No início de A Condição Humana, Arendt apresenta as “três condições básicas sob as quais
a vida foi dada ao homem sobre a Terra” (ARENDT, 2010, 8): a vida, a mundanidade e a
pluralidade.
Por vida Arendt compreende os homens enquanto ligados às condições biológicas de
existência e dependentes da satisfação de suas necessidades naturais. A mundanidade, em contraste,
trata da condição humana que distancia os homens do pertencimento à natureza: a mundanidade
compreende o homem enquanto construtor e enquanto se movimenta frente a um mundo artificial,
criado a partir da modificação da natureza.
A pluralidade, finalmente, é a condição humana que ecoa em toda a obra de Arendt e
corresponde ao fato de “os homens e não o Homem” habitam a face da Terra (ARENDT, 2010, 8)
isto é, que cada homem guarda uma diferença em relação aos demais e, ao mesmo tempo, é detentor
de uma igualdade para além da conformação biológica.
A vida, a mundanidade e a pluralidade são condições, na medida em que os homens
dependem delas para a própria existência e, ao mesmo tempo, estas condições são criações humanas
e, portanto, se materializam como determinantes da existência quando inseridas na realidade
humana. Criadas pelos homens, as condições não são passivas, Arendt afirma que:” Os homens são
seres condicionados, porque tudo aquilo que eles entram em contado torna-se imediatamente uma
condição de sua existência” (ARENDT, 2010, 10), como um ser condicionado, a vida, a
mundanidade e a pluralidade dependem de atividades humanas de modo a se efetivarem e se
manifestarem. De forma recíproca, as atividades e criações humanas que mantém e efetivam estas
condições dependem dos homens para serem dotadas de significado. A condição descrita por Arendt
são potencialidades humanas – a vida, a mundanidade e a pluralidade. E tais condições não se
confundem com uma natureza humana afinal, na ausência destas condições, de acordo com Arendt,
a existência dos homens não deixa de ser humana (ARENT, 2010,11).
Arendt percebe a possibilidade de uma natureza humana, porém, esta essência imutável é
inatingível aos próprios homens: (...) se temos uma natureza ou uma essência, então certamente só
um deus poderia conhecê-la e defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um
`quem` como se fosse um `o que`(ARENDT, 2010, 11). Ou ainda: as tentativas de definir a natureza
do homem levam tão facilmente a uma idéia que nos parece ‘sobre-humana’, e é, portanto,
identificada com o divino, que pode laçar suspeitas sobre o próprio conceito de ‘natureza humana’
“(ARENDT, 2010, 13). Assim, pensar uma natureza humana implicaria a possibilidade de se
observar acima da própria identidade do homem – além de sua identidade de animal humano e alem
de sua identidade individual - , de modo a se identificar um elemento comum entre todos os
homens.
Em 1952, Arendt publica uma réplica à critica do filosofo Eric Voegelin sobre o livro As
origens do totalitarismo. O principal ponto de discordância residiu na afirmação de Arendt de que,
no totalitarismo:
(...) o que está em jogo é a natureza humana em si; e, embora pareça que estas
experiências não consigam mudar o homem, mas apenas destrui-lo, criando uma
sociedade na qual a banalidade niilistica do’homo homini lupus’ é constantemente
realizada, é necessário não esquecer as necessárias limitações de uma experiência
que exige controle global para mostrar resultados conclusivos “(ARENDT, 1989,
510).
1 The world of the artifice permits individuals to retain a sense of their own identity through time and to
realize their sameness, or equality with each other.
entre a pluralidade e o mundo criado por essa condição: (…) sendo plurais, os seres humanos
podem se unir para formar um espaço entre si e neste espaço podem perceber seu mundo comum
por diferentes pontos de vista e, portanto, podem conversar sobre seus negócios comuns 2.
(CANOVAN, 2011, 111. Trad nossa). Esta troca de opiniões sobre o mundo em comum gera um
espaço formado pelas diferentes perspectivas e pontos de vista de indivíduos distintos. Ao mesmo
tempo em que se manifestam sobre um mesmo elemento mundano, os homens, sendo plurais,
manifestam diferentes perspectivas sobre esse elemento, efetivando a pluralidade humana, o que
justifica a afirmação de Arendt de que espaço-entre gerado pela pluralidade separa e une os homens
(ARENDT, 2010). Este espaço-entre separa os homens na medida em que os impede de se
unificarem sob a identidade natural única, porém, une os homens na medida em que permite uma
identificação de igualdade para além da biologia, através de constituição de cultura, leis, elementos
em comum (Aguiar, 30). Assim, o mundo sinaliza a dimensão da igualdade humana para além da
vida biológica, da zóe, e permite a manifestação das diferenças, só possíveis quando os homens se
distanciam de seu âmbito puramente natural e compartilham uma série de elementos criados por
eles mesmos.
A pluralidade dos homens, sua característica de dividirem igualdades e semelhanças, se
manifesta na própria constituição do que Arendt denomina mundo: o mundo é onde ser e aparecer
coincidem (ARENDT, 2000), onde as aparências, que são a própria identidade, se manifestam. A
existência depende de se tornar visível no mundo, assim, nas palavras de Arendt (...) não há sujeito
que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade
“objetiva”(ARENDT, 2000,17). Assim, no mundo se dispõe, simultaneamente, dos atributos de
perceber e de ser percebido. A pluralidade se manifesta nesta dualidade, em que se manifesta a
própria aparência e em que se percebe as aparências de outros. A pluralidade humana se manifesta
também, principalmente, em um segundo aspecto do mundo: o fato de que a percepção dos
fenômenos do mundo gera a certeza da existência objetiva deste fenômenos quando a percepção é
compartilhada Arendt afirma:
Arendt afirma que, apesar de o mundo ser o espaço onde as aparências se manifestam e, por
2 (...) being plural, human beings can gather to form a space amongst themselves, and in that space can see
their common world from different points of view, therefore talk about their common affairs
conseqüência, um espaço de multiplicidade de perspectivas, o mundo é também o lugar onde estas
diferentes perspectivas encontram sua convergência: a partir da afirmação de o que é percebido pela
pluralidade de perspectivas guarda uma identidade comum, o mundo se afirma como o espaço da
igualdade e da diferença, simultaneamente. A pluralidade humana, portanto, se manifesta no mundo
tanto na capacidade de se colocar como objeto e sujeito simultaneamente como no fato de que o
mundo converge diferentes perspectivas.
Torna-se visível, portanto, a diferença entre a dimensão natural da existência humana e o
mundo, seja na acepção de mundanidade ou de pluralidade: o mundo, em contraste com Terra , trata
do compartilhamento do que os homens possuem em comum – uma identidade baseada na realidade
artificial compartilhada - ao mesmo tempo em que é um espaço para a manifestação de diferentes
perspectivas. O mundo como mundanidade e o mundo como pluralidade se relacionam justamente
nesta manifestação e efetivação das igualdades e diferenças:
Este mundo, contudo, não é idêntico à Terra ou á natureza, enquanto espaço limitado
para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver
com o artefato humano, com o que é fabricado por mãos humanas, assim como com
os negócios realizados entre os que habitam o mundo feito pelo homem. Conviver
no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas em comum, como uma
mesa se interpõe entre os que assentam ao seu redor; pois como estado entre [in-
between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si.
(ARENDT, 2010, 64).
1.2 – A ação
Em contraste com os processos repetitivos e cíclicos que caracterizam o âmbito natural da
existência, a ação, segundo Arendt, é sinônimo de novos começos, que possuem a capacidade de
interromper processos repetitivos e de realizar o inesperado. A ruptura efetivada pela ação é a
ruptura do próprio ciclo natural: o âmbito natural da existência humana enfatiza a mortalidade.
Vivendo sob a natureza, os homens caminham para a morte, seguindo o caminho percorrido por
qualquer espécime sobre a terra. No entanto, protagonizando o inesperado através da ação, os
homens vivenciam a existência além do ciclo natural, rompendo com o automatismo característico
da natureza (ARENDT, 2011a). A ação é a escapatória da decadência inevitável – ou nas palavras
de Arendt, do não-ser - enquanto se vive como um espécime natural (D´ENTREVES).
Deste modo, ao equalizar a ação com a realização do inesperado, Arendt traça uma
analogia entre ação e milagre. Um milagre, porém potencial de ser realizado por todos os homens,
e que faz parte da existência não-natural humana:
Pois os processos que temos de lidar aqui (...) não se desenrolam na forma de
desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo
encadeamento acontece aquele milagre de infinitas improbabilidades sempre com
tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre (ARENDT, 2011b,
42).
A identidade de alguém pressupõe elementos que garantem que o individuo é único: não se
trata de características que o individuo possui em comum com outros homens, mas de elementos
que marcam a distinção de que cada indivíduo é portador desde o nascimento. Expressar quem
alguém é, portanto, é uma tarefa impossível. No entanto, segundo Arendt, essa identidade só se
torna visível, embora não passível de definição, nas palavras de atos de alguém.
Em A condição Humana, Arendt apresenta a ação acompanhada do discurso. O discurso é
tanto uma forma de ação – reagir em palavras é uma ação (ARENDT, 2011b) como um
componente do próprio ato
Essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em
seus feitos; contudo, a afinidade entre discurso e revelação é, obviamente, muito
mais estreita que a afinidade entre ação e revelação, tal como a afinidade entre
discurso e início, embora grande parte dos atos, senão a maioria deles, seja realizada
na forma de discurso. (ARENDT, 2010, 223).
