Ameri- por serem compostas por cartilagem, sofrem menos co-
cana de Pediatria, por exemplo, verifica-se a introdu- lapso (o estridor ocorre tanto na inspiração quanto na
ção de altas doses de amoxicilina como terapêutica de expiração, pois a forma e o tamanho desta parte da via
primeira escolha, em virtude da maior prevalência de aérea se altera pouco nas duas fases da respiração). As
pneumococos parcialmente sensíveis à penicilina nos obstruções de vias aéreas médias intratorácicas geram
EUA, realidade ainda (e felizmente) não observada em estridor mais audível durante a expiração, pois durante
nosso meio. a inspiração, essa via tende a se expandir, diminuindo a
Embora ocorra melhora da sintomatologia em ausculta dos ruídos respiratórios.
48 a 72 horas, é esperado que a efusão permaneça na Crupe é um termo genérico que abrange um gru-
orelha média por algumas semanas, após cada surto, po heterogêneo de distúrbios relativamente agudos
sendo o fluido estéril (70% até a segunda semana, (em sua maioria infecções), caracterizados por tosse
40% até a quarta semana, 20% até o segundo mês e peculiar ou crupoide que pode ser acompanhada de
10% até o terceiro mês). A persistência de efusão re- estridor, rouquidão e sinais de dificuldade respiratória
quer avaliação especializada. secundária a graus variáveis de obstrução. De modo
geral, a tosse ladrante e o estridor são características
marcantes do lactente e da criança pequena, enquanto
a rouquidão predomina nas crianças mais velhas e nos
Otite média recorrente adultos. A infecção em lactentes e crianças pequenas
raramente é limitada a uma única área do trato respi-
Define-se uma criança como propensa a desen- ratório; em vez disso, compromete em graus variáveis
volver otite quando ela apresenta três ou mais diferen- a laringe, a traqueia e os brônquios. Quando há envol-
tes e bem-documentados episódios de OMA em seis vimento suficiente da laringe para produzir sintomas,
meses, ou quatro ou mais episódios em doze meses. a parte laríngea do quadro clínico costuma ofuscar as
São fatores de risco descritos para as OMR: sexo outras manifestações.
masculino, irmãos com história de OMR, primeiro
episódio de otite média muito precocemente, não ter Causas de obstrução laríngea que podem apre-
sido amamentada, frequentar creche/berçário e expo- sentar-se como Síndrome do Crupe
sição ao tabagismo passivo domiciliar. (diagnóstico diferencial do estridor)
O médico deve reconhecer e controlar os fatores Laringotraqueobronquite viral aguda (causa mais comum)
predisponentes; a quimioprofilaxia atualmente não é Crupe espasmódico
mais utilizada Epiglotite
Traqueíte bacteriana
Abscesso peritonsilar
Abscesso retrofaríngeo
Inflamação laríngea causada por queimadura
Afecções das vias aéreas Obstrução por corpo estranho
médias (síndrome do crupe) Neoplasia/Hemangioma
Laringite diftérica
Tabela 4.4
As afecções agudas – particularmente inflama-
tórias – das vias aéreas médias (da faringe aos brôn-
quios principais) têm importância maior em lactentes e Os principais sintomas de uma obstrução res-
crianças pequenas do que em crianças maiores. Alguns piratória alta caracterizam-se pelo esforço acentuado
fatores anatômicos tornam as vias aéreas pediátricas dos movimentos respiratórios (retração supraclavicu-
potencialmente colapsáveis, mais suscetíveis a compli- lar, esternal e intercostal durante a inspiração) e cia-
cações respiratórias: narinas estreitas, língua propor- nose, com ou sem estridor. O choro e a obstrução na-
cionalmente grande, epiglote mais alongada e menos sal concomitantes podem agravar os sintomas de uma
rígida, além da laringe mais cefalizada com formato de criança com a via aérea já reduzida.
funil, estando sua porção mais estreita localizada na
Os agentes virais são responsáveis pela maio-
cartilagem cricoide. Estridor é o som respiratório pro-
ria das obstruções infecciosas das vias aéreas supe-
duzido pela passagem de ar em uma via aérea de grosso
riores, exceção feita aos casos de difteria, traqueíte
calibre estreitada. Diferentes partes das vias aéreas po-
bacteriana e epiglotite. Em infecções agudas, o pon-

SJT Residência Médica – 2016


58
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

to crítico é diferenciar uma laringite viral benigna e A avaliação do estridor é um ponto-chave na deter-
autolimitada de problemas mais sérios de etiologia minação da gravidade do quadro: estridor no repouso é
bacteriana – como a epiglotite – que são claramente um sinal significativo de comprometimento obstrutivo
ameaçadores à vida. das vias aéreas. Há vários sistemas de escores propos-
Laringotraqueobronquite viral aguda (LTBV) tos para avaliar a gravidade da obstrução, baseados em
achados clínicos como nível de consciência, cianose, es-
Também denominada crupe viral, é um processo tridor, expansibilidade pulmonar e retrações. Um dos
inflamatório agudo da laringe e das vias aéreas infe- escores mais clássicos para o crupe é o de Westley, que
riores, com edema subglótico e obstrução respiratória é largamente utilizado. Crupe leve é definido com esco-
subsequente. Ocorre geralmente na faixa etária entre re menor ou igual a dois; crupe moderado caracteriza-
seis meses e três anos, com o pico de incidência ob- -se por escore entre três e sete. Crupe grave é definido
servado entre um e dois anos de idade. Ocorre mais quando o escore é maior ou igual a oito.
comumente no sexo masculino. Predomina nos meses
de outono e inverno (particularmente nas madruga-
Escore de Westley para avaliação
das) e é a causa infecciosa mais comum de estridor
da gravidade do estridor
(90%) em crianças.
Nível de consciência
Em geral, os vírus responsáveis pelo quadro per- Normal ou dormindo 0
tencem à família Paramyxoviridae. O vírus parain- Desorientado 5
fluenzae tipo 1 é o responsável por mais de 50% dos Cianose
casos; os vírus parainfluenzae tipos 2 e 3 e o vírus sin- Nenhuma 0
cicial respiratório causam 5% a 15% dos casos. Outros Com agitação 4
vírus ocasionalmente envolvidos são: vírus do saram- Em repouso 5
po, vírus influenzae, adenovírus, rhinovírus, coxsackie Estridor
ou outros enterovírus. Em crianças maiores de 5 anos, Nenhum 0
tem importância etiológica o Mycoplasma pneumoniae. Com agitação 1
Em repouso 2
A transmissão se faz por contato direto, com
Entrada de ar
período de incubação variando de dois a seis dias até Normal 0
duas semanas, no caso do vírus parainfluenzae tipo 1. Diminuída 1
Esse agente tem tropismo pelo epitélio ciliado e carac- Muito diminuída 2
teristicamente o principal local envolvido é a região Retrações
subglótica, já que na região glótica o epitélio é do tipo Nenhuma 0
pavimentoso estratificado. Além do processo infla- Leve 1
matório agudo, com edema, exsudato e destruição Moderada 2
epitelial (e consequente estreitamento), o espasmo Grave 3
muscular laríngeo também contribui para a obstrução Tabela 4.5
das vias aéreas. A mucosa da região subglótica é pouco
aderente, permitindo a formação de um edema impor- Radiografias da região cervical geralmente não
tante, com potencial comprometimento das vias aé- são indicadas. Poderiam ser solicitadas, quando há
reas. Em lactentes, 1 mm de edema na região subgló- dúvida diagnóstica ou quando há suspeita de aspi-
tica causa 50% de diminuição luminal. Pode envolver ração de corpo estranho radiopaco. O achado radio-
somente a laringe (laringite), ou extender-se também lógico classicamente descrito na laringite viral é, na
para a traqueia e os brônquios, sendo que, nesses ca- radiografia em incidência anteroposterior, o aspecto
sos, pode ocorrer quadro de sibilância pulmonar asso- em ponta de lápis da região subglótica (ou sinal da
ciada (algumas séries fazem referência à presença de torre de igreja). Nos casos leves não há necessidade de
tal achado em cerca de metade dos casos). exames laboratoriais; porém em quadros mais graves
o leucograma revela discreta leucocitose, com acentu-
Normalmente, o quadro é precedido por pródro- ada linfocitose. Não há desvio à esquerda, o que ajuda
mo de IVAS (coriza hialina, febre e tosse leve) por um o diferencial com a epiglotite e a laringotraqueobron-
período de dois a três dias, após o qual a criança acor- quite membranosa (infecções bacterianas típicas).
da rouca à noite, com tosse de cachorro característica
O tratamento a ser instituído depende da gravi-
e estridor inspiratório. O estado geral da criança está dade do quadro. Crianças mais velhas, com pouca tos-
preservado. Em obstruções mais graves pode haver se e sem obstrução das vias aéreas, sem estridor e sem
estridor bifásico, taquipneia, retração xifoide, tiragem taquipneia, podem ser tratadas em domicílio, com os
intercostal e supraesternal. A criança apresenta-se pais orientados quanto aos sinais de agravamento. Po-
apreensiva, agitada, o que piora ainda mais o estridor rém, em crianças menores que apresentem qualquer
e também a angústia dos pais. Mais tarde, pode ocor- grau de dispneia, o tratamento deve ser realizado em
rer a diminuição do estridor (fadiga) e cianose. ambiente hospitalar, para maior segurança.

SJT Residência Médica – 2016


59
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

O tratamento domiciliar, na maioria dos casos O uso de antibióticos é desnecessário. Se ocor-


leves, se baseia em umidificação do ar inspirado, ge- rer hipoxemia não responsiva às medidas iniciais, a
ralmente feito no banho quente com vapor ou nebuli- criança poderá ser sedada, sob monitorização, numa
zações com soro fisiológico, tranquilização da criança, Unidade de Terapia Intensiva.
hidratação e, eventualmente, antitérmicos. A duração Intubação orotraqueal é raramente necessária
aproximada do quadro é de sete dias, com flutuações nos casos de laringite viral, sendo sua indicação consi-
(melhora pela manhã e piora à noite). derada quando:
No tratamento hospitalar, as seguintes medidas � sinais crescentes de insuficiência respiratória,
deverão ser adotadas: apesar do tratamento adequado;
� repouso: deve-se evitar a manipulação exces- � piora do estado neurológico;
siva da criança, pois o choro piora o padrão
respiratório;
� decréscimo da frequência respiratória (fadiga);
� umidificação do ar (vaporização, nebulização)
� aumento da necessidade de nebulização com
com oxigenoterapia: nenhum trabalho ainda foi epinefrina.
capaz de documentar um benefício realmente Deve ser empregado o menor tubo possível que
significativo da umidificação; o procedimento garanta a ventilação adequada, em geral 0,5 mm me-
deverá ser desencorajado se a criança se tor- nor que o recomendado para idade (cálculo do diâme-
nar mais agitada e chorosa com a inalação. Em tro do tubo a ser utilizado para uma criança: divi-
crianças mais graves, a oxigenoterapia poderá dir a idade da criança por 4 e, a seguir, adicionar 4).
ser realizada em crianças com saturação menor
que 92% em ar ambiente;
� hidratação (crianças com intenso descon-
forto não devem ser alimentadas e receber Traqueíte bacteriana
hidratação parenteral). Deve-se lembrar que a
taquipneia determina perda de água livre por
ou crupe bacteriano
perspiração aumentada; (membranoso)
� nebulização com epinefrina racêmica 0,05 A etiologia é bacteriana – cocos gram-positivos,
mL/kg (máximo 0,5 mL). A epinefrina determi- em geral. É possivelmente uma infecção bacteriana
na vasoconstrição, com diminuição do edema sobreposta a uma virose de vias aéreas superiores.
subglótico e relaxamento da musculatura lisa Acomete principalmente crianças até 6 anos de ida-
dos brônquios. Estudos bem conduzidos têm de. O principal agente é o Staphylococcus aureus,
demonstrado que doses farmacologicamente embora o Streptococcus do grupo A e pneumococo
semelhantes do L-isômero da adrenalina (0,5 também podem estar implicados.
mL/kg – máximo 5 mL – de solução 1:1.000)
produzem o mesmo efeito clínico benéfico. Esse Geralmente há antecedentes de infecção de vias
achado é muito importante, porque a adrenali- aéreas superiores ou laringite viral e a criança desenvol-
na racêmica não está disponível comercialmen- ve, após algumas horas, estridor inspiratório, rouqui-
te em muitas localidades. A epinefrina é ofere- dão, tosse, agitação e febre. A ausência de salivação e a
cida via nebulização em cerca de 15 minutos, capacidade de a criança se posicionar em decúbito dor-
podendo ser repetida após 20 a 30 minutos se sal ajudam a diferenciar o quadro de epiglotite aguda.
houver indicação clínica. É necessária a obser- Radiografias simples da região cervical, nas inci-
vação da criança por um período de duas a três dências AP e de perfil, evidenciam densidades focais
horas, pois, após o término do efeito do fárma- (correspondentes às crostas) na traqueia (coluna tra-
co, a criança pode retornar ao seu estado de des- queal de ar irregular), em associação com estreitamen-
conforto inicial; o tratamento com epinefrina
to subglótico. Se possível, a nasofaringoscopia deve
pode não alterar a história natural da doença,
ser realizada para observar a presença de secreção
mas pode adiar ou eliminar a necessidade de
uma via aérea artificial, além de promover alívio
purulenta na subglote e glote. Há uma película mem-
branosa purulenta espessa e abundante, que deve
sintomático agudo;
ser aspirada e removida.
� corticoterapia: age por diminuição do edema
da mucosa laríngea devido à ação anti-inflama- Diante da suspeita de traqueíte bacteriana, o pa-
tória. Dexametasona (0,6 mg/kg – maximo 10 ciente deve ser admitido em UTI, pois a intubação é
mg, via intramuscular, dose única) é o fárma- frequentemente necessária. Deve haver cuidado com a
co mais utilizado, por ser barato e ter duração cânula, pois ela é comumente obstruída pela secreção
prolongada. Existe extensa discussão na litera- traqueal. A laringotraqueobronquite bacteriana não
tura sobre outras doses, vias de administração responde bem à nebulização com epinefrina nem à
ou mesmo utilização de outras drogas, como a corticoterapia, e a introdução de antibióticos (cefalos-
budesonida inalatória. porina de terceira geração) deve ser realizada.

SJT Residência Médica – 2016


60
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Nos pacientes com obstruções menos dramáti-


Epiglotite aguda cas, quando existe dúvida diagnóstica pelos dados epi-
demiológicos e de história clínica, um exame simples
(supraglotite) da cavidade oral excluiria certas patologias que pode-
riam mimetizar a apresentação da epiglotite, como os
Afecção dramática e potencialmente letal, teve abscessos peritonsilar e retrofaríngeo.
sua incidência diminuída drasticamente (estima-se Radiografias simples de pescoço em perfil não
que em mais de 95% dos casos) nos últimos anos. De são recomendadas, pelo risco de obstrução respira-
ocorrência mais rara que a laringotraqueobronqui- tória rápida e, quando realizadas na sala de emergên-
te viral, caracteriza-se por uma celulite rapidamente cia, evidenciam:
progressiva da região supraglótica, configurando-se
� aumento de volume das partes moles na proje-
numa verdadeira emergência médica.
ção da epiglote (sinal do polegar);
Ocorre principalmente em crianças entre 3 e 6 � subglote normal.
anos de idade, havendo predomínio no sexo masculino
(5:1). A epiglotite aguda é causada primariamente pelo O hemograma mostra leucocitose com desvio
Haemophilus influenzae tipo B, e a diminuição de sua à esquerda. A obstrução respiratória é decorrente de
incidência deve-se à cobertura vacinal para esse agente. dois fatores: primeiro, uma epiglote edemaciada, cau-
sando estreitamento da supraglote e, segundo, um
O início dos sintomas é súbito, com a criança excesso de secreção espessa e viscosa na oro e hipofa-
apresentando febre alta, calafrios, dor de garganta, ringe, que se acumula devido à odinofagia.
dispneia com estridor inspiratório. Os primeiros sin-
tomas são odinofagia e disfagia progressiva, com sali- Sem tratamento, a epiglotite aguda evolui para
vação intensa (sialorreia). O grau de toxemia sistêmica insuficiência respiratória. A criança deve prontamente
é intenso, com febre alta e prostração. Pródromos vi- ser atendida e internada, com vigilância intensiva ao
rais, em geral, estão ausentes. padrão respiratório. Devem ser evitados procedimen-
tos que provoquem agitação na criança ou mudança
Se não for diagnosticada e tratada, a epiglotite agu- de posição que pode precipitar a obstrução total da via
da apresenta curso fulminante, com dispneia crescente, aérea. Os pacientes com suspeita clínica de epiglotite
mesmo em repouso, que se desenvolve em 4 a 8 horas. devem ser minimamente manuseados.
O estridor inspiratório piora com a posição recos- A base terapêutica consiste na administração pre-
tada e a criança prefere a denominada postura trípode: coce de antibióticos. Levando-se em conta que 10% a
sentar no leito, com pescoço hiperestendido e com men- 20% dos hemófilos são produtores de betalactamases,
to protruso, apoiando os braços (posição que maximiza tem-se substituído o esquema tradicional de ampicilina
o tamanho da região supraglótica). A epiglotite aguda + cloranfenicol por, preferencialmente, cefalosporinas
cursa em geral sem tosse e com qualidade vocal normal de segunda (cefuroxima) e de terceira geração (ceftria-
ou pouco alterada (abafada) – voz de batata quente. xone), ou a associação ampicilina + sulbactam.
O exame físico deve ser realizado por meio de Além disso, há sempre necessidade de se garan-
avaliação endoscópica direta pré-intubação. É possível tir a permeabilidade da via aérea do paciente. Deve
observar edema e eritema em todas as estruturas su- ser feita a intubação preventiva, imediatamente após
praglóticas. O achado mais evidente é a epiglote muito o diagnóstico, de preferência no centro cirúrgico ou
avermelhada e edemaciada. A epiglote está tumefeita, na UTI (6% das crianças com epiglotite sem uma via
rígida, de coloração vermelho-cereja. A faringe pode artificial morrem, em comparação com menos de 1%
estar inflamada, havendo grande quantidade de muco daquelas com via aérea artificial).
e saliva, que também geram roncos auscultatórios. Al-
Deve-se lembrar da profilaxia para os contactan-
guns pacientes apresentam laringoespasmo reflexo e
tes do caso índice (realizada com rifampicina).
obstrução total aguda, aspiração de secreções e para-
da cardiorrespiratória durante ou logo após o exame
da faringe com um abaixador de língua, manobra que
deve ser evitada. Quanto a esse aspecto do exame fí- Laringite estridulosa ou
sico, algumas considerações merecem ser feitas. Exis-
tem apenas dois relatos de casos com epiglotite que crupe espasmódico
apresentaram obstrução completa da via aérea após Também conhecido como falso crupe, em virtu-
inspeção direta da epiglote. As circunstâncias antes e de de o quadro clínico ser semelhante ao da laringotra-
durante o exame não foram descritas detalhadamen- queobronquite aguda (crupe verdadeiro). Talvez seja
te, sendo impossível determinar se foi uma complica- a situação clínica que mais se confunda com a LTVA.
ção do exame ou o curso natural da infecção (Pediatr Caracteriza-se por um edema não inflamatório dos te-
Infectt Dis J, 1998; 17). cidos subglóticos, sugerindo que não há envolvimento

SJT Residência Médica – 2016


61
4  Afecções de vias aéreas superiores e médias

viral no epitélio da traqueia. Acomete principalmen- diagnóstico é clínico e confirmado pela laringoscopia
te crianças do sexo masculino, de um a três anos de direta (que exclui outras malformações ou tumores) e,
idade, sem antecedente algum de infecção de vias aé- geralmente, não requer tratamento.
reas superiores ou inferiores, ou seja, sem pródromo
viral. Subitamente ocorre agitação, tosse seca, rouca,
do tipo de cachorro, dispneia, tiragem, estridor inspi-
ratório, geralmente durante a noite. A tosse acorda o
paciente, que até então estava assintomático; a crian-
ça demonstra-se ansiosa e assustada. É uma situação As IVAS de repetição
alarmante principalmente para os pais, que normal-
mente ficam angustiados. Após pouco tempo (minu- A criança normal costuma apresentar vários epi-
tos ou horas), o quadro sintomático entra em declínio sódios respiratórios infecciosos, especialmente nos pri-
e se normaliza, com exceção da tosse, que geralmente meiros anos de vida, autolimitados, benignos, de locali-
permanece por alguns dias. O grande marcador dessa zação variável na árvore respiratória e sem prejuízo de
situação é a recorrência muito habitual do quadro; por seu crescimento. A queixa IVAS de repetição geralmen-
isso, a doença é também chamada de laringite espas- te não se trata de uma outra doença, mas sim de situa-
módica recorrente. ções de risco aumentado para as doenças respiratórias
Ocorre principalmente em crianças com respira- habituais. Diante desses processos de repetição e/ou de
ção bucal por hipertrofia adenoidiana ou rinite alérgi- uma criança mais vulnerável, devem ser identificados
ca. O prognóstico é benigno. os vários fatores de risco relacionados ao ambiente físi-
co familiar, às condições da criança e às características
Acredita-se que sua etiologia seja alérgica ou re-
dos agentes causais que podem interagir.
lacionada com o refluxo gastroesofágico, que sempre
deve ser investigado nos quadros de estridor recorren- Os principais fatores de risco são:
te. A maioria dos casos apresenta resolução espontâ- � ambiente físico na casa e na escola: presença de
nea ou alívio com umidificação do ar. O tratamento crianças com menos de cinco anos, densidade
durante a apresentação aguda do estridor (particular- por metro quadrado, condição de ventilação e
mente nos momentos iniciais) pode ser semelhante ao insolação, presença de umidade, fumantes do-
da laringite viral. miciliares, poluentes ambientais;
� história familiar: mães jovens e com baixo nível
de escolaridade, antecedentes para doenças res-
piratórias e alérgicas;
Laringomalacia (estridor
� história alimentar: desmame precoce, carências
laríngeo congênito) vitamínicas, condições clínicas atuais e pregres-
A laringomalacia é a anormalidade laríngea con- sas, presença de alergias ou malformações do
gênita mais comum e resulta de deformidade ou fla- trato respiratório ou cardíacas;
cidez congênitas da epiglote, abertura supraglótica e � características do agente: a exposição da crian-
fraqueza das paredes da via aérea, levando ao colapso e ça aos inúmeros agentes infecciosos, princi-
a um certo grau de obstrução da via aérea à inspiração. palmente vírus em áreas urbanas, determina a
É a causa mais comum de estridor em lactentes, sendo ocorrência de processos infecciosos respirató-
muito fácil de diagnosticar, pois ocorre logo após a pri- rios agudos frequentes (de seis a oito por ano),
meira semana de vida, tendendo a uma leve piora en- que fazem parte da experiência imunológica da
tre três e seis meses. Manifesta-se com uma respiração criança normal. Mesmo as eventuais complica-
ruidosa, sobretudo na fase inspiratória, que desapare- ções bacterianas (OMA, faringite ou sinusite)
ce quando a criança está em decúbito ventral e piora são comuns dentro desse contexto e não têm
no decúbito dorsal, bem como na vigência de infecções maior significado desde que não comprometam
de vias aéreas superiores. A voz e o choro são normais. o crescimento e o desenvolvimento e que não
Desaparece em torno dos 12 aos 18 meses de idade, apresentem recorrência monótona, particular-
com o crescimento e desenvolvimento da via aérea. O mente na mesma localização anatômica.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

5
Afecções de vias aéreas inferiores:
pneumonias na infância

Pneumonias agudas
Definição
Dá-se o nome de pneumonia à inflamação do parênquima pulmonar, geralmente causada por micro-organis-
mos (vírus, bactérias e fungos). No entanto, existem causas não infecciosas, como aspiração de corpos estranhos,
suco gástrico e/ou alimentos, pneumonite induzida por drogas ou radiação. O quadro clínico é mais grave quanto
menor for a criança.

Figura 5.1  Imagem macroscópica e microscópica de pneumonia.


63
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

� Aglomeração.
Introdução � Baixo peso ao nascer.
As doenças respiratórias correspondem a apro-
� Desnutrição.
ximadamente 50% dos atendimentos ambulatoriais.
Destes, 12% são por pneumonias. As infecções do trato � Desmame precoce.
respiratório inferior representam importante causa de � Deficiência de vitamina A: as evidências ainda
morbidade e mortalidade em todo o mundo. A incidência são controversas. A carência de outros nutrientes
anual de pneumonias em crianças menores de cinco anos também poderia apresentar essa associação, como
de idade é de 30 a 40 casos por mil na Europa e América a deficiência de ferro, cobre e vitamina D. Estes es-
do Norte. Nos países em desenvolvimento, esta incidên- tudos necessitam de maior comprovação.
cia chega a ser até dez vezes maior, além de apresentar
coeficientes de letalidade mais elevados. Dados da Orga-
� Vacinação deficiente.
nização Mundial de Saúde identificam que 4,3 milhões
das mortes de crianças menores de cinco anos ocorram
anualmente por infecções respiratórias agudas nos paí-
ses em desenvolvimento, sendo que um terço da morta- Etiologia
lidade mundial na faixa etária pediátrica pode ser atri- O diagnóstico etiológico das pneumonias é difí-
buída às infecções respiratórias agudas (IRA). No Brasil, cil, o que justifica o tratamento geralmente empírico
as taxas de mortalidade infantil por pneumonias variam dessas patologias. Devido a isso, é importante que
por região, sendo mais altas nos estados do Norte e Nor- noções consolidadas por estudos clínicos e bacterio-
deste e mais baixas no Sul. Dados do Ministério da Saúde lógicos sobre seus agentes etiológicos sejam de conhe-
apontam as pneumopatias agudas como responsáveis cimento dos pediatras. Os fatores mais importantes
por cerca de 27% das internações e 12% dos óbitos em
a serem considerados são a idade do paciente, seu
crianças menores de cinco anos de idade.
estado imunológico e se adquiriu a infecção na comu-
Devido à importância das infecções respiratórias nidade ou em ambiente hospitalar. A infecção respi-
agudas (IRA), especialmente das pneumonias como cau- ratória inicial, na maioria das vezes, é de origem
sa de morte nos cinco primeiros anos de vida, foi instituí- viral, estabelecendo condições favoráveis para a
do no Brasil o programa IRA, no início da década de 1980, invasão bacteriana, pelo comprometimento dos
sendo elaborado um Manual de Normas para Assistência
mecanismos de defesa das vias respiratórias e
e Controle das IRA por um grupo técnico das Sociedades
da criança, sistemicamente. Nos países desenvol-
de Pneumologia, Pediatria e Enfermagem, publicado pelo
Ministério da Saúde, manual este revisado e publicado vidos, a etiologia viral das pneumonias parece ser mais
em nova edição em 1994. As normas definem os critérios frequente (60% a 90% das determinações etiológicas),
de diagnóstico e as condutas nos casos de IRA, orientam com menor proporção de isolamentos bacterianos
a hierarquização do atendimento segundo a gravidade e (10% a 15%). Os vírus responsáveis pelas pneu-
determinam os critérios de internação. É importante que monias comunitárias (PAC) são os vírus sinci-
todos que atendam crianças em nível primário ou servi- cial respiratório (VSR), parainfluenza, influenza,
ços de emergência tenham conhecimento de suas reco- adenovírus e, mais recentemente, o metapneu-
mendações, que deverão ser adaptadas às condições de movírus. Entre eles, o VSR é o mais prevalente, iden-
trabalho de sua unidade. tificado em metade dos casos de infecção viral do trato
respiratório inferior, com sazonalidade bem conheci-
da, sendo responsável por milhares de internações.
Os rinovírus são a segunda causa de bronquiolite e
Incidência pneumonia em crianças pequenas, sendo o vírus pa-
São reconhecidos vários fatores de risco para rainfluenza tipos 3 e 1, o influenza A e B e o adenovírus
pneumonias: associados a um menor número de casos. Nas primei-
� Sexo: principalmente em menores de um ano; vá- ras semanas de vida, as pneumonias virais fazem par-
rios estudos apontam maior risco para o masculino. te geralmente de um quadro de infecção generalizada
� Idade: especialmente nos menores de seis meses.
de aquisição intrauterina, pelo vírus coxsakie, vírus da
varicela e da rubéola. Uma vez situados nas pequenas
� Renda familiar: em vários estudos observou-se
vias aéreas, os vírus invadem o epitélio respiratório,
nítida relação entre baixa renda e mortalidade
produzindo perda da função ciliar e obstrução das
por pneumonia.
vias aéreas, com produção de muco, infiltrado de cé-
� Educação dos pais: a instrução dos pais, prin-
lulas inflamatórias e edema. Em casos mais graves, há
cipalmente das mães, tem sido demonstrada necrose epitelial e alveolar, com metaplasia dos brôn-
como fator de risco para hospitalização e morte quios e bronquíolos. A resposta imune local através da
por pneumonias.
ação da IgA secretora, macrófagos e interferon, mais
� Poluição atmosférica. do que a resposta sistêmica, é responsável pelo clea-
� Poluição intradomiciliar: fumo. rance do vírus, permitindo a regeneração do epitélio.

SJT Residência Médica – 2016


64
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Nos países em desenvolvimento, a etiologia bac- tococo do grupo B, a Escherichia coli, e outros bacilos
teriana, provavelmente na maioria das vezes secun- gram-negativos entéricos, a Listeria monocytogenes e
dária, foi comprovada em 50% a 60% dos pacientes, a Chlamydia trachomatis. Devemos lembrar, ainda, da
em estudos de material colhido por aspiração pulmo- infecção pulmonar que acompanha a sífilis congênita,
nar transcutânea. Entre os agentes bacterianos, conhecida como “pneumonia alba”.
o Streptococcus pneumoniae e o Hemophilus in- Os lactentes até quatro ou seis meses de vida
fluenzae (Hib) são os mais frequentemente iso- constituem um grupo especial quando apresentam
lados dos processos pneumônicos de origem co- as chamadas pneumonias afebris ou atípicas, sendo
munitária, inclusive de lactentes. Nos pacientes outros agentes responsabilizados pela infecção, como
com pneumonia e derrame pleural que se apre- Chlamydia trachomatis, VSR, adenovírus, citomega-
sentam com menor gravidade clínica, o S. pneu- lovírus, Ureaplasma urealiticum e, eventualmente, o
moniae também tem sido relatado como germe Pneumocystis jiroveci.
prevalente em todas as idades. O Staphylococcus
aureus é um agente etiológico importante das Esses agentes são de identificação mais difícil, e o
penumonias graves, mais frequente em crianças diagnóstico laboratorial envolve geralmente técnicas
menores de 2 anos de idade, mas que ocorre nos sorológicas.
pacientes com complicações pleuropulmonares Nas crianças maiores, devemos suspeitar de
de qualquer faixa etária, sendo sinais de alerta outros agentes diante de pneumonias com quadros
para suspeita clínica dessa etiologia a verificação atípicos, que se assemelham por vezes mais a uma
de toxemia, palidez de instalação rápida e a pre- síndrome viral que bacteriana, como o Mycoplasma
sença de lesões cutâneas piogênicas no paciente pneumoniae e a Chlamydia pneumoniae. Predominam
ou nos familiares. Com a introdução da imunização na faixa etária de escolares e adolescentes e apresen-
de rotina com as vacinas conjugadas contra o hemó- tam, algumas vezes, características de microepide-
filos (Hib), observou-se em alguns países um desapa- mias na família ou na comunidade de convívio próxi-
recimento virtual das doenças invasivas causadas por mo, com tosse intensa característica e com evolução
este agente. Em nosso meio pudemos verificar que, a prolongada. As pneumonias por Mycoplasma podem
partir de 1999, com a introdução da vacina contra o ser mais graves nos pacientes com anemia falcifor-
Hib no calendário vacinal, houve uma queda signifi- me. Nos pacientes imunodeprimidos, as infecções
cativa de meningites por este agente. Ainda não dis- pulmonares, além de serem frequentes e graves, são
pomos de dados nacionais em relação ao impacto da comumente causadas por germes menos frequentes
vacinação sobre as doenças respiratórias. Em contras- ou oportunistas, constituindo um desafio no racio-
te com a doença pelo Hib, em que apenas um soroti- cínio clínico da provável etiologia: Pneumocystis jiro-
po é responsável pela infecção, a doença invasiva pelo veci, CMV e Paramyxovirus, Pseudomonas sp e outras
pneumococo está associada a vários sorotipos. Soroti- bactérias gram-negativas e S. aureus. Os fungos,
pos adicionais estão relacionados às infecções de vias como o Aspergillus sp., Candida sp e H. capsulatum
aéreas superiores, como OMA e sinusites. A vacina são agentes também importantes das pneumonias
pneumocócica conjugada disponível no mercado apre- nesses pacientes e devem ser sempre pesquisados no
senta sete sorotipos (4, 6B, 9V, 14, 18C, 19F e 23F) diagnóstico etiológico. A Legionella pneumophila tem
responsáveis por cerca de 85% a 90% das doenças in- sido descrita nesse grupo, principalmente em enfer-
vasivas nos EUA. A eficácia desta vacina na prevenção marias oncológicas, por contaminação da água usada
de pneumonias foi recentemente avaliada na popula- para limpeza de material de nebulização ou banhos.
ção, verificando-se eficácia de 33% para crianças com Uma situação especial é representada por infecções
pneumonias com qualquer alteração radiológica, de pulmonares adquiridas no ambiente hospitalar, onde os
73% para crianças com pneumonias com consolida- meios contaminados (mãos de profissionais, equipamen-
ções lobares ao raio X maiores que 2,5 cm e de 90% tos de respiração assistida, material fecal no leito, refluxo
para crianças com pneumonias com bacteremia. do conteúdo intestinal através de sondas nasogástricas
As pneumonias por germes gram-negati- e procedimentos de intubação) facilitam a colonização
vos ocorrem mais frequentemente em ambien- e a possível aspiração de germes gram-negativos, assim
te hospitalar, ou pacientes com diarreia, in- como o S. aureus ou de fungos, em particular nos imuno-
fecção urinária ou septicemia, principalmente deprimidos ou com sensório comprometido.
crianças com desnutrição proteico-calórica e Nos pacientes com síndromes aspirativas crônicas,
imunidade comprometida. principalmente associadas a neuromiopatias, as pneu-
Nos recém-nascidos, as pneumonias geralmente monias podem ter como agentes bactérias anaeróbicas.
têm como agentes os germes que estão presentes no No quadro abaixo, os agentes etiológicos estão
trato genital da mãe, sendo os prevalentes o Estrep- relacionados com as faixas etárias:

SJT Residência Médica – 2016


65
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

Idade Agente etiológico das secreções normais como a IgA secretória, a limpe-
za das vias aéreas pelo mecanismo de tosse e os meca-
Streptococcus do tipo B nismos de defesa imunológicos que incluem macrófa-
Gram-negativos gos, IgA secretória e outras imunoglobulinas.
Escherichia coli A pneumonia viral resulta da disseminação da
Klebsiella sp
Até 2 meses infecção ao longo das vias aéreas (VA), acompanhada
Proteus sp
pela lesão direta do epitélio respiratório, resultando
VSR em obstrução das VA pelo edema, secreções anormais
CMV e detritos celulares. O menor calibre das VA em crian-
Herpes simples ças mais novas as torna particularmente suscetíveis
Chlamydia trachomatis a infecções mais severas. Atelectasia, edema intersti-
cial, além de desproporção entre a ventilação-perfu-
VSR
2 a 6 meses são, causando significativa hipoxemia que em geral é
Streptococcus pneumoniae acompanhada por obstrução das VA. A infecção viral
Staphylococcus aureus do trato respiratório também pode predispor a infec-
Streptococcus pneumoniae ções bacterianas secundárias por causar distúrbios aos
mecanismos normais de defesa do hospedeiro, alte-
Haemophilus influenzae
6 meses a 5 anos rando as secreções e modificando a flora bacteriana.
Staphylococcus aureus Quando a infecção bacteriana se estabelece no parên-
VSR quima pulmonar, o processo patológico varia de acor-
Streptococcus pneumoniae do com o agente invasor.
Maiores de 5
Mycoplasma sp
anos
Chlamydia sp
Tabela 5.1 Diagnóstico
O diagnóstico pode ser feito a partir da histó-
A incidência das pneumonias de aquisição intra- ria e do exame clínico, devendo ser confirmado com
-hospitalar (PAH) varia de 16% a 29% dos pacientes raio X de tórax, se houver possibilidade. Os outros
pediátricos hospitalizados. As PAH representam 10% a exames laboratoriais são indicados de acordo com a
15% de todas as infecções hospitalares. A mortalidade, gravidade do paciente ou se a complexidade do caso
nesta situação, é muito elevada, variando entre 20% exigir. Os sinais e sintomas mais frequentes são: tos-
a 70% dos casos, dependendo do agente agressor e da se, febre, taquipneia, dispneia, tiragem intercostal
doença de base do hospedeiro. Os fatores de risco para ou subcostal e batimentos de asa de nariz. As mani-
PAH incluem internação em unidade de terapia intensi-
festações clínicas variam de acordo com a idade do
va, intubação, queimaduras extensas, cirurgia e doença
paciente, a extensão da doença e o agente etiológi-
crônica de base. Os agentes relacionados às PAH são
co. A apresentação clássica da pneumonia bacteriana
mais virulentos. Os vírus, particularmente o VSR, são
caracteriza-se pela presença de febre de início súbito,
agentes comuns de infecção respiratória nosocomial.
frequentemente acompanhada de calafrios, tosse e
As bactérias gram-negativas são responsáveis por 50%
taquipneia. Estes sintomas costumam ser precedidos
a 90% dos casos e o S. aureus, particularmente os resis-
tentes à oxacilina, podem atingir cerca de 10% a 20% por infecção de vias aéreas superiores (IVAS), com
dos casos. Dentre as bactérias gram-negativas, estão febre baixa e rinorreia. A frequência respiratória
o grupo das enterobactérias (E. coli, Klebsiella pneumo- (FR) é o sinal mais simples para suspeitar-se do
niae, Salmonella sp, Shigella sp, Enterobacter sp, Serratia diagnóstico de pneumonia, devendo ser avalia-
sp, Proteus sp, Citrobacter sp, etc.) e Pseudomonas sp. A da com a criança tranquila, se possível dormin-
E. coli, Klebsiella pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa do, durante um minuto, e por duas vezes. Se há
são as bactérias gram-negativas predominantes e estão broncoespasmo associado, recomenda-se medicação
associadas a alta mortalidade. O S. aureus e o S. epider- broncodilatadora, seguida de nova reavaliação. São
midis são as bactérias gram-positivas mais comuns. sugestivas de pneumonia:
Outros agentes incluem fungos (Candida e Aspergillus),
citomegalovírus e P. jiroveci. FR ≥ 60/min em crianças < de 2 meses
FR ≥ 50/min em crianças de 2 a 11 meses
FR ≥ 40/min em crianças de 1 a 5 anos
A taquipneia mostrou-se, segundo vários auto-
Etiopatogenia res, um excelente sinal clínico preditivo de pneumo-
O trato respiratório inferior normalmente se nia, assim como sua ausência mostrou-se útil para
mantém estéril pela ação de mecanismos fisiológicos afastar a presença de pneumonia. Lembramos que a
de defesa, como o sistema mucociliar, as propriedades taquipneia é também uma manifestação de asma e

SJT Residência Médica – 2016


66
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

bronquiolite, sendo que o diagnóstico diferencial com


sibilância requer, além de avaliação clínica (sibilos, ex-
Diagnóstico etiológico das
piração prolongada), a realização de raio X de tórax. pneumonias agudas
É difícil a diferenciação clínica entre as pneumo- O diagnóstico etiológico das pneumonias agudas
nias virais e bacterianas. As pneumonias virais geral- adquiridas na comunidade continua representando
mente têm um início mais gradual, e os sintomas mais um grande desafio, a despeito dos significativos avan-
comuns incluem tosse, coriza e febre baixa. Podem ser ços tecnológicos da medicina, dada a considerável di-
verificados sibilos em pneumonias virais ou por mico- versidade de agentes envolvidos e a dificuldade de ob-
plasma, assim como em crianças com asma. tenção de material das vias aéreas, representativo do
foco pneumônico. Sinais clínicos específicos, culturas
A ausculta pulmonar pode detectar estertores crepi- de vias aéreas superiores, índices laboratoriais de in-
tantes localizados ou generalizados, sendo sempre mais flamação e sinais radiológicos peculiares apresentam
difícil localizar um processo pneumônico nas crianças fraca correlação com o agente etiológico. Além disso,
menores. Podemos também encontrar sinais clássicos de a diferenciação entre colonização e infecção ainda
consolidação pulmonar ou de derrame pleural. Devem representa um obstáculo, e inexistem métodos con-
ser cuidadosamente observados alguns sinais de fiáveis para uso rotineiro na identificação de alguns
maior gravidade, indicadores de terapêutica mais agentes etiológicos de papel significativo nas pneumo-
intensiva ou internação hospitalar, assim como: nias adquiridas na comunidade em crianças.
toxemia, presença de tiragem, gemido, prostração ou
Os métodos para diagnóstico etiológico das
agitação acentuadas, cianose, palidez, convulsões, ap-
pneumonias adquiridas na comunidade podem ser
neias, vômitos, dificuldade em engolir líquidos, hipoter-
divididos em métodos radiológicos, microbiológicos,
mia, desidratação e sinais semiológicos de condensação
imunológicos e de detecção do DNA do patógeno.
intensa ou derrame pleural. Outros fatores também
devem ser considerados para classificação de uma
pneumonia como grave: idade < 2 meses, desnutrição Métodos radiológicos
importante, pneumopatias crônicas, fibrose cística, imu-
Raio X de tórax: confirma o diagnóstico clínico e
nodeficiências congênitas ou adquiridas, neuromiopa-
define a extensão da pneumonia, sendo particularmen-
tias crônicas, drepanocitose ou cardiopatias. te importante para os lactentes menores de seis meses
De acordo com o Manual de Normas para As- de idade, grupo em que a correlação da semiologia com
sistência e Controle das IRA, a criança que vem ao a radiologia é difícil. Quando tecnicamente bem reali-
atendimento com queixas de tosse ou dificuldade para zado, permite também a avaliação do padrão das con-
respirar deve ser avaliada clinicamente quanto aos sinais densações, contribuindo para o raciocínio etiológico.
de risco de vida e em relação aos sinais prevalentes para o Podemos afirmar que, classicamente, as pneumo-
nias bacterianas estão associadas a consolidações
diagnóstico de pneumonia e de sua gravidade. A conduta
lobares, porém podem também, em determinadas
será decidida de acordo com essa avaliação, dependendo situações, estar associadas a infiltrados peri-hila-
da faixa etária, considerando-se sempre como graves as res, segmentares, intersticiais ou nodulares, que
pneumonias em crianças menores de dois meses. costumam ser achados em pneumonias virais ou
por Mycoplasma e Chlamydia. As consolidações al-
veolares, segmentares ou lobares, com broncogramas
aéreos, são geralmente de etiologia bacteriana, mais
A- Criança menor de dois meses com frequentemente causada por pneumococo ou hemó-
tosse ou dificuldade para respirar: filos. As imagens de broncopneumonia são tam-
bém mais características de etilologia bacteriana,
� SEM tiragem subcostal e SEM taquipneia (FR < principalmente pelo estafilococo. Nas pneumonias
60/min) = NÃO É PNEUMONIA – (IVAS). que acompanham quadros de sepse por essa bactéria,
� COM tiragem subcostal e/ou FR > 60/min = são descritas imagens radiológicas bilaterais como “flo-
PNEUMONIA GRAVE = internação. cos de algodão”. Os infiltrados intersticiais com acen-
tuação dos feixes broncovasculares, geralmente com
graus variáveis de hiperinsuflação e/ou faixas de ate-
B- Criança de dois meses a cinco anos lectasias, estão presentes nas pneumonias virais ou por
com tosse ou dificuldade para respirar: Mycoplasma. Além disso, pneumonias virais podem es-
� SEM tiragem subcostal e SEM taquipneia (FR < tar associadas a consolidações lobares (atelectasias ou
60/min) = NÃO É PNEUMONIA – (IVAS). coinfecção bacteriana). Apesar desses conhecimentos
consolidados através das observações clínico-radiológi-
� SEM tiragem e FR > 50/min (2 a 12 meses) e FR > cas, a sensibilidade do exame radiológico em prever a
40/min (1 a 5 anos) = PNEUMONIA – ambulatório. etiologia das pneumonias foi variável em diversos estu-
� COM tiragem e FR > 50/min (2 a 12 meses) e FR dos realizados, sendo maior a dificuldade nos pacientes
> 40/min (1 a 5 anos) = PNEUMONIA GRAVE – menores, particularmente nos lactentes. Algumas ima-
internação. gens, como derrame pleural ou pneumatoceles, podem

SJT Residência Médica – 2016


67
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

permanecer por períodos maiores (meses ou até anos).


É indiscutível o papel da radiologia no diagnóstico e
seguimento das complicações pleuropulmonares que
podem acompanhar as pneumonias. As pneumatoce-
les são mais frequentes nas pneumonias agudas
das crianças do que dos adultos e podem tornar-
-se mais evidentes na fase de resolução das con-
solidações, sem significar sinal de piora, devendo
ser considerada, portanto, como evolução, e não
complicação de uma pneumonia. A evolução das
pneumatoceles deve ser observada com cuidado, e seu
desaparecimento estará na dependência da resolução
da infecção. Para a avaliação da presença de derrame
pleural e de sua extensão, deve ser solicitado raio X com Figura 5.4  Pneumonia intersticial.
a criança sentada ou em pé, solicitando-se também raio
X em decúbito lateral. O ultrassom pleural acrescenta
maiores detalhes no estudo dos derrames pleurais por
definir com maior precisão seu volume, localização e
presença de septações, orientando também a punção Métodos microbiológicos
pleural. A tomografia computadorizada e a ressonância O método microbiológico clássico de cultivo do
magnética também podem demonstrar a localização patógeno ainda é bastante utilizado, mas sua valori-
precisa e a extensão de uma anormalidade pulmonar,
zação depende fundamentalmente do sítio de origem
melhorar a visualização de um abscesso ou de sua su-
perfície, além de permitir a visualização de mediastino do material cultivado, já que o cultivo de amostras
e outras estruturas intratorácicas. das vias aéreas superiores não reflete, de maneira sa-
tisfatória, a colonização do foco pneumônico nas vias
aéreas inferiores. Esta falta de correlação entre as
culturas de vias aéreas superiores e inferiores ocorre
especialmente para os patógenos bacterianos como o
S. pneumoniae ou H. influenzae, mas existem exceções,
como no caso da fibrose cística. São considerados ma-
teriais de maior representatividade do foco pneumô-
nico amostras de biópsia pulmonar (obtidas através
de toracotomia ou punção por agulha), líquido pleural,
sangue (demonstrando a ocorrência de bacteremia) e
lavado broncoalveolar, desde que sejam respeitados
os critérios de cultura quantitativa e metodologia de
coleta adequada.
Figura 5.2  Raio X com imagem de pneumonia lobar
à esquerda.
Biópsia pulmonar a céu aberto
Utilizada em situações especiais, como nos casos
de pneumonias graves adquiridas na comunidade e
com má evolução, a despeito da terapêutica empírica,
pneumonias graves em imunodeprimidos ou pneumo-
nias nosocomiais graves sem agente etiológico iden-
tificado. Representa uma maneira invasiva, porém de
alta positividade e de grande representatividade do
processo infeccioso pulmonar.

Biópsia transbrônquica
É um procedimento invasivo que pode trazer
informações, como a biópsia pulmonar, mas as com-
plicações também são significativas e existe a desvan-
tagem de menor quantidade de tecido para análise
histológica e impossibilidade de acesso a regiões mais
Figura 5.3  Broncopneumonia bilateral. periféricas do parênquima pulmonar.

SJT Residência Médica – 2016


68
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Punções pulmonares aspirativas Métodos sorológicos


Foram bastante utilizadas em países desenvolvi- A sorologia para os diversos agentes etiológicos é
dos na década de 1970 e muito contribuíram para o co- um método muito utilizado nos estudos epidemiológi-
nhecimento da etiologia das pneumonias em crianças, cos, mas com utilidade prática reduzida no dia a dia. A
mas o risco inerente ao procedimento (pneumotórax, necessidade de duas amostras para demonstrar soro-
pneumomediastino, enfisema subcutâneo e hemopti- conversão representa um dos grandes obstáculos para a
se) impede sua utilização rotineira como método diag- utilização mais ampla do método sorológico na prática
clínica. Além disso, a detecção de resposta sorológica
nóstico. A cultura do aspirado pulmonar é positiva em
a polissacarídeos capsulares bacterianos em crianças
cerca de 50% a 60% dos casos.
pequenas é conhecidamente difícil. Os métodos soro-
lógicos representam ainda um recurso valioso para o
Líquido pleural diagnóstico de infecções por Mycoplasma pneumoniae
e Chlamydia pneumoniae. Atualmente, técnicas de Elisa
A presença de um exsudato parapneumô- para identificação de IgM anti-Mycoplasma pneumoniae
nico aumenta consideravelmente a chance de se podem dispensar a realização da segunda coleta. Vale
isolar o agente etiológico em cultura, com positi- ressaltar que a técnica de fixação de complemento não é
vidade que varia de 50% a 70%. Na prática clínica, adequada para o diagnóstico de infecção por Chlamydia
entretanto, observa-se baixa positividade decorrente pneumoniae, pois há reação cruzada com outras espécies
do uso frequente de antibióticos antes da abordagem do gênero, como Chlamydia trachomatis. A técnica mais
do derrame pleural. No líquido pleural devem ser rea- indicada neste caso, por ser espécie-específica, é a mi-
lizados os seguintes exames: bacterioscopia, cultura, croimunofluorescência (MIF).
citometria total e diferencial, pH, glicose, proteínas e
DHL. Tem sido relatada positividade de 60% a 80% Detecção de antígenos
nas culturas de empiema em pacientes que não rece-
beram antibioticoterapia prévia. A detecção de antígenos bacterianos através de
métodos imunológicos é uma maneira de identificar a
etiologia sem depender da viabilidade do patógeno, ou
Hemograma e hemocultura seja, não sofre influência do uso prévio de antibióticos.
Outra grande vantagem destes métodos é a rapidez, já
Realizados inicialmente para auxiliar no diag- que, dependendo da técnica escolhida, o resultado pode
nóstico das pneumonias comunitárias em crianças, ser obtido em poucas horas. Vêm sendo utilizados em
devem ser solicitados nas pneumonias que requerem amostras de líquor, líquido pleural e urina, para identi-
hospitalização. As hemoculturas são um método mui- ficação de bactérias como o S. pneumoniae, H. influenzae
to confiável, porém de baixa positividade, variando de tipo B e S. aureus. Entre as técnicas utilizadas, podemos
10% a 35% dos casos internados. Sua grande limitação citar a aglutinação pelo látex, contraimunoeletroforese
reside na baixa ocorrência de bacteremias entre os pa- (CIE) e Dot-Elisa. Além dos antígenos bacterianos, a
cientes com pneumonia aguda. identificação de antígenos virais em vias aéreas supe-
riores representa grande utilidade para o diagnóstico
das infecções virais. A imunofluorescência direta, para
Lavado broncoalveolar detecção de vírus em swab ou lavado nasal, apresenta
As culturas do material obtido através de lava- sensibilidade mínima de 85% para VSR, parainfluenza,
do bronco-alveolar representam um modo de grande influenza A e B e adenovírus.
utilidade para investigação etiológica, especialmente
nas pneumonias nosocomiais e em imunodeprimidos. Marcadores de resposta inflamatória
Existe a possibilidade de contaminação do lavado com
A impossibilidade de se diferenciar infecções vi-
micro-organismos presentes nas vias aéreas superio-
rais de bacterianas com base em aspectos clínicos e ra-
res. A cultura deve ser quantitativa, valorizando-se o
diológicos de crianças com pneumonia tem motivado
crescimento bacteriano superior a 100.000 UFC/mL,
a procura por marcadores inflamatórios capazes de
ou encontro de patógenos menos frequentes, como
auxiliar a decisão terapêutica inicial. São bem conhe-
micobactérias, ou oportunistas, como o P. carinii. cidas as limitações da contagem de leucócitos em san-
gue periférico e da velocidade de hemossedimentação
Aspirado traqueal (VHS) entre as infecções virais e bacterianas. A prote-
ína C-reativa é um marcador inflamatório já tes-
Não é recomendado na prática clínica em pediatria, tado com sucesso na avaliação da criança febril
pelo risco de complicações e pela fraca associação com a sem foco infeccioso identificado. Vários estudos
colonização das vias aéreas inferiores, especialmente em têm demonstrado, entretanto, que crianças com in-
pacientes com mais de 24 horas de hospitalização. fecção bacteriana podem apresentar valores normais à

SJT Residência Médica – 2016


69
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

admissão, e alguns vírus, como adenovírus e influenza, prometidas. As amostras de urina são melhores que as
podem suscitar grandes respostas inflamatórias, re- de soro, e as técnicas utilizadas são a aglutinação no
sultando em altos níveis de proteína C-reativa, suges- látex e a contraimunoeletroforese. O desenvolvimen-
tivos de infecção bacteriana. A Interleucina 6 (IL-6) é to de técnicas de diagnóstico viral rápido também pro-
outro marcador inflamatório já avaliado em infecções piciou o diagnóstico dos agentes virais em poucas ho-
respiratórias, evidenciando-se níveis aumentados ras, com orientação terapêutica adequada do paciente,
em adultos com pneumonia. Outro estudo demons- evitando o uso desnecessário de antibióticos e permi-
trou níveis de IL-6 mais elevados em infecções por S. tindo medidas imediatas de controle da disseminação
pneumoniae do que nas causadas por M. pneumoniae. hospitar da infecção. Infelizmente, estão ainda pouco
A produção de IL-6, por outro lado, parece ser funda- disponíveis em nosso meio.
mentalmente local, e os níveis séricos de IL-6 podem
Nos pacientes imunodeprimidos, devido à diver-
não representar um bom meio de diferenciar infecções
sidade etiológica e à possibilidade de progressão rápi-
virais de bacterianas. A pró-calcitonina (PCT) é um
da da pneumonia, o conhecimento preciso do agente
marcador inflamatório de utilização mais recen-
é muito importante para a terapêutica específica, e os
te e já foi estudada em pacientes com sepse bac-
métodos diagnósticos utilizados podem ser: hemocul-
teriana, no diagnóstico precoce de infecções bac-
turas, contraimunoeletroforese de fluidos biológicos,
terianas, no período neonatal e na diferenciação
exame bacteriológico direto, culturas e citológico de
entre meningite viral e bacteriana.
material aspirado (traqueal, lavado broncoalveolar e
punção transtorácico-pulmonar) ou escarro induzido
Métodos de detecção do DNA (crianças maiores), exame bacteriológico do líquido
pleural, estudos sorológicos especiais e, se necessá-
Provavelmente representam o recurso de maior
rio, a biópsia pulmonar, considerada “padrão-ouro”
potencial para o diagnóstico etiológico das pneumo-
para esses pacientes, comparada aos outros métodos
nias agudas. Sua principal utilização é no diag-
nóstico de patógenos de isolamento mais difícil diagnósticos. Nos processos pneumônicos difusos o
em meios de cultura ou sorologia indisponível. fragmento pode ser retirado da língua e, nos demais, o
Podem ser divididos em métodos de hibridização com local será indicado por exames radiológicos, se possí-
sondas e métodos de amplificação do DNA, cuja técni- vel pela tomografia computadorizada. A toracoscopia
ca mais utilizada é a reação em cadeia da polimerase com vídeo facilita o procedimento em crianças maio-
(PCR). Os métodos de hibridização com sondas apre- res e que não estejam em ventilação mecânica.
sentam desempenho muito semelhante aos métodos Na pneumonia comunitária grave, que necessita
de dectecção de antígenos. Existem métodos de hi- de tratamento intensivo, e nas pneumonias de origem
bridização disponíveis no mercado para identificação hospitalar, também se justificam os mesmos esforços
de alguns vírus e bactérias, como o M. pneumoniae, L. no diagnóstico etiológico.
pneumophila e C. trachomatis.
Os métodos de amplificação do DNA oferecem
a grande vantagem do aumento da sensibilidade para
identificação de patógenos virais, bacterianos e fún-
Tratamento
gicos. São métodos rápidos e complexos, mas sua uti- Em 1997, foi publicado pelo Ministério da Saúde
lização é crescente. Independem da viabilidade do o manual de tratamento das pneumonias em hospitais
patógeno, podendo identificar espécies ou genes de de pequeno e médio portes, visando complementar as
orientações também para os pacientes internados por
resistência. Métodos de PCR já foram avaliados para
pneumonia com os objetivos de:
identificação de diversos vírus respiratórios, citomega-
lovírus, S. pneumoniae, M. pneumoniae, C. pneumoniae, 1- Reduzir a mortalidade em menores de cinco
anos por infecção respiratória aguda, em especial por
L. pneumophila, B. pertussis, M. tuberculosis e S. aureus
pneumonia.
resistente à oxacilina, P. carinii, C. albicans e Aspergillus
sp, entre outros. Vírus respiratórios, como rinovírus 2- Reduzir o número de casos graves e complicações
e coronavírus, são difíceis de isolar em cultura, e não de infecções de vias respiratórias superiores e inferiores.
existem testes disponíveis para detecção de antígenos; 3- Diminuir o uso inadequado de antibióticos e
a técnica de PCR é a única maneira de investigar estas outros medicamentos em IRA.
etiologias adequadamente. Do mesmo modo, o méto- As pneumonias sem sinais de gravidade devem ser
do de PCR pode ser de grande utilidade no diagnóstico tratadas no ambulatório, com consulta de revisão clí-
etiológico das pneumonias “atípicas”, na identificação nica obrigatória, agendada com 48 horas. Na consulta
de M. pneumoniae, C. pneumoniae e L. pneumophila. inicial, os familiares devem ser orientados para tentar
garantir aporte alimentar e hídrico, manter as vias res-
Os exames rápidos para detecção de antígenos piratórias altas limpas de secreções, usar corretamente
bacterianos ou anticorpos, se disponíveis, devem ser os broncodilatadores, se necessários, e, muito impor-
realizados principalmente nos pacientes com uso pré- tante, reconhecer os sinais de agravamento do quadro e
vio de antibióticos, pois as culturas poderão estar com- quando retornar com urgência ao atendimento.

SJT Residência Médica – 2016


70
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Os antibióticos de escolha para o tratamento das pneumonias bacterianas nas crianças acima de dois meses
de idade que se decidiu ser ambulatorial serão dirigidos aos germes prevalentes, S. pneumoniae e H. influenzae,
sendo recomendada a penicilina procaína, IM, ou a amoxicilina por via oral, por 7 a 10 dias. Na consulta de reava-
liação, se há melhora clínica, o esquema é mantido e, se não há melhora, mas não existem sinais de agravamento,
podemos trocar por amoxicilina mais clavulanato ou cefuroxima, continuando o tratamento ambulatorial. Se o
quadro clínico evidenciar sinais de piora, é recomendada a internação hospitalar ou em unidade de curta perma-
nência para observação clínica, realização de exames e decisão do tratamento, que vai depender da gravidade e
da presença de complicações. Nos pacientes nos quais há suspeita de pneumonia por Mycoplasma, a escolha do
antimicrobiano recairá sobre os macrolídeos, como o eritro, azitro e claritromicina. Os novos macrolídeos são de
administração mais fácil, facilitando a adesão ao tratamento, porém de uso limitado pelo custo. Os macrolídeos
podem ser boa opção para o tratamento de pneumonias em escolares e adolescentes, com quadros clínicos com-
patíveis com pneumonia pneumocócica de pouca gravidade. A eritromicina também é o antibiótico de escolha
para pneumonia afebril do lactente causada por Chlamydia trachomatis, assim como pneumonias por C. pneumo-
niae. Caso a criança necessite ser hospitalizada, a opção inicial para a pneumonia comunitária será a penicilina
cristalina endovenosa (ou ampicilina) e, nas crianças menores de dois meses ou lactentes pequenos com diarreia
ou infecção urinária associadas, acrescentar um aminoglicosídeo, também endovenoso. Orientar condutas de su-
porte geral como: jejum nas primeiras 6 a 12 horas, dependendo da gravidade do caso, para prevenção de vômitos,
correção de distúrbios eletrolíticos, tratamento da hipoxemia e manutenção das vias aéreas sem secreções. Tentar
encaminhar os exames laboratoriais, principalmente os bacteriológicos, antes de iniciar a antibioticoterapia.
Devemos ressaltar que a conduta cirúrgica adequada nos casos de derrame pleural é essencial para a boa evo-
lução do paciente, evitando trocas precipitadas de antibióticos e contribuindo para a recuperação anatômica e fun-
cional mais rápida. Também é importante lembrar que a febre é mais persistente nas pneumonias com derrame e, se
a drenagem está funcionando bem e o paciente está apresentando melhora clínica e radiológica, podemos aguardar
cerca de dez dias, sem necessidade de alteração do tratamento antimicrobiano. Nas pneumonias comunitárias gra-
ves, a associação de antibióticos é indicada desde o início, como oxacilina e cloranfenicol, com alteração do esquema
na dependência da evolução do paciente e dos exames bacteriológicos. Outra opção é o uso de cefalosporinas de
terceira geração, como o ceftriaxone associado à oxacilina. Os pacientes com pneumonias virais internados por
preencherem critérios de gravidade são os que necessitam de oxigenoterapia adequada, às vezes até intensivamente
com uso de ventilação mecânica em UTI. Quando o agente é o vírus sincicial respiratório e há gravidade clínica, pode
haver indicação de ribavirina, principalmente se há patologia de base como displasia broncopulmonar ou cardiopatia
congênita. Para a pneumonia pelo citomegalovírus, é feito tratamento com ganciclovir. As condutas nas situações
especiais, como das pneumonias dos pacientes imunocomprometidos adquiridas no ambiente hospitalar e pneumo-
nias aspirativas serão abordadas de acordo com suas mais prováveis etiologias, enquanto não se identifica o agente.
A maioria das pneumonias, desde que bem conduzidas, não determina sequelas a longo prazo. Entretanto,
infecções repetidas podem deixar sequelas anatômicas e funcionais, e os pacientes com pneumonias persisten-
tes ou de repetição devem ser encaminhados para diagnóstico em serviços especializados, sendo fundamental o
conhecimento de que a investigação adequada com intervenção oportuna pode evitar, para o futuro, bronquiec-
tasias, fibroses e outras pneumopatias crônicas.

Antibioticoterapia empírica inicial de PAC de acordo com características clínicas e radiológicas


Características radiológicas Avaliação clínica Tratamento
Pneumonia bilateral Sem toxemia e com sintomas de Sem antibiótico. Considerar uso de antivi-
infecção viral rais na suspeita de Influenza
Toxemia leve Amoxicilina
Na suspeita de pneumonia atípica: macro-
lídeos
Toxemia, requerendo hospitali- Oxacilina + ceftriaxona ou cefotaxima
zação Na suspeita de pneumonia atípica: macro-
lídeos*
Pneumonia bilateral com derrame = Pneumonia bilateral + hospitalização
pleural
Pneumonia lobar Sem toxemia Amoxicilina
Toxemia Penicilina G cristalina ou ampicilina
Pneumonia lobar com derrame Penicilina G cristalina ou ampicilina
pleural
Tabela 5.2  *Nestes casos, a azitromicina e claritromicina devem ser usadas preferencialmente por via EV.

SJT Residência Médica – 2016


71
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

Terapia antimicrobiana definitiva para pneumonias adquiridas na comunidade


Patógeno bacteriano Terapêutica parenteral Terapêutica alterna- Terapêutica oral
de escolha tiva
Pneumococo sensível à peni- Penicilina ou ampicilina Ceftriaxona, cefuroxima Amoxicilina
cilina
Pneumococo resistente Ceftriaxona, cefotaxima Vancomicina Amoxicilina em dose elevada
Streptococcus pyogenes Penicilina Ceftriaxona, cefuroxima Amoxicilina
Staphylococcus aureus Oxacilina Clindamicina, cefaloti- Cefalexina, clindamicina
na, Cefazolina, Cefuro-
xima, amoxacilina-cla-
vulanato,
ou ampicilina-sulbac-
tam
S. aureus resistente à oxa Vancomicina ou teicopla- Linezolida* Linezolida*
nina
H. influenzae tipo B e não ti- Ceftriaxona, cefuroxima, Amoxicilina-clavulanato, cefuroxi-
páveis Clavulanato ma, azitromicina, claritromicina
M. pneumoniae, C. pneumoniae Azitromicina ou claritromi- Eritromicina, azitromicina ou
e L. pneumophila cina alaritromicina
Tabela 5.3  *Droga não licenciada para crianças.

O problema da resistência dos pneumococos aos antimicrobianos


Vários estudos epidemiológicos realizados em diferentes continentes, países e regiões relataram, nas últi-
mas duas décadas, um aumento progressivo na prevalência de cepas de pneumococos resistentes à penicilina.
Classicamente, a definição de resistência é baseada na concentração inibitória mínima (MIC) dos pneumococos
à penicilina. O principal mecanismo de resistência é a produção de uma proteína de ligação à penicilina alterada,
que reduz sua afinidade às penicilinas e causa uma resistência cruzada com outros antibióticos betalactâmicos,
incluindo cefalosporinas de terceira geração e carbapenem. Os dados do Centers for Disease Control e Prevention
(CDC), dos Estados Unidos, mostram que a prevalência de pneumococos multirresistentes está aumentando.
Um pequeno número de sorotipos é responsável pelas cepas multirresistentes, e as novas vacinas conjugadas
protegem contra a maioria das cepas de pneumococos resistentes. Trabalhos mostram que não houve diferença
na evolução entre as crianças com pneumococos sensíveis e não sensíveis à penicilina. Outros estudos também
demonstraram que as características clínicas e a evolução de pneumonias, com pneumococos sensíveis e não
sensíveis à penicilina, não diferem, e que, nos casos de resistência, a terapêutica com agentes betalactâmicos é
eficaz. As cefalosporinas de segunda e de terceira geração (ceftriaxona, cefotaxima e cefuroxima) são adequadas
para o tratamento das infecções invasivas, fora do sistema nervoso central (SNC), causadas por pneumococos de
alta resistência à penicilina.

Indicações de internação
� Idade < 2 meses.
� Toxemia.
� Prematuridade ou baixo peso ao nascer.
� Falha na terapêutica ambulatorial.
� Insuficiência respiratória.
� Sinais de hipoxemia.
� Comorbidades: anemia, cardiopatia, desnutrição grave, outras.
� Recusa em ingerir líquidos ou desidratação.
� Convulsões, apneias.
� Sinais radiológicos de gravidade: derrame pleural, pneumatoceles, abscesso.
� Problema social.

SJT Residência Médica – 2016


72
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A punção deve ser realizada com a criança sentada,


Complicações bem contida, na altura do 5º-6º espaço intercostal na
1- Derrame pleural: é o acúmulo de líquido linha axilar média ou posterior e agulha calibrosa, sen-
entre os folhetos visceral e parietal da pleura, sendo do introduzida pela borda superior da costela inferior,
uma das complicações mais frequentes, ocorrendo em sempre com seringa fechada ou sob aspiração. Como já
mais de 40% dos pacientes com pneumonia. O envol- foi citado, o material obtido, sempre que possível,
vimento pleural está associado a uma maior morbida- deve ser enviado para exame: bacteriológico (bac-
de e mortalidade. O empiema pleural, a efusão pleural terioscópico, cultura + antibiograma); contraimunoe-
purulenta, ocorre mais raramente, complicando 1% a letroforese; látex; dosagem de proteínas totais, DHL
2% das pneumonias na criança. Também nestes ca- e glicose; pH; ADA e citológico. Concomitantemente,
sos a clínica e a radiologia não permitem diagnóstico solicitar: hemograma, hemocultura, dosagem de pro-
etiológico. O quadro clínico dos derrames parapneu- teínas séricas, DHL, glicose e, quando necessário, ga-
mônicos sobrepõe-se ao das pneumonias, podendo sometria arterial em pacientes com suspeita clínica de
ocorrer acentuação de sintomas com febre diária per- acidose, para interpretação adequada do pH pleural.
sistente, queda do estado geral, toxemia e dispneia. Os Os derrames são classicamente classificados em exsu-
sintomas adicionais estão relacionados diretamente datos e transudatos. Nos transudatos não há compro-
ao acometimento pleural e incluem dor torácica que metimento da superfície pleural, e sim uma repercus-
piora com a tosse e a inspiração profunda, que pode são local de patologia sistêmica. Nos exsudatos, que
ser modificada com mudança de posição e decúbito são a grande maioria dos derrames pleurais na infân-
do paciente e que, por irradiação, pode ser referida no cia, há comprometimento da superfície pleural. Entre
ombro ou abdome. Pode ocorrer distensão abdominal eles, os mais frequentes são os processos infecciosos
em consequência de íleo infeccioso. Na radiografia pleuropulmonares (derrames parapneumônicos). Os
de tórax em projeção póstero-anterior dos pequenos empiemas são caracterizados por: citológico com
derrames, observa-se obliteração do ângulo costo- predomínio de neutrófilos, os valores de ADA geral-
frênico. Os derrames moderados ascendem ao longo mente aumentados (> 40 u/L) e glicose baixa.
da parede torácica e apagam a imagem diafragmática Nas crianças que receberam antibióticos ante-
formando uma imagem triangular radiopaca com base riormente, a pesquisa de antígenos capsulares (CIE e
no diafragma. O apagamento da cúpula diafragmática látex) é de grande utilidade, pois podem permanecer
também pode ser observado na radiografia em perfil. no líquido pleural até por 30 dias após a introdução da
Na suspeita de derrame parapneumônico, deve ser re- antibioticoterapia.
alizada adicionalmente uma radiografia de tórax com
raios horizontais, com o paciente em decúbito lateral Diagnóstico diferencial entre exsudato e tran-
do lado acometido. Nessa situação, pode-se demons- sudato
trar o deslocamento do líquido (desde que o derrame
Transudato Exsudato
não esteja loculado) e dos derrames subpulmonares,
localizados no segmento diafragmático do espaço Proteína líquido pleural < 3 g / 100 > 3 g / 100
entre a base do pulmão e o diafragma. Nos grandes mL mL
derrames, observa-se opacidade homogênea em todo Proteína líquido pleural < 0,5 > 0,5
o hemitórax, deslocamento da imagem cardíaca e do / proteína plasma*
mediastino para o lado oposto, preenchimento isola- DHL líquido pleural < 200 UI > 200 UI
teral dos espaços intercostais e rebaixamento diafrag- DHL líquido pleural / < 0,6 > 0,6
mático. O piopneumotórax pode ser documentado DHL plasma*
radiologicamente quando existe imagem com nível de Tabela 5.4  *Critérios de Light.
separaçào entre ar e líquido e que se estende na porção
lateral do hemitórax. A tomografia computadorizada
pode ser realizada nos casos em que houver dúvida
no diagnóstico diferencial com abscesso pulmonar.
A ultrassonografia de tórax pode detectar derrames
pleurais muito pequenos, impossíveis de serem vi-
sualizados radiologicamente. É possível, por meio da
ultrassonografia, fazer uma estimativa do volume de
líquido acumulado, seu aspecto e conteúdo fibroso,
determinar sua localização e a presença de septações
com formação de lojas, bem como orientar o local ideal
para a toracocentese. Pode ainda fornecer informações
importantes com relação à evolução clínica, eficiência
da drenagem e avaliação do espessamento pleural.
Todos os pacientes devem ser puncionados,
não somente para diagnóstico etiológico, mas
também, em muitos casos, como medida tera-
pêutica. Constituem exceção apenas os casos de der-
rame pleural mínimo e com antibioticoterapia prévia. Figura 5.5  Pneumonia com derrame pleural à direita.

SJT Residência Médica – 2016


73
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

Tratamento Pneumatoceles: não devem ser consideradas


como complicação e sim como evolução de uma pneu-
Diante da criança portadora de derrame parap- monia. São cavidades aéreas, usualmente pequenas e
neumônico, duas decisões são importantes: a introdu- sem paredes próprias, circundadas por parênquima
ção de uma terapêutica antimicrobiana empírica ade- pulmonar colabado. Resultam da lesão da parede do
quada e a necessidade de drenagem pleural.
brônquio ou bronquíolo, com entrada de ar no inters-
Atualmente, relatos sugerem que o hemófilos e o tício pulmonar que, através de mecanismo valvular,
pneumococo são os mais frequentes agentes causadores disseca as estruturas mais frouxas, formando cavi-
de pneumonias e derrames pleurais, com o pneumococo tações. Pode haver epitelização interna da cavidade,
predominando nos estudos mais recentes. Uma sugestão geralmente com formação de parede fina. As pneuma-
de terapia antibiótica proposta enquanto se aguarda o re- toceles podem ser observadas durante a evolução das
sultado dos exames é a seguinte: pneumonias agudas, principalmente nas de origem
De acordo com a faixa etária: estafilocócica, embora possam estar associadas a qual-
quer agente etiológico, desaparecendo espontanea-
� Crianças < 6 meses: oxacilina + cloranfenicol / mente após 3 meses. Pequenas pneumatoceles podem
cefalosporina 3ª geração. confluir, formando pneumatoceles gigantes.
� Crianças entre 6 meses e 2 anos: ampicilina ou
penicilina cristalina.
� Crianças > de 2 anos: penicilina cristalina.
De acordo com o estado clínico:
� Crianças sem tratamento prévio, sem toxemia
e com bom estado geral: penicilina cristalina ou
ampicilina.
� Crianças com tratamento prévio e/ou toxemia e/
ou envolvimento pulmonar extenso (principal-
mente em menores de 2 anos): oxacilina + cloran-
fenicol / cefalosporina 3ª geração.
São indicações de drenagem pleural: líquido com
sinais de exsudato ou grandes volumes pleurais que
prejudiquem a dinâmica e a função ventilatórias.
2- Abscesso pulmonar: trata-se de processo
supurativo de uma região circunscrita do parên-
quima pulmonar. Vários agentes etiológicos das
pneumonias podem levar à formação de abscesso, Figura 5.6  Abscesso pulmonar em ápice de pulmão
mas o S. aureus é o mais comumente encontrado. esquerdo.
A presença de ar juntamente com o líquido, asso-
ciado à formação da cápsula ao redor do absces-
so, caracteriza a imagem mais típica, facilmente
reconhecida à radiografia de tórax. O tratamen-
to deve incluir uma droga antiestafilocócica, além de
cobertura para os germes habituais de pneumonias
conforme a faixa etária. A antibioticoterapia deve ser
prolongada por pelo menos três semanas, por via pa-
renteral, até que ocorra melhora clínica e radiológica.
Em geral, há boa resolução com o tratamento clínico,
poucas vezes necessitando de abordagem cirúrgica.
3- Pneumotórax: pode estar associado às
pneumonias intersticiais, ao rompimento de
pneumatoceles e a procedimentos relativos à
punção e drenagem pleurais. As pneumonias es-
tafilocócicas podem cursar com piopneumotórax,
devido à ruptura de lesões necróticas na cavidade
pleural, em geral necessitando de drenagem ci-
rúrgica. Um pneumotórax extenso pode necessitar de
drenagem cirúrgica. Figura 5.7  Pneumatoceles em pulmão direito.

SJT Residência Médica – 2016


74
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Diagnóstico diferencial das pneumonias adquiridas na comunidade

Agente etiológico Idade de acometi- Quadro clínico Radiologia Tratamento


provável mento

Streptococcus Todas Quadro agudo bacteria- Pneumonias lobares Sensíveis: Penicilinas


pneumoniae (principalmente no, geralmente pós-IVAS ou segmentares, (cristalina, procaína,
pré-escolares) Febre alta, calafrios, ta- geralmente unilate- V oral), ampicilina,
quipneia, dor pleural ral, broncogramas amoxicilina, cefota-
aéreos xima
Resistentes: cefota-
xima, ceftriaxona,
vanco

Estreptococo do gru- Período neonatal QC ≅ ao pneumo Ne- BCP difusa, grande Penicilina G (2 a 3 se-
po A crose, úlceras, derrames derrame pleural, manas), cefotaxima,
volumosos (serossangui- pneumatocele ceftriaxona e cefuro-
nolentos) xima

H. influenzae Principalmente lacten- Início insidioso, várias Pneumonia lobar, Clavulanato, ceftria-
tes de 3 a 6 meses semanas, tosse, febre porém sem padrão xona, cefuroxima,
típico cefotaxima e cloran-
fenicol

S. aureus 70% < de 1 ano e 30% Início abrupto, evo- Lesões extensas, bila- Oxacilina, clinda, ce-
< de 6 meses desnutri- lução rápida e grave, terais, BCP, absces- fazolina, cefalotina,
dos, imunodeprimidos grande comprometi- sos, pneumatoceles cefalexina, clindamici-
mento do estado geral, (40%), pneumotó- na, cefuroxima
febre alta, toxemia, rax (20%), empiema
sepse (60%), áreas de ne-
crose e cavitação

Agente etiológico Idade de acometimen- Quadro clínico Radiologia Tratamento


provável to

Mycoplasma e Crianças e adolescen- Discreto (crianças <). Pneumonia inters- Macrolídeos (eritro,
Chlamydia pneumo- tes de 5 a 15 anos PI 2 a 3 semanas, início ticial ou BCP. Lobos azitro ou claritromi-
niae arrastado, febre baixa, inferiores (micoplas- cina)
sintomas gripais, cefa- ma)
leia, dores articulares,
artralgia e rash

Klebsiella pneumoniae RN, adultos (alcoóla- Agudo, toxêmico, pros- Consolidação em Cefalosporinas de
tras, DM) tração, sepse lobos superiores, ↑ segunda geração
volume e/ou área de
necrose

Anaeróbios Idosos, neuropatas, Agudo ou subagudo, Focos de consolida- Penicilina G, clofan-


distúrbios de deglu- toxêmico, prostração, ção, área de necrose, fenicol, clindamicina,
tição dor torácica, empiema empiema metronidazol, amoxa
com clavulanato

Vírus (VSR, adenoví- Qualquer idade IVAS, taquipneia, fe- Infiltrado intersticial, Sintomáticos: anti-
rus, rinovírus, corona- bre, desconforto respi- sinais de hiperinsu- térmicos, inalações,
vírus, ratório, cianose, fadiga flação antivirais
parainfluenza influenza,
metapneumovírus

Tabela 5.5

SJT Residência Médica – 2016


75
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

de saliva ou de secreção nasal, proveniente de um in-


Pneumonias “atípicas” divíduo com a doença aguda. Tendo em vista o baixo
contágio do agente, é necessário um contato próximo
entre o indivíduo infectado e a criança suscetível. Des-
sa forma, são frequentes os relatos de epidemias em
Introdução locais fechados e de aglomeração. O período de incu-
As pneumonias atípicas compreendem um gru- bação é de 2 a 3 semanas, após o qual o paciente
po de pneumopatias agudas, geralmente de etiologia passa a apresentar os sintomas da infecção que se
infecciosa, que não são causadas pelos agentes bac- inicia com cefaleia, mal-estar, febre, dor de garganta,
terianos usuais. Em 1938, Reiman usou a expressão rouquidão e tosse, seguidos de acometimento do trato
“pneumonia atípica” para descrever uma forma pou- respiratório inferior. Podem aparecer também mani-
co comum de traqueobroncopneumonia. Esse termo festações extrapulmonares: miringite bolhosa (infre-
continua sendo empregado até os dias de hoje para quente, pode ocorrer em pneumonias causadas por
um grupo de pneumonias com características clínicas outros agentes etiológicos), vômitos e diarreia, exan-
diferentes da pneumonia lobar clássica e típica, em tema cutâneo, meningite asséptica, anemia hemolítica
especial por apresentar manifestações extrapulmona- e icterícia. Aproximadamente 20% das infecções
res como fadiga, náusea, vômito ou dor de garganta.
causadas pelo M. pneumoniae são assintomáticas
De maneira geral, as pneumonias atípicas acometem
e acometem crianças em idade escolar e adultos
todas as faixas etárias indistintamente, causando um
jovens. Os menores de dois anos podem apresentar
quadro clínico variado, normalmente insidioso, mas
de bom prognóstico. No entanto, podem ser respon- doença grave com necessidade de internação e até
sáveis por quadros graves, sobretudo entre os recém- ventilação mecânica. O padrão radiológico associado
-nascidos (RN), imunocomprometidos e portadores às infecções pulmonares causadas por este agente é
de doenças crônicas, principalmente pulmonares, bastante variado, podendo-se observar padrão alve-
cardíacas e neuromusculares. Devemos suspeitar de olar (opacidade homogênea), intersticial (opacidade
pneumonias atípicas quando: heterogênea) ou misto. Laboratorialmente, podemos
realizar: hemograma (inespecífico); cultura com
� o início do quadro for insidioso;
isolamento do agente (secreção de vias aéreas: de
� houver manifestações sistêmicas inespecíficas 7 a 21 dias; o isolamento indica infecção, mas pode
(cefaleia, mialgia, fadiga intensa etc.); não ser aguda); sorologias: Elisa (detecta IgG e IgM,
� tosse seca prolongada; sendo o método mais sensível, específico e rápido),
� dissociação da extensão das manifestações radio- crioaglutinação (avalia a presença de crioaglutininas
lógicas com os achados clínicos ou o exame físico; e é usado para diagnóstico rápido. Embora não sejam
específicas, pois podem estar presentes em infecções
� evolução clínica arrastada, mas sem grande gra-
pelo CMV ou vírus Epstein-Barr, títulos maiores que
vidade;
1/64 são sugestivos de infecção pelo micoplasma); fi-
� resposta inadequada a antibióticos preconiza- xação do complemento (permite a detecção precoce
dos para tratamento da PAC (penicilinas, cefa- da infecção pelo M. pneumoniae. Títulos isolados de
losporinas etc.). IgG maiores ou iguais a 1:256 são indicadores de
infecção recente, quando presentes em duas amos-
tras, colhidas com intervalo de duas a três semanas);
Etiologia imunofluorescência indireta (detecta a presença de
Os agentes etiológicos associados às pneumonias anticorpo específico das classes IgG e IgM. Aumento
atípicas são: do título, em quatro vezes entre duas amostras colhi-
das com intervalo de duas a três semanas, é indicativo
� Mycoplasma sp (o mais frequente)
de infecção); e reação de polimerização em cadeia
� Chlamydia sp (PCR) – detecta antígenos em quantidades reduzidas.
� Legionella species
� Pneumocystis jiroveci (em imunodeprimidos)
� Vírus (VSR, adenovírus, parainfluenza, vírus Varice- Chlamydia sp.
la zoster) Chlamydia são bactérias intracelulares. Existem
três espécies que causam doença nos seres humanos:
Chlamydia pneumoniae, Chlamydia trachomatis e Chla-
Mycoplasma pneumoniae mydia psitaci (associada ao contato com aves).
Foi um dos primeiros agentes identificados como Chlamydia trachomatis: acomete lactentes
responsável pela pneumonia atípica. A infecção ocorre entre a 3ª e a 16ª semanas de vida. As crianças
por meio da inalação de material infectado, gotículas adquirem a infecção por Chlamydia trachomatis em

SJT Residência Médica – 2016


76
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

três momentos: mãe para o RN (intraparto), relações nofluorescência é a mais utilizada clinicamente. A dro-
sexuais (abuso) ou transmissão respiratória (possibi- ga de escolha para o tratamento é a eritromicina por
lidade teórica). Cerca de 40% das crianças, filhas de 10 a 14 dias, assim como claritromicina e azitromici-
mães portadoras da bactéria que nasceram de parto na. A tetraciclina pode ser utilizada em adolescentes.
normal, vão apresentar manifestações oculares, e 3%
a 22% apresentarão doença pulmonar. O quadro clí-
nico inicia-se de modo insidioso, com manifestações Legionella species
de acometimento de vias aéreas superiores (coriza, Existem mais de 40 espécies de Legionella, sen-
obstrução nasal e tosse). A febre é pouco intensa ou do atribuída à Legionella pneumophila a maioria dos
até mesmo ausente. A tosse é seca (paroxística). O casos de pneumonia. Está associada com doença gra-
exame físico geralmente revela um lactente taqui- ve. Pode ocorrer em qualquer faixa etária, sendo mais
dispneico, mas em bom estado geral, sem sinais im- comum em adultos maiores de 30 anos. O raio X de
portantes de acometimento sistêmico. A ausculta é tórax apresenta consolidação, cavitação e der-
pobre, com alguns estertores finos e poucos sibilos. rame pleural. A transmissão ocorre por inalação ou
Radiologicamente, o padrão preferencial é de ingestão de água contaminada. O quadro clínico pode
acometimento intersticial bilateral e difuso, variar com manifestações leves como febre e tosse, até
com sinais de hiperinsuflação pulmonar. Podem um quadro grave de pneumonia com risco de morte.
ocorrer quadros unilaterais e/ou alveolares. A Estão presentes: mialgia, febre, tosse, dor torácica
história prévia de leucorreia durante o período ges- associada a escarro sanguinolento, dor abdominal,
tacional, o parto normal e o relato de conjuntivite vômitos, diarreia, letargia ou delírio. O diagnóstico é
no RN podem sugerir o diagnóstico. Este pode ser feito através da cultura, sorologia ou PCR, assim como
confirmado por meio de isolamento em culturas ce- detecção na urina do antígeno solúvel da Legionella. O
lulares a partir do material coletado de aspirado de tratamento é realizado com eritromicina (ou macrolí-
nasofaringe ou swab de conjuntiva. O hemograma deos mais modernos) por, no mínimo, três semanas. A
pode mostrar eosinofilia e também pode haver associação com rifampicina pode ser considerada
aumento inespecífico de imunoglobulinas. Os eventualmente em pacientes com doença grave,
exames sorológicos – imunofluorescência e ensaio imunocomprometidos ou com evidência de cavi-
imunoenzimático são os mais utilizados no diagnós- tações pulmonares. Outras drogas alternativas utili-
tico, por meio da constatação de títulos de IgG > que zadas são a associação sulfametoxazol-trimetoprima e
1:32 ou da detecção de anticorpos específicos da clas- tetraciclina, doxiciclina e quinolonas nos adolescentes.
se IgM. Porém, a cultura é o melhor e o único método
confiável, com elevada sensibilidade e especificidade.
O tratamento consiste em eritromicina ou sulfame-
toxazol-trimetoprima por 10 a 14 dias. Síndrome da
Chlamydia pneumoniae: causa infecção respi- pneumonia afebril
ratória em humanos de qualquer idade. Pode ser res- Alguns patógenos produzem um quadro de
ponsável por 5% a 20% dos casos de PAC em crianças pneumonia de curso clínico afebril na faixa etária de
e até 10% das pneumonias de adolescentes e adultos duas semanas a seis meses de vida, clinicamente indis-
tratados em ambulatório. A transmissão ocorre por tinguíveis entre si, a não ser pela realização de testes
meio de contato com secreções respiratórias contami- diagnósticos. Os agentes são: Chlamydia trachomatis,
nadas e pode haver associação com outros patógenos, Mycoplasma hominis, Ureaplasma urealyticum, Pneu-
como o M. pneumoniae ou o Streptococcus pneumoniae. mocystis jiroveci, vírus sincicial respiratório, adenoví-
O período de incubação pode chegar a 21 dias, ao final rus e citomegalovírus. O quadro se instala de forma
do qual o paciente apresenta odinofagia, rouquidão, insidiosa e caracteriza-se por tosse seca, às vezes pa-
febre, laringite e tosse que pode ser muito intensa e roxística (coqueluchoide), taquipneia, desconforto
prolongada. Alguns pacientes apresentam faringite e, respiratório leve e estado geral preservado. O padrão
uma a três semanas depois, iniciam quadro de pneu- radiológico mais comum é o infiltrado intersticial bila-
monia. O raio X de tórax é inespecífico e pode apresen- teral, hiperinsuflação e espessamento dos brônquios.
tar padrão intersticial bilateral e/ou alveolointersticial Pequenas atelectasias podem ocorrer. As alterações
e eventualmente presença de derrame pleural. Pode laboratoriais encontradas são leucocitose em 50%
haver acometimento sistêmico com dor abdominal, dos casos e eosinofilia em torno de 30%. A gasometria
diarreia e manifestações clínicas de pancardite. Qua- pode mostrar algum grau de hipoxia. O diagnóstico
dros graves e letais já foram descritos, sobretudo em etiológico baseia-se principalmente em exames soro-
pacientes idosos ou imunocomprometidos. Há vários lógicos (detecção de IgM específica ou demonstração
métodos de detecção da clamídia: isolamento por meio de aumento de 4 vezes nos níveis de IgG específica no
de cultura (mais específico), detecção de antígenos e intervalo de duas semanas). A detecção de P. jirove-
PCR. A pesquisa sorológica pela técnica de microimu- ci se faz por pesquisa direta na secreção do aspirado

SJT Residência Médica – 2016


77
5  Afecções de vias aéreas inferiores: pneumonias na infância

traqueal ou no lavado broncoalveolar. O tratamento influência na etiologia das pneumonias em crianças,


é feito com eritromicina ou claritromicina por 14 dias nas pneumonias adquiridas na comunidade o S. pneu-
(no caso de clamídia e micoplasma). Na suspeita de P. moniae continua sendo uma causa importante em to-
jiroveci, a droga de escolha é o sulfametoxazol-trime- das as faixas etárias, particularmente nos lactentes e
toprim por 14 dias. pré-escolares, tanto em países desenvolvidos quanto
nos em desenvolvimento. Recentemente, M. pneu-
moniae e C. pneumoniae têm sido reconhecidos como
agentes importantes, particularmente em crianças
Conclusões maiores, de quatro a cinco anos de idade. Os estudos
O isolamento dos agentes etiológicos das infec- realizados na Europa e América do Norte demonstra-
ções do trato respiratório inferior, na prática clínica, ram que esses agentes podem ser responsáveis por até
é relativamente complexo, uma vez que existe dificul- um terço das pneumonias adquiridas na comunidade
dade na colheita de material adequado e representa- (PAC) em crianças. Faltam estudos que esclareçam o
tivo do foco infeccioso para análise microbiológica. papel desses agentes em PAC nos países em desenvol-
Frequentemente o tratamento é empírico e baseado vimento. O VSR é um agente importante de pneumo-
nos dados epidemiológicos disponíveis. Os materiais nias agudas, particularmente em lactentes atendidos
relacionados indiretamente com o foco pulmonar, tais em ambulatório ou nos hospitalizados. Nos países em
como sangue, urina e líquido pleural, têm sido utiliza- desenvolvimento, a vacinação contra o H. influenzae
dos para a análise etiológica das pneumonias agudas. tipo B, anteriormente um agente importante de pneu-
Recentemente, novos métodos diagnósticos promis- monias em crianças menores de três anos, teve um
sores, tais como sorologias, detecção rápida de antíge- grande impacto, com queda importante da frequência
nos por métodos imunológicos (aglutinação pelo látex, de pneumonias e de outras infecções por este agen-
testes imunoenzimáticos) e PCR têm sido desenvolvi- te. Algumas bactérias que foram previamente consi-
dos e utilizados em estudos epidemiológicos, e futu- deradas não patogênicas no trato respiratório, tais
ramente devem ser incorporados na rotina. A aplica- como o H. influenzae não tipável e Moraxella catarrha-
ção desses métodos, com finalidade etiológica, tem lis, ocasionalmente têm sido implicadas nas PAC em
grande importância para o conhecimento da doença crianças. O S. aureus e as enterobactérias são agentes
nas diferentes populações e regiões, com o objetivo de etiológicos importantes nas pneumonias e aquisição
definir os melhores esquemas terapêuticos, e para o intra-hospitalar e nos pacientes imunodeprimidos. A
desenvolvimento de vacinas mais adequadas em ter- L. pneumophila, embora seja um agente mais frequente
mos epidemiológicos. Por outro lado, podem ocorrer de pneumonias em adultos do que em crianças, pode
mudanças significativas, através do tempo na predo- causar infecção pulmonar esporadicamente ou em pe-
minância e proporção relativa dos diferentes agentes quenos surtos.
etiológicos, bem como na sensibilidade antimicrobia- Nos estudos de eficácia vacinal, a imunização de
na, consequência da ação dos antimicrobianos intro- lactentes com a vacina conjugada pneumocócica di-
duzidos em períodos diferentes e do impacto na utili- minuiu a incidência de infecção invasiva em 93% dos
zação de vacinas. Através destes métodos, a etiologia casos e de pneumonia em 73%. A vacina pneumocó-
das pneumonias adquiridas na comunidade podem ser cica heptavalente é altamente eficaz na prevenção de
detectadas na maioria dos casos. No entanto, o custo doença invasiva em crianças. A imunização de crianças
desses procedimentos é muito oneroso. Como alter- com as novas vacinas conjugadas para H. influenzae
nativa sujeita a falhas, o tratamento empírico poderia tipo B e pneumococos nos países em desenvolvimen-
ser introduzido baseado nos dados clínicos, epidemio- to poderá ter impacto, a exemplo do que ocorreu nos
lógicos e radiológicos, sem nenhum teste diagnóstico países desenvolvidos, em reduzir consideravelmente a
específico, e se houver resposta adequada, efetua-se a morbidade e a mortalidade por pneumonias agudas,
pesquisa de vírus M. pneumoniae e C. pneumoniae, bem a taxa de hospitalização e os custos em saúde pública
como a pesquisa, quando possível, da sensibilidade nesses países. A disposição dos governantes e sua po-
dos pneumococos aos antimicrobianos. Embora vários lítica de saúde quanto à utilização de novos recursos
fatores como a idade, o estado nutricional, a doença profiláticos no nível populacional poderão ser fatores
de base e os fatores ambientais tenham uma grande determinantes na modificação da situação atual.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

6
Afecções de aéreas inferiores:
o lactente que sibila

A bronquiolite é uma doença respiratória inflama-


Bronquiolite tória aguda que acomete bronquíolos e ocorre em crian-
ças menores de dois anos, caracterizada por um breve
pródromo de rinorreia e tosse, seguido de um primeiro
Introdução episódio de chiado, taquipneia, desconforto respirató-
rio e sinais radiológicos de hiperinsuflação pulmonar.
As infecções respiratórias agudas são responsá-
veis por um elevado índice de atendimento médico Do ponto de vista clínico, a bronquiolite aguda
pediátrico ambulatorial e hospitalar no mundo. Sendo ou bronquiolite viral é uma síndrome infecciosa que se
em sua maioria de etiologia viral, representam impor- apresenta inicialmente no trato respiratório superior
tante causa de morbimortalidade, principalmente en- (como coriza, rinorreia e obstrução nasal) e que pro-
tre crianças menores de cinco anos de idade. O agente gride com manifestações do trato respiratório inferior
mais frequentemente identificado nestas afec- com tosse, dificuldade respiratória, retração costal,
ções é o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), que estertores grossos difusos ou roncos e sibilos. A lite-
apresenta distribuição mundial e circula, prin- ratura americana enfatiza muito mais a presença de
cipalmente, nos meses de inverno. Em adultos, o sibilos que os autores europeus.
VSR se manifesta como uma gripe comum, mas nas Adultos e crianças acima de dois anos de idade
crianças o vírus atinge as vias aéreas inferiores, cau- geralmente apresentam a doença de forma mais bran-
sando bronquiolite (sua mais clássica apresentação), da, envolvendo predominantemente a via respiratória
pneumonia e broncopneumonia. Em crianças com alta com quadro clínico semelhante a um resfriado.
menos de cinco anos de idade, a infecção pelo VSR é a Lactentes menores de seis meses de idade, principal-
causa mais comum de pneumonia viral. mente os prematuros menores que 35 semanas de ida-
79
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

de gestacional, e/ou bebês com doença pulmonar crô- � Contágio: o período de transmissibilidade é
nica da prematuridade e cardiopatas são a população prolongado, em média sete dias, podendo ser de
de maior risco para desenvolver doença mais grave. até 21 dias após o episódio agudo. Em hospitais,
Esse grupo de crianças possui bronquíolos de menor o risco de infecção adquirida durante a interna-
diâmetro, sistema imunológico menos desenvolvido ção é alto e aumenta com o tempo de perma-
e recebem menor quantidade de anticorpos maternos nência. Estima-se que crianças internadas por
transplacentários tornando-se mais suscetíveis à ação 30 dias em épocas epidêmicas tenham 100% de
do vírus. Estes fatores de risco têm impactos significa- chance de ser infectadas.
tivos, elevando consideravelmente o percentual de in- � Falta de amamentação.
ternação hospitalar para patamares entre 10% e 25%. � Nascimento prematuro.
É bastante frequente a confusão diagnóstica com � Displasia broncopulmonar.
o primeiro ataque de asma apresentado pela criança. � Enfermidades cardiovasculares.
As controvérsias atuais sobre os critérios diagnósticos
devem-se a fatores tais como a idade, as indicações de
pneumonia, a dificuldade respiratória e a atopia.
A bronquiolite por VSR em lactentes é uma doen- Etiologia
ça complexa, com muitas variáveis, que podem afetar as A bronquiolite aguda é de etiologia viral,
decisões do tratamento, tais como a idade do paciente, sendo o vírus sincicial respiratório (VSR) o prin-
o estágio da infecção no momento em que o tratamento cipal agente etiológico, encontrado em cerca de
de suporte tenha sido iniciado, a gravidade da doença, 50% a 90% dos casos e responsável pela grande
a etiologia, o local e o grau de obstrução das vias aéreas. maioria de epidemias atuais, além de casos iso-
lados. O VSR, o maior agente causal de bronquiolite
aguda, pode associar-se a outras síndromes virais res-
piratórias, tais como traqueobronquite e pneumonia.
Epidemiologia Muitos autores chamam a atenção para o aspecto sa-
O VSR constitui, como citado anteriormente, a zonal do VSR, com o máximo de incidência durante os
causa mais comum de pneumonia viral em crianças períodos de temperaturas baixas.
menores de cinco anos de idade, mas também pode Outros micro-organismos também podem
causar pneumonia no indivíduo idoso ou pacientes
causar a bronquiolite. São eles: metapneumoví-
imunocomprometidos. É importante lembrar que a
bronquiolite ou a pneumonia grave têm probabilidade rus humano, Influenza (A e B), Parainfluenza (1, 2 e 3),
elevada de ocorrência em lactentes. A infecção pelo VSR rinovírus, Mycoplasma pneumoniae e adenovírus (1, 3
em crianças de maior idade resulta em infecção de vias e 5), geralmente em casos isolados, mas também em
respiratórias menos agressiva do que aquela observada pequenas epidemias (menos que 10%). Os adenoví-
em lactentes com menos de seis meses de idade. rus (3, 7 e 21) assumem particular importância pela
A reinfecção pelo VSR é frequente, porém os sin- gravidade do acometimento bronquiolar, ocasionan-
tomas resultantes são mais leves, envolvendo as vias do, além de intensa reação inflamatória, necrose em
aéreas superiores (resfriados). São fatores de risco extensas áreas, levando à bronquiolite obliterante ou
para infecções pelo VSR: necrosante de evolução arrastada e elevada letalidade.
� Idade: ocorre mais frequentemente nos lacten- Ainda que não se possa dizer com absoluta con-
tes, com pico de incidência entre dois e seis me- vicção que a infecção bacteriana secundária depois do
ses de vida; 80% de todos os casos ocorrem no dano causado pelo VSR seja comum, em países em de-
primeiro ano de vida. senvolvimento existem algumas evidências de que isto
� Sexo: há leve predomínio do sexo masculino pode ocorrer. As infecções virais no trato respiratório
(1,5:1) nos pacientes mais graves e internados. influem sobre vários fatores de defesa do hospedeiro e
� Época do ano: acontece de forma endêmica em preparam o caminho para uma subsequente infecção
certas regiões frias e temperadas e epidemica- bacteriana secundária. Da mesma maneira, a pneumo-
mente nos meses de inverno e início da primave- nia causada pelo VSR é às vezes difícil de diferenciar da
ra. A umidade alta do ar e as variações abruptas bronquiolite e pode propiciar o desenvolvimento de in-
de temperatura diária podem também contribuir fecções bacterianas secundárias. Um dos estudos pros-
para a sobrevivência do VSR no ambiente. pectivos realizados ultimamente concluiu que tanto
� Fumo: dados recentes demonstram que a inci- as infecções virais quanto as bacterianas podem apre-
dência de bronquiolite, geralmente nas formas sentar sibilância nos lactentes. A bronquiolite ocorre
mais graves, ocorre em filhos de fumantes. caracteristicamente em crianças menores de dois anos
� História familiar de alergia: em quase 70% de idade, principalmente nos lactentes de países em de-
dos lactentes com bronquiolite. Há relatos de senvolvimento. Nas áreas urbanas dos Estados Unidos,
fenômenos de hipersensibilidade das vias aére- 50% das crianças menores de um ano e quase todas as
as em seus familiares. crianças de dois anos já foram infectadas pelo VSR.

SJT Residência Médica – 2016


80
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

piratórias (tropismo), o efeito destruidor a nível celular


Transmissão (virulência), o calibre das vias aéreas do hospedeiro e a
O vírus atinge o trato respiratório por meio do resposta imunitária que se pode gerar. Ainda que o VSR
contato íntimo com pessoas infectadas, superfícies seja in vitro, um dos menos destrutivos entre os vírus res-
ou objetos contaminados. A infecção ocorre quando o piratórios, sua grande afinidade pelo epitélio bronquiolar
material infectado atinge e penetra o organismo atra- explica sua tendência a produzir um distúrbio respirató-
vés da membrana mucosa dos olhos, boca e nariz ou rio importante. A inoculação do VSR ocorre presumi-
pela inalação de gotículas derivadas de tosse ou espir- velmente através da superfície da mucosa nasal. Depois
ro. O tempo de sobrevida do VSR nas mãos é de de um período de incubação assintomático de quatro a
menos de 1 hora, no entanto, em superfícies du- cinco dias, a criança infectada desenvolve sintomas ca-
ras e não porosas (estetoscópio) pode durar até racterísticos da infecção respiratória superior. A infecção
cerca de 24 horas. O vírus sobrevive bem em fômites resolve-se habitualmente a partir deste ponto. A disse-
tais como: roupas e aventais por mais de 45 minutos, minação para as vias respiratórias baixas é causada por
conta-gotas, brinquedos, objetos sobre a mesa e grade mecanismos ainda escassamente compreendidos, supos-
do berço por mais de 6 horas, nas luvas cirúrgicas por tamente mediante a aspiração de secreções infectadas
1 hora e meia, em pijamas e lenços de papel por 45 que produzem pneumonia ou bronquiolite. Do ponto
minutos e na pele por mais de 20 minutos. Após o pe- de vista anatômico, o mecanismo responsável pela lesão
ríodo de incubação de três a cinco dias, surgem das vias aéreas é o efeito citopático viral direto depois da
os sintomas. Lactentes e imunodeprimidos, quando interação celular entre o vírus e o hóspede e o efeito indi-
infectados, eliminam grandes quantidades do VSR nas reto mediado por mecanismos imunológicos.
secreções respiratórias (nasofaríngea e salivar) duran- O VSR é o modelo etiológico da maioria dos estudos
te longo tempo, com detecção de vírus por mais de 21 em bronquiolite viral aguda. A interação do VSR com a
dias em secreção de crianças hospitalizadas por doen- célula implica a elevação dos anticorpos séricos, especial-
ça do trato respiratório inferior. Crianças previamente mente os da classe IgM, que podem limitar a replicação
saudáveis, que contraíram infecção pelo VSR, elimi- viral, mas não são capazes de neutralizar o vírus; a IgA se-
nam o vírus por sete a dez dias e pacientes imunocom- cretora se relaciona com a defesa específica contra o VSR.
prometidos podem eliminar o vírus por semanas.
A resposta imunológica primária consiste da in-
filtração tecidual produzida pela migração de leucócitos
polimorfonucleares e macrófagos depois da liberação de
Patologia e patogenia mediadores clínicos procedentes das células epiteliais le-
sadas. Estas células liberam mais mediadores, que alte-
O VSR multiplica-se nas células das vias aéreas
ram a permeabilidade endotelial, os enlaces epiteliais e
superiores, onde causa um processo inflamatório com
o transporte de íons, estendendo desde aí a inflamação
destruição do epitélio, edema e aumento na produção
com migração celular adicional e promovendo edema.
de muco. Quando há envolvimento das vias aéreas infe-
riores, além das alterações já descritas, ocorre com fre- Na resposta imunológica celular, do tipo retarda-
quência hiper-reatividade bronquiolar. A infecção mais do, os linfócitos T, sensibilizados por exposições ante-
comum causada pelo VSR é a do trato respiratório su- riores ao agente etiológico, quando entram em conta-
perior. Tais infecções são caracterizadas por coriza, con- to com o VSR são estimulados, aumentam em número
gestão nasal, tosse e febre. Otite média aguda acomete e liberam substâncias como o interferon e agentes qui-
um terço das crianças com doença pelo VSR e laringite miotáticos, com a finalidade de combater a infecção.
também pode ocorrer, mas a bronquiolite e a pneumo- Como consequência dessa interação, podemos ter
nia são as manifestações mais comuns na criança. o desenvolvimento de lesões nas vias aéreas menos ca-
A bronquiolite, na maioria das vezes, atinge um librosas, com infiltração e edema da parede brônquica,
órgão morfologicamente imaturo e em desenvolvi- a liberação de restos celulares, secreção de muco, lesões
mento. O lactente apresenta maior proporção de glân- no epitélio ciliar e proliferação epitelial que se acumu-
dulas mucosas no epitélio respiratório; a musculatura lam na luz bronquiolar e causam obstrução. Qualquer
brônquica, antes dos cinco meses de idade, é escassa e diminuição no lúmen da árvore respiratória determina
aumenta significativamente até os três anos; o tecido um aumento muito maior na resistência ao fluxo aéreo.
cartilaginoso ainda não está bem desenvolvido e for- Consequentemente, teremos um efeito valvular obs-
ma anéis incompletos e irregularmente distribuídos; trutivo acarretando o desenvolvimento de enfisema em
a parede do brônquio é fina, menos resistente e facil- grandes áreas pulmonares ou um efeito obstrutivo total
mente colapsável. O diâmetro das vias respiratórias é que aprisiona um volume de ar distalmente, que, uma
pequeno, sendo que essa medida sofre modificações vez absorvido, irá originar atelectasias laminares.
acentuadas durante os movimentos respiratórios. O comprometimento do fluxo de ar implica dimi-
O tipo de lesão e as manifestações clínicas induzi- nuição das trocas normais de gases no pulmão devido
das pelas doenças virais nas vias respiratórias são pro- a desigualdades nos índices de ventilação/perfusão.
vavelmente uma combinação da afinidade do vírus por A frequência respiratória aumenta, o que leva à
células específicas em segmentos específicos das vias res- maior perda de água e tendência à desidratação.

SJT Residência Médica – 2016


81
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

O epitélio bronquiolar se recupera em três aparece dois a três dias depois do início dos sintomas). As
a quatro dias, enquanto os cílios demoram de mamadas tornam-se trabalhosas pela taquipneia. Pode-
10 a 15 dias para voltar ao normal. Os tampões -se notar palidez cutânea, cianose e sinais de falência
mucosos são eliminados ou fagocitados e, devido ao circulatória periférica. Pode haver desidratação, apesar
não comprometimento do tecido elástico e muscular, de a temperatura não ser habitualmente elevada, mas a
o pulmão recupera sua integridade anatômica. taquipneia pode acarretar maior perda de líquidos.
Não se sabe até hoje por que a reação inflamatória A presença de cianose indica hipoxia grave,
produzida e a consequente gravidade do quadro clínico que pode provocar períodos de apneia. Não foi
têm diferentes intensidades. Mecanismos imunopatológi- encontrada relação entre os achados clínicos e o grau
cos estão envolvidos nessas reações, pois indivíduos vaci- de hipoxemia. A hipoxemia em crianças hospitaliza-
nados com o VSR inativado apresentaram quadros mais das com sintomas severos quase sempre tem um curso
graves do que os não vacinados, em estudos na década de prolongado; consequentemente, a tensão de oxigênio
1960. Crianças cujas mães eram portadoras de elevados pode retornar a limites normais, entre três e sete se-
títulos de anticorpos para o VSR tiveram maior gravidade manas depois do início das manifestações clínicas.
quando em contato com o vírus. O desenvolvimento de
Ao exame, encontramos frequência respi-
IgE específica para o VSR, a demonstração da formação de
ratória aumentada, respiração superficial, tira-
leucotrienos e de anticorpos IgA contra VSR são exemplos
de pesquisas que buscam esclarecer a relação imunopato- gem intercostal e subdiafragmática e batimento
lógica entre o VSR e o organismo dos lactentes. de asas de nariz.

Várias teorias têm sido postuladas para explicar O tórax apresenta-se hipersonoro à percus-
os mecanismos patogênicos na bronquiolite, como a são, e pela ausculta notamos estertores finos e
presença de imunoglobulinas, o aumento da relação lin- disseminados, caracteristicamente no final da
fócitos T-estimulante/T supressor, a presença de com- inspiração e no início da expiração. O tempo ex-
plexos antígeno-anticorpo, mas os mecanismos patogê- piratório está aumentado.
nicos na bronquiolite permanecem ainda indefinidos. O bordo hepático e o esplênico podem ser pal-
A capacidade de recuperação depois da infecção com páveis a vários centímetros abaixo do rebordo costal.
VSR relaciona-se com os níveis secretórios das imuno- Para identificar indicadores relacionados com a
globulinas IgA, IgG e IgM e de anticorpos dependentes história clínica, o exame físico e os achados de labora-
da citotoxicidade mediada por células (ADCC). Estes tório que poderiam ajudar a predizer a severidade da
mecanismos poderiam ser os responsáveis pelos sinto-
doença, foram acompanhados prospectivamente 213
mas leves observados nas reinfecções. A variação dos
lactentes com bronquiolite. Foram identificados seis
achados clínicos em crianças pequenas poderia ocorrer
achados clínicos e laboratoriais de como os mais forte-
como consequência da falta de desenvolvimento das
mente associados à subsequente severidade da doença:
defesas individuais do hospedeiro.
� aparência da criança como “muito doente” ou
“tóxica”;
� oximetria menor que 95% estando em repouso;
Quadro clínico � idade gestacional menor que 34 semanas;
As manifestações clínicas são características e le- � frequência respiratória maior que 70 por minuto;
vam ao diagnóstico na maioria dos casos. Os sintomas
de catarro comum, como rinorreia, tosse e febrícola nos � radiografia de tórax com atelectasias;
estágios iniciais da doença, seguidos de dificuldade res- � idade menor que três meses.
piratória com sinais de obstrução bronquial e sibilos,
têm sido extensamente analisados pela literatura, que Os achados cardiovasculares foram determina-
considera alguns deles como critérios diagnósticos. dos principalmente como resultado do grau de hipoxe-
mia apresentado, ainda que a relação descrita entre a
A maior parte dos lactentes afetados apresenta uma
infecção pelo VSR e a taquicardia supraventricular em
história de exposição ou contato com indivíduos que ti-
lactentes sugira ação direta do vírus. Pode ocorrer de-
veram infecção viral das vias respiratórias na semana
sequilíbrio hidroeletrolítico, às vezes grave. A retenção
anterior ao início dos sintomas. O paciente apresenta
de líquidos pode ser explicada pela secreção aumentada
um quadro leve de infecção viral do trato respira-
do hormônio antidiurético (ADH), seguida de hiper-re-
tório alto, coriza e espirros, podendo se associar à
ninemia com subsequente hiperaldosteronismo secun-
febre moderada e à diminuição do apetite. A partir
de então, os sintomas podem evoluir rapidamente dário. Esta elevação da secreção de ADH provavelmente
e em dois a três dias alcançar a fase mais aguda da não é inapropriada e ocorre como resultado de recepto-
doença, ou se desenvolver lentamente. Nas duas for- res no tórax que respondem à hipovolemia.
mas de evolução, os sinais e sintomas são, basicamente, A idade do paciente (lactente ou até dois anos de
os mesmos: dificuldade respiratória progressiva, irritabi- idade) e o fato de que se trata de seu primeiro episódio de
lidade, tosse seca (que pode simular a da coqueluche), si- sibilância devem ser considerados. A bronquiolite recor-
bilos, anorexia e temperatura normal ou aumentada (que rente é rara, porém representa um dilema diagnóstico.

SJT Residência Médica – 2016


82
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O diagnóstico etiológico pode ser feito através


Diagnóstico laboratorial do isolamento do vírus, da detecção do antígeno viral
Na prática, são perfeitamente dispensáveis, pois ou do RNA viral, através da demonstração do aumento
o diagnóstico é eminentemente clínico. de anticorpos séricos ou pela combinação destes fato-
A radiografia de tórax é útil, principalmente, res. A pesquisa viral em crianças deve ser realizada na
para excluir outras patologias. As manifestações ra- secreção de nasofaringe utilizando métodos de iden-
diológicas da bronquiolite não são específicas e tificação rápida como a imunofluorescência indireta e
incluem: hiperinsuflação torácica difusa, com volume RT-PCR. Utilizando-se apenas a imunofluorescência
pulmonar aumentado, hipertransparência, retificação da secreção nasal é possível identificar o agente etioló-
dos arcos costais, alargamento dos espaços intercos- gico em torno de 60% a 80%. A cultura viral através da
tais, aumento do diâmetro ânteroposterior, rebaixa- secreção de nasofaringe é um método demorado e por
mento e retificação do diafragma e broncograma aéreo isso de pouca aplicabilidade clínica, assim como a so-
com um infiltrado de padrão intersticial. rologia, métodos reservados para estudos e pesquisas.

Diagnóstico diferencial
Levando em conta que os sibilos são de importân-
cia fundamental na bronquiolite e que outras condições
em lactentes também apresentam este sinal, o diagnós-
tico diferencial deveria incluir muitas outras doenças
agudas dentro do grupo das rotuladas como “síndrome
sibiliante” ou “síndrome do bebê ou lactente chiador”. Os
critérios clínicos da bronquiolite compreendem todas as
fases da infecção; depois das manifestações do trato res-
piratório superior, os sintomas sugestivos são dispneia,
Figura 6.1  Bronquiolite viral aguda. hiperinsuflação pulmonar, roncos e sibilância, ainda que
possam ser encontrados achados menos intensos.
Frequentemente, podem ser observadas áreas A patologia que mais se confunde com a bron-
atelectásicas provenientes de tampões mucosos, assim quiolite é a asma brônquica. Esta afecção crônica em
como infiltrados de baixa densidade e um espessamento crianças pequenas pode ser confundida com bron-
pleural pode ser evidente. Os raios X de tórax podem ser quiolite, considerando-se que os vírus são os maiores
de grande valor nos pacientes hospitalizados, revelando fatores precipitantes dos ataques de asma nesta idade.
complicações como infecções bacterianas, atelectasias e, Assim sendo, as crianças com predisposição genética
raramente, pneumotórax. As crianças podem ser classi- para a asma e com uma história familiar atópica po-
ficadas como afetadas por uma forma grave da doença, sitiva podem ser infectadas pelo VSR e desenvolver
mesmo com uma radiografia de tórax normal, princi- bronquiolite. Deve-se lembrar e valorizar para o diag-
palmente se apresentam dificuldade respiratória severa, nóstico diferencial o início do quadro (sabendo-se que
cianose ou manifestações gastrointestinais, tais como a asma é pouco frequente no primeiro ano de vida),
recusar líquidos com vômitos ou distensão abdominal. a existência de crises repetidas no mesmo paciente, o
Não tem sido demonstrada correlação alguma entre os início súbito sem história de infecção viral preceden-
achados radiográficos e as manifestações clínicas. Tem te, a existência de uma fase expiratória prolongada e a
sido sugerido que os raios X de tórax devem ser realiza- boa resposta aos broncodilatadores, o que não ocorre
dos quando é necessário tratamento médico intensivo, com a bronquiolite. A predisposição de uma criança a
quando ocorre uma piora súbita da condição respirató- ter sibilos recorrentes durante os episódios virais pode
ria ou quando existam doenças cardíacas ou pulmonares ter uma base genética, seja ou não hereditária.
prévias. Geralmente é difícil discriminar entre os achados
Devem ser levadas em conta outras condições
radiográficos de uma bronquiolite e uma pneumonia vi-
acompanhadas por sibilância, tais como síndromes de
ral. A partir deste ponto, o diagnóstico clínico radiológico
aspiração, que incluem o refluxo gastroesofágico, as mal-
permite esta diferenciação, baseando-se em um crescen-
formações congênitas de pulmão e vias aéreas (cistos,
te esforço respiratório encontrado na bronquiolite. É cla-
fístulas traqueoesofágicas), o anel vascular, as broncop-
ro que, em algumas situações, o exame radiográfico pode
neumonias associadas a enfisema obstrutivo, a insufici-
mostrar sinais de bronquiolite vinculada a consolidações
ência cardíaca congestiva, aspiração de corpo estranho,
mais densas que sugerem pneumonia bacteriana, o que intoxicação por fósforo inorgânico, fibrose cística, imu-
conduz a ambos os diagnósticos. nodeficiências, tuberculose, entre outros. A taquipneia, a
O hemograma geralmente não mostra altera- tosse e as retrações intercostais da pneumonite por Pneu-
ções significativas, enquanto a contagem de leucóci- mocystis jiroveci, a qual se dá quase exclusivamente em
tos se mantém dentro da normalidade e a velocidade distúrbios que cursam com imunodeficiência, podem,
de hemossedimentação pode estar aumentada. eventualmente, simular uma bronquiolite.

SJT Residência Médica – 2016


83
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

A terapia com antivirais, broncodilatadores, cor-


Tratamento ticoides, vitamina A e imunoglobulinas tem sido ob-
O tratamento da bronquiolite pelo VSR con- jeto de um grande número de ensaios clínicos. Estes
siste, principalmente, no tratamento de suporte ensaios mostram resultados conflitantes e inconsis-
com a administração de oxigênio e líquidos. Ou- tentes em pacientes com infecção pelo VSR em todo
tros tratamentos comumente utilizados incluem bron- o mundo.
codilatadores, corticosteroides e ribavirina, quando
considerados apropriados. Poucos estudos têm igual- Assistência ventilatória: em crianças porta-
mente sugerido que o surfactante exógeno, as misturas doras de bronquiolite pelo VSR, o uso de oxigênio per-
de hélio/oxigênio (heliox) e a combinação de terapias manece ainda como o principal tratamento.
também possam oferecer benefícios clínicos. Antivirais: a ribavirina é um nucleosídeo sinté-
A maioria dos casos pode ser tratada sem tico análogo e é a única droga antiviral licenciada para
internação, com medidas de sustentação, tais uso contra o VSR na forma inalatória. A Academia
como repouso, hidratação oral, aleitamento ma- Americana de Pediatria recomenda que seu uso seja
terno, vestimentas adequadas, banhos mornos e considerado no tratamento de crianças com doença
antipiréticos em caso de febre.
muito grave, crianças com doenças de base e pacientes
Ambulatorialmente, a bronquiolite não necessita imunodeprimidos. Deste modo, a ribavirina não deve
de tratamento, apenas revisões frequentes. A não acei- ser usada como tratamento rotineiro em crianças ven-
tação das mamadas ou o aumento da dispneia são in- tiladas e não ventiladas com infecção pelo VSR.
dicativos da necessidade de internação pois, na maio-
ria dos casos, o tratamento essencial é o oxigênio, em Broncodilatadores: apesar controverso, atu-
geral administrado em concentrações em torno de almente, aceita-se o teste terapêutico com beta-ago-
40%. Caso esta concentração não seja suficiente para nistas inalatórios nos pacientes com insuficiência
manter a PaO2 dentro de níveis normais, a ventilação respiratória de moderada a grave e se boa resposta ele
mecânica deverá ser utilizada. poderá ser mantido.
Geralmente os lactentes se sentem mais confor- Corticoides: a eficácia dos corticoides tem sido
táveis sentados, com a cabeça e o tórax um pouco ele- avaliada em crianças com infecção do trato respirató-
vados, o que facilita o fluxo aéreo. rio inferior pelo VSR, com resultados desapontado-
A hidratação deverá ser dirigida para corrigir as res em paciente com doença leve. O único artigo com
perdas causadas pela taquipneia, por diminuição da resultados favoráveis mostrou que os corticoides po-
ingesta e para propiciar uma pausa alimentar se esta dem ser benéficos em pacientes com bronquiolite se-
for necessária. Deve ser realizada por via parenteral, vera em ventilação mecânica, mas não apresentaram
nos casos moderados e graves, principalmente se hou- nenhum efeito em pacientes com pneumonia. Estes
ver riscos de aspiração broncopulmonar pelo descon-
achados apoiam a ideia de que os corticoides podem
forto respiratório.
ser benéficos em pacientes com doença de evolução
Os distúrbios metabólicos deverão ser corrigidos grave e que a distinção das manifestações clínicas
adequadamente a partir do seu diagnóstico. nas infecções virais do trato respiratório inferior
O uso de antibióticos fica restrito aos casos em (bronquiolite e pneumonia) são importantes para a
que se associem infecções bacterianas secundárias. escolha da estratégia de tratamento. Com base nos
Os broncodilatadores têm sido testados em inúme- dados atualmente disponíveis, os corticoides não es-
ras pesquisas, e até o momento não se sabe quais pacien- tão indicados de modo generalizado no tratamento
tes obtêm algum benefício. As drogas broncodilatadoras das infecções pelo VSR. Finalmente, é provável que
podem ser tentadas, em especial as nebulizáveis, como os corticoides não previnam o broncoespasmo recor-
os beta-2-adrenérgicos. No caso de ausência de resposta, rente após a bronquiolite.
não se recomenda sua manutenção.
Antibióticos: o uso de antibióticos não tem
Os corticoides também têm sido pesquisados, qualquer influência no curso da infecção viral do tra-
porém a maioria dos estudos não observou resultados
to respiratório inferior, apesar de serem prescritos
significativos.
com muita frequência. Em uma época em que há um
A maioria das crianças hospitalizadas com bron- aumento importante da resistência bacteriana, o seu
quiolite melhora rapidamente com a administração uso deve ser reduzido, pelo risco de superinfecção
de oxigênio e a reposição de fluidos. O curso clínico bacteriana nas crianças com infecções virais do trato
da doença é variável. Muitas crianças estão aptas para
respiratório inferior. A ocorrência de infecção bacte-
receber alta hospitalar após 48-72 horas, quando a in-
flamação provavelmente ainda está presente no pul- riana (exceto para otite média) é baixa (2%-10%) e,
mão. Os achados sugerem que rolhas de muco têm portanto, as crianças com VSR precisam ser cuida-
uma grande importância na obstrução da via aérea. dosamente avaliadas antes do uso de antibióticos.
Portanto, os broncodilatadores e os corticoides, que Seu uso está limitado aos casos de otite média aguda,
são muito efetivos na asma, não apresentam o mesmo pneumonia lobar, evidência de septicemia e crianças
grau de eficácia na bronquiolite. imunodeprimidas.

