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INTRODUÇÃO

O conceito de ação é, sem sombra de dúvida, central para a compreensão do


pensamento político arendtiano. No entanto, tal conceito não é de fácil apreensão: Em A
Condição Humana, Arendt se dedica à vita activa, a ação ocupa grande parte das reflexões de
nossa autora. Porém, em tal obra considerada por muitos o ponto máximo do pensamento
arendtiano, a ação é descrita tendo por base a antiguidade grega; tal entendimento da ação não
é, no entanto, a totalidade do conceito. Em obras posteriores, especialmente na obra inacabada
intitulada O que é a Política? e na coletânea de ensaios Entre O passado e o Futuro, Arendt se
volta à antiguidade romana para descrever a ação política.
Esta reviravolta histórica não é sem importância: um dos temas centrais desta
complementação do conceito de ação reside no fato de que a antiguidade romana
institucionaliza a ação e tal institucionalização se origina da preocupação romana com a
posteridade do corpo político e, mais importante, a institucionalização romana dá origem ao
conceito de autoridade.
Em se tratando da institucionalização da ação, a originalidade de Arendt consiste em
diferenciar autoridade e poder, conceitos frequentemente utilizados como sinônimo na teoria
política. O poder, no pensamento de Arendt, se concretiza na interação política, enquanto a
autoridade se materializa como um palco estável aonde a ação e o discurso tomam parte.
A institucionalização da ação e a estabilidade do corpo politico estão presentes em
outras reflexões de Arendt, especialmente em seu estudo sobre as revoluções do século XVIII,
Sobre a Revolução. Nesta obra é possível perceber que o conceito de autoridade, apesar de
originário da república romana, se apresenta sobre diversas feições. A comparação traçada por
Arendt entre a Revolução Francesa e a Independência Americana torna visível a diferença
entre duas concepções de autoridade: uma derivada de uma instância superior à interação
política, enquanto outra se nasce do próprio domínio político. Estas duas concepções se
diferenciam ao proporem diferentes soluções ao que aparentemente se apresenta como um
paradoxo: a conciliação entre a estabilidade proporcionada pela autoridade e a constante
mutabilidade originada da capacidade de ação. Na Revolução Francesa, a autoridade era
buscada tendo em vista a constituição de um corpo político uno e soberano, enquanto que, na
república americana, herdeira das promessas celebradas no período colonial, a autoridade
deveria levar em conta a pluralidade da interação política.
A relação, nem sempre concordante, entre ação e autoridade não, porém, a única
questão presente no pensamento de Arendt no que concerne a questão da estabilidade dos
corpos políticos. A presença de uma estrutura estável, capaz de permitir a ação, é um dos
pontos focais da descrição arendtiana de totalitarismo.
O totalitarismo, tal como Arendt o descreve especialmente na sua obra inaugural As
Origens do Totalitarismo, se caracteriza por uma constante movimentação se frente a uma
realidade descrita pelas ideologias totalitárias: a Alemanha nazista se move em busca de um
futuro racialmente homogêneo e a União Soviética stalinista busca uma sociedade sem
classes. Estas “utopias”, na visão destes regimes, seriam inevitáveis, e o papel de um governo
totalitário seria acelerar a lei racial – no caso nazista – ou a lei da história – no caso stalinista.
Como Arendt descreve, o totalitarismo não fornece um mundo estável aonde as
interações humanas poderiam encontrar o seu lugar, mas se mostra como um regime que se
move constantemente. Nesta constante mobilidade, as instituições e marcos legais perdem a
sua eficacia: a ideologia é o único orientador do regime totalitário.
Este constante movimento permite que Arendt caracterize o totalitarismo como uma
nova forma de governo: trata-se da negação dos pilares que, no pensamento arendtiano,
definem a atividade política: a ação e a criação de um mundo comum durável. A ação
entendida como a capacidade de concretizar o inédito, não encontra lugar em um regime
aonde o futuro se encontra determinado ideologicamente, cabendo ao totalitarismo acelerar
este futuro.
Pretendemos, a partir da descrição arendtiana de ação e de autoridade, expor as
diversas formas que a estabilidade do corpo político assumiu e, mais do que isso, explicitar as
tentativas de reconciliação entre a durabilidade do corpo político. E pretendemos nos deter na
caraterística principal da teoria de Arendt sobre o totalitarismo: sua instabilidade e relacionar
esta instabilidade com a ausência de qualquer feição da autoridade sob o regime totalitário.
Para tanto, na primeira parte, pretendemos apresentar os elementos fundamentais da
concepção arendtiana de ação. Inicialmente, abordaremos a distinção, de origem grega,
central para o pensamento arendtiano entre a vida enquanto definida pelo âmbito natural da
existência e a vida regida pela artificialidade humana. Tal distinção define a “teia de relações
humanas”, o conjunto de interações, caracterizado pela ação e pelo discurso, que permite ao
homem a constituição de um mundo comum.
Em seguida, será exposto o conceito arendtiano de ação, e pretendemos apresentar as
diferenças entre as concepções de ação presentes na Antiguidade Clássica: o ideal heroico
grego e a busca de permanência que orienta a política romana. A questão da estabilidade e da
durabilidade do corpo político se tornam pontos de fundamental importunância se
contrapostos pelo que Arendt denomina “as vulnerabilidades da ação”; Arendt afirma que a
ação, é irreversível e imprevisível; a irreversibilidade da ação se encontra na capacidade do
ato de ecoar na teia de relações humanas -a ação gera efeitos que podem ameaça a estrutura
do corpo político- enquanto que a imprevisibilidade da ação é uma consequência do fato de
que o ato e a palavra concretizam a capacidade humana de romper com o rotineiro e
automático: o ato e apalavra são inéditos e, como tal, reverberam na “teia de relações
humanas” gerando efeitos sobre o domínio público.
As vulnerabilidades da ação não foram ignoradas nem pela tradição do pensamento
nem pelo âmbito político da Antiguidade Clássica. Cabe notar um tema constante presente no
pensamento de Arendt: A hostilidade entre o que nossa autora denomina a “tradição do
pensamento político” e a prática política, em outras palavras, a hostilidade da filosofia para
com a política. Asim, abordaremos como a “tradição do pensamento político” tentou mitigar
as vulnerabilidades da ação, e as consequentes criticas arendtianas a esta tentativa, centradas
no fato de que o pensamento filosófico renega a variabilidade de perspectivas que caracteriza
a atividade política em nome de uma verdade transcendente acessível apenas aquele que
abdica da ação em nome da contemplação. Arendt também apresenta soluções para a
vulnerabilidade da ação nascidas da própria interação pública humana: o perdão e a promessa.
Apresentaremos como estas soluções para as vulnerabilidades da ação são dotadas de
relevância política, especialmente a capacidade de fazer promessas.
Na segunda parte apresentaremos a visão arendtiana sobre a autoridade, especialmente
no que diz respeito á legitimidade e á estabilidade do corpo político. Abordaremos, em
primeiro lugar, como a promessa se torna uma prática política institucionalizada, e como tal,
se torna o próprio fundamento de lei na república romana. A lei como promessa permite que
o corpo político se perpetue, mantendo presente a possibilidade de interação política. Em
seguida, explicitaremos a relação entre a lei, como um instituto que fornece estabilidade ao
corpo político e como tal instituto se relaciona com a capacidade de ação.
A lei como uma resultante da promessa, é uma resultante da interação política e como
tal se relaciona ao conceito arendtiano de poder. O poder não é compreendido como o que
define uma relação hierárquica, mas antes é exercido na atividade política entre iguais. Este
aspecto coletivo do poder o relaciona com a lei na medida em que lei, se originando de
promessas mútuas é ela própria um exercício de poder.
O reconhecimento das leis dependem da legitimidade do corpo político, e assim,
abordaremos a autoridade como um elemento que estabiliza e legitima o corpo político. A
autoridade será exposta em três momentos: sua origem na república romana, sua configuração
na Idade média e como esta configuração influencia a construção do corpo político na
Revolução Francesa, e finalmente, a autoridade tal como se concretizou na Independência
Americana. Estes três momentos têm em comum o fato de se mostrarem intimamente ligados
à experiência de fundação; a fundação se apresenta no pensamento de Arendt como a ação por
excelência, a materialização da capacidade humana de iniciar, e como origem apresenta uma
perplexidade: como tornar o início inteligível, de modo a poder ser narrado. A solução do
problema do início passa por respostas distintas: o início pode ser entendido como a resultante
de uma ação coletiva como pode ser estabelecido como um acontecimento transcendente, para
além do âmbito político. Estas duas soluções são em grande parte responsáveis pela
diferenciação arendtiana entre a Revolução Francesa e a Independência Americana.
A república americana, constituída sob uma nova forma de autoridade , permite com
que a possibilidade de questionamento das leis se torne presente através do instituto da
desobediência civil. A relação não hierárquica estabelecida entre a lei e os cidadãos possibilita
aos cidadãos da república americana promoverem uma revisão na sua forma de autoridade – a
constituição – a partir do protesto coletivo em relação às leis.
Se a constituição americana permite a discordância em relação às leis, a constituição
falha em permitir com que os cidadãos repitam a experiência da ação tal como concretizada
fundação. Asim, Arendt, em um momento único em sua obra, faz apologia de um sistema
político: o sistema de conselhos revolucionários. Tal sistema, fundamentado em assembleias
territoriais, permitiria aos cidadãos um espaço permanente para que a ação e o discurso
aconteçam.
Finalmente, abordaremos o fenômeno totalitário, enfatizando sua instabilidade, de
modo a diferenciar o totalitarismo de forma autoritárias e ditatoriais de governo, enfatizando o
ineditismo totalitário.
1. Vita Activa e Ação