A ação acompanha o discurso na medida em que permite que o agente revele o significado
dos seus atos ou revele as intenções e revelações do agente, e os atos confirmam aquilo que é
enunciado em palavras. A ação e o discurso mantêm uma relação de interdependência não apenas
porque os atos assumem a forma de palavras, mas porque palavras e atos se confirmam
mutuamente: as palavras dotam os atos de significado e os atos confirmam as palavras. Enunciar o
significado do ato ou confirmar as palavras através de uma ação explicitam a dimensão coletiva
da ação: esta confirmação oferecida mutuamente por atos e palavras significa o compartilhamento
público das ações do agente, e portanto, a revelação da identidade depende de destinatários da
ação e do discurso, capazes de apreender o significado do inédito (Déntreves)
A afirmação de Arendt que somente há um agente na medida em que há um “pronunciador
de palavras” (ARENDT, 2010) afirma a ligação entre o discurso, ação e revelação do agente: da
mesma forma que a ação efetiva o inédito, rompendo com os processos automáticos, o discurso
guarda congruência com a revelação da identidade do agente. Colateralmente, a interdependência
mutua entre ação e discurso dá origem à relação entre o inicio e a revelação do agente. Trazer o
novo a público é, simultaneamente, exibir a identidade que acompanha o agente. A identidade do
agente, apesar de não passível de definição se torna visível nas palavras e nos atos públicos,
justificando a afirmação de Arendt de que a identidade é inacessível ao agente, mas visível para
aqueles que testemunham os atos e palavras. (ARENDT, 2010)
A ação, tendo em vista as condições com que a vida foi dada ao homem, efetiva a condição
da pluralidade – o fato de que os homens compartilham, simultaneamente, a igualdade e a
diferença. A pluralidade é efetivada tanto pelas expressões das diferenças através do novo trazido
pela ação e pelo discurso quanto pela capacidade daqueles que testemunham os atos de palavras
de aprenderem os significados destes atos e palavras:
Fazer e padecer são como as faces opostas de opostas da mesma moeda, e a estória
iniciada por um ato compõe-se dos feitos e dos padecimentos dele decorrentes.
Essas conseqüências são ilimitadas porque a ação porque a ação, embora possa
provir de nenhures, por assim dizer, atua em um meio no qual toda reação se
converte em reações em cadeia, e no qual todo processo é causa de novos processos.
Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações, é
sempre uma nova ação que segue seu curso próprio e afeta os outros os outros.
Assim, a ação e a reação entre os homens jamais se passam em um círculo fechado,
e jamais podem ser restringidas de modo confiável a dois parceiros (ARENDT, 2010
238).
Os feitos de alguém – sua biografia – revelam a identidade do agente: tal afirmação tem
relação direta com a importância, no pensamento arendtiano, das aparências. Se é dependente da
presença de outros de modo que se possa “aparecer” e, portanto, a dimensão coletiva da ação e do
discurso garantem a definição da identidade de alguém. Em contraste, o processo de produção
que constrói a obra é feito na solidão do artífice e, conseqüentemente, o processo de fabricação
prescinde do mundo e, por extensão, prescinde de “aparecer”. A obra, após o processo de
fabricação, expõe as características daquele que a produziu, e não a identidade única do produtor.
A identidade só e revelada em público para os outros.
A obra é regida pelo fim que almeja alcançar: trata-se de um processo que visa concretizar
um objeto tangível de acordo com o visualizado mentalmente pelo artífice enquanto a ação,
influenciando e dando origem a inúmeras ramificações na teia de relações humanas, não é regida
por um modelo previsível. O processo de fabricação, portanto, é guiado pelo modelo de um
produto acabado. Assim, o sentido de todo o processo de fabricação se encontra naquilo que é
capaz de concretizar ao final. A ação e o discurso, por outro lado, não possuindo um fim
previsível, não tem seu sentido determinado por aquilo que alcança. Afirma Arendt: “(...) nesses
casos de ação e de discurso, não se busca um fim (telos), mas este reside na própria atividade que,
assim, se encontra em entelechea e a obra não sucede ao processo e o extingue, mas está inserido
nele; o desempenho é a obra (...)” (ARENDT, 2010, 257).
Arendt dialoga com a noção de virtú presente no pensamento de Maquiavel , associando a
virtú maquiavélica com a noção de virtuosidade, e por virtuosidade definindo o sentido da ação e
do discurso:
A melhor visão do seu significado [de virtú ] é virtuosidade, isto é, uma excelência
que atribuímos ás artes de realização (á diferença das artes criativas de fabricação)
onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que
sobrevive á atividade que trouxe ao mundo e dela se torna independente (ARENDT,
2011a, 199).
Em contraste ao produto final da obra, que não torna visível o processo de fabricação, no
âmbito da ação e do discurso, a performance é o próprio ato.
A característica de virtuosidade faz com que a ação e o discurso adquiram seu significado
somente na esfera coletiva: é necessário, à semelhança das artes de realização, um público
(ARENDT, 2011a). A ação e o discurso são testemunhados, de modo que a identidade destas
atividades reside no desempenho. Portanto, além da interação gerada pela ação e pelo discurso na
teia de relações humanas, a dimensão coletiva dota estas atividades de sua própria identidade.
A obra tem o seu início a partir do processo de fabricação previamente determinado,
enquanto a ação é identificada coma espontaneidade do inédito, No entanto, o início guarda em si
o perigo da arbitrariedade (ARENDT, 2011c): o agir, sendo concretizar o novo, deve efetivar um
evento inédito que seja inteligível para aqueles presentes na teia de relações humanas e este
evento inédito, em adição, deve ter em vista o espaço da palavra e da ação. O início materializado
na ação é identificado em seu caráter inédito dentro da teia de relações humanas: James Knauer
afirma que “No mundo dos negócios humanos, em oposição ao mundo natural, não se escolhe
entre a previsibilidade de determinados eventos e a ocorrência randômica sem significado. As
ações livres humanas adquirem significado através de sua relação com os princípios. 3” (724, trad
nossa). A ação, mesmo não sendo regida por causas e conseqüências não é carente de identidade
reconhecível: o que permite com que a ação não seja arbitrária é o que Arendt denomina de
princípios da ação, que dotam o inédito de inteligibilidade e mantém o espaço da ação coeso.
Afirma Arendt:
O que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si o
seu próprio princípio, ou, em termos mais precisos, que o início e o princípio,
principium e princípio, não só estão relacionados entre si, mas são simultâneos (...).
A maneira como o iniciador estabelece a lei da ação para os que se uniram a ele a
fim de participar e realizar o empreendimento. Como tal, o princípio inspira os atos
que se seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação. (ARENDT, 2011c, 272).
3 In the human world as opposed to the world of the physicist, one is not forced to choose between the
predictability of determined events and the meaningless of random occurrences. The free acts of human
beings acquire meaning through the inherent relationship with principles
Na definição arendtiana dos princípios da ação, derivada da leitura de Montesquieu, os
princípios não inspiram e sustentam as ações apenas dos governados, mas também dos
governantes, de modo que os princípios permeiam toda a vida pública dos cidadãos. Como
parâmetros de conduta da vida política nos diz Arendt: “se não são tidos como válidos, as próprias
instituições políticas se encontram em risco” (ARENDT, 2010 351). A influência dos princípios se
faz sentir no desenho institucional do corpo político, na medida em que estas instituições nascem
da ação orientada por um principio.
Se a obra é orientada por uma cadeia de meios-fim, o processo de fabricação é realizado
tendo em vista um produto acabado, a ação: por outro lado, nascendo de princípios e efetivando a
espontaneidade, não se orienta por objetivos. Isso não implica afirmar que ação não possui
objetivos ou metas, mas que , no entanto, estes elementos não são seus elementos determinantes
e que a ação deve ser capaz de transcendê-los (ARENDT, 2011a).
Arendt diferencia os objetivos e metas da ação: os objetivos são a busca de resultados
pretendida pela ação, enquanto as metas são orientações e diretrizes para a ação (ARENDT,
2011b). Desta forma, as metas são as linhas gerais que orientam os objetivos da ação: Está na
essência das metas limitar tanto os objetivos como os meios e assim isolar o próprio agir contra
um perigo de descomedimento inerente a ele (ARENDT, 2011b, 130). A meta de uma ação
política nunca é alcançada, mas se mantém como uma diretriz, ou um limite aos meios utilizados
pela ação: pela violência inerente á fabricação, em que os meios são secundários frente ao produto
final, a categoria de meio-fim necessita de um constante limite para a determinação de meios e
objetivos a se alcançar.
Se orientar pela linearidade da sequência meio-fim é se orientar, á semelhança do processo
de fabricação, por um modelo pré-determinado, um modelo em que os meios utilizados para
concretizá-lo são secundários em relação ao produto acabado (ARENDT, 2011b). No âmbito da
ação, em que a pluralidade se manifesta, a orientação pior um modelo pré determinado significa
ignorar as diferenças manifestas na teia de relações humanas e ignorar o próprio inédito inerente a
ação. A categoria meio-fim aplicada aos negócios humanos é a transposição da violência inerente
à fabricação ao âmbito do discurso e da ação:
A polis ainda está inteiramente ligada à ágora homérica, mas esse local de reunião é
agora perpétuo, não o correspondente de um exército que depois do trabalho feito se
retira de novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda
aquilo que têm direito perante deuses e homens por causa da grandeza de seus feitos
e palavras- a fama imortal. Então, assim esperava a polis em seu apogeu (...) ela
mesmo assumiria possibilitar a luta sem toda violência e garantir a glória sem poeta
e sem versos, a única maneira pela qual os mortais podem tornam-se imortais
(ARENDT, 2011b, 105).
Assim, a disputa que é o motor da imortalidade nos campos de batalha se transfigura para
a disputa através do discurso: a modificação da ênfase da ação na Grécia homérica para a Grécia
Clássica se dá em continuidade (CANOVAN): é ainda a busca da glória através do inédito e da
disputa, porém, a institucionalização do espaço da palavra e ação na polis permite a busca da
glória sem a violência bélica.