SJT Residência Médica – 2016


84
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Vitamina A e imunoglobulina: a gravida- ensaios em crianças menores de três meses de idade.


de da bronquiolite pelo VSR tem sido associada com Uma revisão sistemática realizada recentemente mos-
baixos níveis séricos de retinol, mas ensaios clínicos trou efeitos não significantes das vacinas na preven-
em crianças hospitalizadas com bronquiolite pelo ção da doença pelo VSR. Estratégias de imunização
VSR têm mostrado que não há efeitos benéficos com ativa para o controle da infecção pelo VSR têm sido
a suplementação de vitamina A. Ensaios terapêuticos testadas. Embora existam algumas vacinas em desen-
com infusão endovenosa de 1500 mg/kg de VSR-imu- volvimento, ainda não existe vacina VSR licenciada
noglobulina ou 100 mg/kg de VSR-imunoglobulina para uso populacional. A primeira tentativa de vaci-
inalada para as infecções do trato respiratório inferior nação contra o VSR ocorreu nos anos 1960 e terminou
pelo VSR também têm se mostrado ineficazes. em fracasso. Os resultados desapontadores no desen-
volvimento de uma vacina eficaz têm forçado o desen-
volvimento de pesquisas na prevenção do VSR focadas
em outras estratégias.
População de risco para Cuidados especiais devem ser tomados com
infecção pelo VSR cardiopatas, mucoviscidóticos, imunodeprimidos e
Algumas características especiais, como sazona- lactentes de baixo peso. Para estas crianças estão in-
lidade, imunidade não permanente, presença de dois dicadas a imunoglobulina policlonal endovenosa espe-
sorotipos diferentes e ausência de anticorpos específi- cífica para o VSR (RSV-IVIG) e o anticorpo monoclonal
cos fazem com que o VSR esteja associado a doença de humanizado (palivizumab). A imunoglobulina policlo-
maior morbidade em populações de alto risco. Nesse nal, RSV-IGIV (Respigam) possui desvantagens em
sentido, é fundamental que sejam instituídas me- relação à imunoglobulina monoclonal, uma vez que a
didas profiláticas. Atualmente, a Academia Ameri- administração é feita por via endovenosa e está con-
cana de Pediatria entende como população de risco os traindicada a pacientes com cardiopatias, devido ao
prematuros, os bebês com doença pulmonar crô- risco de sobrecarga hemodinâmica. O anticorpo mo-
nica da prematuridade (anteriormente chamada de noclonal humanizado palivizumab (Sinagys) tem se
displasia broncopulmonar), as cardiopatias congê- mostrado eficaz na prevenção de doenças graves pelo
nitas, os portadores de doenças neuromuscula- VSR, foi eficaz na redução das hospitalizações e ad-
res e pacientes com imunodeficiência. Essa popu- missões em UTI de crianças prematuras, assim como
lação torna-se de risco justamente devido a sua maior é o único meio de prevenção da re-hospitalização pro-
suscetibilidade a doenças respiratórias. vocada pelo VSR. Com o palivizumab também foram
observadas diferenças quanto à redução da taxa de
hospitalização conforme a idade gestacional e a pre-
sença de doença pulmonar crônica. A terapia com pali-
Profilaxia vizumab consiste na administração mensal de injeções
Como na maioria das infecções virais respirató- intramusculares, na dose de 15 mg/kg durante a época
rias, é difícil uma profilaxia eficaz. O VSR está pre- de propagação do VSR. Segundo a Academia America-
sente em grandes quantidades nas secreções do trato na de Pediatria, está indicado para:
respiratório de pessoas sintomáticas infectadas e pode � crianças menores de dois anos, portadoras de
transmitir-se diretamente por meio de gotas grandes doença pulmonar crônica, que necessitaram de
de secreções dessas pessoas, durante o contato próxi- terapêutica médica para sua doença pulmonar
mo com elas, ou também indiretamente, pelas mãos nos últimos 6 meses;
ou fômites contaminados, onde é capaz de permanecer � lactentes nascidos com IG de 32 semanas ou me-
viável por algumas horas, podendo, portanto, infectar nos, com ou sem doença pulmonar crônica. Para
outras crianças em contato. As precauções vinculadas lactentes com IG entre 29-32 semanas, a profila-
com um decréscimo da incidência das infecções noso- xia está indicada até os seis meses de idade, e para
comiais pelo VSR são a lavagem estrita das mãos e o aqueles com IG < 29 semanas, a profilaxia deve ser
uso de luvas e aventais. Em hospitais recomenda-se ampliada para as crianças até 12 meses de idade;
que as crianças com bronquiolite fiquem agrupadas � para os lactentes nascidos com IG entre 33 a 35
em enfermarias, e as portadoras de doenças debilitan- semanas, a indicação do palivizumab deverá ter
tes sejam afastadas do possível contágio. como base a presença de fatores de risco adicio-
Uma vacina para o VSR é importante e necessá- nais para doença grave por VSR e que tenham até
ria. O ideal seria uma vacina atenuada administrada seis meses de idade ao início da estação do vírus.
ao nascimento ou logo após o mesmo. Entretanto, Para outros pacientes, como portadores de doen-
problemas como a insuficiente atenuação das cepas ças cardíacas, imunodeficiências, ou para o controle de
de VSR, sua termolabilidade e a necessidade da inclu- surtos hospitalares, pode haver benefício com a profi-
são dos grupos A e B em cada vacina têm impedido os laxia com palivizumab.

SJT Residência Médica – 2016


85
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

São conhecidos alguns efeitos adversos, como a


febre e as reações no local da injeção, ambas sem con- Curso e prognóstico
sequências graves. Em geral, a bronquiolite evolui rapida-
mente e atinge sua fase mais aguda em 48 a 72
horas após o início da tosse e da dispneia. Após
este período, ocorre rápida melhora do estado geral
Estratégias para a prevenção e a recuperação é completa dentro de alguns dias. As
da infecção pelo VSR complicações bacterianas são raras, assim como o apa-
recimento de insuficiência cardíaca congestiva.
Medidas gerais: cuidados básicos são necessá-
rios para reduzir a transmissibilidade do VSR:
� lavar as mãos antes e após contato com os pa- Sequelas
cientes; O seguimento dos pacientes com bronquiolite tem
� limitar o contato com pessoas infectadas; mostrado frequentemente a persistência de sintomas
� intensificar os cuidados de higiene pessoal;
durante as semanas imediatas à doença. Em um estudo
em crianças brasileiras, 77% apresentaram pelo menos
� orientar os familiares quanto à importância da um episódio de sibilância depois da doença, e em 22% foi
higienização correta das mãos; necessária outra admissão ao hospital no transcurso de
� fazer desinfecção das superfícies expostas a se- 60 dias depois da alta original. Vários autores têm desta-
creções corporais; cado o vínculo entre bronquiolite e asma. Outros têm re-
� isolar pacientes hospitalizados com suspeita de futado esta associação, inclusive em crianças atópicas ou
infecção por VSR; com história familiar positiva para asma. Existem indí-
cios de que as anormalidades pulmonares podem persis-
� cuidados com pacientes que fazem parte dos
tir anos depois da aparente recuperação clínica, inclusive
grupos de risco: evitar locais com aglomeração
em crianças que tenham permanecido assintomáticas.
de pessoas, inclusive creches, nos meses de
maior incidência da doença; evitar exposição Os resultados conflitantes porporcionados pelos
passiva ao fumo dos pais e familiares e vacinar estudos de seguimento podem ser devidos à variabili-
contra Influenza a partir dos seis meses de vida. dade dos critérios selecionados para os casos que ser-
Os contatos também devem ser vacinados. vem de indicadores, à ausência de grupos de controle
para comparação, à inclusão de crianças com múltiplas
Medidas recomendadas para controle da trans-
variáveis envolvidas, tais como fatores ambientais,
missão hospitalar:
predisposição à atopia, presença de infecções respira-
� lavar as mãos antes e após contato com qual- tórias prévias e a outros aspectos que podem conver-
quer paciente ou material biológico; ter o tema em uma questão de controvérsia.
� manter precauções de contato para todos os pa- Tem sido descrita uma explicação interessante para
cientes com doença pelo VSR confirmada ou sus- a ocorrência de sintomas respiratórios depois da bron-
peita. As precauções de contato incluem: lavagem quiolite. Mediu-se, em um estudo prospectivo, a condu-
das mãos antes e após contato com o paciente e tibilidade das vias aéreas antes e depois dos episódios
seus pertences. Uso de luvas, avental, máscara, infecciosos. Concluiu-se que os infantes com valores me-
gorro e óculos protetores, de acordo com a possi- nores de condutibilidade teriam um risco maior de de-
bilidade de contato direto com secreções. senvolver sibilos subsequentes, sugerindo que esta anor-
Medidas recomendadas em vigência de surto malidade na função não é uma sequela da bronquiolite,
hospitalar: mas sim um fator predisponente que piora os sintomas.
� triagem clínica rigorosa à admissão hospitalar Esta entidade, conhecida como bronquiolite
dos pacientes com infecção de vias respiratórias; obliterante, consiste em uma sequela anatomopato-
� sempre que possível, proceder à triagem labora- lógica de repetidas lesões das vias aéreas de pequeno
torial dos pacientes com infecção de vias respi- calibre, tais como a inalação de gases e lipídios (pneu-
ratórias; monia lipoideana) ou inclusive doenças autoimunes.
� isolamento dos pacientes infectados, em quartos Raramente ocorre na infância e não deveria ser
privativos; considerada uma complicação da infecção pelo
VSR. Pode seguir a infecções por adenovírus, Influenza
� uso de precauções de contato para cuidados
ou sarampo. A lesão histológica consiste em um aglo-
com pacientes infectados;
merado celular que inclui fibroblastos, leucócitos e fi-
� proibição de visitantes com infecção de vias res- brina, os quais obstruem parcial ou completamente a
piratórias; luz das vias aéreas, levando à produção de atelectasias e
� exclusão de funcionários com infecção de vias res- outras complicações, como bronquiectasias e síndrome
piratórias dos cuidados de lactentes suscetíveis. do pulmão hipertransparente unilateral.

SJT Residência Médica – 2016


86
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Mortalidade Síndrome do
A mortalidade associada com infecção primá-
ria pelo VSR em crianças previamente saudáveis é
lactente sibilante
estimada em 0,005% a 0,020%. Em crianças hos-
pitalizadas, a taxa de mortalidade é estimada
entre 1% e 3%. Entretanto, taxas de mortalidade Introdução
elevadas (superiores a 50%) têm sido observadas A ocorrência de chiado no peito é muito frequen-
em crianças com anormalidades cardiopulmonares te nos primeiros dois anos de vida e contribuem para
e imunodeprimidas. isto o elevado número de infecções respiratórias nessa
faixa etária e características do aparelho respiratório,
Comentários que facilitam a instalação dos fenômenos obstrutivos
nas vias aéreas.
A bronquiolite causada pelo VSR é uma doen-
É um sinal clínico inespecífico, decorrente do es-
ça do dia a dia da clínica pediátrica. Historicamente,
treitamento das vias aéreas, de forma que a passagem
esta frequente doença de lactentes, que em geral tem
dificultada do ar causa vibração das paredes das vias
um curso benigno e autolimitado, mas que pode, al-
aéreas e emissão de ruídos contínuos e musicais de-
gumas vezes, apresentar uma evolução clínica muito
nominados roncos e sibilos. Esse estreitamento é, em
grave, tem sido motivo de publicações e debates em
geral, devido à associação de três mecanismos fisiopa-
relação ao seu tratamento. Além da conduta diante
tológicos: edema de mucosa, secreção e contração da
do quadro de desconforto respiratório agudo, a pos-
musculatura lisa peribrônquica.
sibilidade de posterior desenvolvimento de hiper-
-responsividade das vias aéreas, induzindo a criança Como foi citado, nos primeiros anos de vida, as
a repetidos quadros de sibilância, tem sido enfatizada. vias aéreas têm calibre muito reduzido, especialmente
Os pediatras sabem que a maioria dos lactentes com nas porções terminais. Outra característica dos lacten-
bronquiolite apresenta um quadro respiratório leve e tes é o maior número de glândulas mucosas no epité-
pode ser tratada ambulatorialmente. A ingestão ade- lio das vias aéreas, o que determina tendência a maior
quada de líquidos e a observação da evolução clínica produção de muco, com hiperviscosidade de secre-
são suficientes nestes casos. No entanto, as crianças ções. Essas características do calibre e do epitélio das
com desconforto respiratório moderado ou grave não vias respiratórias são mais importantes na determi-
podem ser tratadas em ambulatório. Na verdade, esta nação dos fenômenos obstrutivos na criança pequena
doença continua sendo uma importante causa de hos- do que a contratura da musculatura peribrônquica.
pitalização em crianças menores de dois anos de idade Ao nascimento, o interstício pulmonar tem menor
em todo o mundo. São variáveis que indicam a hos- quantidade de colágeno e elastina, o que resulta em
pitalização: a idade do paciente (< 2 meses), a gravi- capacidade retrátil menor, alterando as relações en-
tre fluxos e pressões. As cartilagens da traqueia e dos
dade clínica da doença (qualquer idade) e a presença
brônquios também são incompletas e menos rígidas,
de doenças associadas (cardiopatia congênita, doen-
com maior tendência ao colabamento, exigindo maior
ças pulmonares, imunodeficiência, prematuridade).
trabalho respiratório. Além disso, a alta complacência
Ressalta-se que nos lactentes com estas doenças tem
do gradeado costal e a inserção horizontalizada do
sido recomendada a profilaxia da bronquiolite com pa-
diafragma determinam que, nesta época da vida, o es-
livizumab ou RSV-IVIG.
forço respiratório, a dificuldade de drenagem de secre-
Nos pacientes com bronquiolite em enferma- ções e as limitações ao fluxo aéreo sejam maiores. Na
rias de pediatria (poucos casos necessitam de UTI) é criança sem doença, com curso respiratório normal,
consensual a utilização apenas do tratamento de su- essas características anatomofuncionais compensam-
porte: hidratação venosa e oxigenoterapia. Entretan- -se, porém, nos agravos as vias aéreas superiores e/ou
to, várias outras intervenções terapêuticas já foram inferiores, na instalação do processo inflamatório, do
testadas, como o uso de corticoides (sistêmico ou edema e do acúmulo de secreções levam mais rapida-
inalatório), broncodilatadores e, mais recentemente, mente às limitações do fluxo aéreo, às modificações
de droga antiviral (ribavirina). Os benefícios destas das pressões alveolar e torácica e ao colabamento das
intervenções terapêuticas não são facilmente eviden- pequenas vias aéreas e alvéolos. Clinicamente, isso se
tes e alguns trabalhos publicados são contraditórios. traduz por maior esforço respiratório, surgimento de
Além disso, o diagnóstico diferencial entre bronquioli- retrações costais, dispneia e ocorrência de sibilos e/ou
te e crise aguda de asma é algumas vezes muito difícil, ruídos adventícios na ausculta pulmonar. A progres-
o que pode dificultar a interpretação dos resultados do são do processo leva ao aparecimento de áreas de hi-
tratamento empregado, sobretudo quanto ao uso do perinsuflação e de colapso do parênquima pulmonar,
corticoide e broncodilatador. favorecendo o aparecimento de atelectasias e modifi-

SJT Residência Médica – 2016


87
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

cando a ausculta. Progressivamente, as trocas gasosas ções, medicações habitualmente utilizadas, imunização
tornam-se comprometidas e, devido ao maior número e reação) e sobre antecedentes familiares (doenças pul-
de alvéolos e à deficiência de mecanismos de ventila- monares, atopias, vícios).
ção colateral interalveolar e bronquioloalveolar, insta- O exame físico deve ser completo. O exame geral
lam-se, com facilidade, a hiperpneia e a hipoxemia. deve salientar sinais de comprometimento pôndero-
Nos primeiros anos de vida da criança, não so- -estatural, de raquitismo e de insuficiência respirató-
mente as características anatômicas e funcionais pul- ria como palidez, cianose e alterações sensoriais. Ao
monares contribuem para o surgimento mais frequen- exame específico, devem-se salientar em tegumento:
te das crises de chiado no peito. Também o sistema sinais de atopia: cabeça e pescoço: obstrução nasal,
imunológico é imaturo; as infecções virais e bacteria- sinais de hipertrofia de adenoides, otites e sinusites;
nas são mais frequentes e graves; existe maior proba- tórax: alterações no formato do tórax, aumento do
bilidade de ocorrerem as síndromes aspirativas (como diâmetro anteroposterior pela hiperinsuflação pulmo-
o refluxo gastroesofágico), mesmo que transitórias e nar, tiragens, expiração prolongada, presença de ruí-
fisiológicas e há maior suscetibilidade inespecífica aos dos adventícios como roncos e sibilos ou crepitações
fatores ambientais, alergênicos ou não (más condições e avaliação cardíaca cautelosa; abdome: pode haver
ambientais, promiscuidade, fumo etc.). rebaixamento de fígado e baço pela hiperinsuflação.
Exames laboratoriais: com base nas hipóteses
diagnósticas mais prováveis, os exames laboratoriais
mais frequentemente solicitados são:
Definição � raio X de tórax frente e perfil;
Síndrome obstrutiva, caracterizada por sibilos,
� hemograma;
traduzindo clinicamente uma diminuição do calibre
das vias aéreas. Esta manifestação pode ser persis- � protoparasitológico de fezes;
tente e/ou recorrente (em crises) com frequência e � raio X de seios da face e cavum;
intensidade variáveis. Quando ocorre em lactentes é � EED (esôfago-estômago-duodeno);
denominada “síndrome do bebê chiador”.
� pHmetria;
� videodeglutograma;
� EDA + biópsia;
Diagnóstico
� pesquisa de sódio e cloro no suor;
A investigação do diagnóstico de pacientes com
� ecocardiograma;
chiado recorrente inicia-se com os dados da história
clínica. A anamnese e o exame físico são importantes � PPD;
para a seleção dos exames subsidiários necessários na � dosagem de IgE sérica;
investigação de cada caso. � RAST (IgE sérica específica para diferentes antí-
História clínica: caracterizar a idade de início genos);
(primeira crise), sintomas e sinais. Caracterizar tam- � dosagem de imunoglobulinas séricas (IgA, IgG, IgM);
bém os períodos crítico (duração, frequência, intensi-
� dosagem de alfa-1-antitripsina;
dade) e intercrítico (assintomático ou sintomático: tipo
de sintoma, duração, horário preferencial, frequência, � tomografia computadorizada;
interferência na atividade da criança, desenvolvimen- � broncografia;
to psicomotor e pôndero-estatural). Pesquisar fatores � arteriografia digital.
desencadeantes (infecção, alérgenos, irritantes, fatores
físicos). Avaliar as condições gerais de vida: habitação
(construção, número de pessoas, mobiliário, plantas,
animais, ventilação, umidade, fumantes), local onde a Causas de sibilância
criança passa a maior parte do tempo (casa, berçário,
creche, escola etc.), renda familiar e grau de instrução na infância
dos pais. Caracterizar tosse, dispneia, sudorese, cia- 1. Infecções de vias aéreas inferiores: As in-
nose, engasgos, regurgitação, vômitos, relação com a fecções das vias aéreas inferiores têm elevada frequ-
alimentação, evacuações etc. Investigar realização de ência em toda a infância, especialmente nos lactentes.
pré-natal, tempo de gestação, condições de nascimen- No curso dessas infecções, a ocorrência de chiado no
to, peso, estatura, necessidade de O2, se recebeu alta do peito é elevada. Os agentes infecciosos são fatores de-
berçário com a mãe. Saber sobre os antecedentes pes- sencadeantes ou cofatores em 15% a 50% dos episó-
soais (doenças comuns da infância, infecções respirató- dios recorrentes de chiado no peito. Em 50% a 90%
rias anteriores, infecções extrapulmonares, hospitaliza- das infecções das vias aéreas, os agentes causais são

SJT Residência Médica – 2016


88
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

os vírus; o parainfluenzavírus e o vírus sincicial res- a evolução são variáveis de acordo com o agente causal
piratório (VSR) são os mais isolados nos pacientes in- e as condições do hospedeiro. A relação causal entre
ternados e na comunidade. Esses vírus respiratórios bronquiolite e asma ainda não está bem esclarecida.
podem alterar a função e o desenvolvimento pulmo- Acredita-se que cerca da metade das crianças com
nar, levando a alterações de resposta das vias aéreas, bronquiolite evolua com chiado recorrente. É geral-
da função pulmonar e da resposta imunológica. mente o primeiro episódio de sibilância do lactente.
À semelhança das infecções respiratórias virais, Acredita-se que de 45% a 50% das crianças hospitali-
as infecções bacterianas podem evoluir com crises de zadas por bronquiolite pelo VSR tenham recorrência
sibilância autolimitadas, recorrentes ou persistentes. de crises e evoluam como portadoras de estados de
As doenças respiratórias causadas por Bordetella per- hiper-reatividade brônquica, algumas inclusive de-
tussis, Mycoplasma pneumoniae, clamídias, micobacté- senvolvendo alterações imunológicas específicas (por
rias e outros podem cursar com crise de sibilância na exemplo, IgE antivírus).
fase aguda e determinar quadros de hiper-responsivi- 2. Síndromes aspirativas: distúrbios da de-
dade brônquica transitória prolongada, principalmen- glutição e refluxo gastroesofágico (RGE): podem
te em lactentes. causar quadros de sibilância pulmonar por microaspi-
A- Laringotraqueobronquite ou crupe: trata- rações recorrentes do conteúdo digestivo para as vias
-se de uma obstrução laríngea, com rouquidão, tosse, aéreas e/ou por estimulação vagal. Vários problemas,
estridor inspiratório e febre, podendo ocorrer mani- como alterações neurológicas, anormalidades da boca,
festações pulmonares com roncos, estertores e/ou nasofaringe ou mandíbula, herniações esofagianas e
sibilos. Acomete 15%-25% dos pré-escolares e o pico outros predispõem à aspiração do conteúdo gástrico
de incidência ocorre nos primeiros dois anos de vida. para a árvore respiratória, causando graus variados de
Metade dos casos de crupe é de origem infecciosa, lesão e apresentações clínicas diversas. Caracterizados
por engasgos frequentes durante a alimentação. Pode-
causada principalmente pelo VSR e Parainfluenza ví-
-se observar a presença de leite em fossas nasais, tosse
rus tipo 1.
desencadeada pela alimentação e episódios de apneia.
B- Traqueobronquite (bronquite): trata-se Nos pacientes neuropatas observa-se acúmulo de sali-
de uma doença frequentemente associada às crises de va na boca. Mesmo sem que exista uma história clíni-
chiado no peito e ao redor de 80% das crianças rece- ca positiva para engasgos, regurgitações ou vômitos, é
bem este diagnóstico no curso de afecções de vias aé- possível pensar especialmente no RGE como crises de
reas inferiores, nos cinco primeiros anos de vida. chiado no peito, aventando-se um mecanismo de es-
C- Pneumonia: no curso dessas infecções res- timulação vagal para a ocorrência destes eventos. Na
piratórias, a ocorrência de chiado no peito é elevada. faixa etária de zero a dois anos de idade, nem sempre
Além disso, os agentes infecciosos, principalmente vi- é possível encontrar relação causal entre os distúrbios
rais, são fatores desencadeantes ou cofatores em 15%- da deglutição e os problemas respiratórios. Isso por-
50% dos episódios recorrentes de chiado no peito, que é esperado que a criança tenha, temporariamente,
sendo que em muitos deles o acometimento é restrito por imaturidade neurológica e do sistema digestivo,
às vias aéreas superiores, sem envolvimento ou lesão refluxos gastroesofágicos frequentes e fisiológicos e
das vias aéreas inferiores. Em 50%-90% destes proces- incoordenação à deglutição, que facilitam os engasgos
sos infecciosos os agentes causais são os vírus. e a regurgitação. Estes fenômenos podem coincidir
ou piorar com os problemas respiratórios frequentes
D- Bronquiolite: é uma doença que acomete, dos lactentes, sem haver nenhuma relação causal. De
em geral, crianças menores de dois anos de idade, sen- qualquer forma, uma vez detectados os distúrbios da
do o agente etiológico mais frequente o vírus sincicial deglutição ou o RGE, deve-se abordar adequadamen-
respiratório (VSR). Outros vírus também podem estar te tais problemas, buscando-se reduzir o risco de as-
implicados. O diagnóstico pode ser realizado pela so- pirações. O RGE deve ser investigado principalmente
rologia para vírus e a identificação do VSR obtida por nos casos com crises de chiado no peito frequentes ou
meio de imunofluorescência indireta e da cultura de perenes, que respondem mal às medidas terapêuticas
células da secreção de nasofaringe. Pode também ser habituais. O RGE pode ser considerado um evento fi-
realizada a sorologia para VSR e outros. Ao exame ana- siológico. Indivíduos saudáveis e doentes diferem ape-
tomopatológico observa-se necrose do epitélio bron- nas quanto à frequência de episódios, sua intensidade
quiolar com oclusão da luz do brônquio. Pode haver e presença de sintomas associados. A prevalência des-
metaplasia escamosa e de células globosas, áreas de sa afecção em adultos pode chegar a 10%, entretanto,
atelectasia e hiperinsuflação pulmonar. Necrose grave a frequência exata em crianças não é bem conhecida.
ocorre nos casos de bronquiolite obliterante. Clinica- Nas situações em que o RGE é patológico (doença do
mente, a criança apresenta-se com sinais de infecção, refluxo gastroesofágico), nota-se o aparecimento de
a princípio, de vias aéreas superiores e, a seguir, sinto- sintomas, aparentemente relacionados à ação do ácido
mas de obstrução de vias aéreas inferiores com piora sobre a mucosa esofágica. O RGE favorece sua manu-
no segundo ou terceiro dias de evolução. A gravidade e tenção, criando um círculo vicioso:

SJT Residência Médica – 2016


89
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

� o ácido refluído induz à inflamação da mucosa Manometria esofágica – é útil na detecção de


esofágica; dismotilidades. Alguns autores sugerem que manome-
� há liberação de PGE2, que aumenta a permeabi- trias alteradas são preditivas de má resposta ao trata-
mento clínico e provável indicação cirúrgica.
lidade da mucosa ao ácido;
Na dependência do quadro clínico, outros exa-
� a inflamação relaxa ainda mais o esfíncter infe-
mes mais inespecíficos podem ser úteis na avaliação
rior do esôfago (EIE);
global desses pacientes, como hemograma, ferro sé-
� a irritação vagal também contribui para o relaxa- rico, pesquisa de sangue oculto nas fezes, RAST para
mento do EIE e causa ainda espasmo do piloro. leite de vaca e polissonografia.
O surgimento dos sintomas respiratórios parece O tratamento para o RGE consiste em:
estar relacionado a vários fatores: Medidas posturais – a posição recomendada é
Aspiração – acreditava-se que a aspiração do o decúbito ventral com a cabeça elevada a 30 graus.
material refluído fosse o principal mecanismo pato- Medidas dietéticas – fracionamento da dieta
gênico relacionado ao RGE. Certamente, a aspiração com exclusão de ácidos, cítricos, café e chocolate.
pode causar pneumonia, abscessos pulmonares e hi- Antiácidos – são drogas úteis, particularmente
per-responsividade brônquica; entretanto, raramente para alívio da dor retroesternal.
se observa radioatividade em alvéolos nos estudos cin-
tilográficos para pesquisa de RGE. Agentes procinéticos – são sem dúvi-
da um passo fundamental na terapêutica. A cisa-
Reação mediada pelo nervo vago – a irritação prida é a droga de primeira escolha; estudos em
causada pelo ácido na mucosa esofágica produz, de adultos revelaram que foi efetiva para tratar a
forma reflexa, obstrução brônquica. A estimulação de esofagite e prevenir recaídas. Atualmente, verificou-
neurorreceptores na faringe e esôfago pode ainda de- -se o risco de aparecimento de arritmias cardíacas com
sencadear laringoespasmo e até apneia e bradicardia. uso da cisaprida, mais especificamente quando asso-
O diagnóstico de RGE pode ser de difícil confirma- ciada a antibióticos do grupo dos macrolídeos.
ção e muitas vezes é questionada sua participação na Bloqueadores H2 – são particularmente utili-
gênese dos sintomas respiratórios. Os exames disponí- zados quando predominam sintomas esofágicos. Não
veis para o diagnóstico são: há benefício no uso combinado com antiácidos.
EED – radiografia contrastada do esôfago, estômago Inibidores da bomba de próton – a experiência
e duodeno. Quando há suspeita de incoordenação à deglu- do uso de omeprazol em crianças ainda é limitada. Sabe-
tição, o deglutograma permite estudá-la adequadamente. A mos tratar-se de droga eficaz no tratamento da esofagite
maior vantagem desse exame é a possibilidade de se obser- grave refratária do adulto.
var a anatomia do esôfago, da transição gastroesofágica e Cirurgia – a fundoplicatura de Nissen é o proce-
do próprio estômago e identificar outros problemas que po- dimento de rotina em muitos centros. A cirurgia deve
dem simular um RGE, como, por exemplo, um anel vascular ser proposta apenas após exaustivo tratamento clínico
ou obstrução intestinal alta. O tempo de observação duran- ou quando há risco de morte. Quando há esofagite, o
te o exame é curto, o que pode resultar em resultados falso- tempo mínimo de tratamento clínico é de 12 semanas.
-positivos e negativos. É recomendável que o procedimento
seja realizado por equipe experiente e não são necessárias as 3. Aspiração de corpo estranho: é frequente
mesmas manobras de evidenciação realizadas em adultos. em crianças pequenas e pode causar quadros clínicos
variáveis, dependendo da sua localização: asfixia aguda
Cintilografia esofágica – é sem dúvida o exa- na obstrução traqueal; chiado no peito e/ou tosse es-
me mais sensível na detecção do refluxo, entretanto pasmódica na obstrução de grandes vias aéreas e tosse
tem pouca especificidade. Pode-se detectar aspiração crônica e sibilância na obstrução de pequenas vias. Os
em avaliações mais tardias, cerca de 4 a 6 horas após meninos são os mais acometidos, principalmente entre
a ingestão do tecnécio radioativo, porém, como já foi seis meses e três anos de idade (65% dos casos), e em
comentado, esse achado é raro. 85% dos pacientes existe história positiva de aspiração
Endoscopia digestiva e biópsia esofágica – que, em geral, é de alimentos. A anamnese pode reve-
são os procedimentos de escolha no diagnóstico das lar um episódio súbito de engasgo, seguido de quadro
complicações do refluxo. Os achados histológicos com- respiratório que se torna persistente, em uma criança
patíveis com refluxo são hiperplasia da membrana ba- previamente normal. O diagnóstico é feito na primeira
sal, papila estromal alongada e crescimento vascular. semana após o episódio aspirativo em 65% dos casos,
porém em 20% dos pacientes pode-se demorar até um
Infiltrado inflamatório, ulceração ou epitélio aberran-
ano para chegar à confirmação diagnóstica. A suspeita
te fazem parte do quadro de esofagite.
clínica deve ser feita também quando existe assimetria
pHmetria – é o exame padrão-ouro no diagnós- na ausculta pulmonar, presença de sibilância ou hi-
tico de RGE. Faz-se a monitorização contínua do pH perinsuflação unilateral e tosse crônica. Ou diante de
esofágico por 24 horas. É possível reconhecer o núme- queixas de “pneumonias de repetição”, “chiado perene”,
ro de episódios em que o pH foi inferior a 4,0 e sua du- “bronquite crônica”, “asma” de difícil controle, altera-
ração, bem como sua relação com a posição, períodos ções radiológicas fixas etc. Os raio X e/ou radioscopia
de sono e até sintomas respiratórios. de tórax são sugestivos de presença de corpo estranho

SJT Residência Médica – 2016


90
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

quando há sinais de deslocamento mediastinal com hi- suor positivo (análise iônica quantitativa de suor
perinsuflação contralateral, diferenças na retenção de estimulado pela pilocarpina) é o critério diagnós-
ar na inspiração/expiração, movimentos paradoxais do tico mais utilizado. Este teste está sujeito a erros, se
diafragma. A confirmação pode vir pela broncoscopia, a quantidade de suor coletada for inferior a 100 mg.
se o corpo estranho não for radiopaco. Os resultados da A maioria dos autores considera que valores de sódio
broncoscopia revelam que em 50% dos casos o corpo e cloro no suor superiores a 60 mEq/L são sugestivos
estranho localiza-se no brônquio fonte direito e inter- de doença, quando realizados em duas ocasiões dife-
mediário e, em 30%, no brônquio fonte esquerdo. Cor- rentes. Atualmente, o diagnóstico também pode ser
po estranho alojado em esôfago pode, também, causar feito pelo estudo genético, no qual são pesquisadas as
quadros respiratórios, às vezes associados à disfagia. mutações mais frequentes. Há também testes de tria-
gem diagnóstica, que podem ser feitos ao nascimento.
4. Fibrose cística (FC): é uma doença genética,
O diagnóstico pré-natal já é possível, por meio de estu-
autossômica, recessiva, de incidência variável conforme
do genético, em famílias de alto risco. A sintomatologia
a raça, sendo elevada entre os caucasianos. O gene da
clínica e o prognóstico são variáveis de acordo com o
fibrose cística foi clonado em 1989. Ele se situa no bra-
grupo etário e com a expressão de diferentes mutações
ço longo do cromossomo 7. Atualmente são conhecidas em sua forma homo ou heterozigótica.
mais de 800 mutações que levam à FC, sendo a mais
frequente a chamada ΔF508. A frequência estimada dos
portadores do gene da FC é de 5% na população bran-
ca. Pode se apresentar como crises de chiado no peito,
simulando um quadro asmático antes que ocorram as
alterações gastrointestinais e o comprometimento do
estado nutricional. Acomete as glândulas exócrinas,
que apresentam um canal em sua superfície epitelial,
que se torna impermeável ao cloro. Com isso, não ocor-
re o transporte adequado de cloro da célula para o lú-
men glandular, pois impede a reidratação adequada do
fluido luminal, leva à formação de secreções mais vis-
cosas; ocasiona a obstrução dos ductos destas glându-
las e a perda de sua função. Envolve múltiplos órgãos e
evolui de forma crônica e progressiva, sendo a doença
genética letal mais comum na raça branca. Caracteriza-
-se pela tríade clínica constituída por doença pulmonar
obstrutiva supurativa crônica, insuficiência pancreática
e níveis anormalmente elevados de eletrólitos no suor.
Porém, podem estar presentes outros dados clínicos,
como: íleo meconial (5% a 10% dos casos), estatorreia,
Figura 6.2  Infiltrado pulmonar em paciente com fi-
prolapso retal, hipodesenvolvimento pondo-estatural,
brose cística.
pansinusite crônica, polipose nasal recorrente, azoos-
permia e invaginação intestinal. A fibrose cística pode
apresentar-se com crises de chiado no peito, simulando
um quadro asmático, antes que ocorram as alterações
gastrointestinais e o comprometimento do estado nu-
tricional. Na FC existe grande suscetibilidade à coloni-
zação e infecção endobrônquica por bactérias específi-
cas, sendo a infecção broncopulmonar crônica a maior
causa de dano pulmonar progressivo. Nos primeiros
anos de vida, os pacientes costumam colonizar o seu
trato respiratório pelo Staphylococcus aureus. Ao re-
dor da primeira década de vida aparece a colonização
pela Pseudomonas aeruginosa, que é a característica
marcante da doença, e relacionada à progressão da do-
ença pulmonar; uma vez presente, raramente ela é er-
radicada. Outros agentes que podem colonizar o trato
respiratório destes doentes são: Haemophilus influen-
zae, Escherichia coli, Klebsiella, Serratia, Burkholderia
cepacia e Stenotrophomonas maltophilia. O diagnóstico
é baseado na presença de doença pulmonar obstrutiva
crônica supurativa e/ou insuficiência pancreática e/ou
história familiar de FC associada a aumento dos níveis
de sódio e cloro no suor. A confirmação diagnóstica
pode ser feita através de testes genéticos (quan- Figura 6.3  Bronquiectasias pulmonares em paciente
do disponíveis), porém o teste de sódio e cloro no portador de fibrose cística.

SJT Residência Médica – 2016


91
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

5. Cardiopatias: algumas anormalidades cardio- evolução insidiosa, com tosse seca irritativa, cansaço,
vasculares podem causar obstrução brônquica e evo- febre baixa e mal-estar. As manifestações pulmonares
luir com quadros de sibilância pulmonar. O quadro de podem ser duradouras, mas geralmente ocorre regres-
“chiado no peito” pode resultar de compressão ex- são e desaparecimento espontâneo após cerca de uma
trínseca da via aérea e/ou por falência de ventrículo a duas semanas. As manifestações sistêmicas variam
esquerdo. Anormalidades do arco aórtico podem re- de acordo com o agente etiológico envolvido, podendo
sultar na formação de anéis vasculares ou de estrutu- ocorrer anemia, dor abdominal, hepatomegalia e exan-
ras que comprimem a traqueia, causando obstrução tema cutâneo como na toxocaríase. A toxocaríase é a
da via aérea e determinando o aparecimento de estri- parasitose de ciclo pulmonar, causada pela migra-
dor, sibilância e/ou apneia. Nos pacientes cardiopatas ção lenta em vísceras de larva de Toxocara canis e
com “shunt” esquerdo-direito nos grandes defeitos de Toxocara catis. O homem é hospedeiro acidental do
septo ventricular e na persistência de ducto arterio- ciclo do parasita, e a reação de defesa leva à instalação
so, a sintomatologia respiratória aparece quando há de uma síndrome que inclui eosinofilia sérica, hepato-
aumento da artéria pulmonar e/ou do átrio esquerdo, esplenomegalia, anemia, sintomatologia pulmonar, le-
levando à compressão de grandes vias aéreas. sões oftalmológicas e outras manifestações. A suspeita
clínica é feita a partir do encontro de leucocitose com
Quando há falência de ventrículo esquerdo, há dis- eosinofilia superior a 20% em crianças com sintomato-
tensão do leito vascular pulmonar e obstrução de veias logia descrita, que tenham história de geofagia e con-
pulmonares, resultando no edema da parede dos bron- tato com cães ou gatos em casa. O diagnóstico labora-
quíolos com aumento da resistência periférica pulmonar, torial inclui exames de triagem, como a dosagem sérica
que determina o aparecimento de sibilância. Assim, aus-
de imunoglobulinas e de iso-hemaglutininas séricas,
culta cardíaca alterada em crianças com “chiado no peito”
que está elevada. A confirmação diagnóstica da in-
indica a necessidade de avaliação específica.
fecção por T. canis será feita pela positividade da
6. Tuberculose: chiado no peito pode ser sorologia específica para o agente. Um quadro mais
uma das manifestações clínicas da tuberculose, grave é a estrongiloidíase disseminada, que pode ocor-
decorrente do estreitamento das vias aéreas por rer em pacientes com doenças malignas ou em terapia
endobronquite ou por compressão extrínseca imunossupressora. Nessas crianças, pode ocorrer uma
provocada pela adenomegalia satélite. Devido à superinfestação sistêmica do parasita, inclusive nos
alta prevalência da doença em nosso meio, é impor- pulmões, com alta taxa de mortalidade.
tante investigar esta possibilidade diagnóstica em
crianças com crises de chiado no peito perene ou de di- O quadro radiológico mostra um padrão de in-
fícil controle, especialmente naquelas expostas a focos filtrado predominantemente alveolar, cuja principal
da doença e/ou sem vacinação correta. A tuberculose, característica é o caráter migratório, notado por meio
enquanto causa de aumento ganglionar mediastinal e de exames radiológicos seriados. O exame hematoló-
de lesão pulmonar fixa, deve ser diferenciada de ou- gico pode demonstrar eosinofilia acentuada (10% a
tros problemas, como massas mediastinais e lesões 20% dos leucócitos circulantes), podendo alcançar
pulmonares congênitas, que também podem causar até valores muito elevados, o que levanta a hipótese
sibilância e crises de chiado no peito. de leucemia eosinofílica. Na prática pediátrica, fre-
quentemente é a observação da eosinofilia que suge-
7. Parasitoses com ciclo pulmonar (síndrome re a hipótese de síndrome de Loëffler. O diagnóstico
de Löeffler): Alguns parasitas como Ancylosto- etiológico é feito por meio da pesquisa direta nas se-
ma duodenale, Necator americanus, Strongyloides creções de vias aéreas, exame pouco sensível, embora
stercoralis, Toxocara canis, Toxocara catis e Ascaris muito específico. O exame parasitológico das fezes
lumbricoides podem causar sintomas respirató- apresenta baixa especificidade, uma vez que a pre-
rios durante seu ciclo pulmonar na fase larvária. sença de verminose é bastante frequente em nosso
Dada sua alta prevalência em nosso meio, ao redor de
meio. No caso da toxocaríase, como citado anterior-
15%-20% das crianças menores de cinco anos estão in-
mente, a realização de sorologia por meio de ensaios
fectadas, é possível que esta seja uma causa frequente
imunoenzimáticos firma o diagnóstico.
de crises de chiado no peito que, no entanto, ainda é
pouco diagnosticada. A patogênese do processo pulmo- 8. Anormalidades laringotraqueobrônqui-
nar parece estar relacionada tanto com a presença das cas: as anormalidades e as malformações das vias
larvas quanto por um processo alérgico desencadeado aéreas causam sintomatologia respiratória variá-
por essas e/ou seus produtos biológicos. Essa última hi- vel, de acordo com a sua localização. As anorma-
pótese justificaria a presença de infiltrado eosinofílico lidades laríngeas são as mais frequentes, espe-
nos pulmões de pacientes acometidos e a ausência de cialmente a laringomalacia, que se manifesta com
larvas nas necropsias de pacientes que apresentavam estridor inspiratório evidente desde o nascimen-
a síndrome de Loëffler. O quadro clínico respiratório e to, mas pode aparecer até o segundo mês de vida.
sistêmico, que decorre da migração larvária, pode ter O estridor é exacerbado por choro, agitação e
sintomatologia e gravidade variáveis, dependendo da infecção. A laringomalacia é considerada afecção
interação entre o agente e a reação do hospedeiro. O benigna, com expectativa de resolução espontâ-
quadro clínico é geralmente leve, caracterizado por uma nea entre 12 e 18 meses de vida. As anormalidades

SJT Residência Médica – 2016


92
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

congênitas de traqueia e brônquios são mais raras, po- nores que três desvios-padrão abaixo da média para a
rém as malformações intrínsecas (estenoses, malacias, idade, estando, no entanto, a capacidade de formação
fístulas, comunicação anômala) e as compressões ex- de anticorpos preservada. A deficiência seletiva de IgA
trínsecas (vasos anômalos, massas mediastinais, mal- também pode ser frequente na criança. Pode ser assin-
formações pulmonares) podem ser causa de “chiado no tomática ou manifestar-se com quadros de infecções
peito”, principalmente nos quadros graves e/ou pere- respiratórias recorrentes. Os níveis de IgA são menores
nes. O diagnóstico laboratorial inclui radiografia lateral que 5 mg/dL, mas a concentração total de IgG e IgM e
de pescoço e de tórax, tomografia e endoscopia. a avaliação funcional das células T geralmente são nor-
9. Alergia ao leite de vaca: é uma doença de pre- mais. As deficiências combinadas dos sistemas B e T, do
valência variável, estimando-se que ocorra entre 0,3% a sistema fagocitário e do sistema complemento são me-
7,5% das crianças alimentadas com leite de vaca e em 1% nos frequentes, mais graves e acometem principalmen-
dos adultos. É mais frequente nos primeiros dois anos de te as defesas contra agentes oportunistas. Desnutrição
vida e, na maioria dos casos, resolve-se espontaneamen- grave, infecção pelo vírus HIV, tumores, síndrome ne-
te entre o terceiro e o sexto anos de idade. São várias as frótica, enteropatia perdedora de proteínas, esplenec-
proteínas do leite de vaca que causam alergia, sendo que tomia e uso prolongado de drogas (corticosteroides e
as mais alergênicas são: betalactoglobulina, caseína citostáticos) podem induzir quadros de imunodeficiên-
e alfalactoglobulina. As reações de hipersensibilidade cia secundária, com acometimento de vários órgãos e
induzidas pelo leite são dos tipos I (mediada por IgE), II quadros clínicos heterogêneos.
(citotoxinas), III (mediadas por imunocomplexos) e IV 11. Displasia broncopulmonar: pode ser
(tardia), de tal forma que a sintomatologia pode ocorrer uma das causas de chiado no peito em crianças com
em minutos ou horas após a ingestão do alimento, ou mais história de prematuridade, com uso de oxigenotera-
tardiamente, em 48-72 horas, sendo difícil avaliar, em pia e/ou ventilação mecânica no período neonatal.
cada caso, quais os mecanismos envolvidos na doença. De- O quadro clínico pode se confundir com o da asma,
vido à possibilidade de hipersensibilidade tardia, os testes com crises recorrentes de dificuldades respiratórias e
de exclusão devem durar de três a quatro semanas para se- sibilância, alterações radiológicas de hiperinsuflação
rem adequadamente interpretados. A alergia ao leite de pulmonar e áreas de atelectasia e fibrose difusas e
vaca pode se apresentar clinicamente com manifes- com boa resposta à terapêutica comumente utilizada
tações gastrointestinais (diarreia, vômitos, dores na asma, o que dificulta o diagnóstico diferencial.
abdominais, cólicas, síndrome de má absorção, san- 12. Asma: é, na infância, causa frequente de crises
gramento), respiratórias (sibilância e tosse), der- de chiado no peito, com prevalência estimada entre 10%
matológicas (eczema, angioedema e urticária), he- e 15%, chegando até a 30%, conforme a população es-
matológicas (eosinofilia, anemia, trombocitopenia) tudada. Nas crianças com chiado no peito, o diagnóstico
e outras (fadiga, irritabilidade, déficit ponderal). O de asma é frequentemente lembrado e, para sua confir-
diagnóstico clínico é sugestivo em crianças com essa mação, necessita-se mais de uma abordagem clínica evo-
sintomatologia, que receberam leite de vaca preco- lutiva criteriosa do que de exames laboratoriais. É diag-
cemente nas primeiras semanas de vida e cujas fa- nóstico de exclusão. Nos asmáticos, as histórias pessoal e
mílias tenham antecedentes positivos para atopia. familiar de atopia podem alertar para o quadro alérgico.
O diagnóstico pode ser confirmado pelas provas de A rinite alérgica é um diagnóstico diferencial de infec-
exclusão e provocação oral (padrão-ouro), auxilia- ções de vias aéreas superiores de repetição. A presença
dos pelos testes imunológicos (RAST para detecção de dermatite atópica em pré-escolares está associada ao
de IgE específica) e testes cutâneos. O tratamento maior risco de desenvolvimento de chiado persistente no
baseia-se na retirada total do leite de vaca da dieta peito. O diagnóstico de asma na criança é primariamen-
da criança por alguns anos. te clínico, com base nas evidências de atopia, nas crises
10. Imunodeficiências: as imunodeficiências desencadeadas por IVAS e mudanças de temperatura, na
congênitas ou adquiridas podem estar associadas a cri- boa resposta à terapêutica e na ausência de evidências
ses de sibilância recorrentes, pois facilitam a ocorrên- clínicas de outras doenças. Exames laboratoriais como
cia de infecções e podem se associar à atopia e à asma. a dosagem de IgE elevada, a eosinofilia periférica e a ci-
Na infância, as imunodeficiências congênitas que tologia da secreção nasal com eosinófilos acima de 10%
mais frequentemente se associam às afecções auxiliam no diagnóstico. As provas de função pulmonar
respiratórias recorrentes são devidas à defici- não são realizadas rotineiramente em nosso meio, pelas
ência de síntese de anticorpos e às deficiências dificuldades técnicas em crianças menores de seis anos
combinadas dos sistemas B e T, como hipogama- de idade, mas são muito importantes em crianças maio-
globulinemia transitória, deficiências seletivas res, complementando e conferindo o diagnóstico clíni-
de IgA e de subclasses de IgG e imunodeficiência co. Atualmente, a tendência é estabelecer o diagnóstico
comum variável. A hipogamaglobulinemia transitória diferencial de asma após os cinco anos de idade, já que
da infância é um prolongamento da hipogamaglobuli- muitas crianças apresentam sibilância por outras causas
nemia fisiológica, autolimitada, que persiste até os 18 até essa idade, sendo, no entanto, possível concretizar o
ou 24 meses de vida ou mais. Os critérios diagnósticos diagnóstico antes dessa idade nos casos típicos. A asma
variam, geralmente se encontram níveis de IgG me- persistente pode aparecer como causa de chiado crônico.

SJT Residência Médica – 2016


93
6  Afecções de aéreas inferiores: o lactente que sibila

13. Outras causas mais raras: Deficiência de IgA secretora de mucosa:


� obstruções respiratórias congênitas; também pode ser frequente na infância. Acomete
� deficiência de alfa-1-antitripsina; 1/300 ou 1/800 indivíduos e é mais frequente entre
� tumores; os asmáticos graves, nos quais ocorrem em 1/200
� fístula traqueoesofágica; a 1/300. Pode ser assintomática ou aparecer com
� vasculite;
quadros de sinusites recorrentes, hiper-reatividade
pulmonar (asma), alterações gastrointestinais e do-
� hemossiderose;
enças autoimunes.
� anormalidades vasculares.
� Massas mediastinais: o quadro clínico destas
doenças depende da sua localização e do seu
padrão evolutivo, podendo variar desde indi-
víduos assintomáticos com alterações radioló- Prognóstico
gicas fixas até quadros obstrutivos perenes de Quando as crises de chiado no peito estão asso-
vias aéreas. Embora raros, os tumores neuro-
ciadas a uma doença específica, existe um prognós-
gênicos do mediastino posterior e linfomas do
tico previsível em cada situação. Porém, as maiores
mediastino médio e anterior são diagnósticos
diferenciais a serem considerados, além do hi- dúvidas ficam em relação ao prognóstico dos lacten-
groma cístico, tumores de timo e tireoide, cistos tes que chiam no curso de processos infecciosos, es-
broncogênicos, cistos pericárdicos, hérnia de pecialmente se pertencerem a famílias de “bronquíti-
Morgagni e Bochdalek, entre outros. cos”, e esta é uma questão controversa na prática e na
literatura. As dificuldades para interpretação dos re-
Raquitismo: pode levar a problemas respirató-
rios secundários à retenção de secreção pelo compro- sultados encontrados nos estudos sobre os fatores de
metimento funcional da caixa torácica somente em risco e fatores de prognóstico no lactente com chiado
suas formas mais graves, quando as demais alterações no peito decorrem, principalmente, da falta de pa-
ósseas da doença já estão presentes e sugerem o diag- dronização dos critérios diagnósticos das doenças
nóstico. Quanto ao raquitismo leve ou subclínico, é causais mais frequentes (asma, bronquiolite e bron-
controversa sua relação com chiado recorrente. quite) e das diferenças nas populações estudadas.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

7
Afecções de vias aéreas inferiores:
tópicos de asma em pediatria

Asma Diagnóstico
A asma é uma das doenças crônicas mais comuns Diferentemente das crianças maiores, quadros
do mundo. Estima-se que existam 300 milhões de pes- de sibilância recorrente ocorrem em uma grande pro-
soas afetadas sendo uma das principais causas de ab- porção de crianças menores de 5 anos, tipicamente
senteísmo no trabalho e na escola. Sua real incidência acompanhados de infecções virais do trato respira-
não é conhecida, em parte pela sobreposição de vários tório superior (IVAS). Decidir quando esta é a apre-
quadros da infância que se manifestam com sibilos; sentação inicial da asma pode ser difícil. O desafio
porém, estudos locais estimam sua prevalência em diagnóstico fica maior ainda quando se considera que
cerca de 10% na população geral. metade dos asmáticos iniciaram o quadro de asma na
infância. O chiado é o sintoma mais comum associado
Asma é uma doença inflamatória crônica das vias à asma em crianças menores de 5 anos. Deve-se ter
aéreas, na qual muitas células e elementos celulares atenção na anamnese, pois os pais podem descrever
têm participação. A inflamação crônica está associada qualquer respiração ruidosa como “chiado”.
à hiperresponsividade das vias aéreas inferiores, que
Algumas infecções virais (vírus sincicial respira-
determina episódios recorrentes de sibilos, dispneia, tório e rinovírus) estão associados com sibilos recor-
opressão torácica e tosse, particularmente à noite ou rentes durante toda a infância. Assim, sibilância nessa
no início da manhã. Esses episódios são uma consequ- faixa etária é uma condição altamente heterogênea, e,
ência da obstrução ao fluxo aéreo intrapulmonar ge- portanto, nem toda sibilância nessa faixa etária indica
neralizada e variável, reversível espontaneamente ou asma. Além disso, não é possível avaliar rotineiramen-
com tratamento.
95
7  Afecções de vias aéreas inferiores: tópicos de asma em pediatria

te limitação do fluxo aéreo neste grupo etário. Uma função pulmonar informam sobre a intensidade da li-
abordagem baseada em probabilidade, com base no mitação ao fluxo aéreo, sua reversibilidade e variabili-
padrão dos sintomas durante e entre infecções respi- dade. A espirometria é útil para o diagnóstico (a partir
ratórias virais pode ser útil. Assim, em crianças pe- dos 5 anos), avaliação da gravidade, monitorização e
quenas com sintomas de duração menor que 10 dias, avaliação da resposta ao tratamento. O volume expi-
durante episódios de IVAS, cerca de dois a três episó- ratório forçado no primeiro segundo (VEF1) de espi-
dios/ano e nenhum sintoma entre os episódios, maior rometria é mais confiável do que pico de fluxo expira-
a probabilidade de crianças com chiado induzido por tório (PEF). O VEF1 pós-broncodilatador é o melhor
infecção viral. Duração e frequência maiores, com sin- parâmetro espirométrico para avaliar mudanças em
tomas intercríticos e antecedentes pessoais de atopia longo prazo na função pulmonar, sendo um indicador
ou familiares de asma, sinaliza maior probabilidade de de progressão da doença. Os achados funcionais pul-
propensão ao diagnóstico de asma. monares compatíveis com asma são:
O diagnóstico de asma se baseia na identificação � Espirometria demonstrando limitação ao fluxo
de um padrão característico de sintomas respiratórios aéreo do tipo obstrutivo, variável; VEF1/capa-
como chiado, dispneia, aperto no peito e tosse, e variá- cidade vital forçada CVF) menor que 80% em
vel limitação do fluxo aéreo expiratório. A tosse devido adultos e 90% em crianças, com reversibilida-
à asma não é produtiva, pode ser recorrente ou persis- de (resposta ao broncodilatador), definida por
tente, e acompanhada por chiado e dificuldade respira- aumento do VEF1 após inalação de beta-2 ago-
tória. Tosse noturna (quando a criança está dormindo) nista de curta duração (10 a 15 minutos após
ou tosse que ocorre com o exercício, riso ou choro, na 400mcg de salbutamol) de pelo menos 12% em
relação ao valor pré-broncodilatador e de, pelo
ausência de uma infecção respiratória aparente, apon-
menos, 200ml em valor absoluto (em crianças,
ta para o diagnóstico de asma. Pode haver descrição de
apenas aumento maior de 12% do previsto).
“falta de ar”, “dificuldade para respirar” e “aperto no
peito”. Nas crianças pequenas, a observação da ativida- � Teste de broncoprovocação positivo (pacientes
de reduzida (brinca menos, não ocorre e não sorri como maiores), realizado em serviços especializados.
outras crianças) pode ser indicativa do seu comprome-
timento funcional. A associação de sintomas (sibilos,
tosse, dispneia e desconforto) também é um padrão ca-
racterístico da asma. Os sintomas, muitas vezes, apre-
sentam piora à noite ou no início da manhã e variam
Avaliação da asma
ao longo do tempo e em intensidade. Os sintomas são O nível de controle da asma é a medida em que
desencadeados por infecções virais, exercício, risadas, as manifestações da asma podem ser observadas no pa-
choro, exposição à alérgenos, mudanças no clima, ou ciente ou que tenham sido reduzidas ou removidas pelo
irritantes, como fumaça, cigarro ou odores fortes. tratamento. A avaliação do nível de controle da asma
Reitera-se que, o início de sintomas respiratórios compreende dois aspectos: o controle atual dos sinto-
na infância, uma história de atopia (rinite alérgica ou mas (referente às últimas 4 semanas) e os fatores de ris-
eczema), ou uma história familiar de asma ou alergia, co futuro, ou seja, os fatores de risco de resultados in-
aumentam a probabilidade de que os sintomas respi- satisfatórios, que compreende o risco de exacerbações,
ratórios sejam devidos à asma. Os doentes com rinite de instabilidade, de declínio da função pulmonar e de
alérgica ou dermatite atópica devem ser perguntados efeitos colaterais das medicações usadas.
sobre sintomas respiratórios. A avaliação do controle dos sintomas da asma é
O exame físico em pessoas com asma muitas ve- baseada nos sintomas, na limitação das atividades e
zes é normal. A alteração mais frequente são os sibilos na utilização de medicação de resgate. Devemos rea-
expiratórios na ausculta, mas isso pode ser ausente lizar avaliação cuidadosa do impacto da asma nas ati-
ou só ser auscultado na expiração forçada. Chiados no vidades diárias de uma criança, incluindo esportes,
peito também podem estar ausentes durante as exa- brincadeiras e vida social. Muitas crianças com asma
cerbações de asma grave, devido ao fluxo de ar grave- mal controlada evitam exercícios para que a sua asma
mente reduzido (“tórax silencioso”); em tais ocasiões, possa parecer bem controlada, que pode determinar
há outros sinais físicos de insuficiência respiratória. maior risco de obesidade.
Crepitações e chiado inspiratório não são característi- As “perguntas-chave” para a avaliação do con-
cas da asma. O exame do nariz pode revelar sinais de trole dos sintomas e a subsequente classificação do
rinite alérgica ou pólipos. controle da asma estão apresentadas no quadro X-1,
A asma é caracterizada por limitação do fluxo seguindo-se as recomendações atuais da Global Initia-
aéreo expiratório variável, ou seja, a função pulmonar tive for Asthma (GINA – atualizado em 2016) e pelas
varia ao longo do tempo e em magnitude a uma exten- Diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e
são maior do que nas pessoas saudáveis. Os exames de Tisiologia para o Manejo da Asma (SBPT - 2012)

SJT Residência Médica – 2016


96
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Avaliação do controle dos sintomas da asma nas últimas 4 semanas


Sintomas diurnos de asma mais que duas vezes por semana? ( )S ( )N
Despertar noturno devido à asma? ( )S ( )N
Necessidade de medicação para alívio dos sintomas mais que 2x/semana ( )S ( )N
Limitação de alguma atividade devido à asma ( )S ( )N
Classificação da asma
Nenhum desses critérios: Asma bem-controlada
1 a 2 desses critérios: Asma parcialmente controlada
3 a 4 desses critérios: Asma não-controlada

Tabela 7.1  Fonte: Adaptada de GINA-2016 e SBPT-2012.

Na análise do nível de controle de asma também


Avaliação do controle da asma
deve-se avaliar todos os fatores de risco para desfe-
chos ruins ou resultados insatisfatórios. Nesse ponto, Controle dos sintomas e
risco futuro de resultados adversos
inclui-se os fatores de risco para exacerbações, para li-
mitação fixa de fluxo remodelação da via aérea) e para Avaliar o controle dos sintomas durante as últimas 4
semanas
efeitos adversos das medicações.
Identificar todos os outros fatores de risco para exa-
Os fatores de risco mais conhecidos para exa- cerbações, limitação do fluxo aéreo fixo ou efeitos co-
cerbações são: falta de controle dos sintomas, não laterais
utilização da corticoterapia inalatória, VEF1 baixo, Avaliar questões relacionadas ao tratamento
problemas psíquicos ou sociais, exposição ao tabaco Documentar atual etapa de tratamento do paciente
(atenção aos adolescentes), eosinofilia, ter presenta- Avaliar técnica de inalação (utilização do dispositivo),
do mais de uma exacerbação grave no último ano e adesão e efeitos colaterais
Verificar se o paciente tem um plano de ação para cri-
ter sido intubado. Os fatores de risco para limitação
ses (por escrito)
fixa de fluxo na via aérea são: não utilização de cor-
Avaliar comorbidades
ticoterapia inalatória, baixo VEF1 no início do trata-
Rinite alérgica, refluxo gastroesofágico, obesidade, ap-
mento, hipersecreção crônica de muco e eosinofilia.
neia obstrutiva do sono, depressão e ansiedade, aler-
Os principais fatores de risco para efeitos adversos gia alimentar.
da terapêutica são: uso frequente de corticosteroide Tabela 7.2  Fonte: Adaptada de GINA- 2016
oral e uso prolongado de altas doses de cortiscoste-
roides inalatórios.
A gravidade da asma é avaliada de forma retros-
Assim, para um determinado paciente pode ha- pectiva a partir da etapa de tratamento (vide adiante)
ver um bom controle da asma e, entretanto, com um necessário para controlar sintomas e exacerbações.
grande risco futuro de crises (por ter, por exemplo, Portanto, a classificação de gravidade, em tese, é rea-
apresentado uma grave exacerbação no último ano). lizada depois que o paciente já estiver em tratamento
Importante lembrar que os dois domínios (controle do por algum tempo. A gravidade não é estática e pode
sintomas e fatores de risco futuros) devem ser avalia- mudar ao longo dos meses ou anos. Os níveis de gravi-
dos para cada asmático. dade da asma são;
Além dos aspectos anteriormente apresenta- � asma leve: bem controlada com as etapas 1 e 2
dos, para cada paciente com asma, a consulta deve � asma moderada: bem controlada com a etapa 3
contemplar a análise da técnica de administração da � asma grave: bem controlada com as etapas 4 e 5
medicação (incluindo aderência e efeitos adversos),
Atenção atual tem-se dado para a identificação
comorbidades associadas (que podem contribuir para
do risco quase fatal ou fatal da asma. Em maiores de
os sintomas e o comprometimento da qualidade de
5 anos, os fatores de risco são: crise grave prévia com
vida) e a existência de um plano de ação para as exa- necessidade de ventilação mecânica ou internação em
cerbações (crises). Unidade de Terapia Intensiva (UTI), três ou mais visitas
Na prática, os principais pontos a serem avalia- à emergência ou duas ou mais hospitalizações por asma
dos no asmático estão resumidos no quadro X-2. nos últimos doze meses, uso frequente de corticoste-

SJT Residência Médica – 2016


97
7  Afecções de vias aéreas inferiores: tópicos de asma em pediatria

roide sistêmico, uso de dois ou mais frascos de aerossol depender da evolução clínica do paciente. A primeira
dosimetrado de broncodilatador por mês, problemas medicação a ser prescrita deve ser o cortiscoteroide
psicossociais (depressão, baixo nível socioeconômico, por via inalatória.
dificuldade de acesso à assistência, falta de aderência a As etapas do tratamento são apresentadas a se-
tratamentos prévios), presença de comorbidades (do- guir. Uma vez que um bom controle de asma é obti-
ença cardiovascular ou psiquiátrica) e má percepção do do por 2 a 3 meses, regressão na etapa de tratamento
grau de obstrução por parte do paciente. Nos menores pode ser cogitada; diante da falta de controle, um eta-
de 5 anos, crise grave prévia com necessidade de venti- pa acima de tratameno deveer instituída
lação mecânica ou internação em UTI, idade inferior a
12 meses, doses repetidas e não usuais de β2-agonistas
de curta ação nas primeiras horas após a instalação das
anormalidades clínicas e recidiva abrupta do quadro clí-
nico apesar de tratamento adequado. Etapa 1 – Apenas medicação
inalada de alívio conforme a
necessidade
Tratamento da asma A opção que preferimos são os beta-2 agonista
de curta duração (SABA), conforme a necessidade.
Os objetivos de longo prazo do tratamento da SABA são altamente eficazes para o alívio de sinto-
asma são o bom controle dos sintomas e redução (mi- mas da asma. Essa opção deve ser reservada para
nimização) dos riscos futuros de exacerbações, limita- pacientes com sintomas pouco frequentes (menos de
ção fixa do fluxo aéreo e efeitos colaterais da medica- duas vezes por mês), de curta duração e sem fatores
ção. O manejo do paciente inclui: de risco para exacerbações.
- Medicações: As drogas utilizadas podem ser de
dois tipos: as de controle, utilizadas para o tratamen-
to de manutenção regular e que reduzem a inflamação
das vias aéreas, controlando sintomas e reduzindo os Etapa 2 – Baixa dose de
riscos futuros e as medicações de resgate, para alívio medicação de controle +
conforme a necessidade, inclusive durante o agrava-
mento da asma ou exacerbação. Essas últimas tam- SABA de alívio conforme a
bém são indicadas para a prevenção de curto prazo de necessidade
asma induzida pelo exercício.
Essa costuma ser a etapa inicial de tratamento
- Tratamento dos fatores de risco modificáveis: para a maior parte dos pacientes. A dose baixa de cor-
como a exposição ao tabaco ou outros elementos de- ticosteroides inalatórios reduz os sintomas, os riscos
sencadeantes. de exacerbações, hospitalização e mortes relacionadas
- Outras medidas não-farmacológicas, como in- à asma.
centivo para a prática de atividade física. Atualmente, as medicações disponíveis na for-
A educação, associada ao manejo farmacológico é ma de sprays dosimetrados (nebulímetros) são livres
fundamental na abordagem da asma, devendo ser parte de gás propelente clorofluorcarbono (CFC), “ambien-
integral do cuidado. O médico deve auxiliar o paciente talmente incorretos” (lesam a camada de ozônio).
e sua família na aquisição de motivações, habilidades e Uma alternativa ao CFC foi o HFA (hidrofluoralcano)
confiança. Um plano escrito de auto-manejo permite que é inerte, atóxico, não acumula na atmosfera, tem
melhor controle da asma e reduz hospitalizações. rápida absorção e eliminação pulmonar, liberação de
dose mais consistente, força de disparo menor do
aerossol e temperatura maior. Outro conceito que o
médico deve ter é o da potência do cortiscosteroide;
Tratamento de manutenção dependendo da dose administrada, ela é classificada
em baixa, média ou alta dose diária total. O quadro
No manejo da asma, tratamento farmacológico é X-3, apresenta, de forma resumida as doses dos prin-
ajustado em um ciclo contínuo que envolve avaliação, cipais CI disponíveis em nosso meio. Não é uma ta-
prescrição e revisão. O orientação de vários guidelines bela de equivalência, mas, sim, de comparação clínica
existentes divide o tratamento da asma em etapas estimada. A maior parte dos benefícios clínicos do CI
(steps) que podem ser progressivas ou regressivas a é observada em doses baixas.

SJT Residência Médica – 2016


98
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Dose baixa Dose média Dose alta


Corticosteroide inalatório Idade
(mcg/dia) (mcg/dia) (mcg/dia)
>12 anos 100 a 200 200 a 400 >400
6 a 11 anos 50 a 100 a 200 >200
Dipropionato de beclometasona
(HFA) <5 anos
100
(espaçador)
>12 anos 200 a 400 400 a 800 >800
6 a 11 anos 100 a 200 200 a 400 >400
Budesonida <5 anos
200
(espaçador)
>12 anos 100 a 250 250 a 500 >500
Propionato de fluticasona
6 a 11 anos 100 a 200 200 a 500 >500
<5 anos
100
(espaçador)
>12 anos 80 a 160 160 a 320 >320
Ciclesonida
6 a 11 anos 80 80 a 160 >160
Tabela 7.3  Doses baixa, média e alta de alguns corticosteroides inalados.

Eventualmente, na etapa 2, podem ser prescri- população pediátrica (<5 anos), a melhor opção tera-
tos antagonistas de receptores de leucotrienos (LTRA) pêutica ainda não foi estabelecida. Poder-se-ia tentar,
com SABA conforme a necessidade. Os LTRA são me- por exemplo, o aumento da dose de CI, com doses
nos eficazes que doses baixas de CI. Podem ser usados mais frequentes por algumas semanas. Eventualmen-
para alguns pacientes que têm asma e rinite alérgica te, cogita-se uma dose baixa de corticosteroide por via
ou caso o paciente não vá usar CI. oral até melhora dos sintomas. Não há dados suficien-
tes sobre eficácia e segurança da combinação de CI e
LABA em menores de 5 anos.

Etapa 3 - Um ou dois
medicamentos de controle Etapa 5 – referir para um
+ SABA de alívio conforme a centro especializado e/ou
necessidade tratamento adjuvante
Deve-se lembrar que, antes de considerar a etapa
seguinte devemos verificar a técnica de uso do inalador Se mesmo com dois ou mais medicamentos de
e a adesão ao tratamento. A maioria das falhas de trata- controle a criança permanecer sintomática sugere-se
mento é por má uso da técnica. Nessa etapa 3, a opção tratamento adjuvante com omalizumabe (anti-IgE)
preferida para crianças é dose média de CI com SABA para pacientes com asma grave que não seja possível
conforme a necessidade. Para adultos e adolescentes, controlar com o tratamento da Etapa 4.
a opção preferida é a combinação de dose baixa de CI
com LABA (beta-2 agonista de longa duração), com
efeito semelhante ao de aumentar CI. Em nosso meio,
os LABA existentes são o formoterol e o salmeterol.
Técnica inalatória e
Etapa 4 - Dois ou mais escolha dos dispositivos
medicamentos de controle + Existem vários dispositivos para uso de me-
dicamentos para asma: micronebulização, inalador
SABA de alívio conforme pressurizado dosimetrado (IPD, conhecidos como
a necessidade nebulímetros, “bombinhas” ou “spray”), com ou sem
Visto que a asma passa a ser classificada como espaçador acoplado, valvulados ou não, e inaladores
grave devemos, preferenciamente, encaminhar o pa- de pó seco (IPS). Na nossa prática pediátrica, o mais
ciente para avaliação de um especialista. utilizado é o IPD com espaçador valvulado. O uso do
Nessa etapa, tenta-se a combinação de dose alta espaçador valvulado apresenta como vantagem prin-
de CI/LABA, porém há poucos benefícios adicionais e cipal a eliminação da necessidade de coordenar o jato
existem riscos aumentados de efeitos colaterais. Na com a respiração. Isso permite que crianças pequenas

SJT Residência Médica – 2016


99
7  Afecções de vias aéreas inferiores: tópicos de asma em pediatria

e aquelas em crise moderada a grave consigam utilizar o IPD. Além disso, o espaçador funciona como um “filtro”
que retém partículas grandes e libera partículas respiráveis, reduzindo a deposição de medicamento na orofaringe
e, consequentemente, os efeitos sistêmicos. Na orientação à família da criança asmática, é importante ensinar a
técnica correta de uso do IPD com espaçador valvulado, seguindo os seguintes passos:
1. Montar corretamente o espaçador;
2. Encaixar o IPD no espaçador;
3. Agitar o IPD por 5 segundos;
4. Colocar a peça bucal ou máscara bem ajustados ao rosto da criança, na posição sentada;
5. Estimular a respiração pela boca quando possível;
6. Acionar o jato;
7. Tempo de respiração: 10 a 30 segundos (5 a 10 incursões respiratórias);
8. Aguardar 15-30 segundos entre cada aplicação;
9. Realizar apenas um jato de cada vez.
O choro prejudica a deposição pulmonar, mas não é um impedimento para a realização. A indicação do
uso de micronebulizadores está restrita a lactentes muito pequenos em que não se consegue boa adaptação da
máscara do espaçador à face e/ou cujo volume corrente não for suficiente para abrir a válvula do espaçador e, nas
formas graves em que há necessidade de oxigenoterapia concomitante.

Tratamento da exacerbação
O objetivo principal da abordagem da criança ou adolescente asmáticos deve ser proporcionar suporte
para que as exacerbações (“crises”, para os pacientes) não resultem em atendimentos em serviços de urgência,
internações (inclusive em UTI) e mesmo óbitos. Na maioria das vezes, quando o paciente e a família conhecem a
doença e seus fatores desencadeantes, têm acesso regular aos medicamentos e sabem como utilizá-los com tran-
quilidade e no momento certo (diante das primeiras manifestações de uma exacerbação), é possível reduzir signi-
ficativamente a morbidade relacionada à asma. Entretanto, ainda é uma triste realidade no nosso país, serviços
de pronto-atendimento muito sobrecarregados com crianças e adolescentes em crise de asma.
Todos os pacientes devem ter um plano de ação, por escrito, para a asma, e devem ser educados sobre como
reconhecer e agir diante de um agravamento da doença.
Uma breve história é importante para caracterizar a gravidade de crises pregressas quanto ao uso de corti-
costeroides sistêmicos, hospitalizações e necessidade de oxigenoterapia ou de terapia intensiva. O exame físico
deve avaliar os sinais de gravidade e os sinais vitais (nível de consciência, temperatura, frequência cardíaca,
frequência respiratória, pressão arterial, capacidade de completar frases, uso de músculos acessórios e sibilos).
Além disso devemos procurar por fatores complicadores (anafilaxia, pneumonia, pneumotórax, atelectasia ou
pneumomediastino). Sempre devemos afastar condições alternativas que poderiam explicar a falta de ar aguda
(por exemplo, insuficiência cardíaca, aspiração de corpo estranho ou embolia pulmonar). A oximetria de pulso
deve ser aferida; níveis de saturação menores que 90% em crianças ou adultos sinalizam a necessidade de te-
rapia agressiva.

Classificação da Crise
O quadro X-4 apresenta a classificação da crise asmática em leve, moderada e grave, através de dados da
história e do exame físico.

SJT Residência Médica – 2016


100
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Insuficiência
Leve Moderada Grave
respiratória
Falta de ar Quando anda Quando fala Em repouso Em repouso
Respira entre Respira entre
Fala Respira entre frases Muito cansado para falar
sentenças palavras
Normal ou Aumentada, normal ou
FR Aumentada Aumentada
aumentada diminuída
FR normal em crianças acordadas:
Idade FR
< 2 meses < 60/min
2 – 12 meses < 50/min
1 – 5 anos < 40/min
6 – 8 anos < 30/min
Prostrado se crise Prostrado ou
Estado geral Normal Sonolento, confuso
prolongada agitado
Peak flow
(em relação ao pre- > 70% 50% - 70% < 50% Não é possível realizar
visto ou ao basal)
Musculatura Variável de intensa a sem
Não Leve a moderada Intensa
acessória desconforto (fadiga)
Murmúrio vesicular
Sibilos inspiratórios Sibilos inspiratórios
Ausculta Sibilos expiratórios diminuído, sem sibilos
e expiratórios e expiratórios
(tórax silencioso)
Sat O2 (oximetria) > 95% 90% - 95% < 90% < 90%
Tabela 7.4  Classificação da crise asmática.

A aminofilina e a teofilina não devem ser utili-


Medicações e condutas zadas no tratamento de exacerbações asmáticas, ten-
Para exacerbações leves, a administração repe- do em conta sua fraca eficácia. A utilização de amino-
tida de SABA inalado a moderada (até 4 a 10 puffs a filina intravenosa está associada a efeitos colaterais
cada 20 minutos na primeira hora) geralmente é a ma- graves e potencialmente fatais. O sulfato de mag-
neira mais eficaz e eficiente para atingir rápida rever- nésio por via intravenosa não é recomendada para
são do fluxo de ar. Administração de SABA através de
uso rotineiro em exacerbações de asma. No entanto,
um espaçador leva a uma melhora semelhante como
quando administrado, reduz admissões hospitalares
via nebulizador. O corticosteroide sistêmico deve ser
em alguns pacientes, incluindo adultos e crianças
administrado na crise de asma. A dose recomendada
que não respondem ao tratamento inicial e têm hipo-
de prednisolona é de 1 a 2 mg/kg/dia para crianças,
xemia persistente.
até um máximo de 40mg/dia. Deve ser continuada por
5 a 7 dias. A administração oral é tão eficaz como in- Gasometria arterial não é rotineiramente ne-
travenosa. A via oral é preferida porque é mais rápida cessária. Deve ser considerada para aqueles que não
e menos invasiva; uma formulação líquida é a prefe- respondem ao tratamento inicial ou estão se deterio-
rida. Exigem, pelo menos, 4 horas para produzir uma rando. Oxigênio deve ser prescrito enquanto exames
melhora clínica. Corticosteroides intravenosos podem são obtidos. PaO2 <60 mmHg ou aumento da PaCO2
ser administrados quando os pacientes estão muito (especialmente> 45 mmHg) indicam insuficiência res-
dispneicos, vomitando, ou quando os pacientes neces- piratória. A radiografia de tórax não é recomendada
sitam de ventilação não-invasiva ou intubação. Altas rotineiramente, porém deve ser considerada se um
doses de corticosteroides inalatórios ofertadas dentro processo cardiopulmonar alternativo é suspeito ou
da primeira hora reduz a necessidade de hospitaliza-
para pacientes que não estão respondendo ao trata-
ção em pacientes que não receberam corticosteroides
mento ou caso haja sinais físicos sugestivos de pneu-
sistêmicos. Quando administrados em adição ao cor-
motórax, doença do parênquima pulmonar ou um cor-
ticosteroide sistêmico, a evidência é conflitante. Para
po estranho inalado.
adultos e crianças com exacerbação moderada-grave,
o brometo de ipratrópio, que tem ação anticolinérgica, As Figuras 7.1 a 7.3 apresentam, de forma sucin-
foi associado com menos hospitalizações e uma maior ta, o tratamento das crises asmáticas leves, modera-
melhora VEF1 comparado com SABA isoladamente. das e graves.

SJT Residência Médica – 2016


101
7  Afecções de vias aéreas inferiores: tópicos de asma em pediatria

β2 – agonista a cada 20´, até 2x

• fenoterol ou salbutamol
• > 2 anos – aerosol com espaçador, 400 µcg/dose
• < 2 anos – inalação com SF (5 mL) e:
• fenoterol:
• 1 gota cada 3 kg (máximo 8 gotas)
• salbutamol:
• < 10 kg: 0,25 mL

Alta com orientação de:


Corticosteroide VO (ataque)
• β2-agonista de 6/6hs
prednisona ou ou 8/8 hs por 5 dias.
prednisolona, 2 mg/kg Obs: se aerosol, diminuir
(máximo 60 mg) dose para 200 µcg/dose
Manter β2 – agonista a cada 20’ , até 3x

Alta com orientação de:


Admitir na observação
• Corticosteróide VO
• O2 se necessário • prednisona ou prednisolona
• β2- agonista 2/2 hs • 1 a 2 mg/kg/dia, máximo 80
• corticosteroide oral mg/dia, dividido em 2 doses,
• prednisona ou prednisolona por 5 dias (3 - 10 dias, sem
• 1 mg/kg/dose, máximo 20 necessidade de regressão lenta)
mg, de 6/6 hs, por até 48
• β2- agonista de 6/6hs por 5 dias.
Obs: se aerosol, diminuir dose para
200 µcg/dose

Figura 7.1  Manejo da crise asmática leve. Se o paciente estiver em uso de corticosteroide ou β2-agonista regular
em casa, considerar tratamento da crise asmática moderada

β2- agonista a cada 20’, até 3x

• fenoterol ou salbutamol
• > 2 anos - aerosol com espaçador, 400 µcg/dose
• < 2 anos - inalação com SF (5 ml) e:
• frenoterol:
• 1 gota cada 3 kg (máximo 8 gotas)
• salbutamol:
• < 10 kg: 0,25 ml
• 10 - 20 kg: 0,5 ml
• > 20 kg: 0,75 ml

Corticosteroide (ataque) VO

• na entrada: uso recente de corticosteróide, ou uso de


β2- agonista de horário em casa
• após a primeira dose de β2- agonista, se não houver
resposta imediata
• prednisona ou prednisolona 2 mg/kg (máximo 60 mg)

Resposta ruim Resposta parcial Boa resposta

Admitir na observação
Admitir na observação Alta com orientação de:
• O2 100%
• β2- agonista inalatório associado a brometo de ipratrópio • Corticosteróide VO
• O2 se necessário
(3 inalações seguidas) • prednisona ou prednisolona
• β2- agonista 2/2 hs • 1 a 2 mg/kg/dia, máximo 80 mg/dia, dividido
• dose de ipratrópio: • corticosteróide oral
• < 1 ano: 10 gotas •
• prednisona ou prednisolona em 2 doses,
• •
1 - 12 anos: 20 gotas • 1 mg/kg/dose, máximo 20 mg,
por 5 dias (3 - 10 dias, sem necessidade de


> 12 anos: 40 gotas de 6/6 hs, por até 48 horas regressão lenta)
corticosteroide oral ou endovenoso β2- agonista de 6/6hs por dia 5 dias.
• prednisona, prednisolona ou metilprednisolona Obs: se aerosol, diminuir dose para 200 µcg/dose
1 mg/kg/dose, máximo 20 mg, de 6/6 hs, por até 48 horas
Boa resposta

• O2 100%
• β2- agonista a cada 20’ (3x seguidas) Considerar
• sulfato de magnésio
• 50 mg/kg, máximo 2g, EV, em 30’ Resposta ruim • UTI
• corticosteróide oral ou endovenoso • Ipratrópio 6/6 hs
• prednisona, prednisolona ou metilprednisolona • β2- agonista EV contínuo
• • aminofilina EV
1 mg/kg/dose, máximo 20 mg, de 6/6 hs, por até
48 horas

Figura 7.2  Manejo da crise asmática moderada.

SJT Residência Médica – 2016


102
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Admitir na observação

• O2 100%
• β2- agonista inalatório associado a brometo de
ipratrópio (3 inalações seguidas)
• dose do β2- agonista (fenoterol ou salbutamol):
• fenoterol:
• 1 gota cada 3 kg (máximo 8 gotas)
• salbutamol:
• < 10 kg: 0,25 ml
• 10 - 20 kg: 0,5 ml
• > 20 kg: 0,75 ml
• dose do ipratrópio:
• < 10 kg: 10 gotas
• 10 – 20 kg: 20 gotas
• > 20 kg: 40 gotas
• corticosteróide oral, intramuscular ou endovenoso
• prednisona, prednisolona ou metilprednisolona
• 2 mg/kg, máximo 60 mg

Resposta ruim Boa resposta

• O2 100%
• β2- agonista a cada 20’ (3x seguidas)
• sulfato de magnésio Admitir na observação
• 50 mg/kg, máximo 2g, EV, em 30’
• corticosteroide endovenoso • O2 se necessário
• metilprednisolona • β2- agonista de 1/1 ou 2/2 hs
• 1 mg/kg/dose, máximo 20 mg, de corticosteróide oral
6/6 hs, por até 48 horas
• prednisona ou prednisolona
• considerar • 1 mg/kg/dose, máximo 20 mg,
• UTI de 6/6 hs, por até 48 horas
• Ipratrópio 6/6 hs
• β2- agonista EV contínuo
• O2 100% Boa resposta
• β2- agonista a cada 20’ (3x seguidas)
Resposta ruim • corticosteroide endovenoso
• metilprednisolona
• 1 mg/kg/dose, máximo 20 mg, de Resposta ruim
6/6 hs, por até 48 horas
• considerar
UTI
• UTI
• Ipratrópio 6/6 hs
• β2- agonista EV contínuo
• aminofilina
Figura 7.3  Manejo da crise asmática grave.

Prevenção
O desenvolvimento e persistência da asma são dependentes de interações gene-ambiente. Para as crianças,
uma “janela de oportunidade” existe no útero e no início da vida, mas estudos de intervenção ainda são limitados.
A sensibilização pelos alérgenos é um dos mais importantes fatores de risco para o desenvolvimento de asma. Al-
gumas medidas de prevenção primária têm sido propostas, embora nenhuma dessas medidas tenha demonstrada
inequívoca certeza que interferem na redução do desenvolvimento ou modificação da história natural da asma.
As recomendações atuais, com base em consensos, incluem: evitar a exposição ao tabaco durante a gravidez e no
primeiro ano de vida e incentivar o parto vaginal e a amamentação. Além disso, sempre que possível, evitar o uso
de paracetamol e antibióticos de largo espectro durante o primeiro ano de vida.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

8
Infecção do trato urinário (ITU)
e refluxo vesicoureteral (RVU)

portamento poderá modificar-se em crianças que


Infecção do trato urinário evoluíram com cicatriz renal. Nestas, a incidência de
pielonefrite poderá permanecer alta mesmo em fai-
A infecção do trato urinário (ITU) é um termo ge- xas etárias maiores.
nérico que habitualmente está associado à inflamação
das estruturas urinárias e decorre da invasão microbia- Na adolescência ocorre um novo pico de incidên-
na. A ITU configura-se entre as infecções bacterianas cia de casos. O aumento dos surtos de ITU pode estar
mais frequentes e de maior risco durante a infância, correlacionado com alterações hormonais, menstru-
especialmente em lactentes. As superfícies epiteliais ação, atividade sexual e gravidez. O recém-nascido
do trato urinário são contíguas e se estendem desde o de mãe que apresentou bacteriúria na gestação pode
filtrado pós-glomerular renal até o meato uretral. Na apresentar um risco até quatro vezes maior de infec-
ausência de processo infeccioso, o trato urinário é con- ção urinária no período neonatal em decorrência da
siderado estéril, exceto na uretra distal, única porção colonização intestinal pela mesma bactéria uropato-
do trato urinário colonizada por bactérias. gênica albergada no intestino materno. Essa contami-
nação pode ocorrer na passagem pelo canal de parto,
Na infância, de maneira geral, existe grande
ruptura prematura de membranas ou mesmo por ma-
prevalência de ITU nas meninas, variando a relação
nipulação materna poucas horas após o nascimento.
com o sexo masculino de 4:1 até 20:1. Exceção ocorre
em neonatos e lactentes jovens, até o sexto mês de Mais do que por sua frequência, a importância
vida, quando as infecções sintomáticas predominam dessa afecção deve ser vista em função de história na-
no sexo masculino. A ITU prevalece nos primeiros tural, permeada de recorrências em grande parte dos
anos de vida, com pico de incidência por volta de três casos, e tendo como possibilidade evolutiva a ocorrên-
a quatro anos de idade, diminuindo após a idade pré- cia de lesões (cicatrizes) renais, num período particu-
-escolar, quando notamos também uma redução no lar de grande suscetibilidade do rim às agressões bac-
número de casos de infecção urinária alta - pielone- terianas, responsáveis por prejuízos da função renal
frite aguda (PNA). Entretanto, esse padrão de com- na vida adulta. Por essa razão, os principais objetivos
104
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

no manuseio da ITU são o diagnóstico precoce, trata-


mento adequado eliminando a infecção (diminuindo o Etiopatogenia
risco de sepse) e identificação de fatores de risco para
lesão renal, desde o primeiro episódio. O emprego de A principal via de aquisição da ITU é a ascenden-
técnicas mais apropriadas possibilita o diagnóstico e te, por patógenos que colonizam a região periuretral,
geralmente oriundos da microbiota intestinal. Vários
o tratamento precoces, melhorando o prognóstico re-
estudos demonstram que a bactéria uropatogênica
nal em longo prazo. A investigação do trato urinário
contamina o trato urinário feminino através da rota
por imagem, com resolução progressivamente melhor,
fezes-períneo-uretra com consequente ascensão re-
detectou mais precocemente pacientes com anorma-
trógrada para a bexiga. A contaminação prévia da ge-
lidades do trato urinário e, portanto, de maior risco
nitália externa (região periuretral) por bactéria uropa-
de evoluírem com doença renal, hipertensão ou com-
togênica é pré-requisito essencial para que ocorra ITU.
plicações na gestação. Portanto, as medidas preventi-
vas e o acompanhamento clínico periódico adequados A presença de refluxo vesicoureteral (RVU) po-
promoveram significativa queda nos índices de mor- derá facilitar o transporte da bactéria da bexiga até o
bidade, melhorando efetivamente o prognóstico da parênquima renal, sendo considerado, pela maioria
doença renal em longo prazo. dos autores, importante fator de risco para dano re-
nal. Refluxos graves (grau IV ou V) podem causar um
Sabe-se que 10% a 15% das pielonefrites agu- risco até quatro vezes maior de PNA em relação ao
das evoluem para cicatriz renal. Infelizmente, um RVU leve.
contingente de pacientes, em geral portadores de
malformações do trato urinário (aproximadamen- A aquisição por via hematogênica é rara, e ocorre
te 5% a 10% dos casos), poderá, em médio ou longo predominantemente no período neonatal.
prazo, evoluir com piora progressiva da função renal, Embora a ITU possa ser causada por qualquer
insuficiência renal crônica terminal e eventual trans- patógeno que colonize o trato urinário (como fungos,
plante renal. Ressalta-se que grande parte dos pa- parasitas e vírus), os uropatógenos mais frequentes
cientes com insuficiência renal crônica terminal é ou são bactérias de origem entérica, destacando-se a Es-
foi portadora do binômio ITU associado à nefropatia cherichia coli como a principal bactéria uropatogênica
obstrutiva ou à nefropatia do refluxo. Daí entende-se encontrada em ambos os sexos e em qualquer faixa
a preocupação do correto e preciso diagnóstico e do etária. Fatores como sexo, idade e associação com mal-
acompanhamento longo, e, por vezes, custoso, dos formações do trato urinário interferem na frequência
pacientes com ITU. relativa desses agentes, mas a E. coli é o micro-orga-
Trata-se, portanto, de uma doença que não se nismo mais comum, respondendo por 75% a 90% de
encerra com a terapêutica antimicrobiana e com a cura todos os casos de ITU na infância. Em meninas me-
clínica, mas que implica a execução de exames labo- nores de cinco anos a E. coli é a enterobactéria mais
ratoriais e imagenológicos repetidos durante o segui- comumente encontrada na região periuretral, e, em
mento clínico. meninos, predomina durante os primeiros seis meses,
seguida das bactérias do gênero Proteus. No sexo mas-
culino, as bactérias determinantes de ITU procedem
do meato uretral e do prepúcio, no qual a densidade
de receptores para Proteus está aumentada. Portanto,
Classificação o gênero Proteus sp ocupa o segundo lugar no sexo
masculino, podendo ser responsável por até 30% dos
Basicamente, e do ponto de vista prático, a pre- casos de ITU, sendo Proteus mirabilis e P. vulgaris uro-
sença de bactérias no trato urinário pode ser dividida patógenos habituais. Algumas cepas de Proteus sp são
em três situações clínicas: produtoras de urease, assim como outros agentes, tais
� Bacteriúria assintomática (BA): presença de um como: Klebsiella pneumoniae, Pseudomonas sp e Can-
agente bacteriano “adaptado” ao trato urinário e dida sp, que, através da hidrolisação da ureia uriná-
que não determina sintomatologia ao paciente; ria, promovem a formação de amônio e alcalinização
� Cistite (ou ITU baixa): infecção de localização da urina, facilitando, dessa maneira, a formação de
em bexiga, de caráter mais benigno, com sinto- cálculos de estruvita ou fosfato-amônio-magnesiano
matologia mais branda; que, em geral, apresentam crescimento rápido e de as-
� Pielonefrite (PN): infecção de localização renal, pecto coraliforme. Esses são responsáveis por 10% a
frequentemente determinando alterações ra- 15% dos cálculos urinários, podendo estar associados
diológicas e histológicas evidentes; causada, na a enfermidades obstrutivas do trato urinário. Algu-
maioria das vezes, por cepas bacterianas mais mas cepas de E. coli e Proteus sp têm capacidade de
virulentas (nefritogênicas). aderir ao prepúcio, que, uma vez colonizado, poderá se

SJT Residência Médica – 2016


105
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

tornar manancial de bactérias potencialmente uropa- O mecanismo de defesa do hospedeiro apresenta


togênicas, principalmente em lactentes jovens. Esses um conjunto de fatores inerentes ou adquiridos que
pacientes poderão se beneficiar com a realização de o torna mais ou menos apto a defender-se do ataque
postectomia, diminuindo em até 90% o risco de ITU. microbiano. Da mesma forma, as bactérias uropatogê-
nicas apresentam propriedades intrínsecas e diferen-
Outros agentes também são encontrados: Klebsie-
tes capacidades de produzir e secretar toxinas. As E.
la sp, Enterobacter sp, Streptococcus faecallis, Serratia e
coli também apresentam outros fatores de virulência:
P. aeruginosa, Staphylococcus saprophyticus (segundo
hemolisina (determina lesões nas células tubulares
agente em adolescentes, particularmente nas sexual-
renais) e aerobactina (substância que determina a ca-
mente ativas) e vírus (adenovírus – cistite hemorrágica).
pacidade de adquirir o íon Fe, necessário para o ótimo
As alterações hormonais secundárias na adolescência
crescimento bacteriano). Alguns fatores de virulência
favorecem mudanças na flora, possibilitando a coloniza- como esses podem ser produzidos em lócus gênicos
ção vaginal por outras bactérias uropatogênicas menos próximos, formando as chamadas “ilhas de patogeni-
comuns, tais como Staphylococcus saprophyticus. Essas cidade”. Essas ilhas podem ser transmitidas para ou-
infecções atingem, em geral, o trato urinário inferior, tras bactérias através da troca de material genético,
ocasionando cistites com polaciúria, disúria, dor hipo- aumentando a capacidade de virulência da bactéria
gástrica e, frequentemente, hematúria. receptora e, consequentemente, o risco de dano renal.
O início da atividade sexual pode ocasionar súbito Quando o hospedeiro apresenta fatores facilitadores
aumento do número de ITU,assim como o uso de esper- de pielonefrite, como o RVU, as bactérias não necessi-
micida, pois parece alterar a defesa vaginal (por diminui- tam de fatores especiais de virulência.
ção dos bacilos acidófilos) e a colonização periuretral. A E. coli tem um antígeno de superfície O (ou
Em crianças com ITU associada à imunodepres- somático), que é um lipossacáride complexo, com ati-
são, malformações do trato urinário, manipulações vidade de endotoxina. Permite classificar a bactéria
cirúrgicas, cateteres e cálculos existem outras entero- em 150 cepas, sendo isolados principalmente os soro-
bactérias (Providencia, Citrobacter etc.) ou outras bac- tipos: 1; 2; 4; 6; 7; 25; 50; 75 (cepas pielonefritogêni-
térias não habitualmente uropatogênicas que podem cas). Descreve-se ainda a existência de mais dois antí-
causar ITU, como, por exemplo, o Streptococcus do genos: K, capsular e H, flagelar, determinando grande
grupo D (principalmente os enterococos), Enterobac- número de combinações. No entanto, somente poucas
ter, Pseudomonas, S. aureus ou epidermidis, além de dessas combinações determinarão ITU por apresenta-
fungos como a Candida. Na presença de ITU associada rem um ou mais fatores de virulência, além da veloci-
a anormalidades anatômicas de rins ou vias urinárias dade de multiplicação bacteriana na urina, duas vezes
a intervenção cirúrgica pode ser a única forma de erra- mais intensa do que nas E. coli exclusivamente fecais.
dicar a ITU. Essas crianças tendem a apresentar persis- O primeiro passo para que ocorra infecção é a
tência da infecção urinária, apesar da administração aderência da bactéria à mucosa. A E. coli possui na
adequada de antibióticos, ou reinfecções frequentes, sua superfície numerosos filamentos de natureza pro-
geralmente causadas pelo mesmo uropatógeno. Nes- teica, denominados pili ou fímbrias, que conferem à
ses casos, devemos excluir a possibilidade de o uropa- bactéria a capacidade de aderir às células epiteliais,
tógeno estar localizado em “sítios protegidos”, ou seja, através de receptores. São de dois tipos: fímbrias do
em local não acessível a terapia com antibióticos. tipo I (ou manosessensíveis) e fímbrias tipo II (mano-
Crianças imunodeprimidas e portadoras de ca- serresistentes). As do tipo I têm sua importância na
teteres de demora podem apresentar infecções por ITU bastante controversa, pois se unem também facil-
mente a fagócitos, ocasionando destruição rápida da
oportunistas como Candida e Pseudomonas. Observa-
bactéria e fraca resposta inflamatória das células uro-
-se que alterações urodinâmicas que cursam com es-
epiteliais. As fímbrias do tipo II (manoserresistentes)
tase e resíduo pós-miccional propiciam maior número
possuem aderência a certos receptores que estão pre-
de surtos de infecção, selecionam uropatógenos não
sentes em número variável no uroepitélio da maioria
habituais e cepas multirresistentes, dificultando a er-
dos indivíduos, ocasionando diversos graus de reação
radicação da ITU.
inflamatória local, de acordo com a interação bacté-
Como em outras infecções, na ITU há intera- ria/hospedeiro. Esse mesmo receptor encontra-se na
ção entre o agente agressor (fatores de virulência) e superfície das hemácias humanas, em indivíduos do
o hospedeiro. A observação de que bactérias de baixa sistema sanguíneo P1, tanto que a principal fímbria
virulência poderiam causar dano renal em hospedei- desse tipo é chamada de fímbria P. As E. coli P fimbria-
ros mais suscetíveis deu ênfase ao estudo da interação das condicionam 90% das pielonefrites sem refluxo,
bactéria-hospedeiro. O resultado da interação entre sendo escassas nas cistites e BA. Ao aderir às células
a capacidade de virulência bacteriana e a resistência epiteliais, a E. coli transfere toxinas e endotoxinas ao
do hospedeiro pode causar colonização assintomática, hospedeiro, determinando efeitos deletérios, como a
doença clínica ou eliminação da bactéria. paralisação dos movimentos peristálticos dos urete-

SJT Residência Médica – 2016


106
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

res, assim como sua dilatação; alteração na atividade No RN, a infecção acomete mais o sexo masculi-
mitótica das células da junção vesicoureteral, impedin- no, no qual predominam também as anomalias do trato
do sua maturação. A ação da bactéria no tecido renal urinário. O quadro reveste-se de maior gravidade, com
resulta em resposta inflamatória local que determina sério comprometimento do estado geral, com frequente
leucocitúria e resposta sistêmica com febre, elevação evolução para um quadro séptico. Febre sem sinais lo-
da proteína C reativa, VHS e leucocitose. A inibição calizatórios (FSSL) é comum, sendo a ITU responsável
da aderência bacteriana tem sido objeto de diversos por até metade dos casos. É a “criança que não vai bem”,
trabalhos experimentais, ainda não conclusivos, uti- com hiper ou hipotermia, icterícia (aumento de bilirru-
lizando vacinas preparadas com fímbrias bacterianas, bina direta), cianose, irritabilidade, anorexia, vômitos,
substâncias similares aos receptores e doses subinibi- distensão abdominal, apatia e sintomas relacionados ao
tórias de antimicrobianos, abrindo novas perspectivas SNC (choro persistente, hipoatividade ou convulsões).
para o controle das ITU. Sinais de bacteremia e sepse a partir de um foco uriná-
rio (urossepse) são frequentes em neonatos e lactentes
As bactérias podem ativar diretamente as células
jovens. Na exploração diagnóstica dessas crianças, a
epiteliais do trato urinário a produzirem mediadores
urocultura se impõe como exame obrigatório.
inflamatórios precoces, as citocinas, responsáveis pelo
desencadeamento da cascata inflamatória. A intensi- No lactente, a febre assume importância maior,
dade e a localização da resposta inflamatória no tra- o que geralmente motiva a procura do serviço médico.
to urinário determinam as manifestações clínicas da Disúria, urgência miccional e polaciúria, embora pos-
ITU. Em aproximadamente 30% dos pacientes com sam estar presentes, são sintomas difíceis de identificar
pielonefrite (PN), a bactéria invade a mucosa até al- nessa faixa etária, uma vez que a criança usa fraldas e
cançar a corrente sanguínea, causando bacteremia e, não consegue expressar a queixa. Os sinais e sintomas
ocasionalmente, sepse (especialmente em neonatos). da infecção são, em geral, inespecíficos, tornando difícil
Pacientes com PN aguda têm inflamação da pelve e distinguir entre ITU e a presença de outros focos infec-
do parênquima renal com sintomas sistêmicos (febre, ciosos extrarrenais, retardando o diagnóstico e trata-
queda do estado geral, leucocitose). mento adequados. Podemos ter relato de alterações no
aspecto e odor da urina, choro correlacionado a micção
A combinação de dano intersticial, enzimas tóxi-
ou alteração no número e volume das micções. Outros
cas, isquemia e reperfusão produz as alterações encon-
sintomas inespecíficos, isolados ou em conjunto, quan-
tradas no parênquima renal durante a PN aguda. Essas
do sem explicação aparente, devem indicar ao pediatra
alterações podem reverter completamente, com recons-
a necessidade de pensar em ITU: anorexia, ganho ina-
tituição do parênquima renal, em cerca de quatro a seis
dequado de peso, irritabilidade, vômito ou diarreia. Em
meses após o tratamento, ou evoluir para a formação
relação ao ganho inadequado de peso, vale ressaltar que,
de cicatrizes, encontradas em cerca de 5% a 15% das
antes de solicitar uma urocultura, deve-se aprofundar a
crianças investigadas radiologicamente. Essas crianças
história sobre a disponibilidade e a oferta de alimentos,
podem evoluir para insuficiência renal crônica (IRC),
pois a ocorrência de desnutrição entre lactentes pode
hipertensão arterial (HAS) ou proteinúria. Isso poderia
ser muito maior do que a incidência de ITU. Classica-
ser reduzido com diagnóstico e tratamento precoces e mente, alguns autores não valorizam a importância do
acompanhamento clínico-laboratorial adequado. déficit de crescimento como sinal para o diagnóstico do
primeiro episódio de ITU de um lactente. Consideram,
entretanto, que esse episódio é acompanhado de febre
na maior parte das vezes, enquanto nas recorrências
Quadro clínico ou infecções de longa duração há diminuição da apre-
sentação desse sinal, passando a ter maior importância
O quadro clínico de ITU varia de acordo com outros elementos, como a evolução pondero-estatural
o sexo, a idade de aparecimento do primeiro episó- insuficiente. Na prática, a presença de febre sem foco
dio, o segmento do trato urinário acometido pela aparente é o principal sintoma encontrado em ITU nos
infecção e a intensidade da resposta inflamatória. À lactentes e pode, principalmente em lactentes jovens,
medida que progride do recém-nascido ao escolar, aparecer como único sintoma da ITU.
verifica-se uma tendência à localização dos sinto- A partir da idade pré-escolar, crianças com contro-
mas, que passam a ser referidos especificamente no le esfincteriano (após 24-36 meses de idade), a sinto-
trato urinário. Assim, de um quadro de infecção ge- matologia começa a ser definida mais especificamente
neralizada, com tendência para sepse, observado no no trato urinário: disúria (emissão dolorosa e difícil da
recém-nascido (RN), passa-se àquele em que a febre urina), polaciúria (aumento da frequência miccional,
e os sintomas inespecíficos são os dados mais impor- sem aumento do volume), retenção urinária, tenesmo,
tantes e frequentes no lactente, até a referência de urgência, urge-incontinência, enurese noturna secun-
sintomas específicos do trato urinário, encontrada dária etc. Observamos que, paradoxalmente aos adultos
na criança maior e no adolescente. com ITU, que tendem a evoluir com polaciúria, as crian-

SJT Residência Médica – 2016


107
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

ças, em qualquer faixa etária, tendem a apresentar, mais fosse instituída terapêutica profilática em grande parte
frequentemente, retenção urinária. Esses sintomas po- dos pacientes, até a finalização de extensa investigação
dem estar associados a sintomas sistêmicos, tais como: complementar, além da realização de uroculturas de
anorexia, prostração, febre, vômitos, dor abdominal, controle seriadas por até 2 anos após a infecção inicial.
toxemia, irritabilidade, etc. Nas pielonefrites, podem Com o passar dos anos, outras sociedades in-
ser encontradas febre e dor lombar. Hematúria macros- ternacionais surgiram com novas propostas menos
cópica ocorre entre 20% e 25% dos casos de cistite agu-
invasivas. Entre elas, destaca-se a diretriz inglesa
da, e hematúria microscópica é achado comum. Embora
do National Institute for Health and Care Excellen-
o aparecimento de queixas específicas do trato urinário
ce  (NICE-2007), que propõe critérios mais rigorosos
favoreça a suspeita de ITU, esse fato permite, também,
sobre a indicação de investigação complementar em
muitos erros diagnósticos. Alguns autores referem que a
pacientes com antecedente de ITU.
combinação de dois ou mais sintomas urinários encontra
uma correlação com ITU de 33%, enquanto apenas um Mais recentemente, em 2011, a AAP publicou no-
sintoma correlaciona-se a cerca de 10%. vos guidelines para o diagnóstico e seguimento de crian-
ças com ITU. Contudo, essas recomendações são voltadas
Nas fases iniciais de desenvolvimento, época em
unicamente para crianças entre dois meses e dois anos de
que ocorre o processo de controle esfincteriano, é co-
vida e que apresentem quadros de ITU febril.
mum a criança apresentar padrão de micção que pode
ser confundido com polaciúria e urgência. A criança pe- A presença de diversos guidelines sobre o mesmo
quena, que ainda não controla o esfíncter vesical, ao ter tema deixa evidente dois importantes pontos: 1. gran-
a sensação de bexiga cheia, tem a necessidade de micção de parte das diretrizes recomendadas está baseada em
imediata. A polaciúria também pode ocorrer em conse- consensos, e, não em evidências clínicas estabelecidas
quência de vulvovaginite, balanopostite, litíase urinária e 2.a ITU deve gerar preocupação no pediatra para se-
ou irritação química da uretra. Espera-se que os pré- guimento a longo prazo, pois é uma doença que pode
-escolares e os escolares urinem entre três e seis vezes gerar cicatrizes e sequelas.
ao dia. Destaca-se ainda a história de aumento isolado O que apresentaremos a seguir será baseado
e repentino da frequência de micções (em relação ao nos principais pontos dos vários consensos, tentando
padrão miccional pregresso), que em grande número sempre destacar os aspectos considerados fundamen-
de casos pode representar manifestação de reações de tais pela maioria deles.
ansiedade diante de situações vivenciadas pela criança.

Investigação clínica em
Diagnóstico crianças com ITU
Na prática pediátrica, a ITU talvez seja uma das Além dos sintomas específicos urinários, deve
doenças em que a confirmação do diagnóstico apre- ser dada atenção à pesquisa sobre o padrão miccional
sente mais problemas, sendo, curiosamente, uma do- da criança (frequência, intensidade, características do
ença tanto super quanto subdiagnosticada. O caráter jato urinário – entrecortes, gotejamento, perdas uri-
inespecífico da sintomatologia, particularmente no nárias - diminuição da capacidade ou instabilidade
período neonatal e no lactente pequeno, contribui vesical, enurese secundária, manobras ou posturas
para que o pediatra nem sempre pense em ITU como estranhas adotadas pelas crianças), que eventual-
possibilidade diagnóstica. Por outro lado, a frequência mente indicam uropatias ou distúrbios neurogênicos
com que os sintomas referentes ao trato urinário apa- associados. Deve-se investigar, também, a existência
recem como consequência de processos oriundos de de constipação intestinal, pois se verifica correlação
causas sem relação com o sistema urinário e a presen- entre crianças retentoras de fezes e de urina. A histó-
ça de inúmeros fatores determinantes de resultados ria pregressa de outras ITU, RVU, outros episódios de
falso-positivos em exames de urina colaboram para o FSSL, hipertensão, baixo ganho ponderal e estatural
hiperdiagnóstico das ITU. e vida sexual dos adolescentes são outros indícios im-
portantes que podem auxiliar o diagnóstico.
Há diversas diretrizes publicadas na literatura
internacional versando sobre o diagnóstico e, princi- No exame clínico, atenção deve ser dada à medi-
palmente, sobre o seguimento a longo prazo da criança da da pressão arterial, avaliação nutricional e do de-
com infecção urinária. Durante muitos anos, as diretri- senvolvimento neuropsicomotor, palpação abdominal
zes da Academia Americana de Pediatria (AAP), publi- (massas ou retenção) e ao exame genital. Deve-se ainda
cadas no fim da década de 90, foram a principal refe- examinar as regiões glúteas e lombossacras e proceder
rência para acompanhamento destes pacientes. Nestas à detecção de eventuais sinais de disrafismos ocultos de
diretrizes, sugeria-se que, ao fim do tratamento agudo coluna, que podem cursar com bexiga neurogênica.

SJT Residência Médica – 2016


108
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A febre é um marcador importante da presença A escolha de realizar a coleta de urocultura nos


de pielonefrite, mas não absoluto. Há portadores de pacientes com probabilidade de ITU maior do que 1%
cistite com febre (cerca de 10%) e crianças com pie- ou somente naqueles com probabilidade maior do que
lonefrite e temperatura normal (20%). Entretanto, 2% será baseado na decisão médica. Lembrando que o
alguns protocolos, como o do NICE, consideram a pre- corte de 1% levará a realizações de mais coletas com
sença de febre acima de 38°C como um dos critérios resultados normais, enquanto o corte de 2% levará a
para determinar a existência de pielonefrite, tendo em menos coletas e maior chance de postergar o diagnós-
vista a dificuldade de obter outros dados para diferen- tico de alguns pacientes.
ciar entre infecção urinária alta e baixa. A incidência Aproximadamente 80% das infecções urinárias
de ITU febril é maior no primeiro ano de vida, princi- podem ser acompanhadas de leucocitúria, identificada
palmente no sexo masculino. Acredita-se, entretanto, no exame de urina tipo 1 (EAS, sumário de urina). O
que a incidência de ITU afebril nessa faixa etária é pro- simples achado de leucócitos na urina não é suficiente
vavelmente subestimada, uma vez que, se considerar- para caracterizar ITU, sendo necessária a presença de
mos toda a população, a ITU afebril é duas vezes mais bacteriúria significativa (urocultura). Embora alguns
frequente do que a febril. A febre como único sintoma autores correlacionem a presença de leucocitúria com
da ITU pode ocorrer principalmente nos lactentes. Es- febre com sintomatologia urinária, como sugestivos
ses achados corroboram a necessidade de investigação de ITU, é mais seguro afirmar que a bacteriúria deva
laboratorial que inclua coleta de urina para cultura ser significativa (ITU está relacionada à presença de
(entre outros exames) em lactentes que apresentem bactérias nas vias urinárias). Leucocitúria estéril po-
febre por um período maior ou igual a 48 horas, sem dem ocorrer na presença de processos infecciosos ou
foco infeccioso aparente. inflamatórios, locais ou sistêmicos, renais ou extrar-
renais, tais como: dermatites perineais em geral (in-
cluindo vulvovaginite e balanopostite), glomerulo-
nefrites, pós-vacina Sabin, na vigência de algumas
Investigação laboratorial em viroses, gastroenterocolites, desidratações, doença de
crianças com ITU Kawasaki, febre de qualquer etiologia, manipulação
ou cateterização das vias urinárias, malformações do
Devido a apresentação clínica variável, a decisão trato urinário, etc.
de iniciar a investigação laboratorial nem sempre é
A introdução de antibioticoterapia baseada ape-
fácil. Sabemos que alguns pacientes merecem atenção
nas no encontro de leucocitúria, sem coleta de urocul-
especial para investigação de foco urinário. A AAP re-
tura, pode levar ao tratamento e investigação de um
comenda que qualquer lactente abaixo de 2 anos de
falso diagnóstico. Na maior parte das vezes, utiliza-
idade, com febre maior de 38°C e sem foco infeccioso
mos a presença de leucocitúria significativa para ini-
definido, cuja condição clínica determina a necessida-
ciar a antibioticoterapia, devido a rápida obtenção do
de imediata de introdução de antibiótico (pacientes
resultado. Contudo, essa prescrição deverá ser prece-
toxemiados, sépticos), deverá ser submetido a coleta
dida pela coleta de urocultura e o tratamento revisto
de urocultura. Já naqueles pacientes, abaixo de 2 anos,
assim que obtido o resultado da urocultura.
em que não há necessidade imediata da introdução de
antibióticos, a coleta seria baseada em fatores de risco A urocultura é o exame de escolha (padrão-ouro)
para infecção urinária: para confirmação do diagnóstico de ITU. Sua confiabi-
lidade depende da coleta adequada de urina. É impres-
� Meninas: raça branca, idade menor que 12 me-
cindível que a urina enviada para cultura seja colhida
ses, febre > 39°C, febre por mais de 48 horas e
adequadamente, de acordo com o sexo e a faixa etária
ausência de outro foco infeccioso aparente. A
do paciente, evitando erro no diagnóstico em decor-
presença de 2 ou mais dos fatores de risco torna
rência da contaminação da urina durante a coleta.
a probabilidade de ITU maior que 1% e a pre-
sença de 3 ou mais dos fatores de risco torna a O método de coleta é variável de acordo com a
probabilidade de ITU maior que 2%; faixa etária. Qualquer que seja a técnica de coleta da
� Meninos circuncisados: raça não-negra, febre > amostra de urina, deve-se realizar uma rigorosa as-
39°C, febre por mais de 24 horas e ausência de sepsia com água e sabão e o material colhido deve ser
outro foco infeccioso aparente. A presença de enviado rapidamente para a semeadura. Outro fator
3 ou mais dos fatores de risco torna a probabi- complicador é a hiper-hidratação da criança previa-
lidade de ITU maior que 1% e a presença de 4 mente à coleta de urina.
(todos) fatores de risco torna a probabilidade de Na criança com micção voluntária, a coleta deve
ITU maior que 2%; ser realizada com urina de jato médio (UJM), dimi-
� Meninos não-circuncidados: a probabilidade de nuindo a possibilidade de contaminação pelas bacté-
ITU ultrapassa 2% neste grupo, independente rias da uretra anterior. Por essa técnica consideramos
de fatores de risco. significativas contagens de Gram-negativos > 100.000

SJT Residência Médica – 2016


109
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

(105) ufc/mL para confirmar ITU. Essa técnica está contraindicada em crianças que apresentam afecções perine-
ais com contaminação periuretral (vulvovaginites e balanopostites), independentemente da faixa etária, estando
indicada a coleta de urina por sondagem vesical.
Na criança sem controle esfincteriano, três possibilidades se apresentam (quadro :
� saco coletor estéril (SC): com trocas e “novas assepsias” frequentes, a cada 20 ou 30 minutos. Essa técnica
pode ser empregada apenas para exame inicial de triagem, que, quando positivo, deve ser confirmado por
método mais seguro. O índice de falso-positivo na urocultura colhida por esse método pode ser de até 85%,
sendo considerado útil apenas quando o resultado é negativo (bom valor preditivo negativo). Nos casos em
que o resultado obtido com a coleta por SC for positivo, recomenda-se que o exame seja repetido usando ou-
tros métodos de maior confiabilidade antes do início do tratamento. A AAP considera que a coleta de urina por
SC é válida apenas para exclusão de ITU.
� cateterização ou sondagem vesical (SV): A urina obtida por sondagem vesical tem sensibilidade de 95% e
especificidade de 99% quando comparada à PSP. A urocultura colhida por SV é considerada positiva quando
apresentar crescimento > 50.000 (104) UFC/mL, de acordo com as diretrizes mais recentes da AAP.
� punção suprapúbica (PSP): é o padrão-ouro para coleta. Técnica: criança em decúbito dorsal, com compressão
uretral, após, pelo menos, 1 hora sem micção e assepsia rigorosa, introdução de agulha (40 x 8 ou 30 x 7)
adaptada a uma seringa, 1,5 a 2 cm acima da sínfise púbica, na linha média, inclinando a agulha 20 a 30 graus
em direção caudal, com movimento rápido de introdução e aspiração. As complicações são raras, podendo
ocorrer hematúria microscópica e macroscópica em aproximadamente 2% dos casos. Ambas são transitórias
e benignas. A penetração acidental na alça intestinal (muito rara) não gera nenhum problema. A urocultura
colhida por PSP é considerada positiva na presença de qualquer número de colônias de bactérias.
Segundo a AAP, a sondagem vesical (SV) e a punção suprapúbica (PSP) são indicadas para confirmação da infecção
urinária em crianças sem controle esfincteriano e podem ser utilizadas rotineiramente para estabelecer o diagnóstico
de ITU. A escolha do método deve ser realizada com bom senso (local de coleta, urgência da coleta, fatores complicado-
res (vulvovaginites e balanopostites), gravidade do caso, fimose exuberante e uroculturas duvidosas prévias.
Geralmente, em mais de 95% dos casos, o agente isolado é único, e a presença de mais de uma bactéria sugere
contaminação. Um resumo dos valores considerados significativos de bacteriúria são apresentados na Tabela 8.1

Urocultura: método de coleta adequado


para cada faixa etária
0-2 anos
> 2 anos
(sem controle esfincteriano)
Sondagem vesical (SV) Jato intermediário*
Meninas
Punção suprapúbica (PSP)
Punção suprapúbica (PSP) Jato intermediário*
Meninos
Sondagem vesical (SV)
Exceto em meninas portadoras de vulvovaginites e leucorreias.
Tabela 8.1  Método de coleta de urina para cada faixa etária

Bacteriúria significativa de acordo com a técnica de coleta


Técnica de coleta Bacteriúria significativa (col/mL)
Jato médio > 100.000 (entre 10.000 e 100.000 = duvidoso)
Saco coletor > 100.000 (sendo necessário confirmação por outro método mais confiável)
Cateterização vesical > 50.000
Punção suprapúbica qualquer número de colônias
Tabela 8.2 

Outros métodos diagnósticos


O grande desafio diagnóstico é saber se há comprometimento renal (maiores riscos, maior gravidade,
conduta particular) ou não. Para tanto, na prática, alguns métodos para a tentativa de localização da infecção
são propostos:

SJT Residência Médica – 2016


110
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

� Dosagem de proteína C reativa: alguns autores


consideram níveis séricos acima de 20 mg/mL Conduta
como sugestivos de pielonefrite. No entanto,
30% das PNA confirmadas com a cintilografia Na cistite o tratamento visa, principalmente, me-
com DMSA têm PCR normal. lhorar os sintomas clínicos do paciente, uma vez que
� Bacterioscopia: correlação de 90% com urocul- essa infecção é considerada benigna por não acarretar
tura. Desde que a coleta da urina obedeça aos prejuízo à função renal. Na PNA o uso de antimicrobia-
mesmos requisitos preconizados para a cultura, nos visa o tratamento precoce da infecção, diminuindo
o encontro de bactérias constitui um excelente o risco de formação de cicatrizes e consequente deterio-
screening para o início do tratamento, enquan-
ração da função renal. Na BA o tratamento é contrain-
to se aguarda o resultado da urocultura naquela
criança cujos sintomas indiquem urgência na dicado devido à possibilidade de ocorrer substituição da
instituição da antibioticoterapia. bactéria contaminante, geralmente de baixa virulência,
por cepa de maior virulência, uma vez que o paciente
� Exame de urina não centrifugada: alguns au-
tores descrevem alta sensibilidade e especifici- tende a recolonizar o trato urinário pouco tempo após a
dade para valores de leucocitúria acima de 10 suspensão do antimicrobiano. O tratamento está indi-
leucócitos/mm3. Entretanto, 25-50 leucócitos/ cado apenas quando a bacteriúria torna-se sintomática
mm3 em meninos e 50-100 leucócitos/mm3 em e/ou há sinais de progressão do dano renal. Em porta-
meninas sugerem infecção. dores de bexiga neurogênica, a bacteriúria assintomáti-
� Exame de sedimento urinário: leucocitúria ca pode estar presente em aproximadamente 80% dos
(100.000/mL) sugere ITU como visto anterior- casos, principalmente nos que realizam cateterismo ve-
mente. Cilindros leucocitários não são patogno- sical intermitente limpo. O uropatógeno habitualmente
mônicos, mas sugerem pielonefrite. O encontro encontrado é a E. coli, que parece proteger o uroepitélio
de cristais fosfato-amoníaco-magnesianos (es- da colonização por outras enterobactérias de maior vi-
truvita) na urina tipo I alerta para a presença de
cálculos infecciosos nas vias urinárias. rulência. Está contraindicado o uso de quimioprofilaxia
na vigência de colonização do trato urinário porque,
� Teste do nitrito positivo: a pesquisa da presença além de inefetiva, pode induzir aumento da resistência
de nitrito na urina pode indicar ITU, uma vez
que essa substância não é habitualmente detec- aos antimicrobianos habituais.
tada nesse líquido. Entretanto, o teste de redu- Em vista da inespecificidade dos sintomas de
ção de nitrato a nitrito tem sensibilidade muito ITU em pediatria, sempre que for possível, realizar o
variável (35% a 80%) e especificidade de 90%. exame bacterioscópico; a terapêutica pode ser orienta-
� Emprego de laminocultivo: é um sistema prático de da pelo resultado desse exame. Quando a bacteriosco-
cultura em lâmina para o diagnóstico da ITU, permi- pia não estiver disponível e houver suspeita clínica de
tindo a identificação direta de E. coli, principal agente pielonefrite, o tratamento não deve ser retardado. No
uropatogênico. A urina coletada é imediatamente
lactente, na prática, a ITU é sempre considerada PNA.
semeada por imersão da lâmina na urina ou derra-
mando-se a urina sobre as placas. A leitura pode ser A decisão da internação pode ser orientada se-
realizada após 18-24 horas de incubação a 37º. guindo determinados critérios: idade abaixo de 3 me-
� Marcadores de resposta imunológica à infecção: ses, sinais de sepse por foco urinário ou bacteremia
procalcitonina pode apresentar-se elevada em em potencial, paciente imunocomprometido, intole-
crianças com PNA e frequentemente é normal rância/dificuldade de aceitação por via oral, dificul-
em casos de cistite, com sensibilidade variando dade na adesão ao tratamento ambulatorial, falha no
de 60% a 100% e especificidade de 25% a 98%. tratamento ambulatorial e ITU anterior por agente
Minutos após a interação da bactéria com a célu-
multi-resistente (P. aeruginosa, por exemplo).
la do uroepitélio, ocorrem a produção e liberação
de citocinas mediadoras do processo inflamató- A antibioticoterapia, de acordo com a AAP, deve-
rio presentes na urina. A IL-6 pode aumentar na rá ser introduzida logo após coleta adequada de uri-
ITU baixa, mas se eleva principalmente na PNA. na para cultura, sempre que houver suspeita clínica
É interessante salientar que a IL-6 não é encon- de ITU, principalmente em faixa etária de risco para
trada na urina de crianças com febre cuja origem
não seja renal. A IL-6 estimula o hepatócito a
lesão renal, uma vez que a demora no resultado da
produzir PCR e fibrinogênio, elevando a VHS e urocultura pode acarretar prejuízo para a função re-
agindo como um potente pirógeno endógeno. nal do paciente. Entretanto, diante de crianças com
� Creatinina sérica: deve ser solicitada apenas
sintomatologia inespecífica (parada de ganho de peso,
para os casos com história de ITU de repetição p. ex.) ou sintomas urinários isolados, deve-se aguar-
ou com suspeita de envolvimento renal. dar a urocultura, pois se pode medicar urinas estéreis
� Hemocultura: não é exame fundamental. No
ou comprometer coletas posteriores em resultados
entanto, pode se tornar necessário para bebês duvidosos. A escolha do antimicrobiano na ITU não
com menos de 2 meses de vida ou à medida que complicada, adquirida na comunidade, é empírica. Ba-
a febre persiste a despeito do tratamento ou na seia-se na prevalência dos uropatógenos naquela co-
observação de piora clínica com sinais de sepse. munidade, na manutenção do padrão de sensibilidade

SJT Residência Médica – 2016


111
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

às drogas habitualmente utilizadas para o tratamento � Cefalexina: 50 mg/kg/dia (máximo de 2 g/dia),


da ITU e no fato de haver ou não recorrência ou rein- divididos em intervalos de 6 ou de 8 horas. Essa
fecções em curto prazo. droga pode repercutir na flora intestinal normal,
favorecendo a colonização por uropatógenos mul-
A seleção bacteriana é fator importante a ser
tirresistentes. Os dados mais recentes têm de-
considerado na escolha terapêutica. As bactérias uro- monstrado resistência ao redor de 30% no Brasil.
patogênicas, na grande maioria, são procedentes do
intestino grosso. Desse modo, a escolha dos antibió- � Axetil-cefuroxima: 30 mg/kg/dia (máximo de
ticos requer um cuidado especial, pois devem atingir 1g/dia), divididos de 12 em 12 horas. Droga que
tem sido usada em substituição à cefalexina, de-
altas concentrações no trato urinário sem repercussão
vido à resistência crescente. Também pode re-
(ou mínima) no trato gastrointestinal.
percutir na flora intestinal normal. Além disso, é
Antimicrobianos como ampicilina, amoxicilina, uma droga pouco palatável, que dificulta adesão.
cefalosporinas, aminoglicosídeos, nitrofurantoína e
Até pouco tempo, a presença de pielonefrite era
sulfametoxazol-trimetoprima apresentam boa eficá-
um dos critérios obrigatórios de tratamento parente-
cia no tratamento das infecções por E. coli. As sulfas,
ral. Atualmente, a AAP defende que o tratamento oral
aminoglicosídeos e o ácido nalidíxico cursam com dis-
ou parenteral é igualmente eficaz no tratamento do
creta repercussão na flora intestinal. As cefalosporinas
paciente com pielonefrite. A diferença está na dura-
(1ª e 2ª gerações), assim como amoxicilina/amoxicili-
ção do tratamento: a cistite poderia ser tratada por um
na com ácido clavulânico poderiam causar repercussão
período de 3 a 5 dias; já a pielonefrite, o tratamento
significativa, principalmente se utilizados por longo
deve ter entre 7 a 14 dias de duração. Optamos pelo
período ou com breves intervalos.
tratamento parenteral quando a ITU é causada por
Devido à excreção predominantemente urinária bactéria resistente às drogas de administração oral
dos vários agentes antimicrobianos, a dose necessária ou é acompanhada de queda do estado geral, toxemia,
para tratar a ITU é menor do que aquelas habitual- taquicardia persistente e má perfusão tecidual. Nos
mente usadas para outros tipos de infecção. Diante de portadores de ITU complicada: dilatação ureteral, obs-
uma criança com quadro clínico sugestivo de infecção truções ou cálculos nas vias urinárias com suspeita de
renal, a opção deve recair sobre os agentes bacterici- pionefrose (coleção de urina infectada), além da tera-
das (amoxicilina, cefalosporinas e aminoglicosídeos). pêutica intravenosa, pode estar indicada a drenagem
A AAP alerta que já existe em sua população a resis- da coleção. Em lactentes com até 3 meses de vida, a
tência de 50% a amoxicilina e ampicilina, orientando via de eleição é a parenteral. Os antibióticos preferen-
assim a preferência por cefalosporina de 1ª geração ou cialmente e mais utilizados por via parenteral são:
aminoglicosídeos como primeira linha medicamento- � Aminoglicosídeos: são drogas de eliminação re-
sa. No nosso meio, diversos serviços têm encontrado nal, que podem atingir altas concentrações no
uma resistência crescente das E. coli às cefalosporinas parênquima renal, sendo consideradas, por isso,
de primeira geração. Assim sendo, diversos serviços as melhores para o tratamento da pielonefrite. A
têm indicado as cefalosporinas de segunda geração amicacina pode ser administrada por via IM em
(axetil-cefuroxima, por exemplo), para tratamento de uma dose ao dia de 15 mg/kg (máximo de 1 g/
pacientes com suspeita de pielonefrite. dia). Gentamicina pode ser outra opção. Os ami-
A antibioticoterapia por via oral (VO) é a prefe- noglicosídeos são potencialmente nefro e ototó-
rencial, na criança em bom estado geral, sem vômitos, xicos, devendo haver controle rigoroso da função
desde que o paciente tenha condições de ser acompa- renal e, se necessário, com correção de dose de
acordo com o clearance de creatinina;
nhado ambulatorialmente. São consideradas drogas
de escolha: � Ceftriaxona: uma dose ao dia de 50-100 mg/kg
(máximo de 2 g/dia). Tem como efeito colateral o
� Nitrofurantoína: 3 mg/kg/dia (máximo de 300
espessamento da bile, sendo, portanto, contrain-
mg/dia), em 3 doses. Trata-se de medicamento
dicada a pacientes com icterícia e alteração da
de baixo custo, com boa sensibilidade antibiótica
função hepática ou em recém-nascidos ictéricos.
e com índices de resistência terapêutica baixos;
Há restrições quanto ao uso rotineiro das qui-
� Ácido nalidíxico: 30-50 mg/kg/dia, em 3 a 4 do-
ses (máximo de 2 g/dia). É medicamento bem nolonas fluoradas em pacientes pediátricos, devido a
tolerado, com poucos efeitos colaterais, e de alterações que podem ocorrer na cartilagem de cres-
baixo custo. O principal efeito colateral, obser- cimento durante estudos experimentais. A AAP pre-
vado em poucos lactentes, é a hipertensão in- coniza que as fluoroquinolonas podem ser utilizadas,
tracraniana (pseudotumor cerebral); eventualmente, em casos de ITU complicada, dimi-
nuindo a indicação e o tempo de hospitalização.
� Sulfametoxazol/trimetoprima: amplamente
utilizado nos EUA, mas apresentando nas últi- O emprego de esquemas curtos ou dose única
mas décadas resistência crescente dos uropató- não é aconselhável no tratamento da ITU na infância
genos habituais. porque pode induzir resistência bacteriana. Habitu-

SJT Residência Médica – 2016


112
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

almente utilizamos esquemas terapêuticos com 7 a Devemos ter atenção e corrigir o hábito miccio-
14 dias de duração. A AAP permite tratamentos mais nal. Na maioria das crianças o controle miccional diur-
curtos (5 dias) para as crianças maiores, com poucos no ocorre entre 24-36 meses. A criança deve ser orien-
sintomas, sem febre ou com febre baixa e sem fatores tada a urinar ao acordar e antes de deitar e, durante
de risco ou história pregressa significativa. o dia, com intervalos regulares de aproximadamente
A urocultura de controle, anteriormente consi- 2-3 horas, com tempo de micção de aproximadamente
derada obrigatória no meio e no fim do tratamento, um minuto, tempo suficiente para esvaziamento com-
acabou entrando em desuso, sendo apenas recomen- pleto do conteúdo vesical. As meninas devem urinar
dada em casos excepcionais, como em situações de sentadas, com os pés totalmente apoiados no chão
divergência entre a sensibilidade demonstrada no an- ou, quando pequenas, com os pés apoiados sobre um
tibiograma e a resposta clínica do paciente. suporte, procurando relaxar a musculatura perineal, o
que facilita o esvaziamento vesical completo. As crian-
A terapêutica de troca consiste na troca da via ças com RVU ou instabilidade vesical devem fazer a
de administração do antimicrobiano introduzido ini- micção em dois tempos (a cada micção, urinar duas
cialmente por outra droga de espectro semelhante e, vezes seguidas, com intervalo aproximado de cinco
de preferência, de sensibilidade comprovada pelo an- minutos).
tibiograma. Geralmente a troca é realizada entre uma
droga de uso parenteral (aminoglicosídeo ou ceftria- Na limpeza perineal, a família deve ter atenção
xona), entre o 3º e o 5º dia de administração, pelo me- ao sentido da higienização: sempre de frente para trás.
No tratamento de infecções respiratórias, sempre evi-
nos 24 horas após a melhora da febre, para outra de
tar antibióticos que promovem grande alteração da
uso oral, por mais 7 a 10 dias. Essa medida abrevia o
flora intestinal.
tempo de internação, é menos onerosa e mais confor-
tável para o paciente.
Com relação ao antibiograma, tem-se uma situa-
ção particular quando se lida com ITU. Como são uti-
lizados discos de antibióticos com concentrações pa- Quimioprofilaxia
dronizadas para determinar a inibição do crescimento
bacteriano no sangue, não se tem uma ideia precisa O uso da profilaxia medicamentosa é contro-
da eficácia daqueles agentes cuja excreção é predo- verso. Baseia-se na observação de que doses subini-
minantemente renal (concentrações urinárias eleva- bitórias de alguns antimicrobianos, habitualmente
das). Dessa maneira, mesmo quando os antibióticos utilizadas no tratamento da ITU, poderiam atingir
de primeira escolha são rotulados como “resistentes” concentrações urinárias suficientes para inibir a mul-
no antibiograma, é possível sua utilização com bons tiplicação de bactérias uropatogênicas no trato uriná-
resultados terapêuticos. rio. O objetivo seria diminuir o número de surtos de
ITU em indivíduos que apresentam infecções de repe-
Algumas medidas gerais devem ser consideradas
tição e, consequentemente, o risco de dano renal. Não
para as crianças que tem e tiveram ITU. É importante
deve ser utilizada em pacientes colonizados (bacteri-
informar à família que apenas 20%-30% das crianças,
úria assintomática), pelo risco de induzir resistência
principalmente meninas, apresentarão um único sur-
antimicrobiana. Questiona-se a real contribuição da
to. As demais terão novos episódios, e a repetição au- profilaxia no acompanhamento de crianças com ITU.
menta o risco de lesão renal irreversível e futura perda Estudo de revisão realizado em 2006 concluiu que
de função renal. Os fatores de risco para pielonefrite não há evidências claras de que a profilaxia previna
e formação de cicatriz renal devem ser abordados, ITU sintomática e também da “dose ótima” e duração
salientando-se, em especial, o risco da ITU em baixo adequada da profilaxia. Consta, até o momento, que a
grupo etário e do retardo no diagnóstico e tratamento indicação deve ser individualizada, e sua permanên-
da infecção. Diante de novas situações de febre, sem- cia deverá estar vinculada ao benefício efetivo para
pre deve-se pensar em recorrência da ITU. o paciente. Não foram encontradas até o momento
Crianças portadoras de constipação intestinal evidências claras de que a profilaxia antimicrobiana
crônica são, frequentemente, retentoras também de beneficiasse portadores de RVU graus I-IV, tornando
urina. A retenção voluntária de urina pode ocasionar sua indicação discutível. Já nos refluxos grau V, o nú-
aumento da capacidade vesical, secundária a estase de mero escasso de pacientes nesta condição na maioria
urina na bexiga e formação de resíduo vesical pós-mic- das revisões da literatura não deixa claro se há bene-
cional, que são os principais fatores de perpetuação fício na introdução de profilaxia. Nos portadores de
da ITU de repetição. A correção simultânea do hábito hidronefrose neonatal e doenças urinárias cirúrgicas,
urinário e intestinal é eficaz e fundamental para a ob- a profilaxia deve ser instituída desde o nascimento até
tenção de êxito no tratamento e eventual diminuição a realização do diagnóstico por imagem, quando sua
do número de surtos de ITU. manutenção deverá ser reavaliada.