1.1 – A condição humana e o mundo

No início de A Condição Humana, Arendt apresenta as “três condições básicas sob as quais
a vida foi dada ao homem sobre a Terra” (ARENDT, 2010, 8): a vida, a mundanidade e a
pluralidade.
Por vida Arendt compreende os homens enquanto ligados às condições biológicas de
existência e dependentes da satisfação de suas necessidades naturais. A mundanidade, em contraste,
trata da condição humana que distancia os homens do pertencimento à natureza: a mundanidade
compreende o homem enquanto construtor e enquanto se movimenta frente a um mundo artificial,
criado a partir da modificação da natureza.
A pluralidade, finalmente, é a condição humana que ecoa em toda a obra de Arendt e
corresponde ao fato de “os homens e não o Homem” habitam a face da Terra (ARENDT, 2010, 8)
isto é, que cada homem guarda uma diferença em relação aos demais e, ao mesmo tempo, é detentor
de uma igualdade para além da conformação biológica.
A vida, a mundanidade e a pluralidade são condições, na medida em que os homens
dependem delas para a própria existência e, ao mesmo tempo, estas condições são criações humanas
e, portanto, se materializam como determinantes da existência quando inseridas na realidade
humana. Criadas pelos homens, as condições não são passivas, Arendt afirma que:” Os homens são
seres condicionados, porque tudo aquilo que eles entram em contado torna-se imediatamente uma
condição de sua existência” (ARENDT, 2010, 10), como um ser condicionado, a vida, a
mundanidade e a pluralidade dependem de atividades humanas de modo a se efetivarem e se
manifestarem. De forma recíproca, as atividades e criações humanas que mantém e efetivam estas
condições dependem dos homens para serem dotadas de significado. A condição descrita por Arendt
são potencialidades humanas – a vida, a mundanidade e a pluralidade. E tais condições não se
confundem com uma natureza humana afinal, na ausência destas condições, de acordo com Arendt,
a existência dos homens não deixa de ser humana (ARENT, 2010,11).
Arendt percebe a possibilidade de uma natureza humana, porém, esta essência imutável é
inatingível aos próprios homens: (...) se temos uma natureza ou uma essência, então certamente só
um deus poderia conhecê-la e defini-la, e a primeira precondição é que ele pudesse falar de um
`quem` como se fosse um `o que`(ARENDT, 2010, 11). Ou ainda: as tentativas de definir a natureza
do homem levam tão facilmente a uma idéia que nos parece ‘sobre-humana’, e é, portanto,
identificada com o divino, que pode laçar suspeitas sobre o próprio conceito de ‘natureza humana’
“(ARENDT, 2010, 13). Assim, pensar uma natureza humana implicaria a possibilidade de se
observar acima da própria identidade do homem – além de sua identidade de animal humano e alem
de sua identidade individual - , de modo a se identificar um elemento comum entre todos os
homens.
Em 1952, Arendt publica uma réplica à critica do filosofo Eric Voegelin sobre o livro As
origens do totalitarismo. O principal ponto de discordância residiu na afirmação de Arendt de que,
no totalitarismo:

(...) o que está em jogo é a natureza humana em si; e, embora pareça que estas
experiências não consigam mudar o homem, mas apenas destrui-lo, criando uma
sociedade na qual a banalidade niilistica do’homo homini lupus’ é constantemente
realizada, é necessário não esquecer as necessárias limitações de uma experiência
que exige controle global para mostrar resultados conclusivos “(ARENDT, 1989,
510).

Voegelin afirma a impossibilidade de mutabilidade ou destruição da natureza humana, afinal


a essência do que é o homem é, por definição, imutável. Ma replica a esta critica, Arendt afirmou:
Historicamente, o que conhecemos da natureza do homem é apenas o que tem existência, e nenhum
campo de essências eternas jamais nos servirá de consolo (ARENST, 2008a, 427). Na utilização do
terno natureza humana em As Origens do totalitarismo, Arendt busca descrever o fenômeno
totalitário em que a liberdade e a pluralidade – que, na concepção arendtiana são potencialidades
humanas- não encontram espaço (YOUNG-BRUHEL, 2004). Estendendo esta forma tipicamente
arendtiana de se pensar fenômenos políticos em detrimento de se buscar um elemento transcendente
nas ações humanas.
Se a vida e as atividades humanas que mantém o funcionamento do corpo e a satisfação de
necessidades, apresentam-se, a primeira vista como uma condição de existência, o mesmo não se
pode dizer da mundanidade e da pluralidade. Para se compreender a mundanidade como umas das
condições humanas é necessário expor a oposição, presente em todo pensamento arendtiano, entre a
natureza e o que é artificial. A diferença reside no fato de que a natureza se apresenta de forma
cíclica – o próprio ciclo da vida, os ciclos dos processos geológicos naturais, dentre outros – e,
portanto, a natureza é imortal, não sujeita a um término. Dentre as espécies de animais, até mesmo a
morte não representa um fim, já que, biologicamente, um espécime é igual ao outro em sua
anatomia ou fisiologia e a morte de um espécime não representa ameaça a uma espécie animal. O
homem, tido no singular, enquanto representante de uma espécie animal, é parte deste ciclo, no
entanto, os homens também são detentores de vidas individuais, de uma vida única além do ciclo
natural. Esta vida única é compreendida como uma biografia individual o que torna este aspecto da
existência humana retilínea – iniciando-se com o nascimento e finalizando-se com a morte – em
contraste com a imortalidade cíclica natural. Como Arendt afirma:
Os homens são “os mortais”, as únicas coisas mortais que existem , pois os animais
existem tão somente como enquanto membros da espécie e não como indivíduos. A
mortalidade do homem repousa no fato de que uma vida individual, uma bíos
emerge da vida biológica, da zoé. Esta vida individual distingue-se de todas as outras
coisas pelo caso retilíneo de seu movimento, que por assim dizer secciona
transversalmente os movimentos circulares da vida biológica. É isso a mortalidade:
mover-se ao longo de uma linha retilínea em um universo onde tudo, se é que se
move, se move em uma ordem cíclica. (ARENDT, 2011a, 71).

Os homens, compartilhando o tempo cíclico do âmbito natural como membros de uma


mesma espécie e sendo portadores de necessidades biológicas que são satisfeitas e posteriormente
retornam, e sendo simultaneamente detentores de uma biografia única a cada indivíduo, os homens
se encontram na posição de finitude frente á sua feição biológica cíclica.
Um ambiente nascido de criações humanas fornece a possibilidade de durabilidade frente ao
recorrente ciclo natural: fornece aos homens a possibilidade de existência para além da existência
enquanto um organismo biológico. O mundo, segundo Arendt, dota o nascimento e a morte dos
indivíduos de significado e faz com que os eventos de morte e nascimento não sejam reconhecidos
apenas como o nascimento e morte de um espécime, mas como o aparecimento e desaparecimento
de um individuo dotado de singularidade entre os demais, de modo que o nascimento e a morte são
compreendidos para além da condição humana da vida biológica (ARENDT, 2010).
A construção de um mundo por mãos humanas, isto é, de objetos e artefatos, fornece um
cenário contra o qual a biografia individual tem seu lugar. A significação de uma história de vida
única a cada individuo só é obtida se estes acontecimentos biográficos possuem como pano de
fundo o mundo das criações humana (CANOVAN, 2011).
O mundo artificial dos homens, ao mesmo tempo em que, nas palavras de Arendt, abriga a
vida individual (ARENDT, 2010, 8) fornece elementos que fazem com que os que os homens se
reconheçam. Este reconhecimento não advém de se reconhecerem como membros da mesma
espécie, mas de se relacionarem com elementos criados por eles mesmos. Nas palavras de James T.
Knauer : O mundo do artifice permite que os individuos retenham uma noção da propria
indentidade atraves do tempo e que percebam sua semelhança, ou igualdade, entre si 1 (KNAUER,
1980, 726. Trad. nossa). Este mundo artificial oferece, em suma, um referencial comum aos
homens, que permite a manifestação de uma identidade compartilhada independente do tempo e do
espaço e, ao mesmo tempo oferece um “ponto fixo”, graças à estabilidade que os produtos da
mundanidade detêm e que, portanto, os distancia do movimento cíclico natural.
O mundo no pensamento de Arendt também possui outra acepção. Se representa a realidade
circundada pelos artefatos e instituições humanos e corresponde à mundanidade, o mundo também
nomeia o espaço criado pela manifestação da pluralidade. Margaret Canovan descreve a conexão