A disputa homérica transposta para a polis parece incompatível com a horizontalidade
característica da teia de relações humanas: a busca da glória, à primeira vista, parece se estruturara
sob um agente que efetiva um ato memorável e uma platéia ausente desta capacidade. A
transposição da disputa homérica para a institucionalização da polis, porém, conserva a igualdade
da teia de relações humanas, pois, segundo Arendt: independente da violência e da derrota,” [ a
competição mútua] dá a oportunidade a cada um deles [ àqueles que disputam] de mostrar como é
na verdade– para se pôr em evidência realmente com isso, tornar-se completo de fato (ARENDT,
2011b, 95)”. A possibilidade da ação, mesmo sob o paradigma da disputa dos campos de batalha
dos tempos homéricos, oferece a possibilidade de efetivar a pluralidade: não importa quem seja o
herói, mas, na dimensão coletiva que orienta a teia de relações humanas, a identidade única do
agente é expressa, assegurando seu reconhecimento. A disputa e a horizontalidade da teia de
relações humanas são concretizadas pelo fato de que a ação é uma atividade coletiva, como afirma
André Duarte: “(...) toda ação depende de um líder que dê início a algo e de uma pluralidade de
homens que, na medida em que se associam ele para ajudá-lo dão continuidade ao que ele inicia e
têm também sua espontaneidade de agir” (DUARTE, 233). A polis evidencia que, mesmo a ação
tendo seu inicio com um individuo que busca a imortalidade terrena, a teia de relações humanas,
aonde os papeis de agente e paciente são simultâneos, garante a igualdade e a coletividade da
ação. A ação, em suma, exige a presença de outros, iguais em sua capacidade e possibilidade de
ação.
Se a ação tal como “descoberta” nos campos de batalha troianos deixa resquícios da
competição na ação tal como desempenhada na polis, isso não implica que a ação tem sempre um
viés agonal A ação tem a capacidade de trazer o novo e, ao mesmo tempo, enfatizar a permanência
do espaço da palavra e da ação. Neste caso, a ação concretiza o novo não através da busca
exclusiva da mortalidade terrena do agente, mas através da busca da imortalidade do espaço
destinado aos atos e palavras. Esta terceira possibilidade foi concretizada em Roma, também
herdeira da Guerra de Tróia. Roma, após a derrota na Guerra de Tróia, refunda a cidade na
península itálica e descobre na fundação de um corpo político o paradigma do início e, por
conseqüência, da ação. A fundação representa o novo, o inédito, ainda que no caso romano, se
trata da refundação da cidade aniquilada após a Guerra de Tróia. Na refundação, os romanos
procuram concilia o inédito com a criação de um corpo político estável, que atingisse a
imortalidade para além de um determinado agente.
O inédito não é, como no paradigma grego, primordialmente focado na imortalidade
individual, mas sim um elemento de estabilidade: trata-se de trazer a tona algo inédito, mas que
simultaneamente, se perpetue por gerações. Se a ação na polis possuía sua medida na glória – no
impacto que um agente provoca na teia de relações humanas-, a ação romana possui sua medida
em um diferente tipo de glória: ma possibilidade do espaço da palavra e da ação perdurar através
dos tempos. Segundo Jacques Taminiaux: A Gloria, para os gregos, significa estritamente a
radiancia de grandes qualidades que revelam quem alguém é. Significativamente, os romanos
ampliaram esta definição de modo a incluir a posteridade. 4(175. Trad nossa). A imortalidade não
detinha, em Roma, o viés individual grego, mas sim a preocupação que o ato inicial – a fundação
– durasse através de gerações: a ação em Roma, de modo a garantir a durabilidade da fundação,
era percebida como a atualização, isto é, o resgate, do principio manifesto na fundação
(ARENDT, 2011a).
Há, portanto, um contraste marcante ma concepção de ação e de interação política entre
Grécia e Roma. De acordo com Arendt:
Enquanto que na Grécia o espaço da palavra e ação se mantinha instável frente ao novo,
em Roma a ação buscava a durabilidade, de modo a garantir a permanecia do mundo da palavra e
da ação, através de aros orientados pelos princípios manifestos na fundação.
Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações, a
reação, além de ser uma própria resposta é sempre uma nova ação, que segue seu
próprio curso e afeta os outros. Assim, a ação e a reação entre os homens jamais se
passam em um circulo fechado (...) o menor dos atos, nas circunstâncias mais
limitadas, trás em si a semente da ilimitabilidade, pois basta um ato e, ás vezes, uma
palavra para mudar todo o conjunto “(ch 238).
A ação, não sendo determinada por motivos e objetivos e não sendo derivada de
racionalidade, além de se caracterizar como uma interrupção de processos automáticos, não se
insere em um mundo aonde os eventos são encadeados em uma relação de causa e conseqüência,
mas em mundo onde a pluralidade da teia de relações humanas determina a realidade. Na sua
espontaneidade a ação depende da criação de uma narrativa, tanto para que o ato seja relembrado,
de modo que os homens ativos transcendam a mera vida biológica, como para que o ato se torne
inteligível. Esta inteligibilidade promovida pela narrativa, equivale, nas palavras de Arendt a “se
reconciliar com o mundo”(ref) :
Se a essência de toda ação, em particular da ação política, é dar um novo início, a
compreensão se torna o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição
distinta de muitas outras, por meio do qual os homens ativos (...) finalmente vêm a
aceitar o que aconteceu de maneira irrevogável e a se reconciliar com o que existe
de modo inevitável (compr,345).
A contingência dos atos, que não os conecta a qualquer necessidade ou contexto histórico,
torna os atos dependentes daqueles que narram uma estória, de modo que tais atos se tornem parte
do repertorio do mundo das aparências e não simplesmente a efetivação de um suposto zeitgeist
ou processo histórico. Esta reconciliação com o mundo advém do fato que, como afirma Arendt,
uma ação, ao ser concretizada, extingue todas as outras possibilidades (vp): trata-se de reconciliar-
se com a realidade como ela se apresenta a partir de atos humanos que efetivamente tiveram lugar,
e não da divagação no mar de possibilidades do que poderia ser.
A narrativa dos feitos e palavras não é, portanto, uma mera compilação de eventos, mas
uma decodificação do mundo das aparências: se trata do julgamento por um narrador já distante
dos fatos capaz de recolher no passado aquelas ações espontâneas e inéditas (vp). Arendt descreve
esta compreensão retrospectiva da ação:
Não se trata, portanto de assumir o papel daquele que é retratado na narrativa, mas de um
tipo de compreensão próximo da imaginação: se trata de imaginar como é o lugar do mundo que o
outro ocupa, de trazer o ausente presente, de modo a se tornar consciente da própria perspectiva.
Como resume Seyla Benhabib
Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe o que está fazendo; que
vem sempre ser ‘culpado’ de conseqüências que jamais pretendeu ou previu; que,
por mais desastrosas que sejam tais conseqüências do seu ato, jamais poderá
desfazê-lo; que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocadamente
em um único evento, e que seu verdadeiro significado jamais se desvela para o ator,
mas somente á medida retrospectiva do historiador ch 291.
5The historical narrator no less than the moral actor has to be engaged in acts of judgment (...) certainly not in
the juridical or moralist sense of the delivery of a value perspective but in the recreation of shared reality from
the standpoint of all involved and concerned. Historical judgment revealed the perspectival nature of social
world by representing plurality in narrative form (121).
“fragilidades da ação”.
Ilimitada, imprevisível e irreversível, tais vulnerabilidades são, contudo, inerentes ao
próprio agir. Nas palavras de Arendt: “A fragilidade das leis e instituições humanas, e, de modo
geral, de todo assunto relativo á convivência dos homens decorre da condição humana da
natalidade (...) “(ch,239). Arendt se refere ao “segundo nascimento” (ch, ref) decorrente do fato
de que cada individuo é potencialmente capaz de trazer o novo ao mundo: com a capacidade de
desencadear o inesperado, cada nova geração trás um risco ao domínio público, trazendo consigo
não só o agir, mas também as ‘fragilidades da ação”. Como afirma Adriano Correia:
(...) ao agir, não apenas o agente torna evento no mundo o que era apenas uma
possibilidade ou capacidade, afirma ainda integralmente o mundo para o qual nasce
novamente quando age (...) assim como assume fato natural e gratuito do seu
nascimento como um evento no mundo humano deliberadamente desencadeado (66-
67)
O “segundo nascimento” torna a potencialidade de ação efetiva e esta efetivação tem lugar
em um mundo arriscado não apenas ao agente, mas também em risco graças ás possibilidades de
ação dos recém chegados. O risco representado pelos recém chegados é indistinguível da ação e
da capacidade de agir e, portanto, das condição da pluralidade e da existência da liberdade.
1.3.1-Polis e nomos
Comumente se considera a descrição arendtiana da ação como performada na polis
ateniense como o paradigma de ação política no pensamento de Arendt (taminiaux, ref). Como
anteriormente mencionado, a ação como performada na polis não é o paradigma da atividade
política, dada a importância no pensamento arendtiano a outras experiências políticas como a
república romana ou as revoluções do século XVIII. No entanto, como experiência originária, a
ação como desempenhada nos campos de batalha troianos desempenhou um papel fundamental na
“descoberta” das potencialidades do inédito de romper com a uniformização da vida biológica, e
tais experiências foram traduzidas ao corpo político institucionalizado da polis. No espaço de um
corpo político organizado, resta definir como a polis, mantendo a possibilidade de ação, remediou
as fragilidades dos negócios humanos, de modo a se manter estável e permanente.
Os valores que dizem respeito ao público descobertos na Guerra de Tróia e posteriormente
transpostos á polis se centram na revelação da identidade do agente. A importância de uma vida
individual, pública, que transcenda a morte é personificada, na vida pública ateniense á partir do
exemplo de Aquiles:
(...) quem pretender conscientemente ser “essencial”, deixar atrás de si uma estória e
uma identidade que constitui “fama imortal”, deve não só arriscar a vida, mas
também optar expressamente, como fez Aquiles, por uma vida curta e uma morte
prematura. Só o homem que não sobrevive ao seu ato supremo permanece senhor
inconteste de sua identidade e de sua passível grandeza, porque se retira, na morte,
das possíveis consequências do que iniciou (...). Aquiles permaneceu dependente do
contador de histórias ,do poeta ou historiador, sem os quais tudo o que ele fez teria
sido em vão, mas ele é o único herói e, portanto, o herói por excelência, que põe nas
mãos do narrador o pleno significado de seu feito, de sorte que é como se ele
houvesse não apenas encenado, mas também “feito” a historia de sua vida (ch, 242-
2410.