SJT Residência Médica – 2016


113
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

No pós-operatório observamos, em alguns ca- noção estrutural e anatômica do trato urinário. Localiza
sos, um aumento dos surtos de ITU nos primeiros malformações calculosas renais e tem boa resolução para
meses (provavelmente pela manipulação e uso de ca- coleções líquidas. É método útil na detecção da maioria
teteres), podendo se beneficiar com a manutenção da das malformações do trato urinário. Quando realizada
profilaxia por 3-4 meses, até o restabelecimento das pré e pós-miccional, possibilita analisar as característi-
condições de defesa do trato urinário. cas da parede vesical e quantificar o volume residual de
urina. Nos casos de pielonefrite, pode evidenciar aumen-
to da ecogenicidade e aumento do volume renal (exame
normal, entretanto, não descarta pielonefrite). A sen-

Investigação do sibilidade desse exame no diagnóstico da PNA varia de


10% a 60% e, na detecção de cicatrizes renais pode variar
de 40% a 90%. A USG também não nos fornece infor-
trato urinário mações sobre a qualidade da função renal. Está indicada
como exame de triagem inicial das malformações do tra-
O foco de atenção no cuidado da criança com to urinário, em qualquer faixa etária.
ITU tem sido não somente relacionado ao diagnóstico
A urografia excretora é capaz de revelar, com deta-
e tratamento precoces do episódio infeccioso agudo,
lhes, a função e a morfologia renal. As radiografias mais
como também à minimização do dano renal crônico e
precoces revelam a dimensão renal e a espessura cor-
suas consequências clínicas. No seguimento de contro-
tical, além da avaliação da função de cada um dos rins
le da criança com ITU, deve ser considerada, portanto,
através do tempo de início da eliminação do contraste.
a necessidade de investigação do trato urinário, com a
As radiografias posteriores irão delinear as estruturas
finalidade de identificar as crianças de maior risco de
anatômicas renais, localizando e dimensionando a gra-
comprometimento renal. Muitos pacientes, após a con-
vidade do dano renal (malformações, cistos, litíase etc.)
firmação de ITU, precisarão realizar investigação por
e sua repercussão no trato urinário (dilatação ureteral
imagem do trato urinário. Porém, o protocolo ideal de
investigação permanece controverso. Alguns autores e/ou pielocalicial, hidronefrose, rim atrófico etc.). É um
sugerem que a investigação dessas crianças, portadoras exame adequado para avaliação estrutural do rim, em
de ITU, seja limitada àqueles pacientes com alto risco particular das alterações morfológicas resultantes da
de desenvolver dano renal. Discute-se, portanto, que a cicatriz pielonefrítica. A visualização radiológica da ci-
investigação por imagem talvez devesse ser individua- catriz renal nem sempre é precoce, podendo ocorrer de
lizada. A principal finalidade é diagnosticar possíveis oito meses a dois anos após o surto de pielonefrite. Para
malformações ou disfunções urinárias que aumentem o a detecção de cicatrizes renais, a UGE apresenta sensi-
risco de novos surtos de ITU (em especial de pielonefri- bilidade maior que a USG, mas menor que os métodos
te), que dificultem a erradicação da bactéria ou predis- radioisotópicos (gradual substituição).
ponham a reinfecções. Quanto menor a faixa etária do A uretrocistografia miccional (UCM) é o méto-
paciente, maior a probabilidade de haver malformações do ideal para visualização do trato urinário inferior.
urinárias. Anormalidades estruturais do trato urinário Evidencia alterações da capacidade e estrutura vesical,
são encontradas entre 30% e 50% das meninas, e, em assim como obstruções infravesicais. É o exame de
porcentagem pouco maior, nos meninos, na presença eleição para o diagnóstico de RVU, não devendo ser re-
de ITU durante o primeiro ano de vida. Dados epide- alizado em presença de ITU pelo risco de determinar
miológicos mostram que 5% a 10% das crianças com ascensão das bactérias pelo ureter.
ITU apresentam obstrução do trato urinário como pa-
É por meio da UCM que se classifica o RVU em
tologia associada e 30% a 50% apresentam RVU.
cinco graus:
A finalidade para a investigação com exames de � Grau I: o refluxo não atinge os rins, apenas o ureter;
imagem do trato urinário nas crianças com ITU são:
detectar precocemente anomalias estruturais e funcio- � Grau II: o refluxo atinge o rim (pelve e cálices),
nais, fatores predisponentes à ITU de repetição e pielo- porém não causa deformidade (dilatação);
nefrites, dimensionar a gravidade do dano renal, seja � Grau III: o refluxo atinge a pelve e os cálices re-
pela presença de cicatrizes renais, seja pela presença nais, com dilatação e tortuosidade leve ou mo-
de rim atrófico pielonefrítico, constatar deformidades derada de ureter, mas com distensão dos cálices
caliciais, principalmente dilatações e baqueteamentos, ausente ou discreta;
assim como avaliar a espessura da cortical renal e deter- � Grau IV: refluxo com dilatação e/ou tortuosida-
minar, através de exames periódicos, o crescimento do de moderada do ureter, pelve e cálices;
rim, bem como a presença de novas cicatrizes. � Grau V: refluxo com grande dilatação e tortuo-
A ultrassonografia renal e de vias urinárias (USG) sidade de ureter, pelve e cálices; perda das im-
é um exame não invasivo, não requer preparo prévio. Vi- pressões papilares na maioria dos cálices e re-
sualiza a topografia e a dimensão renal, fornecendo uma fluxo intrarrenal.

SJT Residência Médica – 2016


114
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O mapeamento renal com radioisótopos (cintilografia) apresenta como grande facilidade o baixo
índice de radiação recebido pelo paciente, quando comparado à UGE. Classicamente, três exames são os
mais realizados:
� Mapeamento renal com ácido dimercaptossuccínico marcado com tecnécio (DMSA): esse radiofármaco liga-
-se às proteínas plasmáticas, fixando-se nas células tubulares dos túbulos contornados proximais e alças de
Henle, onde forma uma imagem representativa da morfologia renal, tornando possível dimensionar o rim
(detecção de rim atrófico e vicariância), observação precoce de cicatriz pielonefrítica (preferencialmente nos
polos renais) e áreas hipocaptantes (função relativa de cada rim). Apresenta maior sensibilidade que a UGE
para detectar cicatrizes renais, pois áreas inflamatórias diminuem a captação do DMSA antes que a atrofia
do parênquima e as cicatrizes propriamente ditas apareçam. É um bom método diagnóstico, que permite
identificar a presença de pielonefrite aguda. Esse exame apresenta várias vantagens em relação à UGE: utiliza
radiofármaco que não apresenta reações alérgicas, não necessita de preparo intestinal prévio, menor taxa de
exposição à radiação, imagens de alta resolução, independentemente da faixa etária. Sabe-se que 10% a 15%
das pielonefrites agudas evoluem para cicatriz renal. A presença de comprometimento renal compatível com
pielonefrite na cintilografia renal com DMSA, quatro a cinco meses após o controle da infecção, representa
cicatriz. Entretanto, a investigação inicial na criança com ITU é controversa. Alguns autores preconizam que a
cintilografia renal com DMSA seja realizada na fase aguda da ITU em toda criança, com o objetivo de verificar
se há comprometimento renal; outros recomendam que esse exame seja feito apenas para a identificação de
sequelas (cicatrizes) renais. Em nossa prática clínica, vemos que, devido à baixa disponibilidade imediata do
exame, é um procedimento realizado prioritariamente na busca de cicatrizes renais.
� Estudo dinâmico com ácido dietilenotriaminopentaacético marcado com tecnécio (DTPA): marcador filtrado
e excretado pelo néfron. Fornece dados sobre a função renal e possibilita a avaliação da perfusão renal e da
capacidade de concentração e excreção de cada rim através do renograma, bem como permite o diagnóstico de
obstrução em qualquer nível do trato urinário.
� Cistografia isotópica: apresenta maior sensibilidade na detecção do refluxo, mas não mede seu grau nem dá
uma avaliação anatômica detalhada da região vesicoureteral, ou seja, embora tenha vantagens em relação à
UCM pela menor dose de radiação (10 a 20 vezes menor), não permite boa visualização anatômica da bexiga e
uretra, essenciais numa primeira avaliação da criança com ITU. É uma boa opção para seguimento.

Recomendações para seguimento de pacientes com ITU


A recomendação atual da AAP para investigação e seguimento de ITU segue o fluxograma apresentado na
figura X.1. Nestas recomendações da AAP, o corte de 1 ou 2 % de risco para iniciar a investigação, será baseado
em decisão clínica individual, como já citado anteriormente. Indica-se investigação do trato urinário em todas as
crianças após ITU: a novidade é que a investigação é mínima. A USG será realizada em todos os pacientes, mas a
UCM, diferentemente de recomendações anteriores, estaria indicada apenas no segundo episódio de ITU, em caso
de anormalidade ao USG, ou nos casos complexos ou atípicos. Não é apresentada nenhuma definição precisa nes-
ta diretriz do que seria uma ITU atípica. Também não são descritas as indicações precisas da realização de DMSA
para investigação de cicatrizes renais.
Já as recomendações do NICE (2007) para a investigação dos pacientes com infecção urinária estão baseadas
nos seguintes aspectos:
� idade do paciente: quanto mais jovem o paciente, maior será a investigação;
� ocorrência de pielonefrite, definida, por essa diretriz, arbitrariamente, sempre que houver bacteriúria signifi-
cativa associado a febre maior que 38°C e/ou associado a dor lombar;
� recorrência, considerada em 3 situações: 3 ou mais episódios de cistite; 2 ou mais episódios de pielonefrite; 1
pielonefrite seguida por 1 ou mais episódios de cistites;
� infecção atípica: será considerada uma ITU atípica se estiver presente um ou mais das seguintes característi-
cas: paciente séptico ou gravemente doente, má resposta após 48 horas de tratamento adequado, infecção por
microrganismo diferente de E. coli, presença de massa palpável ou bexigoma, diminuição do fluxo urinário e
aumento dos níveis de creatinina.

SJT Residência Médica – 2016


115
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

Crianças de 2 – 24 meses
com febre > 38º C

Há necessidade de início imediato de antibiótico?


(decisão clínica)

SIM NÃO

Probabilidade de ITU Probabilidade de ITU


Obter análise urinária maior que 1-2% maior que 1-2%
(obrigatoriamente po sonda ou PSP)

Obter análise urinária SEGUIMENTO


(pode ser por saco coletor)
CLÍNICO

Resultado Sugestivo de ITU Resultado Sugestivo de ITU

Obter urocultura
(obrigatoriamente por sonda ou PSP)
SUSPENDER
Urocultura Negativa ANTIBIÓTICO

INICIAR
ANTIBIÓTICO
Solicitar UCM se:
Realizar USG de Rins e
2º episódio de ITU
Urocultura Positiva Vias Urinárias: sempre Casos complexos/atípicos
USG com alterações
Nas primeiras 48 horas para os
pacientes mais graves ou com
indícios de complicação
Ajustar pelo antibiograma
Orientar família se ocorrer
Completar de 7 a 14 dias de Realizar ambulatorialmente nos
tratamento pacientes com boa evolução clínica nova febre:
Alta probabilidade de recorrência
Procura rápida ao PS (<48h)
Não postergar nova coleta de urina

Figura 8.1  Fluxograma de abordagem da ITU em crianças de 2 a 24 meses. Fonte: Adaptada de AAP, 2011

SJT Residência Médica – 2016


116
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Os exames solicitados por essa diretriz podem ser resumidos na Tabela 8.3.

ITU com boa resposta ao


W ITU atípica ITU recorrente
tratamento em 48h

Faixa etária Faixa etária Faixa etária

6 meses a 3 anos

6 meses a 3 anos

6 meses a 3 anos
< 6 meses

< 6 meses

< 6 meses
> 3 anos

> 3 anos

> 3 anos
Realizar ambulatorialmente

Realizar ambulatorialmente

Realizar ambulatorialmente
Realizar precocemente

Realizar precocemente

Realizar precocemente

Realizar precocemente
Não Recomendado

Não Recomendado
USG

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado
Recomendado

Recomendado

Recomendado

Recomendado

Recomendado
DMSA

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado

Não Recomendado
Recomendado

Recomendado
UCM

Tabela 8.3  Investigação do trato urinário após ITU (NICE 2007)Adaptado de NICE, 2007.

Podemos notar que esta recomendação reserva a realização de USG de vias urinárias apenas nos lac-
tentes jovens (< 6 meses) e nos casos de ITU atípica ou recorrente. Percebemos ainda que nos casos de ITU
atípica, recomenda-se realizar o exame precocemente, ainda durante a infecção aguda, com o objetivo de
descartar complicações. Já nas outras situações, recomenda-se que este USG seja realizado ambulatorial-
mente, em até 6 semanas após o quadro agudo, com o objetivo de descartar malformações. Caso o USG de-
monstre anormalidades estará indicada a realização de uretrocistografia miccional (UCM). Também estará
indicada a realização de UCM nos pacientes abaixo de 6 meses com ITU atípica ou recorrente. Alteração do
fluxo urinário e história familiar de RVU também devem ser considerados para indicação da realização de
UCM. Como o objetivo da realização de DMSA nestes casos é investigar a ocorrência de cicatrizes renais, o
exame deverá ser realizado em 4 a 6 meses após a infecção aguda, para não haver confusão entre os achados
da infecção aguda e os achados de cicatrizes renais.

SJT Residência Médica – 2016


117
8  Infecção do trato urinário (ITU) e refluxo vesicoureteral (RVU)

(permitem a entrada, por exemplo, de um cateter na


Algumas afecções uretra, mas impedem ou comprometem o fluxo mic-
malformativas do cional). Cursa com manifestações que dependem da
intensidade de obstrução. Atualmente o diagnóstico
trato urinário presumível é dado pela ecografia pré-natal e deve ser
confirmado por ecografia no primeiro dia de vida ou
ao término da primeira semana, se necessário. A UCM
Refluxo vesicoureteral (RVU) revela alterações vesicais (bexiga trabeculada, de “es-
O RVU primário é a alteração mais comumente forço”, eventualmente divertículos) e dilatação da ure-
encontrada nas crianças com ITU e se deve ao encur- tra posterior, contrastando nitidamente com a uretra
tamento do segmento ureteral intramural (ausência distal não dilatada e a presença da válvula. Esse exame
de mecanismo valvar da obliquidade de inserção do confirma de forma segura o diagnóstico de VUP; in-
ureter na bexiga). Postula-se transmissão genética do forma sobre a presença ou não de RVU e alterações da
RVU primário, com ocorrência familiar elevada. Pode- bexiga e uretra.
-se encontrar RVU secundário à obstrução uretral e à
disfunção miccional, sem anormalidade intrínseca da
Estenose de JUP
junção ureterovesical. Vários autores relatam a ocor-
rência de 30% a 50% de RVU primário em crianças (junção ureteropiélica)
até 2-3 anos, com ITU sintomática, em ambos os se- Consiste na causa mais comum para determina-
xos. Salienta-se que, quando ocorre RVU, os fatores ção de hidronefrose (dilatação dos cálices e pelve re-
de virulência não são necessários para determinar nal). Predomina e manifesta-se nos primeiros anos de
eventuais cicatrizes pielonefríticas. A classificação in- vida e representa aproximadamente 40% das massas
ternacional para o RVU está apresentada na descrição renais na criança. É duas vezes mais frequente no sexo
da UCM. A possibilidade de regressão espontânea do masculino e entre 10% e 25% dos casos são bilaterais.
RVU primário guarda relação direta com a gravidade O uso rotineiro da USG gestacional mudou o panora-
do refluxo inicial. ma anterior, no qual, na maioria das vezes, o diagnós-
tico era feito de forma tardia. A insuficiência funcional
do rim e as infecções urinárias são as duas graves con-
Anomalias obstrutivas do sequências desse processo obstrutivo.

trato urinário
Malformações estruturais obstrutivas são en-
Estenose de JUV
contradas em cerca de 2% das meninas e em 10% dos (junção ureterovesical)
meninos com ITU sintomática. Outras condições que Em geral, esse processo malformativo está asso-
podem atuar como causa obstrutiva “funcional”, favo- ciado à origem ectópica do broto ureteral, levando à
recendo a instalação de ITU recorrente e pielonefrite,
dilatação do ureter correspondente (megaureter).
são representadas pelos distúrbios funcionais da mic-
ção secundários à bexiga neurogênica e aos distúrbios
metabólicos que ocasionam formação de cálculos uri- Duplicidades pieloureterais
nários. São as seguintes as causas estruturais obstru-
tivas mais observadas em crianças com ITU: e ureteroceles
Essas duas entidades estão intimamente relacio-
nadas, sendo que a maioria das ureteroceles ocorre em
Válvula de uretra posterior (VUP) sistemas duplicados na extremidade do megaureter,
Afecção restrita ao sexo masculino. Consiste em que drena a unidade hidronefrótica. As duplicidades
membranas, de espessura variável, que produzem um ureterais são geneticamente determinadas, autossô-
efeito valvular, fechando-se durante o ato miccional micas dominantes, afetando 0,1% da população. Po-
e impedindo ou dificultando o livre fluxo urinário dem ser completas ou incompletas, uni ou bilaterais.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

9
Glomerulonefrite difusa aguda
(GNDA) e síndrome nefrítica (SN)

Introdução
Glomerulonefrite (GN) é um termo geral reservado a uma série de doenças renais caracterizadas por injúria
glomerular acompanhada de um processo inflamatório desencadeado por mecanismos imunológicos. Apesar de
esse mecanismo não ser conhecido por completo, há evidências de que diferentes agentes etiológicos são capazes
de ativar respostas biológicas (por exemplo: ativação de complemento; recrutamento de leucócitos; liberação de
fatores de crescimento ou citocinas), resultando em inflamação e dano glomerular.
Apresenta grande quantidade de sinais e sintomas, mas a tríade: hematúria, edema e hipertensão é
bastante característica.
A GN mais comum e clássica na faixa etária pediátrica é a GN difusa aguda (GNDA), também chamada síndro-
me nefrítica (SN), que geralmente se inicia abruptamente, acometendo todos os glomérulos de ambos os rins
e, junto com a Febre Reumática, representa sequela tardia (e não supurativa) de uma estreptococcia. Sendo assim,
também é denominada GNDA pós-estreptocócica ou simplesmente Glomerulonefrite pós-estreptocócica (GNPE).
Pode haver concomitância de outros achados, como oligúria, queda do ritmo de filtração glomerular (RFG)
e proteinúria.

Epidemiologia
A GNPE é doença frequente em países em desenvolvimento, representando cerca de 97% do total de ocor-
rências no mundo. Pode ocorrer de forma esporádica ou epidêmica.
119
9  Glomerulonefrite difusa aguda (GNDA) e síndrome nefrítica (SN)

Acomete predominantemente crianças em Dentre os múltiplos mecanismos patogenéticos pro-


idades pré-escolar e escolar, com pico de incidência postos, os mais aceitos são: deposição glomerular de
em torno de 7 anos de idade, sendo raro o acometi- imunocomplexos de antígeno estreptococo-anticorpo
mento de crianças menores de 2 anos de idade (5%) ou de produtos produzidos pelo estreptococo, como
e adultos acima de 40 anos (5%-10%). O sexo mas- a estreptoquinase; mecanismos autoimunes, pelos
culino geralmente é duas vezes mais afetado que quais certos antígenos estreptocócicos simulariam an-
o feminino. Alguns autores relatam que, quando o ticorpos que apresentem reação cruzada com antíge-
processo é secundário a estreptococcia cutânea, não nos glomerulares renais (glicoproteínas da membrana
há predomínio de sexo. A faringite estreptocócica basal glomerular); nia do antígeno autólogo baseia-se
ocorre, predominantemente, em escolares de 5-15 fundamentalmente na ação de substância produzida
anos de idade, mais comumente no inverno e início da pelo estreptococo, a neuraminidase, que atuaria sobre a
primavera. Cerca de 20% das crianças acometidas são imunoglobulina G (IgG), removendo o ácido siálico, tor-
portadoras assintomáticas do estreptococo, podendo nando-a antigênica. O achado de anti-imunoglobulinas
apresentar a GN aguda sem pródromos. Piodermite e circulantes e fixadas ao glomérulo favorece essa hipóte-
impetigo ocorrem mais frequentemente no verão e no se. Entretanto, em 2006 foi publicada na revista Kidney
outono. Um fator epidemiológico importante são as International nova teoria que tenta explicar a patogêne-
deploráveis condições higiênico-sanitárias das mora- se da GNDA. A patogênese do complexo imunoló-
dias, assim como a coabitação da população de baixa gico é aceita, mas o(s) antígeno(s) causador(es)
renda na incidência dessa doença. ainda é/são controvertido(s). Nos últimos anos,
dois antígenos estreptocócicos, a exotoxina ciste-
ína-proteinase catiônica B (SPE B) e o receptor de
plasmina, um gliceraldeído fosfato desidrogena-
se (Pir, GAPDH), atraíram a atenção porque: (1)
Etiologia foram localizados nos glomérulos de pacientes
com glomerulonefrite pós-estreptocócica aguda
A glomerulonefrite pós-estreptocócica (GNPE) (GNPEA); e (2) o anticorpo sérico para esses an-
aguda sucede (em 1 a 4 semanas) uma infecção da oro- tígenos foi associado às infecções nefritogênicas
faringe ou da pele por certas cepas “nefritogênicas” estreptocócicas. Até esta data, supostos nefritó-
dos estreptococos beta-hemolíticos dos grupos A, C e genos sempre foram testados independentemen-
G, e se caracteriza por duas proteínas (T e M) antigeni- te. Aqui, a relevância de SPE B e GAPDH foi avalia-
camente distintas. As cepas ditas nefritogênicas, isto da nas mesmas biópsias renais e amostras séricas
é, capazes de causar a glomerulonefrite, sorotipadas de pacientes bem-definidos de GNPEA. É válido
pela proteína M, são mais relacionadas a infecções res- considerar que tanto GAPDH quanto SPE B/zi-
piratórias (sorotipos 1, 4, 12 e 25) do que a infecção de mogênio estão amplamente distribuídos em ce-
pele (sorotipos 2, 42, 49, 56 e 60). Os fatores que per- pas estreptocócicas. Tanto SPE B quanto GAPDH
mitem que as cepas sejam nefritogênicas permanecem estreptocócica podem ser quelantes para plasmi-
obscuros. Entretanto, quadro clínico semelhante já foi na, e esta pode ser uma via final comum na qual
descrito em associação a outros agentes infecciosos: se engajam os antígenos envolvidos na GNPEA.
bacterianos, virais e parasitários. Recentemente, esses investigadores reportaram
que a GAPDH estreptocócica era colocalizada com
Diante de um surto epidêmico de estreptococo
o receptor de plasmina em biópsias de GNPEA.
nefritogênico, o desenvolvimento do quadro clínico de
Acredita-se, atualmente, que os imunocomplexos res-
nefrite aguda é variável (10%-12%), indicando a exis-
ponsáveis pelo dano glomerular nessa nefropatia são
tência de variações de nefropatogenicidade intracepas
formados primariamente in situ e depositam-se no lado
ou a possibilidade de existirem fatores protetores e/
subendotelial da parede capilar. Nessa situação ocor-
ou facilitadores do hospedeiro. A suscetibilidade in-
rerão a ativação do sistema complemento e a liberação
dividual à glomerulonefrite (GN) pós-estreptocócica
de C5a e C5b, que possuem atividades quimiotáxicas,
parece ser geneticamente determinada.
ativação de neutrófilos, que por sua vez secretarão pro-
teases e/ou ativação de substâncias oxidantes que irão
determinar alterações na membrana basal glomerular
(MBG), principalmente no que se refere à proteinúria.
Patogenia Verifica-se a passagem do imunocomplexo para o lado
epitelial, que irá constituir o chamado “humps”, que
Embora os estudos morfológicos e uma dimi- representa o imunocomplexo, podendo ser mais bem
nuição do nível sérico de complemento (C3) sugi- visibilizado pela microscopia eletrônica e pela técnica
ram fortemente que a glomerulonefrite pós-es- de imunofluorescência. O complemento nessa ne-
treptocócica seja mediada por imunocomplexos, fropatia pode ser ativado pela via clássica ou pela
os mecanismos precisos pelos quais os estrepto- via alternada na maioria dos casos. Observamos
cocos nefritogênicos induzem a formação desses também que, quando uma das vias é ativada, não
imunocomplexos ainda não foram determinados. ocorre passagem para a outra.

SJT Residência Médica – 2016


120
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

colapsadas devido ao aumento da celularidade e da


Fisiopatologia expansão da matriz mesangial, assim o espaço de Bo-
wman fica reduzido e pode-se observar infiltrado vari-
A fisiopatologia da GNDA envolve diminuição ável de leucócitos polimorfonucleares.
no ritmo de filtração glomerular determinada pela
redução da superfície de filtração produzida pela infil-
tração de células inflamatórias e pela queda da permea-
bilidade basal glomerular. Durante a fase aguda da GN,
há um intenso processo inflamatório com alterações
dos capilares glomerulares, que têm seus lumens dimi-
nuídos por tumefação de suas paredes ou por obstrução
causada por coagulação intravascular, levando a uma
queda da filtração glomerular por diminuição da
área filtrante do rim. Essas alterações dos capilares
impedem que a pressão arterial sistêmica se transmita
adequadamente à membrana glomerular, determinan-
do uma diminuição da pressão hidrostática nos ca-
pilares glomerulares, e, consequentemente, que-
da da pressão de filtração glomerular, com reten-
ção de sódio e água, determinando aumento da Figura 9.1  Glomérulo normal.
volemia, hipertensão arterial e edema. Portanto,
o mecanismo fisiopatológico do edema tem como
ponto de partida as alterações inflamatórias que
ocorrem nos capilares glomerulares.
A baixa aguda do ritmo de filtração glome-
rular leva à retenção de sódio pelas células tubu-
lares, principalmente distais. O sódio plasmáti-
co, em geral, fica diminuído, porém a massa total
de sódio, em razão da expansão do espaço extra-
celular, fica aumentada. A reabsorção do sódio
no nível dos túbulos está preservada, principal-
mente nos túbulos distais, determinando reten-
ção de sódio. Esse fato resultará na expansão do vo-
lume extracelular e consequente supressão do sistema
renina-angiotensina-aldosterona (SRAA). São discu-
tíveis as condições que induzem à hipertensão na
GNDA. Atribui-se seu aparecimento à existência Figura 9.2  Glomerulonefrite pós-estreptocócica: glo-
de vasoespasmo generalizado, associado à hiper- mérulo volumoso, hipercelular, com infiltrado neutrofíl-
volemia por retenção de sódio e água, levando à ico (MO: aumento original = quatrocentas vezes).
expansão do volume intravascular, sendo que,
como já foi dito, o SRAA não se encontra ativado Imunofluorescência: tem padrão bem caracte-
nessa patologia. As lesões dos capilares glome- rístico. Os humps apresentam-se como depósi-
rulares permitem a passagem de hemácias da luz tos glomerulares grosseiros, morfologicamente
capilar para o espaço de Bowman, causando he- semelhantes entre si, dispostos ao acaso sob as
matúria. A própria reação inflamatória nos glo- paredes dos capilares glomerulares. Fixam-se in-
mérulos altera as condições de permeabilidade tensamente os antissoros específicos para fator C3 do
da membrana glomerular às proteínas, condicio- complemento e IgG. Podem ocorrer depósitos de pro-
nando proteinúria de pequena intensidade. perdina e fibrinogênio.

Anatomia patológica
Macroscopia: os rins podem estar aumentados em
volume e apresentar pontos hemorrágicos na cápsula.
Microscopia de luz: na síndrome nefrítica aguda,
o padrão histológico mais comumente encontrado é o
da glomerulonefrite proliferativa pura. A proliferação
endocapilar existente nesse tipo de nefropatia se faz
à custa das células mesangiais e endoteliais. Os tufos
capilares tornam-se tumefeitos, com luzes vasculares Figura 9.3  Imunofluorescência.

SJT Residência Médica – 2016


121
9  Glomerulonefrite difusa aguda (GNDA) e síndrome nefrítica (SN)

remite dentro de um mês após o início, mas as anor-


Manifestações clínicas malidades urinárias podem persistir por mais de um
ano. Raramente podem coexistir, no mesmo pa-
A glomerulonefrite pós-estreptocócica é uma do-
ciente, GNPE e febre reumática.
ença predominantemente infantil. A história típica
da GNPE é precedida de infecção estreptocócica.
A resolução dos sintomas infecciosos é seguida de um
período de latência antes do surgimento dos sintomas
glomerulares. O intervalo entre a ocorrência da
estreptococcia e a glomerulonefrite é geralmen-
te de 10 a 20 dias (no máximo 6 semanas) após
o quadro inicial. Quando a via é a orofaringe, o in-
tervalo para aparecimento dos sintomas costuma ficar
entre 7 e 21 dias (média de 14 dias), enquanto para a
via cutânea fica entre 15 e 28 dias (média de 21 dias).
O espectro clínico dos sinais e sintomas
na GNDA é bastante diverso, podendo incluir
casos assintomáticos com evidência subclínica
ou laboratorial de envolvimento renal, isto é, o
achado de hematúria microscópica. Na maioria
das vezes o paciente encontra-se em bom estado geral,
com queixas vagas como indisposição, inapetência, ce-
faleia e edema periorbital. O quadro clínico clássico
constitui-se de edema, hipertensão e hematúria
(micro ou macroscópica). O edema apresenta-se
com intensidade variável, geralmente leve, frio, mole Figura 9.4  Edema periorbitário na síndrome nefrítica.
e gravitacional, sendo mais evidente em região perior-
bitária e no período matutino, mas pode atingir as ex-
tremidades inferiores e as regiões lombar ou genital. A
hipertensão arterial está presente em cerca de 90%
dos casos, e a hematúria macroscópica está presen-
te em aproximadamente 50% dos casos, enquanto a
microscópica foi observada em praticamente todos
os casos na forma persistente ou intermitente. A he-
matúria macroscópica de origem glomerular tem uma
tonalidade acastanhada, que pode ser confundida com
colúria, além de não apresentar coágulos. Difere da
hematúria vermelho-viva, com coágulos provenientes
do trato urinário (bexiga, ureter e pelve renal).
Podem ser observadas também congestão circu-
latória associada à retenção de sal e água (20%) e oli-
gúria e/ou anúria transitórias, presentes em até 25%
dos casos, sendo rara a forma de oligoanúria mantida.
A intensidade do envolvimento renal varia desde
hematúria microscópica assintomática com fun-
ção renal normal até insuficiência renal aguda. A Figura 9.5  Hematúria macroscópica.
encefalopatia hipertensiva (10%) e a insuficiên-
cia cardíaca congestiva também podem ocorrer.
Outros sintomas menos frequentes podem
acompanhar o quadro, tais como: mal-estar, letargia, Casos subclínicos
cólicas abdominais ou dor nos flancos, hipertermia e
vômitos. Na regressão desses sintomas, constata-se Pode acontecer de certos doentes não apresen-
inicialmente o desaparecimento do edema, em média tarem de forma evidente os sinais e sintomas comuns
de 7 a 15 dias após o início da doença, acompanhado ao quadro clínico clássico de GNDA, desenvolvendo
por crise de diurese, seguindo-se a normalização dos normalmente suas atividades habituais. Nesses ca-
níveis tensoriais, geralmente dois a três dias após o sos, existem apenas o edema subclínico, hipertensão
desaparecimento do edema. A fase aguda geralmente e complemento diminuído.

SJT Residência Médica – 2016


122
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Função renal: o fluxo sanguíneo renal e o ritmo


Diagnóstico de filtração glomerular estão, geralmente, diminuídos;
níveis séricos de ureia e creatinina podem estar
A GNDA (GNPE) é o protótipo das glomerulone- elevados; a função tubular em geral é preservada; hi-
frites agudas. Para qualquer paciente que desenvolva ponatremia, acidose metabólica e hipercalemia podem
síndrome nefrítica, especialmente na faixa etária en-
ocorrer quando a queda no ritmo de filtração glomeru-
tre 2 e 15 anos, deve-se sempre suspeitar de GNDA.
lar for importante, causando insuficiência renal aguda.
Diante de um paciente com síndrome nefrítica, a pri-
meira ação diagnóstica deve ser no sentido de tentar Hemograma e perfil de coagulação: anemia
encontrar, pela anamnese e exame físico, a presença devido à expansão do volume, que gera leve diluição
de manifestações extrarrenais que possam indicar da concentração de hemoglobina; plaquetopenia tran-
uma etiologia específica (com rash malar e artrite para sitória pela diminuição da meia-vida plaquetária; os
o lúpus eritematoso, por exemplo). Caso a síndrome fatores de coagulação podem estar alterados, com di-
nefrítica seja a única condição do paciente, o médico minuição do fator XIII e alfamacroglobulina, diminui-
deve, de imediato, formular as seguintes questões: ção do nível e atividade da antitrombina III e aumento
1. perguntar ao paciente sobre faringite ou pio- discreto da α-1-antitripsina.
dermite prévias recentes; Aspectos imunológicos: a resposta imunológica
2. verificar se o período entre as infecções estrep- à estreptococcia de orofaringe é diferente daquela en-
tocócicas prévias e o início dos sintomas da GNDA é contrada na forma cutânea. A infecção de orofaringe
compatível; leva à elevação dos títulos de antiestreptolisina
3. documentar laboratorialmente a infecção es- O (ASLO), anti-hialuronidase, antiDNAse. To-
treptocócica ASLO, antiDNAse B, antiNADase, anti- dos esses anticorpos fazem parte do streptozyme test,
-hialuronidase); muito utilizado para o diagnóstico de estreptococcia
prévia recente. Na infecção cutânea, no entanto,
4. avaliar queda transitória típica de comple-
títulos de ASLO não se elevam, devendo-se utili-
mento (C3 e CH50), com um retorno a níveis normais
entre 2 e 8 semanas a contar dos primeiros sinais de zar a antiDNAse para o diagnóstico (detectado em
nefropatia. 60% a 70% dos casos), seguido pela anti-hialuronidase.
Na GNDA pós-faringoamidalite o anticorpo mais en-
Em resumo, o diagnóstico de GNDA deve ser sus- contrado é o ASLO (em 80% a 90% dos casos), segui-
peitado para todo paciente que desenvolva síndrome do pelo anti-DNAse B (em 75% dos casos). Os níveis
nefrítica aparentemente “idiopática”, que tenha uma his-
de ASLO geralmente se elevam de 2 a 5 semanas após
tória de infecção estreptocócica prévia (compatível com
a infecção estreptocócica, decaindo ao longo de meses.
o “período de incubação”, até o aparecimento dos sinto-
O complemento total e algumas de suas frações
mas) e no qual se possa, laboratorialmente, confirmar a
infecção e documentar queda nos níveis de C3 e CH50. encontram-se diminuídos em aproximadamente
90% dos casos na fase aguda da GNPE. C3, C5 e
properdina estão frequentemente diminuídos, C4
está em níveis normais. A hipocomplementemia
Diagnóstico laboratorial resolve-se em, aproximadamente, oito semanas
Urina 1: elemento importante no diagnósti- após o início do quadro; 90% dos pacientes apresen-
co. Mostra, na maioria dos casos, sinais de inflamação tam hipergamaglobulinemia, com elevação de IgM e
glomerular ativa, com hemácias dismórficas, presença IgG; 75% dos casos apresentam crioglobulinemia e 50%
de cilindros hemáticos, granulosos, hialinos e leuco- positividade para o fator reumatoide.
citários, osmolaridade elevada e proteinúria positiva
(raramente maciça).

Diagnóstico diferencial
Algumas glomerulopatias apresentam quadro
semelhante, podendo levar a dificuldades diagnósti-
cas. Entre elas, podemos citar:
� Glomerulonefrite membranoproliferativa
(GNMP): acomete preferencialmente o sexo
feminino e ocorre geralmente acima dos 7 anos
de idade. Pode ser acompanhada de síndrome
nefrótica, sendo também comum na infância
a hipocomplementenemia. Ao contrário do
Figura 9.6  Dismorfismo eritrocitário. que ocorre na GNDA, essa glomerulopatia não

SJT Residência Médica – 2016


123
9  Glomerulonefrite difusa aguda (GNDA) e síndrome nefrítica (SN)

apresenta oligoanúria na fase aguda. Deve-se Medidas dietéticas: a dieta deve ser restrita em
frisar que o complemento sérico permanece sal, e a restrição hídrica está indicada.
geralmente baixo por muitos meses nesses pa- � Restrição de sódio: deve ser limitada à fase de
cientes. Nos casos duvidosos, a biópsia renal
oligúria, edema e hipertensão. Recomendamos
elucidará o diagnóstico.
dieta de arroz e frutas, a qual contém 300 mg de
� Outras glomerulonefrites pós-infecciosas NaCl. Superada a fase aguda, passamos grada-
(p.ex.: endocardite bacteriana aguda). tivamente para dieta comum. Constitui erro a
� Glomerulonefrite lúpica. prescrição de dieta assódica prolongada.
� Púrpura de Henoch-Schönlein (PHS): além da � Restrição proteica: deve ser indicada quando
síndrome nefrítica, caracteriza-se por manifesta- a filtração glomerular permanecer muito dimi-
ções articulares, cutâneas e purpúricas e cólicas nuída. Devem ser prescritas dietas com baixo
abdominais. O complemento sérico é normal. teor proteico (0,5 g/kg/dia).
� Doença de Berger: manifesta-se geralmente � Restrição de potássio: deve ser iniciada ape-
por hematúria recorrente, faltando os outros si- nas em presença de oligúria importante (diure-
nais clínicos que habitualmente acompanham a se < 240 mL/m2/dia), isto é, nos primeiros dois
GNDA. O complemento sérico é normal e o a três dias de doença.
diagnóstico só poderá ser confirmado por
biópsia renal, com imunofluorescência posi- � Restrição hídrica: é importante na fase ini-
tiva para IgG e IgA em deposição mesangial. cial, em que há hipervolemia e oligúria. O vo-
lume hídrico prescrito depende da gravidade
Todas essas condições podem ser facilmente ex-
do quadro clínico, oferecendo-se inicialmente
cluídas por critérios clínicos e laboratoriais, com exce-
400 mL/m2/dia (ou 20 mL/kg/dia) para cobrir
ção da GNMP, que pode ocorrer após infecções estrep-
as perdas insensíveis e adicionando-se a esse
tocócicas em crianças e ainda apresentar um padrão
volume inicial uma fração gradualmente maior
semelhante de ativação da via alternada do comple-
de volume, dependendo do débito urinário de
mento. Como citado anteriormente, a GNMP pode ser
24 horas e da melhora do edema e da hiperten-
suspeitada caso haja proteinúria nefrótica, ou caso a
são arterial.
hipocomplementemia persista por mais de 8 semanas.
É importante lembrarmos que as manifestações renais Nos casos de edema mais intenso, com hi-
que ocorrem durante uma infecção geralmente repre- pertensão arterial e/ou sinais de congestão car-
sentam a exacerbação de uma glomerulopatia crônica diocirculatória, indica-se o uso de diuréticos
preexistente, como a doença de Berger ou nefropatia como a furosemida (1-2 mg/kg/dia até 6 mg/kg/
por IgA. Assim, é preciso diferenciar as doenças glome- dia). Nas hipertensões mais graves, devem-se ad-
rulares pós-infecciosas específicas (como a GNDA) do ministrar drogas hipotensoras, como os bloquea-
papel inespecífico de muitas infecções (principalmente dores de canais de cálcio (nifedipino 0,15 mg/kg/dia
virais), que exacerbam condições renais antigas, muitas até 1,5 mg/kg/dia de 6/6 horas).
vezes silenciosas. Tais exacerbações são geralmente ca- Caso ocorra convulsão devida à encefalopatia
racterizadas por um aumento transitório (ou mesmo hipertensiva, deve-se administrar diazepam na dose
início) de proteinúria e hematúria, no curso de uma in- de 0,1 a 0,5 mg/Kg/dose, devendo-se interromper seu
fecção, mas sem que haja um período de latência até o uso assim que cessar o episódio convulsivo.
início dos sintomas que seja compatível.
A insuficiência renal na GNPE, em geral, é tran-
sitória e de curta duração. No entanto, quando severa
e duradoura, poderão ocorrer hipercalemia, hipocal-
cemia, hiperfosfatemia e acidose metabólica. A hiper-
Tratamento calemia leve, sem alterações ecocardiográficas, pode-
rá ser conduzida com restrição dietética de potássio
O tratamento da GNDA é geralmente sinto- e uso de furosemida. Podem ser utilizados também a
mático. A hospitalização do paciente nem sempre resina trocadora de cálcio pelo potássio (Sorcal 0,5-1,0
é obrigatória, tornando-se necessária em casos de mg/kg até 4-6 horas), a glicose hipertônica a 25% (1-3
complicações: congestão cardiocirculatória, insu- mL/kg/h), concomitante com a insulina (3 U/3-5 g de
ficiência renal aguda ou encefalopatia hipertensi- glicose), e o bicarbonato de sódio a 3% (2 mEq/kg IV
va. É necessária a avaliação diária do paciente, visando em 10-15 minutos). Na presença de hipercalemia se-
reconhecer a evolução do edema e peso, com controle vera, com alterações eletrocardiográficas graves como
da pressão arterial e do débito urinário. ausência de onda P, alargamento de complexo QRS,
Repouso: o repouso deve ser limitado pelo pró- arritmias, deve-se acrescentar o gluconato de cálcio a
prio paciente. Recomendado enquanto persistirem a 10% (0,5-1,0 mL/kg IV, 5-10 min, com monitorização
hematúria macroscópica, hipertensão e edema. eletrocardiográfica) e indicar a diálise.

SJT Residência Médica – 2016


124
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A diálise peritoneal remove efetivamente o po-


tássio corpóreo e está indicada nas seguintes situações Prevenção
clínicas: anúria com duração de 48 horas, sobrecarga
A antibioticoterapia sistêmica precoce das
de volume (resultando em insuficiência cardíaca con-
infecções orofaríngeas e cutâneas estreptocóci-
gestiva), acidose metabólica intratável, hipercalemia
cas não elimina o risco de glomerulonefrite. Os
refratária ao tratamento, uremia sintomática, pericar- familiares de pacientes com glomerulonefrite pós-es-
dite urêmica e hiponatremia grave. treptocócica aguda devem realizar exame de cultura à
O tratamento medicamentoso compreende a er- procura de estreptococos beta-hemolíticos do grupo A e
radicação da estreptococcia. Utiliza-se penicilina ben- tratados, se a cultura for positiva. Após o início da anti-
zatina nas doses de 600.000 UI para crianças menores bioticoterapia adequada, o doente deve ser mantido em
de 25 kg e 1.200.000 para aquelas maiores de 25 kg. isolamento respiratório por 24 horas, para evitar a dis-
Nos alérgicos à penicilina usa-se eritromicina na dose seminação das cepas nefritogênicas dos estreptococos.
de 30 mg/kg/dia por dez dias.

Prognóstico
Complicações Uma recuperação completa ocorre em mais
de 95% das crianças com GNPE aguda. Em torno
de uma semana após o quadro inicial, há a normaliza-
As complicações são: ção da pressão arterial, aumento da diurese e queda dos
� congestão cardiocirculatória (12% dos casos). níveis de ureia e creatinina séricas. A resolução da he-
Ocorre devido à retenção de sódio e água, com matúria macroscópica ocorre em torno de 2-3 se-
queda da excreção urinária. Agrava-se pela hi- manas, enquanto a microscópica poderá persistir
pertensão (HAS), podendo levar à claudicação por um ou mais anos, sem que isso seja indicação
do músculo cardíaco. Não há evidência de dano de mau prognóstico. A proteinúria tende a se re-
miocárdico intrínseco no quadro de GNDA,
solver em torno de três a seis meses. A hipocom-
plementemia retorna aos níveis normais em seis
permanecendo o débito cardíaco e o tempo de
a oito semanas. Uma minoria de pacientes (1% a 5%
circulação geralmente dentro dos padrões da
dos casos) evolui de forma desfavorável, especialmen-
normalidade; te os adultos de maior idade, que podem evoluir para
� encefalopatia hipertensiva (4% dos casos). De- deterioração da função renal em 30% a 50% dos casos.
ve-se essencialmente à HAS e apresenta quadro Podem complicar com GN rapidamente progressiva,
clínico polimorfo. Metade dos doentes apre- proteinúria crônica, glomeruloesclerose focal e insufi-
senta-se sonolenta ou comatosa, e nos restan- ciência renal crônica. A mortalidade no estágio agudo
tes predomina agitação intensa. A queixa mais é evitável por tratamento apropriado da insuficiência
frequente é de cefaleia constante e vômitos, se- renal ou cardíaca aguda. As recorrências são raríssimas.
guindo-se, em escala menor, perturbações visu-
ais, diplopia e, em alguns casos, amaurose tran-
sitória. É também comum o desencadeamento Indicações de biópsia renal
de quadro convulsivo. O liquor tem pressão
� Oligoanúria com duração maior que 48-72 horas.
normal, e faltam, ao exame de fundo de olho,
as alterações características de HAS (edema de � Oligúria e/ou azotemia persistente por mais de
papila, hemorragia retiniana). Algumas vezes quatro semanas.
encontra-se vasoespasmo na retina. A sintoma- � Hipertensão arterial persistente por mais de
tologia neurológica não se prolonga por mais de quatro semanas.
um a dois dias, cedendo espontaneamente com � Hematúria macroscópica por mais de quatro se-
a normalização dos níveis tensoriais, levando manas.
raramente ao êxito letal e à insuficiência renal � Complemento total e frações persistentemente
aguda (1%). baixas por mais de oito semanas.
� estabelece-se oligoanúria intensa com retenção � Proteinúria nefrótica (> 50 mg/kg/dia) presen-
de escórias proteicas no plasma, acompanhada te por mais de quatro semanas.
de distúrbio hidroeletrolítico. Inclui ainda: hi-
Pacientes com história anterior sugestiva de
percalemia, hiperfosfatemia, hipocalcemia, aci-
nefropatia ou antecedentes familiares sugestivos de
dose, convulsões e uremia.
afecções renais hereditárias devem ser observados
Salienta-se que, em certas circunstâncias, as três com atenção e eventualmente biopsiados, se apresen-
complicações podem aparecer simultaneamente. tarem evolução atípica.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

10
Síndrome nefrótica (SN)

Introdução
A síndrome nefrótica (SN) é uma entidade clínica caracterizada fundamentalmente por protei-
núria maciça (> 50 mg/kg/dia ou 40 mg/m²/hora), hipoalbuminemia (≤ 2,5 g%), edema, hiperlipide-
mia e lipidúria (corpos graxos). Pode ser considerada também uma manifestação comum a uma variedade de
processos clínicos caracterizados pelo aumento da permeabilidade renal e filtração de proteínas, como também
ocorrer no curso de uma doença renal primária ou secundária a uma causa sistêmica.
Na infância, 90% dos casos correspondem à SN primária ou idiopática, não sendo, portanto, as-
sociada a nenhuma doença sistêmica, hereditária, metabólica, infecciosa ou a uso de drogas ou medicamen-
tos. A glomerulopatia por lesões histológicas mínimas (LHM) é a causa mais comum da SN primária em
crianças, correspondendo a aproximadamente 80% dos casos. Em adultos, responde por aproximadamen-
te 25% das nefropatias primárias que cursam com SN. A LHM caracteriza-se fundamentalmente à microscopia
óptica (MO) por rins com escassas alterações glomerulares e por boa resposta ao tratamento com corticoides,
raramente evoluindo para insuficiência renal.
Quando a SN ocorre como parte de uma doença sistêmica ou relacionada a drogas ou outras toxinas, é cha-
mada de SN secundária. São causas de SN secundária em crianças:
� SN associada a doenças sistêmicas: lúpus eritematoso sistêmico; púrpura anafilactoide; nefropatia por
IgA; sífilis; GN pós-infecciosa; malária; hepatite; diabetes melito; linfoma; esquistossomose; toxoplasmose;
citomegalovírus; Aids; amiloidose.
� SN associada a drogas: drogas anti-inflamatórias não esteroides; penicilamidas; heroína; ouro.
� SN associada com toxinas e alérgenos: alergia alimentar, picada de insetos.
126
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Epidemiologia Etiologia da SN na Infância

A SN é uma doença incomum na infância. Descre- Causas primárias


ve-se o aparecimento anual de dois a seis novos casos
para cada 100.000 crianças abaixo de 16 anos e é duas Lesão histológica mínima
vezes mais frequente no sexo masculino, desaparecen- Glomeruloesclerose segmentar e focal
do essa predominância em adolescentes e adultos. Glomerulonefrite membranoproliferativa (tipos I, II e
III)
Quanto à influência racial, apesar de não com- Glomerulonefrite proliferativa mesangial
provada, é consenso geral ser mais frequente em bran- Depósito de IgM
cos e amarelos. Em geral, a SN por LHM tem início em Depósito de IgA (Doença de Berger)
pré-escolares, entre dois e sete anos de idade, com pico Glomerulopatia membranosa
de incidência aos três anos de idade, sendo que 80%
das crianças apresentam-se com menos de seis anos Causas secundárias
no momento do diagnóstico.
Pós-infecciosas
Em algumas crianças, a SN manifesta-se nos Lues, malária, tuberculose, varicela, hepatite B, C,
primeiros meses de vida. Nesse grupo etário ocorre HIV, endocardite infecciosa, EBV, CMV, nefrite do
maior prevalência de SN congênita. shunt, toxoplasmose, estreptococos beta-hemolítico do
grupo A, etc.
Colagenoses
Lúpus Eritematoso Sistêmico, Artrite Reumatoide,
Poliarterite Nodosa, Púrpura de Henoch-Schönlein,
Etiopatogenia Distúrbios Hereditários
Síndrome de Alport
Esquistossomose
As evidências, até o momento, nos permitem di-
Granulomatose de Wegener
zer que a SN é uma doença imunológica, por diversos
Cicatriz pielonefrítica do refluxo vesicoureteral
fatores, como por exemplo: produção anormal de imu- Anemia falciforme
noglobulinas (redução de IgA e IgG e aumento de IgM Diabetes melito
e IgE), alteração da imunidade celular, deficiência de Doença inflamatória crônica
opsonização, disfunção de linfócitos T supressores, as- Febre familiar do Mediterrâneo
sociação com atopias, remissão com utilização de imu- Amiloidose
nossupressores e imunomoduladores, entre outros. Neoplasias
A partir dessas observações, foi proposto que células Leucemias, Linfoma (Hodgkin), Tumor de Wilms,
T alteradas secretariam fator ou fatores de permea- Feocromocitoma
bilidade, capazes de interferir na expressão e/ou na Toxinas (vacinas, alérgenos, picada de abelha, etc.)
função de estruturas da membrana basal glomerular Drogas
(MBG), determinando proteinúria. Têm sido estuda- Mercúrio, ouro, trimetadiona, captopril, probenecida,
dos vários fatores de permeabilidade circulantes como Anti-inflamatórios não hormonais, lítio, varfarina,
Penicilamina, heroína, etc.
o VPF (vascular permeability factor), o qual é produzido
por linfócitos T periféricos de pacientes com LHM e Tabela 10.1
outras SN corticossensíveis, em resposta a estímulos
mitogênicos. O VPF induz proteinúria por diminuir as
cargas aniônicas da MBG. Até hoje não foi bem carac-
terizado em nível molecular, podendo mesmo ser uma
mistura de várias citocinas. A terapia com corticoides
e CsA diminui a sua produção. O VPF de pacientes com
LHM infundido em ratos aumenta a permeabilidade
Fisiopatologia
capilar, produzindo intensa proteinúria. Muitos es- A proteinúria é decorrente do aumento da per-
tudos têm mostrado in vitro aumento da produção de meabilidade do capilar glomerular, devido à alteração
outros fatores, como, por exemplo, interleucinas (IL),
da sua capacidade como filtro seletor de partículas, ou
fator de necrose tumoral (TNF) etc., que alterariam a
do seu desempenho como barreira eletrostática. Além
seletividade da MBG, a resposta dos linfócitos T aos
antígenos e a produção de imunoglobulinas (Igs) pe- da passagem anormal de proteínas por causa do au-
los linfócitos B. Todavia, ficam sem explicação muitos mento da permeabilidade da MBG, outro fator impor-
eventos imunológicos que ocorrem na SN, e há, ainda, tante que contribui para determinar proteinúria é a
resultados contraditórios. queda de reabsorção pelas células epiteliais do túbulo

SJT Residência Médica – 2016


127
10  Síndrome nefrótica (SN)

proximal. O aumento da carga proteica no lume tu-


bular produz saturação dos mecanismos reabsortivos
dessas células. Vários experimentos evidenciam, em
pacientes portadores de LHM, aumento da permeabi-
lidade às proteínas devido à perda de seletividade da
membrana basal glomerular (MBG) em relação a sua
carga. Estudos ultraestruturais demonstram perda
da eletronegatividade da MBG pela redução do con-
teúdo de ácido siálico e heparan-sulfato, facilitando,
consequentemente, a passagem de ânions como a al-
bumina. O filtro glomerular contém cargas negativas,
principalmente na membrana basal, mas também nas
camadas endoteliais e epiteliais. Por isso, é conheci-
do com o nome de “poliânion glomerular”. A presença
dessas cargas dificulta a passagem de proteínas com Figura 10.2  Fusão dos podócitos na membrana basal
cargas negativas, como a albumina, por exemplo. Em glomerular que ocorre na síndrome nefrótica.
pacientes com doença de lesão mínima, uma depleção
do “poliânion glomerular” parece ser o principal fator A hipoalbuminemia é secundária à proteinúria.
para a proteinúria, principalmente pela perda de al- A perda de proteínas na urina determinaria a hipoal-
bumina. Fatores hemodinâmicos, por exemplo, hiper- buminemia e consequente hipovolemia.
tensões glomerulares, também modificam a passagem Na etiopatogenia do edema nefrótico devem-se
de proteínas para a urina. Além da albumina, muitas considerar basicamente duas hipóteses:
outras proteínas são perdidas na urina dos nefróticos. 1. Teoria do hipofluxo (underfill): na SN, as
Essas perdas podem provocar alterações do sistema grandes perdas proteicas determinam hipovolemia e,
endócrino ou dos padrões metabólicos normais, por portanto, queda da pressão oncótica plasmática (POP).
exemplo, a excreção urinária de tiroxina ligada a glo- No sentido de manter a volemia, vários mecanismos ho-
bulinas (TBG), de T3 e T4. Além da albumina, outras meostáticos seriam automaticamente acionados: queda
proteínas plasmáticas (de pequeno e médio pesos mo- da filtração glomerular, inibição do fator natriurético
leculares) estão muito diminuídas: gamaglobulinas, atrial, estimulação do hormônio antidiurético e ativação
alfaglobulinas, transferrina, proteínas carreadoras de do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA).
hormônios, proteínas inibidoras da cascata de coagu- Nos últimos anos verificou-se que, apesar de certos pa-
lação. Em contrapartida, proteínas de alto peso mo- cientes seguirem esse modelo de mecanismo da consti-
lecular encontram-se em concentrações aumentadas tuição dos edemas, muitos nefróticos têm volemia nor-
no plasma: fibrinogênio, betalipoproteínas, IgM (isso mal ou mesmo aumentada e que a elevação da renina e
ocorre tanto pelo aumento da síntese hepática quanto angiotensina não está presente em todos os casos.
pela pequena perda urinária). 2. Teoria do hiperfluxo (overflow): outros
pesquisadores admitem como mecanismo de forma-
ção do edema nefrótico um defeito primário renal
na absorção do sódio. Admite-se que a retenção de
sódio seria secundária a mecanismo renal intrínseco,
não dependendo da volemia ou de ativação do SRAA.
Aceita-se que a causa dessa reabsorção aumentada,
que aconteceria nos túbulos distais, seja motivada por
uma resistência ao péptide natriurético atrial (ANP),
por aumento do catabolismo do GMP cíclico que se se-
gue à ativação da fosfodiesterase.
Essas duas teorias não são aceitas plenamente,
mesmo porque os volumes plasmáticos podem variar
nas diferentes fases e formas da doença. Em crianças
Figura 10.1  Micrografia eletrônica da parede glomer- nefróticas, nas quais prevalece LHM com proteinú-
ular, mostrando as diferentes camadas que se opõem à ria intensa, o mecanismo provável seria gerado pela
passagem de macromoléculas. EB: espaço de Bowman; hipovolemia, ao menos inicialmente. Já em adultos,
EP: podócitos; MBG: membrana basal glomerular; END: geralmente com SN persistente, a retenção contínua
endotélio; F: fenestrações. Setas: assinalam os diafrag- de sódio poderia determinar o edema através do me-
mas de fenda. canismo hipervolêmico.

SJT Residência Médica – 2016


128
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Uma das principais características da SN é a hi- ses tanto na circulação arterial quanto na venosa e,
perlipidemia, podendo estar envolvidas praticamente algumas vezes, episódios recidivantes. A maioria dos
todas as frações lipoproteicas e lipídicas do plasma, de- pacientes tem estado hipercoagulável com níveis bai-
pendendo da gravidade do quadro nefrótico. Os níveis xos de AT III, aumento de fibrinogênio e colesterol. A
séricos do colesterol total livre e ésteres do coles- albumina sérica deve ser menor que 2 g/dL para que
terol e lipoproteínas acham-se elevados. Nos casos ocorram reduções sensíveis de ATIII. Todavia, pode
graves, os triglicérides também se encontram aumenta- haver ocorrência de fenômenos tromboembólicos,
dos. A causa da hiperlipidemia é controversa. mesmo durante a queda da albuminemia, ainda com
A hipoalbuminemia e a redução da pressão níveis satisfatórios de ATIII e de α-2-macroglobulina,
oncótica plasmática levariam a um aumento da com boa atividade total antitrombina.
síntese de proteínas pelo fígado. Sabe-se que a Outras alterações presentes na SN que facilitam a
albumina e as lipoproteínas de muito baixa den- formação de trombos são: hemoconcentração, aumento
sidade (VLDL) compartilham, no hepatócito, a da viscosidade sanguínea, hiperlipidemia, trombocitose
mesma via de síntese. Assim, ao mesmo tempo em e aumento de agregação plaquetária, do fibrinogênio e
que o organismo tenta repor as perdas proteicas uri- dos fatores V, VII, VIII, X e XI. Existe incremento da ati-
nárias, elevam-se as VLDL. Portanto, a hiperlipidemia vidade do sistema fibrinolítico. Também representam
estaria correlacionada à hipoalbuminemia, havendo condições propícias para o tromboembolismo: o uso de
aumento da síntese hepática de lipoproteínas de bai-
diuréticos, o tratamento com corticoides, as infecções
xa densidade (LDL), muito baixa densidade (VLDL) e
e o repouso no leito. A incidência de tromboembo-
densidade intermediária (IDL). Por outro lado, have-
lismo na criança com SN é calculada em torno de
ria diminuição da lipase lipoproteica (LPL) e ApoCII,
2% a 4%. No tratamento dessa complicação são utiliza-
um cofator necessário para sua atividade.
dos a heparina e, eventualmente, agentes fibrinolíticos.
Outro fator que pode ter participação no Após a fase aguda, empregam-se anticoagulantes indi-
mecanismo da hiperlipidemia é a maior disponi- retos (varfarina) por tempo prolongado, com posologia
bilidade de ácido mevalônico, precursor do colesterol, controlada pelo tempo e pela atividade de protrombina
habitualmente metabolizado e excretado pelos rins. (TP e AP). A profilaxia dos acidentes tromboembólicos
No estado nefrótico, tanto sua metabolização quanto é controversa.
sua excreção estão prejudicadas. Soma-se a esse fato o
aumento da atividade da HMG-CoA redutase, enzima A redução de absorção intestinal de cálcio e da
que catalisa a produção do colesterol. concentração sérica de 25-hidroxicalciferol e valores
normais, porém inadequados, de 1,25-di-idroxicalcife-
As principais consequências da hiperlipide-
rol, levam a situações de hipocalcemia e paratormônio
mia são a aterosclerose e a progressão das lesões
elevado. O cálcio ligado à proteína também se encontra
glomerulares. Em SN idiopática corticossensível da
diminuído devido à hipoproteinemia inerente à doença.
infância, na qual se alternam períodos de hiperlipi-
demia e períodos de lipemia normal, esses riscos são
pequenos. Já nos casos com alterações lipídicas per- Fisiopatologia do edema na SN
manentes, podem ocorrer repercussão cardiovascular
Aumento da permeabilidade glomerular
e também progressão para esclerose glomerular e in-

tersticial. A hiperlipidemia deve ser medicada apenas Proteinúria
nos casos de SNCR e nos recidivantes frequentes que ↓
permanecem com dislipidemia durante a remissão. No Hipoalbuminemia
seu controle, é discutível a vantagem do uso de die- ↓
tas pobres em gorduras. Ultimamente, tem diminuído Redução da pressão oncótica plasmática
a restrição que se fazia ao emprego de estatinas em ↓
crianças, apesar de não existirem ainda estudos sobre Transudação intersticial e redução do volume circulan-
efeitos adversos a curto e em longo prazo, especial- te
mente sobre o crescimento. ↓
Hipoperfusão renal
Existe, ainda, propensão a fenômenos

tromboembólicos determinados por redução de
Ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona
antitrombina III, plasminogênios, antiplasmi-
Aumento da atividade do sistema nervoso simpático
nas e aumento de fatores de coagulação (V, VII, Aumento na produção do hormônio antidiurético
VIII, X e XI), fibrinogênio e betatromboglobuli- ↓
na, além de hiperglobulia e aumento de adesivi- Retenção de sódio e água
dade e agregação plaquetárias. ↓
O tromboembolismo constitui uma das mais EDEMA
sérias complicações da SN, podendo ocorrer trombo- Tabela 10.2

SJT Residência Médica – 2016


129
10  Síndrome nefrótica (SN)

hérnias umbilicais, varizes na parede anterior do abdo-


Manifestações clínicas me e prolapso retal. A anorexia e as náuseas, quando
persistentes, podem levar à desnutrição.
A apresentação clínica clássica da SN por LHM carac-
teriza-se por SN sem hipertensão arterial ou hematúria,
com função renal preservada, podendo ser precedida por
infecção inespecífica de vias aéreas ou por infecção viral.
A principal manifestação clínica da SN, embora
sua presença não seja essencial para o diagnóstico, é o
edema, que, nos casos de LHM, geralmente é intenso,
mole, frio, depressível e sujeito à ação da gravidade.
Inicia-se na face, de instalação gradual ou rá-
pida, estendendo-se de maneira insidiosa para
todo o corpo, com grande tendência a invadir se-
rosas, levando à anasarca. Com a piora do edema,
podem ocorrer formação de ascite, edema escrotal e/
ou peniano, edema labial e derrame pleural. Podemos
encontrar oligoanúria e urina espumosa. São também
encontrados sinais de desnutrição, cabelos finos, que-
bradiços e descorados, redução de massas musculares,
unhas frágeis com estrias esbranquiçadas horizontais.
A pele é seca, friável, e, quando há episódios repetidos
de edemas importantes, surgem numerosas estrias Figura 10.3  Edema facial na síndrome nefrótica.
nas regiões que sofreram maior distensão. A pressão
arterial (PA) nos casos de LHM geralmente é normal.
Entretanto, em alguns casos, pode haver hipertensão
transitória. Nas crianças com muitas recidivas, a con-
sequente repetição dos esquemas terapêuticos diários
com corticoides confere aspecto “cushingoide”: au-
mento de peso, hipertricose, giba, fácies de lua e acne.
Sinais de descalcificação óssea devido às alterações no
metabolismo da vitamina D e diminuição do cálcio li-
gado à proteína também podem ser encontrados. Há
alta incidência (40% a 60%) de associação com
bronquite asmática e processos alérgicos em ge-
ral, assim como relação com processos infecciosos de
vias aéreas superiores, broncopneumonias, celulite e
sepse. Na SN, os pacientes infectam-se com gran- Figura 10.4  Edema maciço na síndrome nefrótica.
de facilidade, o que poderia ser atribuído às alte-
rações imunológicas presentes na doença, perda
de zinco e proteínas na urina e tratamento com
imunossupressores. Diagnóstico
Os agentes infecciosos mais frequentes são
o Streptococcus pneumoniae e as bactérias Gram-negati- laboratorial
vas (E. coli, Klebsiella sp.), Haemophilus influenzae, bem
como Staphylococcus aureus, principalmente em pacien-
tes hospitalizados. Distúrbios gastrointestinais são Alterações urinárias
frequentemente encontrados no curso da SN (aproxi- � Proteinúria de 24 horas: proteinúria nefrótica é
madamente 20%). A diarreia pode ser encontrada, es- maior ou igual a 40 mg/m2/hora. Também pode
pecialmente durante o período de edema maciço, sendo ser definida como maior ou igual a 3,5 g/ 1,73
atribuída ao edema da mucosa ou de etiologia infeccio- m2/dia; maior ou igual a 50 mg/kg/dia.
sa. A hepatomegalia pode ocorrer devido ao aumento � Quando houver dificuldade na coleta de urina
da síntese de albumina e/ou edema hepático. A dor ab- de 24 horas, usar amostra isolada. A relação en-
dominal ocorre por causa de edema da parede intestinal tre a concentração de proteína/creatinina uri-
ou hepático e episódios de peritonite por contaminação nárias em amostra isolada de urina expressas
bacteriana do líquido ascítico, porém sempre deve ser em mg/dL, quando maior que 2, significa pro-
descartado o abdome agudo cirúrgico. Podem ocorrer teinúria nefrótica.

SJT Residência Médica – 2016


130
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Proteína/Creatinina urinárias Proteinúria Sódio, potássio e cálcio: a hiponatremia


pode aparecer, e é geralmente dilucional, podendo
< 0,2 Normal
estar associada ou agravada pelo uso de diuréticos
0,2-0,5 Mínima
potentes. Pode ocorrer algum grau de pseudo-hipona-
0,5-2 Moderada
tremia devido à hiperlipidemia. Hipercalemia ocorre
>2 Nefrótica
em situações de falência renal ou acidemia metabólica
Tabela 10.3 associada, enquanto a hipocalemia é comum como
complicação do uso de diuréticos espoliadores de po-
Urina I: grande quantidade de cilindros, na tássio, anorexia e/ou vômitos ou alcalose metabólica.
maioria hialinos e granulosos, sugere a presença de Hipocalcemia pode estar relacionada às disfunções
proteinúria, que confere aspecto espumoso à urina. de metabolismo da vitamina D ou à hipoalbuminemia,
Em 20% dos casos podem ocorrer hematúria (ge- valendo a dosagem do cálcio sérico ionizado. Nos ca-
ralmente microscópica) e leucocitúria em graus sos de proteinúria muito intensa, com perda de meta-
variados, independentemente de infecção do bólitos da vitamina D, o cálcio ionizável também pode
trato urinário. estar baixo.
Testes de proteinúria semiquantitativa são Hemograma: hemoglobina e hematócrito po-
realizados com a primeira urina da manhã. O áci- dem estar elevados pela hipovolemia. Pode ocorrer
do utilizado é o sulfossalicílico (ASS a 10%), que plaquetose. Leucocitose pode indicar infecção ou ser
em contato com a proteína da urina se precipita, decorrente do uso crônico de corticoides.
surgindo um aspecto que, a olho nu, tem correla- Complemento: na LHM os valores são normais.
ção com a concentração de proteínas na amostra. A constatação de hipocomplementenemia é indi-
É um bom método, e simples para o acompanhamento cação formal de biópsia renal.
dos doentes em domicílio, que utiliza a combinação, Sorologias: devem ser solicitadas para todos os
em tubo de ensaio de ± 20 mL, da primeira urina da nefróticos, para infecções perinatais, HIV, hepatites B
manhã, com dez gotas de ASS a 10%. A precipitação e C, toxoplasmose e citomegalovirose, pois, apesar de
ocorre rapidamente e é sensível para concentrações a grande maioria dos casos de SN na infância ser pri-
proteicas baixas: mária, podem ocorrer formas secundárias.
Proteinúria
Resultados Escala
(mg%)
Sem turvação 0 0 Anatomia patológica
Leve turvação + 15-30
Em LHM, a microscopia óptica (MO) mostra rim
Turvação sem precipita- ++ 40-100
ção praticamente normal, podendo, no entanto, ocorrer
Turvação com precipi- +++ 150-350
graus variáveis de proliferação mesangial e raras le-
tação sões tubulointersticiais focais e moderadas, caracte-
Precipitado floculento ++++ 600-2000 rizadas por faixas de proliferação fibrosa, contendo
pequenos grupos tubulares atrofiados. No exame de
Tabela 10.4  Equivalência aproximada da albuminúria imunofluorescência direta (ID) não se constata, usu-
no teste com ASS. almente, fixação de imunoglobulinas. Na microscopia
eletrônica (ME) constata-se fusão dos prolongamen-
tos dos podócitos.

Alterações sanguíneas
Eletroforese de proteínas: ocorre diminuição
do nível sérico de albumina (≤ 2,5 g%), gamaglobuli- Tratamento
na e α-1-globulinas, com aumento da α-2-globulina.
O aumento de gamaglobulina sugere etiologia secun- Primeiramente deve haver conscientização e
dária. informação dos pais e pacientes sobre a natureza da
SN, sua evolução, frequência de recidivas e impor-
Lípides: aumento nos níveis de colesterol e de
tância dos processos infecciosos no desencadeamen-
frações e de triglicérides.
to e agravamento do quadro. Trata-se de doença de
Ureia e creatinina: durante a instalação do evolução crônica na qual, habitualmente, ocorrem
edema ou em situações de hipovolemia podem se ele- muitas recidivas múltiplas infecções, necessidade de
var, com normalização após resolução da crise nos pa- emprego de várias medicações etc. Para tanto, é mui-
cientes com LHM. Avaliar a possibilidade de nefroto- to importante o bom relacionamento entre médico,
xicidade medicamentosa. família e paciente.

SJT Residência Médica – 2016


131
10  Síndrome nefrótica (SN)

Os resultados são muito eficazes e raramente há


Medidas inespecíficas necessidade de ultrafiltração por métodos dialíticos.
1- Atividade: a criança nefrótica não deve ser Devem ser monitorados os níveis de calcemia, potas-
mantida em repouso, desde que suporte bem as ativi- semia e o equilíbrio acidobásico. Pode ocorrer remis-
dades físicas, que muitas vezes são limitadas pelo grau são com diurese volumosa, e a não suspensão dos diu-
do edema. Não existem evidências de que o repouso réticos pode provocar distúrbios eletrolíticos.
influencie favoravelmente no curso e desenvolvimen- 5- Antibioticoterapia: Os pacientes com SN
to da doença. têm grande vulnerabilidade às infecções, o que de-
2- Nutrição: fica difícil definir o teor proteico da sencadeia e prolonga as fases de descompensação e
dieta de pacientes com proteinúria. Alguns autores re- coloca suas vidas em risco. Os antibióticos devem
comendam dietas normoproteicas com receio de even- ser utilizados não apenas com finalidade terapêutica,
tual desnutrição. A restrição salina deve ser utilizada. como eventualmente, também, profilática nos casos
Contudo, não há necessidade de restrição hídrica. que apresentem repetidas recidivas por contaminação
bacteriana. O tratamento baseia-se na utilização de
3- Diuréticos: a história natural da SN não antibióticos com espectro contra Streptococcus pneu-
se altera com a terapia diurética. Geralmente, não é moniae, bactérias Gram-negativas e S. aureus, determi-
necessário o emprego de diuréticos, exceto se hou- nando celulites, peritonites, sinusites e pneumonias
ver edema generalizado e intenso, especialmente na que podem evoluir para sepse. O tratamento deve ser
presença de desconforto respiratório e/ou gastroin- instituído rapidamente, levando em consideração o
testinal, grandes anasarcas, dificuldade em abrir os foco infeccioso, o estado clínico do paciente e o agente
olhos, restrição importante das atividades ou der- bacteriano. Os antibióticos utilizados podem ser, por
matites intertriginosas. Os diuréticos habitualmente exemplo, as penicilinas e seus derivados e os amino-
empregados no tratamento da SN são os tiazídicos, glicosídeos. A profilaxia é feita com penicilina VO em
furosemida e espironolactona. As doses pediátri- doses baixas ou com vacina antipneumocócica, por ser
cas utilizadas são de 2 a 5 mg/kg/dia de tiazídicos, o estreptococo o germe que mais causa intercorrências
de 2,5 a 5 mg/kg/dia de espironolactona e de 2 a 4 nesses doentes.
mg/kg/dia de furosemida. O uso de diuréticos no
nefrótico é contraindicado em pacientes com sinais
clínicos (hipotensão) e laboratoriais (aumento agudo
de ureia e creatinina séricas, hematócrito > 40%) de Medidas específicas
hipovolemia, assim como na vigência de diarreia e/ As drogas empregadas no tratamento da SN
ou vômitos. Evita-se a depleção de potássio usando são imunossupressoras. Assim sendo, é importan-
concomitantemente cloreto de potássio (2 a 4 mg/ te, antes de iniciar o tratamento específico, realizar
kg/dia) ou espironolactona. Nos casos resistentes a investigação do calendário vacinal da criança, exame
essa terapia, pode ser empregada a associação de hi- protoparasitológico, investigar possíveis infecções vi-
droclorotiazida e furosemida (2 a 5 mg/kg/dia), que rais como hepatite B e C, Aids, e tratar previamente as
atuam em segmentos diferentes do túbulo renal. infecções ativas eventualmente presentes.
4- Albumina: a infusão endovenosa de albumi- Corticoides: São a primeira linha de trata-
na (20 ou 25%) deve ser feita sem diluição na dose de mento da SN idiopática. São o tratamento de esco-
0,5-1,0 g/kg, no mínimo em 4 horas. Pode ser admi- lha em LHM desde 1956, havendo remissão da pro-
nistrada furosemida por via IV em infusão contínua teinúria em 90% dos casos. Nas crianças, a resposta
na dose de 0,1- 0,2 mg/kg/hora. Devem ser obedeci- em cerca de 50% dos casos ocorre nos primeiros 15
das as contraindicações para o uso de diuréticos. A dias de terapia e nas restantes, até a oitava semana.
infusão de albumina é contraindicada em pacientes Após o esquema com corticoide ter sido sugerido nos
hipervolêmicos, pelo risco de desencadear insufici- anos 1970 para o tratamento inicial da SN, muitas va-
ência cardíaca congestiva. Seu uso está indicado nas riações foram propostas, principalmente quanto à ad-
ministração de corticoide em esquemas diários, dose
seguintes situações:
única em substituição a três tomadas e duração mais
� Hipovolemia, hipotensão, choque. prolongada do esquema diário (seis a oito semanas) e
� Edema generalizado refratário à ação de diuré- do esquema de corticoterapia alternado, visando dimi-
ticos, situação frequentemente associada à per- nuir o número de recidivas. Utiliza-se a prednisona na
sistência da oligúria. dose inicial de 60 mg/m2/dia, aproximadamente 2 mg/
kg/dia, (dose máxima 80 mg/dia), em três tomadas di-
� Presença de derrames cavitários importantes re-
árias, durante quatro semanas. Cerca de 80%-90%
sultando em desconforto respiratório/abdominal. dos casos são sensíveis aos corticoides, com desa-
� Edema genital. parecimento da proteinúria em menos de quatro

SJT Residência Médica – 2016


132
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

semanas após o início do tratamento (corticos- Outros tratamentos: Cerca de 10% a 20%
sensível). A seguir, o corticoide é administrado em dos pacientes são corticorresistentes, isto é, não se
dias alternados (a cada 48 horas), em torno de quatro beneficiam com o emprego de corticoides, persistindo
a seis meses. A dose utilizada inicialmente é de 35 mg/ com a proteinúria nefrótica após quatro a seis sema-
m2/dia mantida no primeiro mês e diminuída progres- nas do uso do medicamento. O uso de outros agentes
sivamente num esquema de “desmame” até retirada imunossupressores está indicado nos pacientes corti-
completa da droga. Em crianças que recebem o corti- corresistentes, corticodependentes e recidivantes fre-
coide pela primeira vez, a resposta ocorre em torno do quentes. As terapêuticas alternativas que podem ser
14º dia. Nas crises subsequentes a resposta é mais rá- utilizadas nesses casos são: pulsos endovenosos de me-
pida (quarto ou quinto dia). Apesar da remissão, o es- tilprednisolona, ciclofosfamida, clorambucil, levamisol,
quema diário deve ser mantido durante quatro sema- ciclosporina A, indometacina, inibidores da enzima de
nas. Quando a criança após quatro a seis semanas conversão da angiotensina, micofenolato de mofetila.
mantém proteinúria nefrótica, ela é considerada
corticorresistente e deve ser triada para biópsia
renal. Uma característica da SN idiopática é a recidi-
vidade que ocorre em cerca de 60% dos casos. Quando
há recidivas precoces após a primeira crise, há grande
propensão para os doentes se tornarem recidivantes
frequentes. As recaídas habitualmente são prece-
didas por processos infecciosos, principalmente
de vias aéreas superiores. A conduta consiste em
tratar a infecção desencadeante, e, caso a criança este-
ja recebendo corticoide diariamente, este deve ser al-
ternado, usando-se a dosagem adequada (35 mg/m2/
dia). Se o paciente estiver sem corticoterapia e após o
tratamento com antibiótico não entrar em remissão
espontânea, na ausência de quadros infecciosos, deve
ser reiniciado esquema diário com corticoide, mantido Figura 10.5  Melhora clínica após corticoterapia.
por até três dias após a remissão. Os recidivantes fre-
quentes necessitam de corticoterapia prolongada, em
geral seis meses de esquema alternado com retirada
progressiva e lenta da medicação.
Indicações de biópsia renal
Restringem-se cada vez mais as indicações de
Conceitos diante da resposta biópsia renal (BR) em SN. A priori, todas as crianças
entre 2 e 7 anos, com proteinúria e hipoalbuminemia
ao corticoide em níveis nefróticos, sintomatologia exuberante e
� remissão: proteinúria < 4 mg/m2/h ou 5 mg/ complemento sérico normal, devem ser consideradas
kg/dia ou ASS negativo ou traços por mais de e tratadas como portadoras de LHM. Nesse grupo,
três dias consecutivos; aquelas que não obtiverem remissão clínica e
� recidiva ou relapsia da doença: proteinúria laboratorial entre 4 e 8 semanas de corticotera-
> 40 mg/m2/h ou ASS > ++ por mais de três dias pia, desde que não estejam infectadas, devem ser
consecutivos; biopsiadas, pois provavelmente apresentam ou-
� corticossensível: remissão do quadro nefróti- tros padrões histológicos.
co durante o tratamento com esquema diário; As recidivas costumam ser mais frequentes
� corticorresistente: ausência de resposta após nos primeiros meses de doença. Quando persisten-
utilização por quatro semanas do esquema diário; tes por mais de 12 a 18 meses do diagnóstico, indi-
ca-se BR para obter diagnóstico histológico mais preciso
� corticodependente: apresenta proteinúria
negativa na vigência da corticoterapia e fre- e introduzir terapêutica imunossupressora adequada.
quentemente recidiva durante as duas semanas Crianças com mais de 8 anos podem receber trata-
após o início do tratamento com corticoide al- mento inicial para avaliar sua corticossensibilidade ou
ternado; ser biopsiadas já inicialmente. A BR no adolescente
� corticossensível recidivante frequente: deve ser precoce, minimizando o retardo no diagnós-
apresenta duas ou mais recidivas dentro de seis tico e no tratamento da doença de base, pois há maior
meses após a resposta inicial ou mais de três re- possibilidade de ocorrência de SN secundária ou de ou-
cidivas durante um ano. tras lesões anatomopatológicas que não LHM.

SJT Residência Médica – 2016


133
10  Síndrome nefrótica (SN)

No primeiro ano de vida, deve ser realizada mophilus influenzae e outras bactérias Gram-negativas.
BR antes do início do tratamento, principalmente As complicações bacterianas mais frequentes são
nos casos de famílias com antecedente de SN. infecções de vias aéreas superiores, sinusites,
pneumonias, peritonites e celulites. As crianças
Pacientes com complemento sérico baixo nefróticas apresentam maior risco para septicemia.
também necessitam ser submetidos à BR, pois
Fenômenos tromboembólicos: o plasma do
esse dado exclui o diagnóstico de LHM.
nefrótico é hipercoagulável pelos seguintes fatores: di-
minuição da concentração de antitrombina III (perdas
Síndrome nefrótica (SN)
(primeiro episódio)
urinárias), aumento do nível sérico de fibrinogênio
e aumento no número de plaquetas. Outros fatores,
Checar: carteira vacinal, PPF,
hepatites, HIV (tratar) como hipovolemia e uso de diuréticos, aumentam o
risco de trombose.
Prednisona diária
60 mg/m2/d – 4 semanas
Insuficiência renal aguda: ocasionalmente
Corticossensível: Corticodependente: prednisona Corticorresistente:
pode complicar a SN. É, em geral, consequente à ne-
Prednisona em dias alternados
35 mg/m2/d – 4 a 6 meses
em dias alternados para manter remissão Estudo genético de mutações para SN crose tubular renal secundária à hipovolemia.
Alterações hormonais e minerais: ocorrem
Dose baixa de CCT: Dose alta de CCT:
Prednisona por 12 a 18 meses toxocicidade ao esteroide aumento da excreção urinária de T3 e T4 e diminuição
sérica de T3 e tireoglobulina. A hipocalcemia ocorre
BIÓPSIA RENAL
por diminuição do cálcio ligado à proteína e também
+
terapia dirigida da sua fração iônica.
Crescimento anormal e nutrição: crianças ne-
Figura 10.6
fróticas descompensadas sem corticoides podem apre-
sentar retardo de crescimento devido à desnutrição pro-
teico-calórica secundária à falta de apetite, proteinúria
e absorção ruim por edema gastrointestinal. Porém, em
Vacinações crianças que usam muito corticoides, a principal causa
As vacinações podem levar à descompensação do do retardo de crescimento é o próprio corticoide.
quadro nefrótico, o que não significa que os pacientes Crise nefrótica: dor abdominal intensa, simu-
devam deixar de recebê-las. Sob tratamento com altas lando abdome cirúrgico – trata-se de peritonite assépti-
doses de corticoides ou outras medicações imunossu- ca em crianças com anasarca (tratamento conservador).
pressoras, não se deve recomendar vacinas de vírus vi-
vos. A vacinação antipneumocócica deve ser realizada
com o paciente em remissão da SN ou fora do esquema
diário de tratamento com corticoide. Recomenda-se a
vacina antipneumocócica sete-valente para crianças Evolução
menores de cinco anos de idade e a 23-valente para os
maiores. Apesar da imunização, os níveis de anticorpos A resposta aos corticoides e a frequência das re-
adquiridos nem sempre são adequados, podendo ocor- cidivas após a terapia inicial são fatores prognósticos
rer peritonite ou sepse por pneumococo. A vacina de de evolução. Crianças corticossensíveis não perdem a
varicela num esquema de duas doses é bem tolerada e função renal, e aquelas com mais de duas recaídas nos
altamente imunogênica em crianças com SN, inclusive seis primeiros meses de tratamento vão ter mais reci-
naquelas que recebem esquema alternado com baixas divas no curso da doença quando comparadas àquelas
doses de corticoide. Pode ser administrada após um ano com duas ou menos descompensações. Estima-se que,
de idade com bons resultados. Os pacientes não imu- com o passar dos anos, os períodos de atividade dimi-
nizados devem ser controlados durante os surtos de nuam de frequência; aos cinco anos de doença, de 50%
varicela e receber imunoglobulina específica se houver a 70% não apresentarão recidivas; e que aos dez anos
exposição ao vírus. Caso a doença se manifeste, deve ser 85% estarão curadas. A mortalidade após a introdução
reduzida a dosagem do corticoide e utilizado o aciclovir. de corticoides e antibióticos diminuiu de 35% para 3%,
já que a principal causa de óbito eram os processos in-
fecciosos, os quais continuam sendo o grande risco na
SN, pois desencadeiam e mantêm as crises, criando um
círculo vicioso. Ao lado desses processos infecciosos,
Complicações outro fator de risco é o tromboembolismo, que deve ser
sempre considerado, apesar de não ser tão frequente
Infecções: crianças nefróticas apresentam sus- em crianças como em adultos. Portadores de LHM cor-
cetibilidade aumentada a infecções devido às altera- ticorresistentes ou que evoluem para perda da função
ções da imunidade humoral e celular, ativação da via renal, em regra, mostram padrão de glomeruloesclerose
alternada do complemento por perda urinária do fator em BR posteriores. Considera-se “eventualmente cura-
B, deficiência proteica generalizada, terapia imunos- da” uma criança que permanece cinco anos sem crises e
supressiva. Os agentes bacterianos mais frequente- sem medicação. Assim mesmo, às vezes, após períodos
mente implicados são: Streptococcus pneumoniae, Hae- muito longos, podem surgir novas recorrências.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

11
Doenças exantemáticas

Os mecanismos de agressão a pele são: 1. invasão


Doenças exantemáticas e multiplicação direta na própria pele (ex.: varicela,
herpes); 2) ação de toxinas (ex.: escarlatina, estafilo-
As doenças exantemáticas são, em sua maio- coccias); 3) ação imunoalérgica com expressão na pele
ria infectocontagiosas, sistêmicas, acompanhadas de (ex.: algumas viroses exantemáticas); 4) dano vascu-
manifestações cutâneas agudas (rash) e sendo grande lar, podendo causar extravasamento capilar, obstru-
parte delas acompanhadas de febre. A erupção cutâ- ção e necrose da pele (ex.: meningococcemia). Geral-
nea se deve a uma ação direta do agente causador ou mente estes mecanismos coexistem, mas suas reações
de seus produtos. O diagnóstico diferencial da febre aparecem na pele como lesões distintas.
com erupção na pele é extremamente amplo. Entre- Quando se descrevem as lesões de pele, conven-
tanto, muito frequente na faixa etária pediátrica, ciona-se a utilização dos seguintes termos que defi-
alguns quadros apresentam particularidades que po- nem as lesões dermatológicas elementares. Assim, de
dem tornar o diagnóstico dependente apenas de da- acordo com o tamanho, conteúdo e cor tem-se:
dos epidemiológicos e da história natural da doença
(contato, tempo de incubação, pródromo e manifesta- � máculas: áreas de coloração diferente, circunda-
ção), dinamizando a terapêutica, facilitando a orienta- das por pele sem alteração do seu plano ou da
ção aos pais e contactantes e permitindo ao profissio- sua superfície. Não são palpáveis e podem ser
nal de saúde interromper ou diminuir a propagação de hipercrômicas ou hipocrômicas. Nesse capítu-
surtos. Outros quadros serão apenas diagnosticados lo, atenção especial será dada para a coloração
precisamente com exames laboratoriais. Para facilitar róseo-avermelhada das lesões, que são mais co-
o estudo deste tema, é fundamental a definição dos muns nos exantemas.
termos empregados para definir a alteração dermato- � pápulas: são lesões pequenas, circunscritas, ge-
lógica e o seu mecanismo de lesão. O exantema é uma ralmente de consistência sólida que fazem rele-
erupção aguda na pele, também muitas vezes referida vo e são perceptíveis ao tato com até 1 cm de
como um rash cutâneo. Um enantema é uma erupção diâmetro;
que ocorre me mucosas. Quase todas as doenças exan- � nódulos: são lesões perceptíveis ao tato, maio-
temáticas clássicas se iniciam com um enantema, al- res de 1 cm de diâmetro, de consistência sólida;
guns inclusive patognomônicos, como o do sarampo.
Importante lembrar que no diagnóstico diferencial de � placas: confluência de pápulas ou nódulos
uma doença febril exantemática misturam-se doen- � vesículas: elevações circunscritas na pele, pe-
ças benignas, doenças infectocontagiosas ou doenças quenas, menores de 5mm, decorrentes de cole-
muito graves ameaçadoras à vida. ção de líquido seroso;
135
11  Doenças exantemáticas

� bolhas: lesões de conteúdo líquido com mais de ca, histórico de viagens, estação do ano, apresentação
5 mm de diâmetro; do período prodrômico e presença de sinais patogno-
� pústulas: lesões de conteúdo purulento, inde- mônicos. Também é importante conhecer os períodos
pendentemente do tamanho; de incubação e de transmissão das principais doenças
exantemáticas infecciosas.
Na prática clínica é comum a associação de le-
sões maculopapulosas, vesicobolhosas, vesicopapu- Num segundo passo, é importante avaliar o
lobolhosas, etc. Os exantemas podem ser eritema- exantema, suas características, distribuição, tempo de
tosos - róseos ou avermelhados e que desaparecem início e duração. De acordo com suas características,
à vitro/digitopressão - e purpúricos, quando há ex- os exantemas devem ser classificados em maculopa-
travasamento de sangue no vaso (não desaparece à pulares (os mais frequentes na prática clínica), pa-
vitro/digitopressão). As lesões desse último tipo de pulovesiculares e petequiais ou purpúricos. Cada um
exantema podem ser pequenas (petéquias) ou maio- desses tipos direciona para diferentes possibilidades
res (equimoses). A crosta é o ressecamento da secre- diagnósticas. Os exantemas maculopapulares, por sua
ção serosa, purulenta, sanguínea ou mista. A escoria- vez, são classificados em:
ção é uma lesão epidérmica decorrente dos arranhões � morbiliformes: pequenas maculopápulas aver-
ou do ato de se coçar; denuncia, portanto, o caráter
melhadas com preservação de áreas de pele sã
pruriginoso do exantema.
entremeadas pelas lesões (é o exantema típico
do sarampo)
� rubeoliforme: semelhante ao morbiliforme, po-
Abordagem da criança rém róseo, com lesões menores e menos pápu-
las (exantema típico da rubeola, por exemplo.)
com exantema � escarlatiniforme: eritema difuso, puntiforme,
vermelho vivo, sem áreas de pele são entremea-
À primeira vista, as doenças exantemáticas agu- das (exantema típico da escarlatina)
das são muito parecidas, o que dificulta o diagnóstico � urticariforme: erupção papuloeritematosa de
diferencial. Numa primeira etapa é importante va- contornos irregulares, com placas mais percep-
lorizar os dados característicos, como por exemplo,
tíveis, róseas ou avermelhadas
a idade do paciente, seu estado nutricional (quadros
são mais graves ou atípicos em pacientes desnutri- Na tabela 11.1, apresenta-se, de forma resumi-
dos), antecedentes de imunizações e de doenças exan- da as principais doenças exantemáticas na infância,
temáticas prévias, dados epidemiológicos positivos classificadas de acordo com o tipo de apresentação do
para doenças infectocontagiosas, evolução da curva exantema, separados por causas virais (bastante co-
térmica, uso de medicamentos, localização geográfi- muns) e outros agentes.

Etiologia viral Outras causas


Maculopapular Maculopapular
Sarampo Escarlatina
Rubéola Síndrome do choque tóxico
Eritema infeccioso Doença de Kawasaki
Exantema súbito Febre maculosa brasileira
Mononucleose infecciosa Reação medicamentosa
Exantemas por enterovírus Toxoplasmose
Citomegalovirose Eritema solar
Petequial Petequial
Sarampo atípico Febre maculosa brasileira
Febres hemorrágicas Meningococcemia
Rubeola congênita Coagulopatias
Escorbuto
Reação medicamentosa
Endocardite subaguda
Toxoplasmose congênita
Vesicular Vesicular
Varicela Impetigo
Herpes zoster Picada de inseto
Herpes simples Reação medicamentosa
Vírus coxsackie

Tabela 11.1  Principais doenças exantemáticas na infância, segundo etiologia viral e outras

SJT Residência Médica – 2016


136
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Os dois maiores grupos de exantemas (maculo- contaminação de um indivíduo suscetível parece fa-
papulares e papulovesiculares), em pediatria, abran- zer-se quase exclusivamente através do contato direto
gem as doenças exantemáticas; entretanto, esses dois com pessoas doentes. A contagiosidade começa dois
tipos de erupção são encontrados em muitas outras dias antes do início do período prodrômico, alcança o
doenças além das infecciosas exantemáticas agudas. máximo durante a fase catarral e estende-se até qua-
Dentre os exantemas maculopapulares, encontram- tro dias após o aparecimento do exantema, diminuin-
-se os das cinco febres eruptivas clássicas: sarampo do de tal maneira que, após seis dias do seu início, o
(primeira moléstia), escarlatina (segunda moléstia), paciente não é mais contagioso. A disseminação má-
rubéola (terceira moléstia), eritema infeccioso (quinta xima do vírus dá-se por aspersão de gotículas durante
moléstia) e exantema súbito - roseola infantum (sexta o estágio catarral, havendo necessidade de isolamento
moléstia). A doença de Filatow, que seria a “quarta molés- respiratório do indivíduo infectado nesse período. O
tia”, hoje não é mais considerada uma entidade clínica (es- sarampo é muito contagioso, salientando-se que a in-
carlatina atípica). Entretanto, com o progresso dos conhe- trodução de um caso da doença no ambiente familiar
cimentos e, principalmente, das técnicas laboratoriais de faz com que cerca de 90% dos contatos familiares sus-
isolamento etiológico, muitas doenças tiveram seu agente cetíveis se contaminem. Raramente é subclínico.
conhecido e, atualmente, sabe-se que todas as doenças O sarampo é doença de notificação imediata e
que evoluem com vasculite, sejam infecciosas ou não, po- obrigatória; ou seja, diante de um caso suspeito, este
dem, em algum momento, apresentar erupção cutânea. deve ser notificado pelos profissionais que tiveram o
primeiro contato com o paciente.
A infecção pelo vírus do sarampo pode causar
uma variedade de síndromes clínicas, que incluem o
Sarampo sarampo clássico em pacientes imunocompetentes,
o sarampo modificado em pacientes com anticor-
O sarampo é uma doença viral exantemática pos pré-existentes, mas com incompleta proteção, as
aguda, altamente contagiosa, e que está em vias de síndromes neurológicas após a infecção do sarampo,
erradicação em nosso meio em virtude das estraté- incluindo a encefalomielite aguda disseminada e a pa-
gias de imunização, embora, até recentemente, ainda nencefalite subaguda esclerosante (PES) e sarampo
provoque alguns surtos. Assim, alguns países do mun- grave, em imunocomprometidos.
do ainda sofrem com esse problema e, em virtude de As manifestações clínicas do sarampo são, de
deslocamentos de uma sociedade globalizada, atenção modo geral, suficientemente características para per-
constante deve ser dada ao risco de propagação e rein- mitir o diagnóstico da doença sem o auxílio de qualquer
serção da doença. exame laboratorial. O período de incubação (entre con-
É causado por um vírus da família Paramyxoviri- tágio e primeiras manifestações clínicas) inicia-se após
dae (gênero Morbillivirus). a entrada do vírus pela mucosa respiratória ou conjun-
tiva e é de cerca de 10 dias. A disseminação do vírus do
Os anticorpos contra o sarampo, do tipo IgG,
sarampo nesse período, devido à viremia, com infecção
atravessam facilmente a barreira placentária. Os lac-
associada do endotélio, epitélio respiratório, monócitos
tentes adquirem imunidade por via transplacentária
e macrófagos, pode explicar a variedade de manifesta-
das mães que tiveram ou receberam imunização con-
ções clínicas e as complicações que podem ocorrer. Uma
tra o sarampo e as crianças nascem com título satis-
segunda viremia ocorre alguns dias após a primeira,
fatório de anticorpos e, portanto, protegidas. Essa
que coincide com o aparecimento de sintomas indicati-
proteção passiva vai desaparecendo à medida que os
vos do início da fase prodrômica.
anticorpos de origem materna vão sendo cataboliza-
dos. Essa imunidade é completa pelos primeiros 4 a 6 O período prodrômico, que dura cerca de três a
meses de vida e desaparece numa velocidade variável. quatro dias, caracteriza-se por febre, geralmente ele-
Assim, enquanto o sarampo é excepcional antes dos vada (muitas vezes excedendo 39ºC ou mesmo 40ºC),
seis meses de idade, por volta de um ano quase todas alcançando o máximo na época do aparecimento do
as crianças já são suscetíveis à doença. A imunidade exantema, para desaparecer, habitualmente em lise,
induzida é de longa duração, provavelmente persistin- dois ou três dias depois. Nessa fase, sintomas gerais
do por toda a vida. aparecem com grande frequência e variável intensi-
dade: anorexia, cefaleia, dores abdominais, vômitos,
A transmissão ocorre por via aérea, por meio de
diarreia, artralgias e mialgias, que associados a pros-
secreção ocular e das vias respiratórias do doente, por
tração e mesmo sonolência, que por vezes coexistem,
contato direto, pelas gotículas de Pflügge (gotículas
dão a impressão de doença grave. Sintomas oculares
de saliva que são expelidas durante a conversação) e
estão presentes. A conjuntivite traduz-se por fotofo-
por dispersão de gotículas com partículas virais no ar,
bia, edema palpebral, secreção ocular, congestão e la-
principalmente em ambientes fechados como creches, crimejamento. Todos esses sintomas geralmente são
escolas e meios de transporte (incluindo aviões). A

SJT Residência Médica – 2016


137
11  Doenças exantemáticas

associados a sintomas catarrais altos: coriza e espirros. hiperemiados, queixando-se de desconforto na cla-
A coriza é abundante, inicialmente mucosa e torna-se ridade, intensa rinorreia e tosse implacável. Para os
mucopurulenta, às vezes com laivos de sangue, irri- não familiarizados, a aparência é de doença grave
tando o nariz e o lábio superior. Atinge o máximo de (semelhante à toxemia de uma doença bacteriana).
intensidade ao tempo do aparecimento da erupção e Ressalta-se, nesta fase, o aparecimento da pneumo-
desaparece rapidamente após a defervescência. A tos- nite intersticial que cursa com pequenos focos de
se nunca falta. É inicialmente seca, intensa, contínua e condensação no interstício e nos alvéolos. Geralmen-
incomoda o paciente. Como as demais manifestações te tem evolução benigna e é provavelmente causada
do período prodrômico, atinge máxima intensidade à pelo vírus do sarampo.
época do aparecimento do exantema, mas, ao contrá- O exantema começa a esmaecer em torno do ter-
rio dessas, não desaparece quando surge erupção, po- ceiro ou quarto dia, na mesma sequência em que sur-
dendo persistir por até quase duas semanas. giu, com o aparecimento de descamação furfurácea e
Embora a coriza, a tosse e a conjuntivite muitas uma leve pigmentação acastanhada.
vezes confiram ao paciente um aspecto facial muito O quadro clínico, em geral, dura de uma a duas
sugestivo de acometimento pelo vírus do sarampo (fa- semanas. Desaparece rapidamente a febre, os sinto-
cies sarampenta), são as manchas de Koplik, o enan- mas oculares e catarrais altos e lentamente a tosse
tema que precede à erupção da pele, que confirma o e os sintomas brônquicos. A tosse pode persistir até
diagnóstico. O enantema é a primeira manifestação 1 ou 2 semanas após a infecção do sarampo. Febre
mucocutânea a aparecer e é característico. Em 50% a persistente além do terceiro ou quarto dia de erupção
80% dos casos, 2 a 3 dias depois do período prodrô- sugere complicação.
mico (catarral) aparece o característico sinal de Ko-
O diagnóstico, em geral, baseia-se no quadro clí-
plik (patognomônico do sarampo): há hiperemia da
nico; raramente há necessidade de confirmação labo-
orofaringe (com um salpicado vermelho na região de
ratorial. Elevação dos títulos de anticorpos é detectada
palato) e na região oposta aos dentes molares surgem
entre os soros das fases aguda e convalescente (aumen-
manchas branco-azuladas ou acinzentadas, pequenas,
to de pelo menos quatro vezes o título de IgG) ou, na
de cerca de 1 mm de diâmetro, com discreto halo eri-
presença de anticorpos da classe IgM, na fase aguda.
tematoso ao redor. Começam em pequeno número,
por vezes duas ou três apenas, só podendo ser, nes- Embora antigamente conhecida como uma do-
sa ocasião, visualizadas com uma boa iluminação da ença da infância, o sarampo não deve ser considerado
mucosa bucal. Entretanto, rapidamente aumentam uma moléstia banal. O número de complicações é gran-
de número a tal ponto que quando do aparecimento de e as principais são: otite média, pneumonia e en-
do exantema, podem ocupar toda a mucosa da boca e cefalite. A infecção pelo sarampo pode causar imunos-
mesmo parte dos lábios. Nessa ocasião, o aspecto da supressão transitória, com diminuição de resposta das
mucosa lembra grãos de açúcar (ou sal) espalhados so- células T. A anergia pode estar presente desde antes do
bre um fundo intensamente avermelhado. Aparecem aparecimento do exantema até vária semanas após. As
e desaparecem rapidamente, em geral, entre 12 e 18 complicações pelo sarampo são mais comuns nos paí-
horas (podem durar até 72 horas). O aparecimento do ses em desenvolvimento, onde descreve-se letalidade
exantema marca também o início do desaparecimento de 4 a 10%. A maioria das mortes se deve às compli-
das manchas de Koplik, e, por volta do terceiro dia a cações respiratórias ou encefalite. Os grupos de risco
mucosa tem aspecto normal. para complicações incluem os pacientes imunodepri-
O exantema inicia-se com tênues máculas atrás midos, desnutridos, indivíduos com deficiência de vi-
do pavilhão auricular, na região da mastoide, pró- tamina A e nos extremos de idade. Sendo o sarampo
ximo à raiz do couro cabeludo. Dissemina-se rapi- uma infecção disseminada, complicações em vários sí-
damente, em cerca de 24 horas, em sentido caudal tios orgânicos podem ocorrer. Quando há persistência
e centrífugo, para face, pescoço, tronco, braços e da febre após o 3º dia de exantema, deve-se suspeitar
atinge as extremidades inferiores por volta do ter- de complicação. Cabe ressaltar a gravidade do sarampo
ceiro dia. O exantema é maculopapular, eritematoso em crianças desnutridas. O mecanismo imunitário pri-
e morbiliforme, com maculopápulas avermelhadas, mordialmente envolvido no sarampo é o do tipo celular
isoladas umas das outras e circundadas por pele não (comprometido também no desnutrido). A incidência
comprometida. Como regra, as lesões podem confluir de complicações bacterianas é bem mais alta nesses
em algumas regiões e desaparecem à digitopressão. casos e a mortalidade se eleva. Crianças desnutridas
As áreas inicialmente atingidas (face e pescoço) são que até serem acometidas pelo sarampo mantinham-
as que revelam exantema de maior intensidade. Aí -se equilibradas podem apresentar piora do quadro
as lesões podem ser confluentes, formando exten- nutricional, em razão da diarreia, hipercatabolismo e
sas placas avermelhadas. As palmas das mãos e as hiporexia, levando ao aparecimento do edema e das
plantas dos pés são raramente envolvidas. O prurido carências alimentares latentes, entre a quais a hipovi-
é leve. Na fase do exantema a doença atinge o seu taminose A. O tratamento com vitamina A oral reduz
auge os sintomas catarrais se intensificam, ficando a morbidade e a mortalidade em crianças com sarampo
o paciente toxemiado, prostrado, febril, com olhos grave nos países em desenvolvimento.

SJT Residência Médica – 2016


138
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

As infecções respiratórias ocorrem com mais fre- o sarampo, mas mantém-se e recentemente ocorreram.
quência em pacientes com menos de 5 anos. O envol- Seu início caracteriza-se por deteriorização insidiosa
vimento pulmonar da infecção do sarampo pode con- e progressiva do comportamento, comprometimen-
sistir em broncopneumonia, laringotraqueobronquite to cognitivo e mudanças de personalidade (semanas a
ou bronquiolite. A otite média pode ocorrer. Deve-se anos). Evolui-se para torpor, marcha irregular, quedas
lembrar que a pneumonia pode ser devida ao próprio e crises mioclônicas. O diagnóstico é estabelecido pela
vírus do sarampo (pneumonia intersticial), porém a evolução clínica típica e detecção de anticorpos para
mais frequentemente identificada é a broncopneumo- sarampo no líquor. O EEG apresenta picos paroxísticos
nia pelo vírus e/ou associada a bactérias (S. aureus, regulares e diminuição da atividade geral. No soro, há
pneumococos e hemófilos). títulos altos de anticorpos do sarampo. A morte costu-
ma ocorrer no prazo de um a dois anos após o início dos
A encefalite aguda é uma complicação relativa-
sintomas. O curso implacável e fatal desta complicação
mente rara, mas grave. A incidência de encefalomielite
ressalta a importância da vacinação contra o sarampo,
é estimada em 1-2/1.000 casos notificados. Não há cor-
não só para a prevenção do sarampo, mas também para
relação entre intensidade do sarampo e a intensidade
a prevenção de sequelas neurológicas graves do que
do envolvimento neurológico ou a gravidade do pro-
pode acontecer.
cesso e o prognóstico final. Embora possa manifestar-
-se no período pré-eruptivo, comumente inicia-se dois As manifestações oculares do sarampo podem
a cinco dias após o aparecimento do exantema. A pre- incluir a ceratoconjuntivite e úlcera de córnea, consti-
sença de febre, vômito, cefaleia, sonolência alternando tuindo-se em importante causa de cegueira.
com irritabilidade, convulsões, coma ou alterações da Outro perigo em potencial é a exacerbação de tu-
personalidade determina a suspeita do acometimento berculose preexistente, em razão da anergia provocada
neurológico. Ela está associada a uma pleocitose liquó- pelo sarampo. A persistência do quadro pneumônico
rica (predomínio linfocitário), aumento dos níveis de após o adequado tratamento com antibióticos justifica
proteína e normalidade da glicorraquia. A maioria das a pesquisa da etiologia tuberculosa. Lembrar que o tes-
crianças se recuperam bem, cerca de 25% tem sequelas te tuberculínico, nesses casos, geralmente é negativo.
no desenvolvimento neurológico (atraso mental, con- O tratamento do sarampo sem complicações é
vulsões recorrentes, distúrbios de comportamento) e puramente sintomático e de sustentação. Baseia-se
cerca de 15% podem ter uma rapidamente progressiva basicamente em repouso relativo, antitérmicos para
e fatal. Em crianças menores de um ano e em desnutri- febre alta e mal-estar, higiene dos olhos, umidificação
das é causa não desprezível de óbito. Em adolescentes e das secreções das vias aéreas superiores (vaporização,
adultos a gravidade pode ser maior. inalação com soro fisiológico) e administração de vita-
A encefalomielite aguda disseminada (EMAD) é mina A – 200.000 UI (menor de 1 ano: 100.000 UI), o
uma doença desmielinizante que se apresenta durante mais precoce possível, que reduz complicações e mor-
a fase de recuperação da infecção pelo sarampo, geral- talidade. É recomendada pela Organização Mundial de
mente dentro de duas semanas do exantema. Acredi- Saúde para todas as crianças com sarampo em países
ta-se que seja mais uma resposta de autoimunidade em desenvolvimento. É administrada uma vez ao dia
pós-infecciosa do que a atividade do vírus do sarampo por dois dias.
no sistema nervoso central. As principais manifesta-
ções incluem febre, cefaleia, rigidez nucal, convulsões
e alterações do estado mental (confusão e sonolência).
Outros achados podem incluir ataxia, mioclonia e si-
nais de mielite, com paraplegia, tetraplegia e altera- Escarlatina
ções de sensibilidade. A EMAD está associada a uma
A escarlatina é uma doença exantemática clássica,
mortalidade de 10 a 20%.
causada pela produção da exotoxina eritrogênica pelo
A panencefalite esclerosante subaguda (PEES) é Streptococcus pyogenes, ou beta-hemolítico do grupo
uma doença degenerativa fatal e progressiva do sistema A de Lancefield. A faringite causada pelo estereptoco-
nervoso central que ocorre de sete a dez anos após a in- co é uma infecção comum em Pediatria. Trata-se de
fecção natural pelo sarampo. É uma complicação rara e uma doença, em tese autolimitada, com melhora dos
tardia do sarampo, cuja patogênese não é bem compre- sintomas em dois a cinco dias. Entretanto, a antibioti-
endida. É uma infecção do SNC lentamente progressiva coterapia reduz a severidade e duração dos sintomas,
(diferentemente da encefalolomielite aguda dissemina- previne a disseminação do agente e diminui o risco de
da), causada pelo vírus (ou uma variante genética) que complicações causadas pela bactéria. Deve-se lembrar
progride lentamente no interior do sistema nervoso que existem uma série de complicações supurativas e
central. Cerca de metade dos pacientes com PEES tive- não supurativas da faringotonsilite pelo Streptococcus
ram sarampo antes de dois anos de idade. O número de pyogenes, resumidas na Tabela 11.2. A escarlatina é
casos caiu abruptamente com a cobertura vacinal para considerada uma das complicações não supurativas.

SJT Residência Médica – 2016


139
11  Doenças exantemáticas

Febre reumática
Escarlatina
Síndrome do choque tóxico estreptocócico
Glomerulonefrite pós-estreptocócica
Desordem neuropsiquiátrica pediátrica autoimune associada com o estreptococo A (PANDAS – Pediatric autoimune
neuropsychiatric disorder associated with group A streptococci)
Celulites e abscessos tonsilofaríngeos
Fasciite necrotizante
Bacteremia e sepse

Tabela 11.2  Complicações da faringotonsilite causada pelo estreptoco beta hemolítico A.