1 The world of the artifice permits individuals to retain a sense of their own identity through time and to
realize their sameness, or equality with each other.
entre a pluralidade e o mundo criado por essa condição: (…) sendo plurais, os seres humanos
podem se unir para formar um espaço entre si e neste espaço podem perceber seu mundo comum
por diferentes pontos de vista e, portanto, podem conversar sobre seus negócios comuns 2.
(CANOVAN, 2011, 111. Trad nossa). Esta troca de opiniões sobre o mundo em comum gera um
espaço formado pelas diferentes perspectivas e pontos de vista de indivíduos distintos. Ao mesmo
tempo em que se manifestam sobre um mesmo elemento mundano, os homens, sendo plurais,
manifestam diferentes perspectivas sobre esse elemento, efetivando a pluralidade humana, o que
justifica a afirmação de Arendt de que espaço-entre gerado pela pluralidade separa e une os homens
(ARENDT, 2010). Este espaço-entre separa os homens na medida em que os impede de se
unificarem sob a identidade natural única, porém, une os homens na medida em que permite uma
identificação de igualdade para além da biologia, através de constituição de cultura, leis, elementos
em comum (Aguiar, 30). Assim, o mundo sinaliza a dimensão da igualdade humana para além da
vida biológica, da zóe, e permite a manifestação das diferenças, só possíveis quando os homens se
distanciam de seu âmbito puramente natural e compartilham uma série de elementos criados por
eles mesmos.
A pluralidade dos homens, sua característica de dividirem igualdades e semelhanças, se
manifesta na própria constituição do que Arendt denomina mundo: o mundo é onde ser e aparecer
coincidem (ARENDT, 2000), onde as aparências, que são a própria identidade, se manifestam. A
existência depende de se tornar visível no mundo, assim, nas palavras de Arendt (...) não há sujeito
que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade
“objetiva”(ARENDT, 2000,17). Assim, no mundo se dispõe, simultaneamente, dos atributos de
perceber e de ser percebido. A pluralidade se manifesta nesta dualidade, em que se manifesta a
própria aparência e em que se percebe as aparências de outros. A pluralidade humana se manifesta
também, principalmente, em um segundo aspecto do mundo: o fato de que a percepção dos
fenômenos do mundo gera a certeza da existência objetiva deste fenômenos quando a percepção é
compartilhada Arendt afirma:

O fato de que as aparências sempre exigem espectadores e, por isso, sempre


implicam um reconhecimento e uma admissão pelo menos potenciais, tem
conseqüências de longo alcance para o que nós –seres que aparecem em um mundo
de aparências – entendemos por realidade – tanto nossa como quanto a do mundo.
Em ambos os casos, nossa fé perceptiva- como designou Merleou-Ponty -, nossa
certeza de que o que percebemos tem uma existência independente do ato de
perceber, depende inteiramente do fato de que o objeto aparece também para os
outros e que por eles é percebido ( ARENDT, 2000, 37).

Arendt afirma que, apesar de o mundo ser o espaço onde as aparências se manifestam e, por

2 (...) being plural, human beings can gather to form a space amongst themselves, and in that space can see
their common world from different points of view, therefore talk about their common affairs
conseqüência, um espaço de multiplicidade de perspectivas, o mundo é também o lugar onde estas
diferentes perspectivas encontram sua convergência: a partir da afirmação de o que é percebido pela
pluralidade de perspectivas guarda uma identidade comum, o mundo se afirma como o espaço da
igualdade e da diferença, simultaneamente. A pluralidade humana, portanto, se manifesta no mundo
tanto na capacidade de se colocar como objeto e sujeito simultaneamente como no fato de que o
mundo converge diferentes perspectivas.
Torna-se visível, portanto, a diferença entre a dimensão natural da existência humana e o
mundo, seja na acepção de mundanidade ou de pluralidade: o mundo, em contraste com Terra , trata
do compartilhamento do que os homens possuem em comum – uma identidade baseada na realidade
artificial compartilhada - ao mesmo tempo em que é um espaço para a manifestação de diferentes
perspectivas. O mundo como mundanidade e o mundo como pluralidade se relacionam justamente
nesta manifestação e efetivação das igualdades e diferenças:

Este mundo, contudo, não é idêntico à Terra ou á natureza, enquanto espaço limitado
para o movimento dos homens e condição geral da vida orgânica. Antes, tem a ver
com o artefato humano, com o que é fabricado por mãos humanas, assim como com
os negócios realizados entre os que habitam o mundo feito pelo homem. Conviver
no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas em comum, como uma
mesa se interpõe entre os que assentam ao seu redor; pois como estado entre [in-
between], o mundo ao mesmo tempo separa e relaciona os homens entre si.
(ARENDT, 2010, 64).

Se o mundo é uma resultante da interação humana, que oferece diferentes perspectivas


sobre um ponto comum, essa interação, porém, não é tangível. A capacidade do homem de construir
torna a interação, os atos e feitos humanos duráveis. A realidade, constituída pelo compartilhamento
de diferentes perspectivas, depende da reificação dos negócios humanos de modo a se tornara
durável e fornecer um abrigo frente à face cíclica natural. Desta forma, o mundo enquanto um
artefato humano é a condição para o mundo das aparências seja estável, durável e contínuo.
A estabilidade do mundo de objetos e artefatos é capaz de resistir ao tempo, provendo o
homem mortal de permanência. A pluralidade humana, porém, depende da própria memória dos
homens: o mundo criado pela manifestação desta pluralidade deve permitir que a memória perdure,
de modo que a imortalidade seja alcançada. O mundo, nesta acepção, é o espaço em que não apenas
o parecer frente aos espectadores é possível, mas o espaço em que é possível que o aparecer se torne
permanente, via lembrança, para além do momento de atos individuais. Assim, a pluralidade
depende tanto de um mundo para se manifestar, como de um mundo que permita com que a
singularidade de cada individuo seja relembrada, de modo com que o homem, para além de um
espécime biológico, alcance a permanecia presente na natureza.

1.2 – A ação
Em contraste com os processos repetitivos e cíclicos que caracterizam o âmbito natural da
existência, a ação, segundo Arendt, é sinônimo de novos começos, que possuem a capacidade de
interromper processos repetitivos e de realizar o inesperado. A ruptura efetivada pela ação é a
ruptura do próprio ciclo natural: o âmbito natural da existência humana enfatiza a mortalidade.
Vivendo sob a natureza, os homens caminham para a morte, seguindo o caminho percorrido por
qualquer espécime sobre a terra. No entanto, protagonizando o inesperado através da ação, os
homens vivenciam a existência além do ciclo natural, rompendo com o automatismo característico
da natureza (ARENDT, 2011a). A ação é a escapatória da decadência inevitável – ou nas palavras
de Arendt, do não-ser - enquanto se vive como um espécime natural (D´ENTREVES).
Deste modo, ao equalizar a ação com a realização do inesperado, Arendt traça uma
analogia entre ação e milagre. Um milagre, porém potencial de ser realizado por todos os homens,
e que faz parte da existência não-natural humana:

Pois os processos que temos de lidar aqui (...) não se desenrolam na forma de
desenvolvimentos naturais, mas sim como cadeias de acontecimentos em cujo
encadeamento acontece aquele milagre de infinitas improbabilidades sempre com
tanta frequência que nos parece estranho falar aqui de milagre (ARENDT, 2011b,
42).

O milagre cotidiano que os homens têm a capacidade de realizar é compreendido se o


nascimento de um homem for entendido como um acontecimento além do nascimento de um novo
espécime. Sendo dotados de diferenças entre si, diferenças estas além da identidade biológica, o
nascimento e a morte dos homens detêm um significado para além do nascimento e da morte de
um espécime: “(...) das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição humana
da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente
porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir” (ARENDT,
2010, 10). Assim, cada homem possui em si, potencialmente, a capacidade de realizar milagres
por ser um individuo único, capaz de expressar esta novidade no mundo. A ação é, portanto, a
efetivação do novo que cada homem traz consigo. O nascimento de cada homem é a possibilidade
do inesperado, o que explicita a conexão entre natalidade e ação, e mais ainda, explícita o
entendimento do nascimento como não apenas um evento biológico, mas como o surgimento da
potencialidade do inesperado.
Existe outro aspecto da ação: em A Condição Humana, em que a descrição de Arendt da
ação se baseia na concepção da Grécia clássica, a ênfase da ação não recai no novo começo que o
ato realiza, mas na capacidade de ação de revelar a identidade do agente e nas interações entre os
homens geradas pela ação. Estas duas características, entretanto, não excluem o inesperado
inerente à ação, mas antes, acompanham o a efetivação do inédito. A capacidade da ação de
revelar a identidade do agente advém da impossibilidade , segundo Arendt, de se definir quem
alguém é:

Embora plenamente visível, a manifestação de quem o falante e agente


inconfundivelmente é conserva uma curiosa intangibilidade que frustra toda
tentativa de expressão verbal inequívoca. No momento em que queremos dizer
quem alguém é, nosso próprio vocabulário nos induz ao equivoco de dizer o que
esse alguém é; enleamo-nos em uma descrição de qualidade que a pessoa
necessariamente partilha com outras que lhe são semelhantes; passamos a descrever
um tipo de caráter [character] na antiga acepção da palavra, com o seu resultado que
sua unicidade especifica nos escapa (ARENDT,2010, 227).

A identidade de alguém pressupõe elementos que garantem que o individuo é único: não se
trata de características que o individuo possui em comum com outros homens, mas de elementos
que marcam a distinção de que cada indivíduo é portador desde o nascimento. Expressar quem
alguém é, portanto, é uma tarefa impossível. No entanto, segundo Arendt, essa identidade só se
torna visível, embora não passível de definição, nas palavras de atos de alguém.
Em A condição Humana, Arendt apresenta a ação acompanhada do discurso. O discurso é
tanto uma forma de ação – reagir em palavras é uma ação (ARENDT, 2011b) como um
componente do próprio ato

Essa revelação de quem alguém é está implícita tanto em suas palavras quanto em
seus feitos; contudo, a afinidade entre discurso e revelação é, obviamente, muito
mais estreita que a afinidade entre ação e revelação, tal como a afinidade entre
discurso e início, embora grande parte dos atos, senão a maioria deles, seja realizada
na forma de discurso. (ARENDT, 2010, 223).