A expressão “agir guerreiro” (oqp) utilizada por Arendt para definir o paradigma de ação
na polis quer dizer justamente este espírito de desvelamento através do improvável, transmitido á
polis pela narrativa homérica da Guerra de Tróia.
A narrativa homérica, em sua característica politicamente relevante, é marcada pela
imparcialidade. O combate narrado em A Ilíada explicita os pontos de vista opostos de gregos e
troianos e assim, na interpretação de Arendt, a imparcialidade narrativa revela através da disputa a
identidade daqueles que estão envolvidos. A transposição da imparcialidade narrativa homérica ao
domínio político molda o conceito grego de ação: ” (...) o verdadeiro homérico na representação
da guerra de tróia só teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em seu modo de
organização o conceito de luta como forma de convívio humano não apenas legítimo como
também mais elevado” (oqp 980). Tal luta no interior de polis se traduz como a prevalência do
discurso na atividade política.
O discurso na polis reproduz a imparcialidade homérica, ao perceber a disputa como a
maneira de se revelar os pontos de vista dos envolvidos e, por conseqüência, a identidade do
agente. A atividade política assume a forma de uma troca de opiniões sobre o mundo, em que cada
ponto de vista é exposto e relembrado. Como orientada pela busca da “fama imortal”, a polis se
estrutura como a garantia de não só o desvelamento de agentes seja uma ocorrência cotidiana –
através do discurso- como na formação de uma instituição que não dependa da reificação do poeta
e o do historiador para que esta fama imortal perdure: “A segunda função da polis, novamente
conectada com os riscos da ação antes que a polis pudesse existir, era remediar a futilidade da
ação e do discurso (...)” (ch 246). Os feitos da Guerra de Tróia necessitaram da reificação através
da obra tangível de um poeta para serem lembrados o que caracteriza uma vulnerabilidade da ação
A efemeridade da ação, sua duração coincidente com o desempenho do ato é um risco á
transcendência da identidade além da morte.Se a imprevisibilidade , por ser diretamente ligada ao
desvelamento da identidade do agente não é percebida como uma fragilidade pela organização
política ateniense, a futilidade da ação representa uma vulnerabilidade por obstruir o caminho da
fama imortal.
A independência da reificação para que atos e palavras sejam relembrados é definida pela
presença de outros que possam testemunhar o acontecido, porém, a natureza desta convivência
entre atores e espectadores deve ser dar de tal forma que haja um elemento coesão, ou em termos
arendtianos, um “estar-junto” que caracterize uma comunidade política. Nas palavras de Maria de
Fátima Simões Francisco:
(...) os únicos por assim dizer ‘produtos da ação’ que poderiam determinar a sua
realização seriam tão imateriais quanto ela própria: a memória dos espectadores e a
repercussão dos atos na “teia de relações humanas”, ou seja, a série de atos
subseqüentes que cada ato pode gerar no interior de um grupo humano. No entanto,
ambos testemunhos só podem ter eficácia na perpetuação da ação , se houver um
conjunto de homens convivendo continuamente com a intenção deliberada de
compor simultaneamente o palco para a performance dos atos e o público para
testemunhá-los (99).
A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não
nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo principio
da justiça. Não nascemos iguais, nos tornamos iguais como membros de um grupo
por força de nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais (arent,
1989, 353).
A igualdade garante a ligação entre os homens não baseada em laços naturais, já que a
igualdade é uma convenção artificial, mas baseada no pertencimento de uma mesma “teia de
relações humanas” que garante a mútua influência no âmbito político.
Portanto, o espírito agonístico da polis, sua concepção de ação que Arendt descreve como
“individualista” (ch) convive com a igualdade política entre cidadãos, com a coletividade do
“palco” que é a cidade. Esta dimensão coletiva da polis implica na necessidade da mitigação do
espírito agonal grego, de modo que as relações no interior na “teia de relações humanas” não
destruam a própria comunidade política. Como afirma funa:
To distinguish oneself presupposes the presence of others from whom one is distinct
and against whose deeds and words one understands and measures one´s own. Since
each is engaged in a similar enterprise are all actors and audience, performers and
spectators in turn. As this implies it must be a certain agreement on shared
understanding, judgments if the agonist politics is to have meaning. If men go to far
and fail to recognize any limit in their drive for glory they will lose everything,
including the polis and their chance for earthly immortality (…) 157.
A manutenção da polis exige limites á competição entre cidadãos, e tais limites são
encontrados no nomos, na lei, que precede, na concepção grega, a atividade política.
Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram resultado da
ação, mas um produto da fabricação. Antes que os homens começassem a agir, era
necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual
podem ocorrer todas as ações subseqüentes; o espaço era o domínio público da polis
e a estrutura a sua lei; o legislador e o arquiteto pertenciam á mesma categoria’ (ch
243).
A lei da polis era vista como uma estrutura construída, tangível, que depois de concluída
não é passível de modificação. Trata-se da construção de uma estrutura tão durável quanto
qualquer produto do artifício humano, que modo que delimite o espaço da memória dos atos e
palavras e delimite o espaço da ação política de modo que a cidade resista aos riscos da ação.
O nomos pode ser entendido como um remédio á ilimitabilidade da ação:
O nomos grego opõe-se (...) contra o ilimitado e restringe o negociado aquilo que se
passa dentro de uma polis, entre homens, e liga de volta na polis aquilo que está
situado do outro lado desta polis, em que a polis tem que entrar em contato com os
seus feitos (...). Do nomos que limita e impede que ele se volatilize num mesmo
sistema de relações que crescem sem cessar, o negociado recebe a forma
permanente, que o transforma em proeza, que pode ser lembrado e conservado em
sua grandeza (...) (oqp, 120).
Arendt se refere em vários textos ao que denomina tradição do pensamento político, que,
grosso modo, representaria o fato de que a tradição filosófica ocidental mostra o que Arendt
caracteriza como aversão á atividade política e, conseqüentemente, traria em seu interior uma
ameaça á condição da pluralidade.
A ação, como mencionado anteriormente, prima pelas suas fragilidades: sua
ilimitabilidade, sua imprevisibilidade e sua irreversibilidade; Tais fragilidades são em grande
medida tributárias do perspectvismo – a manifestação das diferentes posições que cada um ocupa
no mundo través da ação e do discurso- que anima a atividade política. A desconfiança da tradição
do pensamento político se situa justamente na ausência de um absoluto que orientaria a política.
Arendt data o nascimento da tradição do pensamento político no impacto que o julgamento
de Sócrates pela polis exerceu na filosofia platônica: tal impacto se traduziu em hostilidade ao
âmbito político, especialmente á troca de opiniões que caracteriza o discurso. Cabe notar que a
chave da relação entre a tradição do pensamento político e a atividade política se encontra na
oposição entre a existência do filósofo – baseada na singularidade – e o modo de vida político –
baseado na pluralidade . A tradição do pensamento político se orientava na busca de transformar a
política em uma atividade que garantiria a continuidade do modo de vida do filósofo: a
preocupação com a continuidade da vida filosófica decorre justamente da pena imposta a
Sócrates. As soluções nascidas de inserção do modo de vida filosófico ao âmbito político
eliminariam a cambiância dos negócios humanos, vista, sob a perspectiva platônica como a
origem da pena de Sócrates. Portanto, as respostas filosóficas á instabilidade dos negócios
humanos não se originaram de uma preocupação com o âmbito político per si, mas busca de uma
garantia á vida contemplativa.
O diálogo entre cidadãos, em que cada opinião é exprimida, tem um papel fundamental na
polis e Arendt define a doxa, a opinião, como não só capaz de externalizar o lugar ao mundo
ocupado pelo cidadão, mas também como o elemento que permite a definição da identidade
pública: “A palavra doxa não significa apenas opinião, mas também esplendor e fama. Como tal,
ela esta relacionada á esfera política na qual todo mundo pode mostrar quem é. Afirmar a própria
opinião fazia parte de mostrar-se, de ser visto e ouvido pelos demais” (socrtes 56). O discurso – a
possibilidade de afirmar seu lugar no mundo – é parte constitutiva de uma identidade pública;
Essa conexão entre discurso e identidade caracteriza um dos resquícios do heróico homérico na
organização e na atividade política da polis.
Sócrates não contrapunha a doxa a uma verdade única e estável que orientaria a atividade
política na polis. De fato, o método socrático se baseava no diálogo, com vistas à expressão da
doxa de cada cidadão: a perspectiva individual sobre o mundo só se torna visível, só constitui uma
identidade, no momento em que é externalizada através do discurso. O método socrático centrado
na valorização doxa não só torna a opinião visível publicamente, mas também possibilita ao
portador da opinião reconhecer sua perspectiva. Como afirma Dana Villa:
Os diálogos socráticos não propunham a lecionar a verdade a que o filósofo tem acesso,
mas antes, tornar visível a pluralidade existente na polis através da percepção aos cidadãos de que
uma opinião é uma opinião entre outras advindas de seus iguais.
Politicamente, este reconhecimento da multiplicidade de opiniões também exercia uma
influencia mitigadora sobre o espírito agonal grego:
[o] espírito agonal grego que, por tornar politicamente impossível a aliança entre
cidades-estado gregas e envenenar com inveja e ódio as relações entre cidadãos (...)
acabaria por causar a sua ruína, o bem-estar público vivia sob constante ameaça. Por
6 we tend, in everyday life,to be radically unaware of our own doxa, our own perspective in the common
world. It needs to be worked on, drowned out of us (…) to be delivery of our own doxa is to be made aware
of oneself as an individual member of a community , possessed of a unique perspective
constituir-se somente dos muros das cidades e das fronteiras de suas leis, o caráter
do mundo político não era visto nem vivenciado nas relações entre cidadãos, no
mundo que havia entre eles, que era comum a todos embora diferente a cada um
(socrates, 580).