Para que ocorra escarlatina é preciso que o in- mente, poupadas. A área ao redor da boca também é
divíduo infectado não tenha imunidade antibacteria- poupada (palidez perioral) sinal conhecido como sinal
na contra o estreptococo, nem imunidade antitóxica de Filatov). As dobras profundas podem conter listras
contra a exotoxina eritrogênica (essa imunidade é lineares, às vezes de característica petequial, que não
tipo-específica, pois existem alguns tipos de toxina). empalidecem com a digitopressão (sinal de Pastia – li-
A transmissão se faz por conta do contato próximo nhas vermelhas na fossa antecubital). As áreas mais
com pessoas doentes, através da projeção de gotas de acometidas e onde o rash é mais observado, são a re-
secreção respiratória contendo bactérias. O período gião inguinal, axilar, antecubital, abdome e pontos da
de maior contágio da faringite e escarlatina é durante pele que estão sob pressão e o exantema é maculopa-
o estágio agudo da doença. A terapêutica antibiótica pular, avermelhado, empalidece à digitopressão e não
suprime rapidamente e, se continuada, erradica o es- deixa área de pele sã (escarlatiniforme). O exantema
treptococo do trato respiratório superior, de tal forma alcança sua intensidade máxima por volta do terceiro
que após o segundo ou terceiro dia de tratamento o ao sétimo dia e desaparece lentamente, quatro a cinco
paciente não pode mais ser considerado contagiante. dias depois, quase sempre provocando fina descama-
Além do quadro clássico de faringotonsilite, quan- ção (em farelo ou furfurácea) ou lamelar, especialmen-
do os estreptococos infectantes elaboram toxina eritro- te na margem das unhas, na ponta dos dedos e nas
gênica, para a qual o hospedeiro não produziu anticor- dobras cutâneas profundas, que pode durar até seis
pos específicos, aparecem as manifestações típicas da semanas. O exantema em si, consequente à ação da to-
escarlatina, que é uma erupção eritematosa difusa. xina eritrogênica, é um pontilhado finamente papular
(ou puntiforme) que na maioria das vezes, em alguns
Acomete geralmente crianças entre 3 e 12 anos de pacientes é mais facilmente palpável do que visto, com
idade. O período de incubação varia de um a sete dias, a textura de pele de ganso ou de lixa.
com média de três dias. O início é agudo, com febre
alta, calafrios, cefaleia, vômitos, mal-estar, anorexia e Em geral, a temperatura aumenta abruptamen-
dor de garganta. Dor abdominal pode estar presente. te e se normaliza num prazo de cinco a sete dias no
Um a dois dias após tem início o exantema. Durante o paciente não tratado; comumente, retorna à normali-
desenvolvimento da erupção cutânea, as mucosas po- dade 12 a 24 horas após o início da terapia com peni-
dem também ser acometidas (enantema). As amígdalas cilina. Além das manifestações tóxicas da escarlatina
estão aumentadas de volume, hiperemiadas, com áreas (cefaleia, dor abdominal, vômitos e febre), os efeitos
irregulares de exsudato mucopurulento e a faringe en- sistêmicos da toxina eritrogênica podem comprome-
contra-se hiperemiada. O palato geralmente apresenta ter os rins (causando hematúria), as articulações (ar-
eritema puntiforme e eventualmente algumas peté- trite) ou o coração (miocardite).
quias. A borda livre do palato e a úvula estão hipere- Na escarlatina a porta de entrada mais frequente
miadas e edemaciadas. A língua adquire uma aparência é a faringe. Ocasionalmente, no entanto, a escarlatina
característica, com papilas vermelhas e proeminentes, pode suceder infecções de feridas, queimaduras ou in-
que sobressaem em uma superfície difusamente cober- fecção cutânea estreptocócica. Nessas circunstâncias,
ta por uma camada branca (saburrosa) e que, quatro a pode desenvolver-se a chamada escarlatina cirúrgica,
cinco dias após, quando ocorre a descamação, aparece com as mesmas manifestações clínicas descritas ante-
uma superfície profundamente avermelhada, verme- riormente, mas as tonsilas e a faringe não costumam
lho-rutilante, com as papilas hipertrofiadas e edemato- ser acometidas.
sas (língua morango-vermelho ou framboesa). Pode ha- O diagnóstico da escarlatina é fundamentalmen-
ver também adenopatia cervical anterior e mandibular. te clínico, embora em alguns casos possa ser isolado o
O exantema inicia-se em cabeça e pescoço, ex- estreptococo beta-hemolítico do grupo A da orofarin-
pandindo-se rapidamente para o tronco, até as extre- ge, nasofaringe ou de uma ferida infectada. A eleva-
midades; palma das mãos e planta dos pés são, comu- ção do título de antiestreptolisina O (ASLO) durante a

SJT Residência Médica – 2016


140
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

convalescença é indicativa de infecção estreptocócica. teriores. A rubéola no início da gravidez pode causar
Porém, a erradicação precoce dos estreptococos hemo- anomalias congênitas graves, com comprometimento
líticos por terapêutica antimicrobiana pode suprimir de múltiplos sistemas, amplo espectro de expressão
o desenvolvimento de anticorpos. O hemograma pode clínica e longo período pós-natal de infecção ativa com
mostrar leucocitose, neutrofilia e desvio à esquerda, excreção de vírus. Neste capítulo nos limitaremos a
especialmete nos primeiros dias de infecção. comentar a rubéola adquirida. A rubéola é causada por
É importante lembrar que, a terapêutica da infec- vírus da família Togaviridae.
ção estreptocócica objetiva, além da melhora clínica e O maior número de casos de rubéola ocorria na
redução do tempo dos sintomas, a redução da incidên- primavera e no inverno, sendo relativamente raros os
cia das complicações e diminuição da transmissão do casos de rubéola no verão, fato que tem considerável
agente (erradicação). Melhora clínica é observada em importância, já que infecções por enterovírus, que po-
mais precocemente (48h) em indivíduos tratados com dem originar quadros clínicos muito semelhantes aos
antibióticos. As opções terapêuticas para o tratamen- da rubéola, ocorrem predominantemente nos meses de
to da infecção estreptocócica incluem as penicilinas (e verão. A infecção é transmitida de pessoa a pessoa pela
seus derivados ampicilina e amoxicilina), cefalospori- via respiratória, por meio de gotículas contaminadas.
nas, macrolídeos e clindamicina. Embora o estrepto- O período de incubação varia de 14 a 21 dias. A
coco do grupo A seja sensível a vários antibióticos, a fase prodrômica de sintomas catarrais leves é mais
penicilina continua sendo a droga de primeira escolha curta que a do sarampo e pode ser tão leve que pas-
para tratar pacientes não alérgicos a ela. A penicilina sa despercebida, principalmente nas crianças meno-
benzatina intramuscular garante o tratamento, evita res, mas em adolescentes e adultos o exantema pode
as complicações e erradica o agente. Não há vantagens ser precedido por um ou dois dias de mal-estar, febre
e, sim, potenciais desvantagens no uso de outros anti- baixa, dor de garganta e discreta coriza. O sinal mais
microbianos de amplo espectro. É condição necessária característico é adenopatia retroauricular cervical
para erradicação dos organismos infectantes mante- posterior e occipital dolorosa, presente em quase to-
rem níveis sanguíneos adequados por pelo menos dez dos os casos. A linfadenopatia é generalizada, afeta
dias e essa deve ser a duração do tratamento com peni- principalmente os gânglios suboccipitais, cervicais e
cilina por via oral (a prescrição mais clássica é de amo- retroauriculares, aparecendo desde 5 a 7 dias antes do
xicilina 50mg/kg/dia). Deve-se lembrar que as taxas exantema, podendo persistir até o seu desaparecimen-
de transmissão de um indivíduo infectado para conta- to em uma semana ou mais. Nenhuma outra doença
tos íntimos (família ou escola) é de aproximadamente causa o aumento doloroso desses linfonodos no grau
35%. Portanto, o isolamento nas 24 horas é medida da rubéola.
importante, após o início do tratamento.
O exantema começa na face sob a forma macu-
Pode haver colonização do estreptococo beta lopapular rósea, se espalha rapidamente, atingindo o
hemolítico do grupo A na orofaringe de portadores pescoço, o tronco, os membros superiores e inferiores
assintomáticos. Em climas temperados, durante o in- em menos de 24 horas. As lesões da face começam a
verno e na primavera, até 20% das crianças em idade desaparecer no segundo dia, quando as maculopápu-
escolar podem ser portadores assintomáticos. Os por- las do tronco podem coalescer. Na maioria dos casos, a
tadores tem baixa probabilidade de disseminar a bac- erupção permanece por três dias, justificando o antigo
téria e têm risco muito baixo risco muito baixo para nome dado à doença de sarampo de três dias. O exan-
o desenvolvimento de complicações supurativas ou tema não é pruriginoso e não é seguido de descama-
febre reumática aguda. Portanto, em geral, os porta- ção. A mucosa faríngea e as conjuntivas ficam pouco
dores de estreptococos não necessitam de terapia an- inflamadas; não há fotofobia e a febre é ausente ou
timicrobiana. Assim, diante de um caso de escarlatina, baixa durante o exantema e persiste por poucos dias.
não é necessária a investigação e tratamento de con- Metade dos casos apresenta esplenomegalia discreta.
tactantes, a não ser em circunstâncias especiais, como Especialmente em meninas maiores e mulheres, pode
manifestação de febre reumática e situações de surtos ocorrer poliartrite e artralgias.
de infecção pelo estreptococo. Muitas infecções são subclínicas, com uma pro-
porção de infecção inaparente para doença de 2:1.
Às vezes, é difícil diagnosticá-la clinicamente, pois
exantemas enterovirais e outros podem produzir
Rubéola aparência semelhante.
Felizmente, uma ótima notícia sobre a rubéola
A rubéola é uma doença contagiosa, caracteriza- em nosso meio ocorreu recentemente. Em abril de
da por sintomas leves, um exantema semelhante ao 2015, a Região das Américas foi declarada pelo Co-
do sarampo leve e aumento e dor à palpação dos linfo- mitê Internacional de Doenças Exantemáticas - OMS
nodos pós-occipitais, retroauriculares e cervicais pos- como a primeira região do mundo livre da transmissão

SJT Residência Médica – 2016


141
11  Doenças exantemáticas

endêmica da Rubéola e da Síndrome da Rubéola Con- aumentando de tamanho, deixando a região central
gênita. Em 2 de dezembro de 2015, o Brasil recebeu da mais pálida, conferindo-lhe um aspecto rendilhado,
OPAS/OMS o Certificado de Eliminação da Rubéola. bastante característico da doença. Geralmente a pal-
Os dados epidemiológicos avaliados evidenciaram a ma das mãos e a planta dos pés são poupadas. Essa
ausência da transmissão endêmica do vírus da rubéo- segunda fase da erupção persiste em média por dez
la por cinco anos consecutivos em território nacional. dias, salientando-se que durante esse período o exan-
tema pode apresentar períodos de nítida exacerbação,
desencadeados por exposição da pele ao calor, frio, es-
tresse, luz do sol ou durante exercícios físicos. Não há
Eritema infeccioso – descamação residual.

quinta moléstia Uma interessante característica da doença


é que mesmo após o completo desaparecimento
da erupção esta pode reaparecer, dias ou semanas
O eritema infeccioso é uma doença exantemática após, provavelmente desencadeada pelos mesmos
febril aguda causada por um vírus pertencente à família fatores acima citados.
Parvoviridae: parvovírus B19. As infecções clinicamen-
A evolução é, em geral, afebril; contudo; apesar de
te evidentes são mais prevalentes em escolares, com
ter uma evolução benigna na maioria dos casos, com-
70% dos casos acometendo crianças de 5 a 15 anos de
plicações são descritas. Pode haver hidropsia ou morte
idade. O eritema infeccioso tende a ocorrer em peque-
fetal quando o vírus acomete grávidas. Crises de ane-
nos surtos familiares ou em epidemias localizadas. Não
mia aplástica são descritas em pessoas com distúrbios
são conhecidos os mecanismos de transmissão, embora
hemolíticos crônicos (anemia falciforme, talassemia,
tudo leve a crer que o agente é disseminado por meio de
esferocitose etc.). A parada transitória da eritropoese
gotículas de Pflügge. Acredita-se ser a imunidade então
e a reticulocitopenia absoluta induzida pela infecção
induzida permanente já que, só excepcionalmente adul-
pelo B19 levam a uma queda brusca da hemoglobina
tos contraem o eritema infeccioso.
sérica. À diferença das crianças com eritema infeccio-
O alvo primário da infecção do vírus é a linha- so, esses pacientes mostram-se enfermos, com febre,
gem de células eritroides. O vírus causa lise dessa mal-estar, letargia e exibem sinais e sintomas de ane-
célula, resultando em depleção progressiva e parada mia, como palidez, taquicardia e taquipneia. O exan-
transitória da eritropoese. Não possui efeito aparente tema raramente está presente. Infecções crônicas pelo
sobre a linhagem mieloide. Os indivíduos com distúr- vírus (em indivíduos com comprometimento imuno-
bios associados à hemólise crônica são muito susce- lógico) manifestam-se comumente com anemias crô-
tíveis às perturbações da eritropoese. A infecção por nicas, às vezes acompanhadas de outras citopenias ou
parvovírus B19 acarreta parada transitória da produ- supressão completa da medula óssea.
ção de hemácias e queda brusca da hemoglobina sérica As crianças com eritema infeccioso provavel-
e baixa de reticulócitos (aplasia seletiva de linhagem mente não são contagiosas no momento da apresen-
vermelha). O aparecimento das imunoglobulinas es- tação porque o exantema é fenômeno pós-infeccioso
pecíficas controla a infecção, resultando em reticuloci- imunomediado. O isolamento e a exclusão da escola
tose e elevação da hemoglobina. ou creche são desnecessários. As crianças com crise
Muitas infecções são clinicamente inaparentes. A aplásica são infecciosas quando se apresentam e de-
manifestação clínica mais comum do parvovírus B19 vem ser isoladas.
é o eritema infeccioso. Em geral, não há pródromos e Não existe tratamento específico, somente sin-
o primeiro sinal costuma ser o exantema. O exante- tomático.
ma inicia na face (rubor facial) como maculopápulas
que confluem tornando-se uma placa vermelho-rubra,
com concentração principalmente em região de bo-
chechas, poupando a região perioral, a testa e o nariz,
conferindo um aspecto de asa de borboleta, semelhan-
Exantema súbito –
te ao observado no lúpus eritematoso, dando às crian- quinta moléstia
ças aspecto de cara esbofeteada. A erupção facial per-
siste por um a quatro dias, empalidecendo em seguida. Também conhecida como “febre dos três dias” ou
Um a quatro dias depois, o exantema evolui, aco- “roseola infantum” (pediatras antigos a chamam ainda
metendo os membros superiores e inferiores, inicial- de roseola), trata-se de uma doença exantemática fe-
mente em sua face extensora e, mais tarde, em um ou bril, aguda, causada principalmente pelo herpesvírus
dois dias também as superfícies de flexão são compro- humano 6 (HHV-6) seguido, com menor frequência,
metidas, o mesmo sucedendo com o tronco e as náde- pelo herpesvírus 7 (HHV-7). O HHV-6 se constitui em
gas. A lesão de pele inicia-se como uma mácula que vai um dos oito herpesvírus humanos. Deve-se lembrar

SJT Residência Médica – 2016


142
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

que a principal característica do grupo de herpesvírus O exame físico revela poucos dados importantes, sa-
é a sua capacidade de permanecer em estado de latên- lientando-se, porém, a frequência do encontro de lin-
cia, podendo, eventualmente, reativar-se em situações fonodos um pouco aumentados de volume; pode haver
de imunodepressão. a presença de adenomegalia cervical, retroauricular ou
A patogênese da roséola é desconhecida. A vire- occipital. É comum a hiperemia de membrana timpâ-
mia ocorre nos dois primeiros dias de doença, antes nica (80-90%), levando à confusão diagnóstica com
do aparecimento do rash. No quinto dia de doença, uma otite média. (lembrar que atualmente o principal
menos de 10% das crianças são virêmicas. A benigni- achado otoscópico para o diagnóstico de otite média
dade da doença e o habitual não isolamento do agente aguda é o abaulamento).
etiológico são responsáveis pela relativa ausência de A irritabilidade, presente em algumas crianças,
dados sobre a patogênese e patologia do exantema sú- pode levar a um diagnóstico diferencial com um qua-
bito. Altos níveis de anticorpos em adultos, excreção dro de irritação meníngea. O enantema em junção
viral frequente na saliva e detecção de ácido nucleico uvulopalatoglossal (palato mole), de aspecto macular
viral nas glândulas salivares e células mononucleares é conhecido como “pontos de Nagayama” e ocorre em
no sangue periférico em crianças e adultos soroposi- cerca de 80% das crianças.
tivos falam em favor de um estado prolongado de la- A febre cede por crise (abruptamente) no 3º e 4º
tência viral do HHV-6. A natureza da doença de reati- dias e, quando a temperatura retorna ao normal, uma
vação em crianças maiores e adultos, especialmente os erupção macular ou maculoppular rosada surge no
imunocomprometidos, está começando a ser reconhe- corpo, começando pelo tronco e pescoço, estendendo-
cida (quadros febris em transplantados e em pacientes -se aos braços e envolvendo a face e os membros infe-
com supressão medular). riores com menor intensidade. Pode ser discreto, com-
A maioria dos recém-nascidos é soropositiva posto de poucos elementos esparsos ou então denso e
para o HHS-6, em decorrência dos anticorpos trans- confluente. Entretanto, mesmo quando os membros
placentários. As taxas de soropositividade caem entre são atingidos pelo exantema, encontram-se aí apenas
4 e 6 meses de idade, seguindo-se a aquisição rápida algumas máculas, restritas às coxas e braços. A erup-
de anticorpos. Entre um e dois anos de idade, mais de ção é de curta duração. Pode aparecer à noite e já ter
90% dos lactentes são soropositivos. Portanto, o exan- desaparecido pela manhã, passando assim totalmente
tema súbito é uma doença incomum no primeiro tri- despercebida, como pode também esvaecer em um a
mestre de vida, com incidência máxima aos 6-12 me- dois dias. Não há descamação ou alteração de colora-
ses de idade e 90% dos casos nos primeiros dois anos ção da pele após o término do exantema. O exantema
de vida. A absoluta raridade da doença antes dos seis não é pruriginoso.
meses e depois dos três anos sugere que as crianças Durante a fase febril da doença, o diagnóstico
maiores e os adultos têm imunidade adquirida e que a é muito difícil de ser cogitado. Entretanto, a doença
criança nasce com proteção fornecida por anticorpos deve ser lembrada em todo lactente de mais de seis
maternos transmitidos pela placenta. Acredita-se, por meses, com febre alta, excelente estado geral e exa-
isso, que até os três anos de idade praticamente todas me físico pobre em dados positivos, com exceção de
as crianças tiveram contato com os agentes causado- adenopatia. A defervescência súbita e o aparecimento
res da doença, mas apenas uma pequena parcela (cerca do exantema tornam mais fáceis o diagnóstico. Exa-
de 30%) desenvolveu o quadro clínico característico. mes laboratoriais são frequentemente desnecessários,
Cerca de um terço das crianças apresenta o exantema quando se considera o aparecimento do exantema; são
súbito, com ambos os sexos igualmente acometidos, justificados na investigação de uma febre sem sinais de
em todas as épocas do ano. localização, particularmente em lactentes pequenos.
O modo de aquisição do vírus ainda é desconhe- No primeiro dia de febre o hemograma pode revelar
cido, mas a sua detecção frequente na saliva humana uma discreta leucocitose, mas logo em seguida instala-
sugere propagação por secreções orais. Acredita-se -se leucopenia, podendo a contagem leucocitária cair a
que a doença seja menos contagiosa que as outras do- menos de 3.500/mm3, sendo a principal característica
enças exantemáticas da infância. da contagem diferencial uma acentuada neutropenia
A roséola do lactente caracteriza-se por um iní- (nadir no terceiro ao quinto dia de doença). A conta-
cio súbito, com febre alta (até 39ºC-40ºC), podendo gem leucocitária rapidamente retorna ao normal após
ocorrer convulsões febris (considerada uma das cau- o aparecimento do exantema. Crianças com roséola
sas mais comuns dessa condição). Embora a mucosa podem apresentar leucocitúria (10%).
faríngea possa estar hiperemiada e ocorra coriza leve Testes diagnósticos para o HHV-6 permitiram a
(sinais respiratórios em cerca de 25% dos casos), não definição de várias síndromes associadas ao vírus em
há sinais diagnósticos, pois se trata de um período lactentes com doenças febris agudas, sugerindo que
pré-eruptivo. Em geral, a criança mostra-se relativa- esse agente pode ser responsável por até 50% da pri-
mente bem apesar do grau da febre (não há toxemia). meira doença febril na infância.

SJT Residência Médica – 2016


143
11  Doenças exantemáticas

O tratamento é apenas sintomático, ressaltando- nas crianças maiores. A febre tem duração média de
-se a necessidade de baixar a febre alta, especialmente três dias e, em alguns casos, é bifásica: ocorre por um
em crianças suscetíveis a convulsões febris. dia, está ausente por dois a três dias e então recorre
por mais dois a quatro dias. Pode haver náuseas, vô-
mitos ou dor abdominal leve, com algumas evacuações
Outros exantemas virais amolecidas. Os achados no exame físico são benignos
e não há alteração significativa no hemograma.
Ao lado dos exantemas típicos ou característicos Rash petequial e/ou purpúrico tem sido descrito
das febres eruptivas clássicas, são observados outros, descrito com o echovirus 9 e coxsackie A9; quando es-
nem sempre precedidos ou acompanhados de mani- sas erupções com componente hemorrágico ocorrem
festações que possibilitem a sua identificação. São há bastante confusão diagnóstica com a doença me-
ningocócica, especialmente se uma meningite assépti-
exantemas considerados atípicos ou incaracterísticos,
ca ocorre concomitantemente. Meningites assépticas
como, por exemplo, os das enteroviroses. Os enteroví-
(virais) ocorrem em indivíduos de todas as idades,
rus não-polio representam um grande grupo de vírus mas é particularmente mais comum em bebês meno-
(coxsackievirus, echovirus, enterovirus) – mais de 100 res de um ano de vida. Os enterovírus causam mais
– e são responsáveis por um amplo espectro de doen- de 90% desses casos nessas crianças, sendo a grande
ças em pessoas de todas as idades, embora ocorram maioria relacionados ao coxsackievirus B e echovirus.
principalmente em bebês e crianças pequenas. Outro Encefalites, conjuntivites, pleurodinia, miocardites,
grupo de vírus, os parechovírus, tem algumas carac- pericardites e infecções respiratórias são outras apre-
terísticas biológicas, clínicas e epidemiológicas seme- sentações clínicas relacionadas aos enterovírus.
lhantes aos enterovírus.
As maiores taxas de infecção desses vírus ocor-
rem no verão e no outono. Alguns possuem transmis-
são fecal-oral e respiratória, podendo também disse-
Doença mão-pé-boca
minarem-se por água contaminada, comida e fômites. Doença aguda em crianças, é mais frequentemen-
O contato com fraldas e fezes (papel dos cuidadores) te causada pelo coxsackie A16. O período prodrômico
pode facilitar a transmissão em crianças pequenas, geralmente começa com febre baixa, irritabilidade, mal-
ressaltando-se a higienização das mãos como medida -estar, anorexia, dor na boca e as lesões ocorrem um a
fundamental para controle dessas viroses. três dias após o início da febre comprometendo a boca
A doença causada por cada sorotipo desses vírus e depois a pele, que nem sempre é atingida. Aparecem
varia consideravelmente, podendo causar doenças em lesões vesiculares na boca que rapidamente erodem,
transformando-se em úlceras dolorosas de tamanho
surtos. Muitas das infecções causas pelos enterovírus
variável. As lesões na mucosa oral são constituídas
não-polio são assintomáticas e passam desapercebi-
por pequenas úlceras. As lesões nas extremidades são
das. A doença febril não específica a manifestação mais
constituídas por pequenas papulovesículas e acometem
comum dessas infecções virais. Algumas síndromes principalmente dedos, dorso e palma das mãos e plan-
clínicas, como meningite viral e alguns exantemas são tas dos pés. Perduram cerca de uma semana e depois de-
causados por muitos sorotipos de enterovírus; outras, saparecem. Lesões perianais e nas nádegas também são
como miocardites, são causadas por sorotipos mais observadas em lactentes e se mantêm como máculas,
especificamente por um determinado sorotipo (coxsa- raramente evoluindo para vesículas. As lesões desapa-
ckievirus B). recem sem deixar cicatrizes (duração do quadro de dois
Coxsackievirus, echovirus e parechovirus cau- a três dias). A doença mão-pé-boca é moderadamente
sam uma variedade de exantemas por vezes associa- contagiosa e os vírus persistem sendo eliminados nas
dos à enantemas. Com exceção da doença mão-pé-bo- fezes após a melhora clínica do paciente (importância
ca, esses quadros eruptivos não são suficientemente epidemiológica na disseminação). A herpangina e a do-
ença mão-pé-boca ocorrem frequentemente no verão.
distintos em sua apresentação, dessa forma, não per-
mitindo o diagnóstico etiológico. Os exantemas po-
dem ser virtualmente de qualquer tipo descrito, desde
o clássico maculopapular, até vesicular, morbiliforme,
petequial ou mesmo urticariforme. Essa diversidade
das manifestações exantemáticas faz com que as en-
Mononucleose infecciosa
teroviroses sejam incluídas no diagnóstico diferencial Hoje entendida como uma síndrome tem o vírus
de praticamente todas as outras enfermidades que Epstein-Barr (EBV) relacionado a 80% dos casos. A
cursam com exantema. ocorrência de erupção cutânea não excede 10% a 15%
O início da infecção costuma ser abrupto e sem dos casos, exceto quando se administra ampicilina (ou
pródromos. Nas crianças pequenas o achado inicial é outros antibiótiocos) ao paciente, quando o exantema
de febre e mal-estar; cefaleia e mialgia podem advir se torna bastante comum.

SJT Residência Médica – 2016


144
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

As infecções primárias ocorrem, na maior


parte das vezes, em fase precoce da infância e usu- Varicela e Herpes-Zoster
almente são assintomáticas, podendo estar asso-
O vírus varicela-zoster (VVZ), que participa da
ciadas com sintomas comuns a inúmeros outros
família Herpesviridae, é o responsável pelos quadros
processos infecciosos virais. Observam-se, assim,
de varicela (infecção primária) e herpes-zoster (reati-
episódios leves de infecção respiratória alta (farin-
vação endógena de infecção latente).
gites, amigdalites), rash cutâneo, linfadenopatia e
hepatoesplenomegalia. A infecção por esse vírus A varicela é uma doença cosmopolita e a gran-
pode expressar-se por apresentações crônicas, com de maioria dos indivíduos (90%-95%) adquire o
VVZ na infância quando há predominância da do-
possibilidade de associação com linfomas (Burkitt),
ença (em indivíduos não vacinados). É rara em lac-
de carcinoma (nasofaringe) e doenças linfoprolife-
tentes de menos de três meses de idade, sugerindo
rativas em imunossuprimidos. Atinge todas as fai-
algum grau de proteção pela passagem placentária
xas etárias, sendo que em países mais desenvolvi-
de anticorpos maternos.
dos o grupo mais acometido é o de adolescentes. Na
idade adulta, 50% a 90% das pessoas apresentam Ocorre mais no final do inverno e início da pri-
sorologia positiva para este vírus. mavera. O herpes-zoster não apresenta nenhuma va-
riação sazonal porque decorre da reativação do vírus
No quadro clássico, após um período prodrômico latente. As taxas de transmissão domiciliar são de
(dois a cinco dias) em que há mal-estar acompanha- 80% a 90% (é altamente contagiosa); um contato mais
do ou não de febre, aparecem os sinais e sintomas da casual, como a exposição numa sala de aula escolar,
enfermidade, variáveis, porém mais leves em crianças está associado a taxas de 30% ou menos. A varicela é
de pouca idade. Observa-se dor de garganta em 80% contagiosa desde 24 a 48 horas antes do aparecimen-
a 85% dos casos, com enfartamento ganglionar e fe- to do exantema até que todas as vesículas encrosta-
bre. Pode-se evidenciar desde eritema leve de faringe das estejam presentes (três a sete dias). A transmissão
até tonsilite grave, com exsudato branco-acinzentado. ocorre em hospedeiros suscetíveis através do contato
Pode ocorrer enantema em palato (50% dos casos) com gotículas de aerossol de secreções nasofaríngeas
com petéquias. A adenopatia envolve principalmente de um indivíduo infectado ou pelo contato cutâneo di-
os linfonodos cervicais anteriores e posteriores, mas reto com o líquido das vesículas de lesões de pele.
pode acometer qualquer cadeia ganglionar. Sua in- O período de incubação médio da varicela é de 15
volução é lenta, podendo levar semanas. Observa-se dias, embora o intervalo pode variar de 10 a 21 dias.
esplenomegalia em até 50% dos casos, hepatomegalia O herpes zoster resulta da reativação de uma in-
(30% a 50%) e edema periorbitário em até um terço fecção latente pelo VVZ. O paciente portador de her-
dos pacientes acometidos (sinal de Hoagland). A febre pes zoster é contaminante, podendo determinar casos
é mais frequente em adolescentes, podendo ser bas- de varicela em pacientes suscetíveis; entretanto, a con-
tante elevada, persistindo por uma a duas semanas. tagiosidade do zoster é bem menor que a da varicela,
Acompanha-se de mal-estar generalizado e fraqueza. possivelmente porque a transmissão do VVZ nesses
Em crianças, estas queixas são pouco comuns e a febre casos ocorre quase exclusivamente por contato direto
tende a ser de curta duração, com picos mais baixos. com vesículas infectadas. A doença pode aparecer em
O tipo de exantema é variável, sendo na maioria das qualquer idade, mas a máxima incidência é em pacien-
vezes maculopapular, com predomínio nas raízes dos tes de mais de 50 anos, sendo bastante rara antes dos
membros, mas podendo ser petequial, papulovesicul dez anos de idade, exceto naquelas crianças que rece-
ou urticariforme. O exantema pode se manifestar beram terapia imunossupressora, as que têm infecção
em 70% a 100% dos casos quando inadvertidamente pelo vírus da imunodeficiência humana e as que foram
infectadas in utero ou durante o primeiro ano de vida.
se utiliza ampicilina ou amoxicilina. No hemograma
Ao contrário do que ocorre com os adultos, quando o
pode haver leucocitose com linfocitose e a clássica ma-
zoster ocorre em crianças, frequentemente não existe
nifestação da atipia linfocitária (mais de 10% de linfó-
história anterior de varicela, acreditando-se que nes-
citos atípicos ou, em número absoluto, mais de 1.000/ ses casos tenha ocorrido infecção pelo VVZ, seja no
mm3). O diagnóstico consiste em testes sorológicos útero ou nos primeiros meses de vida, sendo o quadro
específicos para o EBV. clínico clássico da varicela mascarado pela presença de
Deve-se lembrar que, existem outras condições anticorpos maternos.
relacionadas ao diagnóstico diferencial da síndrome Frequentemente, o exantema é a primeira mani-
da mononucleose infecciosa (síndrome mono-like): ci- festação da varicela, mas pode haver um curto período
tomegalovirose, infecção pelo Toxoplasma gondii, he- prodrômico, geralmente de menos de 24 horas de du-
patites virais A e B (formas anictéricas), adenoviroses, ração, constituído de febre baixa, anorexia, cefaleia e
rubéola e a infecção aguda pelo HIV. discreto mal-estar.

SJT Residência Médica – 2016


145
11  Doenças exantemáticas

As lesões cutâneas difusas surgem quando a in- A varicela primária em crianças é geralmente
fecção entra numa fase virêmica. A erupção cutânea uma doença leve em comparação com formas mais
da varicela é muito característica, tanto em seu aspec- graves em adultos e pacientes imunocomprometidos
to como na rapidez de sua progressão. As lesões são de qualquer idade.
inicialmente máculas, intensamente pruriginosas que
Após a cura da varicela há remissão total do qua-
envoluem para pápulas, vesículas e finalmente há a
dro e o vírus permanece em estado latente nas células
formação de crostas. A passagem do estágio da mácula
dos gânglios das raízes dorsais em todos os indivídu-
para o início da formação de crostas é muito rápida. As
os que contraem a infecção primária. Sua reativação
vesículas têm um aspecto comparado classicamente à
resulta no quadro de herpes-zoster, um exantema
gota de orvalho (exantema em gota de orvalho sobre
uma pétala de rosa!). São localizadas superficialmente vesiculoso e localizado que costuma envolver a distri-
na pele, são circundadas por um halo eritematoso e buição do dermátomo de um único nervo sensitivo.
têm paredes finas, facilmente rompidas. Iniciam-se no Geralmente, a causa da reativação da infecção não é
couro cabeludo, face ou tronco. A turvação e a umbi- conhecida. Outras vezes, porém, estão presentes con-
licação da lesão ocorrem em 24-48 horas, evoluindo dições que deprimem a imunidade celular: linfomas,
para a formação de crostas. O processo de formação da leucemias e o uso de drogas imunossupressoras. As
crosta inicia-se no centro da vesícula, o que lhe confe- lesões cutâneas do zoster aparecem após um período
re uma discreta depressão central e, portanto, nessa de quatro a cinco dias de dor ao longo do dermátomo
fase uma aparência umbilicada. acometido, hiperestesias, prurido e febre baixa. Em
adultos, principalmente em idosos, a dor é frequen-
As crostas costumam se resolver em sete dias,
mas podem persistir por até três semanas, particular- te, pode ser extremamente violenta e é acompanhada
mente se houver contaminação bacteriana secundária de grande comprometimento do estado geral, mas em
da lesão. crianças a dor é geralmente discreta. A resolução com-
pleta ocorre em uma a duas semanas. O aspecto mais
As lesões aparecem em surtos, durante três a característico da erupção cutânea é a sua distribuição:
cinco dias, e acometem, predominantemente, o tron- é quase sempre unilateral; em crianças, os dermáto-
co (distribuição centrípeta), seguindo-se o pescoço, a
mos mais frequentemente atingidos são os correspon-
face e os segmentos proximais dos membros, poupan-
dentes aos nervos do segundo dorsal ao segundo lom-
do a palma das mãos e a planta dos pés. Há também
bar. O acometimento do quinto par craniano é comum
vesículas nas mucosas, especialmente a bucal, mas aí
em adultos, mas bastante raro em crianças. Por isso,
elas rapidamente se rompem, dando origem a úlceras
uma das formas mais temidas do zoster, o oftálmi-
rasas, indistinguíveis das encontradas em uma esto-
matite herpética. Lesões ulcerativas em orofaringe, co, com eventual conjuntivite, queratite e iridociclite
mucosa nasal e vagina são comuns e podem ocorrer é pouco conhecida na infância. Também o zoster dos
também lesões em pálpebras e conjuntiva. nervos facial e auditivo (síndrome de Ramsay-Hunt)
com paralisia facial e sintomas auditivos é muito raro
O surgimento das lesões em surtos sucessivos no grupo etário pediátrico.
justifica uma das mais importantes características do
exantema da varicela: o polimorfismo regional, isto é, a A varicela normalmente apresenta característica
presença em uma mesma área de lesões em todos os es- de benignidade ao acometer crianças eutróficas e sa-
tágios de desenvolvimento: máculas, pápulas, vesículas dias, mas, em certos grupos de alto risco, pode apre-
e crostas estão presentes próximas umas das outras. A sentar grande letalidade. A disseminação visceral do
intensidade do exantema é muito variável: pode haver vírus sucede a incapacidade das respostas do hospe-
apenas algumas poucas lesões, surgidas de um único sur- deiro de eliminar a viremia, o que acarreta infecção
to, ou o corpo todo pode cobrir-se de inúmeras lesões, nos pulmões, fígado, cérebro e outros órgãos. As com-
que surgem em cinco ou seis surtos, no decurso de uma plicações mais comuns, com suas frequências diminuí-
semana. O número médio de lesões da varicela é 300, das após a introdução da vacina, são as superinfecções
porém crianças sadias podem ter menos de dez a mais bacterianas, particularmente na pele e nos pulmões.
de mil. Nos casos domiciliares secundários e em crianças A infecção de pele é a complicação mais frequente nos
maiores, maior duração e maior quantidade de lesões são quadros de varicela em crianças. A varicela está asso-
prováveis. A hipopigmentação dos locais das lesões per- ciada a um aumento de incidência de infecção pelo es-
siste por dias ou semanas em algumas crianças. treptococo beta hemolítico do grupo A (Streptococcus
A febre em geral é baixa ou inexistente e sua in- pyogenes); as complicações infecciosas incluem celuli-
tensidade acompanha a da erupção cutânea, sendo tes, miosites, fasciite necrotizante e síndrome do cho-
tanto mais alta quanto mais extenso for o exantema. que tóxico. As complicações neurológicas (encefalites
Quando presente, e acompanhada de outros sintomas e, mais no passado, Síndrome de Reye) são as mais
sistêmicos, persiste durante os primeiros dois a qua- graves alterações relacionadas à infecção pelo VVZ,
tro dias após início da erupção cutânea. embora hoje sejam raramente observadas.

SJT Residência Médica – 2016


146
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A encefalite responde por cerca de 20% das in- Na grande maioria dos casos de varicela e zoster, em
ternações por complicações de varicela. Duas distin- crianças, o tratamento é sintomático. O prurido, frequen-
tas formas de encefalite são descritas: ataxia cerebelar temente presente nas lesões de varicela, pode ser aliviado
aguda e encefalite difusa. Essas situações tipicamente com o uso de calamina tópica e, nos casos de maior inten-
se desenvolvem após a primeira semana de exantema. sidade, com o uso de anti-histamínicos por via oral. Aten-
Ataxia cerebelar aguda apresenta-se com perturbações ção especial deve ser dedicada para evitar-se a infecção
da marcha, ataxia e nistagmo e ocorre mais comumen- bacteriana secundária das lesões. Mantêm-se as unhas da
te em crianças (1:4000). É auto-limitada e evolui com criança curtas e limpas, evitando-se a coçadura contínua.
recuperação total. A recuperação clínica é tipicamente O tratamento sintomático da febre pode ser realizado com
rápida (24-72 h) e costuma ser completa. A encefalite paracetamol ou dipirona. O uso de antibióticos será neces-
difusa na maioria das vezes ocorre em adultos, que po- sário somente naqueles casos de impetigos secundários.
dem evoluir com sequelas. O aciclovir é um antiviral que inibe a replicação
A Síndrome de Reye pode se desenvolver durante dos herpesvírus humanos e se constitui uma terapêu-
o curso da infecção de varicela em crianças. Geralmen- tica efetiva e bem tolerada para a varicela primária em
te apresenta-se com uma constelação de sintomas, in- indivíduos saudáveis e imunocomprometidos. O VVZ
cluindo náusea, vômito, dor de cabeça, hiperexcitabili- é menos suscetível ao aciclovir quando comparado ao
dade, delírio com evolução frequente ao coma. Como o vírus herpes simples (HSV). A decisão de usar ou não
uso de salicilato foi identificado como um importante o aciclovir no tratamento da varicela dependerá do
fator precipitante para o desenvolvimento da síndro- tempo de apresentação do quadro, das características
me de Reye, essa complicação virtualmente desapare- do hospedeiro e da presença de outras comorbidades.
A orientação mais atual é de não tratar rotineiramente
ceu, concomitante com o alerta contra o uso de salici-
com aciclovir crianças saudáveis; o antiviral deve ser
latos em crianças febris. Pode haver uma hepatite na
utilizado em grupos de maior risco para doença mode-
varicela, geralmente subclínica.
rada ou grave, que são crianças maiores de 12 anos de
A varicela, em pelo menos duas situações, as- idade, pacientes com doenças cutâneas e cardiopulmo-
sume grande importância: quando acomete crianças nares crônicas, imunossuprimidos e imunodeprimidos
internadas, pois nesses casos disseminam-se com e pacientes que fazem uso crônico de salicilatos. Nos
grande rapidez pelas enfermarias (risco de microepi- pacientes imunossuprimidos e com quadros graves de
demias), e nos pacientes imunodeprimidos. As ma- varicela, inclusive encefalite, realiza-se tratamento
nifestações clínicas no hospedeiro imunodeprimido parenteral com aciclovir. A profilaxia com imunoglo-
pode incluir o desenvolvimento contínuo de vesículas bulina antivaricela-zoster (VZIG) é recomendada às
ao longo de semanas, lesões grandes e hemorrágicas crianças imunocomprometidas, mulheres grávidas e
na pele, pneumonia ou doença generalizada com coa- RN expostos à varicela materna, fornecida até 96 ho-
gulação intravascular disseminada. ras ou, preferencialmente, 48 horas após a exposição.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

12
Doenças de Kawasaki (DK)

Introdução
A doença de Kawasaki (DK) é um distúrbio febril infantil, notório por sua associação com a vasculite dos
grandes vasos sanguíneos coronários e uma constelação de outras queixas sistêmicas.
Descrita primeiramente em crianças japonesas após a Segunda Guerra Mundial, era anteriormente conhe-
cida como poliarterite do lactente. É uma inflamação aguda dos vasos e a principal causa de cardiopatia adquirida
em crianças nos EUA, ultrapassando a febre reumática, afetando mais de quatro mil crianças por ano. Foi reco-
nhecida em todo o mundo, e sua frequência parece estar aumentando.
Consiste em uma vasculite aguda, sistêmica e autolimitada, de etiologia desconhecida, não havendo, por-
tanto, exame auxiliar específico da doença. Seu diagnóstico precoce e a adoção de medidas terapêuticas pertinen-
tes diminuem de modo marcante a incidência das complicações

Epidemiologia
Em 1967, Tomisaku Kawasaki descreveu cinquenta crianças japonesas com a doença, que recebeu seu nome,
caracterizada por febre, exantema, hiperemia conjuntival, eritema e edema de mãos e pés e linfadenomegalia cer-
vical. A DK é mais frequente em meninos, 80% das crianças acometidas têm menos de quatro anos, e é
rara antes dos três meses de idade. É mais frequente em orientais e seus descendentes. Nos EUA, a incidência
anual por 100 mil crianças menores de cinco anos é de dez casos para não descendentes de asiáticos e 95 pacien-
tes entre os descendentes de asiáticos, incidência idêntica à verificada no Japão. Não há nenhuma evidência de
transmissão interpessoal.
148
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Etiologia
A partir da descrição inicial, a DK foi reconheci-
da em todo o mundo, constituindo a segunda causa de
vasculite mais frequente em pediatria, após a púrpura
de Henoch-Schönlein. A etiologia permanece desco-
nhecida, e algum agente infeccioso parece atuar como
fator desencadeante de uma resposta imunológica exa-
cerbada ou não controlada. Vários produtos inflamató-
rios estão envolvidos, como as citocinas, interleucinas –
IL-1 e IL-6, fator de necrose tumoral e interferon gama.
A causa parece ignorada, mas presume-se que seja
de origem infecciosa (toxinas bacterianas?) e que evo-
lua com vasculite generalizada mediada por depósito de
imunocomplexo na parede dos vasos sanguíneos.

Figura 12.1  Sangramento e formação de crostas nos


Diagnóstico clínico lábios de uma criança com DK. Observe ainda a presença
de conjuntivite e enfartamento ganglionar em cadeia cer-
Como a etiologia é desconhecida e não existem vical direita.
exames laboratoriais específicos para o diagnóstico, os
aspectos clínicos sugestivos são utilizados para eluci-
dação diagnóstica, havendo dificuldade no estabele-
cimento do diagnóstico em uma parcela considerável
dos pacientes.
Na fase aguda da DK, que dura de 7 a 14 dias,
habitualmente ocorre a maioria dos sinais e sin-
tomas: febre alta, artralgia, conjuntivite, artrite, enan-
tema, exantema e adenomegalia cervical. Os critérios
clássicos para o diagnóstico estão citados a seguir.
São necessários 5 critérios para o diagnós-
tico dessa doença. Classicamente, deve-se ter febre
persistente por 5 dias ou mais, somada a 4 dos outros
sinais citado na Tabela 12.1:

Critérios diagnósticos para DK


Febre persistente por 5 dias ou mais
Acompanhada de 4 destes critérios:
Hiperemia conjuntival bilateral sem secreção
Alteração de boca: fissura labial, língua em framboesa,
enantema, edema e/ou crosta labial. Figura 12.2  Exantema polimorfo em tronco e extrem-
Linfonodomegalia cervical (> 1 cm diâmetro): não su- idades na DK.
purativa
Exantema predominantemente no tronco (não vesicu-
lar)
Alterações de extremidades (hiperemia, edema na fase
inicial e descamação típica lamelar tardiamente)
Alteração coronariana*
*Não é critério, mas sim a complicação mais preocu-
pante.
Tabela 12.1

Atualmente existem cada vez mais situações em


que se diz Doença de Kawasaki incompleta. Tal deno-
minação é aplicada quando não há preenchimento dos
cinco critérios necessários para doença, no entanto há Figura 12.3  Descamação membranosa nas extremi-
(obrigatoriamente) dilatação coronariana. dades em criança com DK.

SJT Residência Médica – 2016


149
12  Doenças de Kawasaki (DK)

O início é abrupto, anunciado por febre alta, con- reia, tosse, pneumonite e otite média; e outros: mio-
tínua, que dura uma semana ou mais (geralmente dez site, meatite com piúria estéril, estomatite ulcerativa,
dias) e é refratária à antibioticoterapia. Outros acha- hepatoesplenomegalia e reativação da cicatriz vacinal
dos incluem conjuntivite bilateral sem secreção (du- da BCG. Encontra-se iridociclite em muitas crianças
ração de uma a duas semanas), lábios fissurados, eri- submetidas ao exame oftalmológico.
tematosos e secos (duração de uma a duas semanas),
O exame físico de uma criança na fase aguda da
língua em framboesa e mucosa faríngea hiperemiada.
DK geralmente revela apenas um estado hiperdinâmi-
A linfadenopatia envolve um ou vários nodos, em ge-
co, com taquicardia e, por vezes, ritmo de galope e so-
ral cervicais. Não são supurativos, podem ser grandes
pro inocente. As alterações miocárdicas são transitó-
e, comumente, são indolores. A erupção cutânea erite-
rias, e a contratilidade miocárdica volta ao normal nos
matosa acomete o tronco, a face ou os membros; pode
casos não fatais, com resolução rápida após terapêuti-
ser maculopapulosa ou morbiliforme. Uma erupção
ca com imunoglobulina, simultaneamente à melhora
perineal descamativa e eritematosa inespecífica está
presente em muitos pacientes durante a primeira se- das outras manifestações clínicas. Essa reversibilida-
mana da doença. Após vários dias de doença, as mãos de imediata sugere que o mecanismo de depressão da
e os pés tornam-se edematosos, tumefatos e doloro- contratilidade miocárdica é provocado por toxinas e/
sos; ocorre descamação da pele das pontas dos dedos, ou citocinas.
palmas e plantas, geralmente durante a segunda ou
terceira semana.
O diagnóstico pode ser difícil quando as manifes-
tações clínicas ainda estão incompletas e nos casos atí- Diagnóstico laboratorial
picos. Em alguns pacientes com DK, as manifestações
clínicas são limitadas e insuficientes para preencher o Não há exames laboratoriais relevantes para o
critério diagnóstico acima descrito. Excluídas outras diagnóstico. Existem apenas algumas alterações que
doenças, esses casos são diagnosticados como doença corroboram o diagnóstico. A leucocitose sanguínea,
de Kawasaki incompleta ou atípica. Essa apresentação em valores maiores que 15.000/mm3, com predomí-
é mais comum em lactentes, que apresentam apenas nio de formas imaturas, ocorre na fase aguda da do-
febre e exantema, com alterações laboratoriais seme- ença em metade dos pacientes. A trombocitose é
lhantes à forma clássica. Nesses casos, a temível coro- mais tardia, entre a segunda e terceira semanas
narite também pode ocorrer. Por esse motivo, o diag- de evolução, com valores entre 500 mil e 1 mi-
nóstico de DK deve ser considerado em toda criança lhão de plaquetas/mm3. A plaquetopenia pode ser
com febre inexplicada por mais de cinco dias, associa- ocasionalmente observada em casos com formação de
da a duas ou três das outras manifestações clínicas as- aneurismas de artérias coronárias, ou pode ser obser-
sociadas citadas anteriormente. Nos menores de seis vada apenas no período inicial da doença. A proteína
meses com febre por mais de sete dias e quadro clínico C reativa (PCR) e a velocidade de hemossedimentação
escasso, deve ser realizado ecocardiograma para ava- (VHS) podem estar elevadas. Os exames laboratoriais
liar sinais de coronarite. compatíveis com DK incluem PCR maior que 3 mg/dL
Por se tratar de uma vasculite de vasos de médio e/ou VHS acima de 40 mm/hora. A detecção de auto-
calibre, há um extenso espectro de manifestações clí- anticorpos, fator reumatoide e FAN estão negativos, e
nicas da DK, decorrentes de alteração de qualquer ór- o complemento é normal ou pouco elevado. Os níveis
gão ou sistema. O acometimento cardíaco na fase agu- séricos de transaminases hepáticas e bilirrubinas po-
da é habitualmente benigno, sem expressão clínica. dem estar um pouco elevados.
Porém, casos mais intensos, e inclusive fatais, já foram Outro exame laboratorial simples que pode cola-
observados previamente. Outras manifestações clíni- borar com o diagnóstico é a análise urinária que trará
cas pouco frequentes podem ocorrer no sistema ner-
leucocitúria importante com urocultura negativa (pi-
voso central (irritabilidade, paralisia facial periférica
úria asséptica).
unilateral. Quase todas as crianças estão irritáveis e
muitas têm alteração da consciência, podendo ocorrer Os exames do coração (radiografia de tórax, ele-
meningite asséptica. A irritabilidade e a anorexia po- trocardiograma e ecocardiograma) são vitais para a
dem persistir por alguns dias, mesmo após a resolução avaliação inicial de todos os pacientes. Desses, o ECO
da febre). No sistema osteoarticular podem ocorrer é o mais útil para reconhecer a doença coronariana
artralgia e artrite transitórias, sobretudo em crianças e revelar a dilatação ou formação de aneurismas das
maiores. A tumefação articular dolorosa costuma ter artérias coronárias. A arteriografia das coronárias
distribuição simétrica e pode acometer as grandes e também revela lesões nos pacientes, mas esse procedi-
pequenas articulações. No sistema digestório po- mento invasivo não é realizado rotineiramente, fican-
dem ocorrer: diarreia, vômitos, dor abdominal e cólica do reservado apenas para os aneurismas gigantes que
biliar sem litíase. No sistema respiratório: rinor- eventualmente ocorrem.

SJT Residência Médica – 2016


150
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

micas associadas muitas vezes cedem no prazo de 24 a


Diagnóstico diferencial 48 horas após o início da terapia. Além disso, estudos
controlados mostraram que a terapia com gamaglobuli-
A DK pode simular uma variedade de outras vas- na intravenosa instituída precocemente (primeiros dez
culites, como a farmacodermia, quadros reumáticos, dias de doença) previne o envolvimento das artérias co-
infecciosos virais, estafilococcias, estreptococcias, e ronária demonstrável por ecocardiografia.
até mesmo o quadro séptico.

Anatomia patológica Acompanhamento


As alterações histológicas à necrópsia de pacientes
e evolução
com lesões fatais incluem infiltrados intensos de células O impacto da DK na infância sobre ocorrências
inflamatórias das túnicas média e íntima dos vasos coro- mais tardias na vida depende, em grande parte, da
narianos (geralmente de médio calibre) ou outros vasos quantidade de dano às artérias coronárias durante a
centrais e obstrução arterial por trombos plaquetários. doença aguda.
O envolvimento cardíaco é a manifestação mais
importante da doença de Kawasaki. De 10% a 40%
das crianças não tratadas apresentam sinais de vas-
Tratamento culite coronariana nas primeiras semanas da doença,
manifestada por dilatação e formação de aneurismas
O tratamento atualmente recomendado é o uso das artérias coronárias. Deve-se realizar ecocar-
de gamaglobulina endovenosa (IGIV) 2 g/kg, em dose diografia em todas as crianças com doença de
única, por 10-12 horas, que deve ser aplicada nos pri- Kawasaki diagnosticada ou suspeitada no mo-
meiros dez dias da fase aguda da doença (antes do mento da apresentação, e o exame deve ser re-
décimo dia de febre). Doses adicionais de imunoglo- petido durante as primeiras quatro semanas. As
bulinas são preconizadas para os pacientes que não manifestações da arterite coronariana incluem sinais
respondem adequadamente ao tratamento inicial. de isquemia miocárdica ou, raramente, infarto do
Passados os 10 dias iniciais de doença, a imunoglo- miocárdio franco ou ruptura de aneurisma. Também
bulina só mantém seu papel protetor na formação de podem ocorrer pericardite, miocardite, endocardite,
dilatações coronarianas se a febre ainda estiver pre- insuficiência cardíaca e arritmias.
sente (doença em atividade). Em todos os casos, tam-
bém está indicado o uso de salicilatos durante a fase A recuperação é completa nos pacientes que
febril da doença. Indica-se o uso de aspirina em dose não apresentam vasculite coronariana detectável; se-
anti-inflamatória, de 80 mg/kg/dia, até o desapareci- gundos episódios ocorrem raramente. A maioria das
mento da febre. Mantém-se uma dose antiagregante crianças com envolvimento cardíaco demonstrável
de salicilatos (5 mg/kg/dia) por seis até oito semanas também parece sair-se bem, mas seu prognóstico em
após o período de doença ativa, ou enquanto houver longo prazo é desconhecido. Nas séries japonesas ini-
aneurisma coronariano. Nos pacientes com alergia à ciais, 1%-2% das crianças morreram das complicações
aspirina, o dipiridamol pode ser utilizado como antia- cardíacas, em geral no prazo de um a dois meses a par-
gregante plaquetário, no entanto tem indicação mais tir do início, porém esse desfecho sério ficou reservado
precisa nas crianças com dilatação coronariana e dor para aquelas crianças que apresentavam aneurismas
precordial. O tratamento com corticosteroides é rara- gigantes (> 7 mm), ou dilatações múltiplas. A grande
mente usado na doença de Kawasaki, e alguns o consi- maioria dos aneurismas se resolve antes de se com-
deram contraindicado. Alguns estudos mostraram que pletar 1 ano do início da doença, no entanto imagina-
o corticoide na fase aguda da doença poderia favore- -se que o dano local na parede do vaso é permanente,
cer o aparecimento de aneurismas coronarianos; dessa tornando o segmento coronariano que uma vez esteve
forma, o uso de pulsoterapia com metilprednisolona dilatado agora frágil, com perda de sua elasticidade.
tem sido preconizado apenas para o tratamento de Com base nessa teoria, faz-se a hipótese de que a DK
aneurismas não responsivos ao uso de imunoglobuli- seja responsável por mortes de causa cardiológica nos
nas. Outros tratamentos existentes para crianças com pacientes jovens, sem fatores de risco para tal. O con-
DK resistente à IGIV incluem, além dos corticosteroi- trole dos pacientes com doença de Kawasaki em longo
des, antagonistas do fator de necrose tumoral. prazo deve basear-se no grau de envolvimento coro-
nariano. São feitas algumas recomendações específi-
De um modo geral, a doença de Kawasaki respon- cas para cada nível de risco, referentemente a terapias
de de maneira excelente ao tratamento com dose única antiplaquetárias e com anticoagulante, atividade físi-
de gamaglobulina intravenosa durante o período de do- ca, avaliação de controle e exames propedêuticos apro-
ença febril ativa. A febre e outras manifestações sistê- priados para avaliar doença cardíaca.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

13
Avaliação do recém-nascido

grosseiro que perde seu valor em algumas situações


Introdução como gestação gemelar, oligo ou poli-hidrâmnio, res-
trição de crescimento intrauterino etc.
Para uma boa avaliação das condições de vitali-
dade e maturidade de um RN, torna-se necessário o 3- USG obstétrico: até 12 semanas (medida do
saco gestacional e comprimento craniocaudal) ou até 20
conhecimento de duas variáveis: peso de nascimento
semanas (diâmetro biparietal, comprimento do fêmur,
(PN) e idade gestacional (IG). Assim, classificamos os
perímetro cefálico e/ou circunferência abdominal).
recém-nascidos da seguinte forma:
4- Métodos clínicos pós-natais: Capurro, Du-
bowitz, Ballard e New Ballard.
1- Peso de nascimento O método de Capurro é usado ainda em sala de
€€ macrossomia: > 4.000 g; parto para uma estimativa mais grosseira da idade
gestacional. Devem ser avaliadas cinco característi-
€€ RN de baixo peso: < 2.500 g;
cas somáticas: textura da pele, formato do mamilo,
€€ RN de muito baixo peso: < 1.500 g; tamanho do mamilo, pregas plantares e formato da
€€ RN de muito muito baixo peso ou extremo orelha. Por meio de um sistema de pontos obtém-se
baixo peso: < 1.000 g. a idade gestacional.
Atualmente, o método New Ballard tem van-
tagens na avaliação da idade gestacional do recém-
2- Idade gestacional -nascido por apresentar 12 caracteres (seis neuro-
Para a estimativa da provável idade gestacio- lógicos e seis somáticos) de fácil realização e não
nal, podemos nos basear nos seguintes dados pré e necessitar de grande manipulação do RN. Também
pós-natais: através de um sistema de pontos, obtém-se a idade
gestacional estimada. A seguir, encontram-se as ca-
1- DUM: data da última menstruação. racterísticas avaliadas por esse método e suas res-
2- Altura uterina: trata-se de um parâmetro pectivas pontuações.
152
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

PONTUAÇÃO IDADE EM SEMANAS


-1 0 1 2 3 4 5
-10 20 SEMANAS
-9 20 + 3 d
Postura -8 20 + 6 d
-7 21 + 1 d
-6 21 + 4 d
-5 22 SEMANAS
-4 22 + 3 d
Punho
-3 22 + 6 d
>90º 90º 60º 45º 30º 0º -2 23 + 1 d
-1 23 + 4 d
0 24 SEMANAS
Recuo 1 24 + 3 d
do braço 2 24 + 6 d
180º 140º-180º 110º-140º 90º-110º <90º 3 25 + 1 d
4 25 + 4 d
Ângulo 5 26 SEMANAS
poplíteo 6 26 + 3 d
180º 160º 140º 120º 100º 90º <90º 7 26 + 6 d
8 27 + 1 d
Sinal do 9 27 + 4 d
cachecol 10 28 SEMANAS
11 28 + 3 d
12 28 + 6 d
Calcanhar 13 29 + 1 d
Orelha 14 29 + 4 d
15 30 SEMANAS
Viscosa, Gelatinosa, Rósea, lisa, Descamação Fendas, Apergami- Enrugada, 16 30 + 3 d
friável, vermelha, com vasos superficial áreas nhada, fendida, 17 30 + 6 d
Pele
transparente translúcida visíveis e/ou rash, pálidas, fendas courácea 18 31 + 1 d
poucos vasos raros vasos profundas, 19 31 + 4 d
sem vasos 20 32 SEMANAS
21 32 + 3 d
Ausente Esparsa Abundante Fina Áreas sem Maior parte
Lanugem lanugem sem 22 32 + 6 d
lanugem 23 33 + 1 d
24 33 + 4 d
40-50 mm: -1 > 50 mm, Marcas Apenas sulco Sulcos nos Sulcos em 25 34 SEMANAS
Superfície < 40 mm: -2 sem pregas vermelhas anterior 2/3 ante- toda a 26 34 + 3 d
Plantar tênues transverso riores planta do pé 27 34 + 6 d
28 35 + 1 d
29 35 + 4 d
Imperceptível Apenas Aréola plana, Aréola Aréola Aréola
30 36 SEMANAS
perceptível glândula pontilhada, elevada, completa,
Mama 31 36 + 3 d
não-palpável glândula glândula glândula
1-2 mm 3-4 mm 5-10 mm 32 36 + 6 d
33 37 + 1 d
Pálpebras Pálpebras Pavilhão Pavilhão bem Pavilhão Cartilagem 34 37 + 4 d
fundidas abertas, pouco curvado, curvado, bem densa, 35 38 SEMANAS
Olhos/ 36 38 + 3 d
Orelhas frouxamente:-1 pavilhão plano flexível, com mole, com formado, orelha rígida
fortemente:-2 ou achatado, recolhimento recolhimento firme, com 37 38 + 6 d
permanece lento rápido recolhimento 38 39 + 1 d
dobrado instantâneo 39 39 + 4 d
40 40 SEMANAS
Bolsa escrotal Bolsa Testículos no Testículos Testículos Testículos 41 40 + 3 d
Genitais plana e lisa escrotal canal inguinal, descendo, na bolsa, pendulares, 42 40 + 6 d
Masculinos vazia, com raras rugas poucas rugas muitas rugas 43 41 + 1 d
rugas tênues rugas profundas 44 41 + 4 d
Clitóris Clitóris Clitóris Pequenos e Grandes Grandes lábios 45 42 SEMANAS
Genitais 46 42 + 3 d
proeminente, proeminente, proeminente, grandes lábios lábios recobrem o
Femininos 47 42 + 6 d
lábios planos pequenos pequenos igualmente maiores e clitóris e os
lábios pouco lábios mais proeminentes pequenos pequenos 48 43 + 1 d
proeminentes proeminentes lábios lábios 49 43 + 4 d
menores 50 44 SEMANAS

Figura 13.1  Método de avaliação New Ballard.

Recém-nascido prematuro
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (1961), é considerado pré-termo o RN que apresenta menos
de 37 semanas de idade gestacional ao nascimento.
€€ prematuro: < 37 semanas;
€€ termo: 37 a 41 6/7 semanas;
€€ pós-termo: > 42 semanas.
O RN pré-termo, dependendo de sua maturidade ao nascimento, do tipo e da intensidade dos fatores que atua-
ram durante sua vida intrauterina, poderá apresentar maior risco de distúrbios no período neonatal, eventualmente
responsáveis por maiores índices de mortalidade, além de ocasionar sequelas que poderão comprometer a sua evolução.
Segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria, desde 2005 os prematuros podem ser divididos nos seguintes
grupos: pré-termo tardio (nascido de 34 semanas até antes de 37 semanas), pré-termo moderado (nascido de 28
semanas até antes de 34 semanas) e pré-termo extremo (nascido antes de 28 semanas). Os riscos mais frequentes
de cada fase podem ser vistos na tabela a seguir.

SJT Residência Médica – 2016


153
13  Avaliação do recém-nascido

Grau de
€€ sucção e deglutição deficientes;
Riscos €€ insuficiência respiratória/apneia;
prematuridade
Pré-termo tardio – Controle irregular da temperatura €€ imaturidade neurológica.
34-36 6/7 – Alterações da sucção e deglutição
semanas – Hiperbilirrubinemia
– Desconforto respiratório
Moderado – Insuficiência respiratória: doença
28-33 6/7 das membranas hialinas, apneia Classificação
semanas – Asfixia perinatal
– Hiperbilirrubinemia Uma vez determinada a idade gestacional, os
Extremo – Asfixia perinatal RNs são classificados de acordo com curvas de cres-
< 28 semanas – Dificuldade na manutenção da cimento intrauterino, podendo o peso de nascimento
temperatura corpórea relacionado com a idade gestacional ser avaliado da
– Insuficiência respiratória: DMH, seguinte forma:
apneia, displasia broncopulmonar
– Hiperbilirrubinemia
– Infecções adquiridas, síndromes AIG (adequado para a Peso entre p 10 e p 90 para a
hemorrágicas, anemia idade gestacional) idade gestacional
– Distúrbios metabólicos: hipo e hi- PIG (pequeno para a Peso abaixo do p 10 para a
perglicemia, hipocalcemia idade gestacional) idade gestacional
– Enterocolite necrosante GIG (grande para a Peso acima do p 90 para a idade
– Hemorragia intracraniana idade gestacional) gestacional
– Persistência do canal arterial
Tabela 13.2
– Retinopatia da prematuridade
– Doença metabólica óssea
– Malformações congênitas Percentis de peso ao nascer (g) para a idade ges-
Tabela 13.1 tacional
Idade Percentis
gestacional 5 10 50 90 95
(sem)
20 249 275 412 772 912
Prematuros tardios 21 280 314 433 790 957
22 330 376 496 826 1023
São recém-nascidos com idade gestacional entre
23 385 440 582 882 1107
34 semanas completas (34 0/7 semanas ou 239 dias) e
24 435 498 674 977 1223
menos de 37 semanas completas (36 6/7 ou 259 dias).
25 480 558 779 1138 1397
Trata-se de um grupo de risco intermediário de e estão
26 529 625 899 1362 1640
associados a fatores que mais frequentemente estão
27 591 702 1035 1635 1927
associados à prematuridade, como a ruptura prematu-
28 670 798 1196 1977 2237
ra de membranas, a infecção urinária e a hipertensão
materna, e principalmente a alguns outros fatores que 29 772 925 1394 2361 2553
estão diretamente relacionados com o aumento dessa 30 910 1085 1637 2710 2847
população, como o aumento nas taxas de reprodução 31 1088 1278 1918 2986 3108
assistida e gemelaridade, indução do trabalho de parto 32 1294 1495 2203 3200 3338
em idades gestacionais menores e macrossomia, situa- 33 1513 1725 2458 3370 3536
ções estas muitas vezes relacionadas ao estilo de vida e 34 1735 1950 2667 3502 3697
aos extremos da idade materna. 35 1950 2159 2831 3596 3812
36 2156 2354 2974 3668 3888
Apesar dos avanços tecnológicos e dos cuidados
37 2357 2541 3117 3755 3956
com a gestante e recém-nascido, os prematuros tardios
38 2543 2714 3263 3867 4027
podem apresentar vários distúrbios e intercorrências
39 2685 2852 3400 3980 4107
que os diferenciam dos recém-nascidos a termo. Entre
as principais estão: 40 2761 2929 3495 4060 4185
41 2777 2948 3527 4094 4217
€€ menores escores de Apgar;
42 2764 2935 3522 4098 4213
€€ maior frequência de hipotermia;
43 2741 2907 3505 4096 4178
€€ hipoglicemia; 44 2724 2885 3491 4096 4122
€€ hiperbilirrubinemia; Tabela 13.3  Curva de crescimento ponderal e idade
€€ risco de infecção; gestacional segundo Alexsander et al.

SJT Residência Médica – 2016


154
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Recém-nascido pequeno para a idade gestacional (PIG)


É definido como aquele cujo peso de nascimento se situa abaixo do percentil 10 para sua idade gesta-
cional com base em uma curva de crescimento intrauterino.
Nos países em desenvolvimento, a incidência de RN com baixo peso ao nascer está em torno de 18% dos
nascidos vivos, conforme dados da OMS, sendo que aproximadamente 75% desses RNs são pequenos para
a idade gestacional.
A restrição do crescimento intrauterino (RCIU) é o principal fator responsável por esse quadro.
RNs que sofreram RCIU apresentam morbidade cinco vezes maior e mortalidade dez vezes maior que os RNs
com peso adequado ao nascimento. Essa morbidade é consequência da maior frequência de asfixia, aspi-
ração meconial, hipotermia, distúrbios metabólicos (hipoglicemia, hipocalcemia), policitemia e
prejuízos no DNPM da criança.
No crescimento fetal normal, após a fase de embriogênese (que se estende até a oitava semana de ges-
tação), inicia-se a fase de crescimento fetal (hiperplasia e hipertrofia celular).
A velocidade de ganho de peso do feto é dividida em quatro períodos:
€€ período de crescimento lento (embriogênese até 15-16 semanas);
€€ período de crescimento acelerado (17 a 26-27 semanas);
€€ período de crescimento máximo (28 a 36-37 semanas);
€€ período de crescimento em desaceleração (a partir de 37 semanas).
A intensidade da RCIU e o prognóstico do RN dependem do momento em que o agente patoló-
gico atinge o feto, sendo capaz de modificar seu potencial de crescimento e promover importantes
alterações.
No RCIU simétrico ou tipo I, o agente causador está intimamente relacionado ao feto, atuando preco-
cemente no desenvolvimento fetal e levando a um pior prognóstico. Nesse caso, todas as medidas corpóreas
do RN estão proporcionalmente reduzidas para a idade gestacional, e as principais patologias que levam
a esse quadro são as síndromes genéticas/malformativas, infecções congênitas, uso de drogas e radiações
ionizantes.
No RCIU assimétrico ou tipo II, o agente agressor independe do feto, costuma atuar no último trimes-
tre gestacional, tem melhor prognóstico e corresponde a 75% dos casos de RCIU. Nesse caso, existe uma
desproporção entre as medidas corpóreas (polo cefálico e ossos longos pouco atingidos e abdome bastante
comprometido). Habitualmente, é resultante de intercorrências maternas que geram insuficiência placentá-
ria, como a DHEG.
Existe um tipo intermediário de RCIU, de difícil diagnóstico, no qual o agente causador atua precoce-
mente e que persiste durante toda a gestação. Apresenta um comprometimento do polo cefálico e de ossos
longos menos intenso que no RCIU simétrico e está relacionado, principalmente, à desnutrição materna, uso
de drogas, fumo e álcool.
Em 40% dos casos de RCIU, a causa é desconhecida. No restante, as principais causas de RCIU de origem
fetal, materna e placentária estão citadas na Tabela 13.4.
O diagnóstico do RCIU pode ser realizado durante o acompanhamento pré-natal, por meio de:
€€ ganho de peso materno deficitário;
€€ medida da altura uterina (screening);
€€ ultrassonografia obstétrica precoce: ideal entre 7 a 12 semanas, observando-se o diâmetro biparietal,
a circunferência cefálica, a circunferência abdominal, o comprimento do fêmur e ILA (índice de líquido
amniótico reduzido menor que 5 cm indica alto risco para RCIU);
€€ exames de vitalidade fetal: cardiotocografia, perfil biofísico fetal, dopplervelocimetria no terceiro tri-
mestre gestacional e amniocentese.

SJT Residência Médica – 2016


155
13  Avaliação do recém-nascido

Causas de RCIU
Causas fetais Causas maternas Causas placentárias
Cromossomopatias Intercorrências clínicas Doenças placentárias
Trissomia do 21 Síndrome hipertensiva Placenta prévia
(Sd. Down) Diabetes mellitus Placenta circunvalada
Trissomia do 18 Cardiopatias Corioangiomas
(Sd. Edwards) Doenças autoimunes Inserção velamentosa de cordão
Trissomia do 13 Anemias
(Sd. Patau) Desnutrição
Monossomia X
(Sd. Turner)
Mosaicismos
Outras alterações genéticas Infecções Insuficiência placentária
Defeitos do tubo neural Virais: CMV, Rubéola, Herpes e Varicela-Zóster, HIV Tromboses e infartos na placenta
Acondroplasia Bacterianas: Tuberculose Gestação gemelar
Condrodiwstrofias Protozoários: Toxoplasmose, Malária, Doença de
Osteogênese imperfeita Chagas
Malformações congênitas Drogas e substâncias tóxicas
Sistema cardiovascular Metotrexate
Sistema nervoso Fenitoína
Sistema geniturinário Cocaína/heroína
Sistema digestivo Metadona
Sistema musculoesquelético Trimetadiona
Dicumarínicos
Tetraciclinas
Propranolol
Álcool
Fumo
Radiações ionizantes

Sd= síndrome.
Tabela 13.4

Recém-nascido de alto risco (RNAR)


Os recém-nascidos de alto risco associam-se a certos fatores de risco; quando um ou mais ocorrerem, o neo-
natologista poderá antecipar possíveis dificuldades.

Recém-nascido de alto risco


Condições maternas Idade > 40 anos e < 16 anos
Fatores pessoais Pobreza, tabagismo, álcool, drogas, má nutrição
História clínica Diabetes, infecções, hipertensão, anemia etc.
História obstétrica Infertilidade, medicações, sangramentos, rotura prematura, TORCH
Condições fetais Gestação múltipla, retardo de crescimento intrauterino, macrossomia, anormalidade do rit-
mo cardíaco, acidose, atividade diminuída, poli-hidrâmnio, oligo-hidrâmnio
Condições do parto Parto prematuro, febre materna, hipotensão materna, parto rápido, parto demorado, apre-
sentação anormal, tetania uterina, mecônio, prolapso de cordão, anomalias da placenta
Condições neonatais Prematuridade, Apgar baixo no primeiro ou quinto minuto, palidez, mau cheiro do líquido
amniótico, pequeno para a idade gestacional, pós-maturidade
Tabela 13.5  Fatores de risco.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

14
Patologias maternas e suas
repercussões neonatais

mia fetal, pois, além de a insulina não ultrapassar a


Filho de mãe diabética placenta, o transporte de glicose materna para o feto
se dá por difusão placentária facilitada. Paralelamente
Nos últimos vinte anos houve um aumento signi- a isso há ainda um aumento da passagem de amino-
ficativo de diabetes gestacional nos países desenvolvi- ácidos e lípides por via placentária. A hiperglicemia
dos (de 2,9 para 8,8%) devido a dietas hipercalóricas e fetal ocasiona uma hipertrofia das células beta-pan-
malbalanceadas. Contudo, melhorias no atendimento creáticas com consequente hiperinsulinismo fetal. A
obstétrico como a ultrassonografia, avaliação da matu- insulina atua no metabolismo dos hidratos de carbono
ridade e vitalidade fetal e no controle metabólico ma- (aumento da síntese de glicogênio), determina maior
terno associados aos avanços nos cuidados neonatais lipogênese e aumento da síntese de proteínas, atuan-
têm reduzido a taxa de óbito fetal e neonatal. A morta- do como hormônio anabolizante do crescimento e de-
lidade perinatal caiu de 30% para 2%-4% entre as mães senvolvimento, tendo como resultado a macrossomia.
diabéticas insulinodependentes nas últimas décadas. A hiperglicemia materna e/ou outro distúrbio
A gestação normal é considerada diabetogênica, metabólico no período de embriogênese podem ter
pois ocorrem diversas alterações hormonais e metabó- ação teratogênica. Acredita-se que esse efeito seja res-
licas que resultam em aumento dos níveis glicêmicos ponsável por grande número de abortos nos filhos de
maternos. Esse aumento estimula a produção de insu- mãe diabética.
lina, porém esse mecanismo é ineficaz nas gestantes Entre as principais complicações que ocorrem na
diabéticas ou com diabetes gestacional. A hiperglice- gestação e que estão relacionadas a um pior prognós-
mia materna tem como consequência uma hiperglice- tico fetal e neonatal estão:
157
14  Patologias maternas e suas repercussões neonatais

€€ cetoacidose: associada a um risco de 50% de Hipocalcemia: pode ocorrer devido a um retar-


óbito fetal; do na elevação do paratormônio após o nascimento, a
€€ poli-hidrâmnio: acredita-se ser decorrente da um antagonismo na absorção intestinal de vitamina
diurese osmótica ocasionada pela hiperglicemia D, à hiperfosfatemia devido ao catabolismo tecidual
fetal, e, quando presente antes de 24 semanas presente nas primeiras 48 horas de vida ou, ainda, aos
de gestação, está associada a malformações es- casos de asfixia e prematuridade.
truturais;
€€ pielonefrite;
Distúrbios hematológicos
€€ coma;
Policitemia: é consequente a uma eritropoiese
€€ pré-eclâmpsia.
intensa secundária a hipoxemia crônica e apresenta
como principal desfecho o aumento da viscosidade
sanguínea. Favorece o aparecimento da síndrome de
Complicações do feto e recém- hiperviscosidade, caracterizada por fácies pletórica,
acrocianose, taquicardia e taquipneia, e é fator agra-
-nascido de mãe diabética vante da hipoglicemia.
Hiperbilirrubinemia: presente com maior fre-
quência no FMD, é agravada pelo aumento da prema-
Abortamentos/Natimortalidade turidade presente nessa população, além da policite-
Os abortamentos ocorrem em 25% a 35% das mia e tocotraumatismos.
gestações de mães diabéticas. Acredita-se que um dos Fenômenos trombóticos: decorrentes prin-
principais fatores que contribuem para esses eventos cipalmente da policitemia e de alterações na agrega-
sejam as malformações. Já o óbito fetal está mais rela- ção plaquetária, têm como principal quadro clínico a
cionado com o controle metabólico inadequado. trombose da veia renal.

Asfixia perinatal Miocardiopatia hipertrófica


Os filhos de mãe diabética (FMD) apresentam Ocorre devido a um espessamento do septo in-
maior taxa de asfixia quando comparados à população terventricular e das paredes ventriculares esquerda e
em geral. Entre os principais fatores que contribuem para direita consequente ao hiperinsulinismo. Na grande
essa maior incidência estão o comprometimento vas- maioria das vezes, é assintomática e diagnosticada
cular materno acarretando hipóxia fetal e contribuindo pela radiografia de tórax.
para elevação das taxas de prematuridade e a macrosso-
mia sendo fator predisponente para tocotraumatismos.
Malformações congênitas
O risco de malformações congênitas em FMD é
Distúrbios respiratórios cerca de 3 a 4 vezes maior que o da população em geral.
Com a melhoria no controle metabólico das ges- Cardíacas: transposição de grandes vasos, defei-
tantes e uma diminuição na incidência da prematuri- tos do septo interventricular, coarctação da aorta etc.
dade, houve uma queda na incidência dos distúrbios
Sistema nervoso: anencefalia, holoprosencefa-
respiratórios. Porém, merece destaque um aumento
lia, meningomielocele, encefalocele etc.
nas taxas de síndrome do Desconforto Respiratório no
FMD devido a um bloqueio da indução da maturação Sistema gastrointestinal: atresia anal, de reto
pulmonar pelo cortisol causado pelo hiperinsulinismo. ou de duodeno, hipoplasia do cólon esquerdo etc.
Sistema genitourinário: agenesia renal, dupli-
Distúrbios metabólicos cação ureteral etc.
Esqueléticas: síndrome da regressão caudal, hi-
Hipoglicemia: trata-se do distúrbio metabólico
poplasia femoral, anomalias vertebrais etc.
mais frequente, com apresentação clínica geralmente
nas primeiras 24 horas de vida, sendo resultado do
hiperinsulinismo. Pode ser agravada nos casos de as-
fixia perinatal e macrossomia por aumento no consu- Filho de mãe hipertensa
mo de glicose pelos diversos tecidos. Os pacientes que
tiveram restrição de crescimento intrauterino podem A hipertensão materna durante a gestação e o fi-
apresentar baixas reservas de glicogênio hepático, po- lho de mãe hipertensa são dois dos grandes exemplos
dendo manifestar uma hipoglicemia mais tardia e re- de como a doença materna pode interferir no desen-
sistente ao tratamento. volvimento do concepto.

SJT Residência Médica – 2016


158
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Segundo a classificação do Ministério da Saúde dos distúrbios hipertensivos na gestação, a hipertensão


materna pode se apresentar sob a forma de pré-eclâmpsia ou Doença Hipertensiva Específica da Gestação
(DHEG), hipertensão arterial crônica, hipertensão arterial crônica com pré-eclâmpsia superajuntada ou hiper-
tensão gestacional.
Entre as principais complicações da hipertensão para a gestante estão as morbidades neurológicas tais como
os acidentes vasculares cerebrais isquêmicos ou hemorrágicos e as convulsões, a CIVD, insuficiência hepática,
edema agudo de pulmão, descolamento prematuro de placenta e o próprio parto prematuro.
As repercussões fetais e neonatais dessa condição estão relacionadas principalmente ao crescimento intrau-
terino restrito, à acidemia e hipóoxia fetais, à prematuridade e suas consequências e à desnutrição.
A restrição de crescimento intrauterino (RCIU) é a principal consequência do feto de uma mãe hiper-
tensa e é resultado de uma insuficiência placentária de intensidade variável que pode depender do tempo de ges-
tação em que a mãe é acometida, do controle da doença materna e de outras variáveis, tendo como resultado um
recém-nascido pequeno para a idade gestacional (PIG). Vale ressaltar que a RCIU é um evento relacionado
ao feto, enquanto PIG é uma classificação dada após o nascimento.
As principais características do exame físico de um RN PIG estão relacionadas à desnutrição, apresentando-
-se magro, com abdome deprimido, cabeça desproporcionalmente maior que o corpo e a pele descamada em fun-
ção da perda de tecido celular subcutâneo. Suas necessidades nutricionais são maiores que as de um RN adequado
para a idade gestacional.
A hipoglicemia é o principal distúrbio metabólico do RN PIG e ocorre devido a uma menor reser-
va de glicogênio e menor capacidade de gliconeogênese. Além disso, as oxidações de ácidos graxos e
triglicérides são reduzidas, limitando as fontes alternativas de energia. Como muitos desses pacientes
também são prematuros e necessitam da administração de glicose endovenosa, pode ocorrer também hiperglice-
mia devido a secreção insuficiente de insulina. Outros distúrbios metabólicos frequentes são a hipermagnesemia
consequente à administração de sulfato de magnésio para as mães com pré-eclâmpsia e a hipocalcemia.
Dentre os distúrbios respiratórios, observa-se maior risco de hipertensão pulmonar persistente do recém-
-nascido pelo espessamento da vasculatura pulmonar em resposta à hipoxemia crônica e aspiração de mecônio. Já
as taxas de síndrome do desconforto respiratório neonatal são menores nessa população, pois o estresse intrau-
terino crônico parece acelerar a maturação pulmonar.
As alterações hematológicas mais comuns são a policitemia em resposta à hipoxemia crônica, além de neu-
tropenia e plaquetopenia por atividade desviada da medula.
Há evidências de que o RN PIG, na vida adulta, tenha maiores chances de desenvolver algumas patologias,
como a própria hipertensão arterial, doença cardíaca coronariana, diabetes tipo II e dislipidemias.
Veja a seguir uma tabela com algumas patologias maternas e as principais repercussões fetais e neonatais:

Doença materna Repercussões fetais e neonatais


Alcoolismo Abortamento, síndrome alcoólica fetal, RCIU, crises de abstinência, deficiência cognitiva
Anemia RCIU, transmissão genética em alguns casos
Bócio endêmico Hipotireoidismo neonatal
Cardiopatia congênita RCIU, transmissão genética em alguns casos
Desnutrição Desnutrição fetal, raquitismo, asfixia
Doença Rh Anemia fetal, hidropsia, icterícia
Hiperparatireoidismo Hipocalcemia
Hipoparatireoidismo Hipercalcemia
Infecção urinária Prematuridade, sepse, desconforto respiratório
Lúpus eritematoso sistêmicoBloqueio cardíaco (bradicardia), anemia, leucopenia, trombocitopenia, derrame pericárdico
Mãe usuária de drogas Síndrome de abstinência, infarto cerebral, malformações renais, prematuridade, asfixia,
distúrbios gastrointestinais e neurológicos
Trombocitopenia idiopática Trombocitopenia e sangramentos
Tuberculose Prematuridade, hepatoesplenomegalia, paralisia do nervo facial, meningite
Tabela 14.1

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

15
Reanimação neonatal

Introdução Preparo para


As condutas relativas à reanimação neonatal a se- reanimação
guir são adotadas pelo Programa de Reanimação Neo-
natal da Sociedade Brasileira de Pediatria desde 2011.
Essas orientações são baseadas nas recomendações do Anamnese
Consenso Internacional de Reanimação Neonatal, fei-
tas pelo ILCOR (International Liaison Committee on
€€ história materna, intercorrências clínicas, pré-
Ressucitation) em 2010 e publicadas pela Academia -natais e perinatais;
Americana de Pediatria. Segundo dados da OMS, no €€ idade gestacional;
ano de 2004 houve aproximadamente 1 milhão de óbi- €€ presença de mecônio.
tos neonatais na população mundial em decorrência da
asfixia. No mundo, a asfixia perinatal é causa de 23%
dos óbitos neonatais, o que acontece também no Brasil. Equipamentos
Considerando-se que apenas um em cada dez €€ fonte de calor radiante;
nascidos vivos necessita de assistência ventilatória €€ fonte de O2 e vácuo;
para iniciar a respiração ao nascimento, um em cada
cem neonatos necessita de intubação e/ou massagem
€€ material para aspiração;
cardíaca e somente um em cada mil nascidos necessi- €€ material para ventilação;
ta de intubação, massagem e medicações, observa-se €€ material para intubação;
que o atendimento neonatal precisa ser aprimorado e
direcionado para redução da morbimortalidade decor-
€€ medicações;
rente da asfixia perinatal. €€ sala com aquecimento a 26 ºC.
160
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Caso o RN necessite de procedimentos de reani-


Equipe
mação, temos de considerar duas situações: ausência
Pelo menos um profissional habilitado a iniciar ou presença de líquido amniótico meconial.
todos os passos da reanimação e com responsabilidade
apenas pelo atendimento do RN presente ao nascimento.

Precauções universais Ausência de mecônio


Em caso de prematuros ou RN com respiração irre-
€€ avental;
gular/ausente ou hipotonia, seguem-se os passos iniciais.
€€ máscara;
€€ gorro;
€€ luvas;
Passos iniciais
€€ óculos.
€€ prover calor;
€€ posicionar cabeça em leve extensão;

Princípios da reanimação €€ aspirar boca e nariz;


€€ secar e desprezar os campos úmidos;
Airway - via aérea pérvia: manter a via aérea pérvia €€ reposicionar a cabeça.
por meio do posicionamento adequado da cabeça e pesco-
ço, da aspiração da boca, nariz e, se necessário, da traqueia.

Breathing - respiração: garantir a respiração por


meio da ventilação com pressão positiva.

Circulation - circulação: manter a circulação por


meio de massagem cardíaca e medicações ou fluidos.

A indicação dos diferentes passos da reanimação de-


penderá da avaliação de dois sinais clínicos: frequência
cardíaca (FC) e respiração.

A frequência cardíaca é o principal parâ-


metro que indica as manobras de reanimação. Figura 15.1  Passos iniciais em fonte de calor.
A avaliação da mesma pode ser feita pela palpação do
pulso da artéria umbilical ou pela ausculta cardíaca, O primeiro passo no atendimento ao recém-nasci-
devendo-se dar preferência a essa última, contando os do na sala de parto é a manutenção da temperatura cor-
batimentos por 6 segundos e multiplicando-se o valor poral com campos aquecidos e calor radiante. A secagem,
por 10, obtendo, assim, o número de batimentos em 1 além de contribuir para a manutenção da temperatura,
minuto. O ritmo da respiração pode ser avaliado pela
serve como estímulo tátil para o início da respiração. A
observação do tórax do RN, não sendo levada em con-
recomendação da Organização Mundial de Saúde é que
sideração a frequência respiratória.
a temperatura na sala de parto seja, no mínimo, de 26
O boletim de Apgar não deve ser utilizado °C. Em prematuros com idade gestacional inferior a 29
para determinar o início da reanimação nem semanas e/ou peso inferior a 1.500 g, recomenda-se,
para determinar condutas em relação aos proce- atualmente, a utilização de filme plástico poroso ou saco
dimentos a serem realizados na sala de parto. Ele de polietileno para evitar a perda de calor.
é útil para avaliar a resposta do recém-nascido às
manobras realizadas. Logo depois de posicionar o recém-nascido sob
a fonte de calor radiante e antes de secá-lo, envolve-
Após o nascimento, imediatamente depois -se o corpo, exceto a face, com o plástico e realizam-se
do clampeamento do cordão, o pediatra deve co- as manobras necessárias a seguir. Todos os procedi-
nhecer a resposta para quatro perguntas iniciais: mentos, incluindo a intubação, a massagem cardíaca
a gestação é de termo? Ausência de mecônio? O e a inserção do cateter vascular, podem ser executados
RN está respirando ou chorando? Tônus bom? com o paciente envolvido em plástico a fim de manter
Em caso de gestações a termo, ausência de me- a temperatura em torno de 36,5 °C. Além dessa estra-
cônio, RN respirando e/ou chorando com tônus bom tégia, pode-se utilizar ainda colchão aquecido abaixo
deve o RN ser colocado sobre o abdome e/ou tórax dos campos, toucas de lã e transportá-lo em incubado-
materno, usando o corpo da mãe como fonte de calor. ra pré-aquecida a fim de evitar hipotermia.

SJT Residência Médica – 2016


161
15  Reanimação neonatal

A posição do pescoço do RN durante todo o aten- blender em sala de parto e ajusta-se a necessidade de
dimento deve ser em leve extensão, visando manter oxigênio conforme a saturação esperada. Caso não se
as vias aéreas pérvias, podendo ser utilizado um coxim tenha a possibilidade de mistura de gases através de
sob os ombros. um blender, continuar a VPP com 100% de O2.
A aspiração de vias aéreas pode ser feita com o Em relação aos recém-nascidos com idade gesta-
bulbo ou sonda traqueal nº 8 ou 10. Deve-se aspirar cional ≤ 34 semanas, recomenda-se iniciar o primeiro
primeiro a boca e depois as narinas, com movimentos ciclo de VPP com uma concentração de 40% de oxi-
suaves, utilizando pressão negativa de aproximada- gênio, reduzindo ou aumentando a fração de oxigênio
mente 100 mmHg. Os passos iniciais devem ser exe- conforme saturação.
cutados em no máximo 30 segundos. A VPP inicialmente é realizada com balão e más-
Após os passos iniciais deve-se realizar a cara. Utiliza-se o balão autoinflável com capacidade de
avaliação dos parâmetros: frequência cardíaca 200 mL a 750 mL (250 mL para prematuros e 500 mL
e respiração. para termos). O balão deve ter uma válvula de escape
ajustada em 30-40 cm de H2O para segurança e estar
A avaliação da coloração da pele e mucosas do
conectado à fonte de oxigênio com fluxo de 5 L/min,
RN não é mais utilizada para decidir procedimentos
além de conter reservatório de oxigênio para que for-
em sala de parto. Estudos recentes têm mostrado que
neça, dessa maneira, FiO2 aproximada de 100%. Os
a avaliação da cor das extremidades, tronco e mucosas,
ventiladores mecânicos manuais podem ser utilizados
rósea ou cianótica, é subjetiva e não tem relação com a
para a ventilação com pressão positiva, principalmen-
saturação de oxigênio ao nascimento.
te para os prematuros com menos de 32 semanas de
Caso o RN apresente respiração regular, frequên- idade gestacional. Esses aparelhos permitem adminis-
cia cardíaca > 100 bpm, seja de termo (idade gestacio- trar uma pressão inspiratória com PEEP constantes.
nal 37-41 semanas), com bom tônus em flexão, não As máscaras podem ser redondas ou anatômicas,
necessita de qualquer manobra de reanimação. com coxim e feitas de material maleável transparente ou
Se o paciente, após os passos iniciais, não apresen- semitransparente. A redonda é mais apropriada ao pre-
tar melhora, indica-se a ventilação com pressão positiva, maturo, e a anatômica, ao termo. Estão disponíveis em
três tamanhos: para termo, para prematuro e para pre-
maturo extremo. O tamanho adequado deve ser aquele
que cubra a ponta do queixo, da boca e do nariz do RN.
Ventilação A frequência utilizada deve ser 40-60 movi-
A ventilação pulmonar é o procedimento mais mentos por minuto, podendo seguir a regra prá-
simples, importante e efetivo de toda a reanimação. tica do “aperta, solta, solta...”. Durante a VPP é
As indicações da ventilação com pressão positi- importante observar a adaptação da máscara à
va (VPP) são apneia/respiração irregular e/ou FC < 100 face do RN, a permeabilidade das vias aéreas e a
bpm após os passos iniciais. Esta precisa ser iniciada nos expansibilidade pulmonar. Os principais sinais de
primeiros 60 segundos de vida (The Golden Minute). VPP efetiva são o aumento da FC e o início da res-
piração regular, respectivamente. Após 30 segun-
Para discutir a VPP, é necessário entender qual dos de VPP com balão e máscara, os parâmetros
a concentração de oxigênio complementar a ser utili- devem ser reavaliados. Caso apresentem melho-
zada. Se o RN ≥ 34 semanas, deve-se iniciar a ventila- ra, ou seja, FC > 100 bpm e respiração regular,
ção com ar ambiente. Uma vez iniciada a ventilação, suspende-se a VPP mantendo apenas O 2 inalató-
recomenda-se o uso da oximetria de pulso, que deve- rio até sua suspensão gradativa, caso o RN esteja
rá ser realizada no pulso ou na palma da mão direita, recebendo VPP com oxigênio suplementar.
e guiar-se pela saturação conforme a tabela a seguir:
Caso o RN não melhore (FC < 100 ou respi-
ração irregular), a primeira e principal conduta
Recém-nascido de alto risco SatO2 pré-ductal é reavaliar a técnica da VPP.
Até 5 70-80% As principais causas de falha na VPP são a má
5-10 80-90% adaptação da máscara à face do RN, vias aéreas não
>10 85-95% pérvias (posição inadequada da cabeça, secreções e
Tabela 15.1  Valores de SatO2 pré-ductais conforme a idade. boca fechada) e pressão insuficiente.
Após verificar a técnica, deve-se corrigir os erros
Quando o RN ≥ 34 semanas não melhora e/ou e realizar novo ciclo de VPP com técnica correta por 30
não atinge os valores desejáveis de SatO2 com a VPP segundos. Se após esse ciclo com técnica correta o RN
em ar ambiente, recomenda-se o uso de oxigênio su- não apresentar melhora, considera-se VPP ineficaz ou
plementar, inicialmente a 40%, quando se possuir um prolongada e procede-se à intubação traqueal.

SJT Residência Médica – 2016


162
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

ou seja, 3 três movimentos de massagem para um mo-


Indicações de vimento respiratório, totalizando 90 movimentos de
intubação traqueal (IOT) massagem cardíaca e 30 movimentos respiratórios, ou
120 movimentos em um minuto. Na prática, pode-se
€€ Necessidade de aspiração traqueal em neonatos
seguir o ritmo “1 e 2 e 3 e ventila, 1...”.
deprimidos com líquido amniótico meconial.
€€ Ventilação com máscara facial ineficaz, ou seja, A única situação em que se pode considerar apli-
se após a correção de possíveis problemas téc- cação de 15 compressões cardíacas, intercaladas com
nicos relacionados ao seu uso não há melhora duas ventilações, é a do paciente com cardiopatia con-
clínica do recém-nascido. gênita ou falência miocárdica.
€€ Ventilação com máscara facial prolongada.
€€ Necessidade de massagem cardíaca ou adrenalina.
€€ Suspeita ou presença de hérnia diafragmática.
Além das indicações citadas anteriormente, a in-
tubação traqueal deve ser considerada em prematuros
extremos, que receberão surfactante exógeno profilático.
Quanto à escolha do tamanho da cânula traque-
al, segue uma tabela relacionando o número da cânula
com a idade gestacional e o peso de nascimento do RN.

Idade gestacional/peso Número


de nascimento da cânula
< 28 semanas ou P < 1.000 g 2,5 mm
28-34 semanas ou
3 mm
peso entre 1.000-2.000 g Figura 15.2  Massagem cardíaca no RN com a técnica
34-38 semanas ou dos dois polegares e dois dedos.
3,5 mm
peso entre 2.000-3.000 g
38 semanas ou P > 3.000 g 3,5 – 4 mm
Como nas outras manobras, realiza-se a conduta
Tabela 15.2
por 30 segundos e reavaliam-se os parâmetros: FC e
respiração. Se FC > 60 bpm suspende-se a massagem
Os maiores indicativos de ventilação efetiva cardíaca e prossegue-se a VPP até FC > 100 bpm. Caso
e posição correta da cânula são: após 30 segundos de massagem não ocorra melhora,
€€ melhora da FC e da cor; deve-se atentar para a técnica, e, se esta estiver cor-
€€ expansão torácica simétrica; reta, e a FC ainda < 60 bpm, está indicada adrenalina.
€€ ausência de distensão gástrica;
MV torácico bilateral;
€€
Medicações
€€ presença de condensação de água na cânula. Atualmente as medicações utilizadas na reani-
A frequência da ventilação é mantida em 40-60 mo- mação são adrenalina e expansor de volume.
vimentos por minuto. Após 30 segundos de VPP com ba-
lão e cânula traqueal, deve-se reavaliar o RN: se FC > 100
bpm e respiração regular, pode-se considerar a extubação. Adrenalina:
Caso o RN não melhore, verificam-se a técnica e a posição €€ Utilizar sempre a adrenalina diluída 1:10.000
da cânula, e, se necessário, repete-se mais um ciclo de VPP. em soro fisiológico.
Se o neonato não melhorar e a FC se mantiver €€ A primeira dose de adrenalina pode ser feita en-
menor que 60 bpm, inicia-se massagem cardíaca. dotraqueal (apenas a primeira dose); a dose é de
0,3 a 1 mL ET; ventilar após instilação da droga.
A indicação de massagem cardíaca é, por-
tanto, FC < 60 bpm após ter sido realizada a VPP €€ A partir da segunda dose, a adrenalina deve ser
com balão e cânula corretamente. A massagem feita endovenosa.
cardíaca deve ser sempre acompanhada de ven- €€ A via de escolha é a veia umbilical, que deve ser
tilação com pressão positiva. As compressões car- cateterizada na sala de parto.
díacas devem ser feitas com os dois dedos polegares
abraçando o tórax da criança e com uma profundidade
€€ A dose endovenosa é 0,1 a 0,3 mL/kg de adrena-
de compressão que englobe cerca de um terço do diâ- lina diluída (1:10.000).
metro anteroposterior do tórax de maneira a produzir €€ Pode ser repetida a cada 3 a 5 minutos se FC se
um pulso palpável. A proporção da massagem é 3:1, mantiver < 60 bpm.

SJT Residência Médica – 2016


163
15  Reanimação neonatal

Expansores de volume: Deve-se considerar a interrupção da reanimação


€€ Soro fisiológico 0,9% ou Ringer lactato. após a realização de todos os procedimentos com a
técnica adequada e o RN permanecer em assistolia por
€€ Dose: 10 mL/kg em 5 a 10 minutos.
mais de 10 minutos.
€€ Indicado na suspeita de resposta inadequada
aos procedimentos de reanimação, perda de
sangue ou sinais de choque hipovolêmico como
palidez, má perfusão e pulsos débeis.
O uso de bicarbonato de sódio tem sido desenco- Presença de mecônio
rajado, sendo utilizado de modo excepcional nos casos Caso haja presença de líquido amniótico meconial,
de reanimação prolongada em que não se observa me- não há indicação de aspiração das vias aéreas superiores
lhora após outras medidas terapêuticas, estando certo pelo obstetra ao desprender o polo cefálico. Se o RN es-
de que a ventilação e a massagem estão sendo reali- tiver vigoroso ao nascimento, ou seja, com movimentos
zadas com técnica correta. Nas raras ocasiões em que respiratórios rítmicos e regulares, tônus muscular ade-
o bicarbonato estiver indicado, a dose recomendada é quado ou FC > 100, deve-se levá-lo à mesa de reanima-
de 2 mEq/kg da solução a 4,2% (0,5 mEq/mL), por via
ção e realizar os passos iniciais normalmente.
endovenosa em veia calibrosa com infusão por um pe-
ríodo superior a 5 minutos. A naloxona (antagonista Quando houver líquido amniótico meconial logo
de opioide) só deve ser considerada em casos de mães após o nascimento e o RN apresentar APNEIA OU RES-
que receberam opioides no período anteparto cujo RN PIRAÇÃO IRREGULAR E/OU HIPOTONIA E/OU FC <
tenha nascido com depressão respiratória e após ter 100, deverá, PRIMEIRAMENTE, ser feita aspiração do
sido priorizada e realizada uma ventilação adequada. mecônio residual da hipofaringe e traqueia sob visuali-
zação direta através da cânula traqueal conectada a um
dispositivo de aspiração de mecônio e à fonte de vácuo.
Esse procedimento não deve exceder 3 a 5 segundos e
Questões éticas
deve ser repetido até que haja pouco mecônio na tra-
As questões relativas às orientações para não ini- queia ou que o RN necessite ser ventilado. Após essa
ciar a reanimação neonatal e/ou interromper as ma- aspiração, o RN deverá ser secado e então ter uma ava-
nobras são controversas e dependem de um contexto liação da FC e RESPIRAÇÃO, recebendo a reanimação
nacional, social, cultural e religioso. De modo geral, os
conforme a indicação de cada procedimento.
princípios éticos que regem a reanimação neonatal não
devem diferir daqueles aplicados a pacientes de outras Vale ressaltar que o TÔNUS só é utilizado como
faixas etárias. Em condições nas quais o prognóstico parâmetro para definir um procedimento de reanima-
é incerto e a chance de sobrevida com sequelas muito ção na sala de parto apenas nos casos de presença de
graves é grande, o desejo dos pais deve ser considerado. líquido amniótico meconial.

Material necessário para reanimação do RN na sala de parto


Mesa de reanimação com
Fonte de calor radiante
Fonte de oxigênio umidificado com fluxômetro
Aspirador a vácuo com manômetro
Material para aspiração
Bulbo
Sondas traqueais números 6, 8 e 10
Sondas gástricas números 6 e 8
Dispositivo para a aspiração de mecônio
Seringa de 20 mL
Material para ventilação
Balão autoinflável com capacidade máxima de 750 mL, dispositivo de segurança (válvula de escape com limite máxi-
mo de 30-40 cm H2O e/ou manômetro) e reservatório de oxigênio aberto
Máscaras para prematuros e RNs a termo
Material para intubação traqueal

SJT Residência Médica – 2016


164
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Material necessário para reanimação do RN na sala de parto (Cont.)


Laringoscópio com lâmina reta números 0 e 1
Cânulas traqueais sem balão, de diâmetro uniforme números 2,5-3 – 3,5-4
Material para fixação da cânula
Pilhas e lâmpadas sobressalentes
Fio guia esterilizado (opcional)
Medicações
Adrenalina diluída em soro fisiológico 0,9% 1/10.000 (0,1 mg/mL) em 1 seringa de 5 mL para administração traque-
al única
Adrenalina diluída em soro fisiológico 0,9% 1/10.000 (0,1 mg/mL) em 1 seringa de 1 mL para administração venosa
Expansores de volume (SF 0,9% ou Ringer lactato)
Uso excepcional: Bicarbonato de sódio a 4,2% (0,5 mEq/mL) e Naloxona (0,4 mg/mL)
Material para cateterismo umbilical
1 pinça tipo Kelly reta de 14 cm
Cabo de bisturi com lâmina nº 21
Porta-agulha de 11 cm
Sonda traqueal sem válvula n° 4 ou 6 ou cateter umbilical
Campo fenestrado estéril
Cadarço de algodão e gaze
Fio agulhado mononáilon 3.0
Outros
Luvas e óculos de proteção
Compressas e gazes esterilizadas
Estetoscópio neonatal
Saco de polietileno de 30x50 cm para proteção térmica do prematuro
Seringas de 20 mL, 10 mL, 5 m e 1 mL
Agulhas
Relógio de parede com segundos
Opcional: respirador manual e detector de CO2 expirado
Tabela 15.3
4 PERGUNTAS Gestação a termo?
NASCIMENTO Ausência de mecônio?
Respirando ou chorando?
Tônus muscular bom?

NÃO

PASSOS INICIAIS
30 SEGUNDOS

RESPIRANDO / FC>100
AVALIAR FC, COR, CIANOSE CENTRAL
RESPIRAÇÃO

APNEIA OU FC<100 CONSIDERAR O2


30 SEGUNDOS INALATÓRIO
VENTILAR COM PRESSÃO
POSITIVA (VPP) CIANOSE
PERSISTENTE
NÃO MELHOROU
30 SEGUNDOS
CONSIDERAR IOT
FC<60 FC>60

30 SEGUNDOS
INICIAR MASSAGEM
CARDÍACA

FC<60
FC<60
CIANOSE PERSISTENTE ADRENALINA
FALHA NA VENTILAÇÃO

CONSIDERAR: • VERIFICAR A EFETIVIDADE DA


MALFORMAÇÃO DE VIAS AÉREAS VENTILAÇÃO, MASSAGEM, IOT E
PROBLEMAS PULMONARES ADRENALINA
CARDIOPATIA CONGÊNITA • CONSIDERAR HIPOVOLEMIA

Figura 15.3  Fluxograma dos procedimentos em reanimação.

SJT Residência Médica – 2016


165
15  Reanimação neonatal

Medicações ao recém-nascido na sala de parto


Medicação Concentração Preparo Doses Peso Dose total Velocidade/precauções
(kg) (mL)
Adrenalina 1:10.000 1 mL 0,1-0,3 mL/kg 1 0,1-0,3 Infundir rapidamente
Diluir em água EV/ET 2 0,3-0,6
destilada 3 0,3-0,9
4 0,4-1,2
Expansores SF 0,9% 10 mL/kg 1 10 Infundir em 5 a 10 minu-
de volume Ringer lactato 40 mL EV 2 20 tos
3 30
Sangue total 4 40
Bicarbonato 4,2%-0,5 mEq/mL 20 mL 2 mEq/kg 1 4 Infundir em, no mínimo,
de sódio 2 8 2 minutos
Diluir em EV 3 12 Ventilar adequadamente
água destilada 4 16
Naloxome 0,4 mg/mL 1 mL 0,1 mg/kg 1 0,25 Infundir rapidamente
EV/ET 2 0,50 EV/ET
3 0,75
4 1
Tabela 15.4

Asfixia
A asfixia perinatal é caracterizada pela deficiência no suprimento de oxigênio tecidual. São dois
os mecanismos patogênicos: hipoxemia (diminuição do oxigênio circulante) e isquemia (diminuição
da perfusão tecidual).
Noventa por cento dos insultos asfíxicos acontecem nos períodos anteparto ou intraparto, como consequ-
ência da insuficiência placentária. O remanescente ocorre no pós-parto, normalmente secundário a insuficiência
pulmonar, cardiovascular ou neurológica.
De acordo com a Academia Americana de Pediatria, para o diagnóstico de asfixia perinatal são necessários
os seguintes critérios:
€€ Apgar de 0 a 3 por mais de cinco minutos.
€€ acidemia metabólica ou mista profunda (pH < 7) em sangue do cordão umbilical.
€€ manifestações neurológicas no período neonatal (convulsão, hipotonia, coma etc.).
€€ disfunção orgânica multissistêmica (alterações renais, cardiovasculares, respiratórias etc.).

Fatores de risco para a asfixia


Antenatais Intraparto
Diabetes materno Trabalho de parto prolongado
Doença hipertensiva da gestação Trabalho de parto prematuro
Hipertensão crônica Rotura prolongada de membranas
Sangramentos no 2º e 3º trimestres Fisometria
Infecção materna Apresentação pélvica
Oligo/Poli-hidrâmnio Mecônio
Gestação múltipla Descolamento prematuro da placenta
Gestação prolongada Placenta prévia
Anemia ou isoimunização Prolapso de cordão
Uso de drogas Anestesia geral
Malformação fetal Narcóticos 4 horas antes do parto
Tabela 15.5

SJT Residência Médica – 2016


166
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Síndrome da hipertensão pulmonar persis-


Fisiopatologia: tente: a hipoxemia, hipercapnia, acidose e hipotensão
sequência de eventos geradas pela asfixia aumentam a resistência vascular pul-
monar, favorecendo a persistência do padrão fetal circu-
1- Hipoxemia inicial.
latório e causando um shunt direita-esquerda por meio
2- Alterações adaptativas circulatórias e he- do canal arterial e forame oval, que intensificam ainda
modinâmicas mais a hipoxemia, caracterizando o quadro de hiperten-
€€ aumento do fluxo direita-esquerda através do são pulmonar persistente.
forame oval; Síndrome do desconforto respiratório neona-
€€ redistribuição do fluxo a fim de manter as circu- tal: a asfixia prejudica a síntese de surfactante pulmonar,
lações cerebral e miocárdica; pois a alteração do pH dificulta a via de incorporação da
colina por alteração na atividade enzimática. Além disso,
€€ redução do fluxo sanguíneo aos órgãos não vitais;
a vasoconstrição pulmonar, decorrente da acidose e hi-
€€ aumento da resistência vascular periférica e da percapnia, pode resultar em isquemia e lesão das células
pressão arterial inicialmente; produtoras de surfactante.
€€ falência miocárdica, cursando com queda no dé- Síndrome de aspiração meconial: líquido amnió-
bito cardíaco e na pressão arterial na persistên- tico meconial pode estar presente na vigência do processo
cia do processo. asfíxico, facilitando o desenvolvimento dessa síndrome.
3- Alteração no ritmo respiratório: apneia
primária seguida de apneia secundária.
Repercussões renais
4- Piora da hipoxemia, acidose lática e hi-
percapnia: a hipoxemia persistente impossibilita o Necrose tubular aguda: a persistência da vaso-
metabolismo celular aeróbico, com formação de ácido constrição renal gerada pela asfixia leva a isquemia tecidu-
lático e consequente redução do pH. A hipercapnia é al, que, associada à presença de mioglobina liberada pelas
fibras musculares, pode causar necrose tubular aguda.
agravada pela acidose e vasoconstrição periférica.
Trombose de veia renal: pode ocorrer pela coa-
5- Esgotamento dos mecanismos adaptati-
gulopatia e hipotensão decorrentes da asfixia.
vos: redução da oferta de oxigênio aos órgãos vitais.
6- Disfunção de múltiplos órgãos.
Repercussões gastrointestinais
Enterocolite necrosante: a vasoconstrição
persistente na circulação mesentérica favorece o sur-
Repercussões circulatórias gimento da enterocolite necrosante.
A hipóxia conduz inicialmente a diminuição da
atividade metabólica do miocárdio (redução do meta-
bolismo aeróbico), cursando com queda na frequência Repercussões hematológicas
cardíaca por ativação vagal e estímulo de barorrecep- CIVD: é consequente à hipoxemia, que, associa-
tores periféricos, sendo seguida pela ativação transitó- da à acidose e à hipotensão, resulta em lesão vascular,
ria do sistema nervoso autônomo simpático, que gera com aumento da permeabilidade e exposição de fato-
taquicardia transitória e fugaz. Após o esgotamento res ativadores da cascata de coagulação.
dessa fase, há redução progressiva da reserva de gli-
cogênio miocárdico (consumido pela glicólise), evo-
luindo com queda progressiva da frequência cardíaca e
Repercussões endocrinológicas
débito cardíaco. Ocorre, então, lesão tecidual com libe- Síndrome da secreção inapropriada de ADH:
ração de enzimas do músculo cardíaco e repercussões pode estar relacionada ou não a lesão do SNC. Carac-
na repolarização. O esgotamento energético sobrevém teriza-se por oligúria, hiperosmolaridade urinária, hi-
do choque cardiogênico que, associado ao efeito dire- posmolaridade sérica e hiponatremia dilucional.
to da hipoxemia sobre o SNC, resulta em hipotensão Hipotiroxinemia transitória; hiperinsulinismo
com comprometimento do retorno venoso, aumento transitório; hiperaldosteronismo transitório; defici-
da permeabilidade vascular, hipovolemia e lesão dos ência do hormônio de crescimento na infância.
demais órgãos e sistemas.

Repercussões metabólicas
Repercussões pulmonares Acidose metabólica: resultante da redução do
Apneia: pode surgir pela depressão do centro pH sanguíneo e dos níveis de bicarbonato séricos e
respiratório, secundária à hipoxemia no SNC. elevação da concentração sérica de lactato.

SJT Residência Médica – 2016


167
15  Reanimação neonatal

Hipoglicemia: é o distúrbio mais frequente motricidade ocular intrínseca e extrínseca (anisocoria,


e resultante do consumo dos estoques de glicogênio abolição do reflexo fotomotor). A ultrassonografia de
pelo metabolismo anaeróbico. Pode estar associada ao crânio transfontanela e o EEG são exames complemen-
hiperinsulinismo transitório e à deficiência do hormô- tares de importância ao diagnóstico. Não existe trata-
nio de crescimento. mento eficaz até o momento, exceto a prevenção.
Hipocalcemia: o estresse estimula a liberação de
calcitonina, que é potencializada pela liberação de cateco-
laminas, cortisol e glucagon, que estimulam sua liberação.
Tratamento
Hiponatremia: pode surgir acompanhada de
hiposmolaridade sérica nos casos de síndrome de se-
creção inapropriada de ADH. Primeiro passo
(intervenção pós-natal imediata)
Repercussões neurológicas Ocorre na sala de parto, onde é fundamental a
reanimação efetiva e rápida do recém-nascido asfixia-
Encefalopatia hipóxico-isquêmica do. Nesse momento deve-se evitar a perda de calor ex-
A encefalopatia hipóxico-isquêmica é uma sín- cessiva, assim como evitar a hipertermia; estabelecer
drome clínica com manifestações de intensidade vari- a respiração e expansão pulmonar. A necessidade de
ável, pois suas repercussões dependerão do tempo, da concentração de oxigênio de 100% durante a ventilação
gravidade e da duração da agressão do insulto hipóxi- de recém-nascidos asfixiados vem sendo questionada,
co-isquêmico no cérebro do recém-nascido. Tem como uma vez que o oxigênio está diretamente relacionado
principal causa a asfixia perinatal. O oxigênio e a gli- com a formação de radicais livres implicados com a le-
cose são os substratos necessários para a produção de são neurológica e de outros sistemas. Segundo o Pro-
energia que mantém o bom funcionamento da bomba grama de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira
de sódio, essencial para a estabilização do potencial de Pediatria, se após o nascimento o RN necessitar de
elétrico da membrana citoplasmática dos neurônios. ventilação com pressão positiva, esta deve ser realizada
O fornecimento de glicose para o SNC é feito pela cir- com oxigênio a 21%. Se a opção for iniciar com ar am-
culação sanguínea, visto que as reservas de glicose do biente, o oxigênio deve estar disponível e ser utilizado
SNC são praticamente inexistentes. Com a exaustão caso o paciente não apresente melhora nos primeiros
das reservas energéticas, ocorre falência nos meca- 30 segundos de ventilação com pressão positiva.
nismos de manutenção dos potenciais de membrana,
levando à despolarização e à liberação de neurotrans- Segundo passo
missores excitatórios (glutamato). A presença desses
neurotransmissores na fenda sináptica leva à ativação Devem ser tomadas medidas de suporte vital,
de receptores de membrana, que permitem o influxo como manutenção da oxigenação, da perfusão e da
de cálcio para o interior da célula neuronal. O aumen- temperatura corpórea; equilíbrio metabólico (glicose),
to do cálcio intracelular associado à reperfusão desen- hidroeletrolítico (especialmente os íons cálcio, sódio e
cadeia alguns eventos bioquímicos, como ativação de potássio) e acidobásico; além de medidas para evitar e
enzimas degradativas e geração de radicais livres. O minimizar edema cerebral e tratamento das convulsões.
acúmulo do cálcio citosólico é o principal fator dentre 1. Ventilação/oxigenação: deve-se tentar
as múltiplas lesões e a cascata de eventos irreversíveis manter os níveis de PaO2 e PaCO2 o mais próximos do
que causam a morte celular decorrente da hipóxia-is- normal. Evitar tanto a hipóxia como a hiperoxia e que
quemia e da reperfusão. a PaCO2 se situe abaixo de 35 mmHg. A hiperoxia pode
promover redução no fluxo sanguíneo cerebral (FSC)
O quadro clínico neurológico é variado: ou potencializar a lesão de reperfusão causada pelo
acúmulo de radicais livres. A hiperventilação também
Estágio 1: RN hiperalerta, com tremores gros- é contraindicada, pois a hipocapnia excessiva (PaCO2
seiros de extremidades, hiperatividade dos reflexos
< 25 mmHg) pode reduzir o FSC. A encefalopatia
miotáticos, baixo limiar para o reflexo de Moro e tônus
hipóxico-isquêmica frequentemente é acompanhada
muscular preservado.
de doenças pulmonares. A síndrome de aspiração de
Estágio 2: RN com letargia, hipotonia discreta, mecônio e a hipertensão pulmonar persistente devem
hipoatividade ou abolição dos reflexos arcaicos e ocor- ser tratadas, quando ocorrerem, para evitar um agra-
rência de crises convulsivas. vamento do processo hipóxico cerebral.
Estágio 3: RN em coma, com hipotonia global ou 2. Perfusão: é importante manter a pressão de
posturas anormais (descerebração, decorticação), au- perfusão cerebral (PPC), que consiste na diferença en-
sência de reflexos arcaicos e miotáticos e alterações da tre a pressão arterial média sistêmica (PAM) e a pressão

SJT Residência Médica – 2016


168
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

intracerebral (PIC) (PPC = PAM - PIC). A PIC do recém- 7. Tratamento de convulsões: ocorrem preco-
-nascido com EHI não é monitorada habitualmente na cemente na evolução clínica da EHI, são focais ou mul-
prática clínica. A perda da autorregulação cerebrovascu- tifocais. Recém-nascidos que têm pH < 7 no sangue de
lar faz com que a PPC seja reflexo direto da PAM, e a ma- cordão e que mantenham acidose metabólica 2 horas
nutenção da PPC requer uma PAM no mínimo entre 45 após o nascimento apresentam crises convulsivas fre-
e 50 mmHg. A oxigenação do sistema nervoso central quentemente nas primeiras 24 horas de vida. As crises
depende da PaO2 e da perfusão tecidual. A cardiopatia convulsivas estão relacionadas com o aumento do me-
isquêmica causada pela lesão asfíxica causa diminuição
tabolismo cerebral que ocorre na EHI. Os barbitúricos
da contratilidade cardíaca e do débito cardíaco. Para que
são preferíveis porque reduzem o metabolismo cere-
o débito cardíaco seja mantido em níveis adequados e
que se tenha uma pressão de perfusão efetiva, faz-se bral, promovendo a preservação de energia. Quando a
necessário o uso de drogas vasopressoras. convulsão é clinicamente bem-definida, a realização do
EEG pode ser retardada, mas se o recém-nascido está
3. Temperatura: a importância da manutenção em ventilação mecânica e paralisado com pancurônio, o
da temperatura corpórea dentro de uma faixa fisioló- EEG torna-se obrigatório. A distinção clínica entre con-
gica é uma medida básica de suporte vital. Deve-se evi- vulsões multifocais e movimentos mioclônicos rítmicos
tar a hipotermia e a hipertermia.
segmentares é muito difícil e, portanto, o EEG é funda-
4. Glicose: a glicemia deve ser mantida em ní- mental. A primeira escolha no tratamento das convul-
veis fisiológicos, ou seja, 50 mg/dL a 80 mg/dL. A hi- sões secundárias à encefalopatia hipóxico-isquêmica é
poglicemia é uma condição agravante, pois, além de o fenobarbital. Emprega-se dose de ataque de 40 mg/
reduzir reservas energéticas (ATP) e iniciar a cascata kg, podendo ser administrados inicialmente 20 mg/kg
de eventos bioquímicos, pode potencializar os amino- seguidos de mais 20 mg/kg se necessário. Se as convul-
ácidos excitatórios (aspartato e glutamato) e aumen-
sões persistirem, é necessária a associação de fenitoína
tar o tamanho da área de hipóxia-isquemia cerebral.
(20 mg/kg dose de ataque e manutenção de 4 a 8 mg/
Por outro lado, não adianta manter níveis de glicose
elevados como estratégia terapêutica. A hiperglicemia kg/dia). As convulsões são difíceis de controlar nos es-
pode causar elevação do lactato cerebral, aumento da tágios precoces da EHI (primeiras 72 horas), devendo-
lesão celular e do edema intracelular e vários distúr- -se atingir o nível máximo terapêutico do fenobarbital,
bios na regulação do tônus vascular cerebral. quando necessário, para controle das crises.
5. Balanço hidroeletrolítico:
cálcio: os níveis plasmáticos de cálcio devem
ser mantidos em 7 mg/dL a 11 mg/dL. Hipocalcemia Terceiro passo
é uma alteração metabólica comum no recém-nascido (intervenções preventivas)
asfixiado. Como os mecanismos que promovem lesão
neuronal da EHI estão relacionados com o aumento 1. Barbitúricos: os barbitúricos em altas doses
do cálcio intracelular, a utilização de níveis de cálcio podem promover redução do metabolismo cerebral e da
abaixo do normal com bloqueadores dos canais de cál- área de lesão isquêmica, especialmente o fenobarbital.
cio poderia ser interessante, desde que não causasse O tratamento com fenobarbital antes do desenvolvi-
efeitos cardiovasculares adversos, como o comprome- mento das manifestações clínicas da EHI tem sido estu-
timento da contratilidade miocárdica, além do maior dado como estratégia de neuroproteção. Estudo realiza-
risco de crises convulsivas secundárias à hipocalcemia; do com um número pequeno de recém-nascidos a termo
sódio e potássio: hiponatremia pode ocorrer gravemente asfixiados em que foi utilizado fenobarbital
por SSIHA ou por NTA. Hipercalemia é frequente nos (40 mg/kg dose única, sem dose de manutenção) com
recém-nascidos com insuficiência renal aguda decor- uma idade média de 6 horas de vida e antes do início de
rente de asfixia. A monitoração desses eletrólitos e sua crises convulsivas mostrou que aos três anos de idade
correção, quando alterados, se fazem necessárias. havia uma diferença significativa entre os dois grupos
com relação ao desenvolvimento neuropsicomotor,
6. Edema cerebral: o recém-nascido que sofre
sendo o prognóstico mais favorável no grupo tratado.
uma agressão hipóxico-isquêmica tem predisposi-
Porém o uso profilático ainda permanece controverso.
ção à sobrecarga hídrica, principalmente em função
da redução do débito urinário (oligúria) comum na 2. Bloqueadores dos canais de cálcio: o cálcio
EHI. Anúria ou oligúria (diurese inferior a 1 mL/kg/ é o mediador central de uma série de eventos bioquí-
hora) pode ocorrer por SSIHA (secreção inapropria- micos que causam a morte neuronal. É possível que a
da do hormônio antidiurético) ou por NTA (necrose redução dos níveis de cálcio no citosol no momento da
tubular aguda). Ambas as situações devem ser mane- agressão hipóxico-isquêmica seja benéfica, mas os efei-
jadas com restrição hídrica (oferta de 60 mL/kg/dia). tos adversos cardiovasculares desses bloqueadores não
No manejo do recém-nascido asfixiado, no entanto, compensam os eventuais benefícios da terapêutica. De
pode ser necessária a expansão volumétrica com soro momento, não existe indicação do uso de bloqueadores
fisiológico para manutenção da PAM e da PPC. do canal de cálcio em recém-nascidos asfixiados.