A ação acompanha o discurso na medida em que permite que o agente revele o significado
dos seus atos ou revele as intenções e revelações do agente, e os atos confirmam aquilo que é
enunciado em palavras. A ação e o discurso mantêm uma relação de interdependência não apenas
porque os atos assumem a forma de palavras, mas porque palavras e atos se confirmam
mutuamente: as palavras dotam os atos de significado e os atos confirmam as palavras. Enunciar o
significado do ato ou confirmar as palavras através de uma ação explicitam a dimensão coletiva
da ação: esta confirmação oferecida mutuamente por atos e palavras significa o compartilhamento
público das ações do agente, e portanto, a revelação da identidade depende de destinatários da
ação e do discurso, capazes de apreender o significado do inédito (Déntreves)
A afirmação de Arendt que somente há um agente na medida em que há um “pronunciador
de palavras” (ARENDT, 2010) afirma a ligação entre o discurso, ação e revelação do agente: da
mesma forma que a ação efetiva o inédito, rompendo com os processos automáticos, o discurso
guarda congruência com a revelação da identidade do agente. Colateralmente, a interdependência
mutua entre ação e discurso dá origem à relação entre o inicio e a revelação do agente. Trazer o
novo a público é, simultaneamente, exibir a identidade que acompanha o agente. A identidade do
agente, apesar de não passível de definição se torna visível nas palavras e nos atos públicos,
justificando a afirmação de Arendt de que a identidade é inacessível ao agente, mas visível para
aqueles que testemunham os atos e palavras. (ARENDT, 2010)
A ação, tendo em vista as condições com que a vida foi dada ao homem, efetiva a condição
da pluralidade – o fato de que os homens compartilham, simultaneamente, a igualdade e a
diferença. A pluralidade é efetivada tanto pelas expressões das diferenças através do novo trazido
pela ação e pelo discurso quanto pela capacidade daqueles que testemunham os atos de palavras
de aprenderem os significados destes atos e palavras:

A pluralidade, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de


igualdade e distinção. Se não fossem iguais, os homens não poderiam compreender
uns aos outros e os que viveram antes deles, nem fazer planos para o futuro, nem
prever as necessidades daqueles que virão depois deles. Se não fossem distintos,
sendo cada ser humano distinto de qualquer outro que é, foi ou será, não precisariam
do discurso nem da ação para se fazer compreender. Sinais e sons seriam suficientes
para a comunicação imediata de necessidades de carências idênticas. (ARENDT,
2010, 22)

As diferenças entre os homens, potencialmente presentes a partir do momento em que


nascem, só se efetivam no momento em que estas diferenças se expressam, em consonância com o
fato de que, no pensamento arendtiano, “ser e aparecer coincidem”. Assim, de modo que a
identidade individual seja efetivada, reconhecida e tangível, é preciso que as diferenças sejam
expressas na presença de outros homens. Além das diferenças inerentes a cada individuo, os
homens são dotados da linguagem comum da ação e do discurso: a linguagem comum expressa
diferença e faz com que estas diferenças sejam reconhecidas. Se ser e aparecer coincidem, o
aparecimento, isto é, a expressão das diferenças é a expressão da existência de indivíduos únicos
(CANOVAN). Graças à ação e ao discurso os homens aparecem frente aos outros enquanto
homens, não mais enquanto espécimes (ARENDT, 2010).
A diferença potencial que cada homem traz consigo desde o nascimento se efetiva na
interação gerada pelo discurso e pela ação e pelo discurso: a ação e o discurso são os responsáveis
pelo que Arendt denomina “teia de relações humanas” (ARENDT, 2010). Cada ação provoca um
impacto naqueles que a testemunham, dando origem a novas ações: o agente é, simultaneamente,
paciente.

Fazer e padecer são como as faces opostas de opostas da mesma moeda, e a estória
iniciada por um ato compõe-se dos feitos e dos padecimentos dele decorrentes.
Essas conseqüências são ilimitadas porque a ação porque a ação, embora possa
provir de nenhures, por assim dizer, atua em um meio no qual toda reação se
converte em reações em cadeia, e no qual todo processo é causa de novos processos.
Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações, é
sempre uma nova ação que segue seu curso próprio e afeta os outros os outros.
Assim, a ação e a reação entre os homens jamais se passam em um círculo fechado,
e jamais podem ser restringidas de modo confiável a dois parceiros (ARENDT, 2010
238).

Desta forma, a diferença potencial entre os homens se efetiva no “segundo nascimento”,


isto é, na inserção de um novo agente na teia de relações humanas.
A teia de relações humanas é orientada pelo inédito e este inédito carrega o elemento de
novidade até para quem age. A novidade aparece para ao agente como sua falta de controle sobre
o impacto e as ramificações de sua ação sobre a teia de relações humanas. O significado da
história que o ato inicia, graças à imprevisibilidade do impacto da ação, somente pode ser
apreendido após o momento da ação e do seu impacto sobre a teia, o que justifica a afirmativa de
Arendt de que “ninguém é autor da própria história” (ARENDT,2010), o que significa que aquele
que age não é detentor das ramificações de sua ação sobre a teia. Apesar de os homens serem
capazes de trazer o inédito á tona, a natureza deste inédito foge do controle do agente: a autoria
do ato é determinada coletivamente, tendo em vista como um evento afeta a teia de relações
humanas.
A característica da ação de romper com processos automáticos e cíclicos demonstra o
contraste deste aspecto da vita activa se comparada ao trabalho: a ação gera “acontecimentos
mundanos” (CH) nas palavras de Arendt, e desta forma, distancia-se da não mundanidade natural,
que é característica da atividade de trabalhar. Este aspecto do mundo, como definido pelas
interações humanas não acontece no trabalho, pelo fato de que esta atividade não efetiva a
pluralidade: o animal laborans, é reduzido a uma só espécie, uma só identidade baseada na
igualdade biológica, o que não propicia a manifestação das diferenças de que cada homem é capaz
ou a interação que define os aspectos do mundo.
O contraste entre a obra e a ação, por outro lado, se faz por dois eixos: a incapacidade da
obra de revelar quem o agente é e, em segundo lugar, a utilidade e a instrumentabilidade que
orientam a obra em oposição á espontaneidade da ação. No primeiro caso – a revelação de quem
alguém é – parece haver contradição com a importância com que Arendt dota as obras de arte. No
entanto, mesmos os produtos da obra que não são efetivamente regidas pelo critério da utilidade
não são dotados da capacidade de revelação que acompanham a ação e o discurso.
A história real em que nos engajamos enquanto vivemos, não tem criador visível
nem invisível porque não é criada. O único alguém que ela revela é o seu herói; e ela
é o único meio pelo qual a manifestação originalmente intangível de um quem
singularmente distinto pode tornar-se tangível ex posto facto por meio da ação e do
discurso. Só podemos saber quem alguém é ou foi se conhecermos a história de qual
ele é herói – em outras palavras, sua biografia; tudo o mais que sabemos ao seu
respeito, inclusive a obra que ele possa ter produzido e deixado atrás de si, diz-nos
apenas o que ele é ou foi (ARENDT, 2010, 232-233).

Os feitos de alguém – sua biografia – revelam a identidade do agente: tal afirmação tem
relação direta com a importância, no pensamento arendtiano, das aparências. Se é dependente da
presença de outros de modo que se possa “aparecer” e, portanto, a dimensão coletiva da ação e do
discurso garantem a definição da identidade de alguém. Em contraste, o processo de produção
que constrói a obra é feito na solidão do artífice e, conseqüentemente, o processo de fabricação
prescinde do mundo e, por extensão, prescinde de “aparecer”. A obra, após o processo de
fabricação, expõe as características daquele que a produziu, e não a identidade única do produtor.
A identidade só e revelada em público para os outros.
A obra é regida pelo fim que almeja alcançar: trata-se de um processo que visa concretizar
um objeto tangível de acordo com o visualizado mentalmente pelo artífice enquanto a ação,
influenciando e dando origem a inúmeras ramificações na teia de relações humanas, não é regida
por um modelo previsível. O processo de fabricação, portanto, é guiado pelo modelo de um
produto acabado. Assim, o sentido de todo o processo de fabricação se encontra naquilo que é
capaz de concretizar ao final. A ação e o discurso, por outro lado, não possuindo um fim
previsível, não tem seu sentido determinado por aquilo que alcança. Afirma Arendt: “(...) nesses
casos de ação e de discurso, não se busca um fim (telos), mas este reside na própria atividade que,
assim, se encontra em entelechea e a obra não sucede ao processo e o extingue, mas está inserido
nele; o desempenho é a obra (...)” (ARENDT, 2010, 257).
Arendt dialoga com a noção de virtú presente no pensamento de Maquiavel , associando a
virtú maquiavélica com a noção de virtuosidade, e por virtuosidade definindo o sentido da ação e
do discurso:

A melhor visão do seu significado [de virtú ] é virtuosidade, isto é, uma excelência
que atribuímos ás artes de realização (á diferença das artes criativas de fabricação)
onde a perfeição está no próprio desempenho e não em um produto final que
sobrevive á atividade que trouxe ao mundo e dela se torna independente (ARENDT,
2011a, 199).