(...) foi este conflito [entre a pluralidade interior e a verdade filosófica] que Platão
tentou generalizar como o conflito entre corpo e alma; ao passo que o corpo habita a
cidade dos homens, o divino que a filosofia percebe é visto como algo que é ele
próprio divino –a alma- e de alguma forma separado dos negócios humanos. Quanto
mais se tornar verdadeiro o filósofo, mais o filósofo se separa de seu corpo, e, dado
que enquanto estiver vivo, essa separação não poderá se concluir, ele tentara fazer o
que todo cidadão livre de Atenas fazia para libertar-se e separar-se das necessidades
da vida: governar o próprio corpo como o senhor governa os seus escravos (arendt,
Sócrates, 71).
Se o filósofo abole o diálogo no seu interior e o substitui pela hierarquia entre o corpo –
que habita a cidade – e alma – capaz de contemplação- , quando esta hierarquia é transposta ao
domínio político, o filósofo percebe a cidade como um corpo, que deve ser controlado de modo
que as demandas da cidade não ameacem a contemplação. O paralelo é traçado a partir do
governo que o senhor exerce sobre o escravo, governo este em que o escravo satisfaz as
necessidades da vida biológica no âmbito domestico de modo que o cidadão pudesse se dedicar á
política (arendt, Sócrates). A percepção da cidade como um corpo proporciona a abolição da
possibilidade da ação, já que a condição da pluralidade – que permite a efetivação da ação – é
extinta. Como expõe Margaret Hull:
Assim, aqueles que estão na caverna estão sujeitos ao reino das aparências, imersos na
contemplação e nada comunicando ou deliberando. Ainda que não em contato com a realidade a
que o filósofo tem acesso, a contemplação é o que define esta comunidade. A fonte da
legitimidade do governo do filósofo–rei é a sua capacidade de contemplação, capacidade esta que
divide com seus companheiros na caverna, mas a contemplação daquele que governa não se limita
ás aparências- ás sombras na parede - mas a verdade transcendente a que o filósofo tem acesso ao
sair da caverna.
A ausência da política – ação e discurso- é justificada pelo projeto platônico que visa
descrever,nas palavras de Arendt: “como a política, a esfera dos assuntos humanos parece do
ponto de vista da filosofia (Sócrates)”. Do ponto de vista da filosofia platônica a política não é
entendida como a atividade em que diversas perspectivas interagem, mas como o âmbito em que a
contemplação é o principal modo de existência. A condição humana descrita na alegoria da
caverna é apolítica, o que garante o governo do rei-filósofo (Ca).
A legitimidade da verdade platônica é, portanto, descrita através dos mitos – seja no mito
de recompensas e castigos futuros, seja no mito da caverna- no entanto, resta a questão de como
uma verdade transcendente e incomunicável pode ser transposta ao âmbito dos negócios humanos
ou, posto em outras palavras, como aplicar a verdade filosófica ao domínio político.
Na filosófica platônica há uma modificação no interior da teoria das Formas: a Forma do
belo, antes considerada a forma máxima de contemplação, cede lugar ao Bem. Tal modificação, na
leitura arendtiana, se dá em um contexto político com a finalidade de permitir o governo das
idéias na polis.
Desde o ponto de vista da idéia em si, que pode ser definido como aquilo que
ilumina, o belo, que não pode ser utilizado , mas apenas resplandece, tinha muito
mais direito de ser eleito a idéia das idéias. A diferença entre o bom e o belo, para
nós com certeza e ainda mais para os gregos, é que o bom aplicável e contém e si
mesmo um elemento de uso. Foi somente iluminando a esfera das idéias com a idéia
de bem que Platão pode lançar mão das idéias para propósitos políticos (...) e erigir
sua ideocracia, onde as idéias eternas foram traduzidas em leis humanas (socrates
52).
esse modelo pode ser uma imagem vista pelos olhos da mente ou um esboço, no
qual a imagem já passou por um ensaio de materialização por meio da obra. Em todo
caso, o que orienta a obra de fabricação está fora do fabricante e precede o efetivo
processo da obra. (arendt, ch,, 175).
Para ele [Aristóteles], a razão não possuía características ditatoriais ou tirânicas (...)
A razão que aduz para sustentar que cada organismo político se compõe daqueles
que governam e daqueles que são governados decorre da superioridade do perito
sobre o leigo, e ele é bastante cônscio da diferença existente entre o agir e o fazer
para ir buscar seus exemplos na esfera da fabricação. Aristóteles foi, até onde posso
ver, quem primeiro recorreu, com o fito de estabelecer o governo no trato com os
assuntos humanos, á natureza que “estabeleceu a diferença entre os mais jovens e os
mais velhos, destinados uns a serem governados e outros a governar (oqa157).
It follows that the primary task of the political community will not encourage end-
constitutive debate, but rather to enforce the nomos (…) upon the citizen body. It
does through a regime of moral education that last a lifetime and draws it
effectiveness from its coercive power.
Cabe notar que enquanto a coerção platônica se fundamentava na razão ou, no caso de ser
direcionada á multidão, nos mitos infernais, a coerção aristotélica se fundamenta na desigualdade
natural, que se transmuta em um saber moral, que projeta a polis e o nomos em elementos de
manutenção deste saber.
Se há um ponto comum nas filosofias política de Platão e Aristóteles, tal ponto comum se
encontra na imposição de valores exteriores ao âmbito da política- no domínio do discurso e da
ação-, ou, em outras palavras, na busca deste absoluto exterior que se mantêm por toda a tradição
do pensamento político. Mais ainda, a tradição do pensamento político introduz a hierarquia entre
governantes e governados, relegando a experiência coletiva da teia de relações humanas a
segundo plano. Estes elementos externos á política e a hierarquia que deles deriva, apesar de não
terem em vista a política em si, visam mitigar o perpectivismo, a falta de limites fixos da ação,
percebidas como antagonistas das verdades e do modo de vida do filósofo alimentando uma
ameaça á própria pluralidade. No entanto, cabe notar que no interior do próprio âmbito político,
nas capacidades da ação, é possível encontrar remédios as suas fragilidades, que visam não o
modo de vida do filósofo, mas a manutenção da pluralidade: o perdão e a promessa.
Se, por um lado, a polis remediava a ilimitabilidade da ação através da “fabricação” de sua
lei e, se por outro a tradição do pensamento político na busca de estabilidade no âmbito dos
negócios humanos ameaça a própria condição da pluralidade, Arendt afirma que há, em
experiências inerentes ao “estar-junto” entre os homens a capacidade de mitigar as fragilidades da
ação: o perdão e promessa.
Talvez o argumento mais plausível em defesa de que perdoar e agir são tão
intimamente ligados quando destruir e produzir resulte daquele aspecto do perdão no
qual a ação de desfazer o que foi feito parece ter o mesmo caráter revelador que o
próprio feito. O perdão e relação que ele estabelece constituem sempre um assunto
eminentemente pessoal (embora não necessariamente individual ou privado) no qual
“o que”é feito é perdoado em consideração a” quem” o fez.(ch 301)
. O perdão, segundo Arendt, não tem como elemento central o ato ; trata-se do
reconhecimento de que o agente que comete o ato permanece alheio ás ramificações e efeitos de
sua ação: o perdão é concedido tendo em vista a condição de agente, com todas as suas
vicissitudes, o perdão é concedida “em respeito á sua capacidade [do agente] de desencadear
novos atos para além de seus malfeitos” (correia,) . Infere-se, portanto, que nem todos os atos são
passiveis de perdão, apenas aqueles que, ressoantes com a imprevisibilidade da ação, produzem
inadvertidamente efeitos nefastos. O perdão, nas palavras de Arendt, se destina á “ofensas
cotidianas”, em que o agente desencadeou malfeitos ”sem o saber” (ch,300). Arendt define o
perdão como um “desfazer” de uma ação (Ch), de modo que um novo conjunto de interações
recomece.
Perdoar o agente em respeito á sua capacidade de iniciar algo novo permite caracterizar o
perdão como ação:
O perdão promove uma ruptura com as ações cujas consequências são indesejáveis: esta
ruptura permite caracterizar o perdão como uma “ação final” que permite que novas estórias
recomecem na “teia de relações humanas”.
A ação possui a capacidade de romper processos automáticos e tal ruptura é visível na
relação entre perdão e vingança. Arendt afirma que a vingança é uma “re-ação” a uma ação
indesejável, e o fato de se vingar mantém a “teia de relações humanas” refém do malfeito original.
Como afirma Margerite Lacaze:
For Arendt, revenge is a kind of automatism, whereby we simply ‘react’, unlike the
action of forgiving. In revenge we act like machines or animals without the power to
reflect or change history. In contrast, forgiving is linked to acting just like destroying
is linked to making. Revenge is destructive response 91530
(...) o maior mal perpetuado é o mal cometido por Ninguém , isto é, por um ser
humano que se recusa a ser uma pessoa. Dentro da estrutura conceitual destas
considerações, poderíamos dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si
mesmo, no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar no
que fez, isto é, voltar e lembrar o que fez (...) realmente deixou de constituir alguém.
Permanecendo teimosamente um ninguém, ele se revela inadequado para o
relacionamento com os outros que, bons,maus ou indiferentes, são no mínio pessoas
(pcm, 177).
For Arendt, the faculty of promise is essentially a faculty of memory that has the
power to bring people back to their begging, that is, back to the moment when they
agreed in a propose. In this sense, the promise is a reminder that helps bounding the
groups together and linking the individual back to the past from which it happened
and from which it can begin again.