SJT Residência Médica – 2016


169
15  Reanimação neonatal

3. Varredores de radicais livres: os efeitos


neuroprotetores dos varredores de radicais livres po- Convulsões no
dem ser exercidos pela inibição da liberação do gluta-
mato. Sabe-se que o influxo de cálcio é necessário para período neonatal
a liberação de glutamato nas terminações nervosas
pré-sinápticas, levando à maior produção de radicais O diagnóstico de crise convulsiva no período ne-
livres, e estes, por sua vez, exercem ações sobre a li- onatal, apesar de muito importante, se torna difícil
beração de mais glutamato (importante aminoácido
muitas vezes devido à utilização de fármacos curari-
excitotóxico em células neuronais). Os inibidores da
produção de radicais livres são: o alopurinol, que inibe zantes, manifestações clínicas muitas vezes sutis e pela
a enzima xantina-oxidase; a indometacina, que inibe a presença de crises convulsivas eletroencefalográficas
ciclo-oxigenase; o ferro quelato, que reduz a produção sem manifestações clínicas. A maioria das convulsões
do radical hidroxila; e o magnésio, que inibe a peroxi- neonatais é identificada pela observação clínica, uma
dação lipídica. Todas essas ações são neuroprotetoras, vez que em nosso meio não há disponibilidade de recur-
mas a droga mais promissora para utilização como in-
sos diagnósticos na maioria dos serviços. Os tremores
tervenção neuroprotetora é o alopurinol.
muitas vezes podem ser confundidos com convulsões;
4. Sulfato de magnésio: não há indicações de-
entretanto, algumas características os diferenciam:
finidas para a administração de sulfato de magnésio
em recém-nascidos a termo com EHI. Suas possíveis €€ ausência de movimentos oculares anormais;
ações neuroprotetoras devem-se ao bloqueio do recep- €€ ocorrem principalmente quando o recém-nasci-
tor NMDA, ação antioxidante, anticitocina e antipla-
quetária. O efeito mais conhecido do magnésio é me- do é estimulado;
lhorar a perfusão fetal, promovendo vasodilatação e €€ interrupção quando é feita a contenção suave
aumento do fluxo sanguíneo uteroplacentário. É mui- ou flexão passiva;
to empregado em gestações com risco fetal iminente,
antes do nascimento. Entretanto, o efeito do magné- €€ os tremores são rítmicos, não tendo componen-
sio administrado à mãe antes do parto como neuro- tes rápidos e lentos;
protetor fetal e neonatal é discutível e, portanto, não
€€ os tremores não são acompanhados por bradicar-
está indicado para uso clínico com esse objetivo.
dia, taquicardia ou aumento da pressão arterial.
5. Hipotermia protetora: há diversos estudos
que empregam duas técnicas de resfriamento corpóreo, Além das convulsões neonatais que são diagnos-
a fim de inibir, reduzir e melhorar a evolução da lesão ticadas pela clínica e pelo eletroencefalograma simul-
cerebral e sequelas neurológicas decorrentes da EHI. A tâneo, existem também a convulsão clínica, que não
temperatura de resfriamento deve ser entre 32 °C e 34 apresenta correlação eletroencefalográfica, e a convul-
°C; temperaturas inferiores a 32 °C são menos neuro- são elétrica, que não é acompanhada por alterações clí-
protetoras e, abaixo de 30 °C, foram observados efeitos nicas. Foi demonstrado que 13% dos RNs apresentam
adversos sistêmicos graves. Os modelos experimentais apenas convulsões elétricas, 26% apresentam convul-
evidenciaram que a janela terapêutica é até 5,5 horas a 6
sões clínicas e elétricas e 58% evoluíram com manifes-
horas da agressão hipóxico-isquêmica. Na prática clínica,
tem sido recomendado o início da hipotermia imediata- tações clínicas sem correlação elétrica. Com base nes-
mente após a lesão e mantida por 72 horas. O resfria- ses achados, os autores propuseram uma classificação
mento corpóreo total deve ser iniciado antes de 6 horas, de convulsão de acordo com achados eletroclínicos.
com até 72 horas de duração, mantendo-se temperatura
retal entre 32 °C e 34 °C. A hipotermia tem sido efetiva
em reduzir sequelas neurológicas, principalmente em Classificação das convulsões neonatais
recém-nascidos com encefalopatia hipóxico-isquêmica Sutis Movimentos oculares
moderada e em melhorar o prognóstico em longo prazo Movimentos orobucolinguais
dos recém-nascidos com EHI. Hoje, já é sabido que a hi- Movimentos estereotipados de mem-
potermia neuroprotetora é a atitude mais eficaz na redu- bros
ção de danos e sequelas no futuro para os RN com EHI. (pedalar, nadar, boxear)
Clônica Focal
6. Efeitos das citocinas na neuroprote-
ção: os níveis elevados da IL-6 e do TNF-alfa no Multifocal
liquor de recém-nascidos a termo com EHI, prin- Tônica Focal
cipalmente quando relacionados com seus níveis Generalizada
plasmáticos, sugerem produção cerebral desses Mioclônica Focal
mediadores, em especial do TNF-alfa. Uma nova Multifocal
modalidade terapêutica poderá ser o emprego de Generalizada
bloqueadores cerebrais do TNF-alfa. Tabela 15.6

SJT Residência Médica – 2016


170
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

pes simples, toxoplasmose e citomegalovírus, são


Classificação das convulsões de acordo com
achados eletroclínicos responsáveis por 5% a 10% das convulsões neona-
tais. As meningites geralmente ocorrem no fim da
Convulsão clínica com sinal eletrocortical consistente primeira semana de vida, enquanto as encefalites
Sutil (RNPT) por herpes, na segunda semana. Dentre os dis-
Clônica focal e multifocal túrbios metabólicos, a hipoglicemia é a causa
Tônica focal
mais frequente de convulsão no RN, acometen-
Mioclônica generalizada e focal
do principalmente os pré-termos, os pequenos
Convulsão clínica sem sinal eletrocortical consistente para idade gestacional, os filhos de mãe diabé-
Mioclônica focal e multifocal tica e aqueles que sofreram asfixia perinatal.
Tônica generalizada As convulsões iniciam-se no segundo dia de vida e
Sutil (RNT) geralmente são focais. Quanto à hipocalcemia, as
Convulsão elétrica sem atividade clínica convulsiva convulsões também são precoces e, em 50% dos
RNPT: recém-nascido prematuro; RNT: recém-nascido casos, estão associadas às malformações cardíacas,
a termo sendo pouco frequentes. A hiponatremia pode re-
Tabela 15.7 sultar em convulsão quando estiver associada à sín-
drome da secreção inapropriada de hormônio anti-
diurético (SSIHA).
Atualmente, os autores consideram que as con-
vulsões elétricas sem atividade clínica convulsiva ge- Os erros inatos do metabolismo estão associa-
ralmente são encontradas nos RNs que estão fazendo dos com encefalopatia e convulsão e devem sempre
uso de anticonvulsivantes, suprimindo então as mani- ser suspeitados em qualquer RN sadio com deterio-
festações clínicas. Segundo Volpe, todas as convulsões ração clínica após início da alimentação.
clínicas são de origem epiléptica, e aquelas que não são O tratamento consiste na identificação e na
acompanhadas por atividade elétrica no eletroencefa- correção do defeito metabólico o mais precocemen-
lograma (EEG) têm origem em estruturas cerebrais te possível.
profundas (ou no diencéfalo ou no tronco cerebral) e, As hemorragias intracranianas, do tipo suba-
portanto, não são detectadas no EEG de superfície. racnóidea e subdural, frequentemente estão asso-
ciadas ao trauma de parto no RN a termo e podem
evoluir com convulsões nas primeiras 48 horas de
vida. A hemorragia peri-intraventricular é uma le-
Etiologia são característica do RN pré-termo, que se apresen-
ta nos primeiros três dias de vida.
A incidência relativa a várias causas de convul-
Nesses casos, as convulsões são do tipo tôni-
são no período neonatal apresentou mudanças nos
ca generalizada ou sutil e, geralmente, só ocorrem
últimos anos devido a medidas preventivas pré-natais
quando existe um envolvimento parenquimatoso
e pós-natais, novas técnicas de diagnóstico, identifi-
cerebral importante.
cação de etiologias pouco conhecidas e mudanças na
população de risco (aumento da sobrevida dos prema- A disponibilidade da ressonância magnética
turos). As convulsões no período neonatal podem ser do cérebro permite diagnosticar infarto cerebral
secundárias a uma doença sistêmica ou a doença pri- secundário ao tromboembolismo, sendo este uma
mária do SNC, e, em algumas situações, encontra-se causa de convulsão do tipo clônica focal no RN. A
uma etiologia multifatorial. A identificação da etiolo- administração inadvertida de anestésicos locais no
gia é importante para estabelecer o tratamento apro- couro cabeludo do recém-nascido no momento do
priado e determinar o prognóstico neurológico. parto pode levar a convulsões tônicas nas primei-
ras horas de vida, fazendo diagnóstico diferencial
A encefalopatia hipóxico-isquêmica é res- com encefalopatia hipóxico-isquêmica. A presença
ponsável por aproximadamente 65% das convul- de pupilas fixas e dilatadas e a ausência do reflexo
sões no período neonatal. Estas ocorrem nas primei- oculocefálico sugerem intoxicação pelo anestésico.
ras 24 horas de vida, frequentemente nas primeiras 12
A deficiência de piridoxina é responsável por
horas, podendo ser do tipo clônica multifocal, clônica
convulsões severas, clônicas multifocais refratá-
focal ou sutil. A severidade e a frequência das convul-
rias ao tratamento habitual. As convulsões apare-
sões são proporcionais ao grau da encefalopatia.
cem nas primeiras horas de vida, e até convulsões
As meningites bacterianas, principalmente intrauterinas têm sido relatadas. Na suspeita des-
causadas pelo estreptococo do grupo B e Escherichia se distúrbio, deve ser realizado um teste terapêuti-
coli, e as encefalites virais, causadas pelo vírus her- co com piridoxina endovenosa (EV).

SJT Residência Médica – 2016


171
15  Reanimação neonatal

Causas mais frequentes de convulsões em dife-


€€ gasometria arterial, ureia e amônia;
rentes grupos etários €€ ultrassonografia transfontanelar, tomogra-
fia computadorizada do cérebro e ressonância
Neonatal (nascimento a 28 dias de idade) magnética;
Asfixia €€ eletroencefalografia.
Hemorragia intracraniana
Hipocalcemia
Hipomagnesemia Estado de mal epiléptico
Hipoglicemia
Hiponatremia/hipernatremia
Definição e classificação
Infecções (intrauterinas, pós-natais) O estado de mal epiléptico (EME) foi descrito pela
primeira vez por Calmeil, em 1824, na sua tese de Epi-
Malformações congênitas do sistema nervoso central lepsie. Atualmente, é definido pela Liga Internacional
Erros inatos do metabolismo Contra a Epilepsia e pela Organização Mundial de Saúde
Síndrome de abstinência de drogas como a situação na qual uma convulsão persiste por um
Administração acidental de anestésicos
tempo suficientemente prolongado, ou é repetida com
frequência de forma a produzir uma condição epiléptica
Medicamentos fixa e duradoura. Esse tempo suficientemente prolonga-
Lactância e primeira infância (1 mês a 3 anos) do tem sido considerado como 30 minutos. A definição
Condições crônicas provenientes do período neonatal de EME se refere a qualquer tipo de convulsão, com ou
sem manifestação motora, que ocorra com tal frequência
Infecções (meningites, encefalites)
que não permita a recuperação da consciência entre as
Traumas - Distúrbios metabólicos crises. Há várias classificações de EME, e, portanto, tan-
Neoplasias tos tipos de EME quanto há de convulsões.
Transtornos degenerativos
Idiopáticas Complicações sistêmicas do estado de al epilép-
tico generalizado
Medicamentos
Sistema nervoso central
Infância e adolescência
Hipóxia/anóxia cerebral
Condições crônicas provenientes do período neonatal Edema cerebral
Infecções (meningites, encefalites) Hemorragia cerebral
Trombose venosa central
Traumas
Sistema cardiovascular
Distúrbios metabólicos Infarto do miocárdio
Neoplasias Hipo/hipertensão
Disritmias
Transtornos degenerativos Parada cardíaca
Idiopáticas Choque cardiogênico
Medicamentos Sistema respiratório
Apneia/hipopneia
Uso de drogas Insuficiência respiratória
Tabela 15.8 Pneumonia aspirativa
Hipertensão pulmonar e edema
Embolia pulmonar
Alterações metabólicas
Abordagem diagnóstica Desidratação
As convulsões neonatais raramente são idiopáti- Alterações eletrolíticas (por exemplo: hiponatremia,
cas; portanto, todo esforço deve ser realizado na iden- hipoglicemia, hipercalemia)
Acidose metabólica
tificação de sua etiologia. A história da gestação e do
Necrose tubular aguda
parto e os exames físico e neurológico detalhados do Necrose hepática aguda
RN são as etapas iniciais. Posteriormente, segue-se a Pancreatite aguda
investigação laboratorial: Outras
€€ hemograma com plaquetas e proteína C reativa; Disfunção de múltiplos órgãos
Coagulação intravascular disseminada
€€ glicose, sódio, cálcio e magnésio séricos;
Rabdomiólise
€€ estudo do liquor; Fraturas
€€ sorologia para infecções congênitas; Tabela 15.9

SJT Residência Médica – 2016


172
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Tratamento
As convulsões neonatais representam especificamente um insulto neurológico, portanto devem ser identifi-
cadas e tratadas ao mesmo tempo em que se realiza a investigação etiológica. O tratamento das convulsões neo-
natais é realizado atualmente com drogas anticonvulsivantes que são bastante eficazes, pois estudos sugerem que
as crises convulsivas repetitivas ou prolongadas resultam em injúria cerebral significativa. Além do tratamento
etiológico e do controle das convulsões, alguns cuidados com o RN são fundamentais, tais como:
€€ estabilizar o RN do ponto de vista respiratório e hemodinâmico;
€€ corrigir distúrbios metabólicos e eletrolíticos; manuseio mínimo do RN e mantê-lo em um ambiente o mais
tranquilo possível;
€€ monitoração contínua (frequências respiratória e cardíaca, saturação).

Principais drogas anticonvulsivantes


Fenobarbital
É a droga de escolha para as crises convulsivas e a primeira a ser indicada. É eficaz no controle de 75% das
crises convulsivas.
1. Dose de ataque: 20 mg/kg/dose EV, feito lentamente em 10 a 15 minutos, podendo utilizar doses adi-
cionais de 5 a 10 mg/kg/dose, a cada 15 minutos, até completar uma dose total de 40 mg/kg/dose. Nos RNs asfi-
xiados ou com disfunção renal ou hepática, a dose de 40 mg/kg de fenobarbital pode levar à sedação excessiva por
vários dias, dificultando sua avaliação neurológica, além de desenvolver efeitos tóxicos no sistema cardiovascular.
O fenobarbital EV pode levar ao colapso cardiocirculatório no prematuro extremo.
2. Dose de manutenção: 3,5 a 5 mg/kg/dia a cada 12 horas, EV, iniciada 12 horas após a dose de ataque.
O nível sérico terapêutico do fenobarbital é de 20 a 40 mg/mL. A monitorização desses níveis séricos deve ser
realizada na ausência de resposta ao tratamento e na suspeita de intoxicação pela droga.

Fenitoína
A fenitoína está indicada quando não houver resposta ao fenobarbital, sendo então associada ao esquema
terapêutico.
1. Dose de ataque: 15 a 20 mg/kg/dose EV, numa velocidade de infusão 1 mg/kg/min para evitar arritmias
cardíacas ou hipotensão.
2. Dose de manutenção: 57 mg/kg/dia a cada 12 horas, iniciada 12 horas após a dose de ataque. Assim
que for possível, deve-se suspender a fenitoína, mantendo o fenobarbital como única droga anticonvulsivante.

Benzodiazepínicos
Os benzodiazepínicos mais utilizados são o diazepam, o lorazepam e, no nosso meio, o midazolam. Atual-
mente, devido a algumas restrições, o diazepam é raramente indicado nas convulsões neonatais. O lorazepam tem
ação semelhante à do diazepam, porém possui meia-vida maior e leva a menores sedação, hipotensão e depressão
respiratória. A dose é de 0,05 a 0,1 mg/kg EV em 2 a 3 minutos, produzindo um efeito anticonvulsivante rápido
em alguns minutos. Essa dose pode ser repetida a cada 4 a 8 horas. No Brasil, não dispomos da apresentação in-
jetável. Dentre os benzodiazepínicos, o midazolam é o mais utilizado em nosso meio, sendo indicado nos
casos severos de convulsões que não respondem ao fenobarbital ou à fenitoína. Após controle das crises
convulsivas, o desmame do midazolam deve ser feito lentamente, pelo risco da síndrome de abstinência.

Outras drogas
O tiopental pode ser indicado nos casos mais graves, desde que o RN esteja em ventilação mecânica e com
controle rigoroso dos seus efeitos colaterais.
Os estudos relatam uma incidência de 10% a 30% de epilepsia posterior às convulsões neonatais. Segundo
Volpe, a decisão de suspender o tratamento, seja no período neonatal, seja posteriormente, deve ser baseada no
exame neurológico do RN, na etiologia da convulsão e no eletroencefalograma. Caso se opte por manter o trata-
mento depois do período neonatal, o fenobarbital é a droga de escolha.

SJT Residência Médica – 2016


173
15  Reanimação neonatal

Droga Dose de ataque IV Dose de manutenção


Fenobarbital 20-40 mg/kg 3,5-5 mg/kg/dia EV
5-7 mg/kg/dia VO
Difenil-hidantoína 15-20 mg/kg EV 5-7 mg/kg/dia EV
Midazolam 0,2-0,5 mg/kg EV 0,1-0,5 mg/kg/hora EV contínuo

Tiopental 10 mg/kg EV 0,5-5 mg/kg/hora EV contínuo

Tabela 15.10

Manejo geral do estado de mal epiléptico


ABC
Avaliação e controle da via aérea
Avaliação da ventilação e circulação
Oxímetro de pulso
Oxigênio por máscara ou cânula nasotraqueal
Se for necessária intubação intratraqueal (considerar o paciente com estômago cheio e usar a sequência rápida de
intubação)
Monitorização dos sinais vitais. Se houver hipertermia, tratá-la
História, exame físico e neurológico
Identificar e corrigir problemas metabólicos
Exames: glicemia, níveis de drogas antiepilépticas, dosagem de cálcio e magnésio, provas de funções hepática e re-
nal, eletrólitos plasmáticos, exame toxicológico
Acesso intravenoso
Estudo inicial
Ultrassonografia transfontanela
Tomografia axial computadorizada (TAC) de crânio
Eletroencefalograma
Punção lombar, se existe dúvida de infecção. Idealmente, deve-se realizar depois da TAC e quando cessarem as convulsões
Tabela 15.11

Prognóstico
A etiologia e a gravidade do processo neurológico responsável pela convulsão neonatal são o fator deter-
minante do prognóstico neurológico do RN. Este é reservado para encefalopatia hipóxico-isquêmica grave, erro
inato do metabolismo, encefalopatia por herpes, hemorragia parenquimatosa e malformações do SNC. A norma-
lidade do exame neurológico e do EEG intercrises relaciona-se com uma evolução neurológica favorável.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

16
Policitemia

Introdução
Definição: hematócrito venoso acima de 65%.
É uma das alterações hematológicas mais frequentes em recém-nascidos e promove aumento do consumo de
glicose pela massa eritrocitária, podendo gerar hipoglicemia como manifestação clínica. À medida que o hemató-
crito aumenta, acontecem uma elevação na viscosidade e um decréscimo no fluxo sanguíneo. Consequentemente,
pode haver prejuízo à microcirculação, observada principalmente na circulação pulmonar e mesentérica. À medi-
da que a viscosidade aumenta, ocorre a redução da oxigenação do tecido e da glicemia e há maior tendência para
formar microtrombos.

Etiologia
Embora a etiologia mais comum seja a idiopática, as causas identificáveis resultam basicamente de
dois mecanismos:
175
16 Policitemia

Ativa (eritropoese intrauterina aumentada) Passiva (secundária às transfusões de eritrócitos)


Hipoxia intrauterina Clampeamento tardio do cordão
Insuficiência placentária Intencional
Recém-nascidos PIG Parto não assistido
Pós-maturidade Transfusão materno-fetal
Toxemia gravídica Transfusão gêmeo-gemelar
Drogas (propranolol)
Doença materna severa
Tabagismo materno
Diabetes materno
Hiper ou hipotireoidismo neonatal
Anormalidades cromossômicas Trissomias do 13, 18 e 21
Visceromegalia hiperplásica (síndrome de Beckwith)
Deformação eritrocitária fetal diminuída
Tabela 16.1

Manifestações clínicas
Nos recém-nascidos sintomáticos, as apresentações mais comuns relacionam-se a anormalidades do SNC,
incluindo letargia, hipotonia, tremores e irritabilidade. O envolvimento severo do SNC pode resultar em con-
vulsões. É comum a hipoglicemia. Outros sistemas orgânicos podem estar envolvidos, incluindo o trato
GI (vômitos, distensão, ECN), os rins (trombose da veia renal e insuficiência renal aguda) e o sistema cardio-
pulmonar (desconforto respiratório, insuficiência cardíaca congestiva). As manifestações periféricas podem
incluir a gangrena e o priapismo. É importante observar que os recém-nascidos com policitemia são frequen-
temente assintomáticos.

Tratamento
Como a policitemia resulta de uma série de etiologias diferentes, é difícil determinar se as consequências
dependem mais da etiologia ou da elevação crônica da viscosidade. Há controvérsia quanto às diretrizes para o
tratamento. Os RN assintomáticos com hematócrito venoso periférico entre 60% e 70% podem ser tratados com
aumento da taxa hídrica, repetindo-se o hematócrito entre 4 a 6 horas. Naqueles com hematócrito venoso central
≥ 70% independentemente da sintomatologia ou naqueles com hematócrito central ≥ 65% sintomáticos está in-
dicada a exsanguineotransfusão parcial.
As exsanguineotransfusões parciais podem ser realizadas por meio de cateter venoso umbilical, cateter ar-
terial umbilical ou cateter venoso periférico. Retiram-se alíquotas iguais a 5% do volume sanguíneo estimado e
substituem-se as mesmas por plasma fresco congelado, plasmanato, albumina ou soro fisiológico. Dá-se prefe-
rência às duas últimas soluções, uma vez que elas evitam o risco de infecções adquiridas por transfusão associado
ao uso do plasma. A quantidade de volume sanguíneo a ser trocada por cristaloide ou coloide pode ser calculada
utilizando-se a seguinte fórmula:

Volume sanguíneo Ht observado - Ht desejado (55%) Volemia Peso corporal


= × ×
a ser trocado Ht observado (85-100 mL/kg) (kg)

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

17
Distúrbios respiratórios

nar total, o batimento de asa do nariz, sinal clínico de


Introdução desconforto respiratório no neonato, é um mecanis-
mo compensatório importante. O gemido expiratório,
A transição da vida intrauterina para a vida ex- causado pela expiração contra as cordas vocais parcial-
trauterina implica grandes mudanças no sistema mente fechadas, resulta numa melhora da capacidade
respiratório. Logo após o nascimento, o líquido residual funcional (CRF) e da oxigenação. Finalmente,
dentro dos pulmões é reabsorvido, sendo estabe- a frequência respiratória maior faz com que a defini-
lecida a capacidade residual funcional adequada. ção de taquipneia seja acima de 60 ipm.
Há um aumento do fluxo sanguíneo pulmonar de
oito a dez vezes em relação ao nível intrauterino;
isso resulta na redução da resistência vascular Principais afecções respiratórias do período
pulmonar. Com essas alterações complexas, não é de neonatal
supreender que as doenças respiratórias sejam a prin- Síndrome do desconforto respiratório neonatal (doença
cipal causa de morbimortalidade no período neonatal. das membranas hialinas)
Pneumonia
A sintomatologia respiratória no RN é diferen- Taquipneia Transitória do RN
te daquela em crianças maiores, pelas peculiaridades Síndrome de Aspiração de Mecônio
fisiológicas. As retrações são mais pronunciadas no Síndrome da Hipertensão Pulmonar Persistente
RN, particularmente no pré-termo, pela intensa com- Apneia do RN
placência da caixa torácica. Como a resistência nasal Displasia Broncopulmonar
do RN contribui com até 50% da resistência pulmo- Tabela 17.1
177
17  Distúrbios respiratórios

A partir da deficiência de surfactante pulmonar


Síndrome do desconforto ocorre aumento da tensão superficial alveolar, geran-
respiratório neonatal (doença do redução da complacência pulmonar e formação de
microatelectasias difusas. A parede torácica altamente
das membranas hialinas) complacente do prematuro oferece menos resistência
que a do neonato maduro contra a tendência natural
dos pulmões ao colapso; como resultado, há tendência
à formação de atelectasias. A impossibilidade de de-
Definição senvolver uma capacidade residual funcional e a
tendência de os pulmões afetados sofrerem atelec-
A síndrome do desconforto respiratório tasias correlacionam-se, portanto, com as tensões
(SDR) é caracterizada por uma insuficiência res- superficiais altas e ausência do surfactante. Há um
piratória de grau variável, relacionada à ima- consequente aumento do shunt intrapulmonar (áreas
turidade pulmonar, com consequente produção perfundidas e não ventiladas). Isso leva a hipoxemia
deficiente de surfactante pulmonar. Ocorre, e acidose, vasoconstrição pulmonar, aumento do
portanto, principalmente em prematuros. De to- shunt extrapulmonar (cardíaco) direita-esquerda,
dos os problemas respiratórios do RN, a SDR consti- hipofluxo pulmonar e isquemia do epitélio alveo-
tui-se numa das mais graves e frequentes, sendo causa lar com extravasamento de plasma, liberação de
importante de morbimortalidade na primeira semana mediadores inflamatórios e edema resultantes da
de vida. Alguns autores definem a SDR não como uma lesão celular, formando as membranas hialinas
doença, mas como uma consequência do desenvolvi- (característica anatomopatológica).
mento de um pulmão deficiente em surfactante. Além da deficiência do surfactante, contribui
para a etiopatogenia da síndrome do desconforto
respiratório neonatal a imaturidade estrutural e
morfológica dos pulmões devido principalmente
à prematuridade, e que ocasiona, entre outros
Incidência problemas, uma troca gasosa ineficiente e a insta-
bilidade da caixa torácica, tornando a respiração
A incidência e a gravidade do quadro estão in-
menos efetiva e predispondo a um maior trabalho
versamente relacionadas à idade gestacional. A SDR respiratório, com maiores chances de fadiga mus-
atinge quase 80% dos recém-nascidos com idade ges- cular da caixa torácica.
tacional entre 26 a 28 semanas, 20% a 30% dos recém-
-nascidos com idade gestacional entre 30 e 31 sema-
nas, e raramente após 37 semanas.
Quadro clínico
Nos casos não complicados, a SDR “clássica” apre-
senta uma evolução clínica típica. Os sinais e sintomas
Fisiopatologia que indicam insuficiência respiratória (taquipneia, ge-
mido expiratório, batimento de asa do nariz, retração
de caixa torácica e cianose) iniciam-se precocemente,
Produção de surfactante aparecendo em geral logo após o nascimento. Nas horas
Durante o desenvolvimento pulmonar, a diferen- seguintes observa-se uma piora progressiva do descon-
ciação celular em pneumócitos I e II inicia-se entre a forto respiratório, atingindo o pico por volta de 36 a 48
20ª e 24ª semanas de gestação. Os pneumócitos II horas. Caso não ocorram complicações, os sinais e sin-
são responsáveis pela produção do surfactante tomas regridem gradativamente após 72 horas, alcan-
pulmonar e sua secreção é detectável a partir çando a função respiratória normal por volta de uma
de 20 semanas de gestação, sendo que somente semana de vida. Nos casos de má evolução, os sinais clí-
a partir da 35ª semana este é capaz de manter nicos se acentuam com crises de apneia e deterioração
a estabilidade alveolar. O surfactante é com- do estado hemodinâmico e metabólico. A evolução do
posto por fosfolípides (p. ex., fosfatidilcolina, desconforto respiratório pode ser quantificada pelo bo-
fosfatidilglicerol) e apoproteínas; dessa forma, letim de Silverman-Anderson (BSA) (Figura 17.2).
as concentrações de fosfatidilcolina e de fosfa- Deve-se lembrar, entretanto, que essa evolução
tidilglicerol são utilizadas como marcadores de clássica foi modificada com a instituição de medidas tera-
maturação pulmonar. O surfactante reveste in- pêuticas, como o suporte ventilatório precoce e o uso de
ternamente os alvéolos, diminuindo a tensão surfactante exógeno. Além disso, nos recém-nascidos de
superficial na interface ar-líquido e mantendo a extremo baixo peso, a expressão clínica do desconforto
estabilidade alveolar, impedindo o colapso alve- respiratório é muito pobre; nesses pacientes é comum o
olar ao final da expiração. aparecimento precoce de crises de apneia e cianose.

SJT Residência Médica – 2016


178
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Prematuridade

Fatores genéticos Fatores antenatais

Maturação pulmonar

Instabilidade da  Permeabilidade Deficiência do


caixa torácica alveolocapilar surfactante alveolar

Eventos pós-natais Surfactante


exógeno
Estratégia ventilatória

Fadiga muscular Edema pulmonar  Surfactante ativo


alveolar

Gravidade da SDR

Figura 17.1  Fatores relacionados com a gravidade da SDR.

Movimentos de Retração costal Retração Batimento de Gemido Nota


tórax e abdome inferior xifoide asas de nariz expiratório (somar)

Sincronismo Retração ausente ou mínima Ausente Ausente

Declínio Retração leve ou moderada Discreto Audível com


inspiratório estetoscópio

Balancim Retração intensa Intenso Audível sem


estetoscópio

Figura 17.2  Boletim de Silverman-Anderson. Nota acima de 4 expressa dificuldade respiratória de moderada a grave.

Quadro radiológico
Infiltrado reticulogranular difuso bilateralmente (vidro moído) com broncogramas aéreos su-
perpostos. Esse padrão representa as áreas de atelectasia, podendo coexistir edema pulmonar. Quanto mais
intenso o processo, mais evidente é a diminuição da transparência pulmonar e maior é o borramento da silhueta
cardíaca. Os achados radiológicos da SDR são de difícil distinção da pneumonia neonatal causada pelo
estreptococo do grupo B.

Do ponto de vista radiológico, classifica-se a SDR como


LEVE: padrão reticulogranular difuso e broncogramas aéreos mínimos preservando a silhueta cardíaca
MODERADA: maior coalescência das opacidades, presença de broncogramas aéreos e borramento da silhueta cardíaca
GRAVE: opacificação completa do pulmão
Tabela 17.2

SJT Residência Médica – 2016


179
17  Distúrbios respiratórios

€€ evidências de diminuição da complacência pul-


monar e da capacidade residual funcional e au-
mento do trabalho respiratório;
€€ necessidade de oxigênio inalatório e/ou supor-
te ventilatório com pressão positiva contínua
de vias aéreas (CPAP) ou intermitente (IMV)
por mais de 24 horas para manter os valores de
PaO2 e PaCO2 dentro da normalidade;
€€ radiografia de tórax com densidades reticulo-
granulares parenquimatosas difusas e bronco-
gramas aéreos, além de um volume pulmonar
baixo mesmo após um bom esforço respiratório
com 6 a 24 horas de vida;
€€ ausência de outras causas que justifiquem a in-
suficiência respiratória.

Figura 17.3  Aspecto radiológico de SDR leve.


Diagnóstico diferencial
Dentre os diagnósticos diferenciais mais impor-
tantes para a SDR destacam-se as pneumonias congê-
nitas, em especial a pneumonia por estreptococos
beta-hemolíticos do grupo B; a taquipneia transi-
tória ou síndrome do pulmão úmido; as cardiopatias
congênitas; e as malformações pulmonares.

Tratamento
As medidas terapêuticas na SDR visam funda-
mentalmente conservar uma oxigenação adequada,
ventilar o neonato adequadamente e medidas gerais
de manutenção térmica (reduz-se o consumo de O2),
Figura 17.4  Aspecto radiológico de SDR grave.
calórica e hídrica. Cerca de 70% dos RNs com SDR
melhoram apenas com o uso de O2 isoladamente;
os 30% restantes requerem algum tipo de assis-
tência ventilatória, o que poderá ser feito pelo
uso da pressão positiva contínua (CPAP) ou ven-
Diagnóstico tilação mecânica (VM).
O diagnóstico pré-natal da doença baseia-se
em testes bioquímicos para detecção do grau de
maturidade pulmonar realizados no líquido amni-
ótico. Os principais testes realizados são: relação
Medidas terapêuticas
lecitina/esfingomielina (quando maior que 2, há
indicação de maturidade) e dosagem de fosfatidil- Cuidados gerais
glicerol e fosfatidilcolina no líquido amniótico.
Os princípios da terapia de suporte dos recém-
Até o momento, os critérios diagnósticos dispo- -nascidos prematuros em geral e naqueles com SDR
níveis para a SDR não são precisos; no entanto, suge- em particular estão bem estabelecidos desde o início
rimos a aplicação dos critérios adotados por Walther e da década de 1970. Com o advento do surfactante exó-
Taeusch em 1992, que incluem: geno e de novas técnicas ventilatórias, consegue-se,
€€ evidência de prematuridade; atualmente, na grande maioria dos casos, o controle
da fase inicial da insuficiência respiratória. No entan-
€€ evidência de imaturidade pulmonar; to, esses pacientes apresentam graus variados de in-
€€ desconforto respiratório de início precoce, em suficiência de múltiplos órgãos, que têm determinado
até três horas de vida; o prognóstico, principalmente dos neonatos de muito

SJT Residência Médica – 2016


180
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

baixo peso. Por isso, são fundamentais a monitoriza-


Infecção
ção constante e a instituição precoce da terapêutica
adequada, evitando-se os grandes riscos de iatroge- Deve-se lembrar que uma das principais causas
nias e tendo-se em mente as possíveis complicações que desencadeiam o trabalho de parto prematuro são
da própria doença. Tal terapêutica só pode ser aplicada as infecções antenatais. Procurar afastar o processo
em regime de cuidados intensivos, com recursos hu- infeccioso através da avaliação de leucogramas, proteí-
na C reativa e hemoculturas seriadas. Se o concepto foi
manos especializados e com infraestrutura de equipa-
exposto a uma situação de alto risco infeccioso (corio-
mentos e de laboratórios adequados.
amnionite, amniorrexe prolongada, infecção materna
etc.) ou exames laboratoriais alterados ou algum sinal
Estabilização inicial clínico sugestivo de sepse, considerar o uso de antibio-
ticoterapia sistêmica (penicilina + aminoglicosídeo).
A asfixia perinatal é, ainda, um dos principais Após 72 horas, reavaliar se ainda há necessidade de
fatores que limitam a sobrevida dos neonatos que cur- continuar a antibioticoterapia.
sam com a SDR, em particular em nosso meio. Logo,
é fundamental a presença, na sala de parto, de uma Surfactante exógeno
equipe de profissionais apta para a reanimação ime-
diata e eficiente do recém-nascido. Vale lembrar que A administração de surfactante exógeno
deve ser evitado o uso de ventilação com pressão po- precocemente na DMH tem demonstrado reduzir
sitiva com altos volumes correntes durante o processo substancialmente a mortalidade neonatal nessa
população. O surfactante exógeno tem sido utilizado
de reanimação do paciente na sala de parto, pois uma
com duas finalidades principais: profilático e no trata-
série de evidências experimentais demonstra que o
mento da doença estabelecida. Na forma profilática ou
processo de baro/volutrauma inicia-se ao nascimento,
preventiva, tem sido indicado mais frequentemente em
mesmo com curtos períodos de ventilação. RNPT extremos (< 31 semanas), de muito baixo peso
(< 1.500 g), imediatamente e até 10 a 20 minutos após
Temperatura o nascimento, para evitar que o RN desenvolva DMH.
O surfactante parece se distribuir de forma mais uni-
Colocar o recém-nascido em ambiente aquecido forme quando administrado imediatamente ao nasci-
(sob fonte de calor radiante ou incubadora) para evitar mento, ainda com os pulmões cheios de líquido. O uso
a hipotermia, diminuindo, assim, o consumo de oxigê- de surfactante exógeno tem cada vez mais despertado
nio. Além da hipotermia, deve-se evitar a hipertermia, interesse não somente como terapia de reposição em
procurando manter a temperatura na superfície abdo- RNPT com DMH, mas também em outras condições em
minal ao redor de 36,5 °C. que o surfactante está reduzido ou inativo.

Oferta de líquidos
Deve-se ajustar a oferta hídrica de acordo com a
idade gestacional, o tempo de vida, o débito urinário e
os procedimentos a que o neonato estiver sendo sub-
metido (fototerapia, ventilação mecânica etc.).

Suporte hemodinâmico
Na presença de hipotensão arterial associada a
taquicardia, diminuição do débito urinário e acidose Figura 17.5  SDR pré-surfactante.
metabólica persistente na ausência de hipoxemia, uti-
lizar expansores de volume (SF 0,9%, 10 mL/kg, infu-
são endovenosa em 10 a 30 minutos). Na presença de
hipotensão arterial sem sinais de hipovolemia, iniciar
infusão e uso de drogas vasoativas.

Nutrição
Manter jejum oral, com velocidade de infusão de
glicose de 4 a 6 mg/kg/min, com controle de glicemia
capilar e glicosúria. Ofertar nutrição parenteral o mais
precocemente possível e, após estabilização clínica, in-
troduzir dieta enteral mínima. Figura 17.6  SDR após uma dose de surfactante.

SJT Residência Médica – 2016


181
17  Distúrbios respiratórios

Limites aceitáveis dos níveis de gases


sanguíneos na fase aguda da SDR
pH nas primeiras 6 horas de vida > 7,20
pH a partir de 6 horas de vida > 7,25
PaO2 50 a 60 mmHg
PaCO2 40 a 60 mmHg
SatO2 89% a 92%
Tabela 17.3

Pressão positiva contínua de vias aéreas


Figura 17.7  SDR após duas doses de surfactante. (CPAP)
Recomenda-se o seu uso precoce para prevenir o
colapso dos alvéolos ainda abertos e melhor conserva-
ção da função do surfactante alveolar, o que leva à ne-
cessidade de menor suporte ventilatório no curso da
Oxigenoterapia doença. Com base nesse fato, a CPAP é largamente uti-
Ao oferecer o oxigênio, este deve ser umidificado, lizada no tratamento de recém-nascidos com SDR. No
aquecido e com concentrações (FiO2) sempre conheci- entanto, ainda não há um consenso quanto à melhor
das. Após o início da oxigenoterapia, é fundamental a época para a sua administração. Além disso, alguns
monitorização rigorosa dos gases sanguíneos, seja por autores defendem a tese do uso profilático da CPAP
punções arteriais intermitentes, por coleta em cateter associado à terapêutica de reposição do surfactante
arterial umbilical ou através de monitores não invasi- exógeno, com o objetivo de diminuir a lesão pulmonar
vos (oxímetro de pulso). Deve-se lembrar, ainda, que provocada pelo respirador. Entretanto, até o momen-
a monitorização não invasiva da saturação de oxigê- to os dados são de pesquisas, sendo necessários novos
nio não descarta a necessidade de coletas periódicas estudos para que essa recomendação seja validada.
de gasometrias arteriais. Na fase aguda da SDR, nas
primeiras 72 horas de vida, procurar manter um su-
Ventilação mecânica convencional
porte ventilatório suficiente para obter níveis de gases
sanguíneos dentro dos padrões aceitáveis para a doen- O aumento da sobrevida dos recém-nascidos com
ça e não com o objetivo de se obter o padrão normal SDR pode ser atribuído em grande parte aos avanços
para lactentes ou adultos. Recomenda-se ajustar os no suporte ventilatório. Apesar do surgimento de no-
parâmetros ventilatórios para alcançar os valores ga- vas técnicas convencionais e não convencionais, a es-
sométricos listados na Tabela 17.3. tratégia ventilatória mais utilizada nos pacientes com
SDR ainda é a ventilação mandatória intermitente
(IMV) através dos respiradores convencionais cicla-
Halo ou capacete dos a tempo, limitados a pressão e de fluxo contínuo.
A estratégia ventilatória ideal na SDR deve ser a de
O uso do oxigênio inalatório pode ser útil nas maximizar a oxigenação, com o mínimo de exposição
primeiras horas de vida, porém, como a SDR é uma possível ao oxigênio e aos altos níveis de suporte de
doença progressiva, essa estratégia habitualmente é pressão, através da otimização da CRF e da ventilação.
insuficiente nas horas subsequentes para manter as Sugerem-se os seguintes princípios como estratégia
trocas gasosas. Portanto, ao se optar pelo halo, é fun- ventilatória para proteção pulmonar:
damental observar constantemente o paciente, com
€€ procurar sempre individualizar a estratégia
avaliações periódicas do quadro clínico e dos níveis de
ventilatória;
gases sanguíneos, procurando não retardar o início de
terapêuticas mais efetivas. A oxigenoterapia inalatória €€ utilizar sempre o menor pico de pressão possível;
só está indicada aos pacientes que consigam manter a €€ limitar o tempo de uso de FiO2 acima de 0,6;
respiração espontânea e a CRF através do aumento da €€ não esquecer de utilizar a PEEP e prevenir a
frequência respiratória e do gemido expiratório. Em ocorrência do autoPEEP;
qualquer outra situação, a administração de oxigênio
€€ aceitar a acidose respiratória na fase aguda da
sob forma inalatória não será efetiva. Iniciar com FiO2
doença – “hipercapnia permissiva”;
entre 0,40 e 0,60 e observar a SatO2 pelo oxímetro de
pulso, o quadro clínico e, após 15 a 30 minutos de es- €€ nunca retardar o início da retirada do respirador;
tabilização, colher gasometria arterial para decidir se €€ procurar utilizar terapias auxiliares, como cor-
há necessidade de estratégias mais agressivas. ticosteroide antenatal e o surfactante exógeno.

SJT Residência Médica – 2016


182
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A manipulação racional dos parâmetros do res- modo que os ajustes dos parâmetros ventilató-
pirador para otimizar o suporte ventilatório só é pos- rios devem ser dinâmicos na SDR. Se for possível
sível com uma monitorização contínua e adequada do o emprego da curva fluxo versus tempo, procurar
paciente, principalmente dos gases sanguíneos e, se ajustar o tempo inspiratório de tal modo que o
possível, da mecânica pulmonar. Vale lembrar alguns fluxo inspiratório permaneça em zero por um
pontos relativos à SDR que influenciam a estratégia mínimo período possível. E o contrário, o tempo
ventilatória convencional: expiratório deve ser ajustado para manter o fluxo
expiratório em zero o máximo de tempo possível.
€€ em relação à mecânica pulmonar, na fase aguda
da SDR observa-se diminuição da complacência
e pouca alteração da resistência de vias aéreas, Ventilação convencional com
de modo que a constante de tempo (complacên- novos objetivos:
cia versus resistência) está diminuída. Essas ca-
racterísticas permitem utilizar como estratégia Hipercapnia permissiva
ventilatória tempos inspiratórios curtos de 0,2 Durante muitos anos utilizou-se a ventilação
a 0,3 segundos e frequências respiratórias altas. pulmonar mecânica no sentido de manter a normo-
Vários estudos clínicos mostram que o uso de capnia, empregando-se para isso volumes correntes e
tempos inspiratórios prolongados e frequências suporte de pressão elevados. No entanto, dados de ex-
respiratórias baixas levam a maior incidência de perimentos em animais e em humanos têm sugerido
complicações, como a síndrome de escape de ar. que essa estratégia ventilatória está associada à hiper-
€€ na SDR, a oxigenação está diretamente relacio- distensão alveolar, ocasionando o baro/volutrauma,
nada à pressão média de vias aéreas (MAP), que que pode agravar a lesão pulmonar aguda já instalada
corresponde à área total sob a curva pressão ver- (lesão pulmonar induzida pelo respirador). No perío-
sus tempo de um ciclo respiratório controlado do neonatal, apesar da diminuição da mortalidade, o
pelo respirador. Como a CRF está diminuída na grande desafio, ainda, é o combate à displasia bron-
SDR, para alcançar uma MAP “ótima” em termos copulmonar (DBP). Entre os vários fatores associados
de oxigenação, dentre os parâmetros controla- com a DBP incluem-se a duração e a intensidade do
dos pelo aparelho, a manipulação da PEEP é a suporte ventilatório. Vários estudos mostram que as
que traz melhores resultados. A PEEP estabiliza estratégias ventilatórias que provocam hipocapnia
a CRF, melhora a complacência e diminui o dese-
nos primeiros dias de vida aumentam o risco de ocor-
quilíbrio entre ventilação e perfusão. No entanto,
rência da DBP. É possível que estratégias ventilatórias
deve-se lembrar que o aumento da PEEP reduz
que evitem a hipocapnia e tolerem a hipercapnia mo-
o diferencial de pressão (Pinsp-PEEP), podendo
derada possam reduzir a incidência e a gravidade da
prejudicar a eliminação do CO2, uma vez que o
volume corrente é mantido pela diferença entre a DBP. Nesse sentido, vários autores defendem a ideia
Pinsp e a PEEP. Para obter uma Pinsp adequada, da hipercapnia permissiva, definida como uma mo-
observar o movimento da parede torácica, que dalidade de ventilação pulmonar mecânica na qual
deve ser ao redor de 0,25 a 0,5 cm de elevação da se procura evitar as altas pressões em vias aéreas e a
caixa torácica, na altura do esterno. hiperdistensão alveolar, permitindo um aumento dos
níveis de PaCO2. Estudos preliminares com a hiper-
Se a monitorização do volume corrente estiver capnia permissiva no período neonatal mostram uma
disponível, recomenda-se ajustar o pico de pressão redução da necessidade de ventilação pulmonar mecâ-
inspiratória, a PEEP e o tempo inspiratório para man- nica nos primeiros dias de vida, sem efeitos adversos.
tê-lo entre 4 e 6 mL/kg.
€€ A SDR caracteriza-se pelas alterações constantes
nas características da mecânica respiratória, ou Ventilação convencional controla-
seja, durante a fase de gravidade máxima da do- da pelo paciente
ença ocorre diminuição da constante de tempo
(diminuição da complacência), sendo apropriado
Na IMV, as ventilações mecânicas são fixas e pre-
o uso de tempos inspiratório e expiratório cur- determinadas pelo médico, sendo totalmente indepen-
tos. Porém, na fase de recuperação, com a me- dentes da necessidade e do ciclo respiratório espontâneo
lhora da complacência, a constante de tempo au- do paciente. Os avanços tecnológicos têm possibilitado
menta, e esses tempos podem ser insuficientes uma mudança nessa abordagem para uma nova forma de
tanto na fase inspiratória (hipoventilação) como estratégia ventilatória, na qual o paciente ajusta total ou
na expiratória (autoPEEP). Lembrar também que parcialmente o ciclo respiratório controlado pelo apare-
essas alterações são mais rápidas após a terapia lho, de acordo com as suas necessidades fisiológicas. Se-
com surfactante exógeno. Portanto, devido às gundo as variáveis que o paciente pode controlar, divide-
mudanças constantes na mecânica respiratória, -se a ventilação convencional controlada pelo paciente
um suporte ventilatório “ótimo” num dado ins- em ventilação desencadeada pelo paciente, ventilação as-
tante pode ser “péssimo” noutro momento, de sistida proporcional e ventilação com suporte de pressão.

SJT Residência Médica – 2016


183
17  Distúrbios respiratórios

entanto, o esforço respiratório não é detectado den-


Ventilação desencadeada
tro de certo tempo preestabelecido, o aparelho fornece
pelo paciente ventilações mecânicas controladas na frequência prede-
Embora a possibilidade de proporcionar uma terminada. Portanto, ao contrário da A/C, nesse modo
melhor interação paciente-ventilador tenha sido o de ventilação sincronizada as ventilações mecânicas e a
ponto central na idealização da IMV, alguns pacientes pressão positiva são intercaladas com as respirações es-
“brigam” com o respirador devido ao não sincronismo pontâneas. O médico determina o fluxo, a FiO2, a pressão
entre o esforço respiratório espontâneo e a insuflação inspiratória, a PEEP, o tempo inspiratório, a frequência
mecânica. Essa assincronia durante a ventilação mecâ- respiratória do aparelho e a sensibilidade do mecanismo
nica pode aumentar a pressão transpulmonar, com hi- de “disparo” da válvula de ciclagem do aparelho.
perdistensão alveolar, levando ao baro/volutrauma, ao
comprometimento cardiovascular e à alteração do fluxo
sanguíneo cerebral, aumentando assim os riscos para o Ventilação assistida proporcional
aparecimento da doença pulmonar crônica e da HPIV. É uma nova forma de suporte ventilatório me-
Na tentativa de diminuir essas complicações, vários au- cânico que tem como objetivo dar mais liberdade ao
tores defendem a ideia da ventilação mecânica com sin- ciclo respiratório espontâneo do recém-nascido. Nes-
cronização entre as respirações espontâneas e as con- se modo de ventilação é o paciente quem determina
troladas. A sincronização da ventilação mecânica com a frequência, a duração da inspiração e expiração e a
as respirações espontâneas possibilita maior conforto magnitude das mudanças da pressão nas vias aéreas.
ao paciente e menor necessidade de sedação e paralisia Portanto, a máquina é totalmente controlada pela es-
muscular. Além disso, alguns estudos mostram que a tratégia respiratória espontânea do neonato, de acor-
ventilação sincronizada, em relação à IMV convencio- do com o seu esforço inspiratório e da mecânica pul-
nal, melhora a oxigenação, aumenta o volume corren- monar. Trabalhos preliminares mostram uma melhor
te, diminui a incidência de baro/volutrauma e provoca oxigenação, com menor suporte de pressão, quando
menos alterações no fluxo sanguíneo cerebral. São des- comparada com a IMV ou com a A/C. É possível que
critos dois modos de ventilação desencadeada pelo pa- esse tipo de ventilação provoque menos baro/volu-
ciente: modo assistido e controlado (A/C) e a ventilação trauma. No entanto, são necessários novos estudos
mandatória intermitente sincronizada (SIMV). para validar a sua eficácia a médio e longo prazos.

Ventilação assistida e controlada Ventilação com suporte de pressão


(A/C) É uma forma de suporte ventilatório mecânico
É um modo combinado de ciclagem, no qual o que auxilia o paciente durante a respiração espontâ-
aparelho fornece ventilações assistidas com volume nea, diminuindo o esforço respiratório espontâneo
corrente ou pressão e tempo inspiratórios predeter- durante a fase inspiratória, quando o aparelho fornece
minados, em resposta ao esforço respiratório iniciado uma determinada pressão positiva, previamente es-
pelo paciente. Se, no entanto, o neonato não realiza tabelecida (pico de pressão inspiratória). Para que se
esforço inspiratório em um determinado período de desencadeie um ciclo respiratório, há necessidade de o
tempo preestabelecido, o aparelho fornece ventilações paciente gerar uma pressão negativa.
mecânicas controladas na frequência predeterminada. Isso determina a abertura de uma válvula de
Portanto, nesse modo de ventilação sincronizada, to- demanda, que irá produzir um fluxo desacelerante. A
das as ventilações espontâneas são assistidas. A prin- abertura da válvula de demanda vai depender da sen-
cípio é o paciente quem determina a frequência, mas sibilidade programada para o “disparo” do aparelho,
se a frequência do paciente cai abaixo da “frequência sendo o suporte de pressão fornecido apenas na fase
de apoio”, o aparelho realiza a ventilação controlada inspiratória do ciclo. A fase inspiratória se encerra
até que a frequência do paciente supere a “frequência quando o fluxo de gás estiver menor do que 25% do
de apoio”. O médico determina o fluxo, a FiO2, a pres- pico de fluxo, iniciando-se então a fase de expiração,
são inspiratória, a PEEP, o tempo inspiratório, a “fre- com a abertura da válvula de demanda. Sua utilização
quência de apoio” e a sensibilidade do mecanismo de clínica está baseada no conceito de que a mecânica
“disparo” da válvula de ciclagem do aparelho. respiratória exposta acima determina um menor tra-
balho respiratório, uma sobrecarga muscular menor,
diminuindo assim a possibilidade de fadiga. É um
Ventilação mandatória intermiten- modo de ventilação controlada pelo paciente ainda
te sincronizada pouco utilizada no período neonatal. Alguns estudos
mostram que esse tipo de ventilação pode minimizar
É uma modificação técnica da IMV tradicional, na o aumento do trabalho respiratório decorrente da re-
qual o aparelho libera as ventilações assistidas, na fre- sistência imposta pela cânula traqueal e pelo circuito
quência predeterminada, imediatamente após o início do respirador. Além disso, parece ser útil na fase de re-
do esforço inspiratório espontâneo do paciente. Se, no tirada do paciente da ventilação pulmonar mecânica.

SJT Residência Médica – 2016


184
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Ventilação de alta frequência Suporte respiratório: resumo


Embora a ventilação mecânica convencional terapêutico
tenha contribuído decisivamente para a redução da
O uso do CPAP nasal (continuous positive airway
mortalidade dos recém-nascidos com SDR, em cerca
pressure) vem sendo muito estimulado, principalmente
de 20% a 40% dos neonatos ventilados observam-se
com o intuito de minimizar a lesão pulmonar. Exerce
complicações, como a síndrome de escape de ar e a
importante ação fisiológica, por meio do aumento da
DBP. Na tentativa de reduzir a morbidade e mortali-
capacidade residual funcional e promoção do cresci-
dade relacionadas com a ventilação e com a própria
mento pulmonar do prematuro. Além disso, melhora
prematuridade é que surgiu a ventilação de alta fre-
a complacência pulmonar, reduz a resistência das vias
quência (VAF).
aéreas, aumentando seu diâmetro e mantendo-as aber-
A VAF é uma técnica ventilatória que empre- tas, diminui a frequência respiratória, melhora a aposi-
ga volumes correntes menores e frequências mais ção do diafragma e a sua contratilidade e apresenta um
elevadas do que as técnicas convencionais. São des- papel na conservação do surfactante exógeno.
critas três formas de VAF: ventilação a jato de alta
Na prática, objetiva-se manter uma PaO2 entre
frequência (VAFJ), ventilação oscilatória de alta
50 e 60 mmHg e, se necessário, fazemos aumentos
frequência (VAFO) e ventilação por interrupção do
graduais da FiO2 (5 a 10%) até cerca de 60% e do CPAP
fluxo (VAFIF). Estas estratégias utilizam frequências
até, no máximo, 10 cmH2O.
respiratórias de 4 Hz (1 Hz = 60 ciclos/min) ou mais
para manter as trocas gasosas em volumes correntes Naqueles casos com insuficiência respiratória gra-
iguais ou menores que os do espaço morto anatômi- ve, caracterizada por hipóxia acentuada e acidose res-
co. Não existem estudos comparativos entre os vá- piratória grave (PCO2 > 60 mmHg), apesar do uso de
rios tipos de VAF, e a maioria das pesquisas clínicas CPAP nasal, a ventilação mecânica deve ser indicada.
foi realizada com o tipo oscilatório.
A atenção para esse modo de ventilação é con- Ventilação mecânica
sequência da esperança de diminuir os efeitos lesivos
das variações de pressão (barotrauma) ou de volume €€ intubação traqueal adequada;
(volutrauma) sobre o pulmão imaturo e doente, redu- €€ pressão expiratória final (Peep): iniciar com 4 a
zindo com isso o risco de DBP. É utilizada como técni- 6 cmH2O;
ca ventilatória de resgate. €€ pressão inspiratória (PIP): mínima necessária
para que haja boa expansão torácica (15 a 25
cmH2O), ajustar conforme evolução;
€€ tempo inspiratório (Ti): o menor possível (0,35
Óxido nítrico a 0,5 s), pois tempos inspiratórios muito pro-
O óxido nítrico (NO) é produzido naturalmente longados estão intimamente associados a maio-
pelas células endoteliais e age localmente sobre a mus- res lesões do tipo escape (pneumotórax);
culatura lisa vascular, levando ao seu relaxamento e à €€ FiO2: a necessária para manter uma oxigenação
vasodilatação. A ação seletiva nos vasos pulmonares, adequada;
quando inalado, está relacionada à propriedade do gás €€ frequência respiratória (IMV): entre 30 e 60.
de se difundir através da membrana alveolocapilar e a
sua imediata inativação quando em contato com o san-
gue, através da ligação com a hemoglobina, formando
a metemoglobina. Por essas propriedades, vários es- Prevenção
tudos clínicos prospectivos e randomizados utiliza-
ram o óxido nítrico inalatório (NOi) para um grupo de O uso de glicocorticoides como agentes es-
recém-nascidos a termo ou próximos do termo (idade timulantes da maturação pulmonar através da
gestacional superior a 34 semanas) que cursaram com aceleração na diferenciação celular, aumento da
hipoxemia grave decorrente do shunt extrapulmonar, secreção e estocagem de surfactante mostrou sua
independentemente da doença pulmonar de base. A eficácia e redução significativa na incidência de
análise conjunta desses estudos, excluindo os pacien- SDR, principalmente nos RNs com idade gestacional ao
tes portadores de hipoplasia pulmonar, demonstrou nascimento menor que 32 semanas, em vários estudos
que o NOi melhora a oxigenação arterial e diminui a ao longo das últimas décadas. São, portanto, adminis-
necessidade de oxigenação de membrana extracorpó- trados rotineiramente em vários serviços perinatais às
rea (ECMO), contudo não reduz a mortalidade. mães de “risco”, pelo menos 24 horas anteriores ao parto.

SJT Residência Médica – 2016


185
17  Distúrbios respiratórios

os principais fatores de risco estão parto cesáreo eleti-


Complicações vo, hiperidratação e hipernatremia materna, depressão
€€ Barotrauma: pneumotórax, pneumome- do centro respiratório por asfixia, e situações que levam
diastino, enfisema intersticial, cuja inci- a um aumento na pressão venosa central do RN como o
dência tem diminuído com o uso de surfactante retardo no clampeamento do cordão.
exógeno. Entretanto, ainda podem ocorrer em
ventilações agressivas.
€€ Infecções pulmonares secundárias.
€€ Persistência do canal arterial: um relati-
Quadro clínico
vo aumento da incidência de abertura do Acomete geralmente o RN de termo ou próximo
canal arterial tem sido observado em neo- ao termo que desenvolve taquipneia nas primeiras seis
natos que recebem o surfactante. É possível horas de vida, com frequência respiratória que, muitas
que a mudança brusca que ocorre na hemodinâ- vezes, ultrapassa 80 ipm e pode ser acompanhada por
mica pulmonar logo após o uso do surfactante outros sinais de desconforto respiratório como re-
possa ser responsável por esse evento. Taqui- trações intercostais, batimento de asa nasal, gemido
cardia persistente, taquipneia, hiperatividade expiratório e cianose. A ausculta pulmonar é frequen-
do precórdio, pulsos periféricos cheios e sopro temente normal. Os sintomas costumam perdurar
sistólico contínuo audível em borda esternal su- por 12 a 24 horas com melhora do quadro e posterior
perior esquerda constituem os principais sinais resolução do processo entre 48 e 72 horas de vida. Em
para o diagnóstico clínico de PCA. poucos casos a evolução pode ser desfavorável, culmi-
nando com insuficiência respiratória grave associada a
€€ Hemorragia intracraniana: um dos proble-
hipertensão pulmonar e insuficiência cardíaca.
mas mais frequentes na UTI neonatal, sendo
causa importante de sequelas neurológicas.
Nas formas leves a moderadas, são observados
diminuição da atividade espontânea, hipotoni- Quadro radiológico
cidade, irritabilidade, convulsões e nistagmo.
Nos quadros mais tardios, há queda do hema- Ao raio X de tórax pode-se observar congestão vas-
tócrito e aumento da tensão da fontanela. A to- cular peri-hilar irradiada e simétrica, retificação dos arcos
mografia de crânio e a ultrassonografia ajudam costais, espessamento das cisuras interlobares (“cisuri-
no diagnóstico. tes”), aumento do volume pulmonar, inversão da cúpula
diafragmática e herniação intercostal e, ocasionalmente,
€€ Displasia broncopulmonar e fibroplasia
aumento da área cardíaca e derrame pleural.
retrolenticular: concentrações elevadas de
O2 podem afetar a retina do RN, em particular
dos RNsPT. A ação do O2 nos vasos retinianos
depende essencialmente de seu estágio de de-
senvolvimento, do tempo de exposição ao O2 e
da PaO2. Os efeitos vasoconstritores podem ser
reversíveis quando o O2 é administrado por cur-
to espaço de tempo; porém, se mantido em con-
centrações altas, os efeitos da oxigenoterapia
podem ser irreversíveis. A exata concentração
de O2 que é capaz de não produzir dano retinia-
no é desconhecida; porém sabe-se que a PaO2
não deve ultrapassar 70 a 90 mmHg.

Taquipneia transitória
do RN (TTRN) Figura 17.8

A TTRN caracteriza-se por uma insuficiência res-


piratória de evolução benigna e autolimitada, com sur-
gimento precoce e resultante de edema pulmonar tran-
Diagnóstico
sitório decorrente do retardo na reabsorção do líquido O diagnóstico geralmente é baseado na presença
pulmonar fetal pelo sistema linfático (situação também de fatores de risco associados ao quadro radiológico
conhecida como pulmão úmido), sendo seu principal compatível e evolução clínica que, na maioria das ve-
efeito a diminuição da complacência pulmonar. Entre zes, é favorável.

SJT Residência Médica – 2016


186
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Tratamento
Principalmente a oxigenoterapia e, se necessário, suporte ventilatório, pois frações inspiratórias de oxigênio
menores do que 40% costumam ser suficientes para manter a saturação do RN superior a 90%.

Pneumonias neonatais
Processo inflamatório nos pulmões de forma difusa ou localizada, que pode ser adquirido antes, du-
rante ou após o nascimento do concepto. Os germes podem ser transmitidos intraútero por via placentária
ou líquido amniótico, através do canal de parto, ou, mais tardiamente, podem ser adquiridos do meio in-
tra-hospitalar ou intradomiciliar. A pneumonia adquirida no perinatal é componente frequente de sepse.
Tem sua maior incidência no grupo de gestantes com ausência de pré-natal, com doenças sexualmente
transmissíveis e infecções durante a gestação, entre outros fatores.
Fatores etiopatogênicos
Próprios do hospedeiro Prematuridade-baixo peso (um dos mais importantes)
Imaturidade imunológica
Imaturidade pulmonar
Fatores perinatais Rotura prematura de membranas > 24h Fisometria
Corioamnionite
Asfixia perinatal
Contaminação no canal de parto
Fatores metabólicos Hipoxia e acidose
Hiperbilirrubinemia
Hipotermia
Exposição a agentes intra-hospitalares e domiciliares Infecções bacterianas
Infecções virais
Infecções congênitas
Tabela 17.4

Classificação
€€ pneumonia congênita: adquirida por via transplacentária; é um componente da doença congênita generalizada;
€€ pneumonia intrauterina: usualmente associada a asfixia fetal ou infecção intrauterina;
€€ pneumonia adquirida durante o nascimento: a sintomatologia ocorre nos primeiros dias, e os agentes são,
geralmente, colonizadores do canal de parto. A patogênese da pneumonia adquirida no parto ou imediatamente
após este é, presumivelmente, a aspiração de líquido amniótico infectado ou secreções no canal de parto;
€€ pneumonia adquirida após o nascimento: a doença se manifesta no primeiro mês de vida. As fontes de
infecção incluem contatos humanos e equipamentos contaminados.

Principais agentes etiológicos


Canal de parto Estreptococo beta-hemolítico do grupo B
Escherichia coli
Klebsiella pneumoniae
Ureaplasma urealyticum
Chlamydia trachomatis
Citomegalovírus
Treponema pallidum
Líquido amniótico infectado Estreptococo hemolítico do grupo B
Escherichia coli
Infecções adquiridas Staphylococcus aureus
Klebsiella pneumoniae
Estreptococo do grupo B
Escherichia coli
C. trachomatis
Anaeróbios
Candida albicans
Vírus sincicial respiratório
Tabela 17.5

SJT Residência Médica – 2016


187
17  Distúrbios respiratórios

toceles e abscessos pulmonares, como, por exemplo,


Quadro clínico estreptococos do grupo B, E. coli e K. pneumoniae. As
As manifestações clínicas são variáveis, pneumonias virais costumam mostrar infiltrado in-
podendo existir diferentes graus de insuficiên- tersticial difuso. A pneumonia por estreptococo do
cia respiratória de instalação precoce ou tardia, grupo B caracteriza-se por infiltrado pulmonar
conforme o momento da contaminação, associa- difuso, com broncogramas aéreos bilateralmen-
dos a sinais de infecção sistêmica como letargia, te, semelhante ao quadro radiológico da DMH,
apneia, instabilidade do padrão respiratório, sendo, às vezes, difícil diferenciá-las.
labilidade de saturação ao manuseio, má tole-
rância alimentar, instabilidade hemodinâmica.
À ausculta, pode-se observar redução do murmúrio
vesicular, estertoração crepitante e subcrepitante. Os
prematuros geralmente não apresentam febre, sendo Tratamento
mais frequente a hipotermia.
Suporte hidroeletrolítico e nutricional.
Suporte ventilatório.
Antibioticoterapia: no caso de pneumonia
Diagnóstico clínico de surgimento precoce, o esquema de escolha ini-
A detecção de vários fatores de risco predispo- cial inclui uma penicilina ou derivado (ampicilina)
nentes às infecções sistêmica e pulmonar colabora associado a um aminoglicosídeo. A duração da tera-
com o diagnóstico clínico. Dentre esses fatores, pode- pêutica depende do agente causador da pneumonia.
mos citar: rotura prematura de membranas, fisome- Em geral, as pneumonias causadas por bacilos enté-
tria, febre materna, prematuridade, pré-natal inade- ricos Gram-negativos ou por estreptococo do grupo
quado e trabalho de parto prolongado. B devem ser tratadas por pelo menos 14 dias. O es-
quema de antibiótico segue os critérios descritos no
capítulo de sepse.
Reposição de surfactante: tem seu efeito be-
Diagnóstico laboratorial néfico nos casos de maior gravidade, uma vez que o
€€ Hemograma completo: anemia, plaquetopenia, processo inflamatório local gera disfunção do surfac-
leucocitose ou leucopenia. O índice neutrofíli- tante, porém seu uso deve ser individualizado.
co (leucócitos imaturos sobre leucócitos to-
tais) maior ou igual a 0,2 deve ser valoriza-
do como indicação de infecção bacteriana.
€€ Hemocultura.
€€ Proteína C reativa. Síndrome da aspiração
€€ Swab nasal e de orofaringe. meconial (SAM)
€€ Aspirado de secreção traqueal (laringoscopia
direta). A SAM é uma doença caracterizada por graus va-
€€ Lavado bronquioalveolar (broncoscopia direta). riáveis de insuficiência respiratória, sendo a apresen-
€€ Punção pleural. tação clínica geralmente grave e com taxa de mortali-
dade que pode chegar aos 60% dos RNs acometidos.
€€ Biópsia pulmonar.
Os principais grupos de risco para desenvolver a
*O swab nasal, o lavado bronquioalveolar e a pes- SAM são aqueles que também apresentam maior
quisa da secreção nasal pelo método Elisa são exames risco para a asfixia perinatal, incluindo os RNs
coadjuvantes na pesquisa das infecções virais como pós-termo, com retardo de crescimento intraute-
para VSR, HSV e Chlamydia trachomatis. rino, macrossômicos, e demais situações em que
exista insuficiência placentária, como na hiper-
tensão arterial materna, descolamento precoce
da placenta, placenta prévia, prolapso de cor-
Diagnóstico radiológico dão, partos laboriosos e apresentação pélvica. A
Em geral o raio X de tórax pode mostrar áreas passagem intrauterina de mecônio tem sido associada
esparsas opalescentes, difusas em ambos os campos fundamentalmente ao sofrimento fetal. A resposta in-
pulmonares, associadas ou não a espessamento pe- testinal a um episódio de hipóxia é hiperperistaltismo
ribronqueal. Alguns micro-organismos podem estar e relaxamento do esfíncter anal, resultando na passa-
associados à presença de derrame pleural, pneuma- gem de mecônio para o líquido amniótico.

SJT Residência Médica – 2016


188
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

acidose metabólica, hipoxemia e hipercapnia, que se


Incidência agravam na presença de hipertensão pulmonar asso-
A presença de mecônio no líquido amniótico ciada ao quadro.
ocorre em 5% a 15% dos RNs, enquanto a incidência
global de SAM é de 1% a 3% dos RNs vivos apresen-
tando líquido amniótico com mecônio.
Quadro radiológico
Ao raio X de tórax observam-se infiltrados gros-
seiros e irregulares em ambos os hemitórax, irradian-
Fisiopatologia do-se do hilo para os campos pulmonares periféricos,
O líquido amniótico pode ser aspirado in- tórax hiperexpandido, áreas de atelectasias e, nos ca-
traútero ou ao nascimento. Hipoxemia e acide- sos mais graves, pneumotórax e pneumomediastino.
mia aumentam os movimentos respiratórios
fetais, com gasping e aspiração do mecônio. Por
outro lado, o líquido meconial da naso e orofa-
ringe pode ser aspirado pelo RN logo após o nas-
cimento, pela inspiração inicial. Os principais
mecanismos fisiopatológicos na SAM são resul-
tantes da obstrução das vias aéreas e lesão teci-
dual, causadas pela presença do mecônio na ár-
vore brônquica.
A obstrução mecânica nas vias aéreas dis-
tais produz, por meio de mecanismo valvular,
aprisionamento de ar no alvéolo, com conse-
quente hipercapnia e risco de rotura alveolar e
extravasamento de ar (pneumotórax e pneumo-
Figura 17.9
mediastino). Formam-se áreas de atelectasia,
que aumentam o shunt extrapulmonar direita-
-esquerda; assim, intensificam-se ainda mais
a hipercapnia, a hipoxemia e a acidose. Por sua
lesão direta sobre o epitélio pulmonar, promove-
-se um processo inflamatório com a liberação de
mediadores inflamatórios podendo levar a uma
pneumonite química com instalação de infecção
bacteriana secundária, assim como deslocamen-
to e inativação do surfactante presente na su-
perfície alveolar resultando em maior instabili-
dade e colapso alveolar e aumentando as áreas
de atelectasia. A obstrução leva a uma hipoventila-
ção aguda, que resulta em hipoxemia, hipercapnia e
acidose. Essas alterações gasométricas contribuem
para a hipertensão pulmonar.
Figura 17.10

Quadro clínico
Na SAM pode-se observar insuficiência res- Medidas profiláticas
piratória de maior intensidade inicialmente, com Pré-natal adequado, boa monitorização da mãe e do
hiperinsuflação do tórax (aumento do diâmetro feto durante o trabalho de parto e condições ideais para
anteroposterior do tórax), taquidispneia, retra- recepcionar o RN são medidas preventivas ao insulto asfí-
ção intercostal e subdiafragmática, gemência, ba- xico e, consequentemente, ao risco de desenvolver a SAM.
timento de asa nasal e cianose de extremidades. Deve-se lembrar da aspiração da traqueia, sob visu-
A ausculta pulmonar pode apresentar estertores alização direta em neonatos deprimidos ao nasci-
em todo o tórax e expiração prolongada, indicando o mento, em que há a presença de líquido amniótico
comprometimento das vias aéreas de pequeno calibre. meconial durante as manobras de reanimação do
Na gasometria podemos observar graus acentuados de neonato (veja capítulo de reanimação neonatal).

SJT Residência Médica – 2016


189
17  Distúrbios respiratórios

mento muscular, estimulados a partir dos eventos ini-


Tratamento
ciais desse processo (elevação da oxigenação e redução
€€ oxigenoterapia e suporte ventilatório ade- inicial da resistência vascular pulmonar). Na etapa
quados: se houver necessidade; final dessa circulação de transição, ocorrem remodela-
€€ antibioticoterapia: indicada pelo risco do de- mento vascular e redução da hiper-reatividade vascu-
senvolvimento de pneumonia bacteriana, tendo lar, que está presente inicialmente.
como drogas de escolha a associação de penicili-
Hipóxia intrauterina, asfixia perinatal, acidose
na cristalina e um aminoglicosídeo (amicacina);
respiratória e/ou metabólica e hipercapnia consti-
€€ reposição de surfactante: a administração tuem os principais fatores que podem contribuir para
do surfactante exógeno tem indicação pela dis- a não reversibilidade da circulação fetal em neonatal,
função do surfactante causada pela presença do com a manutenção da RVP alta e baixa complacência
mecônio na superfície alveolar, e pode ser admi- pulmonar, criando, assim, um círculo vicioso no qual
nistrada mais de uma vez, conforme a intensi-
a vasoconstrição reativa aumenta o curto-circuito
dade do quadro.
direita-esquerda e o grau de hipoxemia, impedindo a
redução pós-natal da RV pulmonar.

SHPP: Síndrome da Fatores etiopatogênicos


hipertensão pulmonar €€ asfixia perinatal;
persistente do RN €€ uso de drogas inibidoras da síntese de prosta-
glandinas: AAS, indometacina, anti-inflamató-
rios não hormonais;
A SHPP do recém-nascido é caracterizada
pelo aumento da resistência vascular pulmonar, €€ doenças pulmonares: SAM, DMH, pneumonias
levando a uma pressão arterial pulmonar muito bacterianas;
elevada, shunt direita-esquerda pelo canal arte- €€ sepse neonatal;
rial e/ou forame oval e hipoxemia grave. Consti- €€ disfunção miocárdica: cardiopatias congênitas,
tui uma síndrome multietiológica, ocorrendo particu- hiperviscosidade sanguínea, miocardite, distúr-
larmente no RN de termo ou pós-termo e no RNPT bios metabólicos.
com insuficiência respiratória.

Fisiopatologia
Circulação de transição Os mecanismos fisiopatológicos podem ser
classificados em quatro tipos: má adaptação cir-
Durante a vida intrauterina, a resistência vascu-
culatória, muscularização excessiva, alteração
lar pulmonar é elevada, devido à compressão mecâni-
do desenvolvimento pulmonar e obstrução ao
ca dos pulmões, aos regimes de hipóxia e acidose vi-
fluxo sanguíneo.
gentes, à produção de leucotrienos e tromboxanos no
pulmão fetal, ocorrendo desvio do fluxo sanguíneo das A má adaptação circulatória é a forma mais
câmaras cardíacas direitas para a circulação sistêmica comum de HPP, caracterizada por vasoconstrição
pelo canal arterial e forame oval. pulmonar funcional com desenvolvimento estrutural
Após o nascimento, passa-se por uma circulação normal dos pulmões. Essa forma é reversível e poten-
de transição, na qual vários fatores interagem regu- cialmente tratável. Esse mecanismo ocorre na hipóxia
lando a remodelação fisiológica da circulação pulmo- e acidose, SAM, DMH, pneumonia e sepse.
nar, permitindo uma queda acentuada da resistência A muscularização excessiva caracteriza-se por
vascular pulmonar e perfusão pulmonar adequada. hipertrofia estrutural arterial pulmonar, aumentando a
Durante a primeira respiração ao nascimento, ocorre espessura da parede média das artérias intra-acinares e
abertura do leito vascular pulmonar pela distensão extensão da muscularização até as arteríolas periféricas,
mecânica dos alvéolos e elevação abrupta da tensão que parece ocorrer intraútero, tornando esses RN inca-
de oxigênio alveolar, reduzindo a resistência vascular pazes de se adaptar à vida pós-natal. Esse mecanismo
pulmonar, aumentando o fluxo sanguíneo e a oxige- pode ser observado na hipoxia intrauterina crônica, no
nação pulmonar. Entre 12 e 24 horas de vida, entra- fechamento precoce do canal arterial intraútero (como
-se na fase na qual ocorre maior redução da resistência no uso materno de salicilatos durante a gestação), nas
vascular pulmonar, em torno de 80%, por atuação da cardiopatias congênitas com hiperfluxo pulmonar e au-
prostaglandina e óxido nítrico endógenos, que apre- mento da pressão venosa pulmonar idiopática. O prog-
sentam potente ação vasodilatadora e geram relaxa- nóstico é reservado, dependendo da gravidade do caso.

SJT Residência Médica – 2016


190
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A alteração no desenvolvimento pulmonar €€ correção das alterações metabólicas e eletrolíticas;


está associada à redução do leito vascular pulmonar €€ uso de drogas vasoativas;
secundária à síndrome de hipoplasia pulmonar encon-
€€ manipulação mínima do recém-nascido.
trada na hérnia diafragmática e oligoâmnio grave. O
prognóstico é ruim.
A obstrução ao fluxo pode ser causada pelo au-
mento da viscosidade sanguínea, como ocorre na po-
licitemia e hiperfibrinogenemia, ou por cardiopatias Apneia do
congênitas associadas a aumento da pressão venosa
pulmonar. Muitos desses fatores podem ser reversí-
recém-nascido
veis, melhorando seu prognóstico. A apneia do RN é definida como pausa res-
piratória por um período maior ou igual a 20
segundos, ou menor que 20 segundos, porém
acompanhada por bradicardia, cianose ou pali-
Quadro clínico dez. Pode ser primária, diretamente relaciona-
da às características do aparelho respiratório e
Os recém-nascidos geralmente são adequados desenvolvimento neurológico encontrados nos
para a idade gestacional, próximos do termo, e, com prematuros, ou secundária a outros fatores,
frequência, existe história perinatal de asfixia. Cli- dentre eles os quadros sépticos, podendo tam-
nicamente, o RN apresenta labilidade de oxi- bém acometer o RN de termo.
genação desproporcional à extensão da doença
parenquimatosa pulmonar, manifestando sin-
tomas como taquipneia e cianose rapidamente
progressiva, principalmente após a manipulação Fisiopatologia
do RN. O exame cardiovascular pode ser normal ou
mostrar desdobramento ou hiperfonese de 2ª bulha e Dentre as peculiaridades encontradas no RN pre-
regurgitação tricúspide, sugerindo que a pressão arte- maturo como causa primária do surgimento da ap-
rial pulmonar esteja igual ou maior que a pressão ar- neia, podemos citar um centro respiratório imaturo,
terial sistêmica. com mielinização incompleta, deficiência de recepto-
res excitatórios, desbalanço entre neuromoduladores
excitatórios e os inibitórios, reflexos relacionados à
obstrução das vias aéreas superiores, controle hormo-
nal inadequado em resposta à hipóxia e hipercapnia,
Diagnóstico conformação da caixa torácica favorecendo fadiga do
€€ Teste de hiperoxia/hiperventilação: o RN padrão respiratório e a tendência ao colabamento das
é ventilado até atingir uma PaCO2 crítica (< vias aéreas superiores durante a expiração.
25 mmHg). Se a PaO2 aumenta à medida que a
Causas secundárias, responsáveis pela ocor-
PaCO2 diminui, é sugestivo de SHPP.
rência de episódios de apneia e que estabelecem diag-
€€ Diferença da PaO2 pré e pós-ductal: uma nóstico diferencial com as causas primárias, incluem:
diferença superior a 20 mmHg é considerada
sugestiva de SHPP. Entretanto, a ausência dessa
€€ Hipóxia (doenças pulmonares, persistência do
diferença não exclui a possibilidade diagnóstica. canal arterial, anemia).
€€ Ecodopplercardiograma: é o melhor método €€ Infecção (sepse, meningite, enterocolite ne-
diagnóstico para a SHPP. crosante).
€€ Distúrbios metabólicos (hipoglicemia, hipocal-
cemia, hipomagnesemia).

Tratamento €€ Instabilidade térmica.


€€ Patologias neurológicas (hemorragia intracra-
O tratamento visa:
niana, convulsões, síndromes malformativas do
€€ corrigir a causa básica que levou a SHPP ou a SNC, encefalopatia hipóxico-isquêmica e bilir-
está produzindo; rubínica, depressão do SNC).
€€ assistência ventilatória para diminuir a hipo- €€ Patologias cardíacas (PCA, ICC).
xemia, a hipercapnia, a RVP e a vasoconstrição
pulmonar;
€€ Distúrbios gastrointestinais: RGE.

€€ uso de óxido nítrico inalatório – vasodilatador


€€ Uso de drogas depressoras do SNC.
seletivo; €€ Postural (aumentando a resistência ao fluxo aéreo).

SJT Residência Médica – 2016


191
17  Distúrbios respiratórios

A investigação dessas causas secundárias de ap-


neia deve ser realizada em todos os recém-nascidos de
termo que apresentarem apneia ou nos prematuros
que apresentarem dois ou mais episódios de apneia no
decorrer de 24 horas.

Prevenção da apneia no RNPT


Alguns fatores colaboram para a prevenção da
apneia, como:
€€ manutenção da temperatura corpórea;
€€ monitorização da frequência cardíaca; Figura 17.11

€€ nutrição adequada;
€€ controle do hematócrito;
€€ estimulação tátil.
Fatores etiopatogênicos –
fisiopatologia
Dentre os principais fatores que interferem so-
Tratamento bre a integridade do parênquima e arquitetura do te-
€€ Oxigenoterapia: inalatória ou suporte ventila- cido pulmonar, contribuindo para a gênese da DBP,
tório adequado. podemos citar os seguintes elementos:
€€ Medicamentos: metilxantinas, teofilinas e ci- €€ Toxicidade pulmonar pelo oxigênio (forma-
trato de cafeína. ção de radicais livres que contribuem para lesão
*O tratamento deve ser administrado até 34 se- e destruição celular no epitélio pulmonar).
manas de idade gestacional corrigida ou até sete dias €€ Ventilação mecânica, barotrauma e volu-
após o último episódio de apneia. trauma (uma ventilação excessiva para as con-
*O citrato de cafeína tem algumas vantagens so- dições respiratórias do RN gera lesões teciduais,
e esse fator pode ser monitorado através da
bre a teofilina, no sentido de que tem maior efeito es-
PaCO2, que, quando muito baixa, sugere venti-
timulante sobre o centro respiratório, menores efeitos
lação agressiva ou excessiva. A hiperinsuflação
colaterais, distanciamento maior entre o nível tóxico e
pulmonar provoca roturas na estrutura pulmo-
terapêutico do medicamento. nar, gerando processo inflamatório local).
€€ Processo inflamatório pulmonar (a liberação de
mediadores inflamatórios – citocinas – promove a
Displasia broncopulmonar migração de leucócitos para os pulmões, aumentan-
do a permeabilidade do epitélio pulmonar, edema
(DBP) intersticial e edema alveolar. Esse processo pode já
estar sendo desencadeado intraútero, assim como
os processos infecciosos pulmonares concomitan-
A DBP é resultante da ação de múltiplos fa- tes acentuam ainda mais o grau de lesão tecidual).
tores que agem sobre um sistema pulmonar ima-
€€ Desnutrição.
turo, que inicialmente sofre uma interrrupção
no seu desenvolvimento, gerando dependência €€ Persistência do canal arterial.
da oxigenoterapia acima de 28 dias de idade pós-
-natal ou 36 semanas de idade gestacional cor-
rigida acompanhada de alterações radiológicas
compatíveis. Também é conhecida como doença Anatomia patológica
pulmonar crônica neonatal. A maior sobrevivência de O dano oxidativo causado pelo O2 e o recrutamen-
RNPT extremos, associada às terapêuticas agressivas to de células de defesa, com liberação de mediadores in-
ventilatórias, constitui o fator mais importante para a flamatórios, determinam proliferação de fibroblastos,
DBP. Portanto, o pré-requisito inicial para o desenvol- com destruição intra-alveolar e intersticial disseminada
vimento da DBP é a imaturidade pulmonar que requer (desorganização em graus variados da arquitetura pul-
intervenção médica. monar) e remodelação do parênquima pulmonar.

SJT Residência Médica – 2016


192
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Há quatro estágios no desenvolvimento da doença:


1- segundo ao quarto dia de vida, com lesões superponíveis ao próprio quadro da DMH;
2- quinto ao décimo dia, necrose epitelial e bronquiolar, exsudação (turvação pulmonar);
3- décimo ao vigésimo dia, com regeneração epitelial difusa, alterações metaplásicas, coalescência alveolar,
espessamento das membranas basais, fibrose dos septos interlobulares, e, radiologicamente, o parênquima pul-
monar se apresenta com aspecto de “favo de mel”;
4- após 30 dias, com enfisema alveolar (áreas hiperinsufladas e de opacificação).

Diagnóstico
Clinicamente, há a presença de fatores de risco como prematuridade extrema, insuficiência respiratória
precoce, necessidade de ventilação mecânica agressiva e dependência de oxigênio além de 28 dias de vida, asso-
ciada a um quadro evolutivo com crises de cianose, episódios de broncoespasmo, hipercapnia e hipoxemia em ar
ambiente e a manutenção de ausculta pulmonar rica. Há uma piora progressiva da insuficiência respiratória e
dependência de O2 após melhora relativa da doença pulmonar de base.

Tratamento
€€ Utilizar técnicas ventilatórias menos agressivas para prevenir a lesão pulmonar.
€€ Aportes hídrico e nutricional adequados.
€€ Uso racional da oxigenoterapia.
€€ Uso de medicamentos: diuréticos e broncodilatadores (sistêmicos e inalatórios).
€€ A corticoterapia é controversa.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

18
Distúrbios metabólicos

risco ou sintomas de hipoglicemia, pois esta, apesar de


Hipoglicemia ser facilmente tratada, pode deixar sequelas irreversí-
veis. As razões pelas quais isso ocorre incluem:
A glicose é a maior fonte de energia para o orga-
nismo humano, e estima-se que ela seja responsável por €€ gliconeogênese reduzida consequente à defici-
90% da energia consumida pelo feto, sendo o restante ência enzimática e de cofatores;
proveniente de outros elementos. Durante a gestação, €€ diminuição das reservas de glicogênio hepático;
a glicose passa da mãe para o feto através da placenta
€€ resposta inadequada na produção de catecola-
por um processo de difusão facilitada, e a produção de
minas pela hipoglicemia.
glicose pelo feto em condições normais é praticamente
inexistente. Existe, portanto, uma relação linear entre o Há muita controvérsia sobre a partir de que
nível sanguíneo materno e fetal, sendo a glicemia fetal nível pode ser considerada a hipoglicemia. O cri-
cerca de 2/3 da glicemia materna. tério mais utilizado é de glicemia < 40 mg/dL em
Após o nascimento, através do clampeamento do recém-nascidos com ou sem sintomas.
cordão, há interrupção do suprimento de glicose e ou- A hipoglicemia pode ser transitória quando ocor-
tros nutrientes; o recém-nascido tem de mobilizar suas re no período neonatal precoce (até 7 dias de vida),
reservas a fim de manter suas necessidades energéticas.
sendo autolimitada e restrita ao período neonatal, ou
Isso acarreta alterações hormonais que visam manter o
pode ser persistente, de difícil controle, geralmente
equilíbrio homeostático e dos níveis de glicose. Ocor-
sintomática e com incidência elevada de sequelas.
rem, portanto, estímulo à produção de catecolaminas
e glucagon e queda nas concentrações de insulina; há O padrão-ouro para o diagnóstico é realizado
promoção da glicogenólise a partir do glicogênio hepá- através da dosagem sérica de glicose. É importante
tico e gliconeogênese a partir de aminoácidos e lípides. lembrar que os níveis de glicose no sangue total são
A hipoglicemia é um achado frequente em ber- 10% a 15% menores do que no plasma, portanto,
çários e UTIs neonatais. É importante antecipar esse quando observada hipoglicemia por meio de fitas re-
problema e avaliar os bebês que apresentem fatores de agentes, esta deve ser confirmada.
194
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Hipoglicemia neonatal transitória


É a forma mais frequente de hipoglicemia nessa faixa etária. Segue uma tabela com as principais causas de
hipoglicemia transitória e seus respectivos mecanismos de ação.
Causas de hipoglicemia Mecanismo
1. Prematuridade Baixa reserva de glicogênio hepático
Exposição a situações em que há aumento de consumo de glicose
2. Restrição de crescimento intrauterino Baixa reserva de glicogênio hepático
Menor capacidade de gliconeogênese
Fontes alternativas de energia limitadas
3. Asfixia Aumento do consumo de glicose
4. Hipotermia Aumento do consumo de glicose
5. Policitemia Aumento do consumo de glicose
6. Sepse* Depleção do glicogênio hepático
Prejuízo da gliconeogênese
Aumento do consumo
7. Filho de mãe diabética Hiperinsulinismo
Inibição da glicogenólise e gliconeogênese
8. Cardiopatia congênita Distúrbio da gliconeogênese por má perfusão hepática
9. Drogas Dependerá do mecanismo de ação de cada droga

Tabela 18.1  *Nos casos de sepse pode haver também episódios de hiperglicemia.

Hipoglicemia neonatal persistente


Os casos de hipoglicemia persistentes são aqueles que aparecem após 5 a 7 dias de vida e são de difícil
controle. A principal causa desses agravos é o hiperinsulinismo. Seguem exemplos de causas de hipoglice-
mia persistente.

Hipoglicemia persistente Tratamento


Hiperinsulinismo A prevenção com screening para os RNs com risco
Nesidioblastose
teve impacto significativo na incidência da hipoglice-
Síndrome de Beckwith-Weidmann
mia. Portanto, deve-se determinar a glicemia através
Doenças endócrinas
Hipopituitarismo de fita reagente em todos os recém-nascidos de risco.
Hipotireoidismo O tratamento poderá obedecer aos seguintes critérios:
Erros inatos do metabolismo dos carboidratos
– Para os recém-nascidos de risco e assintomáti-
Galactosemia
Intolerância à frutose dos aminoácidos
cos: avaliar as condições clínicas e, se possível, admi-
Tirosinemia dos ácidos graxos nistrar dieta enteral.
Metabolismo da carnitina – Para os recém-nascidos sem condições de re-
Tabela 18.2 ceber dieta enteral e assintomáticos: deve-se iniciar
a infusão de glicose endovenosa com glicose a 10% e
fluxo de 4 a 8 mg/kg/min.
– Para recém-nascidos sintomáticos: de-
Quadro clínico ve-se realizar um push de 200 mg/kg (2 mL/
1- Assintomático kg de glicose a 10%) e iniciar um f luxo de 8
2- Sintomático: letargia, choro fraco, apneia, ta- mg/kg/min em seguida.
quipneia, irregularidade respiratória, cianose, tremo- Em todas essas situações, deverá ser realiza-
res, convulsão, hipotonia, recusa alimentar, instabili- do controle da glicemia após 30 a 60 minutos da
dade térmica, bradicardia. intervenção.

SJT Residência Médica – 2016


195
18  Distúrbios metabólicos

Para os casos em que há necessidade de infu- intra e extracelulares de cálcio, fósforo e magnésio e suas
são de glicose com fluxo maior que 12 mg/kg/min, inter-relações com calcitonina, paratormônio e vitamina
as seguintes medicações poderão ser utilizadas: D, atuando nos tecidos-alvo: ossos, rins e intestino.
€€ hidrocortisona na dose de 10 mg/kg intraveno-
sa dividida em duas doses diárias;
€€ glucagon;
Hipocalcemia
€€ diazóxido; Considera-se hipocalcemia quando os níveis de
cálcio total estão abaixo de 7,5-8 mg/dL (1,8-2 mmol/L)
€€ somatostatina;
ou concentração de cálcio ionizável abaixo de 4,4 mg/dL
€€ hormônio de crescimento. (1,1 mmol/L) para o recém-nascido a termo e cálcio total
abaixo de 7 mg/dL (1,75 mmol/L) para os prematuros.
No organismo, 99% do cálcio (Ca) localiza-se no es-
Hiperglicemia queleto sob a forma de hidroxiapatita e 1% nos líquidos
extracelulares e tecidos moles. Já no soro, 50% está sob
Há controvérsia sobre a definição de hiperglice- a forma ionizada, 40% ligado à proteína e 10% sob a for-
mia, porém o critério mais utilizado é de glicemia maior ma de complexos. O cálcio é um mensageiro intracelular
que 125 mg/dL em recém-nascidos a termo e maior e extracelular, tendo importante papel na proliferação
que 150 mg/dL em prematuros. Muito menos frequen- celular, síntese proteica, sistema de coagulação, função
te que hipoglicemia, porém também pode apresentar enzimática, contração muscular, comunicação neuronal
consequências desastrosas devido à hiperosmolaridade e neuromuscular. A capacidade das glândulas paratireoi-
e consequente diurese osmótica levando a quadros de des neonatais em responder a um estresse hipocalcêmico
desidratação com risco de hemorragia intracraniana. varia diretamente com a idade gestacional e com a idade
pós-natal. A hipocalcemia neonatal costuma ser acom-
panhada de hiperfosfatemia ou de hipomagnesemia.
Etiopatogenia Pode ser assintomática ou sintomática. Quanto à época
Prematuridade, nutrição parenteral, asfixia, in- de aparecimento, pode ser precoce ou tardia ou, ainda,
fecção, uso de drogas como metilxantinas e glicocorti- aparecer em qualquer época dentro do período neonatal.
coides, estresse e diabetes melito transitório neonatal.
Causas de hipocalcemia neonatal
A. Precoce
1. Fatores maternos:
Tratamento deficiência de cálcio
€€ redução da VIG em 1 mg/kg/min, com con- deficiência de vitamina D
trole de dextro a cada uma hora, podendo redu- hiperparatireoidismo
zir a VIG até 2 mg/kg/min; diabetes melito
€€ pesquisar e tratar a causa da hiperglicemia; suspen- 2. Fatores intraparto
der drogas hiperglicemiantes, pesquisar infecção; asfixia
prematuridade
€€ na persistência do quadro, considerar a admi- 3. Fatores pós-natais
nistração de insulina. parada abrupta do inflluxo materno de cálcio via placenta
aumento da calcitonina
baixo aporte de cálcio na dieta
Distúrbios de cálcio, hipoparatireoidismo
B. Tardia
fósforo e magnésio hiperfosfatemia
deficiência de magnésio
Durante a vida intrauterina, a maior fase de incor- má absorção intestinal de cálcio
poração de cálcio e fósforo ocorre no terceiro trimestre C. Miscelânea
gestacional, a partir da 24ª semana, correspondendo a ausência congênita da paratireoide
80% do processo de mineralização óssea, com pico de in- fototerapia
corporação entre 34 e 36 semanas de idade gestacional deficiência ou defeito do metabolismo da vitamina D
(cálcio entre 100 a 120 mg/kg/dia e fósforo entre 65 e exsanguineotransfusão com sangue citratado
70 mg/kg/dia, nesse momento). Portanto, as concen- terapia com diuréticos de alça
trações de cálcio e fósforo estão diretamente rela- acidose corrigida com álcalis
cionadas com a idade gestacional de nascimento aumento de ácidos graxos livres de cadeia longa
e o tipo de alimentação instituído (leite materno, insuficiência renal
fórmulas, nutrição parenteral, jejum prolongado). A ho- sepse
meostase mineral envolve o controle das concentrações Tabela 18.3

SJT Residência Médica – 2016


196
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

€€ Hipocalcemia neonatal precoce. exercendo assim um efeito hipocalcêmico di-


É aquela em que o início do quadro se instala an- reto por meio do aumento da reabsorção óssea
de cálcio. Exsanguineotransfusão com sangue
tes das primeiras 48-72 horas de vida e representa uma
citratado pode levar à hipocalcemia ionizada,
queda mais acentuada na concentração de cálcio do que
uma vez que o citrato forma complexos com o
aquela que ocorre fisiologicamente após o nascimento.
cálcio, reduzindo o cálcio iônico. A deficiência
€€ Recém-nascido prematuro: a incidência de hipo- de vitamina D ou disfunções no seu metabolis-
calcemia em prematuros está diretamente relacio- mo associam-se à hipocalcemia (hepatopatias,
nada à idade gestacional, sendo que a oferta limita- raquitismo dependente de vitamina D etc.).
da é uma das principais causas para a instalação do
Na terapia crônica com furosemida observa-
quadro. Além disso, um hipoparatireoidismo tran-
-se hipercalciúria com consequente hipocalcemia.
sitório, aumento nos níveis de calcitonina e uma
resistência relativa à ação da 1,25(OH)2D contri-
Documentam-se hiperparatireoidismo secundário,
buem para a manutenção do estado hipocalcêmico. nefrolitíase e fraturas patológicas em recém-nascidos
portadores de displasia broncopulmonar tratados cro-
€€ Filho de mãe diabética: a hipomagnesemia nicamente com furosemida, ocorrendo também inter-
materna e fetal pode levar a uma inibição da
ferência na reabsorção tubular de magnésio.
paratireoide e diminuir a produção de PTH, de-
sencadeando a hipocalcemia nessa população. A alcalose respiratória ou a assistência ventilató-
ria com hiperventilação podem determinar desvios do
€€ Asfixia perinatal: entre as causas de hipocalce-
cálcio ionizado em direção à fração ligada a proteínas.
mia para esse grupo estão o atraso na introdução
de leite, a insuficiência renal, acidose, catabolismo A correção da acidose está associada com a movimen-
acentuado e uma hiperfosfatemia devido à lesão tação do cálcio sanguíneo para os ossos (clássica hi-
celular e que induz relativa resistência ao PTH. pocalcemia pós-correção da acidose), aumentando a
calcificação ou diminuindo a reabsorção óssea.
€€ Filhos de mães com síndromes epilépticas:
o uso de anticonvulsivantes como fenobarbital Durante a infusão de nutrição parenteral prolon-
e hidantoína pode aumentar o catabolismo he- gada (NPP) com lípides em recém-nascidos enfermos,
pático da vitamina D e determinar a hipocalce- pode-se ter aumento dos ácidos graxos de cadeia longa
mia materna e neonatal. que formam complexos com o cálcio, podendo levar à
Após o nascimento, os níveis séricos de cálcio e de hipocalcemia.
fósforo caem em 24 a 48 horas, exigindo adaptações hor- A insuficiência renal leva à hiperfosfatemia. Esta
monais para a homeostase desses minerais. Os níveis de tende a desviar o fluxo de cálcio para os ossos, além de
PTH aumentam, a calcitonina está mais alta que no perío- diminuir a síntese de calcitriol. Ambas as alterações re-
do antenatal e os níveis de calcitriol se elevam, permitindo duzem os níveis de cálcio plasmático. Na septicemia e na
uma melhor absorção intestinal do cálcio. Após 48 horas síndrome do choque tóxico, a diminuição do cálcio tem
de vida, os níveis de calcitonina caem significativamente. uma fisiopatologia complexa, envolvendo secreção ina-
€€ Hipocalcemia neonatal tardia: costuma ocorrer propriada e decréscimo de função do PTH, resistência
em recém-nascidos de termo saudáveis, e os sinais periférica ao PTH, insuficiente hidroxilação hepática da
clínicos aparecem ao final da primeira semana de vitamina D, resistência ao calcitriol, migração intracelu-
vida. É mais comum em meninos e está relacionada lar e aumento da quelação do cálcio. O uso de agentes que
com a oferta de leite e cereais ricos em fosfatos e elevam o cálcio sérico ou o influxo de cálcio pode ser lesi-
fitatos, à baixa ingestão materna de vitamina D du- vo, como ocorre na sepse e na reperfusão pós-isquemia.
rante a gestação, à má absorção intestinal de cálcio,
à hipomagnesemia ou ao hipoparatireoidismo. A
ingestão relativamente alta de fosfato nas fórmulas Diagnóstico
lácteas, associada com a baixa taxa de filtração glo- O diagnóstico da hipocalcemia é feito por meio
merular no período neonatal, incrementa os níveis da dosagem do cálcio sérico (total e ionizado). Dados
séricos de fósforo e consequente decréscimo dos ní- da história, faixa etária, análise de outros eletrólitos,
veis de cálcio. A introdução de fórmulas adaptadas condição do equilíbrio acidobásico e eletrocardiogra-
para o recém-nascido, com menor conteúdo de fos- ma também são úteis.
fato, tem diminuído a frequência da hipocalcemia
neonatal tardia. A hipocalcemia pode ser assintomática na
maioria das vezes ou associada a sintomas ines-
€€ Miscelânea: alguns casos de hipocalcemia po- pecíficos como tremores, cianose, apneia, con-
dem ocorrer em qualquer fase do período neo-
vulsões, laringoespasmos, vômitos, taquicardia,
natal ou mesmo posteriormente em lactentes.
hipertonia extensora, entre outros.
A ausência congênita das paratireoides é fami-
liar e rara. No emprego da fototerapia, a utili- Uma vez estabelecido o diagnóstico de hipocal-
zação da luz branca inibe a secreção pineal de cemia ionizada, deve-se preferencialmente mensurar
melatonina, bloqueando o efeito do cortisol, os níveis plasmáticos de magnésio e fósforo. Amostra

SJT Residência Médica – 2016


197
18  Distúrbios metabólicos

plasmática para dosagem de PTH é de utilidade poste- €€ Nos recém-nascidos sintomáticos sem convulsão
rior na investigação diagnóstica. Dosagem de calcidiol ou assintomáticos com cálcio ionizável < 3,5 mg/
e calcitriol não é realizada rotineiramente. dL ou cálcio total < 6 mg/dL vários esquemas têm
sido propostos quanto às doses, intervalos (in-
No eletrocardiograma (ECG), um QTC maior que
termitente ou contínua), vias de administração
0,4 s pode sugerir, valores baixos de hipocalcemia, e redução de doses. Atualmente, o mais aceito é
mas não predizê-los. a forma de administração contínua (pois evita
grandes perdas renais) e em doses decrescentes,
dando-se 75 mg/kg/dia (8,3 mL/kg/dia de glu-
conato de cálcio a 10%) nas primeiras 24 horas
de tratamento, até que a concentração sérica de
cálcio tenha atingido valores normais. Após isso,
a velocidade de infusão é reduzida em 50% em
24 horas e em 25% nas 24 horas seguintes, sendo
possível suspender após esse período.
Os preparados de gluconato de cálcio a 10% para uso
endovenoso são bem tolerados por via oral, e as doses diá-
rias descritas podem ser administradas por via enteral em
intervalos de quatro a seis horas. Entre as principais compli-
Figura 18.1  Na hipocalcemia há alongamento do in- cações decorrentes da infusão endovenosa de cálcio estão o
tervalo QT à custa do segmento ST. Na hipercalcemia há extravasamento para os tecidos moles ocasionando necrose
diminuição do intervalo QT também à custa do segmen- tecidual e calcificação, bradicardia e as precipitações quando
to ST, de forma que a onda T parece partir diretamente administrados juntamente com bicarbonato e fosfatos.
do final do complexo QRS.

Os recém-nascidos com risco de apresentar hi- Hipercalcemia


pocalcemia devem ser monitorados pela dosagem de
Considera-se hipercalcemia quando os níveis sé-
cálcio sérico nas primeiras 12 e 24 horas de vida e pos-
ricos de cálcio estão acima de 10,8 mg/dL (2,7 mmol/L)
teriormente, quando necessário.
ou de cálcio ionizável acima 5 mg/dL.
A hiperfosfatemia (fósforo sérico > 8 mg/dL) e a
hipomagnesemia (magnésio sérico < 1,5 mg/dL) de-
vem ser investigadas, pois seu tratamento específico Pode ocorrer devido a:
está associado à correção da hipocalcemia. €€ reabsorção óssea elevada em decorrência de hi-
perparatireoidismo, hipertireoidismo, hipervita-
minose A, depleção de fosfatos e hipofosfatasia;
Tratamento €€ aumento da absorção intestinal de cálcio por hi-
A forma assintomática pode não necessitar de pervitaminose D ou iatrogênica;
tratamento, porém recém-nascidos com cálcio sérico €€ redução da depuração renal de cálcio decorrente
total menor que 6 mg/dL (cálcio ionizável < 3,5 mg/ do uso de diuréticos tiazídicos ou, ainda, da hi-
dL) ou sintomáticos devem ser tratados com o intuito percalcemia hipocalciúrica familiar;
de evitar convulsões e outros sintomas. A terapêuti-
€€ outras causas como hipercalcemia idiopática
ca consiste na administração de sais de cálcio, por via
infantil, necrose gordurosa subcutânea, erro
oral ou parenteral, e na resolução da causa básica. Po-
inato do triptofano (síndrome da fralda azul),
demos dividir o tratamento da hipocalcemia no perío- insuficiência suprarrenal aguda.
do neonatal de acordo com os sintomas apresentados.
Quanto ao quadro clínico, podem ser assinto-
€€ Recém-nascidos com convulsões, tetania ou ap-
máticas ou apresentar-se com manifestações clínicas
neia devem receber infusão endovenosa de cál-
inespecíficas como letargia, irritabilidade, poliúria, hi-
cio, preferencialmente sob a forma de glucona-
potonia, recusa alimentar, vômitos, constipação, de-
to, na dose de 18 mg/kg de cálcio elementar (2
mL/kg de gluconato de cálcio a 10%). A veloci- sidratação, hipertensão, nefrocalcinose, entre outras.
dade de infusão deve ser lenta (0,5 mL/kg/min)
devido aos riscos de disritmias cardíacas, sen- Diagnóstico
do obrigatória a monitorização da frequência
cardíaca e do ECG. Recomenda-se a suspensão O diagnóstico no período neonatal baseia-se
temporária da infusão se a frequência cardíaca fundamentalmente nos dados da história clínica dos
se reduzir para menos de 80 bpm. Após a dose antecedentes dietéticos e medicamentosos maternos,
de ataque, inicia-se a fase de manutenção, como dosagem sérica de cálcio, fósforo e magnésio, fosfata-
está explicado a seguir. se alcalina e dos hormônios reguladores do cálcio.

SJT Residência Médica – 2016


198
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O diagnóstico das hipercalcemias na infância é rea- Assim como com o cálcio, ocorre o acúmulo de
lizado por meio dos seguintes exames: dosagem do cálcio fósforo (cerca de 80%) durante o terceiro trimestre da
(total e ionizado) e fósforo, fosfatase alcalina, hemograma, gestação. Os níveis séricos de fósforo estão aumenta-
proteínas totais, ureia e creatinina, dosagem do PTH e ra- dos no feto (em relação ao materno) e continuam ele-
diografias de tórax, de crânio, da coluna lombar e das mãos. vados nas primeiras 24 horas de vida, ao contrário do
Os casos que cursam com PTH elevado frequen- cálcio, mantendo-se acima dos encontrados em adul-
temente se relacionam ao hiperparatireoidismo pri- tos. A maior parte do fósforo plasmático encontra-se
mário ou persistente devido à hiperplasia da parati- na forma inorgânica (monovalente e divalente) e uma
reoide após transplante renal, secreção ectópica de pequena porcentagem sob a forma orgânica, forman-
PTH, uso crônico de diuréticos tiazídicos ou hipercal- do os fosfolípides. Somente 1% do fósforo corpóreo
cemia familiar benigna. total está distribuído no espaço extracelular, enquan-
No hiperparatireoidismo primário existem au- to 85% estão depositados nos ossos (ligado ao cálcio)
mento do cálcio (total e ionizado), redução do fósforo e 14% nos tecidos moles.
e do magnésio, aumento da fosfatase alcalina, anemia,
Cerca de 50% a 65% da do fósforo ingerido é
aumento do VHS, aumento da ureia, acidose hiper-
clorêmica e aumento da secreção de AMP cíclico. absorvido principalmente no jejuno, o que pode
ser diminuído pela alta ingestão de cálcio ou
Nos casos de tuberculose, sarcoidose e na intoxi- pelo uso de antiácidos. Aproximadamente 80% do
cação por vitamina D, os níveis de PTH costumam es-
fósforo inorgânico é reabsorvido no túbulo proximal
tar normais. A radiografia do esqueleto pode auxiliar
por processo ativo, com o sódio. A reabsorção renal é
no diagnóstico, se houver desmineralização óssea ou
nos casos de fraturas patológicas. diminuída pelo PTH e pela calcitonina, resultando no
aumento da fosfatúria.
Na hipercalcemia familiar benigna os pacientes
são assintomáticos. Os níveis de cálcio (total e ioniza- Expansões de volume aumentam a perda uri-
do) estão elevados e o PTH, normal. nária desse íon, assim como estão envolvidas com a
diminuição da concentração sérica de cálcio ionizado.
Vale ressaltar que os exames solicitados deverão
As soluções salinas utilizadas como expansores de
ser pertinentes com as etiologias mais frequentes e
deverão ser individualizados. volume e o resultante aumento na excreção renal de
sódio inibem secundariamente a absorção de fósforo.
Outros hormônios, como corticoides, a glicose e a vi-
Tratamento tamina D também diminuem sua reabsorção renal.
O tratamento deve ser direcionado principal- A hipofosfatemia estimula a síntese de calcitriol,
mente para a remoção da causa básica. que aumenta a reabsorção renal e a absorção intestinal
Na fase aguda, o tratamento consiste basicamen- de fósforo e de cálcio.
te na eliminação das causas básicas, hidratação endo- Virtualmente todo o fósforo plasmático encon-
venosa com expansão volêmica com solução salina (10 tra-se na forma inorgânica, uma pequena parte com-
a 20 mL/kg), furosemida (1 a 2 mg/kg), reposição de pondo os fosfolípides. Os níveis séricos variam de
magnésio e suplementação de fosfato nos casos de de-
acordo com a idade:
pleção do mesmo. Essa última correção deve ser lenta,
objetivando a prevenção da hipocalcemia, resultante €€ recém-nascidos = 4,2 a 9 mg/dL;
do excesso de fosfato. As perdas urinárias de sódio, de €€ de um a cinco anos = 3,5 a 6,5 mg/dL;
potássio e de água devem ser repostas a cada seis ho-
ras e o desequilíbrio hidroeletrolítico evitado.
€€ maiores de cinco anos = 2,5 a 4,5 mg/dL.

Em alguns casos, considerar o uso de glicocorti-


coides (hidrocortisona 10 mg/kg/dia), calcitonina 4-8
U/kg SC ou IM a cada 12 horas. Hipofosfatemia
Nos casos crônicos, deve-se reduzir a ingestão de A hipofosfatemia é mensurada por meio do nível
cálcio, vitamina D e a exposição aos raios solares. sérico, sendo moderada entre 1,5 a 2,5 mg/ dL e grave
quando menor que 1,5 mg/dL. Em geral, os sintomas
ocorrem quando o nível sérico é inferior a 1,5 mg/dL.
Distúrbios do metabolismo As principais causas de hipofosfatemia são a al-
calose respiratória, a nutrição parenteral, a síndrome
do fósforo de realimentação do desnutrido grave, a cetoacidose
O fósforo exerce importante papel na estrutura (ver capítulo de diabetes melito), a vitimização por
da membrana celular bem como de suas funções, prin- queimadura extensa, a intoxicação alcoólica e as dro-
cipalmente a relacionada à produção da energia celular gas que diminuem a reabsorção intestinal (como o hi-
(ATP), mineralização óssea e excreção ácida renal. dróxido de alumínio ou de magnésio).

SJT Residência Médica – 2016


199
18  Distúrbios metabólicos

Quadro clínico hepático, e somente 1% no espaço extracelular. As con-


centrações séricas normais estão entre 1,5 e 2 mg/dL. A
Embora vários órgãos e sistemas possam ser afe- concentração fetal é maior que a materna devido a um
tados pela hipofosfatemia severa, incluindo o sistema transporte ativo por meio da placenta. O magnésio tem
nervoso central, o cardiovascular, o musculoesquelé- homeostase paralela à do cálcio, sendo os seus distúr-
tico, o hematológico, os rins e o fígado, a disfunção bios também correlacionados. Embora a redução agu-
respiratória é a que mais chama a atenção. da do magnésio sérico estimule a produção do PTH, a
Os sintomas neurológicos incluem irritabilidade hipomagnesemia persistente leva à hipocalcemia, uma
e apreensão seguida de fraqueza, neuropatia periféri- vez que a produção do PTH, bem como a resposta do ór-
ca com parestesia, disartrias, confusão mental, crises gão terminal a esse hormônio, é suprimida por causa da
convulsivas e coma. Quadro clínico comparável ao da diminuição dos níveis séricos de magnésio. O magnésio
síndrome de Guillain-Barré também foi descrito. é ativamente reabsorvido por meio do néfron, embo-
ra reabsorção passiva possa ocorrer no túbulo. A maior
Tratamento parte do magnésio filtrado é absorvida na alça de Henle,
com uma pequena parte ocorrendo no túbulo proximal
Como com os outros minerais, a terapêutica oral
ou distal. A absorção de magnésio ocorre primariamen-
é preferível, porém, quando o nível é grave, a terapêu-
te no jejuno e no íleo. Aproximadamente 30% a 40%
tica intravenosa é necessária. Em geral recomendam-
do magnésio ingerido é absorvido, mas em estados de
-se 0,15 a 0,33 mmol/kg/dose (5 a 10 mg/kg/dose)
deficiência pode alcançar 70%. O magnésio é secretado
infundidos em pelo menos seis horas.
na bile e nos sucos gástrico e pancreático, o que é rea-
bsorvido em boa parte. Apenas 3% a 5% do magnésio
Hiperfosfatemia filtrado é excretado na urina.
Insuficiência renal aguda e crônica com diminui- Fatores que podem diminuir a reabsorção tubular
ção da excreção de fósforo são as causas mais comuns de magnésio incluem: expansão do volume extracelular;
de hiperfosfatemia, ocorrendo quando a taxa de filtra- vasodilatação renal; diurese osmótica; agentes diuréti-
ção glomerular é menor que 30 mL/ min. Outras causas cos; glicosídeos cardíacos; hipercalcemia; sobrecarga de
incluem síndrome de lise tumoral, infusão rápida de sódio; hormônio de crescimento; hormônio tireóideo;
fosfato de potássio e uso de enema de fosfato de sódio. calcitonina; e excesso crônico de mineralocorticoide.
A concentração normal de magnésio no sangue é
Quadro clínico mantida dentro de limites estreitos e varia entre 1,5 e
As principais consequências clínicas da hiperfos- 2 mEq/L (1,8/2,4 mg/dL).
fatemia severa estão associadas à hipocalcemia, tais
como crises convulsivas, coma e disritmia, até parada Hipomagnesemia
cardíaca. A hiperfosfatemia prolongada pode estar as-
sociada a depósito tecidual de fosfato de cálcio. É caracterizada por nível sérico de magnésio in-
ferior a 1,5 mg/dL, sendo as principais causas apre-
Tratamento sentadas na Tabela 18.4.

Consiste na administração de substâncias que Hipomagnesemia sintomática ocorre frequente-


aumentam a perda de fósforo, como o hidróxido de mente em associação a patologias do trato gastroin-
alumínio, mas se há insuficiência renal deve-se re- testinal, como síndrome do intestino curto e outras
correr a métodos dialíticos. A correção dos distúrbios relações associadas à esteatorreia. Sinais de irritabi-
lidade neuromuscular e de alterações eletrocardiográ-
hidroeletrolíticos associados, em especial a hipocalce-
ficas, particularmente em criança com desnutrição
mia, é parte essencial do tratamento.
proteico-calórica, estão frequentemente associados a
baixos níveis séricos de magnésio. A maioria desses
casos pode se beneficiar com reposição de magnésio.
Distúrbios do metabolismo Tanto hiperparatireoidismo como hipoparati-
reoidismo podem cursar com hipomagnesemia. O que
do magnésio ainda não está definido é se o hormônio paratireóideo
O magnésio possui papel fundamental na fisio- exerce seu efeito diretamente sobre o magnésio ou
logia da célula e catalisa muitos processos enzimáticos secundariamente por meio de seu efeito sobre o cál-
envolvidos na transferência, no armazenamento e na cio. Na maioria dos casos de hiperparatireoidismo, o
utilização de energia, particularmente daquelas que nível sérico de magnésio está normal. Tireotoxicose
também requerem adenosina-trifosfato (ATP). Cerca está associada à hipomagnesemia e balanço negativo
de 60% do magnésio corpóreo total encontra-se nos os- de magnésio, mas o mecanismo específico desse efeito
sos, 40% nos tecidos moles, principalmente muscular e é desconhecido.

SJT Residência Médica – 2016


200
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Existem evidências que sugerem o envolvimento Inter-relação entre hipomagnesemia e


do magnésio extracelular na regulação do tônus vaso-
balanço de potássio, fósforo e cálcio
motor. Hipomagnesemia aguda está frequentemente
associada a elevações na pressão sanguínea e na resis- A deficiência de magnésio parece afetar as con-
tência vascular periférica. Hipomagnesemia progres- centrações de potássio, fósforo e cálcio do organismo
siva durante a gravidez devida a dieta pobre em mag- por mecanismos variados e não totalmente elucidados
nésio ou defeito no metabolismo do magnésio podem até o momento.
produzir vasoconstrição progressiva, resultando em Tanto o magnésio quanto o potássio são cátions
espasmo das artérias e veias umbilicais, da placen- intracelulares, existindo estreita inter-relação entre
ta e de outros vasos periféricos na grávida e no feto, ambos. Estados de deficiência de magnésio são geral-
aumentando a probabilidade de recém-nascido com mente acompanhados de hipocalemia e aumento da
crescimento intrauterino retardado. Em áreas onde a excreção urinária de potássio. A reposição do potássio
água e o solo são pobres em magnésio, a ocorrência na presença de deficiência de magnésio é mais difícil
de morte súbita por doença isquêmica do coração e a e mais lenta. Em situações clínicas em que coexistam
incidência de mortalidade e malformações congênitas a depleção severa de potássio e a deficiência de mag-
são maiores. Os efeitos da concentração extracelular nésio, a suplementação maciça de cloreto de potássio
de magnésio no tônus vascular refletem a influência pode ser rapidamente excretada na urina e falhar na
desse íon na permeabilidade da membrana ao cálcio. correção da hipocalemia profunda até que a deficiên-
cia de magnésio seja restaurada. No entanto, mesmo
A captação de digoxina pelas células miocárdicas na ausência de reposição de potássio, a reposição de
está aumentada na presença de depleção de magnésio, magnésio sozinha é suficiente para corrigir a hipocale-
aumentando a possibilidade de intoxicação digitálica. mia. A captação celular deficiente de potássio, apesar
O mecanismo pelo qual a hipomagnesemia predispõe da suplementação maciça durante períodos de defici-
a disritmias cardíacas não está definido, mas hipo- ência de magnésio, sugere que a falta de magnésio faz
magnesemia causa prolongamento do intervalo com que as células não consigam estabelecer um gra-
QT, uma mudança conhecida como predisposta a diente transcelular normal para o potássio. A deple-
disritmias ventriculares. ção intracelular de magnésio e de potássio geralmente
está associada à depleção intracelular de fosfato.
A inter-relação das alterações desses três íons
Causas de deficiência de magnésio
intracelulares é desconhecida, mas o padrão das mu-
1. Diminuição da oferta danças eletrolíticas intracelulares que ocorre com a
Desnutrição proteico-calórica deficiência de magnésio pode ser decorrente de dois
Terapia intravenosa prolongada possíveis mecanismos:
Hipomagnesemia materna
2. Diminuição da absorção intestinal €€ o aumento do sódio intracelular sugere a passa-
Síndromes de má absorção gem de sódio para o compartimento intracelular,
Ressecção cirúrgica maciça do intestino delgado mantendo a neutralidade elétrica que foi altera-
Hipomagnesemia neonatal com má absorção seletiva de da pela perda tecidual de potássio e magnésio;
magnésio €€ a depleção de magnésio, interferindo na produ-
3. Perdas excessivas de fluidos corporais ção de ATP, pode causar disfunção da célula que
Sucção nasogástrica prolongada não é mais capaz de manter um gradiente trans-
Fístulas intestinais e biliares celular normal para sódio e potássio.
Diarreia prolongada Outra manifestação importante da deficiência de
Causas de deficiência de magnésio (Cont.) magnésio é a hipocalcemia. Na depleção de magnésio
4. Perdas urinárias excessivas parece provável que os mecanismos reguladores que
Terapia diurética mantêm o cálcio sérico dentro dos limites normais não
Fase poliúrica da insuficiência renal aguda operam adequadamente. Vários fatores podem ser res-
Hiperaldosteronismo primário ponsabilizados pela hipocalcemia, tais como a resistência
Acidose tubular renal do órgão-alvo ao PTH, a inibição da liberação do PTH, a
Diabetes melito, durante e após o tratamento da cetoaci- formação prejudicada do PTH e a alteração no equilíbrio
dose
entre o cálcio no fluido extracelular e no tecido ósseo.
Hipertireoidismo
Hiperparatireoidismo A correção efetiva da hipocalcemia que acompa-
Hipoparatireoidismo nha a deficiência de magnésio só é conseguida com a
Perda renal idiopática de magnésio administração de magnésio. Uma vez que essa hipo-
Excesso de vitamina D calcemia não pode ser corrigida de maneira adequa-
Terapia com aminoglicosídeo da com a administração de cálcio, a hipomagnesemia
Insuficiência renal crônica com perda renal de magnésio deve ser suspeitada em qualquer criança com tetania
Tabela 18.4 que não responde à terapia com cálcio.