Em contraste ao produto final da obra, que não torna visível o processo de fabricação, no
âmbito da ação e do discurso, a performance é o próprio ato.
A característica de virtuosidade faz com que a ação e o discurso adquiram seu significado
somente na esfera coletiva: é necessário, à semelhança das artes de realização, um público
(ARENDT, 2011a). A ação e o discurso são testemunhados, de modo que a identidade destas
atividades reside no desempenho. Portanto, além da interação gerada pela ação e pelo discurso na
teia de relações humanas, a dimensão coletiva dota estas atividades de sua própria identidade.
A obra tem o seu início a partir do processo de fabricação previamente determinado,
enquanto a ação é identificada coma espontaneidade do inédito, No entanto, o início guarda em si
o perigo da arbitrariedade (ARENDT, 2011c): o agir, sendo concretizar o novo, deve efetivar um
evento inédito que seja inteligível para aqueles presentes na teia de relações humanas e este
evento inédito, em adição, deve ter em vista o espaço da palavra e da ação. O início materializado
na ação é identificado em seu caráter inédito dentro da teia de relações humanas: James Knauer
afirma que “No mundo dos negócios humanos, em oposição ao mundo natural, não se escolhe
entre a previsibilidade de determinados eventos e a ocorrência randômica sem significado. As
ações livres humanas adquirem significado através de sua relação com os princípios. 3” (724, trad
nossa). A ação, mesmo não sendo regida por causas e conseqüências não é carente de identidade
reconhecível: o que permite com que a ação não seja arbitrária é o que Arendt denomina de
princípios da ação, que dotam o inédito de inteligibilidade e mantém o espaço da ação coeso.
Afirma Arendt:

O que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si o
seu próprio princípio, ou, em termos mais precisos, que o início e o princípio,
principium e princípio, não só estão relacionados entre si, mas são simultâneos (...).
A maneira como o iniciador estabelece a lei da ação para os que se uniram a ele a
fim de participar e realizar o empreendimento. Como tal, o princípio inspira os atos
que se seguirão e continua a aparecer enquanto dura a ação. (ARENDT, 2011c, 272).

Assim, os princípios presentes no espaço da palavra da ação tornam cada evento


reconhecível como tal dentro da realidade do mundo.
Os princípios, ao determinar a lei da ação, não apenas inspiram os atos, mas também são
parâmetros de julgamento. A ação, efetivando o inédito, não pode ser julgada por critérios morais:
diferente do comportamento, que se orienta por motivos e interesses (ARENDT, 2010), passíveis
de serem compreendidos na moldura de causa e consequência e, portanto, sujeitas a julgamento
por parâmetros específicos. Os princípios não detêm natureza especifica: são de natureza
universal, para cada ação de determinado espaço, pois o novo da ação não comporta as regras
específicas cotidianas. A ação tem sua capacidade determinada pela sua grandeza, isto é, medida
contra a sua possibilidade de efetivar o principio compartilhado naquele espaço de discurso e ação
(KNAUER)
Os princípios da ação não são determinados individualmente, como o são os motivos:
Arendt define os princípios como uma “convicção compartilhada” (ARENDT, 2011b, 128). O
compartilhamento destas convicções, não se tratando de convicções psicológicas ou individuais é
em si uma forma de ação, portanto, a proteção frente à arbitrariedade da ação, surge da própria
possibilidade de agir. A definição destes princípios, ocorrendo no âmbito da pluralidade, os mostra
como convicções que, ao invés de constranger o agente em sua capacidade de agir, expande sua
possibilidade de iniciar ao oferecer alternativa em face da potencial arbitrariedade do inédito
(KATEB), permitindo que a ação seja reconhecida como tal e provoque ressonância na teia de
relações humanas.

3 In the human world as opposed to the world of the physicist, one is not forced to choose between the
predictability of determined events and the meaningless of random occurrences. The free acts of human
beings acquire meaning through the inherent relationship with principles
Na definição arendtiana dos princípios da ação, derivada da leitura de Montesquieu, os
princípios não inspiram e sustentam as ações apenas dos governados, mas também dos
governantes, de modo que os princípios permeiam toda a vida pública dos cidadãos. Como
parâmetros de conduta da vida política nos diz Arendt: “se não são tidos como válidos, as próprias
instituições políticas se encontram em risco” (ARENDT, 2010 351). A influência dos princípios se
faz sentir no desenho institucional do corpo político, na medida em que estas instituições nascem
da ação orientada por um principio.
Se a obra é orientada por uma cadeia de meios-fim, o processo de fabricação é realizado
tendo em vista um produto acabado, a ação: por outro lado, nascendo de princípios e efetivando a
espontaneidade, não se orienta por objetivos. Isso não implica afirmar que ação não possui
objetivos ou metas, mas que , no entanto, estes elementos não são seus elementos determinantes
e que a ação deve ser capaz de transcendê-los (ARENDT, 2011a).
Arendt diferencia os objetivos e metas da ação: os objetivos são a busca de resultados
pretendida pela ação, enquanto as metas são orientações e diretrizes para a ação (ARENDT,
2011b). Desta forma, as metas são as linhas gerais que orientam os objetivos da ação: Está na
essência das metas limitar tanto os objetivos como os meios e assim isolar o próprio agir contra
um perigo de descomedimento inerente a ele (ARENDT, 2011b, 130). A meta de uma ação
política nunca é alcançada, mas se mantém como uma diretriz, ou um limite aos meios utilizados
pela ação: pela violência inerente á fabricação, em que os meios são secundários frente ao produto
final, a categoria de meio-fim necessita de um constante limite para a determinação de meios e
objetivos a se alcançar.
Se orientar pela linearidade da sequência meio-fim é se orientar, á semelhança do processo
de fabricação, por um modelo pré-determinado, um modelo em que os meios utilizados para
concretizá-lo são secundários em relação ao produto acabado (ARENDT, 2011b). No âmbito da
ação, em que a pluralidade se manifesta, a orientação pior um modelo pré determinado significa
ignorar as diferenças manifestas na teia de relações humanas e ignorar o próprio inédito inerente a
ação. A categoria meio-fim aplicada aos negócios humanos é a transposição da violência inerente
à fabricação ao âmbito do discurso e da ação:

A própria substância da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, cuja


principal característica, quando aplicada aos negócios humanos , foi sempre a de que
o fim corre o perigo de ser suplantado pelos meios que ele justifica e que são
necessários para alcançá-lo. Visto que o fim da ação humana, distintamente dos
produtos finais da fabricação, nunca pode ser previsto de maneira confiável, os
meios utilizados para alcançar objetivos políticos são frequentemente de mais
relevância para o mundo futuro do que os objetivos pretendidos “(ARENDT, 2011d,
18).

Na impossibilidade de se manter um objetivo pré-definido frente á pluralidade manifesta


nas ações humanas, a utilização de meios violentos – justificados pelo fim que se pretende
alcançar – representaria uma ameaça á pluralidade e á própria vida, o que explica a existência de
metas como limites ao que se pretende ao agir.
A “descoberta”, nos termos de Arendt, da capacidade de ação de romper com a repetição
se deu durante a Guerra de Tróia (oqp): os campos de batalha permitiram que atos fora do
ordinário tivessem lugar, efetivando a possibilidade do inédito. Assim, a ação é inicialmente
identificada com a glória alcançada em um campo de batalha, em um contexto de violência.
Posteriormente, a instituição da polis representa a construção de um espaço em que a ação fosse
possível para além do contexto específico da guerra.
Os feitos gregos durante a Guerra de Tróia representam a descoberta da ação e, com esta
descoberta, a percepção do efêmero da ação: para além do momento em que o ato é concretizado,
o ato estaria fadado ao esquecimento, a não ser que fosse reificado em poemas ou histórias, papel
que foi desempenhado pela narrativa épica homérica. A polis seria uma teia de relações humanas
institucionalizada e organizada, permitindo que cada ação fosse preservada e possível. Tratava-se
de um espaço aonde não só a ação seria possível na inexistência de uma guerra que permitisse
atos extraordinários, mas também aonde a ação perduraria além da performance e independente
de reificação (ARENDT, 2011b).
A transição da Grécia Homérica para a Grécia Clássica altera a ênfase na concretização da
ação: se nos campos de batalha a ênfase estava em atos gloriosos, na polis o inédito se dava sob a
forma de discurso. No entanto o conteúdo da ação permanece o mesmo: a disputa pela glória é
transposta das ações durante uma guerra para o discurso proferido na polis. Afirma Arendt:

A polis ainda está inteiramente ligada à ágora homérica, mas esse local de reunião é
agora perpétuo, não o correspondente de um exército que depois do trabalho feito se
retira de novo e precisa esperar séculos até se encontrar um poeta que conceda
aquilo que têm direito perante deuses e homens por causa da grandeza de seus feitos
e palavras- a fama imortal. Então, assim esperava a polis em seu apogeu (...) ela
mesmo assumiria possibilitar a luta sem toda violência e garantir a glória sem poeta
e sem versos, a única maneira pela qual os mortais podem tornam-se imortais
(ARENDT, 2011b, 105).