.Essa ligação entre passado e future fornece um equilíbrio entre a possibilidade de ação e
estabilidade do âmbito público. Politicamente, tal relação encontra sua expressão no momento de
fundação do corpo político, que permite, através de um passado estabelecido, que novas ações se
iniciem, conciliando o inicio do corpo político com os novos agentes que nele adentram.
O perdão e promessa são soluções os riscos do âmbito político que emergem das próprias
potencialidades da ação e, portanto, contrastam os padrões que se perpetuam na tradição do
pensamento político, que minimizam a pluralidade e a ação. Arendt caracteriza o perdão e a
promessa como os “únicos preceitos morais que não são aplicados á ação a partir de fora, de
alguma faculdade supostamente superior, mas sim da experiência da própria ação” (ch 306). O
perdão e a promessa estabelecem relações horizontais, contrastando com o viés hierárquico
presente na tradição do pensamento político. Cabe lembrar que a hierarquia presente na tradição
do pensamento político se origina na relação de mando e obediência instituída no interior do
filosofo, enquanto que o perdão e a promessa, como firma Arendt, “ são experiências que
ninguém pode ter consigo mesmo”, assim, o perdão e promessa reafirmam a pluralidade e se
opõem ao “governo de si” platônico (ch).
Esta discordância com a tradição se traduz na ausência do perdão, e, em certa medida, da
promessa, nos quadros normativos da tradição. A origem religiosa do perdão, que Arendt atribui á
Jesus de Nazaré, sobrevive residualmente no âmbito político, como nos institutos da anistia e
perdão presentes no sistema judiciário (arpp) enquanto que a promessa traduzida pela tradição se
diferencia da promessa como uma potencialidade da ação. A promessa tal como descrita por
Arendt encontra ressonância em experiências políticas tais quais a lei romana ou a constituição
americana, no entanto, tais experiências se diferenciam das teorias contratualistas no que diz
respeito á igualdade entre agentes.
2 - autoridade e estabilidade
Em contraste com a lei como limite entre o âmbito político, a polis, e o exterior, a lei
romana era concebida como uma aliança entre partes diversas. A concepção romana de lei é
fundamentada na faculdade de prometer e era sinônimo de ligação entre aqueles capazes de
promessa. Esta concepção de lei deriva da fundação da cidade de Roma: em contraste com
os gregos, os romanos se viam como descendentes daqueles que foram derrotados na Guerra
de Tróia, e a fundação do novo corpo politico advém de seu contrato com os povos que já
habitavam a península itálica. A fundação da cidade de Roma através do tratado se mantém
presente na política romana, em que cada nova promessa, além de dotar o corpo político de
estabilidade diante das incertezas do futuro, reencena a promessa inicial que originou o corpo
político.
Graças à importância da promessa, a politica romana permitiu uma multiplicidade de
perspectivas, que, na polis, se limitavam ao interior da cidade e à narrativa posterior dos fatos:
A lei grega, portanto, não era uma resultante da ação, enquanto a lei romana se
originava da pluralidade, dos diferentes lugares no mundo que cada parte ocupa e de sua
interação em relação às contingências mundanas. Esta interação criava um espaço comum
entre as partes, espaço este constituído da capacidade de ambas as partes de agirem e de se
revelarem enquanto agentes políticos.
Se o nomos representava um meio de mitigar a ilimitabilidade da ação, essa mitigação
ocorria às custas da pluralidade. Peg Burghman afirma que (…) he law posesses the identity
od the greek citizen, which Arendt argues is first gained in battle . Greek political identity is
for Arendt initially gained in the violence of the war and then establishe legally in the
internbal booraland betwwen free citizen and slave (113). O elemento de violência presente
na perspectiva grega de ação, nascida nos campos de batalha, se mantém na reserva grega da
atividade politica ao seu âmbito interno: a politica externa grega não reconhecia a manutenção
de diferentes perspectivas e assim, a identidade como agente e abrigo pelo nomos coincidiam.
O corpo político romano, fundamentado na promessa, não só permitia e estabilização
frente ao futuro, mas também abria espaço a novas relações e a um aumento do mundo em
comum. Assim, Roma mantinha o equilíbrio entre a estabilidade e a mudança proporcionada
pela ação. Essa dupla face da lei mostra que a lei, na concepção arendtiana, não representa um
dispositivo a ser obedecido, mas antes, que o corpo político regido por leis deve abrir espaço
para a novidade representada pela ação. Como resume Arendt “a lei pode estabilizar e
legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é sempre resultado de uma ação
extra-legal (cr, 73)” .A mudança proporcionada pela ação é estabilizada pela lei, significando
que se torna parte da memória e do repertório de um determinado corpo politico. A
flexibilidade da lei como promessa permite que, ao mesmo tempo que seja oferecida uma
moldura estável diante das incertezas do futuro, surjam canais de ação. Como Resume André
Duarte:
O poder, portanto, não possui nenhuma relação com um suposto consenso político,
mas antes, com a possibilidade de cada um que pertence a um corpo político agir e efetivar a
condição da pluralidade. Desta ligação entre poder e pluralidade, é possível perceber que,
antes de extinguir o poder, sua divisão multiplica as possibilidades de ação e, por
consequência, gera mais poder.
A divisão de poder como a geração de mais poder deriva diretamente da leitura
arendtiana de Montesquieu. Da teoria da divisão de poderes exposta por Montesquieu, Arendt
conecta novas possibilidades de ação e a divisão do poder em diferentes orientações:
The three branches of govermment represent for him [Montesquieu] the three
main political activities of men: the making of laws, the executing of
decisions, and teh ability of judment that most accompany both. Ecah od
these activities engenders its own power. Power can be divided (…) because
it is not one instrument to be aplied to one goal.Its origins lies in tehse
multiple capacities of men for action; these activities have no end as long as
the body politic is alive; trheir imediate pupose isa precribed by the ever-
changing circiunstances of human and political life (…) (lp722).
(…) o contrato mutuo pelo qual o poder é constituído por promessas contem
in nuce tanto o princípio republicano segundo o qual o poder reside no povo e
onde uma “sujeição mútua” torna o comando de o governo um absurdo (…)
quanto o princípio federativo, o princípio de uma república por acréscimo,
segundo o qual corpos políticos podem se combinar em alianças sem perder a
sua identidade (SR, 223).
Havia [na teoria política do século XVII] a variante [do contrato] de Hobbes
segundo a qual todo indivíduo celebra um acordo com a autoridade secular
para garantir a sua segurança, por cuja proteção ele renuncia a todos os
direitos e poderes. Chamo isto de versão vertical do contrato social (…)
Havia (…) o contrato social aborígene de Locke que guiava não o governo,
mas a sociedade- entendendo-se a palavra no sentido latino de uma societas,
uma aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem
mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo. Eu chamo isso
de versão horizontal do contrato social (cr, 77).
(…) if the general will is, in fact , a rational deduction of the implications of
a single commom intent, then there must be a right answer , and a popular
general will is, in fact , a rational deducvtion of a single common intebnt, and
popular deliberation ver o resto (291).
A vontade geral nasce da uniformidade dos cidadãos em um determinado corpo
político e, desta uniformidade, nasce a perspectiva única do que o corpo político deve atingir,
Essa resposta única não leva em conta a pluralidade, a diversidade de perspectivas, mas antes,
a uniformidade, tornando a deliberação pública redundante. Cabe notar que a pluralidade, na
leitura arendtiana de Rousseau, é extinguida como consequência do fato de que cada cidadão
de um corpo político deve subordinar suas perspectivas á vontade geral. A unificação do corpo
político pela vontade geral se dá través da presença de um inimigo comum, que reuniria todo
o corpo político na hostilidade a esse inimigo:
(..,) esse inimigo existia dentro do peito de cada cidadão, a saber, em sua
vontade e interesse particular: o cerne da questão era que este inimigo
particular oculto só poderia se alçar ao nível de um inimigo comum –
unificando a ação a partir do seu interior – se apenas um reunisse todas as
vontades e interesses particulares. O inimigo comum dentro da nação é a
soma toral dos interesses particulares de todos os cidadãos sr 115.
2.1.2-Lei e ação
Observa-se, portanto, que a noção de Estado pode ser remetida ao absolutismo, ou,
mais claramente, à figura dos monarcas do ancien régime, que detinham a função de legitimar
o corpo político. A ligação entre absolutismo e o posterior desenvolvimento de uma noção de
Estado é indiscutível, argumenta Arendt (SR) e tal ligação deriva da busca de um elemento
uno e absoluto que desempenharia o papel de elemento de coesão do corpo político.
Ainda durante a Idade Média, emerge, em contraste com a estrutura do domínio
político durante a Antiguidade Clássica, uma instituição que se torna fonte absoluta de
legitimidade e legislação do corpo político: a Igreja. O ancien régime, surgido em uma esfera
política secularizada, busca na figura do monarca uma nova fonte absoluta para o corpo
político, Nas palavras de Anne Amiel: “(...) o absolutismo que parecia ter encontrado um
substituto para a perda de sanção religiosa serviria de facto para mascarar o problema da
autoridade, da instabilidade dos corpos políticos modernos “(ref). O problema político da
modernidade se encontra na tentativa de manter o corpo político coeso e estável na ausência
da sanção religiosa católica. Este problema persiste nas revoluções do século XVIII e
encontra a sua solução, no caso francês, na unidade do Estado.