SJT Residência Médica – 2016


201
18  Distúrbios metabólicos

Quadro clínico O teste de sobrecarga intravenosa de magnésio


pode ajudar no diagnóstico da deficiência de mag-
Os sinais e sintomas da depleção de magnésio es- nésio. Pacientes normais excretam todo o magnésio
tão frequentemente superpostos ou mascarados pelas
administrado parenteralmente em 24 a 48 horas, en-
manifestações clínicas da alteração básica que causou
quanto aqueles com deficiência de magnésio podem
o estado de deficiência de magnésio.
reter mais de 20% da dose administrada, mesmo na
As principais manifestações clínicas de deple- presença de níveis séricos normais. Esse teste é válido
ção de magnésio incluem distúrbios neuromuscula- apenas quando a função renal está normal e quando
res e alterações do comportamento, como as rela- a depleção de magnésio não é devida à inabilidade do
cionadas na tabela a seguir. rim em conservar magnésio.
Manifestações da deficiência de magnésio Os exames laboratoriais que podem ser usados
Anorexia para diagnóstico de distúrbios do metabolismo do
Náusea magnésio são apresentados na tabela a seguir.
Fraqueza muscular
Tetania
Tremores Alterações laboratoriais da deficiência de mag-
Fasciculações nésio
Espasticidades €€ Hipomagnesemia, hipocalcemia, hipocalemia
Ataxia, vertigem
€€ Hipofosfatemia, ocasionalmente hiperfosfatemia
Hiper-reflexia, ocasionalmente hiporreflexia
Espasmo carpopodálico €€ Diminuição do magnésio e cálcio urinário
Irritabilidade €€ Diminuição de magnésio no liquor
Confusão mental, obnubilação, coma €€ Diminuição do magnésio no tecido muscular
Convulsões €€ Eletrocardiograma: prolongamento de QT, alarga-
Hipotermia
mento e diminuição de amplitude das ondas T, en-
Disritmias
curtamento ocasional do segmento ST
Tabela 18.5
€€ Eletromiografia pode mostrar potenciais que mime-
tizam miopatia
A observação de que a deficiência sintomática de Tabela 18.6
magnésio parece só ocorrer em pacientes que também
apresentam hipocalemia e hipocalcemia faz supor que
não há uma síndrome de deficiência de magnésio es-
pecífica, mas um espectro de manifestações neuroló- Tratamento
gicas e gastrointestinais não específicas relacionadas
Nos casos leves, uma dieta rica em magnésio (car-
também, pelo menos em parte, a alterações secundá-
ne bovina e de peixe, vegetais verdes, cereais, leite e seus
rias na homeostase do cálcio e potássio.
derivados) repõe prontamente os estoques corporais
desse íon. Nos casos sintomáticos e nos causados por
Diagnóstico má absorção intestinal, o tratamento consiste na repo-
O diagnóstico da deficiência de magnésio é difí- sição parenteral com sais de magnésio, na dose de 0,2
cil, uma vez que os níveis sanguíneos de magnésio nem mEq/kg a cada seis horas (0,1 mL/kg de uma solução de
sempre refletem o conteúdo total desse íon no organis- sulfato de magnésio a 24%). A adição de 3 a 5 mEq/L de
mo. Mesmo assim, a dosagem sérica de magnésio é o magnésio nos líquidos de manutenção para pacientes
ponto de partida na avaliação de crianças com suspeita em terapia parenteral prolongada pode diminuir a pos-
de deficiência de magnésio. O segundo passo é a deter- sibilidade de deficiência severa. Na hipomagnesemia
minação da excreção urinária de magnésio em 24 horas. neonatal a dose recomendada é 0,25 mL/ kg/dose de
Se os tubos forem normais, é pouco provável que exista uma solução de sulfato de magnésio a 50%, uma a duas
uma deficiência significativa de magnésio. No entanto, vezes ao dia, dependendo da resposta clínica.
se o magnésio sérico é menor que 1 mEq/L e a excreção
Durante o período de tratamento, a magnesemia
urinária de magnésio é inferior a 1 mEq/dia, há indica-
ções fortemente sugestivas de um estado de deficiência. deve ser monitorada uma a duas vezes ao dia, antes da
próxima tomada. O tratamento deve ser suspenso com
Na presença de sintomas e de níveis séricos de a normalização da magnesemia, salvo nos casos de má
magnésio diminuídos, o diagnóstico não é difícil. A absorção, nos quais são necessárias doses quatro a cin-
concentração de magnésio em eritrócitos, o conteúdo co vezes maiores e por um período prolongado.
muscular de magnésio, a fração permutável de mag-
nésio, o balanço de magnésio e as biópsias ósseas têm O tratamento de escolha para convulsões por hi-
sido usados na determinação do diagnóstico de defici- pomagnesemia é o sulfato de magnésio a 50%, na dose
ência de magnésio. Esses métodos são todos de difícil de 0,05 a 0,1 mL/kg (2,5 a 5 mg de magnésio elemen-
execução e pouco disponíveis. tar), por via intramuscular ou intravenosa. Quando do

SJT Residência Médica – 2016


202
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

uso da via endovenosa, complicações como hipoten- ocasionada pela diminuição da contratilidade da mus-
são sistêmica, prolongamento do tempo de condução culatura lisa, que ocorre também em nível vascular.
atrioventricular e bloqueio atrioventricular devem ser Sonolência deve-se, pelo menos em parte, à hipóxia
monitoradas. Pode ser necessário repetir a dose a cada secundária à paresia dos músculos respiratórios. Esses
oito ou 12 horas. efeitos do bloqueio neuromuscular podem ser rever-
tidos com a administração de altas doses de cálcio ou
pela fisostigmina.
Hipermagnesemia
Hipermagnesemia é caracterizada por concen-
tração sérica do íon maior que 2 mEq/L, embora a
Tratamento
maioria dos casos só apresente manifestações clínicas O tratamento do recém-nascido com hipermag-
quando essa concentração está acima de 4 mEq/L. nesemia sérica pode requerer manobras de ressuscita-
Dos casos relatados de hipermagnesemia em ção cardiorrespiratória e ventilação mecânica assistida
crianças, a maioria se refere a recém-nascidos de mães até que a depressão do centro respiratório e a hipoto-
com eclâmpsia ou pré-eclâmpsia grave, tratados com nia muscular sejam superadas.
sulfato de magnésio sistêmico antes do parto. A in- O cálcio tem sido usado para antagonizar a de-
suficiência renal aguda e a insuficiência suprarrenal pressão do sistema nervoso central e o bloqueio na
podem cursar com elevações importantes dos níveis transmissão periférica causado pelo excesso de mag-
séricos de magnésio. A intoxicação iatrogênica pode nésio. O efeito do cálcio é temporário, e nos casos
ocorrer pelo uso de enemas de sulfato de magnésio, graves não deve ser esperada uma reversão completa
como no tratamento do megacólon ou de purgativos do quadro, uma vez que parece pouco provável que o
por via oral. cálcio consiga antagonizar todo o magnésio que foi es-
tocado no tecido muscular e no osso. A dose recomen-
Quadro clínico dada é semelhante à usada na hipocalcemia (glucona-
to de cálcio a 10% - 6 mL/kg/dia, por via endovenosa,
Concentrações séricas elevadas de magnésio
que corresponde a 54 mg de cálcio elementar).
causam bloqueio neuromuscular periférico e depres-
são do sistema nervoso central. Têm ação semelhante Embora a diurese forçada não seja um método
ao curare na placa motora, causando diminuição da eficiente para o tratamento, a fluidoterapia intraveno-
liberação de acetilcolina e paralisia muscular. Ocorre sa é importante para a manutenção do balanço hidro-
depressão da função cardíaca devido ao efeito direto eletrolítico e para a correção de acidose metabólica. A
na musculatura cardíaca. Hipotensão arterial deve ser diálise peritoneal é outra opção terapêutica.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

19
Sepse neonatal

ocorre principalmente por ascensão de bactérias do tra-


Definição to genital materno até a cavidade amniótica (especial-
mente no início do trabalho de parto ou com a rotura
Sepse é definida como síndrome da resposta in- das membranas) e ocasionalmente por via hematogêni-
flamatória sistêmica (SIRS) associada à infecção. Du- ca ou transplacentária. Anamnese materna minuciosa,
rante o período neonatal, quando a infecção se englobando dados clínicos e pré-natais, deve ser pes-
manifesta nas primeiras 72 horas, é considera- quisada para suspeita e diagnóstico rápido e preciso dos
da precoce e após esse período, tardia ou noso- neonatos suscetíveis. Os principais fatores de risco para
comial. A sepse precoce está associada às complica- sepse precoce são: trabalho de parto prematuro sem
ções obstétricas pré-natais ou intraparto, enquanto causa aparente, rotura prematura de membranas ovu-
a tardia está relacionada ao ambiente hospitalar e lares e/ou rotura > 18 horas, sinais clínicos de corioam-
procedimentos aplicados ao recém-nascido durante a nionite materna (febre, hipotonia uterina, fisometria,
internação. A sepse comprovada é definida pela alte- taquicardia fetal), infecção materna, febre materna (38
ração clínica acompanhada de hemocultura positiva. ºC) durante o trabalho de parto ou logo após o nasci-
Quando há suspeita clínica e/ou laboratorial, porém a mento, múltiplos conceptos, colonização materna por
hemocultura permanece negativa, é considerada sepse Streptococcus do grupo B. Outros fatores menores são:
provável ou suspeita. sexo masculino, asfixia perinatal e anomalias congêni-
tas. Os principais patógenos responsáveis pela infecção
precoce são: Streptococcus do grupo B, Streptococcus spp,
Listeria monocytogenes, Escherichia coli, Chlamydia tra-
Etiopatogenia chomatis e Ureaplasma urealyticum.
A sepse tardia ou nosocomial aparece principal-
A infecção precoce pode ocorrer devido à infec- mente em recém-nascidos prematuros devido à imatu-
ção intra-amniótica, durante a passagem pelo canal de ridade de seu sistema imunológico. Os procedimentos
parto ou após o nascimento. A infecção intra-amniótica e o ambiente hospitalar determinam a contaminação
204
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

e consequente infecção em pacientes internados. Os 3- Escore hematológico de Rodwell:


germes envolvidos nessas infecções variam dependen- *considerar um ponto para cada um dos itens:
do da unidade, sendo os mais comuns: Staphylococcus (Escore > 3 → sensibilidade 96%, especificidade 78%;
epidermidis, S. aureus, E. coli, Enterobacter spp, Kleb- Escore de 0-2 → valor preditivo negativo de 99% para
siella spp, Serratia spp, Pseudomonas spp, Acinetobacter diagnóstico de sepse neonatal).
spp e em alguns serviços, fungos. A meningite é mais
€€ leucopenia (< 5.000/mm3) ou leucocitose;
frequente na infecção tardia, e a letalidade permanece
em torno de 20%. €€ neutropenia ou neutrofilia;
Os principais fatores relacionados à infecção tar- €€ aumento dos neutrófilos imaturos;
dia são: ventilação mecânica, uso de cateter vascular, €€ aumento do índice neutrofílico;
nutrição parenteral, jejum prolongado, exposição à €€ neutrófilos imaturos sobre segmentados > 0,3;
flora bacteriana multirresistente, uso de antibióticos
de largo espectro, além de qualquer procedimento in- €€ alterações degenerativas nos neutrófilos (va-
vasivo, como punção vascular periférica, coleta de exa- cuolização e granulações tóxicas);
mes e instalação de sondas gástricas. €€ plaquetopenia (< 150.000/mm3).
4- Exame do LCR: quimiocitológico e bacterioscópico.
5- PCR, VHS, haptoglobina – sendo o PCR (pro-

Quadro clínico teína C reativa) o principal e o mais utilizado marca-


dor de infecção.
A apresentação clínica é variada e a história de 6- Exame radiológico – raio X de tórax.
infecção perinatal é importante, principalmente sus- A dosagem de marcadores séricos de proces-
peita de infecção materna. Os sinais clínicos mais so inflamatório como interleucinas, fator de necrose
importantes incluem: instabilidade térmica, tumoral, proteínas de fase aguda e procalcitonina foi
desconforto respiratório, crises de apneia, ta- utilizada como recurso para diagnóstico precoce da
quicardia, sintomas gastrointestinais como in- sepse. A especificidade e sensibilidade de tais marca-
tolerância alimentar com resíduos pós-alimen- dores demonstradas em alguns trabalhos não permi-
tares, distensão abdominal, diarreia e choque. tiram elegê-los como essenciais para o diagnóstico de
Sintomas neurológicos como convulsões podem sepse. Participam dos critérios diagnósticos de sepse a
indicar disseminação do processo infeccioso procalcitonina e a proteína C reativa.
para o SNC. O surgimento de sufusões hemor-
A procalcitonina é um precursor da calcitonina secre-
rágicas sugere a presença de coagulação intra-
tada pelas células C da tireoide e geralmente está elevada na
vascular disseminada. O quadro clínico pode ser
sepse grave. A dosagem seriada da calcitonina pode ser
insidioso, inespecífico e, algumas vezes, oligos-
útil como indicador prognóstico de falência múltipla
sintomático, sendo necessária, na suspeita de
de órgãos.
sepse, coleta imediata de exames laboratoriais e
considerar início precoce do tratamento. A proteína C reativa (PCR) é uma proteína de fase
aguda liberada pelo fígado em resposta a citocinas pró-
-inflamatórias. Apresenta sensibilidade de 50%-90% e
especificidade de 60%-90% no início da infecção. A do-
Diagnóstico sagem seriada dessa proteína aumenta a sensibilidade
diagnóstica para 75% a 98% e a especificidade para 90%,
laboratorial sendo utilizada em conjunto com hemograma e culturas
para o diagnóstico e seguimento dos quadros sépticos.
1- Culturas: hemocultura, urocultura (na infec-
ção tardia), cultura do LCR, cultura de abscessos ou de
outros locais com suspeita de infecção.
2- Hemograma completo: Tratamento
– leucocitose (> 20.000/mm3) ou leucopenia; 1- Medidas gerais: suporte hídrico, nutricional
– neutropenia (< 1.000-1.500/mm3) ou neutro- (parenteral), oxigenoterapia e manutenção do hema-
filia com índice neutrofílico > 0,2 (formas jovens/leu- tócrito, assim como monitorização rigorosa das fun-
cócitos totais); ções vitais como diurese, pressão arterial, saturome-
– plaquetopenia (< 100.000/mm3). tria e temperatura corpórea.

Vale ressaltar que os parâmetros hematológicos po- 2- Correção de distúrbios metabólicos e acidemia.
dem variar, dependendo do tempo de vida do neonato. 3- Antibioticoterapia:

SJT Residência Médica – 2016


205
19  Sepse neonatal

Sepse precoce: penicilina + aminoglicosídeo início precoce requer exposição do RN a colonização


(gentamicina). vaginal, através do líquido amniótico infectado ou de
Sepse tardia: oxacilina + aminoglicosídeo deglutição do inócuo durante o trânsito através do ca-
(amicacina). nal vaginal.
Pode variar conforme a flora hospitalar. É impor- TODAS as gestantes devem ser submetidas à
tante que cada unidade conheça os principais germes cultura vaginal para S. agalactiae com 35-37 semanas
locais e a suscetibilidade aos antimicrobianos utiliza- de gestação. Caso seja positivo, deve ser iniciada qui-
dos para orientar o tratamento. mioprofilaxia no início do trabalho de parto com pe-
nicilina cristalina (preferencialmente) ou ampicilina
Meningite: penicilina ou ampicilina + cefalos-
a cada quatro horas até o nascimento; a mulher não
porina de terceira geração.
deve ser tratada antes do parto. O tratamento é con-
Reavaliação do esquema antibiótico guiado siderado adequado quando a mãe recebeu no mínimo
pelos resultados das culturas. duas doses de antibiótico e a última dose foi feita pelo
4- Drogas inotrópicas. menos quatro horas antes do parto. Veja a seguir um
fluxograma com as condutas para os recém-nascidos
5- Imunoterapia: administração de imunoglo-
de mães que receberam ou não a profilaxia intraparto.
bulina humana, G-CSF (fator estimulador de colônias
de granulócitos, plasma fresco, conforme o caso).
O tempo de tratamento depende da evolução clí- Profilaxia materna

nica e hemocultura. Nos casos com hemocultura posi-


SIM
tiva e evolução favorável, o tratamento pode durar de
SIM
10 a 14 dias; se a hemocultura permanecer negativa, Sinais de sepse no RN
Coleta completa de exames
ATB empírico
pode-se manter o antibiótico por sete a dez dias. Nos
casos em que a suspeita clínica não foi confirmada e não NÃO
IG < 35s
houve alteração laboratorial nem positivação de cultu- Coleta limitada de exames
Idade gestacional
ras, os antimicrobianos devem ser suspensos o mais Obs.: por 48 horas

breve possível a fim de evitar surgimento de bactérias


IG > 35s
resistentes. Quando confirmada meningite, o neonato
deve ser tratado por pelo menos 21 dias, necessitando Não colher exames
Não iniciar ATB
de coleta de liquor de controle 72 horas após o início Obs.: por 48 horas

do tratamento e ao final do mesmo, bem como exa-


mes de imagens para pesquisa de sequelas e/ou com- Profilaxia materna

plicações. Nas sepses fúngicas, os cateteres vasculares


NÃO
devem sempre ser retirados; em infecções por outros
SIM
patógenos, principalmente S. epidermidis, considerar a Sinais de sepse no RN
Coleta completa de exames
ATB empírico
retirada dos mesmos caso apenas a antibioticoterapia
não esteja sendo suficiente para o tratamento, pois es- NÃO
ses dispositivos podem estar colonizados. IG < 35s
Coleta completa de exames
Idade gestacional
ATB empírico
Anexo: estreptococo do grupo B (agalactiae)
– Normas para tratamento: é a causa mais comum IG > 35s
de sepse neonatal e meningite nos EUA. Aproximada-
Coleta limitada de exames
mente 15% a 20% das mulheres nos EUA têm coloni- Obs.: por 48 horas
zação vaginal por estreptococo agalactiae. A doença de

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

20
Enterocolite necrosante

Introdução
Doença grave do recém-nascido, caracterizada por uma síndrome de etiologia multifatorial e não comple-
tamente conhecida, que cursa com inflamação e graus variáveis de necrose de coagulação da mucosa ou de toda
a espessura da parede intestinal. Acomete principalmente a região do íleo terminal e cólon ascendente, determi-
nando manifestações clínicas intestinais e/ou sistêmicas. Sua incidência é inversamente proporcional ao peso de
nascimento e idade gestacional, porém pode acometer recém-nascidos a termo em algumas situações. Trata-se da
emergência cirúrgica mais frequente no período neonatal. Devido aos avanços nos cuidados neonatais e à maior
sobrevida de recém-nascidos prematuros, houve aumento na incidência dessa patologia.

Fatores predisponentes
Prematuridade
Muito baixo peso ao nascer
Asfixia perinatal
Rotura prematura de membranas > 18 horas
Malformações do trato gastrointestinal
Cardiopatias congênitas
Persistência do canal arterial
Uso de indometacina
Policitemia
Restrição de crescimento intrauterino
Transfusões sanguíneas/Exsanguineotransfusões
Cateterismo de vasos umbilicais
Hipotensão
Uso materno de cocaína
Tabela 20.1
207
20  Enterocolite necrosante

Posteriormente à vasoconstrição, sobrevém a reperfu-


Principais mecanismos são, com a liberação de radicais livres e mediadores da
fisiopatológicos resposta inflamatória, com lesão da microvasculatura
e necrose tecidual. O principal mediador inflamatório
envolvido na gênese da lesão tecidual é o PAF (fator
Muitos fatores podem contribuir para o desenvol- agregador de plaquetas).
vimento de um segmento necrótico no intestino, acú-
mulo de gás na submucosa da parede intestinal (pneu-
matose intestinal) e progressão para a necrose levando 3- Nutrição enteral agressiva
à perfuração, sepse e morte. Cerca de 90% dos recém-nascidos com diagnósti-
co de enterocolite necrosante receberam dieta enteral.
1- Prematuridade A presença de dieta no lúmen intestinal serve como
substrato para o crescimento bacteriano, principal-
É o principal fator responsável pela ECN, estan- mente nos prematuros que têm maior dificuldade de
do associada à imaturidade do tubo gastrointestinal, absorção de nutrientes e maior exposição à ação das
resultando em redução dos fatores imunológicos lo- bactérias devido á menor motilidade intestinal.
cais, redução da motilidade e da função absortiva dada
a imaturidade do sistema enzimático, além de maior Os principais fatores associados à dieta que pre-
permeabilidade a macromoléculas. Esses elementos dispõem à enterocolite são:
facilitam a colonização bacteriana. Além disso, há uma €€ tipo de alimentação: risco menor em RNs que
imaturidade vasomotora diante das alterações hemo- recebem leite materno comparados aos que re-
dinâmicas da circulação esplâncnica. cebem fórmula;
€€ tempo de início da dieta enteral;
Fatores que predispõem o recém-nascido prema- €€ osmolaridade das fórmulas;
turo a desenvolver ECN €€ volume oferecido;
Hipocloridria gástrica €€ velocidade dos aumentos diários.
Insuficiência pancreática
Baixa produção de sais biliares
Diminuição da motilidade intestinal 4- Infecção
Deficiência de glutamina
Como foi relatado, vários fatores relacionados
Imaturidade na defesa imunológica gastrointestinal
Deficiência na produção de muco
à prematuridade predispõem a quadros de infecção,
Menor quantidade de peptídeos antibióticos (defensinas) como diminuição da motilidade, imaturidade imuno-
Menor atividade enzimática da mucosa intestinal lógica etc. Além disso, a presença de metabólitos bac-
Imaturidade no controle hemodinâmico local terianos em pacientes com ECN encontrados na urina,
Tabela 20.2 ar expirado e gás intramural fortalecem as evidências
da infecção na patogênese da enterocolite necrosante.
Os agentes mais frequentemente associados à ECN são:
€€ E. coli;
2- Insulto hipóxico-isquêmico
€€ Klebsiella pneumoniae;
A circulação esplâncnica adapta-se às demandas
metabólicas, que podem variar, dependendo da ativi-
€€ Pseudomonas aeruginosa;
dade propulsora intestinal, da produção e liberação €€ Enterobacter;
de secreções e da absorção de nutrientes. Em casos de €€ Staphylococcus coagulase-negativo;
insultos hipóxico-isquêmicos, ocorre redução do fluxo
€€ Rotavirus e coronavirus.
sanguíneo no território mesentérico devido a uma re-
distribuição neurogênica do débito cardíaco que visa a Na maioria das situações não se isola nenhum
preservar regiões mais sensíveis à hipóxia e à isquemia, patógeno.
tais como cérebro e coração. Isso pode acarretar um
sofrimento vascular mais intenso na zona de transição
entre a área de irrigação da artéria mesentérica supe-
rior e a inferior, que corresponde à região do íleo ter- Patologia
minal e cólon ascendente (estruturas envolvidas com
maior frequência). Existem mecanismos compensató- Em geral, o acometimento é multifocal com ne-
rios presentes na microcirculação que envolvem o re- crose de vários segmentos da alça intestinal. As regi-
crutamento de capilares previamente fechados, porém ões mais frequentemente acometidas são o íleo termi-
que se tornam insuficientes diante de um insulto grave. nal e o cólon proximal (região ileocecal), seguidas pelo

SJT Residência Médica – 2016


208
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

envolvimento difuso do intestino grosso. Em cerca de


15% a 20% dos pacientes observa-se lesão extensa, Quadro clínico
com necrose de mais de 75% dos intestinos delgado e
grosso. Essa forma, denominada ECN totalis, normal- A ECN caracteriza-se por uma variedade de sinais
gastrointestinais e sistêmicos. Os achados iniciais são
mente apresenta evolução fulminante, com altas taxas
inespecíficos, sendo frequentes vômitos, aumento do
de mortalidade. resíduo gástrico, distensão abdominal, alteração do há-
O aspecto macroscópico das alças depende da gravida- bito intestinal e enterorragia micro ou macroscópica.
de e da duração do quadro. Assim, nas fases iniciais da ECN, Além disso, pode-se observar sinais sistêmicos
as alças apresentam-se com aspecto aparentemente nor- como instabilidade térmica, letargia e episódios de
mal, e a lesão isquêmica somente é perceptível com a inspe- apneia. Vale lembrar que esses sinais são comuns a
ção da superfície mucosa ou através do estudo histológico. uma série de outras intercorrências que ocorrem no
À medida que ocorre progressão da doença, as alterações período neonatal, tais como intolerância alimentar,
começam a ser notadas, inicialmente na borda antimesen- distúrbios metabólicos, coagulopatias e sepse. A do-
térica. Nas fases mais tardias, a alça afetada encontra-se dis- ença pode estacionar nessa fase, cursando de forma
tendida, congesta, com a parede delgada e friável e coloração benigna ou avançar para estádios mais graves.
variando de vermelho-escuro a preto ou cinza-esverdeado, Com o progredir da afecção, chama a atenção a pio-
recoberta, em geral, por exsudato seroso. Na superfície mu- ra da distensão abdominal, que pode chegar ao estado de
cosa observam-se áreas hemorrágicas, ulceradas e necro- íleo adinâmico total, assim como mudanças nas caracte-
sadas. Pode-se observar a pneumatose intestinal como rísticas dos vômitos e do resíduo gástrico, que evoluem
pequenas bolhas, tanto na subserosa como na submucosa. para um aspecto bilioso e até fecaloide, enterorragia fran-
ca ou melena e sinais de peritonite. Além disso, aparecem
Em cerca de 45% a 65% dos casos cirúrgicos, demonstra-se
os sinais de gangrena das alças intestinais, que habitual-
a perfuração da alça intestinal. mente se exteriorizam, com quadro de celulite da parede
Para o cirurgião pediátrico, é fundamental o conhe- abdominal localizado na fossa ilíaca direita e na região
cimento do aspecto dessas lesões, pois, na prática, a deci- periumbilical. Juntamente com esses sinais, observa-se a
são da extensão da alça a ser ressecada durante a cirurgia deterioração do estado geral, com comprometimento do
é determinada pelo reconhecimento da viabilidade ou não quadro hemodinâmico, insuficiência respiratória, insufi-
do segmento acometido, levando-se em conta o objetivo de ciências renal e hepática, acidose metabólica, coagulopa-
preservar a maior quantidade de alça possível para evitar o tia de consumo, até o estabelecimento do choque séptico
e insuficiência de múltiplos órgãos.
desenvolvimento da síndrome do intestino curto. O quadro
histológico é variável, com a presença de necrose de coagu- A época em que ocorrem essas manifestações de-
lação, processo inflamatório, colônias de bactérias e sinais pende da idade gestacional do paciente. No prematuro,
de reparação tecidual. habitualmente, os sintomas aparecem a partir da segun-
da semana de vida, quando estão na fase de convalescen-
Os estudos das alterações patológicas trouxeram in- ça, recuperando-se da doença de base. Quando o quadro
formações importantes para a definição da doença, a deter- se instala, a maioria dessas crianças já está recebendo
minação do prognóstico e a melhor compreensão da pato- alguma oferta nutricional por via enteral. Já no recém-
gênese da ECN. Vale lembrar, no entanto, que as amostras -nascido a termo, as manifestações costumam ocorrer
estudadas, na maioria dos casos, são provenientes de pa- nos primeiros dias de vida. Outro fato interessante na
cientes mais graves, que foram submetidos a cirurgia ou que ECN são as duas formas de evolução clínica: a catastrófi-
evoluíram para óbito. Daí, deve-se interpretar com cuidado ca e a insidiosa. A insidiosa é a mais frequente, sendo co-
esses achados, pois eles não refletem o quadro de todos os mum nos recém-nascidos pré-termo, enquanto a catas-
trófica é mais observada no neonato a termo. Em geral, a
casos de ECN, em particular os mais leves.
evolução do quadro ocorre em até 72 horas após o início
Lesão da mucosa dos sinais e sintomas. Apesar de algumas características
intestinal
clínicas distintas entre as duas formas, na prática, a velo-
Comprometimento
Má absorção
cidade com que ocorre a piora clínica é imprevisível.
vascular
Sinais e sintomas gastrointestinais e sistêmicos
Distensão Mediadores inflamatórios associados com a ECN
abdominal PAF, TNF, LTC4 ESTASE
Sistêmicos Gastrointestinais
Letargia Vômitos
Instabilidade térmica Resíduo gástrico
Hipo ou Hiperglicemia Alteração do hábito
Endotoxina intestinal
Ácidos orgânicos de cadeia curta
Translocação bacteriana Apneia/Insuficiência Distensão abdominal
Produção de gás
respiratória
Hipotensão/Choque Enterorragia micro/
Figura 20.1  Eventos secundários após a instalação da macroscópica
lesão intestinal. Acidose mista Diminuição dos RHA

SJT Residência Médica – 2016


209
20  Enterocolite necrosante

Sinais e sintomas gastrointestinais e sistêmicos


associados com a ECN (Cont.) Quadro radiológico
Distúrbios eletrolíticos Peritonite
O estudo radiológico do abdome faz-se necessá-
CIVD Massa abdominal
rio não só para o diagnóstico inicial da ECN, mas tam-
Insuficiência de múltiplos Celulite de parede
órgãos abdominal bém para o acompanhamento evolutivo da afecção e
Tabela 20.3 avaliação dos resultados do tratamento. As radiogra-
fias abdominais devem ser realizadas com intervalos
de 6 a 8 horas nas primeiras 72 horas após o início dos
Tipos de evolução clínica observados na ECN sinais e sintomas, e a seguir a cada 12 a 24 horas, de
Catastrófica Insidiosa acordo com a evolução do paciente.
RNPT ou termo RNPT
Deterioração clínica rápida Deterioração clínica Os achados radiológicos iniciais são inespecífi-
subaguda (1-2 dias) cos, sendo comum a presença de distensão de alças
Insuficiência respiratória Intolerância alimentar intestinais (localizada ou generalizada), edema de pa-
Choque e acidose Mudança no hábito in- rede, líquido peritoneal e alças persistentemente loca-
testinal lizadas na mesma posição em radiografias sucessivas,
Distensão abdominal Distensão abdominal geralmente no quadrante inferior direito.
acentuada intermitente O diagnóstico de ECN implica o achado da
Hemocultura positiva Sangue oculto nas fezes PNEUMATOSE INTESTINAL, que é a manifestação
positiva
radiológica da presença de gás na parede das alças. A
Tabela 20.4 pneumatose pode ser de aspecto cístico ou linear, re-
presentando, respectivamente, a imagem radiológica
do acúmulo de gás na submucosa e na subserosa.
O prognóstico da afecção pode ser determinado
Quadro laboratorial pela extensão da lesão do trato gastrointestinal. O
comprometimento isolado do cólon é acompanhado
A ECN acomete primariamente o trato gastroin- de melhor prognóstico quando comparado ao do in-
testinal, porém observa-se deterioração das funções testino delgado.
cardiovascular, respiratória, renal, hepática e hemato- Nos casos mais graves da doença, o gás presen-
lógica no momento ou poucas horas após o diagnósti- te na parede das alças intestinais pode penetrar nos
co da doença. E o número de sistemas envolvidos pa- vasos sanguíneos e estender-se em direção ao sistema
rece correlacionar-se com a gravidade e o prognóstico venoso portal, caracterizando o pneumoportograma.
da doença. Esses fatos fazem com que o quadro labo- Deve-se lembrar que cerca de 30% dos pacientes com
ratorial seja variável, mostrando, quase sempre, dados ECN cursam com perfuração intestinal, constituindo-se no
que sugerem insuficiência de múltiplos órgãos. pneumoperitônio. Seu reconhecimento precoce é fun-
damental, já que a sua presença constitui-se, para
Além disso, chama a atenção na ECN o apareci-
a maioria dos autores, na indicação absoluta para
mento de sinais laboratoriais indicando presença de
laparotomia exploradora. No entanto, em cerca da me-
processo infeccioso, como alteração do hematológico e
tade dos casos de perfuração intestinal identificada no ato
dos níveis da proteína C reativa. Outros dados que ha- cirúrgico ou na necropsia, ele não é reconhecido pelo exame
bitualmente se apresentam alterados por ocasião do radiológico. Isso decorre do tamponamento da perfuração
diagnóstico são o prolongamento do tempo de trom- pelas alças intestinais adjacentes e do fato de o pneumoperi-
boplastina parcial ativada e do tempo de protrombina, tônio ser pequeno, podendo passar despercebido nas avalia-
bem como as plaquetopenias. A hemocultura é positi- ções radiológicas com o paciente em posição supina.
va em cerca de 1/3 dos pacientes. Pode-se ainda isolar
Para a detecção precoce do pneumoperitônio é
o agente infeccioso nas fezes, urina ou liquor, sendo os necessário que a radiografia de abdome seja realizada
agentes mais frequentemente encontrados os germes com o neonato em decúbito lateral esquerdo e com
Gram-negativos. No entanto, nos últimos anos o Sta- raios horizontais. Dessa forma, o ar livre na cavidade
phylococcus coagulase- negativo tem sido isolado nas peritoneal irá deslocar-se para área não dependente
hemoculturas com frequência progressivamente ele- entre a parede abdominal e o fígado. Nos recém-nasci-
vada, principalmente no recém-nascido pré-termo. Os dos em estado crítico, pode-se realizar a radiografia do
distúrbios hidroeletrolíticos são frequentes nos casos abdome em perfil, com o paciente em decúbito supino,
de ECN. porém com os raios horizontais.

SJT Residência Médica – 2016


210
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

liação quantitativa e qualitativa (com ou sem debris)


do líquido presente na cavidade abdominal, além da
obtenção de imagens em “tempo real”. A avaliação ul-
trassonográfica está indicada nos casos em que há a
suspeita clínica de ECN, mas as radiografias abdomi-
nais mostram imagens inespecíficas.

Figura 20.2  Raio X de abdome de um recém-nascido com


ECN no estádio I. A seta mostra uma alça distendida. Como
regra prática, considera-se uma alça distendida quando o
seu tamanho supera o da primeira vértebra lombar. Figura 20.4  Raio X de abdome mostrando pneuma-
tose de aspecto linear.

Figura 20.3  Raio X de abdome mostrando pneuma- Figura 20.5  Sinal da “bola de rúgbi” – Imagem radi-
tose de aspecto cístico. ológica do confinamento da coleção de ar na cavidade
abdominal superior, delineando o ligamento falciforme.
São descritos ainda outros sinais radiológicos que
indicam a presença de pneumoperitônio, como o sinal da
“dupla parede” e o sinal da “bola de rúgbi”. Normalmen-
te, na radiografia simples de abdome só a face da mucosa
intestinal é visível, devido ao contraste do ar presente na Critérios diagnósticos
luz intestinal e à superfície mucosa. Em situações de pre-
sença de ar livre na cavidade peritoneal observa-se tam- A ECN caracteriza-se pela presença da tríade:
bém o contraste na superfície serosa da alça, tornando distensão abdominal, enterorragia micro ou macros-
ambas as superfícies (sinal da “dupla parede”) visíveis ao cópica e pneumatose intestinal.
raio X. O sinal da “bola de rúgbi” é a imagem radiológica No entanto, deve-se lembrar que os dois primei-
do confinamento da coleção de ar na cavidade abdominal ros sinais são inespecíficos, podendo estar presentes
superior, delineando o ligamento falciforme.
numa variedade de outras doenças, como sepse, dis-
A ultrassonografia abdominal vem se firmando túrbios hemodinâmicos e metabólicos. O diagnóstico
como método útil para o diagnóstico da ECN. Vários da ECN implica o achado radiológico da pneuma-
estudos mostram que o ultrassom parece ser mais sen- tose intestinal, porém esta não é patognomônica
sível do que a radiografia na detecção de pneumopor- dessa afecção, podendo ser também encontrada, por
tograma, pneumatose intestinal e espessamento da exemplo, na enterocolite da moléstia de Hirschsprung
parede das alças. O ultrassom também é útil na ava- e na pneumatose intestinal colônica. Além disso, a

SJT Residência Médica – 2016


211
20  Enterocolite necrosante

pneumatose intestinal pode estar ausente em cerca de


15% dos casos de ECN confirmada por achados cirúr- Estadiamento
gicos e de necropsia.
clinicorradiológico
Apesar dessas ressalvas, até o momento, o diag-
nóstico clínico da ECN se faz pela associação de sinais A fim de avaliar e conduzir objetivamente o neo-
e sintomas sistêmicos e gastrointestinais com o acha- nato com quadro de ECN, em 1978, Bell e col. propuse-
do radiológico de pneumatose intestinal ou pneumo- ram um estadiamento clínico-radiológico, classifican-
portograma. do a doença em estádio I ou ECN provável, II ou ECN
definida e III ou ECN complicada. Tal classificação foi
modificada posteriormente por Walsh e Kliegman, em
1986, que incluíram sinais sistêmicos e intestinais e
Diagnóstico diferencial sugeriram o tratamento de acordo com o estadiamen-
to da doença.
O diagnóstico diferencial deverá ser feito com
Os pacientes com sinais e sintomas inespecíficos,
sepse, intolerância à lactose e à proteína do leite de
porém sugestivos de ECN, são classificados como estádio
vaca, úlcera de estresse, colite hemorrágica, íleo me-
I (ECN provável). A maioria dessas crianças não evolui
conial, perfuração intestinal espontânea, volvo intes-
com ECN, mas com sepse, distúrbios metabólicos e aci-
tinal, enterocolite da moléstia de Hirschsprung, colite
dobásicos ou intolerância alimentar transitória, condi-
pseudomembranosa, obstrução intestinal por leite
ções essas muito frequentes nos prematuros. No estádio
coagulado, invaginação intestinal, apendicite aguda
II ou ECN definida, surgem os sinais e sintomas mais
neonatal, entre outros.
específicos, como resistência à palpação abdominal, pe-
Os antecedentes próprios e os achados radiológicos, ritonite, eritema ou celulite de parede do abdome, asci-
em geral, permitem que se faça com segurança o diagnós- te, plastrão palpável, e no exame radiológico observam-
tico diferencial da ECN com essas afecções. No entanto, é -se pneumatose intestinal e/ou pneumoportograma.
imprescindível que esses pacientes sejam vistos e acompa- Quando às manifestações do estádio II associam-se alte-
nhados desde o início por um cirurgião pediátrico expe- rações importantes do estado hemodinâmico, do siste-
riente e habituado com o diagnóstico e o tratamento das ma de coagulação e sinais de insuficiência de múltiplos
diferentes entidades cirúrgicas envolvidas no diagnóstico órgãos, juntamente com o achado radiológico de perfu-
diferencial. Se houver dúvidas nesse sentido, a laparoto- ração intestinal, a ECN é classificada como avançada ou
mia exploradora deverá ser considerada. complicada, ou, ainda, de estádio III.

Estádio Sistêmicos Gastrointestinais Radiológicos


IA - ECN provável Instabilidade térmica Resíduo gástrico Normal
Hipoatividade Distensão abdominal Distensão de alças
Apneia Vômitos Íleo paralítico
Bradicardia Sangue oculto nas fezes
IB - ECN provável Os mesmos de IA Os mesmos de IA + Os mesmos de IA
Enterorragia macroscópica
IIA - ECN definida Os mesmos de IA Os mesmos de IB + Os mesmos de IA +
Quadro leve RHA ausente Pneumatose intestinal
Dor à palpação abdominal localizada
IIB - ECN definida Os mesmos de IA + Os mesmos de IIA + Os mesmos de IA 4 +
Quadro moderado Acidose metabólica Sinais de peritonite evidentes Pneumatose em 2 a 3
Plaquetopenia Celulite na parede abdominal quadrantes abdominais
Leucopenia Massa abdominal palpável (plas- Pneumoportograma
trão Sinais de ascite
abdominal)
IIIA - ECN avan- Os mesmos de IIB + Os mesmos de IIB + Os mesmos de IIB +
çada Hipotensão arterial ou sinais de Piora da distensão abdominal # ascite (abdome branco)
sem perfuração choque
intestinal Acidose mista
Sinais de CIVD
Insuficiência de múltiplos órgãos
IIIB - ECN avan- Os mesmos de IIIA Os mesmos de IIIA Os mesmos de IIIA +
çada Pneumoperitônio
com perfuração
intestinal
Tabela 20.5  Estadiamento clinicorradiológico da ECN.

SJT Residência Médica – 2016


212
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Associa-se ao esquema cobertura para anae-


Tratamento róbios com metronidazol ou clindamicina, va-
riando o período de tratamento de acordo com
€€ Pausa alimentar por um período mínimo de 10 a evolução clínica
a 14 dias. €€ Avaliação da necessidade de drogas inotrópicas.
€€ Sonda orogástrica calibrosa para descompres- €€ Monitorização radiológica do abdome (em mé-
são gástrica. dia, a cada seis horas).
€€ Suporte ventilatório. Evitar o uso de CPAP nasal €€ Avaliação cirúrgica (necessidade de ressecções).
dada a possibilidade de piora da distensão ab-
dominal.
€€ Reposição hídrica, eletrolítica e proteica, com Princípios que regem o tratamento da ECN
monitorização rigorosa. Manter o repouso intestinal
Jejum oral
€€ Manutenção do hematócrito entre 35%-40%.
Descompressão gástrica
€€ Monitorização hematimétrica das plaquetas, Nutrição parenteral
coagulograma. Diminuir a agressão do trato gastrointestinal
€€ Antibioticoterapia: Realiza-se o esquema para Identificar e tratar o processo infeccioso
sepse precoce ou tardia dependendo da época Controlada insuficiência de múltiplos órgãos
do início dos sintomas (ver capítulo de sepse Identificar e corrigir precocemente as complicações
neonatal). O uso de cefalosporina de 3ª geração cirúrgicas
ou carbapenêmicos pode se fazer necessário. Tabela 20.6

Pausa intestinal +
Estádio Medidas adicionais
ATB-terapia
I 3 a 5 dias
IIA 7 a 10 dias
IIB 14 dias Aumentar oferta hídrica
Drogas vasoativas:
dopamina; inotrópicos; e ventilação mecânica
IIIA 14 dias IIB +
Considerar paracentese
IIIB > 14 dias Laparotomia exploradora
Drenagem peritoneal
Tabela 20.7  Agressividade das medidas terapêuticas na ECN, segundo o estadiamento clinicorradiológico.

minal; palpação de massa abdominal fixa; piora da


Tratamento cirúrgico distensão abdominal acompanhada de aumento da
O objetivo do tratamento cirúrgico na ECN é o de resistência à palpação e aumento do débito pela sonda
atuar no momento preciso, isto é, aquele no qual, dada gástrica de líquido com aspecto fecaloide; neutrope-
a evolução da afecção, já existe um segmento intestinal nia e plaquetopenia progressivas e persistentes; aci-
comprometido de forma irreversível ou perfurado. Evi- dose metabólica persistente; pneumatose intestinal
dentemente, na prática, trata-se de uma decisão mui- e pneumoportograma; aumento do líquido ascítico;
tas vezes difícil, pois tanto indicações cirúrgicas muito líquido ascítico de aspecto achocolatado e detecção de
precoces como as mais tardias podem ser ineficazes e germes na coloração pelo Gram; persistência de alças
comprometer o prognóstico. Infere-se daí a importân- intestinais fixas e paréticas em radiografias sucessivas;
cia primordial de que esses pacientes sejam, preferen- e pneumoperitônio. Nenhum desses achados, à exce-
cialmente, acompanhados por um mesmo cirurgião pe- ção do pneumoperitônio, é isoladamente indicador de
diátrico, que esteja habituado às medidas diagnósticas intervenção cirúrgica. São sinais inespecíficos, pois
e ao tratamento dos portadores dessa afecção. podem relacionar-se tanto à ocorrência de necrose de
Uma série de sinais clínicos e radiológicos está, alça intestinal quanto à evolução desfavorável do qua-
em maior ou menor grau, correlacionada à ocorrência dro septicêmico sem o comprometimento irreversível
de um segmento intestinal inviável ou perfurado. Os de um segmento intestinal.
sinais mais comumente citados são: piora progressi- Na prática clínica, todos os pacientes que
va do estado geral, apesar da instituição das medidas atingem o estádio III são candidatos potenciais
terapêuticas; surgimento de eritema na parede abdo- ao tratamento cirúrgico. No entanto, muitos apre-

SJT Residência Médica – 2016


213
20  Enterocolite necrosante

sentam-se em estágio intermediário, e a decisão da O repouso intestinal deverá ser mantido por
necessidade e do momento adequados da intervenção três a cinco dias após a normalização das fun-
é, na maioria das vezes, individualizada, sendo basea- ções gastrointestinais, época em que, nos casos de
da na análise evolutiva dos achados clínicos, laborato- crianças portadoras de estomias, está indicado o seu
riais e radiológicos. Além disso, deve-se levar em conta fechamento. No entanto, antes de realizá-lo, deve-se
que esses pacientes, muitas vezes, encontram-se em lembrar que a incidência de estenoses pós-ECN situa-
estado crítico, dificultando a decisão, que deve, pre- -se em torno de 15% a 30% dos casos. Tais estenoses
ferencialmente, ser tomada em conjunto pela equipe: ocorrem preferencialmente no cólon, e o ângulo esplê-
cirurgião, anestesista e neonatologista. nico é o local mais frequentemente acometido. Podem
O procedimento cirúrgico de preferência também ocorrer no intestino delgado e frequente-
é a realização da laparotomia exploradora com mente são múltiplas, daí a necessidade de se realizar o
ressecção das alças inviáveis e exteriorização da estudo radiológico contrastado do intestino delgado e
parte viável através de estomias, seguida de dre- do cólon antes de se reconstruir o trânsito intestinal.
nagem da cavidade peritoneal. Raramente a lesão po-
derá estar bem restrita e localizada, podendo então se
realizar a ressecção seguida de anastomose primária.
Convém lembrar que as enterostomias determi- Prognóstico
nam, nesse grupo etário, grandes perdas de fluidos
e eletrólitos, sendo difícil a manipulação hidroele- A mortalidade situa-se entre 20% e 40%, de-
trolítica no pós-operatório. Para evitar esse tipo de pendendo do grau de prematuridade, da gravidade
inconveniente, indica-se a reanastomose o mais pre- da infecção e da insuficiência de múltiplos órgãos. As
cocemente possível. complicações que podem ocorrer na fase aguda são
as relacionadas à septicemia, como choque, necrose
Nos recém-nascidos com menos de 1.000 g ou
tubular aguda, CIVD, neutropenia, trombocitopenia,
naqueles que se encontram em má condição clínica, in-
dependentemente do peso, o procedimento mais reco- meningite, bem como a peritonite com ou sem per-
mendado é a drenagem peritoneal simples com anes- furação intestinal. Dentre as complicações tardias, a
tesia local e que pode ser realizada na própria unidade mais frequente e importante é a síndrome do intes-
neonatal à beira do leito. Essa estratégia foi proposta tino curto nos pacientes submetidos a grandes res-
pela primeira vez por Ein e cols., em 1977. Em estu- secções intestinais. Outras complicações tardias são:
do recente, esses autores, comparando a utilização da síndrome de má absorção, atresias ou estenoses in-
drenagem peritoneal e da laparotomia convenciona- testinais, fístulas enteroentéricas ou enterocólicas,
lem grupos de neonatos com diferentes faixas de peso, pseudocisto intraperitoneal e colestase. A complicação
concluem que a drenagem deve ser o procedimento de tardia mais frequente é a estenose, à qual já nos referi-
escolha nas crianças com peso inferior a 1.000 g, ao mos, devendo a sua suspeita clínica ser feita em casos
passo que, para aquelas com peso acima de 1.000 g, de recorrência de sangramento intestinal, distensão
a cirurgia convencional mostrou-se mais efetiva. Para abdominal ou através do quadro bem-caracterizado
aqueles em que é realizada primariamente a drenagem de semioclusão intestinal, após reconstrução do trân-
peritoneal, oportunamente, o recém-nascido é subme- sito digestivo. O prognóstico a longo prazo depende
tido à laparotomia exploradora para ressecção das al- da ocorrência ou não da síndrome do intestino curto,
ças necrosadas e realização das estomias e, se possível, observando-se bom desenvolvimento ponderoestatu-
da anastomose primária. ral nos casos que não desenvolvem essa síndrome.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

21
Infecções congênitas

tomáticos e assintomáticos, sendo esse último grupo


Sífilis congênita responsável por mais de 50% das apresentações clíni-
cas da doença. O Ministério da Saúde estabelece como
caso de sífilis congênita toda criança, aborto (perda
Conceito gestacional até 22 semanas ou peso ≤ 500 g) ou na-
A sífilis congênita é uma infecção causada timorto (feto morto após 22 semanas de gestação ou
pela disseminação hematogênica do Treponema peso > 500 g) de mãe com sorologia não treponêmica
pallidum da gestante infectada para o seu con- (VDRL) reagente para sífilis em qualquer titulação, na
cepto. Há, ainda, de forma mais rara, a possibi- ausência de teste confirmatório treponêmico (FTA-
lidade de transmissão vertical do T. pallidum por -Abs), realizado no pré-natal, parto ou curetagem, que
meio do contato da criança pelo canal de parto não tenha sido tratada ou tenha recebido tratamen-
quando houver lesão genital materna, ou, ainda, to inadequado e/ou apresente qualquer sinal clínico
através do aleitamento, se houver lesão mamária característico de sífilis, como alterações cutâneas,
pela sífilis. A transmissão materna pode ocorrer
neurológicas, cardiovasculares ou articulares. Crian-
em qualquer fase da gestação, sendo a taxa de
ças com menos de 13 anos de idade são consideradas
transmissão vertical, em mulheres não tratadas,
casos de sífilis congênita quando apresentarem as se-
de 70% a 100% nas fases primária e secundária
da doença, reduzindo-se para 30% nas fases la- guintes alterações neurológicas: títulos ascendentes
tente e terciária. Ocorre aborto espontâneo, na- de testes não treponêmicos; e/ou testes treponêmicos
timorto ou morte perinatal em 40% das crianças reagentes após seis meses de idade (exceto em casos
infectadas. Quando a mulher adquire sífilis durante de seguimento); e/ou testes treponêmicos reagentes
a gestação, podem ocorrer abortamento espontâneo, após 18 meses de idade; e/ou em títulos de testes não
morte fetal, prematuridade, hidropsia fetal, RNs sin- treponêmicos maiores que os da mãe.
215
21  Infecções congênitas

Patogenia
Após sua passagem transplacentária, o treponema ganha os vasos umbilicais e multiplica-se ra-
pidamente em todo o organismo fetal. Os órgãos e os tecidos em que as lesões são mais frequentes e
abundantes são fígado, ossos, pele, mucosas, sistema nervoso, pâncreas e pulmões (estes, em doença
precoce no período fetal, podem mostrar a chamada Pneumonia Alba, lesão incompatível com a vida).

Quadro clínico

Forma clínica Principais manifestações clínicas

Sífilis congênita precoce: quando os sinais e Lesões cutaneomucosas (50% dos casos)
sintomas surgem até os dois anos de vida Pênfigo palmoplantar (precoce e facilmente identificável; bolhas com
halo eritematoso, conteúdo seroso ou hemorrágico)
Diversos graus de gravidade Sifílides maculosas (máculas róseas arredondadas por todo o corpo,
Forma mais grave: sepse maciça principalmente tronco, palmas das mãos e plantas dos pés)
(manifestações viscerais predominam) Fissuras peribucais
Coriza sifilítica (segunda ou terceira semana, secreção espessa seros-
Não existe sinal específico. sanguinolenta ou purulenta com obstrução nasal)
A associação de critérios epidemiológicos,
clínicos e laboratoriais deve ser usada para o Lesões ósseas (frequentes)
diagnóstico Osteocondrite metaepifisária (lesão mais precoce, 80% dos casos, ir-
regularidade, serrilhamento e imagem “em taça” das metáfises)
Periostite (espessamento cortical)
Rarefação óssea nas metáfises
Choro ao manuseio
Impotência funcional dos membros (particularmente os membros
superiores – Pseudoparalisia de Parrot) – 5% a 10% dos casos

Lesões viscerais
Hepatomegalia, hepatite, icterícia
Esplenomegalia
Anemia e manifestações hemorrágicas
Alterações respiratórias/pneumonite intersticial
Meningite pouco sintomática, com pleocitose liquórica e hiperprotei-
norraquia

Outras
Atraso de ganho ponderal
Febre
Adenomegalia
Coriorretinite

Sífilis congênita tardia: quando os sinais e sin- Tíbia em lâmina de sabre (osteoperiostite)
tomas surgem a partir dos dois anos de vida Nariz em sela
Dentes incisivos medianos superiores deformados (Dentes de Hu-
tchinson)
Arco palatino elevado com ulcerações e perfurações
Surdez neurológica
Dificuldade de aprendizado

Natimorto sifilítico
Todo feto morto após 22 semanas de gestação
ou com peso > 500 g, cuja mãe portadora de sí-
filis não foi tratada ou o foi inadequadamente

Tabela 21.1

SJT Residência Médica – 2016


216
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Diagnóstico laboratorial Sorologia treponêmica


Do ponto de vista técnico, o diagnóstico definiti- São testes utilizados para a confirmação da infec-
vo de sífilis congênita pode ser estabelecido por meio ção pelo T. pallidum, permitindo a exclusão dos resul-
da pesquisa direta do Treponema pallidum por micros- tados falso-positivos dos testes não treponêmicos de-
copia de campo escuro (sensibilidade de 74% a 86% e vido a sua alta especificidade (FTA-Abs 94% a 100%;
especificidade de até 97%) ou por imunofluorescência Elisa 97% a 100%; TPHA 85% a 100%). O exame mais
direta (sensibilidade de 73% a 100% e especificidade utilizado em nosso meio é o FTA-Abs, que, quando
de 89% a 100%), além de estudos histopatológicos. reagente em material de RN, pode não significar in-
fecção perinatal devido à passagem de anticorpos IgG
A identificação por PCR, apesar de a sensibilida- maternos através da placenta. Geralmente, os testes
de poder chegar a 91%, é de alto custo, e seu uso está treponêmicos permanecem reagentes por toda a vida,
limitado aos centros de pesquisa. mesmo após a cura da infecção. O FTA-Abs/IgM, por
Os testes sorológicos são divididos em não treponêmi- sua sensibilidade baixa (falso-positivos, pelos mesmos
cos (VDRL e RPR) e treponêmicos (FTA-Abs, Elisa e TPHA). mecanismos considerados na toxoplasmose), pode
Devido à transferência de anticorpos da classe IgG da mãe apresentar desempenho inadequado para a definição
para o feto, o resultado positivo em recém-nascidos dos tes- diagnóstica e, portanto, não é utilizado de rotina.
tes, treponêmicos ou não, deveser analisado com cautela. “Na ausência de teste confirmatório, considerar
Quando ocorre sífilis congênita, os títulos de anticorpos se para o diagnóstico as gestantes com VDRL reagente, des-
mantêm ou se elevam, o que caracteriza uma infecção ativa. de que não tratadas anteriormente de forma adequada.”
Na ausência de doença, os títulos de anticorpos declinam
progressivamente até a sua negativação em alguns meses.
Liquor
Deve ser colhido nos RNs com sífilis congênita
Sorologia não treponêmica presumida sintomática ou não. Leucócitos > 25/mm3
€€ VDRL (Venereal Diseases Research Laboratory): e proteinorraquia > 150 mg/dL no LCR de RN com sus-
indicado para triagem sorológica devido a sua alta peita de sífilis congênita são sugestivos de infecção.
sensibilidade (78% a 100%), baixo custo e facili- O VDRL positivo no LCR confirma neurossífilis, inde-
dade técnica para a sua realização. É útil também pendentemente de haver alterações na celularidade
para seguimento, pois o resultado desse teste é e/ou na proteinorraquia. A ocorrência de alterações no
descrito qualitativamente (reagente ou não rea- LCR é de 86% nas crianças com outras evidências clínicas
gente) e quantitativamente (através de titulações: de sífilis congênita e de 8% nas crianças assintomáticas in-
1/2, 1/4,...). O valor normal do VDRL é o resul- fectadas. Se a criança for identificada após o 28º dia de vida,
tado negativo. Após a instituição do tratamento, as anormalidades liquóricas incluem: VDRL positivo, mais
espera-se queda nas titulações até a negativação, de 5 leucócitos/mm3 e/ou mais de 40 mg/dL de proteínas.
podendo, porém, permanecer positivo por longos
períodos, mesmo após a cura da infecção (memó-
ria imunológica). Nos RNs não infectados e com
anticorpos maternos adquiridos através da pla- Radiologia
centa, o teste poderá ser reagente nos primeiros Solicitar radiografia de ossos longos para os RNs
seis meses de vida, podendo se prolongar. Portan- com sífilis congênita presumida sintomática ou não. Entre
to, um teste não treponêmico positivo no RN não as alterações mais frequentes estão o envolvimento de me-
necessariamente indica infecção congênita, uma táfise e diáfise de ossos longos que podem corresponder
vez que a IgG ultrapassa a placenta. Os títulos de- aos quadros de periostite, osteocondrite ou osteomielite.
vem ser comparados aos maternos; valores iguais Aproximadamente 4% a 20% dos RNs assintomáticos in-
ou menores podem indicar transferência passiva. fectados podem apresentar alterações radiológicas como
Valores maiores que os maternos indicam doença. única alteração do quadro. Nos recém-nascidos com evi-
Os resultados falso-positivos podem ser decor- dência clínica de sífilis congênita, essas alterações podem
rentes de reação cruzada com outras infecções tre- acometer cerca de 75% a 100% dos pacientes.
ponêmicas ou com doenças como lúpus, artrite reu-
matoide, endocardite, entre outras. Já os resultados
falso-negativos podem acontecer devido ao excesso de Medidas de prevenção e
anticorpos, conhecido como efeito “prozona”.
controle
€€ RPR (Rapid Plasma Reagin): é um teste de flocula-
ção macroscópica, resultado de uma modificação do €€ Prevenção da sífilis na população feminina em
VDRL, e não apresenta vantagens para o uso clínico geral.
por ser menos especifico, apesar de mais sensível. €€ Uso regular de preservativos.

SJT Residência Médica – 2016


217
21  Infecções congênitas

€€ Diagnóstico precoce das mulheres em idade re- Considera-se tratamento adequado para a sífilis
produtiva e em seus parceiros. materna todo aquele realizado de forma completa,
€€ Realização do teste VDRL em mulheres que ma- adequado para o estágio da doença, feito com penici-
nifestem intenção de engravidar; nas gestantes, lina, finalizado pelo menos 30 dias antes do parto e
realizar o teste na primeira consulta, repetindo-o tendo sido tratado o parceiro concomitantemente.
por volta da 28ª semana e no momento do parto. Considera-se tratamento inadequado para sífilis
€€ Tratamento imediato dos casos diagnosticados em materna:
mulheres e em seus parceiros, dando importância €€ todo tratamento realizado com qualquer medi-
ao registro dos resultados dos testes e eventuais cação que não seja penicilina; ou
tratamentos no cartão de pré-natal da gestante. €€ tratamento incompleto, mesmo que tenha sido
€€ Assistência ao pré-natal. realizado com penicilina; ou
€€ Notificação dos casos de sífilis congênita. €€ tratamento inadequado para a fase clínica da
doença; ou
€€ instituição do tratamento nos 30 dias anterio-
Tratamento da sífilis em não res ao parto; ou
gestantes ou não nutrizes €€ ausência de documentação de tratamento anterior;
ou
€€ Sífilis primária: Penicilina benzatina 2,4 mi-
lhões UI, IM, em dose única (1,2 milhão UI em €€ ausência de queda de títulos (sorologia não tre-
cada glúteo). ponêmica) após tratamento adequado; ou
€€ Sífilis secundária e latente precoce: Penicili- €€ parceiro não tratado ou tratado inadequada-
na benzatina 2,4 milhões UI, IM, repetida após mente ou quando não se tem a informação dis-
uma semana. ponível sobre o tratamento.
€€ Sífilis terciária e latente tardia: Penicilina €€ teste anti-HIV: é recomendado para toda ges-
benzatina 2,4 milhões UI, IM, em dose semanal, tante com sífilis, tendo em vista que crianças ex-
por três semanas. Total de 7,2 milhões UI. postas ao Treponema pallidum durante a gestação
Mulheres não gestantes e não nutrizes com aler- têm maior risco de adquirir o HIV materno.
gia comprovada à penicilina podem ser dessensibiliza-
das ou então receber tratamento com tetraciclina ou Manejo adequado do RN
estearato de eritromicina 500 mg VO 6/6 horas por 15
€€ Realizar VDRL em amostra de sangue periféri-
dias na sífilis recente ou 30 dias na sífilis tardia. Outra
co em todos os RNs cujas mães apresentaram
opção é o uso de doxiciclina 100 mg VO 12/12 horas
VDRL reagente na gestação ou parto ou em caso
por 15 dias na sífilis recente e 30 dias na sífilis tardia. de suspeita clínica de sífilis congênita (o san-
gue do cordão umbilical não deve ser utilizado
pelo fato de que nele pode ocorrer mistura com
Tratamento da sífilis durante o sangue materno e há atividade hemolítica in-
a gestação tensa, o que pode alterar o resultado).
€€ Solicitar hemograma, radiografia de ossos lon-
Deve-se realizar o tratamento imediato dos
casos diagnosticados em gestantes e seus parceiros: gos e estudo do liquor, incluindo neste a análise
usar as mesmas dosagens apresentadas para a sífilis adqui- de celularidade, proteínas e VDRL.
rida. Gestantes comprovadamente alérgicas à penicilina €€ Notificar e investigar todos os casos detectados,
devem ser dessensibilizadas. Na impossibilidade, podem incluindo os natimortos e abortos pela doença.
ser tratadas com eritromicina 500 mg, VO, de 6/6 horas,
durante 15 dias (sífilis recente) e 30 dias (sífilis tardia).
Entretanto, essa gestante não será considerada ade-
quadamente tratada para fins de transmissão fetal,
sendo obrigatórios a investigação e o tratamento
Manejo terapêutico
adequado da criança logo após seu nascimento. da sífilis congênita
Reforçar a orientação para que as pacientes e A – Nos RNs de mães com sífilis não tratada, ou
seus parceiros evitem relação sexual durante o tra- inadequadamente tratada, independentemente do
tamento, e, após, só com o uso de preservativos. Re-
resultado do VDRL do RN, realizar: hemograma, ra-
alizar o controle mensal de cura por meio do VDRL,
considerando resposta adequada ao tratamento o de- diografia de ossos longos, punção lombar (na impos-
clínio dos títulos e a negativação até um ano. Reini- sibilidade de realizar esse exame, tratar o caso como
ciar o tratamento em caso de interrupção, ou se hou- neurossífilis) e outros exames quando clinicamente
ver quadruplicação dos títulos (ex.: de 1/2 para 1/8). indicados:

SJT Residência Médica – 2016


218
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

€€ A1: se houver alterações clínicas e/ou sorológicas €€ Se o VDRL não for reagente e o RN for assintomá-
e/ou radiológicas, o tratamento deverá ser feito tico, fazer apenas seu seguimento ambulatorial. Na
com Penicilina G cristalina 50.000 UI/kg/dose, impossibilidade de garantir o seguimento, deve-se
EV, 12/12 horas (se tiver menos de uma semana administrar Penicilina G benzatina, IM, na dose úni-
de vida) ou de 8/8 horas (se tiver mais de uma se- ca de 50.000 UI/kg;
mana de vida), por dez dias ou Penicilina G proca- €€ Se o RN for assintomático e o VDRL for reagente
ína 50.000 UI/kg, IM por dez dias. com titulação menor ou igual à materna, fazer o
€€ A2: se houver alteração liquórica, o tratamen- seguimento ambulatorial. Na impossibilidde de
to deverá ser feito com Penicilina G cristalina, garantir o seguimento, tratar como A1(sem alte-
50.000 UI/kg/dose, EV, 12/12 horas (se tiver me- ração do LCR) ou como A2 (com alteração do LCR)
nos de uma semana de vida), ou de 8/8 horas (se
tiver mais de uma semana de vida), por dez dias.
€€ A3: se não houver alterações clínicas, radiológicas
e/ou liquóricas e a sorologia for negativa no RN, Seguimento ambulatorial
deve-se proceder ao tratamento com Penicilina G €€ mensal no primeiro ano de vida;
benzatina, IM, na dose única de 50.000 UI/kg. O €€ realizar VDRL com 1, 3, 6, 12 e 18 meses, inter-
acompanhamento é obrigatório, incluindo o segui-
rompendo quando negativar;
mento com VDRL sérico entre um e três meses após
conclusão do tratamento. Se for impossível garantir €€ retratar o paciente em caso de manutenção dos
o acompanhamento, o RN deverá ser tratado. títulos sorológicos ou de elevação dos mesmos
em duas a três vezes;
B – Nos RNs de mães adequadamente trata-
das: realizar o VDRL em amostra de sangue peri- €€ recomenda-se o acompanhamento oftalmológi-
férico do RN; se este for reagente com titulação co, neurológico e audiológico semestral;
maior que a materna e/ou na presença de alte- €€ nos casos em que o LCR esteve alterado, deve-
rações clínicas, realizar hemograma, radiografia -se proceder à reavaliação liquórica a cada seis
de ossos longos e coleta de LCR: meses até a sua normalização;
€€ Se não houver alterações liquóricas, porém €€ nos casos de crianças tratadas de forma ina-
com alterações clínicas e/ou radiológicas, e/ dequada, na dose e/ou tempo do tratamento
ou hematológicas, o tratamento deverá ser preconizado, deve-se convocar a criança para
feito como no esquema A1; reavaliação clínico-laboratorial, e, se houver
alterações, retratar a criança conforme o caso,
€€ Se houver alteração liquórica, o tratamento de-
obedecendo aos esquemas descritos, ou, se não
verá ser feito como no esquema A2.
houver alterações, seguir ambulatorialmente. O
C – Nos casos de mães adequadamente tra- algoritmo a seguir foi proposto pelo Ministério
tadas, solicitar VDRL em amostra de sangue pe- da Saúde em 2005 para abordagem da gestante
riférico do recém-nascido: com sífilis (disponível em www.aids.gov.br):
Mãe com Sífilis:
NÃO TRATADA OU INADEQUADAMENTE TRATADA ADEQUADAMENTE TRATADA

RN sintomático RN assintomático
RN sintomático RN assintomático

Raios X ossos, punção lombar VDRL


Raios X ossos, punção lombar e hemograma
e hemograma

> materno ≤ materno negativo


LCR alterado
LCR normal
(Neurossífilis)
LCR alterado Exames normais
LCR normal
(Neurossífilis) e VDRL negativo
Raios X ossos, Seguimento Seguimento
Tratar Tratar punção lombar ou fluxo de
esquema esquema e hemograma exames C1
Tratar Tratar Tratar A1 A2
esquema esquema esquema
A1 A2 A3
Exames Exames LCR
normais alterados alterado
LCR normal LCR normal (Neurossífilis)
Quadro esquema de tratamento no período neonatal
Penicilina G cristalina 50.000 UI/Kg/dose, EV, de Penicilina G benzatina, IM, dose única de 50.000 UI/Kg.
A1 A3
12 em 12 horas (nos primeiros 7 dias de vida) e Sendo impossível garantir o acompanhamento, o RN Tratar Tratar Tratar
de 8 em 8 horas (após 7 dias de vida), durante 10 deverá ser tratado segundo esquema A1.
dias. Ou Penicilina G procaína 50.000 UI/Kg/dose,
esquema esquema esquema
IM, 1 vez por dia, durante 10 dias. A3 A1 A2

Penicilina G cristalina 50.000 UI/Kg/dose, EV, de 12 Seguimento clinicolaboratorial.


A2 em 12 horas (nos primeiros 7 dias de vida) e de 8 C1 Na impossibilidade de seguimento, tratar com penicilina
Fonte: Diretrizes para o controle da sífilis congênita - MS/2006
em 8 horas (após 7 dias de vida), durante 10 dias. G benzatina, IM, dose única de 50.000 UI/Kg.

Figura 21.1  Algoritmo para abordagem do RNno caso da gestante com sífilis.

SJT Residência Médica – 2016


219
21  Infecções congênitas

Toxoplasmose Manifestações clínicas


A maioria (85%) dos recém-nascidos com
congênita toxoplasmose não apresenta sinais clínicos ao
nascimento. Apresentam elevadas frequências de
A toxoplasmose é uma doença causada pelo Toxo- prematuridade, retardo de crescimento intrauterino,
plasma gondii, um protozoário intracelular obrigatório anormalidades liquóricas e cicatrizes de coriorretini-
que afeta cerca de 1/3 da população mundial. A forma te, porém as manifestações podem aparecer após se-
congênita da doença ocorre, quase sempre, quando manas ou até anos em algumas crianças.
uma mulher adquire a toxoplasmose aguda pela pri- As manifestações clínicas da toxoplasmose con-
meira vez durante a gestação. Humanos se tornam gênita, quando na forma sintomática, podem ser ge-
infectados mais frequentemente pela ingestão de car- neralizadas, predominantemente viscerais ou neu-
ne crua ou malcozida (gado bovino, suíno, caprino e rológicas e oftalmológicas. Em geral, quanto mais
aves) contendo cistos do toxoplasma (bradizoítos) ou precoce for o acometimento do feto, mais graves
através da ingestão acidental de oocistos esporulados serão as lesões. A ocorrência da tríade clássica da
eliminados nas fezes de felinos e que podem estar pre- toxoplasmose com hidrocefalia, calcificações cere-
sentes em alimentos, água e outros materiais. O risco brais e coriorretinite não é comum. A forma clínica
de infecção fetal pode ser de 1% ou menos quando a predominante é a neuro-oftalmológica. As principais
mãe se infecta no período pré-conceptual, mais preci- manifestações presentes em recém-nascidos com to-
samente até três meses antes da concepção. Em mu- xoplasmose congênita sintomática são: coriorretinite,
lheres imunodeprimidas a reativação da toxoplasmo- anormalidades liquóricas, anemia, convulsões, calcifi-
se latente durante a gestação pode, raramente, levar cações intracranianas, icterícia, hidrocefalia, hepato-
à transmissão para o feto. Ainda assim, cerca de 40% esplenomegalia, microcefalia, glaucoma, pneumonite.
das gestantes infectadas transmitirão a toxoplasmose Nas crianças com manifestações clínicas ao nasci-
ao feto se não forem tratadas. mento as sequelas são frequentes e graves, com 55% a
85% de retardo mental, 25% a 75% com convulsões, es-
Quanto mais precocemente ocorrer a infecção pasticidade ou paralisia, 50% a 86% com dificuldade vi-
materna, menor o risco de transmissão para o feto: sual grave e surdez variando de 2% a 58% dos pacientes.
gestantes infectadas no primeiro trimestre têm 14% de
chance de transmitir a doença ao feto; o risco sobe para As sequelas tardias da doença podem ser encon-
tradas em todas as formas da toxoplasmose congênita
29% e 59% quando infectadas no segundo e terceiro tri-
não tratada, inclusive em casos subclínicos ou assinto-
mestres, respectivamente. De maneira oposta, o risco
máticos, podendo ser encontradas até a segunda déca-
de doença sintomática diminui no decorrer da gestação.
da de vida. Cerca de 85% dessas crianças evoluem com
cicatrizes de coriorretinite e quase 50% com anorma-
lidades neurológicas.
Patogenia
A parasitemia ocorre na fase aguda da doença,
sendo a taquizoíta a principal forma do parasita en- Diagnóstico
contrada nessa fase. Nessa situação, pode haver in-
vasão e proliferação com destruição de qualquer cé- Além do conhecimento dos antecedentes epi-
lula do hospedeiro, resultando no desenvolvimento demiológicos e obstétricos, são importantes, para o
de focos necróticos rodeados de reação inflamatória. diagnóstico da toxoplasmose congênita, os sinais e
Após a replicação na placenta, o parasita pode invadir sintomas clínicos apresentados pelo RN.
a circulação fetal, atingindo todos os sistemas orgâ- Calcificações intracranianas constituem um dos
nicos, principalmente o SNC e as túnicas oculares. A achados radiológicos mais frequentes na toxoplasmo-
extensão das lesões parece depender do grau de ma- se, estando presentes em mais de 60% dos RNs que
turidade imunológica fetal, bem como da passagem apresentam doença neurológica. As lesões cerebrais
transplacentária de anticorpos maternos. No cérebro devido à meningoencefalite necrosante calcificam-se
encontram-se áreas de necrose, acompanhadas por com rapidez, e os depósitos de cálcio descritos radiolo-
processos inflamatórios perivasculares, que podem gicamente como nodulares múltiplos e em listas curvi-
sofrer calcificações precoces. Áreas similares podem líneas são disseminados no parênquima cerebral e não
ser encontradas no fígado, pulmões, miocárdio, mús- têm distribuição característica. As calcificações intra-
culos esqueléticos, baço e outros órgãos. A forma ativa cranianas são detectáveis, nos primeiros três meses de
do parasita pode atingir e proliferar em quase todos vida, em 30% das crianças com toxoplasmose congêni-
os tecidos fetais, com exceção do eritrócito não nucle- ta e em 80% até os dois anos de idade. O aumento no
ado. Cistos teciduais podem ser detectados em vários número e tamanho das calcificações durante períodos
órgãos, particularmente SNC, pulmões, fígado e rins. de meses ou anos é sugestivo de evolução do processo.

SJT Residência Médica – 2016


220
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A tomografia computadorizada e a ultrasso- linforreticulomonocitárias e por percentagem elevada


nografia de crânio são de grande auxílio no acompa- de eosinófilos, sendo esse último um dos sinais que
nhamento das crianças com toxoplasmose congênita, chamam a atenção para a doença.
sendo possível detectar mesmo as calcificações não Exames ocular e de fundo de olho devem ser re-
evidenciadas na radiografia simples de crânio, além alizados rotineiramente, dada a frequência elevada de
de dilatação ventricular e atrofia cortical. O exame de lesões oculares na toxoplasmose congênita.
escolha para a pesquisa de calcificações é a tomografia
de crânio.
Focos de calcificação podem ser observados nas
vísceras, particularmente no fígado e baço, através de Diagnóstico
radiografia de abdome, na posição lateral. As anorma- laboratorial específico
lidades radiológicas em ossos longos observadas nessa
doença são inespecíficas. Caracterizam-se por zonas
transversais de menor densidade, radiolucentes, e es- Pesquisa do agente etiológico
trias longitudinais radiotransparentes nas epífises e O toxoplasma pode ser identificado a partir do
metáfises, respectivamente. sangue do RN, com elevada positividade do teste du-
Anemia e trombocitopenia são achados frequen- rante todo o primeiro mês de vida, bem como de san-
tes em crianças com a forma sintomática da toxoplas- gue de cordão, de líquido amniótico e de placenta. O
mose congênita, podendo ser observadas também parasita é isolado por meio da inoculação em camun-
nos pacientes com a forma subclínica. Petéquias e/ dongos ou células de cultura. Comparativamente aos
ou equimoses constituem, na maioria dos pacientes, testes sorológicos, esses métodos são mais trabalho-
os primeiros sinais clínicos que chamam a atenção sos, de maior custo e de resultados mais demorados.
para a doença. Linfocitose e eosinofilia, embora não
sejam específicas para toxoplasmose, constituem as
manifestações hematológicas mais frequentemente
Diagnóstico de infecção materna
encontradas, não só no período neonatal, como tam-
bém durante os primeiros anos de vida. A eosinofilia Detecção de IgG
geralmente apresenta valores altos, atingindo 15% a Os métodos mais utilizados são Elisa e reação de
20% do número total de leucócitos. A icterícia é um imunofluorescência (RIF). A IgG aparece uma a duas se-
sinal frequente, particularmente à custa da bilirrubi- manas após a infecção, elevando-se gradativamente até
na direta. As enzimas hepáticas podem também estar atingir um valor máximo, em um a dois meses, diminuin-
alteradas, principalmente nos casos em que há aco- do em ritmos variáveis e persistindo por toda a vida. Para
metimento hepático importante. Valores de proteína a acurácia do diagnóstico deve ser realizada comparação
total e de albumina baixos ou nos limites inferiores de pelo menos duas amostras consecutivas com intervalo
da normalidade podem estar presentes e ser relacio- ≥ três semanas, para detecção de conversão de negativo
nados à desnutrição e ao comprometimento hepático para positivo e/ou aumento dos títulos (em pelo menos
que ocorrem nas crianças com doença grave. quatro vezes), indicando infecção aguda.
O exame do LCR é de fundamental importância
tanto na infecção sintomática como na assintomática. Testes de avidez de IgG
Achados anormais nesse exame são sempre indicati- Auxiliam na diferenciação entre infecção adqui-
vos de doença do SNC. Em geral, o LCR apresenta-se rida recentemente e infecção antiga. Valores de avidez
xantocrômico, fato atribuído não só à imaturidade dos ≥ 60% indicam infecção adquirida há mais de três ou
sistemas das barreiras hematocerebral e hematoliquó- quatro meses. Valores ≤ 30% mostram infecção ocorri-
rica como também à presença de elementos sanguíne- da nos últimos três ou quatro meses. Valores interme-
os e de bilirrubina. A baixa concentração de glicose e diários são inconclusivos. Principalmente no primeiro
valores elevados de proteinorraquia, alcançando gra- trimestre, esse teste auxilia a descartar infecções ocor-
mas por cento, são observados não só no LCR obtido ridas durante a gestação.
por punção lombar como também nas punções suboc-
cipital e ventricular. A presença de valores elevados de
proteína no LCR ventricular em crianças com toxo- Detecção de IgM
plasmose congênita durante o período neonatal cons- Os métodos mais utilizados também são Elisa e
titui um achado único e característico da doença. A RIF. Os anticorpos da classe IgM surgem mais precoce-
taxa de proteína liquórica também é um indicador de mente e têm queda mais rápida que os da classe IgG. Al-
prognóstico do desenvolvimento neurológico no pri- gumas pessoas podem manter níveis detectáveis de IgM
meiro ano de vida. A citometria e a citomorfologia do anos após infecção aguda. Resultados falso-positivos são
LCR caracterizam-se por pleocitose à custa de células frequentes, dificultando a interpretação dos testes.

SJT Residência Médica – 2016


221
21  Infecções congênitas

€€ IF-IgM pode apresentar reações falso-positivas


Diagnóstico de infecção fetal pela interferência de fator reumatoide (anticor-
pos IgM contra IgG) ou de anticorpos antinu-
Reação em cadeia de polimerase (PCR) cleares, que podem estar presentes em 1/3 das
Realizada em líquido amniótico após 18 semanas crianças infectadas.
de gestação, a PCR para detecção do DNA do T. gondii Em geral, o laboratório remove previamente do
é mais sensível e rápida que os métodos sorológicos. soro o fator reumatoide e o excesso de IgG que possam
Deve ser considerado o risco da realização da cordo- interferir nesses resultados (IF-IgM ABS). Essa técni-
centese. ca é conhecida como “captura de IgM”.
A especificidade e o valor preditivo positivo para Os testes imunoenzimáticos Elisa (Enzyme
o diagnóstico pré-natal de toxoplasmose congênita Linked Immunosorbent Assay) são realizados com an-
chegam próximo de 100%. tígenos proteicos solúveis do toxoplasma, fixados a
superfícies de plástico. Os anticorpos reagentes com
Ultrassonografia gestacional esses antígenos são revelados por conjugado enzimá-
Lesões mais visualizadas são dilatação ventricu- tico anti-IgG ou anti-IgM. Resultados falso-positivos
lar e calcificações cerebrais, além de aumento da es- ou negativos podem também ocorrer de forma seme-
pessura da placenta, alterações intestinais e hepáticas, lhante ao teste de IF, exigindo as mesmas técnicas la-
ascite, hepatoesplenomegalia e derrame pericárdico. boratoriais para retirá-los.
O diagnóstico sorológico da toxoplasmose em
sua fase aguda pode, então, ser feito através da de-
Diagnóstico de infecção no terminação dos perfis sorológicos com a pesquisa e a
recém-nascido quantificação de anticorpos das classes lgG e IgM.
Embora de interpretação por vezes difícil, a No entanto, a presença de anticorpos IgM especí-
pesquisa de anticorpos específicos para o toxoplas- ficos, em geral, confirma o diagnóstico, sendo próprios
ma constitui o método laboratorial mais utilizado. É do RN, uma vez que os de origem materna não ultrapas-
importante frisar que, diante de um recém-nascido sam a barreira placentária. Alguns estudos têm mostra-
com suspeita de toxoplasmose congênita (e isso é vá- do que apenas 50% a 60% dos testes IgM são positivos.
lido para outras infecções congênitas), sejam realiza- Porém, após a remoção dos anticorpos IgG do soro, essa
dos ao mesmo tempo os testes sorológicos no sangue positividade pode alcançar 70% a 80%.
materno. Admite-se que títulos sorológicos no RN
A detecção de IgA por meio de Elisa ou Isaga (rea-
duas a três vezes mais altos que o materno sugerem
ção de aglutinação por imunoabsorção) pode apresen-
fortemente doença. No entanto, se o título sorológi-
tar melhor sensibilidade que a IgM nas crianças infec-
co do RN for menor ou igual ao materno, pode tratar-
tadas, porém é pouco utilizado em nosso meio devido
-se apenas de transferência passiva de anticorpos, e,
a seu custo elevado.
nesse caso, é necessário o acompanhamento clínico
sorológico da criança. No caso de transferência pas-
siva de anticorpos, os títulos tendem a cair, e a queda
progressiva de tais anticorpos leva à negativação dos
testes (normalmente reduzem-se à metade ao final do
Tratamento
segundo mês). A persistência sorológica de um teste O objetivo do tratamento durante a gestação é
positivo além do período esperado, com títulos ele- evitar a ocorrência de infecção fetal ou iniciar precoce-
vados (produção pela própria criança), caracteriza o mente o tratamento de feto infectado.
diagnóstico de toxoplasmose congênita. A espiramicina pode reduzir a transmissão vertical
As reações de imunofluorescência (IF) para em até 60%, mas não altera a gravidade da infecção no feto.
IgG e IgM são de grande valor diagnóstico. Porém, Quando a infecção é comprovada ou muito provável, é reco-
a presença frequente de anticorpos maternos difi- mendado uso de pirimetamina e sulfadiazina, que, além de
culta o diagnóstico, principalmente na forma sub- reduzirem as taxas de transmissão, diminuem os sinais clí-
clínica. A reação de IF-IgM é de grande importân- nicos da doença e a possibilidade de sequelas graves. Os es-
cia no diagnóstico de infecção aguda. Entretanto, quemas utilizados variam conforme os diferentes centros.
sua interpretação é complicada por vários fatores: O tratamento após o nascimento visa diminuir as
€€ o feto infectado pode não formar IgM no útero; sequelas em longo prazo. As medicações utilizadas não
€€ títulos altos de IgG podem, por competição, ini- são efetivas contra as formas encistadas do parasita, não
bir a demonstração da IgM (falso-negativos); prevenindo infecção latente ou ativação tardia da doença.
€€ apenas um terço dos RNs com infecção pelo T. Sulfadiazina: 100 mg/kg/dia divididos em duas
gondii é detectado por esse método; doses durante um ano.

SJT Residência Médica – 2016


222
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Pirimetamina: 2 mg/kg/dia por dois dias e ultravioleta e tem o homem como único hospedeiro
posteriormente 1 mg/kg/dia uma vez ao dia por dois natural. Doença que na infância geramente tem
a seis meses e, a seguir, 1 mg/kg/dia três vezes por se- evolução benigna, quando ocorre durante a gestação
mana até um ano de tratamento, uma vez ao dia. torna-se uma patologia de maior gravidade devido ao
A pirimetamina é antagonista do ácido fólico, e risco de acometimento fetal e, consequentemente, do
seu efeito tóxico principal é uma depressão gradual e surgimento da Síndrome da Rubéola Congênita
reversível da medula óssea com plaquetopenia. Ou- (SRC). A importância dessa patologia, além do risco
tros efeitos tóxicos são: leucopenia; anemia; mal-estar fetal, está na possibilidade de que o neonato infectado
gástrico e gosto amargo na boca. Na superdosagem seja fonte de infecção até um a dois anos de idade.
acidental observam-se vômitos, tremores, convulsões O vírus pode ser encontrado em 80% das crian-
e depressão da medula óssea. Em vista de sua toxici- ças no primeiro mês de vida; 62% do primeiro ao quar-
dade, recomenda-se a realização de hemograma com to mês; 33% do quinto ao oitavo mês; 11% entre nove
contagem de plaquetas duas vezes por semana, pelo e 12 meses e apenas 3% no segundo ano de vida.
menos, ou de acordo com a evolução clínica.
O perfil epidemiológico da rubéola sofreu
Ácido folínico: 5 mg/dia, três vezes por sema- algumas alterações que se iniciaram em 1992, quando
na aumentando para 10 mg/dia após um mês de vida foi introduzida a vacinação contra a rubéola no Brasil
(nos tratamentos com pirimetamina). por meio da vacina tríplice viral (sarampo, rubéola e
Prednisona ou prednisolona: 1 mg/kg/dia, caxumba) e, posteriormente, com a inclusão da rubéola
12/12 horas (se coriorretinite aguda ou hiperprotei- e da SRC na lista de doenças de notificação compulsória
norraquia). Poderá ser utilizada até redução do proces- em 1996. A seguir, no período de 1997-2000, observou-
so inflamatório. se um deslocamento da incidência da doença para a
O tratamento da toxoplasmose congênita sin- população de adultos jovens, mais precisamente entre
tomática é realizado por um ano. No RN com testes 15 e 29 anos de idade, e, acompanhando essa tendência,
inconclusivos cuja infecção materna foi adquirida du- a incidência de SRC também aumentou. Devido ao risco
rante a gestação, recomenda-se a terapêutica por 30 de uma epidemia de SRC no Brasil, o Ministério da Saúde
dias; a manutenção do tratamento depende da evolu- e a Organização Pan-Americana de Saúde promoveram
ção clínica e laboratorial. um plano de prevenção da rubéola congênita por meio
de uma campanha vacinal entre os anos de 2001 e 2002
em diversos estados brasileiros e que teve importante
impacto na diminuição da incidência da SRC, conforme
Prevenção ilustra o gráfico a seguir.
Não há vacina antitoxoplasma. Desse modo, é de 120 3,5
grande importância que, durante o pré-natal, a gestante 3

Incidência por 100 mil*


100
Número de casos

seja acompanhada do ponto de vista sorológico, a fim de 80


2,5
2
se diagnosticar o seu estado imunológico. As pacientes 60
1,5
não imunes devem não apenas ter o acompanhamento 40
1
laboratorial, mas também aconselhamento em relação a 20 0,5
evitar o consumo de carnes cruas e o contato com animais 0 0
sabidamente vetores da doença, particularmente o gato. 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003

Casos de SRC Incidência

Fonte: Sinan
*Denominador: População < 1 ano, IBGE

Prognóstico Figura 21.2


Os casos do tipo encefalítico, em geral, têm sobre-
vida mais ou menos longa, porém evoluem sempre com O período de incubação do vírus da rubéola varia
retardo de desenvolvimento neuropsicomotor grave. Nas de 14 a 21 dias, durando em média 17 dias. Já a trans-
formas predominantemente viscerais, o prognóstico pa- missão pode ocorrer de 5 a 7 dias antes do exantema até
rece melhor, podendo haver reversão do quadro clínico. 5 a 7 dias após. A condição para que ocorra a transmissão
materno-fetal é a presença da viremia materna, que pode
ocasionar infecção placentária e acometimento fetal, re-
sultando no nascimento de uma criança sem nenhuma
Rubéola congênita anomalia, aborto, natimortalidade, nascimento de crian-
ças com anomalias simples ou combinadas. O risco de
A Rubéola é uma doença causada por um vírus que ocorrência de defeitos congênitos tem como principais
pertence à família Togaviridae e ao gênero Rubivirus, que fatores determinantes a situação imunológica materna e
tem meia-vida de uma hora, perde sua infectividade a idade gestacional, e são muito mais frequentes quando
em extremos de pH, calor, solventes lipídicos e luz a infecção materna ocorre até 11 semanas de gestação.

SJT Residência Médica – 2016


223
21  Infecções congênitas

Os principais mecanismos envolvidos no proces- de que aparentemente não haja viremia. Há também a
so de lesão fetal são: possibilidade de realização do teste de avidez da IgG nos
€€ inibição mitótica: mais frequentemente rela- casos de presença de IgM no sangue materno.
cionada à destruição do cristalino, restrição de O diagnóstico de infecção fetal pode ser feito
crescimento, lesões ósseas e desorganização da através da detecção de anticorpo (AC) IgM em sangue
organogênese; obtido por cordocentese ou isolamento viral em amos-
€€ lesão do endotélio vascular: ocasionando en- tras de vilos coriônicos ou em líquido amniótico.
cefalite, retardo mental e surdez central e coclear. O diagnóstico laboratorial de infecção no recém-
-nascido é obtido através de: isolamento viral em se-
creções respiratórias, detecção de Ac IgM específico ou
IgA em sangue de cordão umbilical ou do RN, persis-
Quadro clínico tência e/ou elevação dos títulos de Ac IgG antirrubéola
As alterações clínicas da SRC podem ser classifi- em crianças de até três a seis meses de idade.
cadas como: Segundo o CDC (Center for Disease Con-
€€ Transitórias: decorrentes do acometimento sis- trol), os critérios para o diagnóstico da SRC são:
têmico. Os recém-nascidos que apresentam as €€ confirmado: defeito compatível, confirmado
manifestações transitórias costumam evoluir com laboratorialmente.
restrição de crescimento intrauterino e déficit de
crescimento após o nascimento. Podem apresen- €€ provável: presença de dois defeitos primários
tar ainda hepatoesplenomegalia, hepatite com ou um primário e um secundário, não confirma-
icterícia colestática, trombocitopenia, anemia he- do laboratorialmente.
molítica, adenomegalia, meningoencefalite, mio- €€ suspeito: apenas alguns achados compatíveis.
cardite, osteopenia de ossos longos (rarefações €€ infecção congênita: assintomática e exames
lineares nas metáfises) e exantema crônico. laboratoriais negativos para rubéola, mas su-
€€ Permanentes: correspondem aos defeitos estru- gestivos de infecção congênita.
turais e congênitos como as malformações car-
díacas (persistência do canal arterial e estenose
pulmonar), alterações oftalmológicas (retino-
Os defeitos primários são:
patia pigmentar, catarata, glaucoma, microf- €€ catarata;
talmia), microcefalia, retardo mental e a surdez €€ glaucoma;
neurossensorial que acomete cerca de 80% ou
mais dos infectados.
€€ cardiopatia congênita;
€€ Tardias: geralmente observadas no seguimento dos
€€ deficiência auditiva de origem central;
recém-nascidos acometidos. Destacam-se o diabe- €€ retinopatia pigmentar.
tes melito insulinodependente, disfunções tireoi-
dianas e as lesões oculares, vasculares e do sistema
Os defeitos secundários são:
nervoso central, que podem ter início mais tardio.
€€ púrpura;
€€ hepatoesplenomegalia;

Diagnóstico €€ icterícia;
€€ microcefalia;
Deve existir a suspeita se houver rubéola materna
durante os primeiros três meses de gestação, ou quando €€ retardo de desenvolvimento;
o contato com o vírus tiver sido íntimo ou prolongado. €€ meningoencefalite;
Lembrar que a maior parte das gestantes já tem imuni- €€ radiolucência de ossos.
dade à rubéola. A possibilidade de a gestante desenvolver
a doença assintomática dificulta o diagnóstico. O diag-
nóstico laboratorial da infecção materna é fundamen- Conduta após exposição materna:
tal. Convém frisar que a infecção primária da rubéola €€ averiguar o grau de exposição (contato domésti-
é acompanhada por uma resposta inicial em anticorpo co versus contato ocasional);
IgM seguida por um aumento de IgG, enquanto na rein- €€ realizar sorologia para rubéola (hemaglutina-
fecção a resposta é um aumento de IgG, com a caracte- ção) tão logo seja possível. Se positiva, significa
rística resposta tipo booster. O tempo de persistência da infecção antiga e, portanto, não há risco da in-
IgM é importante para a distinção entre infecção primá- fecção atual. Se negativa, repetir o exame duas
ria e reinfecção. Na primária há grande risco para o feto, semanas depois. A administração de gamaglo-
enquanto na reinfecção parece não haver problemas, des- bulina tem efeito insignificante para o feto.

SJT Residência Médica – 2016


224
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Prevenção Infecção materna e


O modo mais fácil de prevenir a infecção con- transmissão vertical
gênita e a síndrome da rubéola congênita é a imu-
A infecção por CMV na gravidez pode ser primá-
nização ativa universal de todas as crianças através
ria ou recorrente. A transmissão pode ocorrer no perí-
da vacinação. Não existe nenhum medicamento an-
odo intrauterino, no periparto ou pós-parto. Infecção
tiviral eficaz para o tratamento da síndrome de rubé-
materna primária pelo CMV é aquela em que o vírus
ola congênita. A prevenção da síndrome da rubéola é adquirido durante a gestação e é bem documenta-
congênita, principalmente em períodos de surtos ou da pela soroconversão dos anticorpos IgG para CMV
epidemias, é obtida através da vacinação seletiva de durante o período gestacional em mãe previamente
mulheres em idade fértil. Após a vacinação é reco- negativa. Nesses casos, a presença de anticorpos tan-
mendado evitar a gravidez por pelo menos 28 dias. to IgG como IgM para CMV pode ser considerada in-
fecção primária materna durante a gravidez, ou que a
mesma tenha ocorrido algumas semanas ou meses an-
tes da concepção. Infecção recorrente é definida como
Infecção neonatal pelo a presença de anticorpos para CMV antes da concep-
citomegalovírus ção e infecção congênita no RN. A média de transmis-
O CMV pertence à família Herpesviridae, apre- são fetal na infecção primária é 40%, sendo mais grave
sentando propriedades físicas e químicas semelhan- quando ocorre na primeira metade da gestação e le-
tes às dos outros vírus do grupo: herpes simples 1 e vando ao acometimento fetal em 35%-50% dos casos;
na infecção secundária a taxa de transmissão para o
2, Epstein-Barr, varicela-zóster, herpesvírus humano
feto é de 0,5% a 1%.
6 e 7. Como todos os representantes dessa família,
destacam-se as propriedades biológicas de latência e
reativação. Além disso, o CMV é espécie-específico;
sendo assim, o humano infecta apenas o ser humano.
Quadro clínico
A condição de infecção congênita sintomática
por CMV é denominada doença neonatal por CMV.
Epidemiologia A doença acomete múltiplos órgãos, em particular o
A epidemiologia do CMV é complexa, as fontes sistema linfomonocitário e o sistema nervoso central.
humanas de disseminação são inúmeras, incluindo Cerca de 5% dos fetos infectados apresentam doença
secreções respiratórias, sangue, urina, secreção do citomegálica clássica, 5% manifestam desenvolvimen-
colo uterino, esperma e leite humano. A infecção pode to atípico e 90% são assintomáticos ao nascimento.
ocorrer de várias formas, tais como: contatos sexuais, São manifestações frequentes da infecção congênita:
contatos próximos, transmissão vertical, transplan- restrição do crescimento intrauterino, prematuridade,
hepatoesplenomegalia, icterícia colestática, tromboci-
te de órgãos e transfusão sanguínea. Após a infecção
topenia, púrpura e pneumonite intersticial, calcifica-
primária, ou primoinfecção, segue-se a excreção viral,
ções intracranianas com distribuição periventricular,
que pode durar semanas a anos. Como em outros vírus
convulsões, coriorretinite. Mais de 90% das crianças
herpes, essa infecção torna-se latente e em determi-
portadoras de citomegalovirose congênita apresen-
nadas situações pode recorrer, seja por reativação da
tam sequelas como: atraso do desenvolvimento neu-
infecção latente ou por reinfecção por cepas virais di-
ropsicomotor, crises convulsivas, deficiência auditiva,
ferentes (infecção secundária).
comprometimento ocular, alterações dentárias. Entre
A infecção por CMV humano é endêmica, e a pre- as crianças infectadas assintomáticas ao nascimento
valência varia entre diferentes etnias, nível socioeco- 10% a 15% podem ter sequelas futuras, principalmen-
nômico e regiões geográficas. Em geral, a prevalência te deficiência auditiva e alterações neurológicas.
é alta em países em desenvolvimento, de baixo nível
Na doença neonatal por CMV, os sinais e sinto-
socioeconômico e em áreas urbanas.
mas são muito semelhantes àqueles de outras infec-
A definição da soroprevalência de CMV em ges- ções congênitas. O diagnóstico diferencial deve ser
tantes é difícil devido à grande variação entre dife- feito com outras infecções congênitas, sepse bacte-
rentes populações. As principais fontes de infecção riana e outras causas não infecciosas, como: anemia
primária nas gestantes são contatos sexuais e contato hemolítica, hidropsia fetal imune e erros inatos do
com crianças portadoras de infecção subclínica. metabolismo.

SJT Residência Médica – 2016


225
21  Infecções congênitas

A interpretação dos testes sorológicos no RN é, na


Diagnóstico maioria das vezes, complicada devido à transferência
Segundo o CDC (Center for Disease Control), a passiva de anticorpos maternos da classe IgG. Natural-
doença congênita por CMV é definida pela presença mente, um teste negativo no sangue do cordão umbili-
dos três critérios a seguir: cal e no soro materno constitui evidência para excluir
€€ Detecção de CMV na urina, saliva ou em outra o diagnóstico de infecção congênita pelo CMV. Recém-
amostra clínica, durante as primeiras três sema- -nascidos não infectados de mães sorologicamente po-
nas de vida. sitivas apresentam queda progressiva dos seus títulos
de anticorpos, desaparecendo entre seis e nove meses
€€ Presença de um ou mais dos seguintes sinais,
de idade, enquanto nas crianças infectadas os títulos
sintomas ou alterações laboratoriais:
de anticorpos IgG tendem a permanecer inalterados ou
€€ RN pequeno para idade gestacional elevados durante um período de tempo prolongado.
€€ Petéquias O encontro de IgM positivo no sangue do neona-
€€ Púrpuras to define o diagnóstico, entretanto falso-negativo pode
ocorrer devido à competição entre níveis elevados de
€€ Hepatoesplenomegalia
IgG materno e relativamente níveis baixos de IgM fetal;
€€ Microcefalia portanto, sua ausência não afasta o diagnóstico.
€€ Calcificações intracranianas
€€ Anormalidades neurológicas inexplicáveis Outros exames
€€ Surdez neurossensorial Um RN com infecção pelo CMV deve ser avaliado
€€ Hidropsia para se determinar a extensão da infecção viral nos ór-
€€ Hiperbilirrubinemia direta gãos, principalmente no SNC.
€€ Plaquetopenia e transaminases séricas aumentadas Liquor: verificam-se pleocitose e proteinorra-
quia (> 150 mg/dL).
€€ Exclusão de outras etiologias causadoras dessas
anormalidades: sífilis congênita, toxoplasmose Radiografia de crânio: verificar a presença de
congênita, infecções congênitas por outros vírus. calcificações intracranianas (baixa sensibilidade).
A ausência de virúria ao nascimento exclui o Ultrassonografia de crânio: hidrocefalia e cal-
diagnóstico de infecção congênita, e a sua detecção cificações (baixa sensibilidade).
após a quarta semana de vida demonstra infecção ad- Tomografia encefálica computadorizada:
quirida no período peri ou pós-natal. comprometimento do SNC, preferível para identificar
calcificações.
Hemograma: anemia hemolítica, leucocitose
ou leucopenia e plaquetopenia por vezes intensa (≤
Métodos diagnósticos 75.000/mm3).

Isolamento do vírus: isolamento viral em cul- Função hepática: hiperbilirrubinemia direta (≥ 3


tura de fibroblastos humanos. A saliva e a urina são mg/dL), nível de alanina aminotransferase > 100 UI/L.
as amostras mais utilizadas, podendo-se utilizar tam- Exame oftalmoscópico e da função visual:
bém sangue, liquor, materiais de biópsia. realizar ao diagnástico, com 12 meses, 3 e 5 anos.
Reação em cadeia de polimerase (PCR): detec- Exame auditivo: potencial evocado de tronco ce-
ta o DNA viral na urina ou em outra amostra clínica. rebral e/ou emissão otoacústica. Realizar no momento
do diagnóstico e periodicamente com 3, 6, 9, 12, 24, 30,
Apresenta sensibilidade e especificidade seme-
36 meses; após essa idade recomenda-se avaliação anual
lhantes às do isolamento viral, e o resultado é obtido
até a idade escolar.
após 24 a 48 horas.

Exames sorológicos Tratamento


A detecção de IgM e IgG específicos contra CMV O principal objetivo do tratamento específico da
pode ser feita por: infecção congênita por CMV seria reduzir a frequência
a) imunofluorescência; e a gravidade das sequelas neurológicas como surdez,
alterações oculares e retardo do desenvolvimento neu-
b) Elisa; romotor. A medicação de escolha é o ganciclovir, porém
c) radioimunoensaio. faltam informações seguras sobre sua eficácia além de

SJT Residência Médica – 2016


226
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

relatos frequentes de complicações referentes à toxi- almente infectadas pelo T. cruzi em todo o território
cidade da droga, principalmente com neutropenia. O americano. O baixo nível socioeconômico bem como a
tratamento com ganciclovir em crianças com infecção precariedade das habitações na maior parte dessas regi-
congênita por CMV deve ser considerado, pesando os ões contribuem para a prevalência da doença.
riscos e benefícios, com indicações restritas e indivi-
dualizadas. As crianças que poderiam se beneficiar do
tratamento são aquelas com infecção sintomática con-
firmada, idade inferior a 1 mês ao diagnóstico e evi- Etiopatogenia
dências de acometimento do sistema nervoso central, O parasita circula no sangue humano sob a forma
alteração auditiva e/ou coriorretinite, excluindo-se chamada tripomastigota, sendo que divisões celulares
outras etiologias de infecção congênita. O esquema não ocorrem na corrente sanguínea. Quando no teci-
proposto por Kimberlin e colaboradores e atualmen- do, o parasita perde o flagelo e a membrana ondulante
te utilizado é feito com ganciclovir na dose de 8 a 12 se modifica para uma forma chamada amastigota, que
mg/kg/dia de 12/ 12 horas em infusão endovenosa se multiplica por divisão binária. Massas de amastigo-
lenta, por uma hora, durante seis semanas. Em casos tas se agrupam em pseudocistos, onde se modificam
de neutropenia (≤ 500 células/mm3) e plaquetopenia para as formas tripomastigotas, que rompem o pseu-
(≤ 50.000/mm3) deve-se reduzir a dose da medicação docisto, novamente entrando na corrente sanguínea. A
para 4 a 6 mg/kg/dia, e se as alterações persistirem transmissão congênita do T. cruzi para o feto pode
por mais de uma semana suspender a medicação até a ocorrer em qualquer fase da doença materna. A
normalização desses parâmetros. parasitemia materna é maior na fase aguda da infecção,
porém o período de intensidade é curto. A maioria das
infecções congênitas ocorre em crianças de mães
que se apresentam na fase crônica da doença.
Profilaxia O parasita chega na placenta por via hematogê-
As mulheres grávidas soropositivas para o CMV nica e passa da região do vilo placentário para o trofo-
têm um risco de dar à luz uma criança sintomática. blasto. Depois da diferenciação para a forma amasti-
As soronegativas devem ser aconselhadas quanto às gota, o parasita permanece nas células fagocíticas da
medidas de higiene. Não existe nenhuma vacina efi- placenta até estas serem liberadas para a circulação fe-
caz para CMV. É importante o isolamento do RN pela tal. A placenta infectada é pálida, amarela e volumosa,
sua excreção viral prolongada e possibilidade de con- com aparência semelhante à que é vista nos casos de
eritroblastose fetal. A infecção placentária é muito
tactantes, particularmente gestantes sorologicamente
mais comum que a infecção fetal. A doença é im-
negativas. A contaminação em creches ou escolas ma-
portante causa de abortamento e hidropsia fetal.
ternais bem como em famílias é alta, principalmente
pela grande quantidade de vírus isolado na saliva e
urina dessas crianças com infecção assintomática.
Quadro clínico
A doença pode se manifestar logo ao nasci-
Prognóstico mento ou após alguns meses. Os recém-nascidos
doentes, na sua grande maioria, são pré-termo
A mortalidade não é alta na forma congênita ou de baixo peso ao nascer. Vários órgãos ou sis-
subclínica, porém a forma clássica é potencialmente temas podem estar comprometidos nas crianças
fatal. O prognóstico neurológico é ruim, com retardo doentes, e a presença de icterícia e esplenomega-
no desenvolvimento neuropsicomotor e perda da acui- lia são os principais sinais da infecção congênita.
dade visual e auditiva, mesmo nos casos subclínicos.
O sistema nervoso pode estar afetado em
50% dos casos, com presença de meningoence-
falite, hidrocefalia e convulsões. A meningoen-
cefalite, a princípio, pode ser assintomática. Os
Doença de Chagas olhos podem apresentar ceratite. Nas formas congê-
nitas da doença, a miocardite chagásica não é comum,
congênita sendo pouco frequentes as complicações cardíacas.
O sistema hematopoiético também é comprometido,
A doença de Chagas é uma infecção causada com o aparecimento de anemia, petéquias e púrpura.
pelo Trypanosoma cruzi, na maioria das vezes gra- O comprometimento gastrointestinal é caracterizado
ve, com acometimento de vários órgãos, transmi- pelo aparecimento de disfagia, megaesôfago e peris-
tida ao homem por hemípteros hematófagos da taltismo. Em pele e mucosa podem aparecer lesões
subfamília Triatominae (barbeiro). Estima-se que necróticas que correspondem à disseminação hemato-
aproximadamente 20 milhões de pessoas estejam atu- gênica de chagomas.

SJT Residência Médica – 2016


227
21  Infecções congênitas

assintomática e na mulher localiza-se na cérvix uteri-


Diagnóstico na, a qual, por ter pouca inervação sensorial, produz
O diagnóstico laboratorial no período ne- pouca ou nenhuma sintomatologia. Apesar da alta
onatal pode ser feito pela demonstração direta incidência da infecção herpética na população, os in-
do parasita no sangue e no liquor. No sangue a divíduos com sistema imunológico intacto conseguem
pesquisa pode ser feita a fresco, em esfregaço limitar a doença a áreas localizadas do corpo, tendo
corado, em gota espessa ou em creme leucocitá- evolução limitada. O mesmo não ocorre em imunode-
rio. Em crianças maiores deverão ser realizados primidos e recém-nascidos com risco de disseminação
testes sorológicos com imunofluorescência para e evolução fatal. A infecção pelo VHS no RN é sem-
anticorpos IgG e IgM, reação de hemaglutinação, pre grave, com mortalidade alta (60%), e metade das
fixação de complemento (Machado-Guerreiro) e crianças que sobrevivem tem sequelas neurológicas e/
Elisa. São recomendados outros exames, como hemo- ou oculares graves. Aproximadamente 75% das cultu-
grama completo, dosagem de bilirrubinas, enzimas ras de VHS são do tipo 2 e 25%, do tipo 1.
hepáticas, radiografias de crânio e tórax, ultrassono-
grafia de crânio, eletrocardiograma, eletroencefalo-
grama e estudo completo de liquor.
Fatores de risco
para infecção congênita
Tratamento €€ infecção genital ativa na gestante;
O tratamento medicamentoso na fase crônica
da doença apresenta resultados controversos. Na fase
€€ infecção primária em gestante;
aguda têm sido utilizados, com melhores resultados, €€ prematuridade;
nifurtimox, que é um derivado nitrofurânico e o €€ rotura precoce de membranas.
benzonidazol, um derivado nitroimidazólico. Nos
casos de tratamento bem-sucedido, a negativação do Na grande maioria dos casos o RN é assintomáti-
T. cruzi por pesquisa direta ocorre em oito a dez dias. co ao nascimento. Quando sintomática, a criança pode
apresentar manifestações clínicas viscerais e neuroló-
gicas caracterizadas por hepatoesplenomegalia, icterí-
Prognóstico e prevenção cia, vesículas em tronco, face ou disseminadas, micro-
cefalia, retinocoroidite e meningoencefalite.
O prognóstico é bom quando não existe com-
prometimento do sistema nervoso central, havendo O quadro clínico pode se manifestar sob
recuperação clínica nos primeiros meses. A prevenção a forma disseminada em 50% a 70% dos casos,
da doença envolve uma série de medidas educativas, geralmente no final da primeira semana de vida.
bem como melhoria nas condições gerais de vida e Os sintomas iniciais são: vômitos, anorexia, ir-
habitação, além de desinsetização frequente em regi- ritabilidade, desconforto respiratório, convul-
ões endêmicas. De forma geral, não se contraindica a sões, icterícia, hepatoesplenomegalia, petéquias
amamentação por mulheres portadoras de doença de e exantema vesicular herpético, principalmente
Chagas, exceto mães na fase aguda, que apresentem perto dos olhos. Entretanto, as lesões de pele
sangramento dos mamilos. são pouco frequentes. O diagnóstico torna-se,
então, difícil, pela similaridade com outras do-
enças. Em metade dos casos há envolvimento do
Infecção pelo vírus herpes SNC: meningoencefalite grave com alterações
liquóricas evidenciadas por pleocitose (linfomo-
simples (VHS) nocitárias) e hiperproteinorraquia.
Em 30% dos recém-nascidos há manifestações
clínicas localizadas: SNC, olho, pele ou mucosas, sem
A infecção pelo VHS encontra-se dissemina-
evidência de envolvimento visceral. Há dilatação dos
da mundialmente, e a grande maioria é assinto-
ventrículos cerebrais, destruição do parênquima ence-
mática. No entanto, doença grave e fulminante
pode ocorrer no RN, especialmente no prematu- fálico, com evolução ruim. As lesões oculares mais co-
ro, na criança desnutrida e em imunocomprome- muns são as conjuntivites e as ceratites (com eventual
tidos. A infecção congênita pelo VHS é aquela que úlcera de córnea) e as retinocoroidites.
ocorre após o nascimento e dentro das primeiras A cultura viral é o melhor exame para o diag-
72 horas de vida, particularmente após rotura nóstico da infecção herpética, particularmente no RN
prematura de membranas. O VHS-1 dissemina-se (padrão-ouro). Pode ser utilizado material das lesões
mais facilmente por contato íntimo, infectando pri- ativas herpéticas na pele. A pesquisa de anticorpos
mariamente a orofaringe, sendo mais frequentemen- específicos anti-VHS pode ser feita por imunofluo-
te adquirido na infância, após o segundo ano de vida, rescência (IgM e IgG). A presença de IF IgM negativa
sob a forma de gengivoestomatite herpética. Cerca de não afasta a doença, pois, pela evolução rápida e grave,
20% a 45% dos pacientes com infecção oral pelo VHS- pode não haver tempo suficiente para a produção de
1 terão recorrência. O VHS-2 infecta primariamente anticorpos. A droga de escolha para o tratamento da
a região genital (DST), sendo a maioria das infecções infecção pelo VHS é o aciclovir.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

22
Hiperbilirrubinemia

Adultos manifestam icterícia quando o nível sé-


Hiperbilirrubinemia rico de bilirrubina indireta, não conjugada e liposso-
lúvel, é maior que 2 mg/dL, enquantonos neonatos a
Diagnóstico frequente para neonatologistas e manifestação clínica da pele amarelada ocorre geral-
pediatras em geral. Estima-se que aproximadamente mente com níveis superiores a 5 mg/dL.
metade a dois terços do total de recém-nascidos têm
Cerca de 75% da produção de bilirrubina pelo
icterícia visível durante os primeiros dias de vida, fase
RN provém da decomposição da hemoglobina circu-
na qual a bilirrubina plasmática é mais alta que a do
lante; o restante é proveniente da decomposição do
adulto normal. Vários conceitos em relação às icterí-
heme livre, de hemeproteínas não globínicas (p. ex.,
cias foram modificados nos últimos tempos. Os níveis mioglobina) e da eritropoese ineficiente. A enzima
de bilirrubina indireta ainda são utilizados como guia heme-oxigenase no sistema reticuloendotelial inicia
terapêutico. Entretanto, os RNs de termo, sadios e o catabolismo da hemoglobina. Há liberação do ferro
sem hemólise já não são considerados de risco para (reutilizado) e do pigmento biliverdina, que, pela en-
o temível kernicterus (impregnação bilirrubínica no zima biliverdina-redutase, é convertido em bilirrubina
SNC) como antes. Os autores têm indicado os inva- indireta (não conjugada). Esta, lipossolúvel, é trans-
sivos procedimentos de exsanguineotransfusão com portada até o fígado ligada à albumina. Ao chegar no
níveis cada vez maiores de bilirrubina. Diante dos hepatócito, dissocia-se da albumina e cruza a mem-
avanços científicos, admite-se hoje que o tratamento brana celular ligada a proteínas carreadoras denomi-
desse sintoma esteja direcionado para a terapêutica da nadas ligandinas. No intracelular (microssomo), ela
doença de base e para a avaliação individual do risco então é conjugada (em bilirrubina direta) pela enzima
de impregnação, que, por sua vez, é avaliado pela pre- uridina-difosfato-glicuronil transferase (UDPG-
sença de fatores potenciais de lesão da membrana ce- -T); esta é hidrossolúvel e pode ser eliminada do or-
lular que impedem o clearance adequado de bilirrubina ganismo pelo trato gastrointestinal. Na luz intestinal,
no cérebro e favorecem a sua precipitação. pode haver ação de outra enzima, a betaglicuroni-
229
22 Hiperbilirrubinemia

dase, que reconverte a bilirrubina conjugada em não alaranjada; nos casos de hiperbilirrubinemia direta,
conjugada, podendo ser reabsorvida num ciclo conhe- ou seja, do tipo obstrutivo, manifesta-se com uma co-
cido como circulação entero-hepática. Bactérias na loração amarelo-esverdeado ou fosco.
luz intestinal (escassas no RN) convertem a bilirru- O primeiro passo para o diagnóstico diferencial
bina conjugada em urobilinogênio e estercobilinogê- das icterícias do recém-nascido é a divisão das mesmas
nios, que não sofrem ação da betaglicuronidase (efeito em precoces e tardias. Icterícia precoce é a que se torna
protetor para a circulação entero-hepática).
visível nas primeiras 24 horas de vida, e tardia é a que
O metabolismo da bilirrubina no RN está em aparece depois desse período. Há uma grande diversida-
transição do estágio fetal, durante o qual a placenta é de de condições que provocam icterícia após 24 horas ou
a principal via de eliminação da bilirrubina lipossolú- até mais tardiamente. Porém, nas primeiras 24 horas, a
vel, para o estágio adulto, no qual a forma conjugada grande maioria decorre de problemas de isoimunização
hidrossolúvel é excretada pelo hepatócito no sistema por incompatibilidade sanguínea materno-fetal; portan-
biliar e depois no trato gastrointestinal. to, esse diferencial de apresentação clínica é essencial na
Há basicamente dois mecanismos responsáveis pelo abordagem prática das hiperbilirrubinemias.
quadro de hiperbilirrubinemia indireta no recém-nascido: Será discutida a seguir a icterícia fisiológica do
1- Sobrecarga de bilirrubina aos hepatócitos: O recém-nascido, bem como as principais causas de icte-
recém-nascido produz duas a três vezes mais bilirrubina rícia patológica no período neonatal.
que o adulto devido à menor vida média das hemácias
fetais (70-90 dias) e à maior quantidade de hemoglobina.
Além desses fatores, as doenças hemolíticas tais como a
incompatibilidade Rh, ABO e deficiência de G6PD, au- Icterícia fisiológica do
mento da circulação enterro-hepática e as coleções extra-
vasculares contribuem para esse mecanismo.
recém-nascido
Sob circunstâncias normais, o nível de bilirrubi-
2- Deficiência na captação, conjugação e excreção
na de reação indireta no cordão umbilical é de 1 a 3
da bilirrubina.
mg/dL e se eleva a uma taxa de menos de 5 mg/dL/24
O risco de efeitos tóxicos de níveis elevados de h; assim, a icterícia torna-se visível no segundo ou
bilirrubina não conjugada no soro é aumentado por terceiro dia de vida, geralmente atingindo o máximo
fatores que reduzem a retenção da bilirrubina na cir- entre o segundo e quarto dias de vida, diminuindo
culação (hipoproteinemia, deslocamento da bilirrubi- posteriormente até o fim da primeira semana nos re-
na dos seus sítios de ligação na albumina por ligação cém-nascidos a termo. Essa é a chamada “icterícia
competitiva de drogas, como sulfonamidas, ceftriaxo- fisiológica”, que se deve a inúmeros fatores:
na, ácido fusídico, AAS, ácidos graxos livres secundá-
rios à hipoglicemia ou hipotermia), ou por fatores que 1- maior produção de bilirrubina pela degrada-
aumentem a permeabilidade da barreira hematoence- ção das hemácias fetais;
fálica ou das membranas das células nervosas à bilir- 2- limitação transitória da conjugação da bilirru-
rubina, ou a suscetibilidade das células cerebrais à sua bina pelo fígado do RN (ação da glicuroniltransferase);
toxicidade como asfixia, prematuridade e infecção). 3- aumento da circulação enterro-hepática, com
Com base em estudos epidemiológicos, alguns elevados níveis de betaglicuronidase, ausência de bac-
neonatos a termo ou próximos ao termo podem ser térias na luz intestinal e menor trânsito;
considerados de risco para hiperbilirrubinemia na pri- 4- diminuição da quantidade de ligandinas (me-
meira semana de vida. São eles: nor captação hepática);
€€ etnia asiática;
5- níveis relativamente maiores de eritropoese
€€ idade materna acima de 25 anos; inefetiva.
€€ filhos de mãe diabética; Entre prematuros, a elevação da bilirrubina sérica
€€ idade gestacional entre 35 e 38 semanas; tende a ser a mesma ou um pouco mais lenta do que em ne-
€€ irmão prévio que necessitou de tratamento para onatos a termo, mas é de maior duração, o que geralmente
icterícia; resulta em níveis mais altos, atingindo o máximo entre o
quarto e sétimo dias de vida; o padrão depende do tempo
€€ sexo masculino;
necessário para que o prematuro adquira os mecanismos
€€ presença de equimoses ou céfalo-hematoma; maduros do metabolismo e excreção de bilirrubina.
€€ dificuldade no aleitamento materno. Praticamente todos os recém-nascidos de muito
A icterícia é a manifestação clínica da hiperbilir- baixo peso apresentam hiperbilirrubinemia indireta,
rubinemia e resulta do depósito de bilirrubina indireta sendo que a grande quantidade de glóbulos vermelhos
na pele apresentando coloração amarelo-brilhante ou e a deficiência na conjugação hepática da bilirrubina

SJT Residência Médica – 2016


230
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

estão entre as condições fisiológicas mais importan-


tes. Além disso, o prematuro pode apresentar um
Doença hemolítica por
quadro de hemólise adquirida devido às infecções incompatibilidade sanguínea
bacterianas ou congênitas do tipo sífilis, rubéola, ci-
tomegalovírus etc. Ainda entre as principais causas de
materno-fetal
hiperbilirrubinemia em prematuros estão as coleções As incompatibilidades sanguíneas materno-
extravasculares seja por hematomas oriundos de par- -fetais pelos sistemas Rh e ABO constituem as
tos traumáticos ou por quadros de hemorragias intra- causas mais frequentes de icterícia não fisiológica
cranianas principalmente naqueles com menos de 34 no recém-nascido. Com os avanços na prevenção e te-
semanas de idade gestacional. rapêutica intraútero da doença hemolítica pelo sistema
O diagnóstico de icterícia fisiológica em neo- Rh tem ocorrido uma redução significativa na incidência
natos a termo ou prematuros pode ser estabelecido das formas graves dessa doença, em especial a hidropsia
fetal. Em nosso meio, em parte devido a problemas de
apenas por exclusão das causas conhecidas de icte-
cobertura pré-natal, casos graves ainda podem aparecer.
rícia com base na história e nos achados clínico-la-
boratoriais. Merecem maior atenção as icterícias
de início precoce, as de grande intensidade com Doença hemolítica por
aumento progressivo da BI, as icterícias persisten-
tes (após a segunda semana) e as hiperbilirrubine-
incompatibilidade Rh (DHRh)
mias diretas. Entre os outros fatores sugestivos de Caracteriza-se pela presença de anemia he-
uma causa não fisiológica da icterícia estão histó- molítica consequente à ação de anticorpos ma-
ria familiar de doença hemolítica, palidez, hepa- ternos anti-Rh (D), do tipo IgG, dirigidos aos
tomegalia, esplenomegalia, ausência de queda da eritrócitos Rh positivos do feto, com manifesta-
bilirrubina à fototerapia, vômitos, letargia, recusa ções clínicas variáveis, de acordo com a intensi-
alimentar, perda ponderal excessiva, apneia, bra- dade do processo.
dicardia, hipotermia, fezes descoradas e sinais de Foi no passado designada “eritroblastose fetal”,
kernicterus (impregnação de BI no SNC). pelo frequente aparecimento de elementos vermelhos
Portanto, a icterícia e sua hiperbilirrubine- nucleados (eritroblastos) no sangue periférico, conse-
mia subjacente são consideradas patológicas se quentes à eritropoese ativa compensatória no fígado,
sua época de aparecimento, duração ou padrão baço e medula óssea.
das concentrações séricas de bilirrubina deter- A denominação Rh positivo refere-se àque-
minadas seriadamente forem significativamente les indivíduos cujas células têm o antígeno D,
diferentes daqueles da icterícia fisiológica, ou se sendo que os Rh-negativos não possuem esse an-
a evolução for compatível com icterícia fisiológi- tígeno. Na raça branca, a frequência de Rh-negativos
ca, mas existirem outras razões para se suspei- é de 15%, nas raças negra e amarela é de 1% a 2%, e
tar que o neonato está sob risco especial de neu- nos pardos varia de 5% a 7%.
rotoxicidade da bilirrubina não conjugada.
A incidência da doença é variável, pois di-
Entre os critérios que sugerem icterícia patoló- versos fatores interferem no seu aparecimento:
gica estão: €€ a imunização Rh da mãe raramente se dá na pri-
€€ aparecimento da icterícia antes de 24 horas de meira gravidez. As transfusões de sangue fetal
vida. Rh positivo para uma mãe Rh negativo tendem a
€€ bilirrubina total (BT) superior a 4 mg/dL no ocorrer próximas ao momento do parto, tarde de-
cordão umbilical. mais para que a mãe se torne sensibilizada e trans-
mita anticorpos para o bebê antes do nascimento;
€€ aumento da bilirrubina indireta (BI) igual ou
superior a 0,5 mg/hora entre 4-8 horas nas pri-
€€ muitos dos segundos filhos poderão ser Rh-ne-
meiras 36 horas de vida. gativos. Geralmente é encontrada no terceiro ou
quarto filho de mãe Rh negativo sensibilizada;
€€ aumento da BI igual ou superior a 5 mg/dL/dia.
€€ interferência do genótipo do genitor. O fato de
€€ BT igual ou superior a 13 mg/dL no recém-nas- 55% dos pais Rh positivos serem heterozigotos
cido a termo. (D/d) determina a possibilidade de ter filhos Rh
€€ BT igual ou superior a 10 mg/dL no recém-nas- negativos;
cido prematuro. €€ somente uma fração das mulheres de risco desen-
€€ presença de icterícia por mais de 10 dias no RN volverá anticorpos (1 em 15 gestações de risco!).
a termo. A severidade da doença no RN acometido pode
€€ presença de icterícia por mais de 21 dias no RN variar enormemente. Aproximadamente 15% são na-
prematuro. timortos, 40% dos nativivos não necessitam de te-

SJT Residência Médica – 2016


231
22 Hiperbilirrubinemia

rapia, e os restantes apresentam a doença em graus A placenta também edemacia, agravando mais a
variáveis e índice de neonatimortalidade de 3,5% hipoxemia tecidual. Podem ocorrer derrames pleurais,
(índices com recentes modificações em função dos edema pulmonar podendo evoluir até com hipoplasia
avanços em TIU – transfusão intrauterina –, cuida- pulmonar (compressão).
dos pré-natais e administração da imunoglobulina Ocorrem trombocitopenia (fenômenos hemorrá-
anti-D na puérpera).
gicos) e neutropenia, por atividade medular desviada.
Os níveis de bilirrubina no feto não são altos,
Para que haja sensibilização é necessário pois esta cruza facilmente a barreira placentária,
€€ que o antígeno tenha contato com a mãe (trans- ligando-se à albumina materna. Excepcionalmente,
fusão de sangue Rh incompatível, hemorragia apresentará icterícia ao nascimento. A icterícia cos-
transplacentária durante a gestação ou parto, ce- tuma ser evidente no primeiro dia de vida porque os
sárea, versão externa, amniocentese e abortos); sistemas de conjugação e excreção de bilirrubina do
€€ que exista reação com formação de anticorpos neonato são incapazes de lidar com a carga resultan-
(mãe não tenha o antígeno D); te da hemólise maciça.
€€ que os anticorpos exerçam seus efeitos sobre o As manifestações irão depender da intensidade
feto (feto com eritrócitos com antígeno D). da hemólise intraútero e da capacidade de o feto reagir
a esse agravo. Há três níveis de gravidade:
Basicamente, a resposta imunológica €€ leve: anemia ausente ou leve, não atingindo ní-
materna poderá ser: veis de bilirrubina para exsanguineotransfusão
€€ primária: lenta, à custa de IgM, podendo demo- (EXST);
rar até seis meses; €€ moderada: há palidez, esplenomegalia, BI no
€€ secundária: nas reexposições, resposta rápida, cordão indicativa de EXST imediata e/ou icterí-
à custa de IgG, que pode atravessar a placenta. cia precoce, com progressão rápida;
A sensibilização processa-se geralmente no €€ grave: anemia progressiva, hidropsia fetal, hi-
momento do parto por penetração das células fe- poglicemia, manifestações hemorrágicas.
tais na circulação materna, de modo que, quando Na evolução, observa-se colestase (2 a 4 semanas
ABO-incompatíveis, essas células podem ser des- de vida).
truídas rapidamente (efeito ABO protetor), ao
São descritas três formas clínicas da DHRh: icté-
passo que terão uma sobrevida normal se ABO-
-compatíveis. Uma vez ocorrida imunização, rica, anêmica ou hidrópica, conforme o predomínio e a
doses consideravelmente menores de antígeno gravidade dos sintomas.
estimulam um aumento do título de anticorpos. O diagnóstico definitivo requer a demons-
O mecanismo patogênico da DHRh resume- tração de incompatibilidade do grupo sanguíneo
-se à passagem para o feto de anticorpos anti- e do anticorpo correspondente fixado às hemá-
-D, com subsequente destruição dos eritrócitos cias do neonato.
fetais Rh-positivos. O feto responde à hemólise Em mulheres Rh-negativas, história de
produzindo eritropoetina e células vermelhas. transfusões prévias, aborto ou gravidez devem
Há intensa eritropoese extramedular (fígado e sugerir a possibilidade de sensibilização. A pro-
baço). A anemia desenvolve-se no feto, e ocorre pedêutica laboratorial imuno-hematológica da
hipoxemia tecidual. O controle da maturação eri- gestante deve incluir o acompanhamento dos
troide torna-se irregular, e aparecem eritrócitos anticorpos anti-D maternos. A avaliação do feto
nucleados no sangue periférico. Quando a capa- pode exigir informações obtidas por ultrassonografia,
cidade compensatória do sistema hematopoético amniocentese e coleta de amostras sanguíneas umbili-
é excedida, a anemia intensifica-se, há sinais de cais. Detecta-se hidropsia fetal com achados de edema
descompensação cardíaca (cardiomegalia, difi- de pele ou couro cabeludo, derrame pleural ou pericár-
culdade respiratória), anasarca maciça e colapso dico e ascite. Outros sinais precoces incluem organo-
circulatório evoluindo com hidropsia e morte. megalia (fígado, baço, coração), edema de alças intes-
À medida que o processo se intensifica, a tinais e espessamento da placenta. A amniocentese é
eritropoese hepática causa alterações em sua ar- usada para avaliar a hemólise fetal. A hiperbilirrubi-
quitetura, modificando a circulação local, poden- nemia é removida pela placenta, mas uma proporção
do causar hipertensão portal e comprometimen- significativa entra no líquido amniótico e é mensurá-
to da função celular, com redução da produção de vel por espectrofotometria. Anemias graves são diag-
albumina, diminuição da pressão coloidosmótica nosticadas por coleta de amostras sanguíneas fetais, e
e o secundário edema generalizado. transfusões intrauterinas (TIU) podem ser realizadas.