Assim, a disputa que é o motor da imortalidade nos campos de batalha se transfigura para
a disputa através do discurso: a modificação da ênfase da ação na Grécia homérica para a Grécia
Clássica se dá em continuidade (CANOVAN): é ainda a busca da glória através do inédito e da
disputa, porém, a institucionalização do espaço da palavra e ação na polis permite a busca da
glória sem a violência bélica.
A disputa homérica transposta para a polis parece incompatível com a horizontalidade
característica da teia de relações humanas: a busca da glória, à primeira vista, parece se estruturara
sob um agente que efetiva um ato memorável e uma platéia ausente desta capacidade. A
transposição da disputa homérica para a institucionalização da polis, porém, conserva a igualdade
da teia de relações humanas, pois, segundo Arendt: independente da violência e da derrota,” [ a
competição mútua] dá a oportunidade a cada um deles [ àqueles que disputam] de mostrar como é
na verdade– para se pôr em evidência realmente com isso, tornar-se completo de fato (ARENDT,
2011b, 95)”. A possibilidade da ação, mesmo sob o paradigma da disputa dos campos de batalha
dos tempos homéricos, oferece a possibilidade de efetivar a pluralidade: não importa quem seja o
herói, mas, na dimensão coletiva que orienta a teia de relações humanas, a identidade única do
agente é expressa, assegurando seu reconhecimento. A disputa e a horizontalidade da teia de
relações humanas são concretizadas pelo fato de que a ação é uma atividade coletiva, como afirma
André Duarte: “(...) toda ação depende de um líder que dê início a algo e de uma pluralidade de
homens que, na medida em que se associam ele para ajudá-lo dão continuidade ao que ele inicia e
têm também sua espontaneidade de agir” (DUARTE, 233). A polis evidencia que, mesmo a ação
tendo seu inicio com um individuo que busca a imortalidade terrena, a teia de relações humanas,
aonde os papeis de agente e paciente são simultâneos, garante a igualdade e a coletividade da
ação. A ação, em suma, exige a presença de outros, iguais em sua capacidade e possibilidade de
ação.
Se a ação tal como “descoberta” nos campos de batalha troianos deixa resquícios da
competição na ação tal como desempenhada na polis, isso não implica que a ação tem sempre um
viés agonal A ação tem a capacidade de trazer o novo e, ao mesmo tempo, enfatizar a permanência
do espaço da palavra e da ação. Neste caso, a ação concretiza o novo não através da busca
exclusiva da mortalidade terrena do agente, mas através da busca da imortalidade do espaço
destinado aos atos e palavras. Esta terceira possibilidade foi concretizada em Roma, também
herdeira da Guerra de Tróia. Roma, após a derrota na Guerra de Tróia, refunda a cidade na
península itálica e descobre na fundação de um corpo político o paradigma do início e, por
conseqüência, da ação. A fundação representa o novo, o inédito, ainda que no caso romano, se
trata da refundação da cidade aniquilada após a Guerra de Tróia. Na refundação, os romanos
procuram concilia o inédito com a criação de um corpo político estável, que atingisse a
imortalidade para além de um determinado agente.
O inédito não é, como no paradigma grego, primordialmente focado na imortalidade
individual, mas sim um elemento de estabilidade: trata-se de trazer a tona algo inédito, mas que
simultaneamente, se perpetue por gerações. Se a ação na polis possuía sua medida na glória – no
impacto que um agente provoca na teia de relações humanas-, a ação romana possui sua medida
em um diferente tipo de glória: ma possibilidade do espaço da palavra e da ação perdurar através
dos tempos. Segundo Jacques Taminiaux: A Gloria, para os gregos, significa estritamente a
radiancia de grandes qualidades que revelam quem alguém é. Significativamente, os romanos
ampliaram esta definição de modo a incluir a posteridade. 4(175. Trad nossa). A imortalidade não
detinha, em Roma, o viés individual grego, mas sim a preocupação que o ato inicial – a fundação
– durasse através de gerações: a ação em Roma, de modo a garantir a durabilidade da fundação,
era percebida como a atualização, isto é, o resgate, do principio manifesto na fundação
(ARENDT, 2011a).
Há, portanto, um contraste marcante ma concepção de ação e de interação política entre
Grécia e Roma. De acordo com Arendt:

Á diferença dos romanos, os gregos acreditaram que a mutabilidade ocorrendo no


mundo dos mortais, não se podia alterar porque se baseava, em última instancia , no
fato de que (...) os jovens , que eram ao mesmo tempo ´os novos´ invadiam o status
quo (....) O senso de continuidade dos romanos era desconhecido na Grécia, onde a
mutabilidade intrínseca de todas as coisas mortais era vivida sem qualquer
atenuação ou consolo (...) (ARENDT, 2011c, 55).

Enquanto que na Grécia o espaço da palavra e ação se mantinha instável frente ao novo,
em Roma a ação buscava a durabilidade, de modo a garantir a permanecia do mundo da palavra e
da ação, através de aros orientados pelos princípios manifestos na fundação.

1.3- As Fragilidades das Ação


A ação tem seu lugar na teia de relações humanas onde, simultaneamente se é a agente e
paciente e, neste duplo papel, o cidadão não se orienta, como afirmado anteriormente, por motivos
e objetivos racionalmente delimitados: a ação é detentora de um ineditismo inerente á sua relação
com o mundo das aparências que a circunda. Destas duas características da ação, sua possibilidade
de ressonância que permite ao cidadão o duplo papel de agente e paciente e de seu ineditismo não
orientado teleologicamente, a ação possui vulnerabilidades que Arendt denomina “fragilidades”
(ch).
A fragilidade dos negócios humanos se insere nas próprias características da ação. Arendt
apresenta em primeiro lugar, como uma fragilidade da atividade política, a ilimitabilidade da ação:

Como a ação atua sobre seres que são capazes de realizar suas próprias ações, a
reação, além de ser uma própria resposta é sempre uma nova ação, que segue seu
próprio curso e afeta os outros. Assim, a ação e a reação entre os homens jamais se
passam em um circulo fechado (...) o menor dos atos, nas circunstâncias mais
limitadas, trás em si a semente da ilimitabilidade, pois basta um ato e, ás vezes, uma
palavra para mudar todo o conjunto “(ch 238).

A ação ressoa entre os agentes-pacientes presentes na teia de relações humanas alcançando


instancias alheias àquele que age e trazendo, conseqüentemente, efeitos imprevisíveis neste
4 Glory for the Greeks strictly meant the radiance of a great feat that disclosures who somebody is.
Significantly, the Romans enlarge this motion in order to include posterity
alcance inesperado e ilimitado.
A segunda fragilidade da ação, a imprevisibilidade decorre tanto da capacidade da ação de
transcender limites -ao envolver diversos agentes-pacientes no ato, as conseqüências de tal ato não
são calculáveis – como de próprio inédito que caracteriza a ação Porém, a imprevisibilidade, na
perspectiva arendtiana não envolve apenas a impossibilidade de calcular as ramificações da ação:

[a imprevisibilidade] não se trata apenas da impossibilidade de se predizerem todas


as conseqüências lógicas de determinado ato - pois se assim fosse, um computador
eletrônico seria capaz de predizer o futuro - pois a imprevisibilidade decorre
diretamente da estória que, como resultado da ação, se inicia e se estabelece assim
que passa o instante fugaz do ato. O problema é que, seja qual for o caráter e o
conteúdo da estória subseqüente - quer transcorra na vida pública ou na vida
privada, quer envolva muitos ou poucos autores- seu pleno significado pode se
revelar somente quando ela termina. (ch 239,240)

A ação, não sendo determinada por motivos e objetivos e não sendo derivada de
racionalidade, além de se caracterizar como uma interrupção de processos automáticos, não se
insere em um mundo aonde os eventos são encadeados em uma relação de causa e conseqüência,
mas em mundo onde a pluralidade da teia de relações humanas determina a realidade. Na sua
espontaneidade a ação depende da criação de uma narrativa, tanto para que o ato seja relembrado,
de modo que os homens ativos transcendam a mera vida biológica, como para que o ato se torne
inteligível. Esta inteligibilidade promovida pela narrativa, equivale, nas palavras de Arendt a “se
reconciliar com o mundo”(ref) :
Se a essência de toda ação, em particular da ação política, é dar um novo início, a
compreensão se torna o outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição
distinta de muitas outras, por meio do qual os homens ativos (...) finalmente vêm a
aceitar o que aconteceu de maneira irrevogável e a se reconciliar com o que existe
de modo inevitável (compr,345).

A contingência dos atos, que não os conecta a qualquer necessidade ou contexto histórico,
torna os atos dependentes daqueles que narram uma estória, de modo que tais atos se tornem parte
do repertorio do mundo das aparências e não simplesmente a efetivação de um suposto zeitgeist
ou processo histórico. Esta reconciliação com o mundo advém do fato que, como afirma Arendt,
uma ação, ao ser concretizada, extingue todas as outras possibilidades (vp): trata-se de reconciliar-
se com a realidade como ela se apresenta a partir de atos humanos que efetivamente tiveram lugar,
e não da divagação no mar de possibilidades do que poderia ser.
A narrativa dos feitos e palavras não é, portanto, uma mera compilação de eventos, mas
uma decodificação do mundo das aparências: se trata do julgamento por um narrador já distante
dos fatos capaz de recolher no passado aquelas ações espontâneas e inéditas (vp). Arendt descreve
esta compreensão retrospectiva da ação:

O pensamento político é representativo. Formo uma opinião considerando um dado


tema de diferentes pontos de vista, fazendo presentes em minha mente aqueles que
estão ausentes; isto é, eu os represento. Esse processo de representação não adota
cegamente as concepções efetivas dos que se encontram em algum outro lugar, e,
por conseguinte contempla o mundo de uma perspectiva diferente; não é uma
questão de empatia , como se eu procurasse me sentir uma outra pessoa, nem de
contar narizes e aderir a uma maioria, mas de ser e pensar em minha própria
identidade onde efetivamente me encontro.( Vp399).