A unidade do corpo político se vê abalada, porém, pelo desmoronamento da anterior
ordem estamental feudal. Em consequência, os antigos estamentos feudais se transfiguraram
em uma estrutura de classes:
A relação entre Estado e a sociedade foi determinada pela luta de classes, que
havia suplantado a antiga ordem feudal. Permeou a sociedade um liberalismo
individual que acreditava, erradamente, que o Estado governava meros
indivíduos, quando na realidade governava classes, e que via no Estado uma
espécie de entidade suprema, diante de qual todos os indivíduos tinham de
curvar-se (…) o Estado teve de reforçar todos as antigas tendências de
centralização, pois só uma administração fortemente centralizada, que
monopolizasse todos os instrumentos de violência e possibilidades de poder,
poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma
sociedade dominada por classes . (ot, 262)
Assim, o âmbito politico se vê diante de uma sociedade que, por lado é regida pelo
individualismo da nascente classe burguesa, e por outro e estrutura e regida por um sistema de
classes. A unificação de uma estrutura fragmentada em classes, normatizada pelo
individualismo que emerge com a burguesia e, na ausência de uma estrutura absoluta e
unificadora que era incorporada pela Igreja católica encontra seu novo elemento de coesão no
Estado.
No entanto, o Estado necessita de uma característica que permita torná-lo
reconhecível como a estrutura soberana do corpo político ou, em outras palavras, de um
menor denominador comum que unifique as classes sociais o individualismo vigente. Esta
característica é encontrada no conceito de nação:
A união de um corpo político caracterizado tanto pela estrutura de classes como pelo
individualismo liberal se dá através da noção de uma história e de mundo compartilhado,
Porém, tal união baseada em uma identidade étnico-cultural teve como consequência a
subordinação do Estado aos ditames da nação, trazendo manifestações ao exercício do poder.
Arendt afirma que , dentro de uma estrutura de luta de classes, o estado sob o rotulo de nação
se apresenta como um conciliador destes diversos interesses, permitindo que o corpo político
se apresente como uno e indivisível. A conciliação se faria á partir da determinação do
interesse da nação acima do interesse de qualquer outro setor Neste papel conciliador a
possibilidade de ação se torna prerrogativa da instituição central: o Estrado.
Neste contexto, os direitos humanos se encontram frente a uma contradição: como
conciliar um conjunto de direitos universais com uma estrutura política delimitada pelo
conceito de nação. Arendt afirma que esta contradição tornou os sujeitos dos direitos humanos
apenas aqueles que pertenciam a um Estado-nação:
(…) a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que
emanariam supostamente dos direitos do homem, e soberana, isto é,
independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a
si própria. O resultado político desta contradição foi que daí por diante, os
direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma
de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja tarefa suprema
era proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como
cidadão – isto é, indivíduo- e como membro do grupo, perdeu sua aparência
legal e racional e podia agora ser interpretada pelos românticos como a
sublime representação de uma alma nacional, que, pelo próprio fato de existir
devia estar acima e além. (ot, 262).
(…) the only way the state can be made a place os repository of human rights
is by taking the nation out of nation-state (…) The way to do this is by
meshing the state in a web of federal relations , both below and beyond the
state, tehrefpre getting away from the state as a site of soverreignty.Insofar as
nationalism as an ideology is bound to claim the national soverreignty this
configuratuon of the state depend upon liberationf ourselves from the
nationalist legacy” 9REF)
Assim, a federação não se orienta por um elemento soberano que se localizaria acima
das leis que regem o corpo político: a federação, por não depender da nação como elemntode
coesão e estabilidade, transforma a nacionalidade – entendida como uma herança étnico-
cultural-, segundo Arendt, em não mais um fator de crucial para a identidade política, mas em
uma identidade privada (EYN REF)
A federação, que Arendt identifica com a nascente república americana , não se
fundamenta nem em uma declaração de direitos que tem como sujeito o homem ligado a uma
identidade orientada pelo conceito de nação. O fundamento político da federação baseia-se em
promessas mútuas e contra seu elemento de coesão na capacidade de ação:
(…)a sede do poder era o povo, mas a fonte da lei viria a ser a constituição,
um documento escrito, uma coisa objetiva e duradoura, que certamente
poderia ser abordada por muitos ângulos diferentes e abordada de maneiras
diversas, que podia ser modificada e emendada de acordo com as
circunstâncias, mas que mesmo assim jamais era um estado de espírito
subjetivo como a vontade. (sr 207).
2 – Autoridade
(…) assim como Deus “no princípio criou o céu e a terra” permanecendo
anterior a ela, também o legislador humano – criado à imagem de Deus e,
portanto, capaz de imitá-lo quando lança as fundações de uma nova
comunidade humana, cria condições para toda a vida politica e
desenvolvimento histórico futuros (VE, 342)
O que quer que fosse anterior a essa primeira fundação, ela própria o
ressurgimento de algum passado definido, estava situado fora da história; era
a natureza cuja eternidade cíclica poderia fornecer um refúgio contra a
marcha para adiante no tempo, a direção vertical e retilínea da história – em
lugar do ócio, otium- para quando os homens cansassem dos negócios (não-
ocios) da cidadania (…) , mas cuja origem não tinha qualquer interesse
porque se encontrava além do alcance da ação (ve, 346).
Assim, a familiar oposição arendtiana entre a vida cíclica ligada ao âmbito natural da
existência e a vida regida pela ação que descreve uma trajetória retilínea, encontra sua
expressão na fundação de Roma. Dentro desta perspectiva a fundação se apresenta como um
evento capaz d er omper o automatismo natural. Nas palavras de Dean Hammer:
For Virgil, the founding of Rome marks the beggining of time, not as
metaphysical momment but as counting time at urbe conditia (…) . The
phrase, which translates as “from the founbding of the city” serves as the
title for Lyvi´s history of Rome and suggests, in Arendt´s interpretation of
Virgil, that history begins whem there are tales to tell of humans living and
acting togheter “ (129).
(…) with this institucional inovation [a autoridade] the power of the people
(potestas in populus) was disntinguish from the authority of the senate (…) .
The function of the senate was to estabilize the republican order by means of
an instuticional power that could limit people power and prevent it from
desintegration into mob rule”
Tudo se passa (…) como se, para uma coisa existir no direito, fosse
necessária a relação entre dois elementos (ou dois sujeitos): aquele que é
munido de auctoritas e aquele que toma a iniciativa em sentido estrito.. Se os
dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então ao to será perfeito. Se
ao contrário, houver entre eles uma distância ou uma ruptura, será necessário
introduzir a auctoritas para que o ato seja válido (118).
Após a queda de Roma, uma instituição assume o papel de dotar o âmbito político de
estabilidade e legitimidade: a Igreja Católica. A autoridade exercida pela Igreja Católica se
apresenta como um amalgama dos elementos políticos presentes na república romana com a
tradição do pensamento político grego, especialmente a filosofia política platônica. Arendt
define: “Na medida em que a Igreja católica incorporou a filosofia grega na estrutura de suas
doutrinas e crenças dogmáticas, ela amalgamou o conceito político romano de autoridade, que
era inevitavelmente baseado em um início, á noção grega e medidas e regras transcendentes”.
(OQA, 170). Á presença da fundação era acrescentada a noção platônica de um elemento
regulador do domínio politico que se encontrava além da opinião e da expressão da
pluralidade.
A importância política do início, do evento de fundação, se insere na doutrina cristã,
segundo Arendt, quando o “testemunho do nascimento, morte e ressurreição de Cristo” (OQA,
168) se tornam a ênfase do catolicismo medieval. No primeiro plano da doutrina medieval não
se encontram a obediência às leis de Deus, mas o nascimento de uma história que se inicia
com a passagem do Messias na Terra. A sacralidade do nascimento de uma cidade como início
da história nos primórdios da república romana é transposta para o nascimento do filho de
Deus. Desta forma é possível traçar um paralelo entre a trindade romana expressa na
fundação, religião e autoridade com a nova ordem medieval: a fundação que é marcada pelo
nascimento de Cristo, uma tradição que remete a este nascimento e uma religião
fundamentada no passado em que o Messias estava presente.
O nascimento do Messias, com suas implicações transcendentes, permite a aglutinação
da importância politica romana dada à fundação com o pensamento politico grego. A política
romana, fundamentada em promessas mútuas, prescinde da filosofia política grega que, como
exposto, buscava um padrão que se localizava para além da teia de relações humanas. Esta
incompatibilidade entre a filosofia política grega e prática política romana, aliada à
importância política do passado na vida romana, origina a relação ambivalente romana com a
filosofia grega:
Os romanos se percebiam como “o povo gêmeo dos gregos” (OQA) e, a vida politica
romana, incondicionalmente ligada ao passado, se traduzia no fato que Roma não sistematiza
na forma de uma teoria política, suas experiências primordiais, como a primazia de promessas
mútuas (TPP, 101): a filosofia política, sob a perspectiva romana, era tradição do pensamento
político grego gerando uma separação entre a prática política que constitui a república romana
e a sistematização de conceitos teóricos políticos. A Igreja Católica, como uma instituição
romana e confrontada com esta divisão, unifica o pensamento politico grego com a prática
romana da fundação. Cabe notar que a fundação tanto no caso da república romana como no
caso da Igreja católica tem como efeito o englobamento do mundo sob a instituição da
fundação: na emergência de uma nova cronologia que se inicia com a fundação de Roma ou
com o nascimento do novo Messias, há o início de uma nova história que abarca o mundo.
O pensamento politico platônico, na visão de Arendt, como antes exposto, se
fundamenta na introdução das ideias -entendidas como elementos transcendentes acessíveis
pela contemplação -no âmbito politico. A Igreja Católica traz em seu interior um conjunto de
parâmetros transcendentes que se tornam a própria definição de sua autoridade. Como
consequência, emerge no papel politico da Igreja Católica um terceiro papel das leis: as leis
não mais traçam os limites do âmbito publico como ocorria na polis e as leis não mais se
fundamentam em promessas mútuas capazes de manter a pluralidade, mas se tornam padrões
de medida capazes de normatizar e valorar o âmbito dos negócios humanos. A legitimidade de
um sistema normativo fundamentado em leis transcendentes, no pensamento politico
platônico, se originaria, para aqueles incapazes de alcançar as ideias através de contemplação,
na promessa de um estado de recompensas e castigos além da morte. É possível afirmar a
congruência das medidas transcendentais platônicas com a tradição de fundação hebraica em
que um Deus único, eterno e transcendente dota a comunidade de legitimidade . Adeoato
afirma como caraterística deste modo de legitimidade supramundana:
Assim, esta forma de legitimidade cria no âmbito público, grosso modo, duas
instâncias normativas: uma instância superior ao âmbito da palavra e ação, da qual emana a
legitimidade e a autoridade do corpo político e um conjunto de normas que se adéquam à
mutabilidade advinda da interação na teia de relações humanas. Ilustrando a autoridade
presente na Igreja Católica medieval, Arendt propõe a seguinte imagem:
The standards of right and wrong as they are laid down in positive law have,
as it were two aspects: they are absolute insofar as they own their existence to
a universally valid law beyond the power and the competence of men; but
they are also mere conventions, related to people and only valid within
certains limnitations insofar as they were positived and framed by men.