SJT Residência Médica – 2016


232
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Imediatamente após o nascimento de qualquer Ocorre quase que exclusivamente quando a


bebê de uma mulher Rh negativo, deve-se obter san- mãe é do tipo sanguíneo O e o RN é A ou B. O me-
gue do cordão umbilical ou do bebê para determinar canismo da hemólise na doença deve-se à entrada
o grupo sanguíneo ABO, tipo Rh, hematócrito, hemo- de anticorpos da classe IgG anti-A ou anti-B na cir-
globina e o teste de Coombs direto. Nos bebês com culação fetal e subsequente reação contra eritróci-
DHRh, esse teste costuma ser fortemente positivo. tos fetais (a presença da doença está associada com
maior frequência à ação das subclasses IgG1 e IgG3).
Prova de Coombs: também denominada pro-
A combinação de uma mãe do tipo O com um RN tipo
va de antiglobulina humana, serve para demons-
A ou B ocorre em 15% das gestações nos EUA.
trar a presença de anticorpos anti-Rh, tanto no
soro dos indivíduos sensibilizados (prova indire- A doença manifesta-se por meio de uma ic-
ta – na mãe) quanto nos glóbulos já sensibiliza- terícia neonatal precoce, com intensificação rá-
dos com esses anticorpos (prova direta – no RN). pida, na vigência de incompatibilidade materno-
-fetal ABO, num RN Rh compatível.
Lembrar que o teste de Coombs direto negativo
não afasta o diagnóstico em RN submetido a TIU prévia. A ausência de hemólise na maioria dos casos po-
deria ser consequência de:
O tratamento antenatal consiste na transfusão
intraútero que visa corrigir anemia, diminuir a eri- €€ presença de antígenos A e B em outros tecidos
tropoese extramedular e a velocidade de hemólise; corpóreos, o que diluiria a ação dos anticorpos,
enfraquecendo seu poder de hemólise sobre a
no período neonatal pode-se lançar mão da EXST
célula vermelha;
pós-nascimento (veja critérios a seguir). A preven-
ção consiste na administração de imunoglo- €€ pequena densidade de antígenos A e B sobre a
bulina anti-D (RhoGAM) até 72 horas após o superfície do eritrócito;
parto ou aborto. Para a gestante Rh negativo, €€ subclasse de IgG envolvida mais frequentemente
é utilizada com 28 semanas de gestação, repe- no processo, que é a IgG2 (baixo poder hemolítico);
tindo-se após 12 semanas (ao nascimento). €€ na maioria dos casos, os RNs apresentam-se
bem e desenvolvem icterícia de pequena in-
tensidade, não acompanhada de anemia, que
poderá ser mais tardia nos casos mais intensos
Doença hemolítica por (difícil diferenciação da fisiológica).
incompatibilidade ABO (DHABO) Um diagnóstico presumível baseia-se na
A incompatilidade materno-fetal no sistema ABO presença de incompatibilidade ABO, um teste de
pode ocorrer em todas as gestações heteroespecíficas, Coombs direto negativo a fracamente positivo e
que correspondem àquelas nas quais a mãe tem anticor- esferócitos no esfregaço sanguíneo. A hiperbilir-
pos contra o antígeno que determina o grupo sanguíneo rubinemia frequentemente é a única outra anor-
fetal; entretanto, em apenas uma pequena porcentagem malidade laboratorial. Os reticulócitos podem
(< 10%) ocorre doença hemolítica. estar aumentados. A anemia é discreta.
A produção de anticorpos maternos ocorre pre- Pode ser realizado o teste do eluato, que
cocemente na vida, com a estimulação antigênica por sensibiliza o teste de Coombs direto.
antígenos presentes em alimentos, bactérias, vacinas, Diagnóstico diferencial: comparação entre
entre outros. DHRh e DHABO.
Incompatibilidade Rh Incompatibilidade ABO
Grupo sanguíneo - mãe Rh negativo O
Grupo sanguíneo - RN Rh positivo A ou B
Ocorrência no primogênito 5% 40% a 50%
Previsível gravidade na próxima gestação usualmente não
Natimorto ou hidropsia frequente não
Grau de icterícia +++ +/++
Hepatoesplenomegalia +++ +
Teste de Coombs direto + +/-
Anticorpos maternos sempre presentes não precisos
Esferócitos ausentes presentes
Reticulócitos +++ (> 6%) ++
Anemia comum rara
Necessidade de medidas pré-natais sim não
EXST - frequência 2/3 1/10
Tabela 22.1

SJT Residência Médica – 2016


233
22 Hiperbilirrubinemia

Outras causas Icterícia associada ao leite materno


de hiperbilirrubinemia Forma precoce ou icterícia da amamentação:
instala-se nos primeiros dias de vida; difícil diferencia-
indireta neonatal ção com a icterícia fisiológica. Decorre da oferta ina-
dequada de leite e calorias (fisiológica no momen-
to inicial da lactação) nos primeiros dias de vida,
Deficiência de G6PD com aumento da circulação entero-hepática de bi-
A glicose-6-fosfatodesidrogenase (G6PD) é uma lirrubina (menor eliminação de mecônio) e maior
enzima eritrocitária que atua na defesa antioxidan- absorção de bilirrubina não conjugada. Aumentar
te intracelular. Os recém-nascidos que apresentam a frequência das mamadas e evitar o início tardio da
deficiência de G6PD, quando expostos a estresse oxi- amamentação podem ser medidas eficazes de aborda-
dante tais como infecção, drogas, hipoglicemia ou gem. Tem sido associada a alta precoce da maternidade.
acidose, podem desenvolver um quadro de hemólise Forma tardia ou icterícia do leite materno:
e hiperbilirrubinemia. instala-se a partir do quarto ou quinto dia de vida,
Trata-se de uma eritroenzimopatia, de transmis- com pico na segunda semana. O mecanismo envolvido
são genética ligada ao X, mais comum no sexo mascu- não está bem estabelecido, mas acredita-se que essa
lino e na raça negra, caracterizada por deficiência da forma resulte da inibição competitiva da glicuronil
enzima glicose-6-fosfato-desidrogenase, uma enzima transferase, com menor conjugação, devido aos ácidos
intraeritrocitária, que participa do metabolismo da graxos de cadeia longa e ao pregnanediol presentes no
glicose. Como não há ciclo de Krebs na hemácia, o me- leite materno. Os estudos em literatura discutem a
tabolismo da glicose é realizado por via anaeróbia (via melhor forma de terapêutica; recomenda-se que a pri-
de Embdem-Meyerhorf - 90%) e pela via das pentoses, meira medida seja a manutenção do leite materno
da qual faz parte a G6PD. e a realização de fototerapia. A suspensão da amamen-
tação estaria indicada em níveis muito elevados (> 22
Aparece icterícia no segundo dia de vida (seme- mg%). Nesses casos, fototerapia (preferencialmente
lhante à fisiológica) ou posteriormente, no contato com dupla) deve ser instalada, e a suspensão da amamen-
agentes oxidantes. Há hiperbilirrubinemia, anemia, re- tação deve ser restrita a poucas horas (12 a 24 horas).
ticulocitose e alterações morfológicas do eritrócito. A família, particularmente a mãe, deve ser orientada
Icterícia acentuada com níveis superiores aos quanto ao caráter provisório dessa intervenção.
da icterícia fisiológica em RN, sem incompatibilidade
sanguínea, merecem pesquisa de deficiência de G6PD.
O diagnóstico é realizado por triagem neonatal Kernicterus
em papel-filtro ou pela dosagem sanguínea de G6PD.
Síndrome neurológica resultante do de-
pósito de bilirrubina não conjugada nas células
Aumento da circulação cerebrais. O risco em RN com doença hemolítica
êntero-hepática por incompatibilidade sanguínea está diretamente
relacionado aos níveis de bilirrubina; a relação entre
Obstruções intestinais, íleo meconial, estenose hi- o nível sérico de bilirrubina e kernicterus em recém-
pertrófica do piloro podem se manifestar com icterícia. -nascidos a termo e sadios é incerta. O nível sanguíneo
preciso acima do qual a bilirrubina indireta se torna
Deficiência de conjugação congê- tóxica para um dado neonato é imprevisível, mas o
kernicterus é raro em RNT sadios, na ausência de he-
nita da bilirrubina (Crigler-Najjar) mólise e se o nível sérico é menor que 25 mg%. Quan-
to menos maduro for o neonato, maior a suscetibilida-
Deficiência da Glicuronil transferase de ao kernicterus.
Insuficiência permanente, geneticamente deter- Os sinais e sintomas de kernicterus costu-
minada da conjugação de bilirrubina. Classificada em mam surgir dois a cinco dias após o nascimento
tipo 1 (ausência total) ou tipo 2 (ausência parcial). e podem ser sutis e indistinguíveis dos de sepse,
asfixia, hipoglicemia, hemorragia intracraniana
e outras doenças sistêmicas agudas do RN. Letar-
Síndrome de Lucey-Driscoll gia, recusa alimentar e perda do reflexo de Moro
Hiperbilirrubinemia por deficiência adquirida, são sinais iniciais comuns. Subsequentemente,
transitória, familiar, da glicuronil transferase, pois há o neonato pode parecer gravemente enfermo,
um inibidor encontrado no soro da mãe. prostrado, com reflexos diminuídos e dificulda-

SJT Residência Médica – 2016


234
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

de respiratória. Podem vir opistótono, abaula- Além da dosagem sérica de bilirrubina, devem
mento de fontanela e choro estridente. Em ca- ser solicitados os seguintes exames para os recém-
sos avançados ocorrem convulsões e espasmos. -nascidos com hipótese de icterícia patológica:
Se não morrerem, parecem recuperar-se, e durante €€ tipagem sanguínea da mãe e do RN, avaliando
dois a três meses manifestam poucas anormalidades. os sistemas ABO e Rh;
Mais tarde, no primeiro ano de vida, opistótono, ri- €€ teste de Coombs direto (no sangue do cordão ou
gidez muscular, movimentos irregulares e convulsões do RN) e indireto (mãe);
tendem a recorrer. No segundo ano, opistótono e as
convulsões cedem, mas os movimentos involuntários
€€ pesquisa de anticorpo anti-A ou anti-B (eluato)
no sangue do cordão ou do RN;
irregulares e a rigidez (ou hipotonia em alguns lacten-
tes) aumentam constantemente. Aos três anos, a sín- €€ hemoglobina ou hematócrito para pesquisar
drome neurológica completa é comum e evidente, com anemia ou policitemia;
coreoatetose bilateral, espasmos musculares involun- €€ morfologia das hemácias, reticulócitos e esferó-
tários, sinais extrapiramidais, convulsões, deficiência citos;
mental, surdez, estrabismo e fala disártrica. Nos lac- €€ dosagem sanguínea de G6PD;
tentes levemente afetados, a síndrome pode caracteri-
€€ pesquisa de anticorpos maternos para antíge-
zar-se por apenas incoordenação neuromuscular leve,
nos irregulares se necessário.
surdez parcial ou “disfunção cerebral mínima”.

Terapêutica das
Determinação da bilirrubina e hiperbilirrubinemias indiretas
investigação laboratorial O tratamento da icterícia deve ser direcionado
Uma das maneiras de se avaliar a icterícia no ne- para a doença de base, procurando-se conduta apenas
onato é através do exame clínico, utilizando a classifi- observadora nos casos em que a bilirrubina possa es-
cação de Kramer, que observa uma progressão da ic- tar presente somente como efeito protetor. O trata-
terícia no sentido craniocaudal, dividindo o corpo em mento da hiperbilirrubinemia, por aumento da fração
cinco zonas. Essa avaliação, apesar de muito utilizada indireta, tem por objetivo principal evitar a encefalo-
na prática clínica, deverá ser feita por profissional ex- patia bilirrubínica. Duas abordagens terapêuticas são
periente, pois é subjetiva e propensa a variações indi- amplamente conhecidas e eficazes: a fototerapia e a
exsanguineotransfusão (EXST).
viduais, tais como diferenças na pigmentação da pele e
intensidade da luz ambiente. A seguir, são apresenta-
dos a classificação de Kramer e os níveis de bilirrubina Fototerapia
associados a cada zona:
É o mecanismo pelo qual a bilirrubina, que é
uma molécula lipossolúvel, sofre transformações
Partes do Concentração média (isomerização e oxidação) pela luz, tornando-se
Zonas
corpo de bilirrubina
mais hidrossolúvel e sendo eliminada do orga-
Zona 1 Cabeça e pescoço 5 mg/dL: de 4,3 a 7,8 mg/ nismo sem a necessidade de conjugação hepáti-
dL ca. Acredita-se que quanto maior for a intensidade de
Zona 2 Até a cicatriz 8,9 mg/dL: de 5,4 a 12,2 luz emitida, maior será a eficácia da fototerapia, até
umbilical mg/dL um ponto de saturação, por volta de 20 a 25 micro-
Zona 3 Até joelhos e 11,8 mg/dL: de 8,1 a 16,5 watts/cm2/nm.
cotovelos mg/dL
Zona 4 Até tornozelos e 15 mg/dL: de 11,1 a 18,8 Os valores indicativos de fototerapia dependem do
punhos mg/dL tempo de vida do RN, do peso de nascimento, do nível de
Zona 5 Plantas dos pés e BI superior a 15 mg/dL bilirrubina sérica e da presença de fatores de risco.
palmas das mãos Não existe um consenso sobre a interrupção da
Tabela 22.2 fototerapia, mas poderá ser suspensa quando o nível
estiver pelo menos 2 mg% abaixo do nível de indicação,
Faz-se necessária a dosagem sérica de bilirrubi- ou nos RNs com doença hemolítica quando os níveis es-
nas totais e frações. Outro recurso ainda não utilizado tiverem em declínio e inferiores aos de indicação.
em larga escala em nosso meio é a utilização de medi- Não há indicação de fototerapia “profilática” para
das de bilirrubina transcutânea – BiliCheck –,método os RNs de baixo peso, pois há aumento de perdas in-
esse que possui valor limitado para níveis de bilirrubi- sensíveis. Exceção: presença de grandes sufusões he-
na acima de 13-15 mg/dL. morrágicas (equimoses, céfalo-hematoma).

SJT Residência Médica – 2016


235
22 Hiperbilirrubinemia

25 428

20 342
Total Serum Bilirubin (mg/dL)

15 257

μmol/L
10 171

5 85
Infants at lower risk (≥ 38 wk and well)
Infants at medium risk (≥ 38 wk + risk factors or 35-37 6/7 wk. and well)
Infants at higher risk (35-37 6/7 wk. + risk factors)
0 0
Birth 24h 48h 72h 96h 5 Days 6 Days 7 Days

Age

● Use total bilirubin. Do not subtract direct reacting or conjugated bilirubin.


● Risk factors = isoimmure hemolytic disease, g6pd deficiency, asphyxia, significant lethargy, temperature instability,
sepsis, acidosis, or albumin < 3.0g/dL (if measured).
● For well infants 35-37 6/7 wk can adjust TSB levels for intervention around the medium risk line. It is an option to
intervene at lower TSB levels for infants closer to 35 wk and at higher TSB levels for those closer to 37 6/7 wk.
● It is an option to provide conventional phototherapy in hospital or at home at TSB levels 2-3 mg/dL (35-50mmol/L)
below those shown but home phototherapy should not be used in any infant with risk factors.

Figura 22.1

Exsanguineotransfusão
É o mecanismo de troca de sangue no qual se removem parcialmente as hemácias hemolisadas, anticorpos
ligados ou não às hemácias e bilirrubina plasmática. Estima-se que 80% dos anticorpos e 50% da bilirrubina
plasmática sejam removidos durante um procedimento. Ela está reservada para os casos em que não se conseguiu
controlar a hiperbilirrubinemia por meio da fototerapia de alta intensidade e que necessitem de rápida redução
dos níveis de bilirrubina.

Indicações
€€ Ao nascimento: RN hidrópico (pálido e/ou ictérico, com hepatoesplenomegalia, edema, ICC, petéquias), com
dados maternos de sensibilização pelo antígeno Rh.
€€ Nas primeiras 24 horas (sensibilização Rh).
€€ Após exames laboratoriais: sangue do cordão com Coombs direto positivo, BI > ou = 4 mg/dL e Hb
< ou = 13 g%.
€€ Elevação da bilirrubina indireta acima de 0,5 mg/dL/h, nas primeiras 24 horas de vida.
€€ Após 24 horas de vida.

Níveis de BI sugeridos para indicar exsanguineotransfusão


Pré-termo, termo com hemólise ou doente: 18 a 20 mg/dL.
Termo sem hemólise e bem: 22 mg/mL.
Abaixo de 1.800 g: 10% do peso de nascimento.
(Por exemplo: para um RN com peso de 1.650 g, o nível de BI indicativo de EXST, na primeira semana de vida, é
16,5 mg/dL).
*Após a primeira semana de vida, deve-se acrescentar dois pontos ao valor inicial para indicar EXST.
Tabela 22.3

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

23
Emergências pediátricas - parada
cardiorrespiratória, insuficiência
respiratória e choque

Introdução Causas de PCR na faixa etária pediátrica


Síndrome da morte súbita infantil Asma
A parada cardiorrespiratória (PCR), ou parada Trauma Broncopneumonia
Afogamento (BCP)
cardíaca, caracteriza-se pela interrupção da circulação
Intoxicação Sepse
corpórea de sangue como resultado da ausência ou Aspiração de corpo estranho Distúrbios metabó-
ineficácia da atividade mecânica cardíaca. É caracte- licos
rizada por inconsciência, apneia e ausência de pulsos Tabela 23.1
centrais (carotídeo, braquial ou femoral).
Em adultos, a maioria das paradas cardiorrespi- Na maioria das vezes, a parada cardíaca é res-
ratórias não traumáticas é cardíaca na sua origem, e o piratória na sua origem, ou seja, o paciente evolui de
ritmo cardíaco mais frequente é a fibrilação ventricular, uma situação de hipoxemia e/ou hipercapnia para pa-
enquanto na faixa etária pediátrica a PCR costuma repre- rada respiratória, seguida de bradicardia e então pa-
sentar a fase final da insuficiência respiratória ou choque rada cardíaca em assistolia. A fibrilação ventricular
e o ritmo de parada mais comum é a assistolia. ocorre em menos de 15% dos casos de parada cardior-
Entre as causas de PCR em crianças encontram-se respiratória (PCR) em pediatria, podendo ser mais
a síndrome de morte súbita do lactente, trauma, asfixia, importante como causa de PCR em alguns subgrupos
asma, submersão e sepse. Nos EUA, do primeiro mês de pacientes, como aqueles portadores de doenças de
de vida a um ano de idade, a principal causa de PCR é base, principalmente as cardiopatias.
a síndrome da morte súbita do lactente. Já as causas O prognóstico após a PCR em crianças é ruim,
externas predominam como causa mais comum de PCR com sobrevida após 1 ano de 4% a 14% nos eventos
de 1 ano de idade até o final da adolescência. que ocorrem fora do ambiente hospitalar e de cerca de
237
23  Emergências pediátricas - parada cardiorrespiratória, insu iciência respiratória e choque

27% nos eventos hospitalares. A sobrevida sem seque- ção do controle da respiração. As obstruções de vias
las de crianças submetidas a graves lesões, traumáti- aéreas superiores comumente encontradas na pedia-
cas ou não, depende de um pronto atendimento e de tria são o crupe viral, obstrução por corpo estranho e
sua qualidade, pré-hospitalar e hospitalar. anafilaxia. As vias aéreas inferiores podem apresentar
Assim, a abordagem da PCR em pediatria deve ca- resistência à entrada do ar em patologias como bron-
minhar em duas vertentes: prevenindo os agravos que quiolite e asma. Dentre as doenças do parênquima
a causam e iniciando precocemente e de forma eficaz as pulmonar a mais frequente na infância é a pneumo-
manobras de RCP quando ela já estiver instalada. nia infecciosa, enquanto a alteração do controle da
respiração,como etiologia da insuficiência respirató-
Para prevenir a PCR na faixa etária pediátrica é ria, pode ocorrer em casos de intoxicações exógenas
importante o reconhecimento dos sinais e sintomas da ou na vigência de alterações neurológicas como o au-
falência respiratória e do choque, permitindo o início mento da pressão intracraniana.
rápido do tratamento dessas circunstâncias e evitando
a progressão para a cessação da atividade cardíaca.
Causas de insuficiência respiratória
€€ Obstruções de vias aéreas superiores
€€ Obstruções de vias aéreas inferiores
Insuficiência €€ Doenças do parênquima pulmonar

respiratória €€ Alteração do controle da respiração


Tabela 23.3
A falência ou insuficiência respiratória aguda
pode resultar de qualquer enfermidade de vias aéreas, Do ponto de vista laboratorial, a gasometria re-
pulmonar ou neuromuscular, que prejudique a troca flete as trocas gasosas pulmonares, e na insuficiência
de oxigênio (oxigenação) ou a eliminação de CO2 (ven- respiratória pode-se encontrar hipoxemia (baixa pres-
tilação). É caracterizada por sinais de desconforto ao são arterial de O2-PaO2) e/ou hipercapnia (alta pressão
respirar, com aumento do trabalho respiratório. O re- arterial de CO2-Pa CO2) com acidemia (pH < 7,35).
sultado de condições que aumentam a resistência ao
fluxo de ar (por exemplo, crise asmática) ou diminuem
a complacência pulmonar (por exemplo, pneumonia)
são os sinais de esforço respiratório como taquipneia,
batimento de asa de nariz, uso de musculatura acessó- Choque
ria da respiração com retrações intercostais, de fúrcula
Choque é caracterizado por uma oferta de O2 (e
e subdiafragmática, e gemência. Devido ao aumento
outros nutrientes como glicose) aos tecidos insuficien-
do esforço respiratório, há aumento do débito cardí-
te para suprir as necessidades metabólicas teciduais.
aco com aumento da necessidade de O2 e maior pro-
O diagnóstico do choque é feito por meio da avaliação
dução de CO2, com consequente taquicardia, cianose,
de parâmetros clínicos que se alteram devido à respos-
palidez, livedo reticular, alteração do nível de consci-
ta do organismo, que visa compensar o déficit meta-
ência (agitação ou letargia) e hipotonia muscular.
bólico. Há uma liberação de catecolaminas, cortisol,
renina-angiotensina-aldosterona e glucagon. A ação
Idade Frequência respiratória normal dessas substâncias leva aos sinais clínicos de choque
< 2 meses < 60 movimentos/min que se relacionam às variáveis cardiovasculares (frequ-
2- 12 meses < 50 movimentos/min ência cardíaca – FC, pressão arterial – PA, amplitude
1-5 anos < 40 movimentos/min dos pulsos centrais e periféricos) e aos sinais de hipo-
6-8 anos < 30 movimentos/min perfusão tecidual (pele, rim e sistema nervoso central
Tabela 23.2 – SNC); podemos observar taquicardia, cianose, pali-
dez ou livedo reticular, alteração do nível de consciên-
cia (letargia ou irritabilidade), oligúria (< 1 mL/kg/h),
O paciente pediátrico tem elevada demanda hipotonia, pulsos finos, extremidades frias, tempo de
basal de oxigênio como resultado de sua alta taxa enchimento capilar prolongado e, mais tardiamente,
metabólica. Dessa forma, na presença de ventilação respiração irregular, hipotensão e bradicardia. O sur-
inadequada, desenvolve hipoxemia tissular mais rapi- gimento do sinais do choque ocorre de forma progres-
damente que o adulto, o que o torna mais vulnerável à siva, e a taquicardia, aumento do tempo de enchimen-
parada respiratória e a seguir à cardíaca. to capilar (exceto no choque séptico) e diminuição da
As causas da insuficiência respiratória podem ser temperatura de extremidades são, em geral, os sinais
por obstrução de vias aéreas superiores ou inferiores, mais precoces do choque em pediatria. Caso a situação
por alteração do parênquima pulmonar ou por altera- não seja resolvida e os mecanismos compensatórios

SJT Residência Médica – 2016


238
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

sejam insuficientes, ocorrem a piora dos parâmetros ção do volume circulante efetivo. Devemos lembrar
circulatórios e a evolução para a hipotensão arterial que a pressão arterial (PA) é igual ao débito cardíaco
sistólica. A partir do momento em que a PA sistólica (DC), multiplicado pela resistência vascular sistêmica
fica abaixo dos níveis de normalidade para a faixa etá- (RVS). Portanto, como temos queda da RVS no choque
ria, chamamos o choque de descompensado. séptico, o organismo aumenta o seu DC (por meio da
Em resumo, o choque compensado é aquele liberação de catecolaminas e outras substâncias) para
com pressão arterial sistólica normal, enquanto manter uma PA adequada.
o choque descompensado é aquele com pressão 4. Obstrutivo: ocorre quando existe aumento
arterial sistólica baixa (hipotensão).. da resistência contra a qual o coração trabalha. A con-
dição mais frequente em que pode ocorrer o choque
obstrutivo é no pneumotórax hipertensivo. Deve-se
Valor da PA sistólica no percentil 5% suspeitar dessa condição em pacientes politraumati-
Idade Percentil 5 da PAS zados ou em ventilação mecânica. Além dos sinais de
0 – 1 mês 60 mmHg choque, estão presentes a diminuição dos murmúrios
1 mês – 1 ano 70 mmHg à ausculta pulmonar e o timpanismo à percussão. O
70 mmHg + 2 x idade em tamponamento cardíaco é uma causa pouco usual
1 ano – 10 anos
anos de choque obstrutivo, mas deve-se estar atento a ele
> 10 anos > 90 mmHg quando o paciente não responde ao tratamento da
Tabela 23.4 maneira esperada. O abafamento das bulhas cardíacas
e o achatamento do complexo QRS (no ECG) podem
causar suspeita sobre esse diagnóstico, que pode ser
confirmado pelo ecocardiograma.
Classificação
1. Hipovolêmico: causado por redução do volume
intravascular, seja por sangramento, diarreia, baixa inges-
Tratamento
ta ou oferta de líquidos, diurese osmótica. É a causa mais O tratamento do choque consiste em restabe-
comum de choque em pediatria. Um aspecto importante lecer o balanço entre oferta e consumo de oxigênio e
no choque hipovolêmico é que a hipotensão só ocorrerá demais nutrientes teciduais. Conforme veremos no
quando a perda volêmica for maior do que 20% da vole- próximo capítulo, a sequência de ressuscitação car-
mia; portanto, é um sinal tardio da gravidade do paciente. diopulmonar foi alterada do A-B-C para o C-A-B nas
Diretrizes da American Heart Association 2010, mas
essa alteração é válida somente para pacientes que se
SVR encontram em PCR. Em todas as outras situações de
emergências pediátricas em que o paciente não esteja
em parada cardiorrespiratória a avaliação e conduta
devem seguir a sequência: A- abertura de vias aéreas,
Normal

B- garantir uma boa respiração e C- avaliar e corrigir as


alterações circulatórias.
MAP Dentro desse princípio, deve-se, então, inicial-
mente, para qualquer tipo de choque, garantir uma
CO adequada oxigenação, por meio do posicionamento
adequado do paciente, para manter as vias aéreas pér-
10% 20% 30% vias, e da suplementação de oxigênio, com a máxima
Perda de volume do sangue concentração possível. Se a respiração não é ruidosa e
o ritmo é regular, pode-se iniciar a abordagem do sis-
Figura 23.1  SVR é a resistência vascular sistêmica; tema cardiocirculatório. Mas, se apesar do posiciona-
MAP é a pressão arterial; e CO é o débito cardíaco. mento adequado e da oferta de oxigênio persistirem
sinais de insuficiência respiratória, o paciente deve ser
2. Cardiogênico: causado por disfunção cardía- ventilado com bolsa-valva-máscara e intubado.
ca (redução da contratilidade ou do relaxamento ven- Uma vez garantidas oxigenação e ventilação
tricular ou arritmias); ocorre nas miocardites, cardio- adequadas, o acesso vascular deve ser imediatamente
patias congênitas, arritmias cardíacas etc. providenciado. O melhor acesso é aquele que pode ser
3. Distributivo: causado por distribuição ina- obtido da forma mais rápida, que seja o mais calibro-
dequada do fluxo sanguíneo. O exemplo clássico é o so possível e que tenha baixa taxa de complicações. O
choque séptico, com vasodilatação periférica e redu- manejo inicial do choque compensado pode ser reali-

SJT Residência Médica – 2016


239
23  Emergências pediátricas - parada cardiorrespiratória, insu iciência respiratória e choque

zado pelo acesso periférico. No choque descompensa- Choque hipovolêmico por


do, é fundamental o acesso venoso rápido, de forma
perdas sanguíneas (trauma)
que se o acesso periférico não for obtido prontamente
está indicado o acesso intraósseo. No paciente politraumatizado, após permeabi-
lizar a via aérea (com proteção da coluna cervical) e
Todo paciente em choque deve ser monitorizado,
garantir uma adequada oxigenação/ventilação, é esta-
no mínimo, com oxímetro de pulso (saturação de oxi-
belecido o acesso vascular; o tratamento do choque é
gênio e frequência cardíaca), eletrocardiograma con-
iniciado com infusão rápida (em, no máximo, 20 mi-
tínuo, pressão arterial aferida em intervalos curtos e
nutos) de 20 mL/kg de soro fisiológico 0,9%, que tam-
controle do débito urinário.
bém pode ser repetida caso não haja melhora. Deve-se
Sendo o choque hipovolêmico (por diarreia/ providenciar concentrado de hemácias precocemente,
vômitos e por sangramento no trauma) e o choque pois, se não houver resolução do choque com 2 ou 3
séptico (distributivo) as principais causas de choque expansões, este será necessário (10 a 20 mL/kg). En-
em pediatria, e considerando-se que em ambos existe quanto isso, a causa do sangramento deve ser investi-
diminuição da pré-carga (no primeiro, devido à perda gada e corrigida, para resolver o choque. Os possíveis
de líquido e, no segundo, pela vasodilatação que leva à locais de sangramento responsáveis pelo choque hipo-
hipovolemia relativa), conclui-se que a grande maioria volêmico no trauma são: tórax, abdome, bacia/fêmur e
dos choques, nessa faixa etária, responde ao volume. couro cabeludo. Nesse momento, a presença do cirur-
Assim, uma vez assegurados a ventilação e o acesso gião é de suma importância.
venoso, devemos infundir volume de forma agressiva.
A solução a ser utilizada inicialmente deve ser crista-
loide (soro fisiológico 0,9% ou Ringer lactato). Deve-se Choque distributivo/choque séptico
infundir 20 mL/kg em, no máximo, 15 a 20 minutos. O choque séptico é a principal causa de choque
Tal procedimento poderá ser repetido, caso necessá- distributivo na faixa etária pediátrica. O choque sépti-
rio, após reavaliação das variáveis respiratórias e car- co pode ser dividido em choque frio e choque quente.
diocirculatórias do paciente. A partir desse ponto, in- No choque frio o perfil hemodinâmico se caracteriza
dividualiza-se o tratamento para cada um dos diversos por diminuição do débito cardíaco com aumento da
tipos de choque descritos anteriormente. resistência vascular sistêmica (RVS), enquanto no
Em todos os tipos de choque, a correção de dis- quente há diminuição da RVS e aumento do débito
túrbios metabólicos presentes é de fundamental im- cardíaco. No entanto, todos os pacientes em choque
portância, bem como a monitorização e correção da séptico apresentam hipovolemia, seja ela absoluta ou
glicemia. Os níveis de hemoglobina devem ser ade- relativa. O aumento da permabilidade vascular, a di-
quados, com manutenção dos níveis de hemoglobina latação de arteríolas e vênulas e a baixa ingestão de
acima de 10 g/dL. Posteriormente às medidas iniciais, líquidos contribuem para a redução efetiva no volume
a criança deve ser encaminhada à unidade de terapia sanguíneo. A intensa perda secundária através da fe-
intensiva. Se o transporte for necessário, este deve ser bre, diarreia e vômitos pode agravar essa hipovolemia.
feito por equipe habilitada e com o paciente previa- Assim, após garantir via aérea e ventilação adequadas,
mente estabilizado. e com acesso vascular estabelecido, inicia-se a reposi-
ção da volemia. Fazem-se 20 mL/kg de soro fisiológi-
co 0,9%, em infusão rápida (no máximo 20 minutos).
Deve-se fazer pelo menos três expansões na primeira
Tipos específicos de choque hora de tratamento, com reavaliações clínicas entre
elas. A reposição volêmica agressiva melhora sobre-
maneira o prognóstico do choque séptico. Sinais de
Choque hipovolêmico descompensação cardíaca através do ritmo cardíaco,
da ausculta pulmonar e palpação do fígado devem ser
Choque hipovolêmico por vômitos/diarreia sempre avaliados durante a expansão volumétrica. A
Nessa situação, após a oferta de oxigênio, a ex- antibioticoterapia deve ser iniciada o mais precoce-
pansão com 20 mL/kg de soro fisiológico 0,9% deve mente possível, de acordo com o provável foco da in-
ser iniciada imediatamente. Em alguns casos pode ser fecção e seus possíveis agentes etiológicos. Embora a
necessário repetir a infusão de volume até o restabele- coleta de culturas seja importante no choque séptico,
cimento circulatório. Em geral, após um volume de 60 ela não deve retardar nem a reposição volêmica e nem
mL/kg (ou seja, 3 expansões de 20 mL/kg), a maioria o início da antibioticoterapia.
desses pacientes não mais apresenta sinais de choque. Crianças que não respondem à fluidoterapia de-
Assim que o paciente estiver estável hemodinamica- vem ser submetidas a monitorização invasiva (pres-
mente, deve-se dar atenção especial aos distúrbios ele- são venosa central e pressão arterial invasiva), e deve
trolíticos que podem acompanhar esses casos. ser instituído o tratamento com drogas vasoativas.

SJT Residência Médica – 2016


240
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Para choques frios, as drogas comumente utilizadas plada pelas diretrizes pediátricas. Quando profissio-
são a dopamina (enquanto paciente normotenso) e a nais de saúde reanimarem crianças a partir de 1 mês de
epinefrina, enquanto para choques quentes prefere-se vida até o início da adolescência (definida pela presen-
a norepinefrina. Nos pacientes que apresentam res- ça de caracteres sexuais secundários), deverão fazê-lo
posta pouco satisfatória às drogas vasoativas ou que segundo as normas pediátricas. Socorristas leigos, ao
façam uso crônico de corticosteroides, deve-se consi- realizarem o suporte básico de vida (SBV), continuam
derar o uso de hidrocortisona, devido ao risco de insu- seguindo as recomendações pediátricas para crianças
ficiência adrenal. até 8 anos de idade.
Diminuir o consumo de oxigênio, com controle O diagnóstico da parada cardiorrespiratória é re-
da febre, sedação e ventilação mecânica precoce, pode alizado pela ausência de pulsos em grandes vasos, ap-
auxiliar no controle do choque séptico. neia (ou respiração ineficaz: gasping) e inconsciência.
A determinação do pulso em crianças no momento da
emergência, mesmo para indivíduos treinados, pode
ser difícil. Assim, se uma criança se encontra em ap-
Choque cardiogênico neia e inconsciente e o profissional de saúde, em até
10 segundos, não sentir o pulso ou estiver inseguro
Após garantir oxigenação e ventilação adequa-
quanto a isso, ele deverá iniciar as manobras de res-
das, sem que se tenha o diagnóstico de que o choque
suscitação cardiopulmonar (RCP).
é cardiogênico, caso se proceda a uma expansão volu-
métrica, o paciente pode evoluir com estertoração pul-
monar, hepatomegalia e piora da taquicardia. Por isso,
é importante que, caso haja suspeita de choque cardio-
gênico, a expansão seja, quando necessária, realizada
de forma mais cuidadosa, utilizando-se apenas 5 a 10
Suporte Básico de Vida
mL/kg de soro fisiológico 0,9%. O tratamento especí- (SBV) para profissionais
fico do choque cardiogênico é a introdução de droga
vasoativa com ação inotrópica, que deve ser escolhida de saúde
conforme o quadro clínico do paciente.
A principal diferença em relação ao SBV apli-
cado por profissionais de saúde e socorristas leigos,
além da faixa etária, é a consideração da provável
Choque obstrutivo causa da parada na decisão do melhor momento para
Como em todos os outros tipos de choque, deve- acionar o serviço de emergência (call first X call fast)
-se iniciar com permeabilização da via aérea e oferta para socorristas que atuam sozinhos. Por exemplo,
de oxigênio. A expansão com SF 0,9% produz apenas se um profissional de saúde testemunhar, sozinho,
melhora fugaz. Ao suspeitar de pneumotórax hiper- o colapso repentino de uma vítima (mesmo que seja
tensivo, a punção de alívio deve ser realizada imedia- uma criança), poderá presumir que ela sofreu uma
tamente. A seguir, procede-se à drenagem do tórax PCR primária (origem cardíaca) com um ritmo des-
(geralmente realizada por cirurgião). No tampona- fibrilável e deverá acionar imediatamente o serviço
mento cardíaco, após as medidas iniciais, deve-se fa- de emergência, buscar um DEA (desfibrilador auto-
zer punção de alívio e drenagem (feitas por cirurgião). mático externo) e retornar assim que possível para
aplicar a RCP. Esse procedimento é chamado de “call
As primícias que regem o Suporte Básico e Avan- first”, ou seja, pedir ajuda antes de iniciar as mano-
çado de Vida em Pediatria adotados na maioria dos bras de ressuscitação, e está indicado para colapso
países do Continente Americano são provenientes de súbito testemunhado para qualquer faixa etária, já
estudos e debates realizados pela American Heart As- que, para esses pacientes, o fator prognóstico mais
sociation (AHA)- Emergency Cardiac Care Committee. importante para a sobrevida é o intervalo entre o co-
O primeiro consenso pediátrico em suporte avançado lapso circulatório e a desfibrilação. Porém, para uma
de vida foi publicado em 1986 e tem sido sistematica- criança sem colapso súbito testemunhado em que o
mente revisado à luz de novos estudos e pesquisas. A provável evento que levou à PCR é a hipóxia ou hiper-
revisão mais recente deu origem às Diretrizes da AHA capnia a prioridade é aplicar compressões torácicas
2010 para RCP, que trazem mudanças importantes, com ventilação de resgate por cerca de 5 ciclos (apro-
por exemplo, a alteração da sequência da RCP do anti- ximadamente 2 minutos) antes de acionar o serviço
go A-B-C para C-A-B. de emergência. Nesses casos, o provável ritmo de
Contudo, muitas recomendações permanecem parada é a assistolia, e a reanimação cardiopulmonar
inalteradas, como a ênfase quanto à necessidade do deve ser feita o mais precocemente possível com a
início precoce das manobras e a faixa etária contem- posterior (mas não tardia) ativação dos serviços

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

24
Emergências pediátricas - suporte
básico e avançado de vida
(C-A-B da ressuscitação)

presença ou frequência cardíaca menor do que 60 bpm


C-A-B da Ressuscitação associados a sinais de má perfusão indicam compressões
torácicas imediatas. A compressão torácica promove
Os pacientes em parada cardiorrespiratória de-
circulação sanguínea pela compressão direta do coração
vem ser abordados utilizando-se a sequência C-A-B, ou
contra a coluna e também pelo aumento da pressão in-
seja, primeiro aborda-se a parte Circulatória, seguida
tratorácica. A técnica correta da compressão torácica é
pela via Aérea e posteriormente garantindo uma Boa
importante para sua efetividade; deve ser rítmica, so-
respiração (do inglês, Breathing). No entanto, quando
bre a metade inferior do esterno, não sobre o processo
o paciente estiver em situação de urgência mas não em
xifoide, na frequência mínima de 100 compressões/
PCR, a abordagem pela sequência A-B-C deve ser, ain-
da, utilizada, já que a grande maioria das situações gra- minuto, com compressão (afundamento) de no mí-
ves em pediatria envolve hipoxemia e/ou hipercapnia. nimo um terço do diâmetro anteroposterior do tó-
rax, o que corresponde no paciente menor de 1 ano a 4
cm e nas crianças maiores, a cerca 5 cm. O paciente deve
ser posicionado sobre uma superfície rígida, e deve-se
Circulação (circulation) permitir o retorno total do tórax após cada compressão,
para possibilitar que o sangue retorne ao coração a fim de
Após assegurar-se de que o paciente está incons-
encher novamente as cavidades cardíacas.
ciente e em apneia (ou com respiração não efetiva: gas-
ping), o socorrista profissional de saúde deve tentar Nos menores de um ano, geralmente utilizamos
checar pulso central por, no máximo, 10 segundos. a técnica de dois dedos, com a compressão do tórax
Pulsos centrais ausentes, a insegurança quanto a sua logo abaixo da linha intermamilar ou os dois polega-
242
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

res com as mãos circundando o corpo da vítima. Na


presença de dois socorristas, deve ser preferida a téc-
nica com os dois polegares e mãos circundando o cor-
po do lactente, por ser mais efetiva. Entre um e oito
anos de idade (para leigos) e de um ano até o início da
puberdade (para profissionais de saúde), utilizamos
a palma de uma ou das duas mãos (semelhante ao
adulto) sobre o esterno na linha entre os mamilos.
Atualmente, muitas considerações são feitas
a respeito da relação entre ventilação e compressão
torácica, e a mais aceita é que sejam realizadas 30
compressões para duas ventilações, caso haja um so-
corrista, e 15 compressões para duas ventilações, caso
haja dois socorristas. Após a obtenção de uma via aé- Figura 24.2  Compressão torácica em maiores de um ano.
rea segura (IOT, máscara laríngea, traqueostomia), as
compressões torácicas devem ser realizadas de forma A abordagem inicial das vítimas da PCR pelas
ininterrupta (frequência mínima de 100 compressões compressões torácicas, ou seja, avaliação da Circula-
por minuto), independentemente da ventilação; o so- ção (letra C) é a principal mudança nas Diretrizes da
corrista que realizar a ventilação aplicará oito a dez AHA 2010 para RCP. Essa importante proposta de
ventilações/minuto (evitando a hiperventilação). alteração suscitou vigoroso debate entre os especia-
listas em ressuscitação pediátrica. Como a maioria
das PCRs pediátricas é asfíxica na sua origem, e não
primária, tanto a intuição quanto os dados clínicos
respaldam a necessidade de ventilacões e compressões
para a RCP pediatrica. No entanto, PCRs pediátricas
são muito menos comuns do que PCRs (primárias)
súbitas em adultos, e muitos socorristas nada fazem
quando ficam inseguros ou confusos. Dados mostram
que a maioria das vítimas de PCR pediátrica não rece-
be nenhuma manobra de RCP dos presentes, de modo
que qualquer estratégia que aumente a probabilidade
de ação pelas pessoas presentes pode salvar vidas. Por
isso, a abordagem C-A-B para vítimas de todas as ida-
des foi adotada com a intenção de aumentar a chan-
ce de que pessoas presentes em uma PCR executem a
RCP. Teoricamente, a nova sequência deve retardar as
ventilações de resgate em apenas 18 segundos quan-
do houver um socorrista ou até menos quando houver
dois socorristas. O suporte de vida, normalmente, é
descrito como uma sequência de ações, e isso continua
Figura 24.1  Compressão torácica em menores de válido para o socorrista que atua sozinho. No entanto,
um ano. a maioria dos profissionais de saúde trabalha em equi-
pe, cujos membros, geralmente, executam as ações
Os socorristas devem organizar o atendimento simultaneamente. Um socorrista, por exemplo, inicia
de modo a minimizar as interrupções de compressão. imediatamente as compressões torácicas, enquanto
Quando as compressões torácicas são interrompidas, o outro socorrista busca um DEA e um terceiro abre a
fluxo sanguíneo cessa e a pressão de perfusão corona- via aérea.
riana diminui rapidamente. Quanto menor a pressão Logo que disponível, no ambiente extra-hopita-
de perfusão coronária, menores as possibilidades de so- lar, o DEA deve ser posicionado. Esses aparelhos são
brevivência da vítima. O ideal é que as compressões capazes de reconhecer o ritmo de parada e aplicar o
sejam interrompidas somente para verificação do choque se o ritmo for chocável. A partir de um ano
ritmo cardíaco e aplicação do choque. deve-se usar preferencialmente DEAs com atenuador
Quando houver mais de um socorrista presente, de carga pediátrico, mas se esse sistema não estiver
eles devem se revezar no papel de “compressor” a cada disponível utiliza-se o sistema para adultos. Já está
dois minutos ou cinco ciclos de RCP, com a finalidade autorizado, atualmente, o uso de desfibriladores para
de manter a efetividade da compressão. crianças menores de 1 ano que apresentem ritmos

SJT Residência Médica – 2016


243
24  Emergências pediátricas - suporte básico e avançado de vida (C-A-B da ressuscitação)

chocáveis. Nesses casos o desfibriador manual é prefe-


rido, mas quando não disponível usa-se um DEA com
Breathing (respiração)
atenuador de carga pediátrico. Para o paciente em PCR, devemos iniciar a venti-
lação artificial logo após as compressões torácicas e a
permeabilização da via aérea. O procedimento “ver,
Airway (via aérea) e colar cervical ouvir e sentir se há respiração” orientado na
abordagem antiga foi removido da sequência de
Após as compressões torácicas iniciais serem fei- RCP com o objetivo de simplificar e tornar mais
tas (30 quando um socorrista e 15 quando dois socor- ágil a reanimação. A ventilação deve ser realizada
ristas), deve-se permeabilizar a via aérea, estendendo duas vezes com duração de 1 segundo e com volume
a cabeça e erguendo o queixo. Na suspeita de trauma, a de ar insuflado suficiente para promover uma expansi-
coluna cervical deve ser imobilizada, preferencialmen- bilidade torácica adequada (visível). Fora do ambiente
te com o uso do colar cervical, para evitar lesões da hospitalar são realizados o boca a boca nos maiores de
medula, e a abertura das vias aéreas feita através da um ano e o boca a boca-nariz nos menores de um ano.
manobra de tração da mandíbula (colocam-se dois ou Socorristas treinados devem ser encorajados a realizar
três dedos sob cada lado da mandíbula, levantando-a
a compressão torácica e ventilação. Contudo, se o so-
para cima e para fora). Contudo, a permeabilização da
corrista estiver relutante em efetuar a ventilação, deve
via aérea é uma prioridade nas manobras de RCP, e na
ser estimulado a realizar apenas as compressões torá-
impossibilidade da realização da tração da mandíbu-
cicas sem interrupções.
la, quando em situações de trauma, deve-se abrir a via
aérea com a extensão da cabeça e elevação do queixo. No ambiente hospitalar, a ventilação durante a pa-
rada respiratória ou cardiorrespiratória é realizada ini-
cialmente por meio do dispositivo bolsa-valva-máscara
(Ambu, ou ressuscitador manual), ligado a uma fonte
de O2. A máscara para ventilação deve envolver o nariz
e a boca, sem comprimir os olhos, realizando uma ve-
dação adequada e permitindo a insuflação do ar gerado
pelo ressuscitador manual (Ambu). Os ressuscitadores
manuais utilizados na PCR devem conter reservatório
de O2, possibilitando a administração de O2 a 100%.
Com a ventilação por pressão positiva com máscara e
ressuscitador manual, é comum ocorrer distensão ga-
sosa do estômago, que pode limitar a expansibilidade
torácica; essa distensão pode ser evitada com a com-
pressão cricoide (manobra de Sellick), que previne a
regurgitação e aspiração de conteúdo gástrico.
Entretanto, após o retorno da circulação espon-
tânea, em vista da crescente evidência da possível no-
cividade da alta exposição ao oxigênio, foi adicionada
nas Diretrizes 2010 uma recomendação de titular
o oxigênio inspirado (quando houver equipamento
Figura 24.3  A: obstrução de via aérea; B: aliviada pelo apropriado disponível) para manter uma saturação de
posicionamento. oxi-hemoglobina ≥ 94%, mas < 100% a fim de limitar
o risco de hiperoxemia.
O socorrista pode se deparar em algumas
circunstâncias com a obstrução da via aérea por
corpo estranho, principalmente nas crianças me-
nores de cinco anos; a manobra clássica para de-
sobstrução de via aérea por corpo estranho é a
compressão súbita sobre o abdome (manobra de
Heimlich), utilizada em adultos e nos maiores de
um ano de idade conscientes. Nos menores de um
ano, devemos realizar uma sequência de golpes
nas costas e compressões torácicas em vez da ma-
nobra de Heimlich, para evitar a lesão de órgãos
Figura 24.4  Estendendo a cabeça e erguendo o queixo. intra-abdominais.

SJT Residência Médica – 2016


244
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Figura 24.5  Respiração boca a boca-nariz em lactente Figura 24.6  Uso de bolsa-máscara (Ambu) por dois
menor de um ano de idade.. ressuscitadores.

A Tabela 24.1 resume o atendimento pré-hospitalar/Suporte Básico de Vida:

Suporte Básico de Vida


Componente < 1 ano 1 a 8 anos (para leigos) ou Observação
até puberdade
Reconhecimento Não responsivo Não responsivo Profissionais de saúde: sem pul-
Ausência de respiração Ausência de respiração ou so palpável em 10 segundos
ou com gasping” com gasping Até 1 ano: braquial/femoral
Acima 1 ano: carotídeo
Sequência da RCP C-A-B C-A-B
Compressões torácicas 1 socorrista: 30 1 socorrista: 30 Frequência mínima 100/min
2 socorristas: 15 2 socorristas: 15
Profundidade compressão to- 4 cm 5 cm
rácica
Via aérea Inclinar cabeça e ele- Inclinar cabeça e elevar Profissionais de saúde: no
var queixo queixo trauma, anteriorização da
mandíbula
Respiração “boca- nariz” “boca-boca” Intercalado com as compres-
Duas respirações efeti- Duas respirações efetivas sões
vas de 1 s cada uma de 1 s cada uma 1 socorrista -30:2
2 socorristas- 15:2
Obstrução de via aérea por Impulsões no dorso e Compressões
corpo estranho no paciente compressões torácicas abdominais
consciente
Relação compressões/respira- 100 compr./min: 100 compr./min: sem interrupções
ções com via aérea avançada 8-10 ventil./min 8-10 ventil./min evitar ventilações demoradas
e excessivas
Desfibrilação automática ex- Utilizar de preferência Preferir equipamento pe- Dose inicial: 2 J/kg
terna (DEA), se ritmo chocável desfibrilador manual diátrico ou com atenuação Subsequentes: mínimo 4 J/kg
de carga (máximo 10 J/kg)
Tabela 24.1

C-A-B da Ressuscitação no Ambiente Hospitalar


Apesar de a sequência C-A-B continuar a ser recomendada no ambiente hospitalar, quando há uma equipe
para o atendimento da vítima os procedimentos acabam ocorrendo de forma quase simultânea. As compressões
torácicas vão sendo realizadas por um socorrista enquanto outro permeabiliza via aérea e após 15 compressões
realizará 2 ventilações. A equipe providencia o dispositivo bolsa-valva-máscara, a monitorização do paciente, o
desfibrilador, e obtém um acesso venoso. Assim que possível o paciente deve ser monitorizado e se apresentar um

SJT Residência Médica – 2016


245
24  Emergências pediátricas - suporte básico e avançado de vida (C-A-B da ressuscitação)

rítimo chocável deve receber a desfibrilação. Porém cardiopulmonar. As punções de veias periféricas po-
nenhum dos procedimentos deve atrasar ou atrapa- dem ser realizadas em qualquer sítio, com o dispositi-
lhar as compressões torácicas que têm sido considera- vo mais calibroso possível.
das fundamentais para a diminuição da morbimortali- Se o acesso venoso não for rapidamente obtido,
dade na PCR em qualquer faixa etária. uma punção intraóssea deve ser realizada. O acesso
Se durante a monitorização for detectado um intraósseo é uma opção segura e rápida para ad-
ritmo de parada chocável, como por exemplo fibrila- ministração de drogas, fluidos e sangue. Pode ser
ção ventricular (para maiores detalhes veja Capítu- obtido em 30-60 segundos. Nessa técnica, o médico uti-
lo 3), o choque deve ser aplicado e os ciclos de RCP liza uma agulha rígida, preferencialmente específica para
iniciados imediatamente. Após 2 minutos ou cinco esse fim, introduzindo-a perpendicularmente à tíbia an-
ciclos, se não houver mudança do ritmo um novo terior (ou com leve inclinação caudal), 1-3 cm abaixo da
choque deve ser aplicado. tuberosidade medial, na superfície anteromedial; após a
punção, a agulha adequadamente posicionada deve ficar
A dose inicial é de 2 J/kg, e se forem necessários
fixa no osso. O acesso intraósseo pode ser obtido em ou-
choques subsequentes a dose deve ser de no mínimo 4 J/
tros locais, como fêmur, espinha ilíaca etc. e em qualquer
kg (podendo ser aumentada até o máximo de 10 J/kg).
idade, inclusive adultos. A região tibial costuma ser esco-
A obtenção de acesso venoso é fundamental para lhida, na prática, por ser um local de fácil acesso durante
a administração de drogas e outros fluidos durante o as manobras de RCP e que pode ser utilizado em qual-
suporte de vida avançado. Durante a PCR, o melhor quer idade. Complicações ocorrem em menos de 1%
acesso é aquele obtido o mais rapidamente possível, dos casos e incluem fratura, síndrome comparti-
desde que não atrapalhe as manobras de ressuscitação mental, extravasamento de drogas e osteomielite.

A Sitio
Recém-nato B Adolescente
alternativo 60º 1-2 cm abaixo da
Maléolo
tuberosidade fibial medial
75-80º 60º
Superfície medial
anterior da tíbia

80º

platão Fêmur
da tíbia

C Crista
ilíaca Espinha D Lado distal E
ilíaca da tíbia Recém-nascido
Espinha
anterior para
ilíaca
superior crianças
posterior
mais
superior
velhas

Criança

Figura 24.7  Locais e técnica de punção intraóssea.

Apesar de o acesso venoso central ser uma via mais segura e eficaz que a periférica durante a PCR, ele ge-
ralmente não é necessário na maioria das RCP. Além de poder retardar a administração de drogas, a inserção de
um cateter central durante a RCP pode causar complicações como laceração vascular, hematomas e sangramen-
tos. Assim, é preferível a obtenção de um acesso periférico ou intraósseo em relação ao central no momento da
reanimação. No entanto, se o paciente já estiver com acesso central durante a PCR, este deve ser escolhido para
administração dos fármacos.
A via endotraqueal de administração de drogas, embora possível, é muito pouco utilizada atualmente nas
crianças devido à absorção irregular dos fármacos e ao retardo da administração destes (o paciente deve, primei-
ro, ser submetido a intubação orotraqueal para depois receber as medicações). Quando utilizada, essa via pode
receber as seguintes medicações: atropina, naloxona, epinefrina e lidocaína.
IMPORTANTE: Após a infusão endovenosa ou intraóssea de medicação, deve-se SEMPRE realizar um flush
de solução fisiológica de 5 a 10 mL para “empurrar” a droga para a circulação central.

SJT Residência Médica – 2016


246
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Medicações administradas durante a parada


cardiorrespiratória (PCR)
Os objetivos das drogas durante a PCR são:
1) estimular a perfusão sanguínea coronariana e cerebral;
2) estimular a contração miocárdica;
3) aumentar a frequência cardíaca;
4) corrigir a acidose metabólica;
5) tratar distúrbios de ritmo.

Adrenalina (ou epinefrina)


É uma catecolamina endógena, com propriedades alfa e beta-adrenérgicas potentes. Sua ação alfa-adrenérgi-
ca causa vasoconstrição e é responsável pela sua ação mais importante na PCR, promovendo aumento da pressão
diastólica aórtica e da perfusão coronariana, já que a perfusão coronariana depende da pressão diastólica. Sua
ação beta-adrenérgica aumenta a contratilidade miocárdica e a FC. É a droga mais utilizada na PCR. Sua ação
é deprimida em acidose e inativada em solução alcalina. Em pediatria, a adrenalina, na PCR, é utilizada na
forma diluída de 1:10.000 (a apresentação comercial contém adrenalina 1:1.000 e deve-se prepará-la conforme
quadro abaixo antes da administração).

Adrenalina
Dose 0,01 mg/kg = 0,1 mL/kg da solução 1:10.000
(1 mL de adrenalina + 9 mL de soro fisiológico)

Deve ser repetida a cada três a cinco minutos, na mesma dose. Atualmente, não é mais preconizado o uso da
adrenalina “pura” ou “dose alta” durante a RCP, exceto em algumas situações especiais como na intoxicação por
betabloqueador.

Vasopressina
Pode ser usada como uma alternativa à epinefrina para o tratamento de fibrilação ventricular refratária ao
choque em adultos. Os dados ainda são insuficientes para avaliar a eficácia e a segurança em pediatria, e seu uso
rotineiro não está recomendado.

Glicose
Está indicada em caso de hipoglicemia, na dose de 0,5 a 1 g/kg EV/IO. Hiperglicemia durante a PCR está
associada a um pior prognóstico neurológico; portanto, não deve ser usada desnecessariamente.

Cálcio
Deve ser usado APENAS em hipocalcemia documentada, intoxicação por bloqueadores de canal de cálcio,
hipermagnesemia e hipercalemia grave. A infusão rápida pode causar bradicardia e assistolia. Precipita-se na pre-
sença de bicarbonato. As Diretrizes da AHA 2010 reforçam a recomendação de administrar cálcio apenas nessas
situações específicas, já que estudos mostraram que o uso de cálcio de rotina na PCR não produz benefícios.

Bicarbonato de sódio
Apesar de a acidose metabólica ser extremamente comum em PCR, não se recomenda o uso do bicarbonato
de sódio rotineiramente. Ele está indicado especificamente em pacientes com hipercalemia, intoxicação por anti-
depressivos tricíclicos ou bloqueadores dos canais de cálcio. Em geral, a acidose metabólica é tratada por meio de
ventilação e oxigenação adequadas e melhora da perfusão tecidual. O bicarbonato de sódio pode ser considerado
nos casos de PCR prolongada após o manejo com compressões torácicas, ventilações e adrenalina.

SJT Residência Médica – 2016


247
24  Emergências pediátricas - suporte básico e avançado de vida (C-A-B da ressuscitação)

Atropina
É uma droga parassimpaticolítica, que promove o aumento da frequência sinusal e acelera a condução atrio-
ventricular. É indicada em casos de bradicardia, acompanhada de sinais de perfusão ruim, que não responderam à
oxigenação e ventilação adequadas, cuja causa suspeita-se que seja aumento do tônus vagal ou bloqueio atrioven-
tricular. É utilizada também em algumas intoxicações como naquelas por organofosforados. A dose é 0,02 mg/kg,
mínimo de 0,1 mg (para evitar bradicardia paradoxal associada a doses menores), máximo 0,5 mg em crianças e
1 mg em adolescentes.

Drogas usadas em emergências pediátricas


Droga Dose/via
Adrenalina para assistolia ou parada sem pulso (in- EV/IO: 0,01 mg/kg (0,1 mL/kg da diluição 1:10.000)
clui taquicardia ventricular, fibrilação ventricular e Traqueal: 0,1 mg/kg (0,1 mL/kg da diluição 1:1.000)
atividade elétrica sem pulso) Repetir a cada 3 a 5 min
Adrenalina para bradicardia sintomática EV/IO: 0,01 mg/kg (0,1 mL/kg da diluição 1:10.000)
Traqueal: 0,1 mg/kg (0,1 mL/kg da diluição 1:1.000)
Repetir a cada 3 a 5 min
Adrenalina para anafilaxia sem hipotensão IM: 0,01 mg/kg (0,01 mL/kg da “pura” 1:1.000)
Máximo 0,5 mg
Bicarbonato de sódio EV/IO:1 mEq/kg
Atropina 0,02 mg/kg, mínimo de 0,1 mg, máximo 0,5 mg em crianças e 1
mg em adolescentes EV/IO. Pode ser repetida uma vez.
EV: endovenosa, IO: intraóssea
Para realizar a dose traqueal, diluir a droga em 5 mL de soro fisiológico, instilar pela cânula traqueal e realizar venti-
lação com pressão positiva.
Tabela 24.2

IOT (intubação orotraqueal)


A intubação orotraqueal pode ser realizada durante a PCR com o cuidado de não atrapalhar as manobras
de reanimação. A técnica consiste na introdução de tubo em traqueia através da orofaringe. Esse procedimen-
to deve ser realizado pelo profissional mais experiente da equipe, e todo o material deve ser cuidadosamente
preparado antes de sua execução. A ventilação bolsa-valva-máscara é capaz de manter ventilações eficazes, e,
portanto, não é necessário pressa para realizar a IOT. Pelo contrário, a IOT feita inadequadamente pode ser
prejudicial ao paciente.
A intubação nasotraqueal, não costuma ser utilizada de rotina na emergência pediátrica. As vantagens, des-
vantagens e contraindicações da INT encontram-se descritas no quadro a seguir.

Vantagens, desvantagens e contraindicações da intubação por via transnasal


Vantagens Desvantagens Contraindicações
Pode ser realizada às cegas, sem laringoscopia Requer cânula de menor diâmetro Fraturas da base do
crânio
Libera cavidade oral para sucção e higiene Pode aumentar risco de sinusite em crianças Fraturas nasais
maiores
Permite um campo desobstruído para cirurgias Erosão da asa do nariz Epistaxe ativa
orais
Apresenta menor risco de deslocamento da Pode aumentar o risco de epistaxe Pólipos nasais
cânula
Propicia maior conforto Situação de emer-
gência
Tabela 24.3

SJT Residência Médica – 2016


248
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Cânula endotraqueal
Os cânulas endotraqueais podem ser com cuff (manguito) ou sem cuff, dependendo da necessidade do pa-
ciente. Sabe-se, atualmente, que tubos com cuff, quando utilizados de forma adequada, não só não são prejudiciais
como podem ser úteis em situações especiais, por exemplo, quando for necessário utilizar altas pressões ventila-
tórias. Para escolher o tamanho adequado da cânula utilizamos, em geral, a regra a seguir.

Cânulas sem cuff = I/4 +4 Cânulas com cuff = I/4 + 3,5 I: é a idade da criança em anos

Tubos traqueais 0,5 mm maiores e menores devem estar disponíveis no momento da IOT. Por exemplo,
numa criança de seis anos, devemos usar: 6/4 + 4 = 5,5 (sem cuff). Portanto, usaremos cânulas traqueais no 5,5.
Cânulas nos 5 e 6 devem estar disponíveis. Existem, também, métodos para estimar o tamanho do tubo endotra-
queal através da estatura da criança.

Laringoscópio
Laringoscópio é o instrumento utilizado para a exposição e visualização da laringe durante a intubação. Seu
funcionamento adequado deve ser checado antes do momento da IOT. A intubação orotraqueal é preferível à na-
sotraqueal, pois a primeira pode ser realizada mais rapidamente. As lâminas do laringoscópio mais utilizadas para
intubar crianças são as retas, e a técnica é a do pinçamento da epiglote com a lâmina. Porém, se o profissional que
estiver procedendo à intubação tiver mais experiência com lâminas curvas, estas podem ser utilizadas, lembran-
do, sempre, da técnica correta dessas lâminas (colocação da ponta do laringoscópio na valécula).

Monitorização
Para a realização da IOT o paciente deve estar monitorizado. A presença de oxímetro de pulso desde o início
é obrigatória, e após a IOT a detecção de CO2 exalado (capnografia ou colorimetria) é recomendada como técnica
complementar para avaliar a posição do tubo traqueal (Diretrizes da AHA 2010).
Durante as tentativas de IOT, deve-se observar a oxigenação do paciente, e, se houver queda da saturação, o
procedimento deve ser interrompido e a criança ventilada por meio de bolsa-valva- máscara, com O2 a 100%. Após
a IOT, o posicionamento correto da cânula deve ser checado por meio da visualização da expansibilidade torácica
bilateral, da ausculta de murmúrios vesiculares, da ausência de ruídos aéreos na ausculta do abdome superior
(significando que o tubo traqueal não está localizado no estômago), da visualização de vapor na cânula traqueal e
da monitorização do CO2 expirado. Na criança, a ausculta para checagem do posicionamento da cânula deve ser
feita primeiro em região axilar, seguida por ápices pulmonares, e só depois o abdome superior deve ser ausculta-
do devido a peculiaridades anatômicas dessa faixa etária. O raio X de tórax deve ser realizado logo que possível.
Caso o paciente intubado apresente súbita piora do padrão respiratório ou da oxigenação, devemos checar se
está ocorrendo DOPE (Deslocamento do tubo traqueal, Obstrução do tubo traqueal, Pneumotórax hipertensivo,
Equipamento com falência).

A B

Epiglote
Valécula Língua

Glote Cordas
Esôfago vocais

Figura 24.8  A: introdução do laringoscópio; B: anatomia da laringe.

SJT Residência Médica – 2016


249
24  Emergências pediátricas - suporte básico e avançado de vida (C-A-B da ressuscitação)

A B

Língua
Epiglote
Valécula
Glote
Traqueia

Esôfago

Figura 24.9  A: posição do laringoscópio com lâmina reta e B: curva.

Cuidados pós-ressuscitação
As Diretrizes da AHA 2010 enfatizam os possíveis benefícios da hipotermia terapêutica (32 °C a 34 ºC)
para pacientes em estado comatoso após a ressuscitação de uma parada cardíaca. Os estudos em adultos têm de-
monstrado grande eficácia da hipotermia induzida, e segundo as diretrizes atuais esta pode ser considerada para
lactentes e crianças que permaneçam comatosos após a RCP.

Manutenção ou suspensão da RCP


O momento de determinar a suspensão dos esforços de ressuscitação é discutível e individual. É importante
notar que a sobrevida livre de sequelas já foi relatada em pacientes submetidos a prolongadas manobras de reani-
mação. Cada caso deve ser avaliado separadamente e a decisão tomada pelo socorrista mais experiente da equipe.
A parada cardíaca em pediatria é mais frequentemente causada pela progressão da insuficiência respiratória ou
choque. Raramente é ocasionada por distúrbio cardíaco primário. Os ritmos mais encontrados são as bradicar-
dias, que evoluem para assistolia. Entretanto, alguns doentes possuem maior predisposição para apresentar uma
parada cardíaca de causa primariamente cardíaca, como os cardiopatas, nefropatas, pacientes com distúrbios
metabólicos e vítimas de intoxicações. Se uma criança que estava bem apresenta um súbito colapso circulatório
testemunhado, uma arritmia cardíaca deve ser considerada.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

25
Emergências pediátricas -
distúrbios do ritmo

Introdução R

PR
T
P
O eletrocardiograma é uma representação
Q
gráfica da despolarização e repolarização miocár- S

dica sequencial. Cada ciclo cardíaco normal consta


de onda P, complexo QRS e onda T. A despolariza-
ção se inicia no nodo sinoatrial e atinge os átrios
(onda P) e o nodo atrioventricular. Progride pelo
feixe de His e pelo sistema de Purkinje, despola-
rizando o miocárdio ventricular (complexo QRS).
A repolarização ventricular é caracterizada pela Figura 25.2  Relação do ECG com o sistema de condução.
onda T ao eletrocardiograma.

Nodo
Sinoatrial

Nodo Auriculeta
Atrioven- Esquerda
tricular
Feixe de Divisão Posterior
Hills Divisão Anterior
Auriculeta Sistema de
Direita Purkinje

Figura 25.1  Sistema de condução cardíaca.. Figura 25.3  ECG: ondas P e QRST normais.
251
25  Emergências pediátricas - distúrbios do ritmo

Bradicardia
A bradicardia é definida como uma FC baixa
quando comparada às frequências cardíacas normais
para a idade do paciente. Uma bradicardia é consi-
derada clinicamente significativa quando está asso-
ciada a sinais de má perfusão sistêmica (perfusão
Figura 25.4  ECG normal. periférica ruim, hipotensão, insuficiência respirató-
ria, alteração do nível de consciência). Frequências
A frequência cardíaca (FC) normal depende da cardíacas menores que 60 bpm com perfusão
idade e do nível de atividade da criança, com FC maior inadequada indicam o início das manobras de
quanto menor for a criança. A tabela a seguir mostra a RCP. As causas mais comuns de bradicardia são por
média de FC para cada faixa etária. hipoxemia, hipotensão e acidose. Essas situações de-
vem ser sempre tratadas quando presentes. Quando
FC paciente FC paciente a bradicardia persiste está indicado o tratamento
Idade
acordado dormindo farmacológico, administrando adrenalina na dose de
RN- 3 meses 85-200 bpm 80-160 bpm 0,1 mL/kg da solução 1:10.000 EV/IO (0,01 mg/kg),
3 meses- 2 anos 100-190 bpm 75-160 bpm repetida a cada 3-5 minutos se necessário. Atropina
anos 60-140 bpm 60-90 bpm pode ser usada em suspeita de estímulo vagal ou to-
>10 anos 60-100 bpm 50-90 bpm xicidade por droga colinérgica (dose 0,02 mg/kg EV/
Tabela 25.1 IO, mínimo de 0,1 mg, máximo de 0,5 mg em crian-
ças e 1 mg em adolescentes).
Devemos nos lembrar de que o ECG proporciona
informações sobre a atividade elétrica cardíaca e não
sobre a efetividade da contração miocárdica, que deve
ser observada clinicamente através da avaliação da
perfusão periférica e da presença e qualidade dos pul-
sos. Em todas as arritmias, as causas tratáveis devem
ser sempre consideradas (6 Hs e 5 Ts: hipoxemia, hi-
povolemia, hipotermia, distúrbios hidroeletrolíticos e
acidobásicos, hipoglicemia, hipo/hipercalemia e hipo/ Figura 25.6  Bradicardia.
hipercalcemia, tamponamento cardíaco, toxinas/in-
toxicações, tromboembolismo pulmonar, tensão no
tórax-pneumotórax hipertensivo, trauma).
Fibrilação ventricular (FV)
É um ritmo caótico, desorganizado, incapaz de
Assistolia promover uma contração miocárdica efetiva e, por-
tanto, incapaz de gerar um pulso palpável. Ocorre
É o ritmo mais frequentemente encontrado em menos de 10% dos casos de PCR monitoriza-
na PCR e é caracterizado por ausência de ativi- da na faixa etária pediátrica. Para tratar a parada
dade elétrica cardíaca. Deve ser tratada com mano- cardíaca associada a FV, as Diretrizes da AHA 2010
bras de ressuscitação cardiopulmonar (ABC); a droga recomendam a aplicação de choques únicos, seguidos
utilizada é a adrenalina (dose 0,1 mL/kg da solução imediatamente de um ciclo de RCP, começando com
1:1.0000 EV/IO = 0,01 mg/kg), que deve ser repetida compressões torácicas. Os socorristas não devem in-
a cada 3 a 5 minutos, nas mesmas doses. terromper as compressões torácicas para verificar
presença de pulso até aproximadamente 2 minutos de
RCP terem sido aplicados após o choque. Após 2 minu-
tos de RCP, o ritmo deve ser checado através do moni-
tor, e, somente se houver mudança no ritmo, o pulso
deverá ser verificado. A adrenalina deve ser adminis-
trada assim que uma via de acesso estiver pronta, ti-
picamente se FV persistir após a aplicação do primeiro
ou segundo choque. O uso de antiarrítmicos deve ser
considerado após a primeira dose de adrenalina, e a
Figura 25.5  Assistolia. amiodarona é a droga geralmente utilizada.

SJT Residência Médica – 2016


252
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A carga inicial para tentativa de desfibrilação em Cardioversão ou cardioversão sincronizada é a súbita


lactentes e crianças com um desfibrilador manual mo- despolarização do miocárdio, sincronizada com a ativi-
nofásico ou bifásico é de 2 J/kg; a segunda carga admi- dade elétrica cardíaca (a descarga elétrica incide sobre
nistrada, e as subsequentes, deve ser de, no mínimo, 4 a onda R do ECG).
J/kg. A carga máxima é de 10 J/kg.
As pás do desfibrilador devem ser posicionadas de
modo que o coração esteja entre elas. Uma das pás deve
ser colocada no lado superior direito do tórax, abaixo
da clavícula, e a outra à esquerda do mamilo esquerdo, Taquicardia sinusal
na linha axilar anterior, diretamente sobre a região do
coração. As pás não podem se tocar, e a distância dese- Representa mais um sinal clínico do que uma ar-
jável entre elas é de pelo menos 3 cm. As pás pediátricas ritmia propriamente dita. É um ritmo gerado no nodo
(4,5 cm) devem ser utilizadas para crianças com menos sinusal, com frequência cardíaca maior do que o nor-
de 10 kg ou de 1 ano. Acima desse peso/idade devem-se mal. A onda P encontra-se presente e normal. Pode ser
utilizar as pás de adulto (8 a 13 cm). causada por hipovolemia, hipoxemia, febre, estresse ou
dor. O tratamento deve ser direcionado à causa de base;
Desfibrilação é a súbita despolarização do miocárdio, por exemplo, reposição fluídica para hipovolemia.
indicada em FV ou TV sem pulso, permitindo ao cora-
ção readquirir uma atividade elétrica organizada.

Figura 25.9  Taquicardia sinusal.

Figura 25.7  FV.

Taquicardia supraventricular
Taquicardia ventricular (TV)
(TSV)
É um ritmo incomum em pediatria. O complexo
QRS é gerado no próprio ventrículo, ocorrendo alar-
É a taquiarritmia que provoca comprometi-
gamento do QRS no ECG (QRS > 0,09 s). Pode ocorrer
mento cardiovascular mais comum da infância. É
taquicardia ventricular com ou sem pulso. A taquicar-
dia ventricular sem pulso é tratada como fibrila- um ritmo rápido e regular, que pode surgir e desapare-
ção ventricular, ou seja, desfibrilação imediata cer abruptamente (paroxismo). A causa mais comum é
(2 J/kg) seguida das manobras de ressuscitação um mecanismo de reentrada. Em menores de um ano,
e drogas (adrenalina 0,1 mL/kg da diluída = 0,01 a FC é geralmente maior do que 220 e, em maiores de
mg/kg). Caso não haja retorno da circulação espontâ- um ano, maior do que 180, com QRS estreito (< 0,08
nea, novas tentativas de desfibrilação devem ser reali- s) na maioria dos casos. Crianças maiores podem se
zadas com carga de, no mínimo, 4 J/kg. Amiodarona e queixar de desconforto torácico, tontura, delírios, ta-
lidocaína são outras opções de drogas em caso de não quicardia. O diagnóstico diferencial é realizado com a
ocorrer resposta à adrenalina. taquicardia sinusal. TSV com perfusão ruim (per-
A TV com pulso e perfusão ruim (perfusão pe- fusão periférica ruim, insuficiência respiratória,
riférica ruim, insuficiência respiratória, alteração do alteração do nível de consciência ou hipotensão)
nível de consciência ou hipotensão) deve ser tratada deve ser tratada imediatamente com cardiover-
imediatamente com cardioversão elétrica 0,5 a 1 J/kg. são elétrica ou química. A cardioversão elétrica
Amiodarona, lidocaína ou procainamida podem ser deve ser realizada com 0,5 a 1 J/kg, e a cardioversão
consideradas como alternativas. química, nos pacientes que já possuem acesso venoso,
com adenosina 0,1 mg/kg EV/IO, por meio de infusão
rápida, seguida de um flush de soro fisiológico; a ade-
nosina provoca um bloqueio transitório da condução
através do nodo AV. TSV com perfusão normal não ne-
cessita de tratamento imediato; manobra vagal (gelo
na face por 10-15 s) pode ser considerada, e cardio-
Figura 25.8  TV. versão elétrica ou adenosina são opções terapêuticas.

SJT Residência Médica – 2016


253
25  Emergências pediátricas - distúrbios do ritmo

Em todas as paradas cardíacas, causas reversíveis e tra-


táveis devem ser pensadas (6 Hs e 5 Ts): hipoxemia, hi-
povolemia, hipotermia, distúrbios hidroeletrolíticos e
acidobásicos, hipoglicemia, hipo/hipercalemia e hipo/
hipercalcemia, tamponamento cardíaco, toxinas/in-
toxicações, tromboembolismo pulmonar e coronário,
tensão no tórax-pneumotórax hipertensivo, trauma
Figura 25.10  TSV.

Resumo: causas de arritmias

Atividade elétrica sem pulso 5 “T”


Toxinas (intoxicações)
6 “H”
Hipoxemia
(antigamente chamada Tamponamento cardíaco Hipovolemia

“dissociação eletromecânica”) Tromboembolismo pul-


monar
Hipoglicemia

Tensão tórax (pneumotórax) Hipo/Hipercalemia e


Corresponde a uma atividade elétrica cardíaca
hipo/hipercalcemia
rítmica (exclui FV e TV) na ausência de pulsos pal-
Trauma Hidrogênio
páveis. O tratamento consiste na reversão da causa.
(distúrbios acidobásicos)
Quando uma causa não é encontrada e tratada, a ati-
Hipotermia
vidade elétrica sem pulso evolui para assistolia ou ar-
ritmia ventricular. Tabela 25.2

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

26
Urgências pediátricas -
intoxicações agudas

Introdução Epidemiologia
“A diferença entre o remédio e o veneno é a O Sistema Nacional de Informações Tóxico-
dose” (Paracelso, século XVI). -Farmacológicas – Sinitox, no ano 2006, registrou
107.958 casos de intoxicação humana pelos Centros
Intoxicação é o contato com qualquer substância
de Informação e Assistência Toxicológica em atividade
que cause dano, se dentro do organismo. Praticamen- no país.
te todos os produtos químicos podem ser tóxicos, se
Em 2006, os principais agentes de intoxicações
em quantidade suficiente para tal.
em seres humanos em nosso país foram: os medica-
A exposição a substâncias nocivas é uma impor- mentos (30,46%), os animais peçonhentos (19,93%),
tante causa de acidentes na infância, principalmente os agrotóxicos de uso agrícola/doméstico (8,88%) e
abaixo dos 6 anos de idade. Felizmente, na maioria os domissanitários (11,02%) (Tabela 19.1). Dentre
dos casos, o agente tem mínimo ou nenhum efeito tó- os medicamentos, destacam-se: analgésicos, antitus-
xico importante. Ocasionalmente, porém, essa exposi- sígenos, antigripais, vitaminas, anti-hipertensivos,
ção pode causar morbidade significativa e até a morte. sedativos benzodiazepínicos, antidepressivos e anti-
-inflamatórios.
Embora medidas preventivas reduzam a frequ-
A principal circunstância é o acidente, respon-
ência das intoxicações agudas, os acidentes desse tipo
sável por 53,7% do total de casos registrados, seguido
continuam a acontecer. É necessária uma estratégia da tentativa de suicídio com 21,39% e da intoxicação
de atendimento e prevenção efetivas, e também que o ocupacional com 6,1%. Para os medicamentos, ratici-
médico generalista esteja familiarizado com o assun- das, agrotóxicos de uso agrícola e drogas de abuso, a
to, já que frequentemente será ele o responsável pelo tentativa de suicídio apresenta a maior participação
primeiro e decisivo suporte. percentual, ficando à frente do acidente (Tabela 19.2).
255
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

Quanto às faixas etárias mais acometidas, des- do paciente (incluindo controle de hipo/hipertermia)
tacam-se as crianças menores de 5 anos, com 24,07% (E). O choque, as arritmias, a parada cardiorrespira-
do total de casos, os adultos de 20 a 29 anos com tória e as convulsões devem ser tratados como em
18,89% e os de 30 a 39 anos com 13,63%. qualquer outro paciente enfermo. Porém, há algumas
Os principais agentes que causam intoxicações situações que requerem abordagem específica, como:
em crianças menores de 5 anos são os medicamentos administração precoce de bicarbonato de sódio na in-
domissanitários. Para os jovens de 15 a 19 anos desta- toxicação por antidepressivo tricíclico (ATC), evitar
cam-se os medicamentos e as drogas de abuso. De 15 fenitoína nas convulsões secundárias à cocaína e ATC,
a 39 anos é a faixa de maior frequência de intoxicações porque pode haver exacerbação da cardiotoxicidade
com drogas de abuso. dessas drogas pela propriedade de bloqueio de canais
de sódio e nos casos de envenenamento por paraquat,
Foram registrados 488 óbitos (30 em crianças e manter o oxigênio no mínimo indispensável, para
com menos de 5 anos), com letalidade geral de 0,45%. não agravar o estresse oxidativo e a fibrose pulmonar.
Os principais agentes tóxicos envolvidos em óbitos fo-
ram os agrotóxicos de uso agrícola, os medicamentos Nesse passo inicial, é importante atentar que as
e os raticidas. As maiores letalidades foram geradas crianças têm maior risco de desidratação, hipoglice-
pelos agrotóxicos e pelas drogas de abuso, com valo- mia e distúrbios hidroeletrolíticos, que podem neces-
res de 3,03% e 0,95%, respectivamente. Felizmente, sitar de condutas imediatas. Além disso, nessa faixa
os óbitos são menos frequentes em crianças, e a faixa etária, pode haver maus-tratos, o que implica risco de
entre 20 e 39 anos de idade faixa é a de maior número traumas e intoxicações intencionais.
de mortes. Diante desses dados, é importante enfati-
zar que os casos de intoxicação graves são raros, e em
geral os sinais clínicos severos ocorrem em menos de 2- Reconhecimento da toxsíndro-
5% dos pacientes.
me e do agente causal
As tentativas de suicídio respondem por 63%
dos casos de óbitos por intoxicação exógena registra- Essa é a etapa de obtenção de história e exame
dos no Brasil. físico, completos e detalhados, do quadro e da identi-
Mais de 90% dos casos em crianças ocorrem no ficação do agente tóxico por relato, suspeita clínica ou
ambiente doméstico. A rota de exposição mais comum laboratorial.
é a ingestão, correspondendo a 75% dos casos, com as
vias oftálmica, cutânea e inalante ocorrendo cada uma
em cerca de 6% dos acidentes. As crianças de 6 a 12 2.1 Anamnese
anos de idade são bem menos propensas a esse tipo de Obter informações de diferentes membros da
acidente; já os adolescentes e adultos jovens são víti- família e do paciente, se possível. Em situações de ex-
mas de casos intencionais, mais frequentemente pelo posição não presenciada, o início súbito e incaracte-
vício ou suicídio. rístico de sintomas, estado mental alterado, a epide-
miologia e a conjuntura ambiental do paciente podem
fazer suspeitar de intoxicação aguda.
Assistência médica O local onde a vítima foi encontrada, substâncias
nas proximidades, uso de medicações por coabitantes,
ao paciente vítima local onde são guardados remédios e produtos quími-
de intoxicação aguda cos e condutas já efetuadas são informações valiosas
nesses casos suspeitos.
Normalmente se divide o atendimento ao pa- Na situação de exposição sabida e presenciada, é
ciente intoxicado em cinco etapas: importante haver uma descrição o mais precisa e de-
€€ estabilização; talhada possível do produto, sempre tentar resgatar a
embalagem, obtendo dados de dose e concentração, e
€€ reconhecimento da toxsíndrome e identificação
da hora do contato e início dos sintomas. Além disso,
do agente;
detalhar os antecedentes pessoais da vítima: a gra-
€€ descontaminação; videz, por exemplo, é um fator importante de influ-
€€ aumento da eliminação; ência na tentativa de suicídio na adolescência e pode
influenciar no plano terapêutico.
€€ antídotos.

Perguntas fundamentais na anamnese:


1- Estabilização €€ Qual foi o produto envolvido?
De acordo com as diretrizes do Suporte Avan-
çado de Vida, procede-se ao atendimento inicial do
€€ Qual a via de exposição?
paciente em uma sequência de avaliação e manejo da €€ Qual a dose estimada?
via aérea e coluna cervical (A), da respiração (B), da €€ A exposição foi acidental ou intencional (mais
circulação (C), do quadro neurológico (D) e exposição
grave)?

SJT Residência Médica – 2016


256
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

€€ Onde ocorreu?
€€ Quem estava cuidando do paciente (maus-tratos)?
€€ Há quanto tempo ocorreu a exposição?
€€ O que foi feito?

2.2 Exame físico


Buscar sinais e sintomas clínicos característicos pode dar uma forte pista diagnóstica ou orientar quanto ao
tratamento e prognóstico.
Realizar um exame completo com ênfase nos sinais vitais (pulso, respiração, pressão arterial, temperatura),
no exame neuromuscular (ataxia, delírio, psicoses, convulsões, paralisias, coma), no exame oftalmológico (pupi-
las, nistagmo, desvio do olhar, conjuntivas), na pele (icterícia, cianose, coloração, umidade), nos odores, princi-
palmente o hálito, e na inspeção da boca em busca de sinais de lesões corrosivas e restos do produto.
Dentro do exame clínico do paciente, tentar encaixá-lo em toxsíndromes, que são um complexo de sinais e
sintomas produzidos por substâncias, que, apesar de diferentes, têm um efeito sindrômico semelhante (Tabela 26.1).

Síndromes Sintomas Causas


Anticolinérgica Hipossecreção de glândulas exócrinas com mucosas e Anti-histamínicos H1, atropina, escopo-
pele secas, hipertermia, taquicardia, midríase, retenção lamina (antiespasmódicos), antidepressi-
urinária e diminuição/abolição de RHA* intestinais, de- vos tricíclicos (ATC) e midriáticos.
lírios, alucinações, agitação ou sonolência, sede, pele
ruborizada.
Anticolinesterá- Hipersecreção de glândulas exócrinas com mucosas úmi- Organofosforados, carbamatos, al-
sica das (salivação, hipersecreção brônquica, sudorese, lacri- guns cogumelos e picada de aranha vi-
(colinérgica) mejamento), bradicardia, miose, incontinência urinária úva-negra.
e aumento de RHA intestinais com diarreia e vômitos,
convulsões e coma, fasciculações musculares, broncoes-
pasmo, fraqueza ou paralisia.
Simpaticomimé- Sudorese (pele úmida), hipertermia, taquicardia, mi- Cocaína, ecstasy, efedrina e pseudoefedri-
tica dríase, diminuição de RHA* intestinais não abolidos, na (descongestionantes sistêmicos), an-
(adrenérgica) excitação, psicose, hiperatividade, convulsões, hiper- fetamina e derivados, cafeína e teofilina.
tensão, hiper-reflexia.
Narcótica Depressão respiratória, neurológica, bradicardia, mio- Opiáceos (drogas de abuso, elixir pa-
se, RHA diminuídos e constipação, retenção urinária, regórico, loperamida, morfina e outros
hiporreflexia, hipotensão, hipotermia. analgésicos).
Depressiva do Depressão respiratória e neurológica (sonolência, tor- Benzodiazepínicos, barbitúricos, eta-
SNC** por, coma), bradicardia, hiporreflexia, hipotensão, hi- nol, clonidina, descongestionantes tó-
potermia, pupilas normais, midríase ou miose (nafazo- picos imidazolínicos (nafazolina), opio-
lina) ou alternando miose/midríase (barbitúricos) ou ides, anti-histamínicos.
miose puntiforme (opioide).
Liberação Tremor, opistótono, torcicolo, distonias, crise oculógi- Haloperidol (butirofenonas), meto-
extrapiramidal ra, distúrbios do equilíbrio, distúrbios da movimenta- clopramida (Plasil), clorpromazina e
ção, mioclonias, parkinsonismo. prometazina (fenotiazínicos), domperi-
dona (antirrefluxo gastroesofágico).
Metemoglobinê- Cianose cinza-acastanhada resistente à administração Sulfonas, dapsona, nitratos e nitritos,
mica de oxigênio, taquicardia, irritabilidade, convulsões, cefa- sulfonamidas, metoclopramida, anesté-
leia, confusão mental, dispneia, depressão neurológica. sicos locais, nitrofurantoína, quinonas,
óxido nítrico.
Convulsiva Teofilina, cocaína, anfetaminas, ecs-
tasy, cafeína, carbamazepina, isoniazi-
da, ATC.
Ataxia Hidantoína, piperazina, carbamazepi-
na, anti-histamínicos H1, álcoois.
Rabdomiólise Mialgia generalizada, urina escura (mioglobinúria), insu- Cocaína, ecstasy (hipertermia maligna),
ficiência renal aguda, aumento de enzimas musculares anfetaminas, picada de cascavel.
Tabela 26.1  *Ruídos hidroaéreos. **Sistema nervoso central.

SJT Residência Médica – 2016


257
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

2.3 Consulta ao centro de intoxicação 3.3 Descontaminação gastrointestinal


de referência Vários procedimentos são usados para impedir
Proporciona ajuda de informação, investigação e a absorção de uma toxina pelo trato gastrointestinal
conduta em todas as fases de condução do paciente. (TGI), e cada um deles tem suas limitações e riscos. A
decisão de usar um determinado método deve se base-
ar na avaliação dos benefícios sobre os riscos do proce-
2.4 Avaliação laboratorial dimento. O papel dessas medidas foi discutido, e con-
Os testes laboratoriais toxicológicos qualitativos sensos foram publicados pela American Academy of
(triagens/ screenings) são limitados a determinadas Clinical Toxicology (AACT) e European Association of
substâncias pesquisadas de acordo com o centro de re- Poison Centers and Clinical Toxicologists (EAPCCT).
ferência. São úteis na identificação de agentes desco- O tempo decorrido da ingestão do agente é uma
nhecidos pela história e quadro clínico e especialmen- limitação importante, já que várias substâncias são ra-
te nas substâncias ilícitas. Muitas vezes, não mudam pidamente absorvidas. As exposições a tóxicos geral-
a condução do caso. Podem ser realizados na urina e/ mente não são graves, principalmente em crianças me-
ou sangue e geralmente detectam ansiolíticos, antiepi- nores de seis anos. Portanto, se for instituída medida
lépticos, antidepressivos, antipsicóticos, analgésicos- de descontaminação após a absorção e em casos desne-
-antipiréticos, teofilina, digoxina, ferro, lítio e álcoois. cessários, trata-se de iatrogenia sujeita a complicações.
Os exames quantitativos geralmente são soli-
citados quando disponíveis e quando a concentração 3.3.1 Xarope de ipeca (indução de vômitos)
sérica influenciar na conduta. São úteis, por exem-
plo, nos casos de intoxicação por paracetamol, sais de Emetizante que age através de dois componentes
ferro, salicilatos, teofilina, fenitoína, carbamazepina, de efeito na mucosa gástrica e no sistema nervoso cen-
fenobarbital e digitálicos. Contudo, na maioria das ve- tral, emetina e cefalina, respectivamente. Produz vômi-
zes, as concentrações plasmáticas dos agentes não se tos em 90% dos pacientes após cerca de 20 a 30 minu-
correlacionam com a intensidade dos achados clínicos. tos da dose ingerida. Não disponível comercialmente
Há exames de identificação indireta, como a do- no Brasil, sendo obtido em farmácias de manipulação.
sagem da atividade enzimática da acetilcolinesterase (or- A AACT/EAPCCT recomenda que não seja uti-
ganofosforados), dosagem de metemoglobinemia (dap- lizado de rotina. Estudos experimentais mostraram
sona) e carboxiemoglobinemia (monóxido de carbono). remoção altamente variável de marcadores, e não há
evidência, nos estudos clínicos, de melhora na evolu-
ção de pacientes intoxicados. Pode atrasar a instalação
3- Descontaminação de outras medidas mais efetivas, e não há dados sufi-
É o conjunto de medidas tomadas para prevenir cientes que justifiquem ou excluam sua administração
a absorção da substância. Uma ação imediata para re- logo após a ingestão do agente tóxico.
mover a toxina do contato com a superfície absortiva é
Contraindicado a pacientes com diminuição do
crucial e pode fazer a diferença na evolução do paciente.
nível de consciência, lactentes menores de seis meses
e ingestão de substâncias cáusticas e hidrocarbonetos,
3.1 Descontaminação dérmica e ocular pelo maior risco de lesão da mucosa digestiva, esofági-
Pode ser realizada lavando-se a área afetada com ca principalmente, e aspiração.
água morna corrente. Recomenda-se um mínimo de Na década de 1980, a Academia Americana de
10 minutos para as exposições oculares, embora al- Pediatria (AAP) recomendou o armazenamento desse
gumas substâncias químicas, principalmente agen- xarope em casa para uso sob recomendação médica
tes corrosivos alcalinos, possam exigir períodos mais ou de centros de intoxicação especializados. Nos últi-
longos de lavagem. Nas exposições dérmicas faz-se mos anos, com base em estudos epidemiológicos e na
procedimento semelhante, dando ênfase aos cabelos
ausência de evidência científica de melhora no prog-
e removendo roupas e acessórios. Não se deve colocar
nóstico, as grandes associações contraindicaram seu
ácido sobre base ou vice-versa para “neutralizar”, pois
uso na sala de emergência, e a AAP (2003) contraindi-
essa reação elimina energia, podendo causar danos ao
tecido vivo subjacente. cou seu uso domiciliar. A AAPCC (2005) restringiu o
seu uso em situações de atendimento pré-hospitalar,
antes de 30-90 minutos da ingestão, sem contraindi-
3.2 Descontaminação de agentes inalantes cações ao xarope, em casos com risco de grande toxi-
Remoção do paciente do ambiente contaminado cidade, sem demais alternativas terapêuticas efetivas
para um local de ar fresco. Administração de oxigênio, (carvão ativado, por exemplo), quando não interferir
se necessário. É importante lembrar da proteção do em possíveis condutas mais definitivas e quando não
socorrista, evitando sua contaminação durante a as- houver possibilidade de chegar ao serviço médico an-
sistência à vítima. tes de 1 hora após a ingestão.

SJT Residência Médica – 2016


258
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

3.3.2 Lavagem gástrica As doses utilizadas são de 1 g/kg de peso; em


crianças maiores varia de 25 a 50 g e em adultos, de 50
Essa técnica consiste em introduzir uma sonda a 60 g por via oral ou por sonda gástrica. É adminis-
no estômago com administração de soro e aspiração trado diluído a 10%-20% em água ou líquidos variados
sequencial do conteúdo gástrico. O objetivo é remover para melhorar sua palatabilidade. Sua tolerância pode
restos do material ingerido que ainda passariam para ser melhorada com o uso de antieméticos.
o intestino e seriam absorvidos. Há descrição de complicações no procedimen-
A AACT/EAPCCT recomenda que não seja utiliza- to gerando vômitos, aspiração de conteúdo gástrico
da de rotina; estudos experimentais mostraram remo- (pneumonia aspirativa), lesões traumáticas no pro-
ção altamente variável de marcadores e diminuição com cedimento de passagem da sonda, barotrauma por
o tempo. Estudos clínicos revelaram maior tendência a passagem da sonda na traqueia, perfuração gástrica e
uma ausência de benefícios na evolução de pacientes in- peritonite purulenta.
toxicados, havendo sérios riscos de complicações. É comprovadamente ineficaz em adsorver ál-
coois (metanol, etilenoglicol), sais de lítio e ferro, me-
Considerada em pacientes admitidos no hospi-
tais pesados e hidrocarbonetos/derivados do petróleo.
tal até 1 hora após o acidente, geralmente em casos
É contraindicado em casos de ingestão de cáusticos,
de ingestão de tóxicos pouco adsorvidos pelo carvão óleos essenciais e hipoclorito de sódio e em pacientes
ativado e em doses potencialmente deletérias. Deve com diminuição do nível de consciência (reflexo de en-
ser realizada através de instilação de solução salina gasgo deprimido) e depressão respiratória antes de ter
0,9% 10 mL/kg/vez (200 a 300 mL em adolescentes a via aérea protegida. Além disso, o carvão ativado não
e adultos), aquecida, aspirando a mesma quantidade pode ser usado em casos com íleo paralítico e obstru-
de volta. Procedimento repetido até retorno claro do ção intestinal.
líquido, com o paciente em posição de Trendelenburg
e decúbito lateral esquerdo.
3.3.4 Catárticos
As complicações da lavagem gástrica descritas
Sua administração isolada não é recomendada
são: aspiração de conteúdo gástrico (pneumonia as-
e não é considerada um método de descontaminação
pirativa), lesões traumáticas no procedimento de pas-
gastrointestinal. Com suporte nos dados disponíveis,
sagem da sonda, desequilíbrio hidroeletrolítico (into-
a AACT/EAPCCT não recomenda seu uso rotineiro em
xicação hídrica, hipo ou hipernatremia), barotrauma
combinação com o carvão ativado. Podem ser consi-
por passagem da sonda na traqueia, e mesmo a pos-
derados em conjunto com este, geralmente quando o
sibilidade de aceleração do esvaziamento gástrico, au-
carvão ativado for administrado em doses seriadas,
mentando o risco de absorção intestinal.
apenas na primeira dose, embora não haja evidência
Contraindicada a pacientes com diminuição do científica de benefícios. O catártico mais comumente
nível de consciência e depressão respiratória antes de ter usado é o sorbitol, na dose de 1 g/kg.
a via aérea protegida, ingestão de substâncias cáusticas Devem ser evitados em crianças pequenas (< 1
e hidrocarbonetos e na coingestão de objetos cortantes. ano), pelo risco de desidratação, em pacientes hipovo-
lêmicos e nos casos com oclusão intestinal. Especifi-
camente, os catárticos contendo magnésio não devem
3.3.3 Carvão ativado em dose única
ser usados em pacientes com insuficiência renal.
Trata-se de um adsorvente de toxinas que tem
como objetivo diminuir a quantidade de substância
3.3.5 Irrigação intestinal
livre disponível para absorção intestinal. Sua apresen-
tação geralmente é em pó, é considerado seguro e pro- Envolve a instilação de grandes volumes de uma
vavelmente efetivo. solução de lavagem colônica osmoticamente equili-
brada e não absorvida. O composto mais usado é o
A AACT/EAPCCT recomenda que não seja utiliza-
polietilenoglicol.
do de rotina; não há estudos clínicos satisfatórios que
mostrem benefícios e não há evidência de melhora na Há alguns estudos com voluntários que eviden-
evolução de pacientes intoxicados agudamente. Com ciam diminuição da biodisponibilidade de algumas
base em estudos com voluntários, pode ser conside- drogas; porém, faltam ensaios clínicos ou provas con-
rado em casos de ingestão potencialmente tóxica de clusivas de benefícios.
agentes comprovadamente adsorvidos pelo carvão e O procedimento pode ser considerado em situa-
de preferência até 1 hora da ingestão (sua eficácia tam- ções de substâncias não adsorvidas pelo carvão ativa-
bém diminui com o tempo). Apesar de a redução na do ingeridas em grande quantidade, pacotes de drogas
absorção de drogas diminuir para valores clinicamente ilícitas (cocaína e heroína), medicamentos de liberação
questionáveis após 1 hora da ingestão do agente tóxi- lenta ou entérica (particularmente se após 2 horas da
co, seu potencial benefício não pode ser excluído. ingestão) e nas intoxicações por sais de ferro. Con-

SJT Residência Médica – 2016


259
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

traindicado em casos de instabilidade hemodinâmica, obstrução, perfuração ou hemorragia do TGI e depressão


do reflexo de engasgo ou insuficiência respiratória sem proteção das vias aéreas. Deve ser utilizada com cautela
em pacientes debilitados. A administração concomitante da irrigação intestinal e do carvão ativado pode alterar
a capacidade de adsorção do carvão.
A solução de lavagem de polietilenoglicol é administrada por via oral ou por sonda nasogástrica (via prefe-
rencial), até que o efluente retal esteja claro, o que pode levar horas. As doses recomendadas, de acordo com a
idade são: 9 meses-6 anos: 500 mL/h; 6-12 anos: 1.000 mL/h; adolescentes e adultos: 1,5 a 2 L/h.

4- Aumento da eliminação
Na prática, a tentativa do aumento de excreção de um tóxico é útil em poucos casos. As técnicas são consi-
deradas em situações específicas, levando em consideração riscos e benefícios.

4.1 Carvão ativado em múltiplas doses (CAMD)


Aumenta a eliminação de drogas que possuem circulação entero-hepática ou enteroentérica. As evidências
que suportam sua eficiência são baseadas em estudos com voluntários, com animais e descrições de casos não
controlados. A AACT/EAPCCT recomenda a consideração de seu uso quando um paciente ingerir doses potencial-
mente fatais de carbamazepina, dapsona, fenobarbital, quinina ou teofilina. Estudos com voluntários demons-
traram aumento de eliminação da amitriptilina, digitoxina, nadolol, fenilbutazona, fenitoína, piroxicam e sotalol;
porém, não há dados suficientes para recomendar ou excluir essa terapia nesses casos. Normalmente, é adminis-
trada uma dose de 1 g/kg de peso seguida de metade da dose inicial a cada 2-4 horas.

4.2 Diurese forçada


Procedimento que associa hiper-hidratação e uso de diurético na intenção de aumentar a eliminação de
substâncias com excreção principal por via renal. Essa técnica deve ser evitada pelos riscos de hipervolemia e
baixa eficácia.

4.3 Diurese alcalina


Tratamento que eleva a eliminação de agentes intoxicantes através da administração de bicarbonato de
sódio endovenoso para produzir urina com um pH > 7,5. Baseia-se no princípio de que as membranas celulares e
tubulares renais são mais impermeáveis a substâncias ionizadas; portanto, produzindo pH alcalino na urina, os
ácidos fracos serão dissociados e menos reabsorvidos.
Recomenda-se um bolo endovenoso de NaHCO3 de 1 a 2 mEq/kg com manutenção de 1,5 a 2 vezes a
dose basal. Aumenta a taxa de excreção do fenobarbital, salicilatos, clorpropamida e metotrexate. Deve ser
considerado como tratamento de primeira linha para intoxicações moderadas e severas por salicilatos que não
preencheram critérios para hemodiálise. Tem como complicações mais comuns a hipocalemia e a tetania por
alcalose metabólica.

4.4 Medidas dialisadoras


São mais proveitosas em substâncias com baixo peso molecular, baixo volume de distribuição, baixa ligação
a proteínas e alta hidrossolubilidade. Procedimento invasivo deve ser usado com cautela e indicação precisa. Pode
ser útil, por exemplo, nos casos de intoxicação por metanol, etilenoglicol, salicilatos, teofilina, vancomicina e lítio.
A hemoperfusão tem alguma vantagem em relação à hemodiálise tradicional, pois o sangue atravessa uma
coluna com carvão ativado e resina, adsorvendo determinadas substâncias. Teria melhor indicação, hipotetica-
mente, nas situações em que o agente tóxico é pouco hidrossolúvel e com alta afinidade pelos adsorventes.

5- Antídotos
Há poucos tóxicos para os quais existem antídotos. A lista a seguir relaciona alguns exemplos mais relevantes:

SJT Residência Médica – 2016


260
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Agente Antídoto
Paracetamol N-acetilcisteína
Benzodiazepínicos flumazenil
Opioides naloxone
Betabloqueadores glucagon
Sais de ferro deferoxamina
Inibidores da acetilcolinesterase (organofosfo-
atropina e pralidoxima
rados)
Digoxina anticorpo antidigoxina (Fab)
Arritmias por ATC bicarbonato de sódio
Isoniazida piridoxina
Hipoglicemiantes orais (sulfonilureias) octreotida
Metemoglobinemia azul de metileno
Síndromes extrapiramidais anti-histamínicos e biperideno
Etilenoglicol e metanol etanol/fomepizol
Monóxido de carbono oxigênio
hidroxicobalamina, nitrito de amila + nitrito de sódio + tiossulfato
Cianeto
de sódio

Tabela 26.2

Resumo 1
Principais agentes intoxicantes: medicamentos, domissanitários, produtos químicos
Epidemiologia industriais e agrotóxicos
Principais circunstâncias: acidente, suicídio
Faixa etária mais acometida: crianças < 5 anos
Conduta na emergência ABCDE
Toxsíndromes Anticolinérgica: inibição do parassimpático (anti-H1, ATC)
Anticolinesterásica: estimulação do parassimpático (organofosforados)
Simpaticomimética: estimulação do simpático (cocaína, xantinas)
Narcótica: depressão orgânica com miose puntiforme (opioides)
Liberação extrapiramidal: Plasil, antipsicóticos
Metemoglobinêmica: oxidação do ferro da hemácia (dapsona, sulfonas)
Descontaminação TGI Sem evidências por estudos clínicos controlados satisfatórios
Contraindicada em: ingestão de cáusticos e corrosivos, obstrução e perfuração intestinal,
ingestão de objetos cortantes, hidrocarbonetos, depressão do nível de consciência e respirató-
ria antes da proteção das VA
Xarope de ipeca: a princípio não usar
Lavagem gástrica: não usar de rotina
Carvão ativado dose única: usar o mais precocemente possível (<1 hora), atenção aos
agentes não adsorvidos pelo carvão
Irrigação intestinal: substâncias não adsorvidas pelo carvão ativado ingeridas em grande
quantidade, pacotes de drogas ilícitas, medicamentos de liberação lenta ou entérica e nas in-
toxicações por sais de ferro
Aumento da eliminação Diurese alcalina: salicilatos, fenobarbital, metotrexate, clorpropamida
Hemodiálise: drogas com baixo peso molecular, baixa ligação proteica, baixo volume de
distribuição, alta hidrossolubilidade
Antídotos Memorizar os principais
Tabela 26.3

SJT Residência Médica – 2016


261
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

Intoxicações específicas Tratamento


€€ Suporte da via aérea, oxigenação e ventilação.
€€ Instalar monitor cardíaco: tratar arritmias sin-
Antidepressivos tricíclicos tomáticas ou instáveis.
€€ Estabelecer acesso venoso, tratar arritmias pre-
(ATC) sentes e choque hemodinâmico.
Fármacos com ação de bloqueio na recaptação €€ Considerar medidas de descontaminação.
neuronal de norepinefrina, serotonina e dopamina €€ Administrar bicarbonato de sódio para tratar
nos sistemas nervosos periférico e central. A toxicida- arritmias ventriculares, mantendo pH sérico
de clínica desses agentes é devida a seus três efeitos entre 7,45 e 7,55. Os antiarrítmicos da classe
colaterais principais: efeitos anticolinérgicos, blo- Ia (quinina, procainamida) são contraindicados.
queio excessivo da recaptação de norepinefrina e blo- Em caso de falha de resposta à alcalinização,
queio dos canais de sódio rápidos no miocárdio considerar lidocaína, apesar de essa droga ser
provocando depressão e arritmias cardíacas. No uso contraindicada por alguns autores. Se houver
hipotensão, infundir cristaloides em expansão
terapêutico, também produzem graus variáveis de se-
com monitorização de edema pulmonar. Se ne-
dação e bloqueio α-adrenérgico. A dose tóxica varia de cessário, introduzir drogas vasopressoras.
5 a 20 mg/kg, podendo ser menor com a ingestão de
€€ As convulsões costumam responder a benzodia-
nortriptilina e desipramina, por exemplo.
zepínicos (primeira escolha) e fenobarbital. A feni-
Agentes: amitriptilina, desipramina, imiprami- toína pode causar arritmias, devendo ser evitada.
na, nortriptilina, doxepina. €€ Considerar medidas de descontaminação. Não
Sinais e sintomas: três Cs e A (TCA- tricyclic anti- usar fisiostigmina (inibidor da acetilcolineste-
depressant), regra mnemônica para coma, convulsões, rase), que, apesar de ter um efeito fisiopatoló-
gico aparentemente interessante, pode causar
arritmias cardíacas e acidose.
convulsões e arritmias.
Sistema nervoso: os sintomas podem se apre- €€ Manter monitorização de ECG internado por
sentar precocemente, causados pelo efeito anticolinér- no mínimo 6 horas em pacientes assintomáti-
gico. Agitação, delírio, psicose, convulsões, mioclonia, cos e por tempo mais prolongado se estiverem
visão borrada, letargia, midríase, sonolência, coma, presentes alterações eletrocardiográficas.
boca seca, pele quente, seca e ruborizada, dimi-
nuição da peristalse intestinal, retenção urinária.
Cardiovascular: precocemente, surgem taqui- Cocaína
cardia sinusal (achado comum), hipertensão e taqui-
cardia supraventricular pelo excesso de norepinefrina A cocaína pode ser usada por via intranasal, injetá-
não recaptada. A inibição dos canais de sódio e potás- vel e fumada, ou inalada nas formas de crack ou pasta. É
sio do miocárdio pode provocar bradicardia, bloqueio absorvida por todas as membranas mucosas, pelos tra-
cardíaco, extrassístoles, taquicardia ventricular, fibri- tos gastrointestinal (rota de exposição mais comum nas
lação ventricular, alargamento do QRS, prolonga- crianças) e genitourinário. Bloqueia a recaptação de no-
mento do QT e PR e infradesnivelamento do ST. Po- radrenalina, adrenalina, dopamina e serotonina na fenda
dem ocorrer ainda hipotensão e acidose metabólica. sináptica, levando ao acúmulo desses neurotransmisso-
res e a efeitos adrenérgicos, dopaminérgicos e serotoni-
No eletrocardiograma, o alargamento do QRS nérgicos no sistema nervoso central e periférico.
(particularmente os 40 ms terminais) e a duração do
QRS ≥ 100 ms podem ser preditivos de convulsões e Sinais e sintomas: normalmente divididos em
arritmias cardíacas. Outros estudos apontaram a onda três fases de duração variável: estimulação precoce, es-
R ≥ 3 mm e a relação R/S ≥ 0,7 em AVR como melhores timulação avançada e depressão. Têm características
preditores. simpaticomiméticas.
Respiratório: hipoventilação, edema pulmonar Sistema nervoso: elevação do humor, euforia, mi-
e hipoxemia. dríase, tremores, convulsões, distúrbios do movimento,
alucinações e hipertermia. Nas fases tardias de depres-
Os efeitos terapêuticos dos ATC podem demorar
são, surgem coma, hiporreflexia e paralisia muscular.
semanas para se manifestar; porém os sintomas tóxi-
cos são precoces, nas primeiras horas após a ingestão, Cardiovascular: taquicardia, hipertensão, sín-
com os sintomas sérios geralmente ocorrendo dentro drome coronariana aguda, insuficiência cardíaca,
de 6 horas. As arritmias cardíacas podem se manifes- taquiarritmias ventriculares e prolongamento dos
tar após uma aparente melhora do paciente, mas acha- intervalos QRS e QT (arritmias por estimulação adre-
dos clínicos severos tipicamente se resolvem dentro nérgica e bloqueio de canais de sódio). Os acidentes
de 24-48 horas de evolução. isquêmicos cerebrais podem fazer parte do quadro.

SJT Residência Médica – 2016


262
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A síndrome coronariana aguda (SCA) resul- aguda. O uso do ecstasy vem aumentando nos últimos
ta da estimulação beta-adrenérgica, com aumento do anos e é “popular” em festas rave, pois potencializa a
consumo de oxigênio pelo miocárdio, associado à va- desinibição, a disposição e a sexualidade. Pode provocar
soconstrição coronariana pela estimulação alfa-adre- problemas permanentes físicos e psiquiátricos nos usu-
nérgica e serotoninérgica e pelo aumento da agrega- ários e levar à morte por hiperpirexia, hiponatremia,
ção plaquetária. Ocorre em 6% dos pacientes com dor rabdomiólise, coagulação intravascular, arritmias cardí-
torácica e pode acontecer tanto no usuário crônico acas, acidente vascular cerebral e isquemia miocárdica.
como no primeiro contato com a droga. O ECG é útil, A efedrina é um agente adrenérgico de uso
mas pode mostrar-se alterado mesmo na ausência de sistêmico, com ação nos receptores α e β. Utilizado
SCA; a troponina parece ser mais sensível e específica principalmente como descongestionante nasal, na
no diagnóstico. incontinência urinária, na falência ejaculatória, na hi-
Hematológico: ativação e agregação plaquetá- potensão anestésica e, em algumas vezes, como droga
rias; pode causar lesão endotelial e aceleração da ate- de abuso. Tem efeitos simpaticomiméticos, predomi-
rosclerose em usuários crônicos. nantemente hipertensão, taquicardia, midríase e agi-
Muscular: rabdomiólise, mioglobinúria. tação. Pode provocar intoxicações agudas, principal-
mente em crianças.
Renal: insuficiência renal aguda pode ocorrer
pela mioglobinúria. Os derivados imidazolínicos, como a nafa-
zolina e a oximetazolina, são drogas α-2-agonistas
dos receptores pós-sinápticos periféricos, com ação
Tratamento tópica vasoconstritora local. São usados como descon-
€€ Suporte da via aérea, oxigenação e ventilação. gestionantes de aplicação nasal e oftálmica. Os efeitos
sistêmicos intoxicantes são provocados pela estimula-
€€ Instalar monitor cardíaco – tratar arritmias sin-
ção dos receptores centrais α-2 pré-sinápticos, que são
tomáticas ou instáveis.
inibidores da atividade simpática cerebral. As princi-
€€ Estabelecer acesso venoso e tratar arritmias pais manifestações clínicas das intoxicações agudas
presentes e o choque hemodinâmico. são: sonolência e depressão do SNC, sudorese, pali-
€€ Considerar medidas de descontaminação. A ir- dez, hipotensão, bradicardia, apneia, hipoventilação,
rigação intestinal é muitas vezes utilizada na alterações pupilares (miose ou midríase), hipotermia
ingestão de pacotes de cocaína. e hipertensão inicial transitória em alguns casos. Por-
€€ Para o controle da agitação, administrar benzo- tanto, apesar de ser um agente com ação estimulatória
diazepínicos e evitar as butirofenonas e fenotia- em receptor simpático, perifericamente tem ação va-
zínicos, como o haloperidol e a clorpromazina, soconstritora, mas quando em doses tóxicas atua em
que podem interferir na regulação térmica e receptor inibidor central, provocando depressão.
precipitar ataques convulsivos.
€€ O manejo da síndrome coronariana aguda cau-
sada pela cocaína difere do tratamento clássico
do infarto do miocárdio. As medicações de pri-
Bloqueadores de canais
meira linha são: oxigênio, benzodiazepínicos de cálcio
(que reduzem a estimulação central, taquicardia
Fármacos utilizados no tratamento da hiperten-
e hipertensão), nitratos como vasodilatadores
são e na insuficiência cardíaca.
coronarianos, e aspirina e heparina (redução da
agregação plaquetária). Os bloqueadores de ca- Agentes: anlodipino, diltiazem, felodipino, ni-
nais de cálcio e os alfabloqueadores podem ser cardipino, nifedipino, verapamil e nimodipino.
úteis. A trombólise não deve ser usada de rotina,
pois pode não sobrepor o espasmo coronariano.
Sinais e sintomas
€€ Não dar betabloqueadores (aumentam a pres-
são arterial e a vasoconstrição coronariana). Sistema nervoso: alteração do estado mental,
síncope, convulsões e coma, causados por hipoperfu-
€€ A fentolamina pode ser útil na SCA, e o bicarbo-
nato de sódio, nas arritmias ventriculares. são cerebral.

O crack da cocaína é a base cristalina da droga, Cardiovascular: bradiarritmias causadas por


estável no calor, considerado a forma mais potente e inibição das células dos marca-passos e bloqueio
causadora de dependência, podendo ser fumado. atrioventricular (AV) ou dissociação AV. Hipoten-
são por vasodilatação e depressão da contratilida-
As anfetaminas e derivados, como o ecstasy de miocárdica com insuficiência cardíaca.
(3,4-metilenodioximetanfetamina-MDMA), tam-
bém provocam efeitos simpaticomiméticos, e podem Respiratório: edema pulmonar.
causar arritmias cardíacas e síndrome coronariana Gastrointestinal: íleo paralítico.

SJT Residência Médica – 2016


263
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

A aspartato aminotransferase (AST) e o INR são


Tratamento
os marcadores mais sensíveis e precoces de hepatoto-
€€ Suporte da via aérea, oxigenação e ventilação. xicidade, elevando-se em 24 a 36 horas. Pode haver
€€ Instalar monitor cardíaco: tratar arritmias sin- morte por hepatite fulminante.
tomáticas ou instáveis (marca-passo pode ser
necessário para tratar bradiarritmias).
€€ Estabelecer acesso venoso e tratar arritmias Tratamento
presentes e choque hemodinâmico.
Uma única dose de 140 a 150 mg/kg requer
€€ Considerar medidas de descontaminação. avaliação cuidadosa. Após 4 horas da ingestão, dosar
€€ Hipotensão: infundir expansão com solução fi- o nível sérico e marcá-lo no nomograma de Rumack-
siológica 5 a 10 mL/kg. Monitorar o surgimento -Matthew. As dosagens antes desse período podem
de edema pulmonar. Pode ser necessário o uso não refletir os níveis máximos, e após 15 horas da in-
de drogas vasopressoras para tratar bradicar- gestão devem ser interpretadas com cuidado.
dias ou hipotensão. Cloreto de cálcio, ou gluco-
nato, são geralmente administrados durante o Para o paracetamol de liberação lenta, deve-se
tratamento, mas sua eficácia é variável. obter uma segunda dosagem 8 horas após a ingestão.
A insulina mais glicose, o glucagon e a atropina
são terapias alternativas. 200
150 1000

Concentração plasmática de Acetaminofen (µg/mL)

Concentração plasmática de Acetaminofen (µM/L)


100
Provável toxina hepática 500
Acetaminofen 50
Fármaco rapidamente absorvido e metaboli-
zado no fígado. Provoca uma depleção da glutationa
hepática, com a formação de metabólitos tóxicos que 100
se ligam a macromoléculas hepáticas, resultando em
necrose de hepatócitos e lesão renal. 10
Sem toxina hepática 50
A dose hepatotóxica do paracetamol é geralmen- 5 30
te aceita como ≥ 150 mg/kg (7,5 g); porém, em pacien- Possível toxina hepática
25%
tes com fatores de risco, alguns centros consideram
doses menores, ≥ 75 mg/kg. É sabido que as crianças
10
são menos suscetíveis, e as referências de doses tóxi-
cas variam de 150 a 200 mg/kg. 1
0 4 8 12 16 20 24
Horas após ingestão
Fatores de risco na superdosagem por paracetamol
Baixo estoque de glutationa Indução do citocromo Figura 26.1  Nomograma de Rumack-Matthew.
hepática p450
Anorexia nervosa 200 1,3
Fenitoína
Bulimia 180 A- Sem risco de tratamento 1,2
Carbamazepina
HIV 160 B- Alto risco de tratamento 1,2
Rifampicina
Plasma paracetamol (mmol/l)

1,0
Plasma paracetamol (mg/l)

Fibrose cística 140


Fenobarbital 0,9
Desnutrição A
0,8
120
Tabela 26.4 100
0,7
0,6
80 0,5
B
60 0,4

Sinais e sintomas 40
0,3
0,2
Náuseas, vômitos e mal-estar surgem precoce- 20
0,1
mente por 24 horas. Depois, segue-se uma melhora 0
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24
0,0

aparente nas próximas 48 horas, com início de dor em Horas após ingestão
hipocôndrio direito, elevação de enzimas hepáticas, bi- Figura 26.2  Nomograma de Prescott.
lirrubinas, prolongamento do TP e alteração da função
renal, com ureia diminuída por alteração de sua forma-
€€ Suporte da via aérea, oxigenação, ventilação e
ção no fígado. Após 72 horas, ocorrem as sequelas da
necrose dos hepatócitos com evidência clínica e labora- circulação.
torial de disfunção hepática. Se o dano for reversível, €€ Considerar descontaminação gastrointestinal
ocorre recuperação em quatro dias a duas semanas. precoce – carvão ativado, lavagem gástrica.

SJT Residência Médica – 2016


264
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

€€ A N-acetilcisteína (NAC) serve como um pre-


cursor disponível para a síntese de glutationa,
Tratamento
e deve ser iniciada se os níveis séricos de ace- €€ Suporte da via aérea, ventilação, oxigenação e
taminofen estiverem acima da linha mais baixa circulação.
do nomograma. €€ Considerar descontaminação gastrointestinal.
Esse antídoto é muito eficaz se administrado €€ Os níveis séricos dos salicilatos se correlacio-
dentro das primeiras 8 horas após o acidente; porém nam mal com a toxicidade. Porém, em pacientes
deve ser usado em até 24 horas. Entretanto, nos casos graves, são obrigatórios para monitorar os pi-
em que houver disfunção hepática, a NAC é indicada cos, a eficiência do tratamento e a necessidade
mesmo após 24 horas após a ingestão. de hemodiálise. Seis horas de nível sérico acima
de 100 mg/dL são consideradas potencialmente
Por via oral a N-acetilcisteína pode ser adminis-
letais e uma indicação de diálise.
trada em bolos lentos ou por infusão contínua. Dose
de ataque de 140 mg/kg e manutenção de 70 mg/kg/ €€ Tratar os distúrbios hidroeletrolítico (K+ prin-
dose de 4/4 horas por 17 doses. As soluções para uso cipalmente) e da glicemia.
oral devem ser preparadas na proporção de 1:4, e as €€ Como o salicilato é um ácido fraco, deve-se alca-
endovenosas, em pelo menos 1:5. Por via endovenosa, linizar a urina com a administração de bicarbo-
deve ser dada quando houver intolerância ao medica- nato de sódio e manter a diurese maior do que
mento por via oral, mesmo após o uso de antieméti- 2 mL/kg/h.
cos, obstrução ou sangramentos do TGI e no período €€ Iniciar hemodiálise se distúrbios hidroeletrolí-
neonatal (overdose materna). tico e/ou metabólicos refratários, insuficiência
renal refratária, piora clínica progressiva, ede-
ma pulmonar e nível sérico de salicilato estive-
rem persistentemente acima de 100 mg/dL.