Não se trata, portanto de assumir o papel daquele que é retratado na narrativa, mas de um
tipo de compreensão próximo da imaginação: se trata de imaginar como é o lugar do mundo que o
outro ocupa, de trazer o ausente presente, de modo a se tornar consciente da própria perspectiva.
Como resume Seyla Benhabib

O narrador histórico, como o ator moral, se engaja na atividade do julgamento (…),


porém, não no sentido jurídico ou moralista buscando uma perspectiva valiosa mas,
na recriação de uma realidade compartilhada a partir do lugar no mundo ocupado
por todos os envolvidos no ato. O julgamento histórico revela a natureza
perspectivista do mundo, representando a pluralidade na forma narrativa. 5(121, trad
nossa)

Ao narrar a perspectiva alheia, o narrador se torna consciente de seu próprio lugar no


mundo: esta diversidade de perspectivas na atividade da narração é, portanto, uma expressão de
pluralidade. A narrativa histórica que conserva a ação não se preocupa com um contexto acima
daqueles que agem e narram, mas com lugares ocupados no mundo, tornando imprevisível seu
conteúdo ou, em outras palavras, tornando o julgamento retrospectivo de ações alheio ao controle
do agente.
O primeiro sentido da imprevisibilidade- a impossibilidade de se calcular as conseqüências
da ação – mostra a principal faceta da “fragilidade” dos negócios humanos: os riscos inerentes á
imprevisibilidade da ação podem representar uma ameaça á própria manutenção do domínio
político. Esta ameaça ao domínio político se origina do fato de que a ação é irreversível e suas
conseqüências não podem ser desfeitas:

Os homens sempre souberam que aquele que age nunca sabe o que está fazendo; que
vem sempre ser ‘culpado’ de conseqüências que jamais pretendeu ou previu; que,
por mais desastrosas que sejam tais conseqüências do seu ato, jamais poderá
desfazê-lo; que o processo por ele iniciado jamais se consuma inequivocadamente
em um único evento, e que seu verdadeiro significado jamais se desvela para o ator,
mas somente á medida retrospectiva do historiador ch 291.

A capacidade da ação de ressonância ilimitada, aliada á imprevisibilidade de seus efeitos e


á sua irreversibilidade mostra que o ato, uma vez efetivado, impacta a “teia de relações humanas”
e tal impacto pode representar um perigo ao corpo político, completando o quadro arendtiano das

5The historical narrator no less than the moral actor has to be engaged in acts of judgment (...) certainly not in
the juridical or moralist sense of the delivery of a value perspective but in the recreation of shared reality from
the standpoint of all involved and concerned. Historical judgment revealed the perspectival nature of social
world by representing plurality in narrative form (121).
“fragilidades da ação”.
Ilimitada, imprevisível e irreversível, tais vulnerabilidades são, contudo, inerentes ao
próprio agir. Nas palavras de Arendt: “A fragilidade das leis e instituições humanas, e, de modo
geral, de todo assunto relativo á convivência dos homens decorre da condição humana da
natalidade (...) “(ch,239). Arendt se refere ao “segundo nascimento” (ch, ref) decorrente do fato
de que cada individuo é potencialmente capaz de trazer o novo ao mundo: com a capacidade de
desencadear o inesperado, cada nova geração trás um risco ao domínio público, trazendo consigo
não só o agir, mas também as ‘fragilidades da ação”. Como afirma Adriano Correia:

(...) ao agir, não apenas o agente torna evento no mundo o que era apenas uma
possibilidade ou capacidade, afirma ainda integralmente o mundo para o qual nasce
novamente quando age (...) assim como assume fato natural e gratuito do seu
nascimento como um evento no mundo humano deliberadamente desencadeado (66-
67)

O “segundo nascimento” torna a potencialidade de ação efetiva e esta efetivação tem lugar
em um mundo arriscado não apenas ao agente, mas também em risco graças ás possibilidades de
ação dos recém chegados. O risco representado pelos recém chegados é indistinguível da ação e
da capacidade de agir e, portanto, das condição da pluralidade e da existência da liberdade.

1.3.1-Polis e nomos
Comumente se considera a descrição arendtiana da ação como performada na polis
ateniense como o paradigma de ação política no pensamento de Arendt (taminiaux, ref). Como
anteriormente mencionado, a ação como performada na polis não é o paradigma da atividade
política, dada a importância no pensamento arendtiano a outras experiências políticas como a
república romana ou as revoluções do século XVIII. No entanto, como experiência originária, a
ação como desempenhada nos campos de batalha troianos desempenhou um papel fundamental na
“descoberta” das potencialidades do inédito de romper com a uniformização da vida biológica, e
tais experiências foram traduzidas ao corpo político institucionalizado da polis. No espaço de um
corpo político organizado, resta definir como a polis, mantendo a possibilidade de ação, remediou
as fragilidades dos negócios humanos, de modo a se manter estável e permanente.
Os valores que dizem respeito ao público descobertos na Guerra de Tróia e posteriormente
transpostos á polis se centram na revelação da identidade do agente. A importância de uma vida
individual, pública, que transcenda a morte é personificada, na vida pública ateniense á partir do
exemplo de Aquiles:

(...) quem pretender conscientemente ser “essencial”, deixar atrás de si uma estória e
uma identidade que constitui “fama imortal”, deve não só arriscar a vida, mas
também optar expressamente, como fez Aquiles, por uma vida curta e uma morte
prematura. Só o homem que não sobrevive ao seu ato supremo permanece senhor
inconteste de sua identidade e de sua passível grandeza, porque se retira, na morte,
das possíveis consequências do que iniciou (...). Aquiles permaneceu dependente do
contador de histórias ,do poeta ou historiador, sem os quais tudo o que ele fez teria
sido em vão, mas ele é o único herói e, portanto, o herói por excelência, que põe nas
mãos do narrador o pleno significado de seu feito, de sorte que é como se ele
houvesse não apenas encenado, mas também “feito” a historia de sua vida (ch, 242-
2410.

O paradigma de ação na polis tinha em Aquiles seu arquétipo e, portanto, a maior


fragilidade percebida pela polis não é a imprevisibilidade – de fato, a capacidade de romper com o
automático se equalizava a alcançar a “fama imortal-, mas a ilimitabildade, expressa no conteúdo
da narrativa que atos e palavras teriam após o desempenho do inédito. A imprevisibilidade, nesta
herança guerreira transposta á polis não é uma infortuna, mas uma possibilidade de fama imortal.
A polis é fundada tendo em vista a conexão entre ação e o desvelamento da identidade do
agente e tendo em vista a constituição de um palco permanente onde os atos heróicos se tornassem
cotidianos. A polis :
(...) destinava-se a permitir que os homens fizessem permanentemente, ainda que
com certas restrições, aquilo que, de outra forma, era possível somente como
empreendimento infreqüente e extraordinário, para o qual [os agentes] tinham de
deixar seus lares. Esperava-se que a polis multiplicasse as oportunidades de
conquista da ‘ fama imortal’, ou seja, multiplicasse para cada homem as
possibilidades de distinguir-se, de revelar em ato e palavra quem era em sua
distinção única (ch, 46).

A expressão “agir guerreiro” (oqp) utilizada por Arendt para definir o paradigma de ação
na polis quer dizer justamente este espírito de desvelamento através do improvável, transmitido á
polis pela narrativa homérica da Guerra de Tróia.
A narrativa homérica, em sua característica politicamente relevante, é marcada pela
imparcialidade. O combate narrado em A Ilíada explicita os pontos de vista opostos de gregos e
troianos e assim, na interpretação de Arendt, a imparcialidade narrativa revela através da disputa a
identidade daqueles que estão envolvidos. A transposição da imparcialidade narrativa homérica ao
domínio político molda o conceito grego de ação: ” (...) o verdadeiro homérico na representação
da guerra de tróia só teve seu pleno efeito no modo em que a polis inclui em seu modo de
organização o conceito de luta como forma de convívio humano não apenas legítimo como
também mais elevado” (oqp 980). Tal luta no interior de polis se traduz como a prevalência do
discurso na atividade política.
O discurso na polis reproduz a imparcialidade homérica, ao perceber a disputa como a
maneira de se revelar os pontos de vista dos envolvidos e, por conseqüência, a identidade do
agente. A atividade política assume a forma de uma troca de opiniões sobre o mundo, em que cada
ponto de vista é exposto e relembrado. Como orientada pela busca da “fama imortal”, a polis se
estrutura como a garantia de não só o desvelamento de agentes seja uma ocorrência cotidiana –
através do discurso- como na formação de uma instituição que não dependa da reificação do poeta
e o do historiador para que esta fama imortal perdure: “A segunda função da polis, novamente
conectada com os riscos da ação antes que a polis pudesse existir, era remediar a futilidade da
ação e do discurso (...)” (ch 246). Os feitos da Guerra de Tróia necessitaram da reificação através
da obra tangível de um poeta para serem lembrados o que caracteriza uma vulnerabilidade da ação
A efemeridade da ação, sua duração coincidente com o desempenho do ato é um risco á
transcendência da identidade além da morte.Se a imprevisibilidade , por ser diretamente ligada ao
desvelamento da identidade do agente não é percebida como uma fragilidade pela organização
política ateniense, a futilidade da ação representa uma vulnerabilidade por obstruir o caminho da
fama imortal.
A independência da reificação para que atos e palavras sejam relembrados é definida pela
presença de outros que possam testemunhar o acontecido, porém, a natureza desta convivência
entre atores e espectadores deve ser dar de tal forma que haja um elemento coesão, ou em termos
arendtianos, um “estar-junto” que caracterize uma comunidade política. Nas palavras de Maria de
Fátima Simões Francisco:

(...) os únicos por assim dizer ‘produtos da ação’ que poderiam determinar a sua
realização seriam tão imateriais quanto ela própria: a memória dos espectadores e a
repercussão dos atos na “teia de relações humanas”, ou seja, a série de atos
subseqüentes que cada ato pode gerar no interior de um grupo humano. No entanto,
ambos testemunhos só podem ter eficácia na perpetuação da ação , se houver um
conjunto de homens convivendo continuamente com a intenção deliberada de
compor simultaneamente o palco para a performance dos atos e o público para
testemunhá-los (99).