Without the first the universally valid law would remain without reality in the
world of men; without the second , the lawas and regulations laid down by
men would lack their ultimate souce of authorithy amd legitimation.
A fundação americana
(…) as instituições políticas ainda que tenham sido superiormente elaborada, não
têm existência independente. Estão sujeitas e dependem de sucessivos atos para
subsistirem, pois o Estado não é um produto do pensamento, mas sim da ação. Ação
que exige a vida pública, para que a possível coincidência entre palavra viva e
palavra vivida possa seguir e assegurar a sobrevivência da instituição através da
criatividade (PPP, 74).
[os americanos] admitiam que não se tratava mais de fundar romana de novo
sim de fundar uma nova Roma, que a linha de continuidade que unia a
política ocidental à fundação da cidade eterna e liga esta fundação, por sua
vez, às memórias pré-históricas da Grécia e de Troia tinham se rompido e não
podiam ser restauradas”9SR, 271).
A democracia, para o século XVIII ainda era uma forma de governo e não
uma ideologia ou uma indicação de preferências de classe, era abominada,
portanto, porque se considerava que a opinião pública dominaria onde
deveria prevalecer o espírito público e o sinal desta distorção era a
unanimidade entre os cidadãos (SR, 286).
O Senado como este conjunto de homens, sublinha Arendt, não se orientaria pela
sabedoria filosófica ou pela razão enfatizada no pensamento iluminista (SR, 288) mas pela
deliberação dobre as contingências mundanas , de modo que as opiniões se tornem
perspectivas sobre um mundo comum.
A desobediência civil
Em Sobre a Revolução, Arendt afirma que apenas quando a lei é entendida como uM
mandamento sé necessário buscar um absoluto que explique a sua origem. No caso
americano, como visto, a lei não nasce de um absoluto, mas só próprio evento da fundação e,
portanto, não é compreendida como um mandamento que exige obediência.
Para se compreender o significado desta afirmativa, é necessário compreender o
significado arendtiano de obediência: A obediência pressupõe uma relação hierárquica que,
como antes exposto, não estava presente na política grega, mas que se refletia na relação entre
política e filosofia, em que a capacidade contemplativa do filósofo lhe garantia o monopólio
de ação sobre a polis. Arendt sublinha que o modelo desta relação hierárquica se origina no
domínio privado. A obediência, sendo estranha ao domínio político, não cabe nas atividades
de discurso e ação: “o único domínio em que a palavra [obediência] poderia possivelmente ser
apliacada a adultos que não escravos, é o domínio da religião, quando as pessoas dizem que
obedecem á palavra ou ao comando de Deus (…)” (RJ, 111-112). A lei como mandamento
pressupõe esta ordem transcendente de autoridade e portanto, acarreta uma relação de
obediência.
A obediência tem como consequência a ausência de possibilidade de ação por aqueles
que obedecem. Tal fato aponta para uma dupla consequência: por um lado, a ausência de ação
implica na ausência de poder, por outro a ausência de ação implica na ausência de instituições
animadas pela atividade politica. Sobre a impotência da obediência, é preciso ter em mente a
definição arendtiana do poder como “ação em concerto” e a consequente capacidade da ação
coletiva de gerar poder. Como exemplifica Arendt:
(…) toda ação realizada por uma pluralidade de homens pode ser divida em
dois estágios; o começo que é iniciado por um “líder”, e a realização, em que
muitos participam para levar a cabo o que então se torna um empreendimento
comum. Em nosso contexto o que importa é a compreensão de que ninguém,
por mais forte que seja, pode realizar alguma coisa, boa ou má, sem ajuda dos
outros o que temos aqui é a noção de uma igualdade que justifica um 'líder' ,
que nunca mais é do que o primus inter pares, o primeiro entre seus pares.
Aqueles que parecem obedecer-lhe realmente o apoiam (...) sem esta
'‘obediência’' , ele nada poderia fazer, ao passo que na creche ou em
condições de escravidão (...) e a criança e o escravo que fica sem ação caso se
recusa a “cooperar” (RJ 109-110)
A conduta do cidadão se orienta pelo mundo comum criado pela interação política ,
interação esta em que, como exposto, a promessa desempenha um papel fundamental; o
“bom cidadão” é motivado pela preocupação com o mundo comum gerado pela atividade
politica e, seja qual for o objeto da ação do contestador civil, esta ação nasce pela
preocupação com os efeitos de determinada norma no domínio público.
Cabe notar que o que define a virtude política se encontra justamente na capacidade de
ação, na capacidade de modificar o mundo ao redor a partir da formação de uma opinião e,
assim, no pensamento de Arendt, a obediência por si só não é uma virtude política. Como uma
ação que visa o mundo comum, a desobediência civil concretiza a pluralidade, por permitir a
expressão da opinião no domínio público. O objetor de consciência , em contraste, tem a ação
motivada pelo seu relacionamento consigo mesmo.
Como uma forma de ação a desobediência civil só é possível em um corpo político
fundamentado no que Arendt denomina a “versão horizontal do contrato”, em que a
possibilidade de ação, poder e expressão da pluralidade estão sempre presentes (CR, 78). A
presença constante da ação possui consequências imediatas no consentimento sob o qual se
assenta o corpo político:
(…) each council would have respect for the opinion of others and realize
that certain things must be done , wheter that particular council agreed or not.
to the extention that this relation to authorithy is realized , Arendt belives ,
the tension between authority and equality would be allivieted among the
featured councils. The key phrase “higher council” would therefore not refer
to any coercive power but to the fact of including a larger territorial area as
the primary, but not exclusive, focus of deliberations.
A igualdade seria garantia pelo fato de que cada instância seria detentora do poder de
ação; Assim, de maneira diferente da estrutura de um governo fundamentado em uma
autoridade superior e supramundana, a hierarquia é substituída por múltiplas arenas para a
atividade política e a estabilidade do corpo político deriva da autonomia de ação que subsiste
em cada instância.
A forma de governo derivada dos conselhos revolucionários se diferencia da
participação política proporcionada pelo instituto da desobediência civil. Enquanto esta última
se direciona a um determinado dispositivo normativo presente no corpo político, o sistema de
conselhos permite a participação política constante é originado do fato de que os conselhos
são organizados territorialmente; Arendt, ao relacionar os conselhos com a proposta de
Thomas Jefferson das “repúblicas elementares”. ´retende reafirmar que os conselhos se
organizaram não por associações corporativas ou grupos de interesse, mas se apresentariam
como um fórum político permanente que possibilitaria ao cidadão se engajar na ação e no
discurso.
Totalitarismo
Um tema constante na obra de Arendt é o senso comum, entendido como o bom senso
que nos faz compreender o mundo: Arendt define o senso comum como o sentido interno que
nos permite organizar aquilo que foi recebido pelos nossos cinco sentidos (a vida do espirito).
É uma sentido interno, que orienta nossas percepções em um todo coerente.
Frente aos horrores totalitários, o senso comum se mostra impotente e perplexo.
Arendt não está interessada em definir a singularidade do fenômeno totalitário
A instabilidade totalitária
Arendt define o totalitarismo como “uma formas inteiramente nova de governo” (OT,
531), com tal afirmação, Arendt diferencia o totalitarismo de outras formas de governo, que
limitam a liberdade; na ótica de Arendt, o totalitarismo não se confunde com qualquer forma
de ditadura ou de governo autoritário. A principal diferença reside na ausência de
institucionalização que caracteriza os regimes totalitários:
O movimento fascista, que era “um partido acima dos partidos”, na medida
em que dizia representar o interesse da nação como um todo, apoderou-se da
máquina estatal, identificando-se com a mais alta autoridade nacional e
tentou transformar todo o povo em “parte do Estado”. Não se considera,
contudo, “acima do Estado” e seus líderes não se consideravam “acima da
nação” (OT, 291).
(…) there are also authoritariam regimes that are dictorships necessarily
imploying hierarchy, stability and at least some limitation to absolute power.
While such regime is not a rechsstaat or a rule of law state, it still has,
according to Arendt, the genuine principle of law as a command” (483-484).
The hallmark of tyranny had always been lawlessness: legitimed governemmet was
legitimated by laws, whereas tyranny meant the breach of these boundaries so that
the tyrant could rage his will across the country. But (…) totalitarianism was not
lawless in that way, thus its laws were not civil laws protecting rights, but the
supposed laws of nature or history.
(…) o medo deixa de ter sentido quando a escolha das vítimas não gurda nenhuma
relação com as ações e os pensamentos dos indivíduos. O medo, embora seja com
certeza o estado espírito geral dos países totalitários, deixa de ser um princípio de
ação e não pode mais servir de guia para atos específicos” (CO, 368)
O “raciocínio frio como gelo” e o poderoso tentáculo da dialética que nos segura
como um torno parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece
confiança e onde não se pode contar com coisa alguma. É a coerção interna, cujo
conteúdo , cujo conteúdo único é a rigorosa evitação de contradições , que parece
confirmar a identidade de homem independente de todos relacionamento com os
outros (OT<530)
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