Salicilatos
A incidência de intoxicação por salicilatos decli-
nou, sobretudo em crianças pequenas, pelo uso mais
Organofosforados e carbamatos
comum de outros antipiréticos. Afeta os sistemas São utilizados como inseticidas ou acaricidas
através do desacoplamento da fosforilação oxidativa, em ambiente doméstico, industrial e agrícola como
inibição das enzimas do ciclo de Krebs e inibição da agrotóxicos. Os organofosforados e carbamatos são
síntese de aminoácidos. Em geral, se considera a dose absorvidos por todas as vias de exposição, mais fre-
tóxica aguda de 150 mg/kg. quentemente pelas vias oral, cutânea e respiratória.
Inibem a atividade da acetilcolinesterase, colinestera-
se verdadeira ou eritrocitária, e promovem o acúmulo
de acetilcolina nas terminações nervosas.
Sinais e sintomas O chumbinho é um raticida sem registro oficial,
vendido clandestinamente no comércio informal, e
Fase 1: estimulação direta do centro respiratório
contém um agrotóxico carbamato de nome técnico
levando a hiperventilação, alcalose respiratória e
Alicarb (figura a seguir).
alcalúria; hiperpirexia, letargia, hiperglicemia, convul-
sões e vômitos pela estimulação de quimiorreceptores
centrais. Essa fase pode durar até 12 horas, ou mesmo
ser inaparente em lactentes.
Fase 2: hipocalemia com acidúria paradoxal
(troca de K+ por H+ nos túbulos renais) na vigência de
alcalose respiratória.
Fase 3: edema cerebral, edema pulmonar, de-
sidratação, hipocalemia, acidose metabólica com
anion gap aumentado e hiperventilação compensa-
tória, secundárias ao acúmulo de ácidos metabólicos.
Pode começar em 4-6 horas nos lactentes pequenos ou
em 24 horas ou mais em adolescentes e adultos.
Os efeitos de irritação gástrica podem provocar
dispepsia, vômitos e hemorragia digestiva, e os efeitos
de inibição da adesividade plaquetária podem provo-
car hemorragias diversas. Figura 26.3

SJT Residência Médica – 2016


265
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

por carbamatos é controverso, sendo geralmen-


Sinais e sintomas te contraindicada na classe carbaril, quando
Classicamente, provocam uma síndrome co- pode potencializar sua toxicidade. Os carbama-
linérgica pela estimulação muscarínica. Sintomas tos inibem e bloqueiam a atividade das colines-
musculares de fasciculação, tremores, espasmos e fi- terases transitoriamente, enquanto os organo-
brilações ocorrem pela estimulação nicotínica nas jun- fosforados evoluem sua ligação a essa enzima
ções neuromusculares. No SNC, acarretam cefaleia, para a irreversibilidade.
sonolência, ansiedade, confusão, convulsões, coma e €€ Diazepam: após garantia da ventilação e ade-
ataxia. Podem ainda provocar alguns sintomas sim- quada atropinização, para controlar a ansieda-
páticos pela estimulação ganglionar, ou seja, antes do de, agitação, fasciculações e convulsões.
neurônio terminal.
Após 24 a 96 horas de exposição a alguns or-
ganofosforados, pode surgir uma síndrome inter- Tópicos sobre agentes que já
mediária com fraqueza e paralisia muscular. Com
7 a 21 dias de exposição a certos compostos dessa foram tema de questões
classe, pode aparecer uma polineuropatia tardia com A intoxicação por FERRO normalmente é dividi-
fraqueza distal, cãibras, parestesias, hiporreflexia e da em 4 fases:
liberação extrapiramidal.
1- Corrosivo para o TGI, causando sintomas de
náuseas, vômitos, dor abdominal, hematêmese e me-
Tratamento lena. De 30 minutos a 6 horas após ingestão.
€€ Suporte da via aérea, ventilação, oxigenação e 2- Período latente de 6 a 24 horas após a ingestão.
circulação. 3- Lesão ou insuficiência hepática, choque, aci-
€€ Considerar descontaminação gastrointesti- dose, coma, convulsões e hemorragias. De 6 a 48 horas
nal nas ingestões, realizar lavagem da pele em após a ingestão.
contaminações cutâneas e remover a vítima de
4- Complicações tardias de estenose pilórica
ambientes contaminados em caso de contami-
nação inalatória.
ou antral.
€€ Para o diagnóstico, dosar a atividade das co- No tratamento da exposição a ferro, a radiografia
linesterases (plasmática e eritrocitária), que abdominal pode localizar tabletes radiopacos. Realizar
estará reduzida em 50% ou mais. Monitorar nível sérico e considerar descontaminação intestinal
enzimas musculares, bioquímica sérica, tran- com lavagem gástrica, endoscopia digestiva alta e/ou
saminases, função renal, gasometria, amilase e irrigação intestinal. Administrar deferoxamina em to-
arritmias cardíacas. dos os casos graves.
€€ Atropinização: iniciar na dose de 0,02 a 0,05 O PARAQUAT (Concurso para residência mé-
mg/kg a cada 10 minutos, até sinais de atro- dica do IAMSPE 2007) é um herbicida amplamente
pinização, podendo essa dose ser dobrada. Os utilizado na agricultura, absorvido por via dérmica ou
melhores parâmetros de controle de tratamen- gastrointestinal, e seus efeitos tóxicos são decorrentes
to são a diminuição da secreção brônquica, da indução de estresse oxidativo e lesão direta por ra-
melhora da frequência cardíaca e da saturação dicais livres. Os efeitos iniciais da intoxicação incluem
de oxigênio, sendo o diâmetro pupilar consi- queimaduras e irritação na área exposta. O órgão-alvo
derado um mau controle. A dose em adultos é principal é o pulmão, que pode apresentar edema, he-
de 2 a 5 mg. morragia, inflamação intersticial e fibrose, levando a
A atropina não deve ser suspensa abruptamen- insuficiência respiratória grave e à morte. Tem efeitos
te, pelo risco de recirculação do produto e retorno da tóxicos no rim, fígado, músculos e sistema nervoso,
sintomatologia, devendo ser espaçada até a retirada podendo ser dosado quantitativamente no sangue e
total. As doses, que inicialmente são administradas na urina. O tratamento se baseia no suporte avança-
a intervalos de 10 ou 15 minutos, posteriormente do de vida, na diminuição da absorção, no estímulo da
passam a intervalos maiores, de 30, 40, 60 minutos excreção e na modificação dos efeitos teciduais. A lava-
e 2 horas (Moraes e Coll., 1995). A atropinização deve gem gástrica e a indução de vômitos devem ser evita-
ser suspensa quando o paciente estiver assintomático das pela ação cáustica do herbicida; podem ser consi-
após algum tempo, com espaçamento de pelo menos 2 derados agentes adsorventes como o carvão ativado e
horas, e nunca antes disso. terras argilosas (terra de Füller e bentonita), as quais
€€ Reativação da colinesterase: a pralidoxima dificilmente estão disponíveis. A pele exposta deve ser
(ContrathionÒ) tem ação em receptores nicotí- lavada, e a hemodiálise pode ser utilizada em casos de
nicos periféricos, indicada na intoxicação por insuficiência renal, mas não é efetiva para a toxicida-
organofosforados. Seu uso em envenenamentos de pulmonar. Como medidas antiestresse oxidativas,

SJT Residência Médica – 2016


266
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

há descrições do uso de N-acetilcisteína, vitamina C, Clinicamente, a intoxicação digitálica se apre-


vitamina E e outros agentes, sendo fundamental man- senta com sinais gerais de mal-estar, fadiga, altera-
ter a oferta de oxigênio no mínimo indispensável, para ções visuais, náusea, sonolência, anorexia e cefa-
não agravar a fibrose pulmonar, sendo até mesmo con- leia. As alterações cardíacas podem incluir arritmias
traindicada por alguns autores. variadas e insuficiência. Praticamente qualquer al-
Piretroides (Concurso residência médica no Ce- teração de ritmo pode surgir, e alargamento do PR
ará 2007) são inseticidas sintéticos similares às pire- e encurtamento do QTc são comuns, taquiarritmias
trinas, utilizados frequentemente como pediculocidas, atriais e juncionais, bradicardia sinusal e bloqueio
escabicidas e inseticidas; raramente produzem toxici- atrioventricular são característicos. São muito su-
dade significativa. A via inalatória é a principal forma gestivas de intoxicação por digoxina a taquicardia
de exposição, e os sintomas da intoxicação geralmente ventricular bidirecional, a taquicardia atrial paro-
se limitam a irritação das vias aéreas e irritação cutâ- xística com bloqueio 2:1 e taquicardia juncional.
nea. Pode haver broncoespasmo, tosse, coriza, orofa- O nível sérico da digoxina e os eletrólitos devem
ringite, prurido cutâneo, urticária, náusea, vômitos, ser dosados, bem como o paciente deve ser manti-
dor abdominal e, em exposições maciças, convulsões, do em monitorização de ECG. Os procedimentos de
tremores, fasciculações, paralisia, coma, edema pulmo- descontaminação gastrointestinal costumam ser uti-
nar e até morte. O tratamento deve focar o suporte das lizados no tratamento; o antídoto específico é o Fab-
vias aéreas e ventilação, controle do broncoespasmo -anticorpo (indicado para arritmias) para digoxina, e a
com corticoides e β-2-agonistas, remover a vítima do diálise pode ser útil. Quanto aos eletrólitos, deve ser
ambiente contaminado, lavar a pele exposta, considerar corrigida a hipocalemia, no tratamento da hipercale-
anti-histamínicos e medidas de descontaminação gas- mia evitar a administração de cálcio e na hipomagne-
trointestinal em ingestões maciças. semia administrar magnésio cautelosamente para não
Atenção! Os organoclorados são pesticidas di- provocar bloqueios.
ferentes dos organofosforados, e seu principal repre- A lidocaína e a fenitoína são usadas com sucesso
sentante é o lindano, utilizado como inseticida, que no manejo de disritmias ventriculares, e para as ta-
foi retirado do mercado na forma de escabicida pelo quiarritmias supraventriculares podem ser utilizados
potencial de toxicidade. Provoca principalmente esti- magnésio e fenitoína. A atropina é opção no tratamen-
mulação do SNC e convulsões. to das bradiarritmias.
A digoxina inibe a bomba de sódio/potássio
ATPase, aumentando os níveis de cálcio intracelulares,
potencializando o inotropismo cardíaco. Atua tam-
Prevenção das
bém no tônus vagal, reduzindo a frequência cardíaca intoxicações agudas
por diminuição da condução elétrica no miocárdio e €€ Mantenha todos os produtos tóxicos em local seguro
no nodo atrioventricular. Doenças cardíacas de base e e trancado, fora do alcance das mãos e dos olhos das
pacientes idosos são fatores predisponentes à intoxi- crianças, de modo a não despertar sua curiosidade.
cação. As interações da digoxina com doenças e distúr-
€€ Os remédios são ingeridos por crianças que os
bios são resumidas na tabela a seguir:
encontram em local de fácil acesso, deixados
Drogas que diminuem pelo adulto.
Bloqueadores de canais de cál-
a condução e promo-
cio, betabloqueadores €€ Para ajudar a prevenir intoxicações com remé-
vem bradicardia
dios ou produtos de limpeza, adquira, se pos-
Quinidina, quinina, verapa-
Drogas que aumen- sível, produtos com trava de segurança. As
mil, diltiazem, amiodarona,
tam o nível sérico da medidas de intervenção passiva, ou seja, que
varfarina, eritromicina e te-
digoxina não dependem da ação direta da criança ou de
traciclina
seus familiares, são as mais efetivas em evitar
Diminui a eliminação dos di-
Insuficiência renal acidentes.
gitálicos
Diminui a eliminação da digi- €€ Nunca deixe de ler o rótulo ou a bula antes de
Insuficiência hepática usar qualquer medicamento ou produto domés-
toxina
Drogas que diminuem tico, e siga as instruções cuidadosamente.
Nifedipino, espironolactona,
a eliminação renal da €€ Evite tomar remédio na frente de crianças.
triantereno, amilorida
digoxina €€ Não dê remédio no escuro, para que não haja
Distúrbios eletrolíti- trocas perigosas.
Hipocalemia, hipomagnese-
cos e metabólicos que
mia, hipotireoidismo e hiper- €€ Não utilize remédios sem orientação médica.
potencializam a toxi-
calcemia
cidade €€ Mantenha os medicamentos e produtos nas
Tabela 26.5 embalagens originais.

SJT Residência Médica – 2016


267
26  Urgências pediátricas - intoxicações agudas

€€ Cuidado com remédios de uso infantil e de adulto com embalagens muito parecidas. Erros de identificação
podem causar intoxicações graves e, às vezes, fatais.
€€ Nunca use medicamentos com prazo de validade vencido.
€€ Descarte remédios vencidos. Não guarde restos de medicamentos. Despeje o conteúdo no vaso sanitário ou na
pia e lave a embalagem antes de descartá-la.
€€ É importante que a criança aprenda que remédio não é bala, doce ou refresco. Quando sozinha, ela poderá
ingerir o medicamento.
€€ Pílulas coloridas, embalagens e garrafas bonitas, brilhantes e atraentes, com odor e sabor adocicados, desper-
tam a atenção e a curiosidade natural das crianças. Não estimule essa curiosidade.
€€ Guarde detergentes, sabão em pó, inseticidas e outros produtos de uso doméstico longe dos alimentos e dos
medicamentos, trancados e fora do alcance das crianças.
€€ Nunca coloque produtos derivados de petróleo (querosene, gasolina), alvejantes e domissanitários
em embalagens de refrigerantes e sucos.
€€ Ensine às crianças que não se deve colocar plantas na boca.
€€ Conheça as plantas que tem em casa e arredores pelo nome e características; não coma plantas desconhecidas.
Lembre-se de que não há regras ou testes seguros para distinguir as plantas comestíveis das venenosas. Nem
sempre o cozimento elimina a toxicidade das plantas.
€€ Não faça remédios ou chás caseiros preparados com plantas sem orientação médica.

Resumo 2
Antidepressivos Sintomas: anticolinérgicos/TCA (Coma, Convulsão, arritmia Cardíaca, Acidose)
tricíclicos Bicarbonato de sódio no tratamento das arritmias e benzodiazepínicos nas convulsões
Sintomas: simpaticomiméticos, síndrome coronariana aguda (SCA)
Cocaína MONA no tratamento da SCA, não dar betabloqueadores, benzodiazepínicos para seda-
ção e controle da agitação
Sintomas: depressão hemodinâmica e arritmias com bloqueios
Bloqueadores de Tratamento com expansões volêmicas, cloreto de cálcio, drogas vasoativas e marca-passo se ne-
canais de cálcio cessário
Sintomas: inicialmente sintomas gerais seguidos de uma melhora aparente e posterior insufi-
Paracetamol ciências hepática e renal
Tratamento com N-acetilcisteína
Sintomas: inicialmente alcalose respiratória com posterior acidose metabólica com anion gap
Salicilatos aumentado
Tratamento com alcalinização urinária e diálise em casos graves refratários
Sintomas: colinérgicos
Organofosforados
Tratamento com atropina e pralidoxima
Ferro Corrosivo do TGI, deferoxamina como antídoto
Paraquat Fibrose pulmonar, evitar oxigênio no tratamento
Hipocalemia, hipomagnesemia e hipercalcemia potencializam sua toxicidade
Digoxina
Arritmias cardíacas diversas e anticorpo Fab específico para digoxina
Prevenção Trava de segurança é a medida mais efetiva
Tabela 26.6

Casos registrados de intoxicação humana por agente tóxico – Brasil 2006


Agente Nº %
Medicamentos 32.884 30,46
Agrotóxicos – uso agrícola/doméstico 9.585 8,88
Produtos veterinários 1.159 1,07
Raticidas 4.437 4,11
Domissanitários 11.896 11,02
Cosméticos 1.329 1,23
Produtos químicos industriais 6.025 5,58

SJT Residência Médica – 2016


268
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Casos registrados de intoxicação humana por agente tóxico – Brasil 2006 (Cont.)
Agente Nº %
Metais 606 0,56
Drogas de abuso 4.404 4,08
Plantas 1.691 1,57
Alimentos 1.518 1,41
Animais peçonhentos 21.522 19,93
Animais não peçonhentos 4.388 4,06
Desconhecido 4.928 4,56
Outro 1.586 1,47
Total 107.958 100
Tabela 26.7

Casos registrados de intoxicação humana por agente tóxico e circunstância – Brasil 2006
Circunstância/Agente Acidente Ocupacio- Automedica- Abuso Tentativa Violência/
nal ção Suicídio Homicídio
Medicamentos 10.223 43 1.036 381 14.263 53
Agrot./Uso Agrícola e Doméstico 3.690 2.045 1 10 3.360 56
Produtos veterinários 643 64 4 4 342 2
Raticidas 1.556 9 - 7 2.642 43
Domissanitários 9.611 560 2 26 939 7
Cosméticos 1.141 27 1 6 52 1
Produtos químicos industriais 4.340 861 1 86 396 22
Metais 315 246 - 2 15 8
Drogas de abuso 152 3 - 3.566 312 30
Plantas 1.420 32 23 24 38 4
Alimentos 360 2 4 50 85 13
Animais peçonhentos 13.046 1.998 - - - -
Total 53,7% 6,1% 1,0% 3,94% 21,39% 0,27%
Tabela 26.8

Casos registrados de intoxicação humana por agente tóxico e faixa etária – Brasil 2006
Faixa etária – Agente <5 05-09 10-14 15-19 20-29 30-39 40-49 Total
Medicamentos 9.389 2.288 1.736 3.201 6.540 4.341 2.698 32.884 30,46
Agrotóxicos/uso agrícola 448 108 167 569 1.534 1.168 946 5.873 5,44
Agrotóxicos/uso doméstico 1.350 165 157 253 582 443 325 3.712 3,44
Produtos veterinários 346 57 54 90 208 154 73 1.159 1,07
Raticidas 1.212 127 173 574 1.016 567 391 4.437 4,11
Domissanitários 5.512 685 371 611 1.476 1.134 809 11.896 11,02
Cosméticos 911 67 32 43 83 70 53 1.329 1,23
Produtos químicos indus- 2.313 363 175 311 1.026 725 459 6.025 5,58
triais
Metais 219 40 19 19 57 82 85 606 0,56
Drogas de abuso 43 19 134 612 1.476 922 602 4.404 4,08
Plantas 759 300 122 73 122 97 74 1.691 1,57
Alimentos 30 171 137 158 303 233 120 1.518 1,41
% 24,07 6,59 5,29 8,56 18,89 13,63 10,07
Tabela 26.9

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

27
Urgências pediátricas - acidentes
com animais peçonhentos

Introdução
Animais peçonhentos são aqueles que possuem glândulas de veneno que se comunicam com dentes ocos,
ferrões ou aguilhões, por onde o veneno passa ativamente. Portanto, peçonhentos são os animais que injetam
veneno com facilidade e de maneira ativa. Ex.: serpentes, aranhas, escorpiões, lacraias, abelhas, vespas, marim-
bondos e arraias.
Já os animais venenosos são aqueles que produzem veneno, mas não possuem um aparelho inoculador,
provocando envenenamento passivo por contato (lonomia ou taturana), por compressão (sapo) ou por ingestão
(peixe baiacu).
Por volta de 1896, com as descobertas dos soros antidiftérico e antitetânico, o cientista do Instituto Pasteur
de Paris, Albert Calmette, que estudava a possibilidade de se descobrir um remédio eficaz contra os venenos ofí-
dicos, direcionou suas investigações para o terreno da imunologia. Após laboriosas pesquisas, chegou à conclusão
de que, também com o veneno das serpentes, imunizando-se animais de laboratório, poderia ser obtido um soro
capaz de neutralizar completamente os efeitos nocivos das peçonhas tanto in vitro como in vivo. Continuando
seus estudos, acabou por firmar definitivamente os princípios básicos da soroterapia antiofídica.
Em nosso país, pela mesma época, Vital Brazil, também preocupado com o problema do ofidismo, estudava
várias plantas preconizadas como antídotos contra os venenos ofídicos. Os trabalhos de Calmette, chegando às
suas mãos, deram novos rumos às pesquisas. Estudando detalhadamente o veneno de nossos ofídios e após uma
série de experiências, Vital Brazil resolveu definitivamente o problema do ofidismo, criando para nossas espécies
peçonhentas os respectivos soros.
270
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Epidemiologia Ofidismo
Em 2004, os principais agentes tóxicos que cau- No mundo todo existem, aproximadamente,
saram intoxicações em seres humanos em nosso país 2.500 espécies de serpentes. Dessas, 250 são conhe-
foram os medicamentos (29,0%), os animais peçonhen- cidas no Brasil, das quais 70 são consideradas peço-
tos (24,8%) e os domissanitários (7,8%). Dentre os nhentas e pertencentes a dois grupos: Crotalíneos e
20.259 envenenamentos por animais peçonhentos, os Elapíneos, e quatro gêneros, Bothrops, Crotalus, Lache-
escorpiões contribuíram com 7.213 (35,6%), as serpen- sis (pertencentes ao primeiro grupo) e Micrurus (do
tes com 5.165 (25,5%), as aranhas com 3.840 (19,0%) grupo dos elapíneos) sendo responsáveis por cerca de
20 a 30 mil vítimas/ano, notificados à Fundação Na-
e os demais animais peçonhentos com 4.041 (19,9%).
cional de Saúde (Funasa).
Esse perfil é próximo ao apresentado pelo Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (Sinan) referen- O coeficiente de incidência para o Brasil foi de
te aos Acidentes por Animais Peçonhentos registrados 13,8 acidentes/100.000 habitantes (2008), sendo os
para o ano de 2004, em que, do total de 86.728 casos maiores índices nas regiões Norte e Centro-Oeste. Os
gêneros mais frequentes nos acidentes são mostrados
registrados por esse sistema, 30.428 foram causados
no gráfico a seguir:
por escorpiões (35,1%), 27.501 por serpentes (31,7%),
18.046 por aranhas (20,8%), 7.888 por outros animais Bothrops 90,5%
peçonhentos/venenosos (9,1%) e 2.865 por animais pe-
çonhentos/venenosos ignorados (3,3%). É importante
salientar que o Sinan só apresentou maior percentual
de casos provocados por escorpiões, em detrimento a
serpentes, a partir do ano de 2004.
Micrurus 0,4%

Crotalus 7,7%
Primeiros socorros para Lachesis 1,4%
os acidentes em geral
Figura 27.1  Distribuição dos acidentes ofídicos, se-
1. Lave o local da picada, de preferência com gundo o gênero da serpente peçonhenta (Brasil, 2008).
água e sabão.
2. Mantenha a vítima deitada. Evite que ela se A grande maioria dos acidentes ofídicos ocorre
movimente, para não favorecer a absorção do veneno. na zona rural, e o sexo masculino é o mais acometi-
3. Se a picada for na perna ou no braço, mante- do. São mais frequentes nos períodos de calor e chuva,
nha-os em posição mais elevada. coincidindo com períodos de maior atividade humana
no campo e proximidade das serpentes com o homem.
4. Não faça torniquete. Impedindo a circulação
do sangue, você pode causar gangrena ou necrose. Os locais mais comuns da picada são o pé e a
perna (cerca de 70%); a faixa etária mais acometida é
5. Não fure, não corte, não queime, não esprema, entre 15 e 49 anos (52,3%), estando o sexo masculino
não faça sucção no local da ferida e nem aplique folhas, envolvido em 70% dos acidentes. O maior índice de le-
pó de café ou terra sobre ela, para não provocar infecção. talidade de acidentes com serpentes pertence ao gêne-
6. Não dê à vítima pinga, querosene ou fumo, ro Crotalus, com taxas de até 1,8%. A letalidade geral
como é costume em algumas regiões do país. no Brasil é de aproximadamente 0,4%, sendo a região
Nordeste o local que apresenta maior índice.
7. Leve a vítima imediatamente ao serviço de saúde
mais próximo, para que possa receber o soro em tempo. Letalida-
Gênero N° casos N° óbitos
8. Leve, se possível, o animal agressor, mesmo de(%)
morto, para facilitar o diagnóstico. Bothrops 59.61 185 0,31
Crotalus 5.072 95 1,87
9. Lembre-se: nenhum remédio caseiro substitui
o soro antipeçonhento. Lachesis 939 9 0,95
Micrurus 281 1 0,36
10. A dose utilizada de soro deve ser a mesma Não 13.339 69 0,52
para adultos e crianças, visto que o objetivo do trata- informado
mento é neutralizar a maior quantidade possível de vene- Total 79.250 359 0,45
no circulante, independentemente do peso do paciente. Tabela 27.1  Letalidade dos acidentes ofídicos por
11. Não esquecer da profilaxia antitetânica. gênero de serpente.

SJT Residência Médica – 2016


271
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

Diferenciação entre serpentes peçonhentas e não peçonhentas


A identificação da serpente possibilita a dispensa imediata dos pacientes vítimas de serpentes não peço-
nhentas e auxilia na indicação do soro antiofídico a ser administrado.
A fosseta loreal, órgão sensorial termorreceptor, é um orifício entre o olho e a narina em cada lado da
cabeça das cobras, o que as faz perceber modificações de temperatura a sua frente. Por isso, elas podem se movi-
mentar e caçar à noite, mesmo sem a visão normal. Isso indica com segurança que a serpente é peçonhenta, e é
encontrada nos gêneros Bothrops, Crotalus e Lachesis.
As serpentes desses gêneros têm a cabeça triangular, olhos elípticos e dentes inoculadores de veneno
bem desenvolvidos e móveis, situados na frente da boca. As caudas possuem características diferentes entre esses
principais gêneros, auxiliando na identificação dessas serpentes. A cauda lisa é típica das jararacas, a cauda com
guizo ou chocalho é encontrada na cascavel, enquanto a cauda com escamas arrepiadas no final é característica
da surucucu.

Olho

Narina Presas

Fosseta Loreal

A identificação entre os gêneros referidos também pode ser feita pelo tipo de cauda.

Guizo ou Escamas eriçadas


Cauda lisa
chocalho

Bothrops Crotalus Lachesis

Figura 27.2  Características de serpentes peçonhentas.

Dos animais sem fosseta loreal, o gênero Micrurus, representado pela cobra-coral verdadeira, apresenta dentes
pouco desenvolvidos e cabeça arredondada, e, apesar dessas características, é uma serpente bastante peçonhenta.

Olho

Narina

Presa

Figura 27.3  Características da cobra-coral venenosa.

O fluxograma a seguir simplifica a identificação de cobras venenosas:

SJT Residência Médica – 2016


272
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

€€ Coagulante: ativa o fator X e a protrombina e


Fosseta Loreal possui ação semelhante à trombina, converten-
do fibrinogênio em fibrina. Provoca consumo
Ausente Presente dos fatores da coagulação e geração de produtos
de degradação da fibrina, semelhantes à coagu-
lação intravascular disseminada (CIVD).
Com Anéis
Cauda com €€ Hemorrágica: hemorragias decorrentes da ação
Coloridos (Pretos, Cauda com
Cauda Lisa Escamas
Brancos e Chocalho das hemorraginas que provocam lesões nas
Arrepiadas
Vermelhos membranas basais dos capilares. Plaquetopenia
e alterações da função plaquetária também são
Micrurus** Bothrops Lachesis Cratulus
descritas como consequência da ação do veneno.

Não
As manifestações clínicas podem ser divididas
Peçonhentas em locais e sistêmicas:
Peçonhentas*

Figura 27.4  Organograma de diferenciação das Manifestações locais – de instalação preco-


cobras peçonhentas. ce (até 3 horas do acidente) e progressiva. Surgem:
dor imediata, edema, calor, rubor, equimoses e san-
gramento no local picado. Mais tarde podem surgir:
As falsas corais podem apresentar o mesmo pa-
necrose, bolhas, abscessos, gangrena e síndrome com-
drão de coloração das corais verdadeiras, sendo dis-
partimental como complicações locais.
tinguíveis pela ausência de dentes inoculadores. Na
Amazônia, há corais verdadeiras desprovidas de anéis
vermelhos.

Acidente botrópico

Figura 27.6

Figura 27.5  Jararaca.

As cobras desse gênero são conhecidas popular-


mente como jararacas. Habitam principalmente zo-
nas rurais e periferias de grandes cidades, preferindo
ambientes úmidos como matas e áreas cultivadas e
locais com facilidade de proliferação de roedores. Pos-
suem hábitos noturnos e apresentam comportamento
agressivo quando ameaçadas. Essas cobras estão dis- Figura 27.7
tribuídas em todo o território nacional e são responsá-
veis por cerca de 90% dos acidentes ofídicos de maior
importância epidemiológica no Brasil. Manifestações sistêmicas
O veneno da jararaca tem as seguintes ações no €€ Sangramentos em ferimentos e mucosas, hema-
organismo: túria, epistaxe e hematêmese: pela incoagulabi-
€€ Proteolítica: provoca lesões locais com edema, lidade sanguínea.
bolhas e necrose através de proteases, hialuro- €€ Náuseas, vômitos, sudorese, hipotensão e cho-
nidases e fosfolipases. Age em conjunto com as que, por causa da liberação de mediadores in-
demais frações do veneno na produção desses flamatórios, sequestro de líquidos no edema e
efeitos locais. perdas hemorrágicas.

SJT Residência Médica – 2016


273
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

€€ Insuficiência renal, por causa da ação tóxica do O tempo de coagulação é utilizado como con-
próprio veneno associada ao hipofluxo renal e à trole de tratamento, e, se permanecer alterado 24 ho-
formação de microtrombos renais. ras após a soroterapia, está indicada dose adicional de
As complicações sistêmicas mais graves descritas duas ampolas de antiveneno.
são o choque, a insuficiência renal e a CIVD. O prognóstico de sobrevida geralmente é bom
Os exames complementares que ajudam na (letalidade de 0,3% nos casos tratados adequadamen-
avaliação clínica e no seguimento são: coagulograma te), porém há possibilidade de sequelas locais anatô-
e tempo de coagulação, hemograma, urina tipo 1, fun- micas e funcionais.
ção renal e eletrólito. O antígeno do veneno botrópico
pode ser detectado pela técnica de Elisa.
O tratamento inclui as medidas gerais de su-
porte avançado de vida, manutenção do membro pica- Acidente crotálico
do elevado, estendido e imobilizado, analgesia, hidra-
tação suficiente para manter diurese de 1 a 2 mL/kg/
hora e antibioticoterapia se houver evidência de infec-
ção. É importante lembrar da profilaxia antitetânica.
Firmado o diagnóstico de síndrome de com-
partimento, a fasciotomia não deve ser retardada.
O debridamento de áreas necrosadas delimitadas e
a drenagem de abscessos também devem ser efetua-
dos, se necessário.
O tratamento específico consiste na administra-
ção precoce do antiveneno soro antibotrópico (SAB)
endovenoso, e, na falta deste, pode-se utilizar as asso-
ciações antibotrópico-crotálico (SABC) ou antibotró-
pico-laquético (SABL). A tabela a seguir resume a clas- Figura 27.8  Cascavel.
sificação de gravidade e as indicações de tratamento.
A cobra cascavel é encontrada em campos
abertos, regiões secas e pedregosas e também em
Manifestações e Classificação
pastos. Até o momento, ainda não foram identi-
tratamento Leve Moderada Grave ficadas no litoral e não ocorrem em florestas e no
Locais Ausen- Evidentes Inten- Pantanal. Chegam a atingir, na fase adulta, 1,6 m de
dor tes ou sas** comprimento. Sua característica mais importante
edema discretas é a presença de um guizo ou chocalho na ponta da
equimose cauda. Não tem o hábito de atacar, mas quando se
Sistêmicas Ausen- Ausentes Presentes sente ameaçada denuncia sua presença pelo ruído
hemorragia grave tes característico do chocalho. Seus ataques possuem o
choque maior índice de letalidade entre as serpentes,
anúria
provavelmente pela frequência elevada de evolução
Tempo de coagula- Normal Normal Normal
para insuficiência renal aguda.
ção (TC)* ou ou ou
alterado alterado alterado O veneno da cascavel tem as seguintes ações no
Soroterapia 2-4 organismo:
(n° ampolas) 4-8 €€ Neurotóxica: provoca bloqueio neuromuscular
SAB/SABC/ 12 através da fração crotoxina do veneno, que é uma
SABL*** neurotoxina de ação nas terminações pré-sináp-
Via de Intravenosa ticas, o que inibe a liberação de acetilcolina.
administração
€€ Miotóxica: produz rabdomiólise, com liberação
Tabela 27.2  Classificação quanto à gravidade e so- de mioglobina e enzimas musculares.
roterapia recomendada. *TC normal: até 10 min; TC
prolongado: de 10 a 30 min; TC incoagulável: > 30 min.
€€ Coagulante: atividade trombina-like, podendo
**Manifestações locais intensas podem ser o único levar ao consumo de fibrinogênio. Geralmente,
critério para classificação de gravidade. ***SAB: anti- não leva à plaquetopenia.
botrópico; SABC: soro antibotrópico-crotálico; SABL: As manifestações clínicas podem ser divididas
soro antibotrópico-laquético. em locais e sistêmicas:

SJT Residência Médica – 2016


274
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Manifestações locais: as manifestações no local O tratamento específico é realizado pela admi-


da picada são pouco importantes, levemente dolorosas nistração precoce do antiveneno específico, o soro an-
ou indolores. A ferida pode apresentar ainda parestesia ticrotálico (SAC) endovenoso, e, na falta deste, pode-
local ou regional, edema e eritema muito discretos. -se utilizar o soro antibotrópico-crotálico (SABC). A
Manifestações sistêmicas: a vítima desenvol- tabela a seguir resume as indicações.
ve mal-estar, prostração, sudorese, náuseas, vômitos,
sonolência ou inquietação de aparecimento precoce. Classificação (avaliação
Manifestações e inicial)
O quadro neurológico surge nas primeiras horas tratamento
após a picada, e caracteriza-se por fácies miastênica Leve Moderada Grave
(ptose palpebral, flacidez da musculatura facial, altera- Ausente
Fácies miastênica/ Discreta ou
ção do diâmetro pupilar, oftalmoplegia), visão turva, ou Evidente
Visão turva evidente
diplopia e, menos frequentemente, comprometimen- tardia
to de pares cranianos baixos. Ausente
Mialgia ou Discreta Intensa
As manifestações musculares se apresentam discreta
como mialgia generalizada, que pode aparecer preco- Pouco evi-
cemente, e como mioglobinúria, que provoca uma co- Urina vermelha ou
Ausente dente ou Presente
loração escurecida da urina, surgindo normalmente 6 marrom
ausente
a 12 horas após a picada. Presente
Os distúrbios da coagulação provocam alarga- Oligúria/Anúria Ausente Ausente ou
mento do TC em aproximadamente 40% dos pacien- ausente
tes, com manifestações hemorrágicas discretas, geral- Normal Normal Normal
Tempo de
mente restritas a gengivorragia. ou ou ou
coagulacão (TC)
alterado alterado alterado
A complicação mais temida e letal é a insuficiên- Soroterapia 5
cia renal aguda (IRA), geralmente de instalação nas (nº de ampolas) 10
primeiras 48 horas de evolução, provocada principal- SAC/SABC* 20
mente pela ação nefrotóxica da mioglobinúria. Via de
Intravenosa
Pode ocorrer ainda complicação parestésica local administração
duradoura, porém reversível, após algumas semanas Tabela 27.3  Classificação quanto à gravidade e soro-
do acidente. terapia recomendada. *SAC: soro anticrotálico; SABC:
soro antibotrópico-crotálico.
Os exames complementares sanguíneos de-
monstram miólise através da elevação da creatino-
quinase (CK), desidrogenase lática (DHL), aspartase- O prognóstico é bom nos acidentes leves e mode-
-aminotransferase (AST) e aldolase. A CK eleva-se rados e nos pacientes atendidos nas primeiras 6 horas
precocemente, com pico máximo dentro de 24 horas após a picada. Nos casos graves, a evolução depende
após o acidente, e o DHL tem aumento lento e gra- da IRA, sendo pior quando há necrose tubular aguda,
dual, ajudando no diagnóstico tardio. Se houver IRA, que depende de processo dialítico precoce.
há alteração de função renal e distúrbios eletrolíticos,
o hemograma pode mostrar leucocitose e o tempo de
coagulação frequentemente apresenta-se aumentado.
O exame de urina tipo 1 geralmente é normal
Acidente laquético
quando não há IRA, e pode haver proteinúria discreta,
com ausência de hematúria. Há presença de mioglobi-
na, que pode ser detectada com fitas específicas.
O tratamento inclui medidas gerais semelhan-
tes aos procedimentos já citados no acidente botrópi-
co, com especial atenção à hidratação adequada, para
manutenção de boa diurese e alcalinização da urina,
tentando evitar a nefrotoxicidade da mioglobinúria.
Se necessário, além de hidratação líquida, podem ser
prescritos o diurético de alça ou o manitol. O pH uri-
nário deve ser mantido acima de 6,5 através da admi-
nistração parenteral de bicarbonato de sódio e o débi-
to urinário, idealmente, deve ser de 1-2 mL/kg/hora
na criança e 30-40 mL/hora no adulto. Figura 27.9  Surucucu.

SJT Residência Médica – 2016


275
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

A surucucu é uma serpente de grande porte. Apre- Manifestações sistêmicas: são relatados hipo-
senta cauda com escamas arrepiadas e presas inoculado- tensão arterial, hemorragias, vômitos, tonturas e ma-
ras de veneno. É a maior serpente peçonhenta das Amé- nifestações vagais de diarreia, visão turva, bradicardia
ricas, atingindo até 3,5 metros. Habita áreas florestais e e cólicas abdominais.
matas úmidas do Nordeste. Existem semelhanças nos O diagnóstico diferencial com o acidente botró-
quadros clínicos entre os acidentes laquético e botrópico, pico é difícil e a presença de sinais de estimulação va-
com possibilidade de confusão diagnóstica entre eles. A gal pode ajudar, bem como o teste específico de Elisa
frequência do acidente pela surucucu é baixa, responden- para identificação exata de antígenos do veneno.
do por 1,4% dos acidentes notificados. Acredita-se que
os acidentes são subnotificados por ocorrerem em áreas Dentro dos exames complementares, o tempo
florestais, onde a densidade populacional é baixa e o sis- de coagulação é importante no diagnóstico e acompa-
tema de notificação não é tão eficiente. nhamento dos casos. HMG, função renal e eletrólitos
são colhidos de acordo com a evolução.
O veneno da surucucu possui as seguintes ações
sobre o organismo: As medidas gerais citadas para o acidente por ja-
raraca devem ser feitas de forma semelhante.
€€ Proteolítica: semelhante à ação do veneno bo-
O tratamento específico consiste na adminis-
trópico.
tração de antiveneno, soro antilaquético (SAL) endo-
€€ Coagulante: atividade tipo trombina. venoso ou, alternativamente, o soro antibotrópico-
€€ Hemorrágica: hemorragias decorrentes da ação -laquético (SABL). Nos casos de acidente laquético
das hemorraginas. comprovado, e na falta dos soros específicos, o tra-
€€ Neurotóxica: estimulação vagal. tamento pode ser realizado com soro antibotrópico,
apesar de este não neutralizar de maneira eficaz a ação
As manifestações clínicas podem ser divididas coagulante do veneno laquético.
em locais e sistêmicas: O quadro é sempre classificado como moderado
Manifestações locais: semelhantes ao acidente ou grave pelo fato de ser a surucucu uma serpente de
botrópico. São precoces, com edema, dor, vesículas e san- grande porte e a quantidade de veneno potencialmen-
gramento no local da picada. Pode apresentar as mesmas te muito grande. A tabela a seguir resume as indica-
complicações locais presentes na picada da jararaca. ções de tratamento:

Soroterapia Via de
Orientação para o tratamento
(n° de ampolas) administração
Poucos casos estudados. Gravidade avaliada pelos sinais locais e intensida- 10 a 20 intravenosa
de das manifestações vagais (bradicardia, hipotensão arterial, diarreia) SAL ou SABL*
Tabela 27.4  Tratamento específico indicado. *SAL: soro antilaquético; SABL: soro antibotrópico-laquético.

Esse grupo é formado pelas corais verdadeiras.


Acidente elapídico É importante lembrar que as corais não possuem fosseta
loreal. Em virtude de apresentarem dentes pequenos e
fixos (inoculadores de veneno) e habitarem preferencial-
mente em buracos, os acidentes são raros, porém graves,
devido à sua potencial evolução para o bloqueio neuro-
muscular, paralisia respiratória e até mesmo óbito.
São serpentes de pequeno e médio portes, em
torno de 1 metro de comprimento. Existem espécies
não peçonhentas que podem apresentar o mesmo pa-
drão de coloração das corais verdadeiras, porém são
desprovidas de dentes inoculadores.
O veneno da cobra-coral verdadeira tem ação
primordialmente neurotóxica, com ação pós-sináptica
precoce, curare-like, competindo com a acetilcolina
(Ach) na junção neuromuscular. Essa neurotoxina de
efeito pós-sináptico tem baixo peso molecular, com
absorção muito rápida, sendo a responsável pela pre-
cocidade dos sintomas. Em algumas espécies elapídi-
cas, há neurotoxinas com ação pré-sináptica de inibi-
Figura 27.10  Cobra-coral. ção da liberação da Ach.

SJT Residência Médica – 2016


276
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

As manifestações clínicas do envenenamento elapídico são rápidas (ocorrem, em geral, em menos de 1


hora após a inoculação) e de grande potencial de letalidade se não houver intervenção precoce.
Manifestações locais: São discretas, representadas por dor e parestesia de progressão proximal.
Manifestações sistêmicas: Inicialmente vômitos, seguidos de fraqueza muscular progressiva, dificulda-
des em abrir os olhos (ptose palpebral), “cara de bêbado”, oftalmoplegia, dificuldades para engolir e tossir, de se
manter em posição ereta e mialgia.
A morte se dá por insuficiência respiratória pela paralisia flácida da musculatura ventilatória.
Não há exames complementares específicos para o diagnóstico.
As medidas gerais citadas para os demais acidentes devem ser seguidas, dando ênfase na manutenção segura
da via aérea, ventilação e oxigenação, pela possibilidade de insuficiência respiratória.
No tratamento específico, utiliza-se o soro antielapídico (SAE), sendo que todos os acidentes devem ser
considerados potencialmente graves à menor presença de sinais clínicos. A tabela a seguir resume o tratamento:

Soroterapia Via de
Orientação para o tratamento
(n° de ampolas) SAE administração
Acidentes raros. Pelo risco de Insuficiência Respiratória Aguda, devem 10 Intravenosa
ser considerados potencialmente graves
Tabela 27.5  Soroterapia recomendada.

Como a neurotoxina pós-sináptica de algumas São carnívoros, alimentando-se principalmen-


espécies de cobra-coral possui ação competitiva com a te de insetos, como grilos e baratas, desempenhando
Ach na junção neuromuscular, a administração de an- papel importante no equilíbrio ecológico. Apresentam
ticolinesterásicos (neostigmina) apresenta eficácia no hábitos noturnos, escondendo-se durante o dia sob
tratamento da insuficiência respiratória. Promove rápi- cascas de árvores, pedras, troncos podres, madeiras
da reversão da sintomatologia, com melhora da hipo- empilhadas em entulhos, telhas, tijolos e dentro das
ventilação enquanto o paciente é transferido para um residências. Muitas espécies vivem em áreas urbanas,
centro com disponibilidade de assistência ventilatória onde encontram abrigo dentro e próximo das casas,
mecânica. Deve ser precedida pela administração de bem como alimentação farta. Os escorpiões podem
atropina, para inibir os efeitos muscarínicos da Ach. sobreviver vários meses sem alimento e mesmo sem
O prognóstico costuma ser bom quando a so- água, o que torna seu combate muito difícil.
roterapia e a assistência respiratória são adequada- Eles aparecem, principalmente, através de insta-
mente instituídas.
lações elétricas e esgotos. São sensíveis aos inseticidas
desde que aplicados diretamente sobre eles; portanto,
as desinsetizações habituais não os eliminam. O fato
Escorpionismo de respirarem o inseticida ou comer insetos envenena-
dos não os mata. São resistentes inclusive à radiação.
Seu aparecimento ocorre principalmente devido
à presença de baratas. Portanto, a eliminação destas
em caixas de gordura e canos que conduzem ao esgoto
é a principal prevenção ao aparecimento dos escorpi-
ões. Seus principais predadores são pássaros, lagarti-
xas e alguns mamíferos insetívoros.
Os escorpiões de importância médica no Brasil
pertencem ao gênero Tityus, e as principais espécies
são Tityus serrulatus (escorpião-amarelo), responsável
Figura 27.11  Escorpião Tityus serrulatus. por acidentes de maior gravidade (foto acima), Tityus
bahiensis (escorpião-marrom) e Tityus stigmurus.
Os escorpiões, também chamados de lacraus, são São notificados anualmente cerca de 8 mil aci-
animais invertebrados, picam com a cauda e variam en- dentes, com uma letalidade variando em torno de
tre 6 a 8,5 cm de comprimento. No Brasil, há cerca de 75 0,58%, sendo os óbitos relacionados principalmente
espécies amplamente distribuídas. Esses animais podem à espécie T. serrulatus e em crianças menores de 14
ser encontrados em áreas tanto urbanas quanto rurais. anos. Os acidentes por escorpiões são mais frequen-

SJT Residência Médica – 2016


277
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

tes no período de setembro a dezembro. Ocorre uma são arterial, distermias, sialorreia, arritmias car-
discreta predominância no sexo masculino, e a faixa díacas, insuficiência cardíaca, tremores, agitação
etária de 25 a 49 anos é a mais acometida. A maioria psicomotora, sonolência, arritmias respiratórias,
das picadas atinge os membros, havendo predominân- vômitos e diarreia. O edema pulmonar agudo é a
cia dos membros superiores (mãos e dedos em 65% complicação mais temida.
dos casos). O tratamento sintomático para o alívio da dor
O veneno é rapidamente absorvido pela pele e é feito com a utilização de analgésicos orais e endove-
pelos músculos, deslocando-se para o sangue, rins, nosos, e/ou do bloqueio local com anestésicos, através
pulmão e sistema nervoso. Tem atividade de despo- da infiltração de lidocaína a 2% sem vasoconstritor no
larização das terminações nervosas pós-ganglionares, local da picada.
com liberação de catecolaminas e Ach, com efeitos lo- A manutenção das funções vitais é fundamen-
cais e sistêmicos, simpáticos e parassimpáticos. tal. A bradicardia sinusal e o BAV com repercussão
A maior parte dos acidentes em adultos é benig- hemodinâmica devem ser tratados com atropina, a
na, mas em crianças e idosos é quase sempre fatal se hipertensão arterial mantida é tratada com anti-hi-
não forem tomadas as devidas providências em curto pertensivos e a insuficiência cardíaca e o choque são
espaço de tempo. prontamente revertidos com drogas vasoativas.

No quadro clínico, têm sido relatadas as se- A gravidade no escorpionismo depende de fato-
guintes manifestações locais e sistêmicas: res como a espécie e o tamanho do escorpião causador
do acidente, a massa corporal do acidentado, a sensibi-
€€ Manifestações locais: caracterizam-se por lidade do paciente ao veneno, a quantidade de veneno
dor intensa no local da picada, às vezes irra- inoculada e o retardo no atendimento.
diada por todo o corpo, podendo ainda ocorrer
edema e rubor leves ao redor da ferida. O tratamento específico pode ser feito com a ad-
ministração dos soros antiescorpiônico e antiaracní-
€€ Manifestações sistêmicas: menos frequentes,
dico (ambos são opções eficientes) nos pacientes com
podendo ocorrer de minutos a 2-3 horas após o
acidente. Quando presentes, caracterizam os aci-
formas moderadas e graves.
dentes como moderados ou graves. Além da dor A classificação quanto à gravidade clínica e à te-
local, surgem alterações como: hiper ou hipoten- rapêutica está resumida na tabela a seguir:

Classificação dos acidentes quanto à gravidade, manifestações clínicas e tratamento específico


Soroterapia (nº de ampo-
Classificação Manifestações clínicas
las) SAEEs ou SAAr**
Leve** Dor e parestesia locais -
Dor local intensa, associada a uma ou mais manifestações, como náu-
Moderado seas, vômitos, sudorese e sialorreia discretos, agitação, taquipneia e 2 a 3 IV
taquicardia
Além das citadas na forma moderada, presença de uma ou mais das
seguintes manifestações: vômitos profusos e incoercíveis, sudorese
Grave 4 a 6 IV***
profunda, sialorreia intensa, prostração, convulsão, coma, bradicar-
dia, insuficiência cardíaca, edema pulmonar agudo e choque
Tabela 27.6  *Tempo de observação das crianças picadas: 6 a 12 horas. **SAEEs: soro antiescorpiônico; SAAr: soro
antiaracnídico. ***Na maioria dos casos graves, quatro ampolas são suficientes para o tratamento, visto que neutrali-
zam o veneno circulante e mantêm concentrações elevadas de antiveneno circulante por pelo menos 24 horas após
a administração da soroterapia.

Na solicitação de exames complementares, o eletrocardiograma (ECG) é de grande utilidade na avaliação


inicial e monitorização do paciente. Pode mostrar taquicardia ou bradicardia sinusais, extrassístoles ventricula-
res, distúrbios de repolarização, ondas U proeminentes, alterações semelhantes às encontradas no infarto agudo
do miocárdio e bloqueios da condução atrioventricular (BAV) ou intraventricular. Essas alterações desaparecem
em três dias na grande maioria dos casos, mas podem persistir por sete ou mais dias.
A radiografia de tórax é útil na avaliação da área cardíaca e de sinais de edema pulmonar agudo. Os níveis
séricos de glicose e amilase estão elevados, e o HMG mostra leucocitose com neutrofilia nos casos graves. Hipoca-
lemia, hiponatremia e aumento de CK e CKMB também costumam estar presentes nos casos graves.
O Elisa para detecção do veneno escorpiônico pode ser usado no diagnóstico específico.

SJT Residência Médica – 2016


278
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Araneísmo
As aranhas são animais carnívoros, alimentando-se principalmente de insetos como grilos e baratas. Muitas
têm hábitos domiciliares e peridomiciliares. No Brasil, existem três gêneros de aranhas de importância médica:
Phoneutria, Loxosceles e Latrodectus. Os acidentes causados por Lycosa (aranha-de-grama), bastante frequentes, e
pelas caranguejeiras, muito temidas, são destituídos de maior importância clínica.
Foram notificados em 2008 cerca de 20 mil acidentes com aranhas no país, com incidência de 11,1 por 100
mil habitantes. O loxoscelismo foi responsável por 38% dos casos, enquanto o foneutrismo respondeu por 14,1%
e o latrodectismo, por 0,5%. Quase 30% dos casos notificados em 2008 ficaram sem identificação. A maioria dos
acidentes por Phoneutria foi notificada no estado de São Paulo. Com respeito aos acidentes por Loxosceles, os
registros provêm das regiões Sudeste e Sul, particularmente no estado do Paraná, onde se concentra a maior ca-
suística de loxoscelismo do país. A partir da década de 1980, começaram a ser relatados acidentes por viúva-negra
(Latrodectus) na faixa litorânea das regiões Nordeste, Sudeste e Sul.

Foneutrismo
São as chamadas aranhas-armadeiras, devido ao fato de, quando ameaçadas, tomarem a postura de se
“armar”, levantando as patas dianteiras e eriçando os espinhos. São extremamente agressivas.
Habitam sob troncos, normalmente folhagens densas, como bananeiras, montes de lenha ou materiais de
construção empilhados, e, eventualmente, aparecem dentro das residências, principalmente em roupas e dentro
de calçados. Caçam principalmente à noite, e os acidentes ocorrem principalmente dentro das residências e nas
suas proximidades, ao se manusear material de construção, entulhos e lenha, ou calçando sapatos.

Figura 27.12  Phoneutria.

O animal adulto mede 3 cm de corpo e até 15 cm de envergadura de pernas. Não fazem teia geométrica e têm
coloração marrom-escura com manchas claras, formando pares no dorso do abdome.
O veneno da aranha-armadeira tem as seguintes ações no organismo:

€€ Neurotóxica: ativa os canais de sódio e despolariza as fibras musculares e terminações nervosas sensitivas, moto-
ras e autonômicas, favorecendo a liberação de neurotransmissores, principalmente acetilcolina e catecolaminas.
€€ Recentemente, também foram isolados peptídeos do veneno que podem induzir tanto a contração da muscu-
latura lisa vascular quanto o aumento da permeabilidade vascular, por ativação do sistema calicreína-cininas
e de óxido nítrico, independentemente da ação dos canais de sódio.

Os acidentes são frequentes, mas raramente levam a quadros graves. As picadas costumam ocorrer em mãos
e pés, e os casos classificados como leves correspondem a 91% dos acidentes.
As manifestações clínicas locais predominam. A dor imediata é o sintoma mais frequente, de intensidade
variável, podendo se irradiar até a raiz do membro afetado. Edema, eritema, parestesia e sudorese são outras
manifestações locais.

SJT Residência Médica – 2016


279
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

O tratamento local é realizado pela infiltração anestésica ou troncular com lidocaína, imersão em água mor-
na e analgésicos comuns. Opioides são associados nos casos mais graves e refratários.
Verifica-se, nos casos graves, leucocitose com neutrofilia, hiperglicemia, acidose metabólica e taquicardia sinusal.
A soroterapia tem indicação restrita aso casos moderados e graves, e o soro antiaracnídico utilizado netrali-
za frações do veneno de Tityus, Phoneutria e Loxosceles.
O quadro clínico geral, sua classificação de gravidade e o tratamento são resumidos na Tabela 20.7:

Classificação quanto à gravidade e manifestações clínicas no tratamento geral e específico


Manifestações Tratamento Tratamento
Classificação
clínicas geral específico
Dor local na maioria dos casos, eventualmente taquicar- Observação até 6
Leve* –
dia e agitação horas
Dor local intensa associada a sudorese e/ou vômitos 2-4 ampolas de
Moderada Internação
ocasionais e/ou agitação e/ou hipertensão arterial SAAr* (crianças) IV
Além das anteriores, apresenta uma ou mais das seguin-
tes manifestações: sudorese profusa, sialorreia, vômitos Unidade de Cuidados 5-10 ampolas de
Grave
frequentes, hipertonia muscular, priapismo, choque e/ Intensivos SAAr* IV
ou edema pulmonar agudo
Tabela 27.7  *SAAr: soro antiaracnídico: uma ampola = 5 mL (1 mL neutraliza 1,5 dose mínima mortal).

Loxoscelismo

Figura 27.13  Loxosceles.

Conhecida como aranha-marrom, é encontrada com facilidade nas residências, atrás de quadros, armários
e closets, no meio de livros, caixas de papelão e outros objetos pouco remexidos. No ambiente externo, podem pro-
liferar em telhas ou materiais de construção empilhados, folhas secas, em cascas de árvores e outros. São animais
pequenos, atingindo 1 cm de diâmetro corpóreo e envergadura das pernas de 3 cm quando adultas, com coloração
que varia de marrom-claro a marrom-escuro.
Gostam de lugares escuros, quentes e secos. Constroem teias irregulares com aparência de algodão esfiapado
e se alimentam de pequenos animais (formigas, tatuzinhos, pulgas, traças, cupins etc.). Saem em busca de alimen-
to à noite, e é nessa oportunidade que podem se ocultar em vestimentas, toalhas e roupas de cama.
Não são agressivas. Os acidentes acontecem quando a pessoa ao se vestir, ou mesmo durante o sono, com-
prime o animal contra a pele. A picada nem sempre é percebida pela pessoa, por ser pouco dolorosa. A dor pode
ter início várias horas depois.
O veneno da aranha-marrom contém hialuronidase e esfingomielinase, proteínas que lisam membranas
celulares, principalmente do endotélio vascular e das hemácias. Ocorre ativação da cascata inflamatória e da
coagulação, desencadeando intenso processo destrutivo no local da picada. Também é responsável pelo processo
hemolítico intravascular sistêmico nas formas mais graves de envenenamento.

SJT Residência Médica – 2016


280
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

O momento da picada quase sempre é imperceptível, e normalmente se localiza nas áreas onde a aranha é
comprimida quando a vítima está se vestindo: parte superior do braço, tórax lateral, face medial da coxa e, rara-
mente, mãos e face.
O quadro clínico se apresenta sob duas formas principais:
Forma cutânea: 87% a 98% dos casos, de instalação lenta e progressiva, com dor, edema e eritema. Os sin-
tomas se acentuam depois de 24 a 72 horas do acidente, podendo variar desde uma bolha com sinais flogísticos a
uma lesão com dor em queimação, bolhas, áreas hemorrágicas focais, áreas pálidas por isquemia e necrose intensa.
Em tecidos frouxos, como na face, pode desenvolver-se edema exuberante. A lesão pode evoluir para escara
em cerca de 7 a 10 dias, que ao se destacar deixa uma úlcera de difícil cicatrização.
O quadro cutâneo pode ser acompanhado de manifestações gerais secundárias de febre alta, astenia, vômitos,
diarreia, cefaleia, exantema morbiliforme, prurido generalizado, mialgia e alterações da consciência.
As complicações locais mais descritas são: infecção secundária, perda tecidual e cicatrizes desfigurantes.
Forma cutaneovisceral (hemolítica): além do quadro cutâneo, ocorrem hemólise intravascular e suas
manifestações clínicas. Icterícia, anemia e hemoglobinúria geralmente surgem nas primeiras 24 horas. Nos
casos graves, pode haver evolução para CIVD, com petéquias, equimoses e sangramentos. A principal causa de
óbito é a insuficiência renal aguda provocada pela má perfusão renal, associada à hemoglobinúria e CIVD.
Os exames complementares podem mostrar leucocitose e neutrofilia, plaquetopenia, anemia, reticuloci-
tose, hiperbilirrubinemia indireta, alteração da função renal e do coagulograma.
O tratamento soroterápico e a classificação de gravidade são resumidos na tabela a seguir:

Classificação dos acidentes quanto à gravidade, manifestações clínicas, tratamento geral e específico
Classificação Manifestações clínicas Tratamento
Leve Loxosceles identificada como agente causador do acidente Sintomático: Acompanhamento até
Lesão incaracterística 72 horas após a picada*
Sem comprometimento do estado geral
Sem alterações laboratoriais
Moderada Com ou sem identificação da Loxosceles no momento da picada Soroterapia: 5 ampolas de SAAr**
Lesão sugestiva ou característica IV e/ou
Alterações sistêmicas (rash cutâneo, petéquias)
Sem alterações laboratoriais sugestivas de hemólise Prednisona: adultos 40 mg/dia;
crianças 1 mg/kg/dia durante 5 dias
Grave Lesão característica Soroterapia: 10 ampolas de SAAr
Alteração no estado geral: anemia aguda, icterícia IV e
Evolução rápida
Alterações laboratoriais indicativas de hemólise Prednisona: adultos 40 mg/dia;
crianças 1 mg/kg/dia durante 5 dias
Tabela 27.8

Embora não existam estudos controlados, a corticoterapia com prednisona é preconizada por 5 dias. Para
as manifestações locais, administram-se analgésicos e compressas frias no local. É importante a limpeza da lesão,
antibióticos no caso de infecção secundária e tratamento cirúrgico da ferida, com debridamento do tecido necró-
tico e drenagem de abscessos.

Latrodectismo

Figura 27.14  Latrodectus.

SJT Residência Médica – 2016


281
27  Urgências pediátricas - acidentes com animais peçonhentos

São conhecidas popularmente como viúvas-negras. As fêmeas têm um abdome globular com um desenho
em forma de ampulheta no ventre, e tamanho total de cerca de 3 cm. Os machos são muito menores, não sendo
causadores de acidentes. Habitam vegetações arbustivas e gramíneas, podendo também apresentar hábitos domi-
ciliares e peridomiciliares. Os acidentes ocorrem geralmente quando são comprimidas contra o corpo. Ao contrá-
rio do que se verifica em outros países, é agente raro em nosso país, embora seja encontrado na região Nordeste,
principalmente na faixa litorânea.
O veneno é uma neurotoxina (alfalatrotoxina) que provoca dor no local da picada, ativação do sistema ner-
voso autonômico e liberação de neurotransmissores, inclusive na junção neuromuscular.
O local da picada tem manifestações discretas, com dor em queimação, edema e sudorese discretos.
O quadro clínico, o tratamento sintomático e o soroterápico são resumidos na tabela a seguir:

Classificação dos acidentes quanto à gravidade, manifestações clínicas e tratamento


Classificação Manifestações clínicas Tratamento
Leve Dor local Sintomáticos
Edema local Analgésicos, gluconato de cálcio, observação
Sudorese local
Dor nos membros inferiores
Parestesia em membros
Tremores e contraturas
Moderada Além dos acima referidos: Sintomáticos: analgésicos, sedativos e
Dor abdominal
Sudorese generalizada Específicos: SALatr** uma ampola, IM*
Ansiedade/agitação
Mialgia
Dificuldade de deambulação
Cefaleia e tontura
Hipertermia
Grave Todos os já referidos e: Sintomático: analgésicos, sedativos e
Taqui/bradicardia
Hipertensão arterial Específicos:
Taquipneia/dispneia SALatr, 1 a 2 ampolas, IM*
Náuseas e vômitos
Priapismo
Retenção urinária
Fácies latrodectísmica
Tabela 27.9  *IM: intramuscular. **SALatr: soro antilatrodético

Considerações da soroterapia
A soroterapia antiveneno (SAV), quando indicada, é um passo fundamental no tratamento adequado dos
pacientes picados pela maioria dos animais peçonhentos. A dose utilizada deve ser a mesma para adultos
e crianças, visto que o objetivo do tratamento é neutralizar a maior quantidade possível de veneno
circulante, independentemente do peso do paciente.
Os soros heterólogos antivenenos são concentrados de imunoglobulinas obtidos por sensibilização de di-
versos animais, sendo mais utilizados os de origem equina. A via de administração recomendada é, geralmente,
a intravenosa (IV), e, apesar de poder ser administrado puro, a forma diluída (1:2 até 1:5 em SF ou
SG 5%) parece diminuir a frequência de reações à soroterapia. O prognóstico dos acidentes por animais peço-
nhentos melhora com a administração precoce (até 6 horas depois) do SAV. As reações à soroterapia podem ser
classificadas em precoces e tardias. Precocemente, podem surgir urticária, tremores, tosse, náuseas, dor abdomi-
nal, prurido e rubor facial. Mais raramente pode-se ter reações semelhantes à reação anafilática ou anafilactoide.
Reações tardias, também conhecidas como “Doença do Soro”, podem ocorrer de 5 a 24 dias após o uso da SAV. Os
pacientes podem apresentar febre, artralgia, linfadenomegalia, urticária e proteinúria.

SJT Residência Médica – 2016


282
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Resumo do diagnóstico diferencial de peçonhentos


Ação do veneno: proteolítica, coagulante, hemorrágica
Característica do animal: serpente com cauda lisa
Botrópico
Local da picada: inflamação, dor, necrose, sangramento
Sintomas sistêmicos característicos: hemorragia, I Renal A, aumento do TC, choque, plaquetopenia
Ação do veneno: neurotóxica, miotóxica, coagulante
Característica do animal: serpente de cauda com chocalho
Crotálico Local da picada: poucos sinais
Sintomas sistêmicos característicos: mialgia, I Renal A, ­ TC, mioglobinúria, urina escura, fraqueza
muscular, sangramentos, sem plaquetopenia
Ação do veneno: neurotóxica
Característica do animal: serpente pequena, sem características peçonhentas clássicas
Elapídico
Local da picada: poucos sinais
Sintomas sistêmicos característicos: fraqueza muscular, insuficiência respiratória
Ação do veneno: neurotóxica
Local da picada: pouca inflamação, dor intensa, sudorese local
Escorpião
Sintomas sistêmicos característicos: vômitos, sialorreia, sudorese, taquicardia, bradicardia, coma,
convulsão, ICC, edema pulmonar agudo
Ação do veneno: neurotóxica
Local da picada: inflamação local, dor intensa, sudorese local
Phoneutria
Sintomas sistêmicos característicos: vômitos, priapismo, sialorreia, sudorese, choque, edema pul-
monar agudo
Ação do veneno: proteinases
Local da picada: inflamação progressiva, dor e necrose com formação de úlcera
Loxosceles
Sintomas sistêmicos característicos: hemólise, icterícia, anemia, reticulocitose, I Renal A, rash cutâ-
neo, petéquias
Tabela 27.10

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

28
Urgências pediátricas -
febre sem sinal localizatório

servados nos pequenos lactentes infectados decorrem


Introdução de sua reduzida capacidade imunológica e funcional.
A febre é uma das mais comuns e importantes Vários autores têm estudado as crianças infectadas
causas de consulta em serviços pediátricos de emer- com idades inferiores a 2 ou 3 meses, classificando-
gência, ambulatoriais ou consultórios particulares. -as como pequenos ou jovens lactentes. São enfocados
Em torno de 25% de todas as consultas de emer- nos estudos a frequência das infecções bacterianas,
gência pediátrica são devidas à febre. Após histó- métodos diagnósticos e condutas terapêuticas. Con-
ria e exame físico completos, na grande maioria dos cluem os diferentes autores que as crianças dessa faixa
casos, o foco infeccioso é identificado e as orientações etária, quando infectadas, devem merecer um enfo-
terapêuticas adequadas são instituídas. Entretanto, que especial. É importante para esses lactentes o re-
em aproximadamente um quinto dos pacientes, a conhecimento precoce das infecções, particularmente
identificação do foco não é possível após a avaliação as bacterianas.
inicial. A grande maioria dessas crianças tem doença Crianças entre 3 e 36 meses são responsáveis
infecciosa aguda autolimitada ou está em fase prodrô- por aproximadamente metade dos atendimentos nos
mica de uma doença infecciosa benigna. Poucas crian- serviços de Pronto-Socorro (PS) de pediatria. Até um
ças têm bacteremia, ou doença infecciosa grave ou quarto dessa demanda é para esclarecimento de
potencialmente grave. Nos lactentes jovens, os focos doença febril, sendo que, após avaliação clínica, 20%
infecciosos bacterianos tendem a ampliar-se e apre- desses casos serão determinados como febre sem
sentar disseminação por via hematogênica, originan- sinais de localização (FSSL).
do, por vezes, quadros septicêmicos e acometimento A febre é uma manifestação comum de várias do-
secundário de outros órgãos. A repercussão sistêmica enças infecciosas e não infecciosas. Na grande maioria
dos quadros infecciosos é também geralmente mais das vezes, está associada a infecções agudas autoli-
intensa nos pequenos lactentes em relação às crianças mitadas, com poucas manifestações clínicas, e exige
de maior faixa etária. Os aspectos desfavoráveis ob- exame físico cuidadoso, porém mínima ou nenhuma
284
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

avaliação laboratorial e terapia específica. Todavia, em rianas comprovadas, nessa circunstância, situa-se em
alguns casos, pode tratar-se de resposta a uma infec- torno de 10% a 20% dos casos. A febre, portanto, não
ção séria e potencialmente ameaçadora. Essa diferen- é manifestação específica de quadro bacteriano nessa
ciação entre o mais prevalente e não grave e o menos faixa etária, em que predominam as infecções virais.
frequente, porém perigoso, é o grande desafio do mé- Alguns autores chegam a recomendar a internação de
dico pediatra emergencista. todos os pequenos lactentes com febre e início ime-
O rápido diagnóstico e início de terapêutica ade- diato de antibioticoterapia parenteral. Outros estudos
quada são considerados significativos para redução da procuram caracterizar fatores de risco (dados clínicos
morbimortalidade nessa situação clínica. Porém, as e laboratoriais), além da ocorrência da febre para dis-
manifestações clínicas dos pequenos lactentes acome- criminar os quadros bacterianos dos demais.
tidos por infecções bacterianas são frequentemente No entanto, existem grupos de alto risco bem-
pouco específicas, dificultando seu reconhecimen- -definidos, que na vigência de febre, de acordo com a
to. A febre é descrita como sinalizador sensível para idade, doenças associadas e estado de imunodeficiên-
identificação de lactentes com quadros infecciosos de cia, requerem uma avaliação e conduta mais extensas,
natureza bacteriana. A frequência de infecções bacte- mesmo antes de a patologia específica ser determinada.

Distúrbio Comentários
Pacientes imunocompetentes
Sepse e meningite causadas por estreptococos do grupo B, E. coli, Listeria mo-
Recém-nascido nocytogenes, vírus herpes simples
Lactentes < 3 meses Doença bacteriana grave, bacteremia
Lactentes e crianças de 3-36 Bacteremia oculta: risco aumentado se a febre > 39 ºC e contagem de leucócitos >
meses 15.000
Hiperpirexia (> 41ºC) Meningite, bacteremia, pneumonia
Bacteremia e meningite causadas por Neisseria meningitidis, H. influenzae, S. pneu-
Febre com petéquias moniae
Pacientes imunocomprometidos
Anemia falciforme Sepse, meningite pneumocócica, osteomielite por salmonela
Asplenia Bactérias encapsuladas
Deficiência do complemento Sepse meningocócica
Agamaglobulinemia Bacteremia, infecção
Aids S. pneumoniae, H. influenzae tipo b, Salmonella sp
Cardiopatia congênita Risco aumentado de endocardite
Cateter venoso central Staphylococcus aureus, estafilococos coagulase-negativos, Candida (fungos)
Bactérias entéricas Gram-negativas, S. aureus, estafilococos coagulase-negativos,
Câncer Candida (fungos)
Tabela 28.1

Nos serviços de pediatria em nosso meio, geral-


Definições mente é estabelecido um valor de 37,8 ºC de tempera-
tura axilar, a partir do qual se determina que a criança
está com febre.
Febre
Elevação da temperatura corporal em resposta
a um estímulo patológico. É o reajuste do termostato
corporal em sentido do aquecimento. A temperatura
normal para cada indivíduo depende da sua individua- Febre sem sinais
lidade e das variações do ciclo circadiano. de localização (FSSL)
A medida mais confiável de temperatura é oral ou Febre sem etiologia definida após história e
retal. Não há consenso absoluto, mas a maioria dos au-
exame físico cuidadosos, com início há menos de
tores classifica como febre a temperatura retal aci-
sete dias.
ma de 38 ºC, variando de 37,7 ºC a 38,3 ºC. A me-
dida axilar é a mais comum no nosso meio, sendo A anamnese detalhada pode revelar a causa da
de 0,3 ºC a 0,4 ºC menor do que a retal. As aferições febre mesmo diante de um exame físico normal, por
axilar e timpânica são consideradas menos confiáveis. exemplo nos casos de diarreia aguda.

SJT Residência Médica – 2016


285
28 – Urgências pediátricas - febre sem sinal localizatório

tes entre um e três meses de idade. Alguns autores os


Bacteremia oculta (BO) classificam entre um e dois meses de vida) e lactentes
Refere-se à presença de bactéria no sangue (em tardios (comumente definidos entre 3 e 36 meses de
hemocultura) de uma criança com boa aparência e idade, embora alguns estudos incluam pacientes até
com FSSL. 24 meses de vida).
Os índices de bacteremia oculta variam de acor- O risco de doença bacteriana grave e bacteremia
do com a idade, aspecto clínico, intensidade da febre oculta é inversamente proporcional à idade. Os
e achados laboratoriais. Sua prevalência global em recém-nascidos (0 a 28 dias) têm maior risco do que
crianças com FSSL antes da vacinação em massa para lactentes de 29 a 90 dias de idade, e estes têm maior
o H. influenzae tipo B era entre 2,8% e 11,6%. Atual- risco do que crianças de 3 a 36 meses. Acima de três
mente essa prevalência está em torno de 3% a 5%. anos de idade, essa questão tem menor importância.
O agente mais comum é o Streptococcus pneumo-
niae (70%-85%), seguido por Haemophilus influenzae
tipo b (20%), Neisseria meningitidis (5%) e Salmonella RN > 28 a 90 dias > 3 a 36 meses
sp (5%). Nas crianças abaixo de 60 dias de vida é extre-
mamente importante a bacteremia por Streptococcus Pacientes de 0 a 28 dias de vida com febre são
agalactiae (estreptococo do grupo B) e Gram-negativos presumivelmente portadores de doença bacteriana
de canal de parto. grave. Nessa faixa etária observamos, por exemplo,
Dessas crianças com bacteremia oculta, 30% dos as meningites, pneumonias, infecção urinária, gastro-
casos não tratados desenvolvem bacteremia persisten- enterites, osteomielites e bacteremia. A maioria das
te, 10%, infecção localizada e 5% a 10%, meningite. infecções virais nessa faixa etária geralmente aparece
Porém, a maioria dos casos não medicados evolui para como quadros autolimitados, sem grande impacto na
resolução espontânea. morbidade ou mortalidade, ao contrário das infecções
Esse padrão de evolução da BO varia bastante de bacterianas, que estão associadas a evolução mais tu-
acordo com fatores relacionados ao hospedeiro e ao micro multuada e pior prognóstico.
-organismo agressor. Dessa forma, nos pacientes não Nos primeiros meses de vida, há uma diminuição
tratados, o risco de meningite na bacteremia por pneu- da atividade de opsonização, da função dos macrófa-
mococo é de 6% no caso do hemófilo o risco é de 25%, e gos e da atividade neutrofílica, causando uma depres-
na bacteremia por meningococo o risco de evolução para são imune natural da idade.
meningite é 85 vezes maior do que por pneumococo.

Temperatura
Doença bacteriana grave O risco de doença bacteriana grave e BO é dire-
Doenças em que o atraso no diagnóstico pode tamente proporcional à intensidade da febre em
gerar morbidade importante ou até mortalidade. Bac- crianças de 3 a 36 meses de idade. Com temperaturas
teremia oculta, meningite bacteriana, celulite, osteo- retais abaixo de 38,9 ºC, a taxa de bacteremia é de 1%,
mielite, diarreia aguda bacteriana, pneumonia e artri- de 38,9 ºC a 39,4 ºC é de 4%, entre 39,4 ºC e 40,5 ºC é
te séptica são exemplos. de 8% e acima de 40,5 ºC pode chegar a 10,5%.
É importante ressaltar que, nos recém-nascidos,
a hipotermia pode representar sinal ainda mais im-
portante do que febre e nos lactentes menores de três
Características clínicas meses não há relação bem-estabelecida entre a inten-
para avaliação da FSSL sidade da temperatura e o risco de má evolução.
A boa resposta a antipiréticos não indica um menor
risco de infecções bacterianas graves, ou seja, a crença
popular de que a febre que não cede com antitérmicos é
sinal de gravidade não tem fundamento científico.
Idade
Devemos ter muita atenção na avaliação e acom-
panhamento de lactentes com quadros febris. Um al-
goritmo bem- elaborado deve ser aplicado na avaliação História e exame físico
e seguimento de lactentes com quadros de FSSL. Esses A história e o exame físico são muito valiosos na
lactentes são tradicionalmente divididos em três sub- avaliação da criança febril. A literatura internacional,
grupos: neonatos (do nascimento até 28 dias de vida), principalmente a americana, adota a temperatura re-
lactentes jovens (comumente definidos como lacten- tal, considerada mais precisa para aferir a temperatura

SJT Residência Médica – 2016


286
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

interna do organismo. A medida da temperatura bucal foram criadas várias escalas de observação clínica, que
(também preferida pelos americanos, mas que não é procuram identificar as crianças com doença bacteria-
fácil em crianças e acarreta algum risco) também pode na grave. A mais conhecida é a Escala de Observação
ser utilizada. Em nosso meio, o método universalmen- de Yale. Na prática clínica diária, as escalas não têm
muita utilidade, e a grande questão é saber se o pedia-
te aceito e culturalmente incorporado é a medida da tra consegue identificar, através de sua avaliação clíni-
temperatura axilar, que, embora não seja tão precisa ca, as crianças com bacteremia. Uma vez que apenas
como a retal, satisfaz plenamente para propósitos clí- a avaliação clínica não é suficiente, foram avaliados
nicos. Como citamos inicialmente, nos serviços pediá- diversos exames laboratoriais inespecíficos como tria-
tricos em nosso meio, estabelecemos um valor de 37,8 gem para identificação das crianças febris com doença
ºC de temperatura axilar, a partir do qual se determina bacteriana grave ou bacteremia.
que a criança está com febre.
Anamnese dirigida à queixa de febre:
1. Idade: determinar a faixa etária (atenção para
Indicações de
a faixa de risco). investigação imediata
2. Intensidade da febre: procurar saber se ela 1. Faixa etária de risco: recém-nascido (inves-
chegou a 39,5 ºC ou se ocorreu hipotermia (abaixo de tigação obrigatória), dois primeiros meses de vida
36 ºC). (investigação recomendada) e terceiro mês de vida
3. Associação de febre com tremores de frio (di-
(desde que a impressão geral seja satisfatória, é acei-
tável manter em observação atenta). A partir dos três
ferenciar de simples calafrios ou abalos musculares).
meses, são válidos a observação e acompanhamento
4. Apetite; diminuição evidente. ambulatoriais frequentes.
5. Alterações de comportamento: irritabilidade 2. Febre maior que 39,4 ºC, especialmente se
acentuada, sonolência exagerada, apatia, choro incon- acompanhada de tremores de frio, sugere infecção
solável, choramingação, alucinações, gemência. Per- bacteriana/ bacteremia. Suspeitar também em casos
guntar também se após a diminuição da febre com o de temperatura abaixo de 36 ºC em crianças abatidas.
uso de antipiréticos ocorreu uma melhora evidente da 3. Estado infeccioso/toxêmico acentuado: má im-
disposição ou a criança permaneceu abatida. pressão geral, aspecto abatido, inapetência, irritabili-
6. Outros sintomas localizatórios: coriza, secre- dade alternada com sonolência, letargia, apatia, fácies
ção nasal, espirros, tosse, chiado e falta de ar, vômitos de sofrimento, choro inconsolável ou choramingas,
e diarreia e cefaleia. gemência (sinal de alarme) e a disposição da criança.
7. Duração do episódio febril: febre contínua ou 4. Duração da febre maior que 3 dias (mais de 72
picos febris isolados. horas), contados com a maior precisão possível a par-
tir do momento presumido do início da febre.
Além dos sintomas recentes, perguntar na ana-
mnese sobre vacinação, exposição recente a doenças
infectocontagiosas e histórico neonatal. Se a criança
recebeu vacinas apropriadas, ela tem um risco menor
para infecções bacterianas graves.
Características
laboratoriais para
avaliação da FSSL
Aspecto clínico geral
A criança toxemiada apresenta um risco aumen-
tado bem-estabelecido para infecção bacteriana grave.
Portanto, sinais de má perfusão e choque hemodinâ-
mico (hipotensão, taquicardia, oligúria), hiporreati- Hemograma
vidade, alteração do nível de consciência, taquipneia, A contagem total de leucócitos é o exame mais
esforço respiratório aumentado e distúrbios da coagu-
utilizado, tanto para orientações sobre a necessidade
lação devem encaminhar o paciente para tratamento
e investigação de sepse severa, mesmo não havendo de novos exames quanto para decisões terapêuticas.
sinal de localização infeccioso clinicamente detectável. Há uma forte associação, diretamente propor-
Nesses casos, o diagnóstico presumível de sepse deve cional, entre o número total de leucócitos no hemo-
ser considerado e a criança tratada como tal. Esse tra- grama e a chance de bacteremia. Utiliza-se geralmente
tamento inclui, além das medidas de suporte, coleta
de hemocultura, urocultura, liquor e introdução de an- o número de 15.000/mm3 para separar as crianças com
tibioticoterapia empírica inicial. Entretanto, a maio- FSSL em alto e baixo riscos. A leucopenia (< 5.000/
ria das crianças com FSSL não está toxemiada, e para mm3) também é considerada sinal de gravidade, prin-
auxiliar o pediatra e tornar a avaliação mais objetiva cipalmente nos primeiros meses de vida.

SJT Residência Médica – 2016


287
28 – Urgências pediátricas - febre sem sinal localizatório

Quando o número total de leucócitos é menor A análise do sedimento urinário isolada, sem
que 10.000/mm3 a taxa de bacteremia é de 1,2%, mas cultura, nem sempre afasta ITU. Até 20% das infec-
se for maior que 20.000/mm3 essa taxa sobe para ções urinárias documentadas por cultura podem ter
11,5%. Uma criança com glóbulos brancos entre 5.000 urina tipo 1 falso-negativa na fase inicial.
e 15.000/mm3 tem probabilidade de 97% de não ter
bacteremia, ou seja, nessa faixa o leucograma tem va- O número de leucócitos no exame de urina é
lor preditivo negativo de 97%. considerado normal se menor do que 5/campo ou
10.000/mL. Além do número de leucócitos, a detec-
A contagem total de neutrófilos > 10.000/mm3
e/ou de neutrófilos jovens > 500/mm3 também está ção indireta da presença de bactérias por teste de
associada a doença severa. conversão de nitrito positivo geralmente tem especi-
ficidade boa e baixa sensibilidade.
A sondagem uretral e a punção suprapúbica são
Provas de atividade inflama- os métodos de escolha para coleta de urina. O saco
coletor, apesar de mais prático e menos doloroso,
tória (provas de fase aguda) implica risco de falso-positivo por contaminação de
Valores de VHS (velocidade de hemossedimen- 12% a 83%. Em geral, o isolamento de bactéria única
tação) acima de 25 a 30 mm/h estão correlacionados por saco coletor bem aplicado ou por jato médio com
com a presença de bacteremia oculta. Entretanto, o mais de 100.000 UFC/mL é considerado ITU. Por
VHS não é mais útil do que a contagem total de leu- sondagem vesical, o número de colônias que sugere
cócitos. A proteína C quantitativa (PCR) é considerada positividade deve ser superior a 10.000 ufc/mL. Na
mais bem indicada que a contagem de leucócitos e de punção suprapúbica, qualquer número de unidades
neutrófilos, e ainda melhor que a VHS. Níveis supe- formadoras de colônia encontrado é considerado po-
riores a 40 mg/L são sugestivos de bacteremia, mas
sitivo para ITU.
seu papel na detecção de bacteremia oculta, na criança
com FSSL, não está estabelecido. Concentrações me-
nores de 5 mg/dL excluem infecção bacteriana grave.
As citocinas também já foram estudadas como marca-
dores de doença bacteriana grave.
Radiografia (raio X) de tórax
De maneira geral, considera-se não necessária
Hemocultura a realização de raio X de tórax na avaliação de todas
as crianças com FSSL, porque muitos estudos encon-
Sua realização é útil em casos selecionados de traram baixa incidência de pneumonia em crianças
alto risco, mas não necessária de rotina. O diagnóstico com febre e sem sinais e/ou sintomas de doença
de bacteremia oculta baseia-se na hemocultura. Quan-
respiratória. Por outro lado, na presença de taquip-
do indicada, deve ser obtida apenas uma amostra com
técnica de coleta adequada. Mais de uma amostra não neia e outros sinais ou sintomas respiratórios, ou na
se faz necessária. Hemocultura falso-negativa pode criança toxemiada, o raio X de tórax é obrigatório.
ser encontrada em crianças que estejam recebendo Frequência respiratória maior que 50 por minuto em
antibioticoterapia prévia. menores de seis meses de idade ou maior que 42 por
minuto em crianças de seis meses a dois anos é con-
siderada uma boa indicação.
Urina tipo 1 e urocultura (na Entretanto, alguns estudos recentes relatam
taxas relativamente altas de pneumonia oculta em
avaliação da FSSL) crianças sem sinais e sintomas respiratórios quando
A prevalência de ITU em crianças de dois meses a a contagem total de leucócitos é maior que 20.000/
dois anos com FSSL é de aproximadamente 3% a 7%, mm3. Em crianças abaixo de cinco anos, com tempe-
sendo a infecção bacteriana mais comum como causa ratura maior ou igual a 39 ºC e leucocitose maior ou
de febre em menores de 3 meses. Os sintomas de ITU igual a 20.000/mm3, foi reportada pneumonia oculta
em lactentes geralmente são inespecíficos e incluem em 26% dos casos de FSSL. Portanto, também nessa
vômitos, diarreia, febre, irritabilidade e recusa ali-
situação, o raio X de tórax deve ser obrigatoriamente
mentar. Uma história de choro ao urinar ou cheiro po-
dre da urina aumentam a especificidade das queixas. solicitado.

Sendo o diagnóstico clínico pouco preciso e a ITU Usualmente, nas crianças maiores de três meses
uma infecção bacteriana prevalente e potencialmente de idade com temperatura menor do que 39 ºC e sem
grave na faixa etária pediátrica, são importantes a uti- sinais clínicos de doença pulmonar, o raio X de tórax
lização e a interpretação adequadas de meios laborato- não é realizado, já que se houvesse infecção pulmo-
riais de diagnóstico. nar seria identificada clinicamente.

SJT Residência Médica – 2016


288
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Exame de liquor Toxemia presente


Indicado em todos os casos de febre sem causa Toda criança febril, < 36 meses e com aspecto
aparente no recém-nascido, e fortemente considera- toxêmico deve ser hospitalizada, investigada para sep-
do nas crianças febris e toxemiadas, ou com alteração se e tratada com antibióticos com cobertura para sis-
neurológica ou de sensório. tema nervoso central. Portanto, colher HMG, HMC,
U1, UC, LCR, realizar raio X de tórax e introduzir, por
exemplo, ceftriaxona. É evidente que, na prática, se o
resultado da U1 ou raio X de tórax demonstrarem o
Conduta foco preciso da sepse, será desnecessário prosseguir
com coleta de LCR em crianças sem sinais meníngeos
e fora do período neonatal.
A associação de critérios clínicos e achados la-
boratoriais resultou na elaboração de critérios de gra-
vidade e protocolos de manejo de crianças febris em
diferentes faixas etárias até 36 meses. Os protocolos
têm como finalidade auxiliar o pediatra em várias de- Recém-nascidos (crianças até
cisões difíceis: quando colher exames laboratoriais;
quais exames colher; iniciar ou não antibioticotera-
28 dias de vida)
pia expectante; observar o paciente dentro ou fora do Todo RN com FSSL presumivelmente tem doen-
hospital. Os critérios mais divulgados são os de ça bacteriana grave e deve ser internado com coleta
Rochester, para crianças menores de 60 dias de de exames completos (hemograma, hemocultura, co-
vida. O critério de Rochester procura separar os lac- leta de liquor com quimiocitológico e cultura, urina
tentes jovens em dois grupos: alto risco e baixo risco 1 e urocultura) e introdução de antibiótico empírico,
para presença de doença bacteriana grave na vigência por exemplo, penicilina e amicacina ou cefotaxima
de FSSL. A criança abaixo de 60 dias de vida, para ser (nos primeiros 15 dias de vida) ou ceftriaxona (após
considerada de baixo risco, deve preencher todos os 15 dias de vida), até o resultado das culturas. Uma al-
critérios. Se a criança não preencher apenas um desses ternativa é manter o recém-nascido hospitalizado, em
critérios já será considerada de alto risco. observação e sem antibioticoterapia até o recebimen-
Critério de Rochester para avaliação de risco em to das culturas.
crianças febris < 60 dias
Um lactente febril ≤ 60 dias é de baixo risco para infecção
bacteriana grave se corresponde aos seguintes critérios:
Aparenta estar bem
Estava previamente sadio, definido como: Lactentes jovens
€€ nasceu a termo (≥ 37 semanas de gestação) (29 a 90 dias)
€€ não recebeu antibioticoterapia perinatal Nessa faixa etária, tenta-se dividir os pacientes
€€ não ficou hospitalizado além de sua mãe em lactentes de baixo e alto riscos, utilizando os cri-
€€ não foi tratado para hiperbilirrubinemia inex- térios de Rochester. Para isso, deve-se avaliar os se-
plicada guintes parâmetros, colhendo antes HMG e U1:
€€ não recebeu nem está recebendo antibiótico €€ Sem antecedentes patológicos.
€€ não esteve previamente hospitalizado €€ Sem prematuridade ou peso de nascimento <
2.000 g.
€€ não tem doença crônica ou subjacente
Não tem evidência de infecção de pele, partes mo-
€€ História neonatal sem intercorrências.
les, ossos, articulações ou ouvido, no exame físico €€ Sem patologias de base ou imunodeficiências.
Tem os seguintes valores laboratoriais: €€ Não toxemiado, boa aparência.
€€ Contagem absoluta de bastonetes < 1500/ mm3
€€ Leucograma de 5.000 a 15.000/mm3 (Neutrófi-
€€ ≤ 10 leucócitos por campo de grande aumen- los jovens < 1.500/mm3).
to (X40) à microscopia de sedimento de urina
€€ U1 normal.
€€ ≤ 5 leucócitos por campo de grande aumento (X40) €€ Não está recebendo antibióticos.
à microscopia de fezes, em crianças com diarreia Caso a avaliação do lactente responda sim a to-
dos esses critérios, classifica-se o paciente em baixo
Tabela 28.2 risco e a conduta pode ser a de realizar observação

SJT Residência Médica – 2016


289
28 – Urgências pediátricas - febre sem sinal localizatório

domiciliar, orientando sinais de alerta e sintomáti- tações, observar em domicílio e reavaliar diariamente
cos, com reavaliação médica obrigatória em 12 a 24 checando culturas (HMC e UC); ou, no caso de vaci-
horas. Isso somente será viável se o grau de com- nação completa, comprovada, para hemófilo tipo B e
preensão e o nível socioeconômico da família forem pneumococo conjugada, pode-se optar pela mesma
satisfatórios e se houver recursos para retorno em
conduta sem a introdução de antibiótico, já que o risco
tempo hábil ao serviço de saúde em caso de piora do
de bacteremia é menor. A punção lombar para coleta
quadro. Caso contrário, a observação deverá ser em
ambiente hospitalar. de liquor fica sujeita a julgamento clínico.

O lactente jovem com FSSL é considerado de alto Na reavaliação, se a criança estiver bem e afe-
risco se não preencher os critérios de Rochester. Este bril, checar culturas; se negativas, suspende-se
necessita ser internado com introdução de antibiótico o antibiótico. Se a hemocultura for positiva para
e ampliação da investigação com hemocultura, urocul- pneumococo, terminar o tratamento com penicili-
tura, coleta de LCR e raio X de tórax. na ou amoxicilina via oral. No caso de o paciente
Nos lactentes de baixo risco, há ainda as opções apresentar febre prolongada persistente, com evo-
de internação desde a apresentação com antibiótico lução desfavorável ou com hemocultura positiva
empírico ou de colher investigação laboratorial com- para meningococo, hemófilo ou outro agente que
pleta e administrar ceftriaxona 50 mg/kg/dia intra- não pneumococo, opta-se por internação, nova co-
muscular (IM), com observação domiciliar e reavalia- leta de hemocultura e antibiótico direcionado para
ções diárias com checagem de culturas.
os antibiogramas das culturas colhidas.

Resumo
Crianças de 3 a 36 meses
FSSL Febre sem etiologia definida após his-
Separa-se esse grupo de pacientes com FSSL em tória e exame físico cuidadosos, com
febre alta e baixa, tendo como limite a temperatura início há menos de 7 dias
axilar de 39 ºC. Nas crianças com febre < 39 ºC e bom
estado geral são orientados os sinais de alerta, sinto- Bacteremia Presença de bactéria no sangue (em
oculta (BO) hemocultura) de uma criança em boa
máticos e reavaliação em caso de persistência da febre
aparência e com FSSL
em 24 horas.
Principal agen- Streptococcus pneumoniae (70% – 85%)
Nos casos classificados como febre alta, inicia-
te nas BO
-se a investigação por coleta de U1 e UC. Se a leucoci-
túria > 100.000/mL, diagnostica-se ITU, administra- Avaliação clí- Idade: inversamente proporcional
-se antibiótico adequado e a cultura deve ser checada. nica da FSSL – Febre: diretamente proporcional (com-
Se U1 com < 100.000 leucócitos/mL, prosseguir, risco de doença provação científica a partir de 3 meses
investigação da FSSL com coleta de HMG. bacteriana gra- de idade)
ve e BO Estado geral: toxemia indica gravi-
Com os dados do leucograma, é possível avaliar dade
outro parâmetro de risco, ou seja, se leucócitos totais
< 15.000/mm3 e neutrófilos totais < 10.000/mm3, esse Avaliação labo- HMG: leucocitose indica risco
ratorial da FSSL U1 e UC: clínica pouco precisa + ITU
paciente, apesar de apresentar febre alta, tem U1
– risco de do- infecção prevalente – utilização e
normal e HMG sem evidência de leucocitose im- ença bacteriana interpretação adequadas de exames
portante; portanto, pode ser observado em domicílio grave e BO laboratoriais
e reavaliado diariamente, lembrando de checar a uro- Radiografia de tórax: temp ≥ 39 oC e L
cultura colhida no início da investigação. ≥ 20.000 – 26% de pneumonia oculta
Na situação de febre alta, U1 normal ou < Recém-nasci- Faixa etária mais frequente em ques-
100.000 leucócitos/mL e HMG com > 15.000 a dos tões de prova: internação, investiga-
20.000 leucócitos/mm3, colhe-se HMC e solicita- ção e antibioticoterapia inicial
-se raio X de tórax, mesmo sem sinais respiratórios
Tabela 28.3
(26% de pneumonia oculta). Se o raio X estiver alte-
rado, tratar e conduzir como pneumonia. Se o raio X
estiver normal, ainda há risco aumentado de bactere- A seguir, o algoritmo proposto de avaliação de
mia oculta tanto pela temperatura ≥ 39 ºC como pela FSSL em crianças de 0 a 36 meses de idade. Vale lem-
leucocitose. Pode-se optar, nessa última situação, por brar que há vários protocolos de conduta propostos de
administrar ceftriaxona 50 mg/kg/dia IM, dar orien- acordo com cada instituição, e nenhum é perfeito.

SJT Residência Médica – 2016


290
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

Criança de 0 a 36 meses com FSSL

Toxemia

SIM
NÃO (independente da idade)

< 28 dias de idade 28 a 90 dias 3 a 36 meses Internar

HMG, HMC, U1, UC


LCR
Tax. < 39ºC Tax. ≥ 39ºC RX tórax
Internar HMG, U1 e
avaliação de Antibiótico
HMG, HMC, U1, UC risco empírico
LCR U1, UC
RX tórax Antitérmico
PCR Reavaliação em 24h
Baixo Risco Alto Risco
Antibiótico empírico

U1 normal ou leucocitúria
Internar
< 100.000/ml
U1 com leucocitúria >
HMC, UC
Antitérmico 100.000/ml: considerar
LCR
Observação clínica domiciliar ITU e iniciar antibiótico
RX tórax
Reavaliação obrigatória em 12 a 24h HMG
Antibiótico empírico Hemograma normal

Leucócitos > 20.000/mm3 ou


total neutrófilos > 10.000/mm3

Rx alterado: pneumonia
Ceftriaxone 50 mg/kg IM 1 vez/dia Antibiótico
Retorno diário para reavaliação e
checar resultado hemocultura HMC
RX tórax
Rx normal: risco de bacteremia oculta
Considerar LCR
Vacinação para Hib e pneumococo conjugada.
Manter sem antibiótico com observação e Abreviações: HMG-hemograma, HMC-hemocultura, U1-urina
reavaliação obrigatória em 12 a 24 hs tipo 1, UC-urocultura, RX-raio X, LCR - liquor

Figura 28.1  Conduta diagnóstica e terapêutica na criança com FSSL.

Comentários finais
Nos lactentes jovens, os focos infecciosos bacterianos tendem a ampliar-se e apresentar disseminação por via
hematogênica, originando, por vezes, quadros septicêmicos e acometimento secundário de outros órgãos. A reper-
cussão sistêmica dos quadros infecciosos é também geralmente mais intensa nos pequenos lactentes. As crianças
dessa faixa etária, quando infectadas, devem merecer um enfoque especial. Para esses lactentes é importante o reco-
nhecimento precoce das infecções, particularmente as bacterianas. Porém, as manifestações clínicas dos pequenos
lactentes acometidos por infecções bacterianas são frequentemente pouco específicas, dificultando seu reconheci-
mento. A febre é descrita como sinalizador sensível para identificação de lactentes com quadros infecciosos de natu-
reza bacteriana (comprovadas em torno de 10% a 20% dos casos). A febre, portanto, não é manifestação específica
de quadro bacteriano nessa faixa etária, em que predominam as infecções virais. O emprego de métodos diagnós-
ticos virais, como o imunoensaio ou a imunofluorescência, de resultado muito mais rápido que as culturas, poderia
elucidar mais precocemente a causa da febre, reduzindo a utilização da antibioticoterapia e a hospitalização. Apesar
de não estarem citados nos protocolos de manejo de lactentes com febre, alguns autores defendem seu emprego.
Foram elaborados vários protocolos para avaliação de lactentes com FSSL . O assunto é bastante complexo, os
resultados dos vários estudos são muitas vezes conflitantes, e a realidade do atendimento das crianças com FSSL
pode ser muito diversa.
A extensão da avaliação, uso de antibioticoterapia empírica, necessidade de exames laboratoriais mais inva-
sivos (como por exemplo a coleta de liquor) e a necessidade de internação hospitalar dependem da faixa etária da
criança, da aparência do paciente (toxemia, irritabilidade, alteração do estado neurológico etc.) e de fatores de risco
baseados na história clínica e no exame físico. É importante ressaltar que nenhuma rotina de atendimento é perfeita
e infalível. Nada substitui a anamnese e o exame físico cuidadosos, o bom senso do médico atendente e as reavalia-
ções em curto prazo (em 18 a 24 horas). A conduta do pediatra também vai depender da condição sociocultural da
família, da sua disponibilidade para trazer a criança para reavaliação e da sua compreensão dos riscos. Cada profis-
sional ou serviço de saúde deve procurar adaptar a conduta ao perfil de seus profissionais e de sua clientela.

SJT Residência Médica – 2016


CAPÍTULO

29
Urgências pediátricas -
convulsão febril

Apesar disso, o consenso do NIH ainda é preferido em


Introdução vários serviços.

A crise febril (CF) é o problema neurológico De qualquer forma, sabe-se que as CF raramen-
mais comum durante a infância. Apesar de entidade te podem ocorrer no lactente novo (antes de 3- 6 me-
primordialmente benigna, que remite espontaneamen- ses) e/ou após os 5 anos de idade. A persistência de
te sem tratamento, gera tensão aos familiares e a alguns CF após os 6 anos, associada ou não a crise afebril,
médicos, às vezes provocando condutas terapêuticas e com remissão espontânea em torno dos 12 anos, é
diagnósticas excessivas e possivelmente iatrogênicas. denominada convulsão febril plus e tem um forte
componente familiar, provavelmente de transmissão
autossômica dominante.
Atualmente, prefere-se a denominação crises
Definição febris, porque elas podem ser convulsivas ou não
convulsivas.
O consenso do National Institute of Health
(NIH), publicado em 1981, conceitua crise febril
como um evento na infância, usualmente entre três
meses e cinco anos de idade, associado a febre, mas
sem evidência de infecção intracraniana ou de outra
Epidemiologia
doença neurológica aguda ou de causa definida para Estudos populacionais nos Estados Unidos
a convulsão, excluindo crianças que já apresentaram (EUA) e Europa mostraram que 2% a 5% das crianças
previamente crises na ausência de febre. apresentam pelo menos uma crise convulsiva febril
Nos últimos anos, a literatura tem apresentado, antes dos cinco anos de idade. A maioria dos casos
como faixa etária para crise febril, a idade entre seis ocorre entre seis meses e três anos, com pico de
meses e cinco anos, e esse intervalo é o adotado na incidência aos 18 meses. Há uma tendência de os
definição da Academia Americana de Pediatria (AAP). casos mais severos surgirem mais precocemente.
292
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

A história familiar de CF pode ser resga-


tada em 25% a 40% dos casos, e a frequência
Simples
de irmãos acometidos é de aproximadamente As crises simples ocorrem entre 70%-80% dos
9% a 22%. casos e devem ser:
€€ crise generalizada, sem períodos focais;
€€ com duração menor do que 15 minutos;
€€ sem recorrência nas próximas 24 horas ou den-
Fisiopatologia tro da mesma doença febril;
€€ apresentação pós-ictal com rápida recuperação da
Acredita-se que o desencadeamento da convulsão
consciência e sem alterações neurológicas focais.
pela febre esteja associado à imaturidade natural do cé-
rebro, que apresenta um limiar mais baixo de resistên-
cia à hipertermia e excitabilidade neuronal elevada.
A elevada frequência de antecedentes familiares Complicada (complexa)
e a maior concordância em irmãos monozigóti- As crises complexas ou complicadas ocorrem em
cos, comparada aos dizigóticos, sugerem uma con- 20%-30% dos casos e devem ter um ou mais dos se-
tribuição genética. O modo de herança não é claro, e guintes parâmetros:
há estudos evidenciando ligação com vários cromos- €€ crise de início focal ou de padrão focal durante
somos, por exemplo, o cromossomo 19p. A maioria qualquer período do evento;
dos estudos sugere herança autossômica dominante,
€€ duração maior do que 15 minutos;
com baixa penetrância e expressão variável, ou he-
rança poligênica. €€ recorrência nas primeiras 24 horas do processo
febril ou durante a mesma doença;
Não há consenso na literatura sobre o papel da
velocidade de aumento ou do valor atingido da tem- €€ alterações neurológicas focais ou prolongadas
peratura na crise febril. Estudos em animais sugerem no pós-ictal.
um papel dos pirogênios endógenos, como a interleu- O estado de mal epiléptico febril é responsável
cina-1, influenciando na excitabilidade neuronal. por 25% de todos os episódios de estado de mal epi-
léptico em crianças, e até 4% das crises febris evoluem
para esse quadro.
Clínica
As infecções mais comumente associadas à crise
febril são as de vias aéreas superiores, otites, pneu-
monias, gastroenterites e infecções do trato urinário,
sendo os quadros virais mais comuns que os bacte-
rianos. Isso provavelmente reflete a frequência geral
dessas doenças na infância como geradoras de febre.
Salienta-se uma associação com o herpesvírus tipo 6
causador do exantema súbito.
A crise febril em geral ocorre durante o primei-
ro dia de febre, algumas vezes após elevação súbita
da temperatura e usualmente associada a febre alta.
Quando a convulsão ocorre após o primeiro dia de Figura 29.1  Crise tônico-clônica.
doença febril, deve-se atentar para outras hipóteses
diagnósticas.
Clinicamente, costuma se manifestar por crise
epiléptica generalizada, bilateral, de curta duração,
tipo tônico-clônica, clônica ou esporadicamente tôni-
História natural
ca, seguida de discretas e breves manifestações neu- Trata-se de entidade benigna. A maioria dos
rológicas pós-ictais (sonolência, vômitos, cefaleia). As estudos populacionais não mostrou associação com
crises mioclônicas e os espasmos infantis não são con- desenvolvimento de déficits neurológicos, cognitivos
siderados manifestações das CF. e de memória, mesmo tratando-se de eventos compli-
As crises febris são classificadas, quanto às carac- cados e nos casos de mal epiléptico. Não há maior risco
terísticas, tipicamente em crises simples e complexas. de mortalidade nessas crianças.

SJT Residência Médica – 2016


293
29  Urgências pediátricas - convulsão febril

São descritas como fatores de risco para de- plenomegalia, falência de crescimento, regressão de
senvolver uma primeira crise febril: a presença DNPM) ou de síndromes neurocutâneas e para o ta-
de uma desordem neurológica não epiléptica de base manho da circunferência da cabeça.
e uma história familiar positiva para CF em parentes Quanto à investigação laboratorial, os exames
de primeiro e segundo graus. Prematuros, alta tardia de sangue de rotina não são recomendados, a menos
da unidade de terapia intensiva neonatal e atraso de que por motivos da doença intercorrente. A coleta de
desenvolvimento neuropsicomotor parecem também liquor deve ser realizada na presença de sinais menín-
aumentar esse risco. geos. Como esses sinais são menos sensíveis em crian-
Após o primeiro episódio de crise febril, 2% a 4% ças jovens, há uma forte recomendação de coleta de
das crianças terão pelo menos um episódio de convul- LCR para todos os menores de um ano de idade; entre
são não provocada, um risco discretamente maior de 12 e 18 meses é recomendada, e acima de 18 meses
desenvolver epilepsia que o da população geral, que é fica a critério clínico do médico acompanhante. A pun-
de 1%. Visto de outra perspectiva, aproximadamente ção lombar deve ser fortemente considerada quando
13% a 19% das crianças com crises afebris têm antece- houver uso prévio de antibióticos (pode mascarar os
dente de convulsão febril. sintomas), pós-ictal com alteração neurológica pro-
O risco de desenvolver epilepsia é maior se a longada, nas crises (complicadas) focais, múltiplas e
crise tiver sido complicada, se houver história familiar prolongadas, e quando há história de irritabilidade ou
de epilepsia e o surgimento precoce de alterações no toxemia ao exame.
desenvolvimento neuropsicomotor (DNPM). O eletroencefalograma não está indicado de
O risco de recorrência da convulsão febril é rotina. Não há correlação entre a presença de altera-
de cerca de 30%, sendo que mais da metade das ve- ções irritativas, que ocorrem em normalmente 3% da
zes ocorre no primeiro ano após o episódio inicial e população, e maior incidência de recidivas. Não deve
mais de 90% dessas recorrências ocorrem dentro de ser utilizado para identificar anormalidades estrutu-
dois anos. O número de recorrências está geralmente rais ou para prever recorrências e epilepsia.
limitado a dois ou três episódios. Dentre os fatores de Exames de neuroimagem não são indicações de
risco, as crianças com menos de um ano de idade pa- rotina nas crises febris simples e nem em todas as crises
recem ser, isoladamente, os casos mais prováveis de complicadas. Deve ser considerada nos seguintes casos:
recorrência. Outros fatores relevantes são: história €€ Micro ou macrocefalia, suspeita de síndrome
familiar de crise febril em parentes próximos, crises neurocutânea, deficiência neurológica pregres-
complicadas com mais de um episódio convulsivo na sa não esclarecida ou investigada.
mesma doença, evento ocorrido em vigência de febre €€ Pós-ictal com alterações neurológicas persistentes.
baixa e logo no início da patologia febril.
€€ Crises complexas recorrentes.
Especificamente no estado de mal epiléptico fe-
bril, não há predisposição para recorrência, desenvol-
€€ Suspeita de hipertensão intracraniana.
vimento de epilepsia ou sequelas. A ressonância magnética é superior à tomografia
Algumas síndromes epilépticas na infância apre- computadorizada, especialmente se houver um qua-
sentam relação com a convulsão febril. Na epilepsia dro inflamatório ou estrutural subjacente.
tipo ausência, encontra-se antecedente positivo em
15% a 25% dos casos; na epilepsia parcial benigna
verifica-se tal antecedente em 9% a 20% dos casos.
Quanto à epilepsia do lobo temporal, há uma relação
Tratamento
controversa baseada em estudos retrospectivos, mos-
trando que até 40% desses casos têm antecedentes de
prolongadas crises febris complicadas.

Avaliação do paciente
Deve ser obtida uma história detalhada, enfati-
zando-se antecedentes familiares de crises febris e de
epilepsia. Deve-se descrever completamente o episódio e
excluir outros diagnósticos como intoxicações exógenas.
No exame físico, atentar para evidência de in-
fecção do sistema nervoso central (SNC), alterações Figura 29.2  Criança de 18 meses com crise complexa
neurológicas, sinais de doença metabólica (hepatoes- registrada no vídeo-EEG.

SJT Residência Médica – 2016


294
Pediatria geral, emergências pediátricas e neonatologia

possível recorrência e, especificamente, que quando a


Tratamento da crise aguda crise durar mais de 5 minutos uma ambulância deverá
Deve ser conduzida como qualquer outra crise ser chamada.
epiléptica na fase aguda. A maioria dos eventos remite Baseada nos riscos e benefícios do uso de anticol-
espontaneamente em poucos minutos. vulsivantes, nem a terapia intermitente, nem a con-
Realizar as medidas básicas de suporte de vida tínua são recomendadas, rotineiramente, pela Acade-
(ABCDE), tratar simultaneamente a febre e a convul- mia Americana de Pediatria, nas crianças com um ou
são. As drogas anticonvulsivantes de escolha são os mais episódios de crise febril simples.
benzodiazepínicos, como o diazepam na dose de 0,3
mg/kg/dose via endovenosa ou 0,5 mg/kg/dose via re-
tal e o midazolam de 0,1 a 0,3 mg/kg/dose endovenoso,
intranasal ou intramuscular. O diazepam tem absorção
errática por via intramuscular e não deve ser usado por Diagnóstico diferencial
essa via. Essas medicações podem ser utilizadas, no má-
ximo, 2- 3 vezes com intervalo de 5 minutos. Nas crises Outros eventos podem mimetizar uma crise epi-
não responsivas aos benzodiazepínicos, utiliza-se nor- léptica, incluindo síncopes, convulsões anóxicas refle-
malmente a fenitoína ou o fenobarbital. xas, apneias e crises de birra. Estas devem ser escla-
recidas e diferenciadas através de uma história clínica
bem colhida.
É importante excluir:
Tratamento profilático €€ infecções do SNC;
Contínuo: preconiza a administração diária de €€ síndrome epiléptica em crise;
drogas antiepilépticas (DAE), como o fenobarbital e o €€ acidente vascular cerebral;
ácido valproico, por um período de seis meses a dois
€€ doenças neurológicas agudas;
anos. Pode provocar efeitos colaterais severos, como
déficit de aprendizado e cognitivo, especificamente €€ trauma;
com o fenobarbital. A Academia Americana de Pedia- €€ intoxicações exógenas (anticolinérgicos, teofili-
tria não recomenda esse tipo de profilaxia nas crises na, cocaína).
febris simples ou complexas. Não há evidência convin-
cente de que o uso regular de antiepilépticos reduza de
forma significativa o risco de recorrência ou de desen-
volvimento de epilepsia.
Intermitente: utilização de drogas na vigência Síndrome de West
de febre ou no início de doenças que possivelmente
Também chamada de Espasmos Infantis, essa
serão febris. Diazepam via retal ou oral 0,3 mg/kg/
síndrome é caracterizada por uma tríade composta
dose ou clobazam via oral 1 mg/kg/dia (até máximo
de um tipo específico de crise (espasmos em salvas),
de 20 mg/dia). Considerada nos casos de aparente li-
retardo mental e alterações eletroencefalográficas
miar convulsivo baixo e de crises muito recorrentes
(EEG) características chamadas de hipsarritmias.
e prolongadas. Leva em conta que a possibilidade de
recorrência gera tensão e problemas familiares, bem O início geralmente é por volta de quatro a oito me-
como pode provocar traumas e evoluir para mal con- ses de idade, e as crises costumam acontecer ao despertar
vulsivo, fatores que devem ser discutidos em consul- ou ao adormecer. Em aproximadamente 20% dos casos,
ta, caso a caso. a etiologia é criptogênica e em 80% pode ser identifica-
da uma causa diretamente relacionada. A encefalopatia
Os benzodiazepínicos intermitentes podem pro- hipóxico-isquêmica, as infecções congênitas, os erros
vocar sonolência, ataxia e hiporresponsividade duran- inatos do metabolismo e as infecções do SNC podem re-
te eventos febris, o que pode atrapalhar a avaliação presentar causas de espasmos infantis sintomáticos.
médica. Há uma evidência controversa a respeito da
Os espasmos podem ser flexores, extensores
eficiência da profilaxia intermitente com diazepam em
ou mistos, sendo esse último o padrão mais comum.
prevenir convulsões recorrentes, porém o conceito ge-
Apesar de o padrão em flexão puro não ser o mais fre-
ral é de que possa ser útil.
quente, é o tipo de convulsão característica da síndro-
Sem DAE: seguimento ambulatorial com orien- me de West. Uma contração em flexão simétrica breve
tações gerais e sobre o uso adequado de antitérmicos e repentina do pescoço, tronco e membros é típica e
tranquilizará os familiares. Orientar como agir numa ocorre em séries ou em salvas.

SJT Residência Médica – 2016


295
29  Urgências pediátricas - convulsão febril

Resumo
Crise febril
Definição Idade: 3 meses a 5 anos, AAP de 6 meses
a 5 anos. Associado a febre
Sem evidência de infecção intracraniana
ou de outra doença neurológica aguda ou
de causa definida para a convulsão
Exclusão: antecedentes de crises neona-
tais ou na ausência de febre
Classificação Simples – generalizada, não focal, < 15
minutos, sem recorrência, sem altera-
ções neurológicas no pós-ictal
Complicada – focal ou de padrão focal
Figura 29.3  Crise típica da síndrome de West. durante qualquer período do evento, >
15 minutos, recorrente no mesmo pro-
cesso febril, alterações neurológicas fo-
A maioria das DAE é ineficaz no tratamento, mas cais ou prolongadas no pós-ictal
costumam ser introduzidas drogas como o ácido val- Exames LCR- na presença de sinais meníngeos,
proico, vigabatrina e benzodiazepínicos. A medicação de diagnósticos < 1 ano de idade; entre 12 e 18 meses é
eleição na síndrome de West continua sendo o hormô- recomendada e > 18 meses fica a critério
nio adrenocorticotrófico (ACTH), que diminui os níveis clínico do médico acompanhante. Forte-
mente considerado uso prévio de antibi-
do hormônio liberador da corticotrofina (CRH), o qual óticos no pós-ictal com alteração neuroló-
parece ter papel na gênese da síndrome. O prognóstico gica prolongada, nas crises (complicadas),
é reservado, e a maioria dos casos evolui para sequelas irritabilidade ou toxemia ao exame
graves motoras e cognitivas, sendo melhor nos casos EEG- não está indicado de rotina.
Neuroimagem- não são indicados de
criptogênicos. Com o uso de ACTH, pode haver melhora rotina. Considerada:
das crises em cerca de 60% dos casos. micro ou macrocefalia, suspeita de síndro-
me neurocutânea, deficiência neurológica
pregressa não esclarecida ou investigada;
pós-ictal com alterações neurológicas
persistentes;
Epilepsia rolândica crises complexas recorrentes.
A ressonância magnética é superior à
A epilepsia benigna da infância, com paroxismos tomografia computadorizada se houver
um quadro inflamatório ou estrutural
centrotemporais (epilepsia benigna rolândica), é do subjacente.
tipo parcial e tem um excelente prognóstico. Caracte- Prognóstico Fatores de risco para desenvolver 1ª
riza-se por manifestações clínicas típicas, achados no crise febril:
EEG de focos rolândicos e pela ausência de uma lesão desordem neurológica não epiléptica de
neuropatológica. base;
história familiar próxima de convulsão
Ocorre entre 2 e 14 anos de idade, sendo mais febril;
comum iniciar entre 9 a 10 anos, em crianças previa- febre alta e rápido aumento da temperatura.
mente hígidas e muitas vezes com história familiar de Fatores de risco para desenvolver epilepsia:
epilepsia. As crises são de curta duração (1 a 2 minu- crise complicada;
história familiar de epilepsia;
tos), parciais simples, com sintomas motores e sen- alterações no DNPM.
soriais geralmente confinados à face. Fatores de risco de recorrência (30%):
Os eventos acontecem predominantemente à < 1 ano de idade;
noite, após poucas horas de sono. Os sintomas oro- história familiar de convulsão febril em
parentes de 1º e 2º graus;
faríngeos costumam ser de parestesia da língua, dor- crises complicadas;
mência unilateral da bochecha, dificuldade na fala, crise com febre baixa e logo no início da
ruídos estranhos e salivação excessiva. Pode haver patologia febril.
contraturas unilaterais tônico-clônicas da parte infe- Tratamento Crise: ABCDE, diazepam; não adminis-
rior da face e movimentos clônicos ou parestesias dos trar antiepilépticos no pós-ictal
Profilático:
membros ipsilaterais.
contínuo: em desuso;
O EEG é muito sugestivo, com descargas de gran- intermitente: considerar risco de recor-
de amplitude na região centrotemporal. O tratamen- rência e aceitação familiar;
to normalmente é introduzido para os casos com re- sem drogas: preferido.
Síndrome de West
corrência frequente, e as crises costumam responder
Espasmos em salvas, retardo mental, hipsiarritmias
muito bem às DAE. A evolução é benigna, e geralmen- Tratamento – ACTH
te desaparece na adolescência sem deixar distúrbios
neurológicos. Tabela 29.1

SJT Residência Médica – 2016


referências
1. Behrman RE, Kliegman R, Jenson HB. Nelson: tratado 11. Fölster-Holst R, Kreth HW: Viral exanthems in
de pediatria. 18ª. ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2009. childhood – infectious (direct) exanthems. Part 1: classic
exanthems. J. Dtsch Dermatol. Ges. 2009; 7: 309–316
2. Behrman RE, Jenson HB, Marcdante KJ, Kliegman RM.
Nelson Essentials of Pediatrics. 5th ed. Philadelphia: 12. Fölster-Holst R, Kreth HW: Viral exanthems in
Elsevier Saunders; 2006. childhood – infectious (direct) exanthems. Part 2: other
viral exanthems. J. Dtsch Dermatol. Ges. 2009; 7: 414–419
3. Bruckner R, Rocker J. Car safety. Pediatrics in Review.
30(12); 2009. 13. Global Strategy for Asthma Management and
Prevention (2016 update). Disponível em: http://
4. Carvalho, LHF, Wecks LY. Universal use of inactivated ginasthma.org/2016-gina-report-global-strategy-for-
polio vaccine. J Pediatr (Rio J). 82 (Suppl 3):S75-82; 2006.
asthma-management-and-prevention/
5. De Onis M, Garza C, Onyango AW. WHO Child Growth
Grisi SJFE, Escobar AMU. Prática pediátrica. 2ª ed. São
Standards. Acta Paediatrica. 95(450); 2006.
Paulo: Atheneu; 2007.
6. De Onis M, Garza C, Victora CG, et al. The WHO
14. Hall CB. Seasonal influenza vaccination in children:
Multicentre Growth Reference Study (MGRS): rationale,
Prevention with vaccines. UpToDate (on-line); 2010.
planning, and implementation. Food and nutrition
[citado em 20 jan 2015]. Disponível em: http://www.
bulletin. 25(1): S1-S45; 2004.
uptodate.com/online/content/topic.do?topicKey=pedi_
7. De Onis M, Onyango AW, Borghi E, et al. Development id/10944&view=print
of a WHO growth reference for school-aged children and
adolescents. Bulletin of the World Health Organization. 15. Issler H. O aleitamento materno no contexto atual:
85:660-7; 2007. políticas, prática e bases científicas. São Paulo: Sarvier; 2008.

8. Farhat CK, Wecks LY, Carvalho LHF, Succi RCM. 16. Kellogg N. Committee on Child Abuse and Neglect.
Imunizações: fundamentos e prática. 5ª ed. São Paulo: The evaluation of sexual abuse in children. Pediatrics.
Atheneu; 2008. 116(2); 2005.

9. Fiore AE, et al. Centers for Disease Control and 17. Kiertsman B, Sáfadi MAP. Pneumonias adquiridas na
Prevention (CDC). Prevention and control of influenza comunidade em pediatria. Pediatria moderna. Ano XLI.
with vaccines: recommendations of the Advisory Nº. 5, setembro/outubro; 2005.
Committee on Immunization Practices (ACIP) 2010,
MMWR Recomm Rep. 59:1; 2010. Kliegman RM, et al. Nelson Textbook of Pediatrics. 18th
ed. Philadelphia: Saunders/Elsevier; 2008.
10. Foote JM, et al. Evidence-based clinical practice
guideline on linear growth measurement of children. Des 18. La Torre FPF, et al. Emergências em pediatria:
Moines (IA): Blank Children’s Hospital; 2009. protocolos da Santa Casa. Barueri: Manole; 2011.
19. Leone C, Bertoli CJ, Schoeps DO. Novas curvas 33. Palma D, Escrivão MAMS, Oliveira FLC. Guia de
de crescimento da Organização Mundial da Saúde: nutrição clínica na infância e na adolescência. Barueri:
comparação com valores de crescimento de crianças Manole; 2009.
pré-escolares das cidades de Taubaté e Santo André. São
Paulo. Revista Paulista de Pediatria. 27(1); 2009. 34. Peden M, et al. World report on child injury
prevention. World Health Organization; UNICEF; 2008.
20. Lopez FA, Campos Jr D. Tratado de Pediatria. 2ª ed. [citado em 20 jan 2015]. Disponível em: whqlibdoc.who.
Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria; Barueri: int/publications/2008/9789241563574_eng.pdf
Manole; 2009.
35. Rego JD. Aleitamento materno. 2ª ed. São Paulo:
21. Mafra D, Cozzolino SMF. Importância do zinco na Atheneu; 2006.
nutrição humana. Revista Nutrição. 17(1):79-87; 2004.
36. Roberts KB, Revised AAP Guideline on UTI in Febrile
22. Marcondes E. (org). Pediatria básica. Tomos 1, 2 e 3. Infants and Young Children. Am Fam Physician. 2012 Nov
9ª ed. São Paulo: Sarvier; 2002. 15;86(10):940-6.

23. Ministério da Saúde (BR). Manual de assistência e 37. Rodrigues J, Silva L, Bush A. Diagnóstico etiológico
controle das doenças diarreicas. 3ª ed. Brasília; 1993. das pneumonias: uma visão crítica. Jornal de Pediatria. p.
129-140. v. 78; novembro/dezembro; 2002.
24. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância
em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. 38. Saito MI, Silva LEV, Leal MM. Adolescência: prevenção
Manual dos centros de referência para imunobiológicos e risco. 2ª ed. São Paulo: Atheneu; 2008.
especiais. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. [citado
em 20 jan 2015] Disponível em: http://bvsms.saude. 39. Schvartsman C, Reis AG, Farhat SCL. Pronto-socorro.
gov.br/bvs/publicacoes/manual_centro_referencia_ Coleção Pediatria. Instituto da Criança Hospital das
imunobiologicos.pdf Clínicas. Barueri: Manole; 2009.

25. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância 40. Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo
em Saúde. Programa Nacional de DST e Aids. Guia de (BR). Comissão Permanente de Assessoramento em
tratamento clínico da infecção pelo HIV em crianças. 3ª Imunizações. Coordenadoria de Controle de Doenças.
ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. [citado em 20 jan. Centro de Vigilância Epidemiológica “Prof. Alexandre
2015]. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/ Vranjac”. Suplemento da Norma Técnica do Programa de
publicacoes/073_03Guia_tratamento.pdf Imunização. Introdução de Novas Vacinas no Calendário
Estadual de Imunizações. São Paulo; 2011. [citado em 20
26. Ministério da Saúde (BR). Sistema de Vigilância jan 2015]. Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.
Alimentar e Nutricional (SISVAN). Curvas de crescimento br/htm/imuni/pdf/imuni10_suple_norma_rev.pdf.
da Organização Mundial da Saúde. [citado em 20 jan 2015].
Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/ 41. Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) (BR).
ape_vigilancia_alimentar.php?conteudo=curvas_de_ Calendários de Vacinação da Criança. 2014/2015. [citado
crescimento. em 20 jan 2015]. Disponível em http://www.sbim.org.br/
vacinacao/
27. Mori R, Lakhanpaul M, Verrier-Jones K (2007) Diagnosis
and management of urinary tract infection in children: 42. Sociedade Brasileira de Pediatria (BR). Tratado de
summary of NICE guidance. Br Med J 335:395–397. Pediatria 2. 3ª ed. Barueri-SP: Manole; 2014.

28. Murahovschi J. Pediatria: diagnóstico e tratamento. 43. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia.
7ª ed. Rio de Janeiro: Sarvier; 2013. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Pneumologia e
Tisiologia para o Manejo da Asma. Jornal Brasileiro de
29. Neinstein LS. Adolescent health care: a practical Pneumologia. 2012; 38(1) disponível em http://www.
guide. 5th ed. Philadelphia: Lippincotti Willians jornaldepneumologia.com.br/detalhe_suplemento.
Wilkins; 2008. asp?id=88

30. Nóbrega FJ, Leone C. (org). Assistência primária em 44. Subcommittee on Urinary Tract Infection, Steering
Pediatria. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989. Committee on Quality Improve-ment and Management
(2011) Urinary tract infection: clinical practice guideline
31. Nóbrega FJ. Distúrbios da nutrição: na infância e na for the diagnosis and management of the Initial UTI in
adolescência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2007. febrile infants and children 2 to 24 months. Pediatrics .

32. Paiva M, Reis F, Fisher G, Rozov T. Pneumonias na 45. Sucupira ACSL, et al. Pediatria em consultório. 5ª ed.
criança. Jornal de Pneumologia. p. 101-108, v. 24 (2); 1998. São Paulo: Sarvier; 2010.
46. Sucupira A. (org). Pediatria em consultório. 4ª ed. São 50. Waksman RD, Gikas RMC. Segurança na infância e
Paulo: Sarvier; 2000. adolescência. São Paulo: Atheneu; 2003.

47. Tullus K. What do the latest guidelines tell us about 51. World Health Organization. Physical status: the
UTIs in children under 2 years of age. Pediatr Nephrol. use and interpretation of anthropometry. Report of
2012 27(4):509-11. a WHO Expert Committee. Technical Report Series
854. WHO, Geneva; 1995. [citado em 20 jan 2015].
48. Vranjac A. Imunoprofilaxia para varicela. Centro de
Vigilância Epidemiológica. São Paulo: Centro de Vigilância Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/trs/WHO_
Epidemiológica Prof. Alexandre Vranjac; 2010. TRS_854.pdf

49. Wagner CL, Greer FR. Prevention of rickets and 52. World Health Organization. The WHO Child Growth
vitamin D deficiency in infants, children and adolescents. Standards. 2011. [citado em 20 jan 2015]. Disponível em:
Pediatrics. 122(5); 2008. http://www.who.int/childgrowth/en/

Anda mungkin juga menyukai