A polis se constitui, portanto, como uma comunidade em que a possibilidade de ação e


testemunho está sempre presente: este “estar-junto” que caracteriza Atenas só se torna possível á
partir do reconhecimento da igualdade entre aqueles que detêm a possibilidade de agir. A
igualdade política permite que se determine agentes e testemunhas simultâneas, permitindo a
memória institucionalizada. A igualdade presente na polis, segundo Arendt, não significa
igualdade perante a lei, mas a igualdade de se assumir o duplo papel de agente/paciente de modo a
se revelar ao se envolver no discurso político (oqp). Trata-se, em suma, da igualdade nascida sob a
condição de cidadão.
Cabe notar que a igualdade entre cidadãos na polis nascia da constituição do palco
permanente para atos e palavras, ou em outras palavras, através de uma “convenção” entre
aqueles que se propunham a agir e testemunhar. Como afirma Jeromy Waldron:

For Hannah Arendt, equality is a principle or a commitment, something that operates


in the practical –political realm. We do not study and discover that people are equal;
We hold that they are equal. Equality is not an idle description of anything (…) it is
an ought not is. It is normative, not descriptive (190).

A igualdade é convencionada tendo em vista a possibilidade de ação e de rememoração na


polis. O status de cidadão, que, contudo, permanece presente nas experiências políticas
posteriores á polis, é um importante definidor que permite ao homem ser identificado como
portador de uma biografia, não apenas de uma vida biológica. Como Arendt afirma:

A igualdade, em contraste com tudo o que se relaciona com a mera existência, não
nos é dada, mas resulta da organização humana, porquanto é orientada pelo principio
da justiça. Não nascemos iguais, nos tornamos iguais como membros de um grupo
por força de nossa decisão de nos garantirmos direitos reciprocamente iguais (arent,
1989, 353).

A igualdade garante a ligação entre os homens não baseada em laços naturais, já que a
igualdade é uma convenção artificial, mas baseada no pertencimento de uma mesma “teia de
relações humanas” que garante a mútua influência no âmbito político.
Portanto, o espírito agonístico da polis, sua concepção de ação que Arendt descreve como
“individualista” (ch) convive com a igualdade política entre cidadãos, com a coletividade do
“palco” que é a cidade. Esta dimensão coletiva da polis implica na necessidade da mitigação do
espírito agonal grego, de modo que as relações no interior na “teia de relações humanas” não
destruam a própria comunidade política. Como afirma funa:

To distinguish oneself presupposes the presence of others from whom one is distinct
and against whose deeds and words one understands and measures one´s own. Since
each is engaged in a similar enterprise are all actors and audience, performers and
spectators in turn. As this implies it must be a certain agreement on shared
understanding, judgments if the agonist politics is to have meaning. If men go to far
and fail to recognize any limit in their drive for glory they will lose everything,
including the polis and their chance for earthly immortality (…) 157.

A manutenção da polis exige limites á competição entre cidadãos, e tais limites são
encontrados no nomos, na lei, que precede, na concepção grega, a atividade política.

Para os gregos, as leis, como os muros ao redor da cidade, não eram resultado da
ação, mas um produto da fabricação. Antes que os homens começassem a agir, era
necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma estrutura dentro da qual
podem ocorrer todas as ações subseqüentes; o espaço era o domínio público da polis
e a estrutura a sua lei; o legislador e o arquiteto pertenciam á mesma categoria’ (ch
243).

A lei da polis era vista como uma estrutura construída, tangível, que depois de concluída
não é passível de modificação. Trata-se da construção de uma estrutura tão durável quanto
qualquer produto do artifício humano, que modo que delimite o espaço da memória dos atos e
palavras e delimite o espaço da ação política de modo que a cidade resista aos riscos da ação.
O nomos pode ser entendido como um remédio á ilimitabilidade da ação:

O nomos grego opõe-se (...) contra o ilimitado e restringe o negociado aquilo que se
passa dentro de uma polis, entre homens, e liga de volta na polis aquilo que está
situado do outro lado desta polis, em que a polis tem que entrar em contato com os
seus feitos (...). Do nomos que limita e impede que ele se volatilize num mesmo
sistema de relações que crescem sem cessar, o negociado recebe a forma
permanente, que o transforma em proeza, que pode ser lembrado e conservado em
sua grandeza (...) (oqp, 120).

Remediando a ilimitabilidade da ação, o nomos se mostra como o recipiente da memória


da polis: limitando o alcance do ato ou palavra, a ação e o discurso tomam uma forma definitiva
como parte permanente do repertório político da cidade. Limitando e petrificando a perpectiva da
narrativa de atos e palavras, o nomos permite em certa medida a realização do arquetípico
Aquiles, permitindo um controle limitado ao agente para a produção da própria estória.
No entanto, o nomos não significa o fim da pluralidade expressa na doxa, mas uma
limitação de seu alcance. A polis ainda se apresenta como um “espaço das aparências”, regido
pela pluralidade - aqui intimamente ligado ao desvelamento da identidade do agente - e pela
igualdade entre cidadãos. A pluralidade da doxa ainda representa um elemento de instabilidade no
âmbito político, instabilidade esta inerente a todo agir, e como tal apresenta uma cisão com as
buscas de estabilidade política propostas pela tradição do pensamento político.

1.3.2-As soluções da tradição do pensamento político

Arendt se refere em vários textos ao que denomina tradição do pensamento político, que,
grosso modo, representaria o fato de que a tradição filosófica ocidental mostra o que Arendt
caracteriza como aversão á atividade política e, conseqüentemente, traria em seu interior uma
ameaça á condição da pluralidade.
A ação, como mencionado anteriormente, prima pelas suas fragilidades: sua
ilimitabilidade, sua imprevisibilidade e sua irreversibilidade; Tais fragilidades são em grande
medida tributárias do perspectvismo – a manifestação das diferentes posições que cada um ocupa
no mundo través da ação e do discurso- que anima a atividade política. A desconfiança da tradição
do pensamento político se situa justamente na ausência de um absoluto que orientaria a política.
Arendt data o nascimento da tradição do pensamento político no impacto que o julgamento
de Sócrates pela polis exerceu na filosofia platônica: tal impacto se traduziu em hostilidade ao
âmbito político, especialmente á troca de opiniões que caracteriza o discurso. Cabe notar que a
chave da relação entre a tradição do pensamento político e a atividade política se encontra na
oposição entre a existência do filósofo – baseada na singularidade – e o modo de vida político –
baseado na pluralidade . A tradição do pensamento político se orientava na busca de transformar a
política em uma atividade que garantiria a continuidade do modo de vida do filósofo: a
preocupação com a continuidade da vida filosófica decorre justamente da pena imposta a
Sócrates. As soluções nascidas de inserção do modo de vida filosófico ao âmbito político
eliminariam a cambiância dos negócios humanos, vista, sob a perspectiva platônica como a
origem da pena de Sócrates. Portanto, as respostas filosóficas á instabilidade dos negócios
humanos não se originaram de uma preocupação com o âmbito político per si, mas busca de uma
garantia á vida contemplativa.
O diálogo entre cidadãos, em que cada opinião é exprimida, tem um papel fundamental na
polis e Arendt define a doxa, a opinião, como não só capaz de externalizar o lugar ao mundo
ocupado pelo cidadão, mas também como o elemento que permite a definição da identidade
pública: “A palavra doxa não significa apenas opinião, mas também esplendor e fama. Como tal,
ela esta relacionada á esfera política na qual todo mundo pode mostrar quem é. Afirmar a própria
opinião fazia parte de mostrar-se, de ser visto e ouvido pelos demais” (socrtes 56). O discurso – a
possibilidade de afirmar seu lugar no mundo – é parte constitutiva de uma identidade pública;
Essa conexão entre discurso e identidade caracteriza um dos resquícios do heróico homérico na
organização e na atividade política da polis.
Sócrates não contrapunha a doxa a uma verdade única e estável que orientaria a atividade
política na polis. De fato, o método socrático se baseava no diálogo, com vistas à expressão da
doxa de cada cidadão: a perspectiva individual sobre o mundo só se torna visível, só constitui uma
identidade, no momento em que é externalizada através do discurso. O método socrático centrado
na valorização doxa não só torna a opinião visível publicamente, mas também possibilita ao
portador da opinião reconhecer sua perspectiva. Como afirma Dana Villa:

Há uma tendência cotidiana de ser radicalmente inconsciente da própria doxa, da


própria perspectiva em relação ao mundo comum. A doxa precisa ser examinada,
extraída de nós (…) ser confrontado com a própria doxa e se tornar consciente de si
mesmo como individuo membro de uma comunidade e portador de uma perspectiva
única6 (270 ept. Trad. Nossa).

Os diálogos socráticos não propunham a lecionar a verdade a que o filósofo tem acesso,
mas antes, tornar visível a pluralidade existente na polis através da percepção aos cidadãos de que
uma opinião é uma opinião entre outras advindas de seus iguais.
Politicamente, este reconhecimento da multiplicidade de opiniões também exercia uma
influencia mitigadora sobre o espírito agonal grego:

[o] espírito agonal grego que, por tornar politicamente impossível a aliança entre
cidades-estado gregas e envenenar com inveja e ódio as relações entre cidadãos (...)
acabaria por causar a sua ruína, o bem-estar público vivia sob constante ameaça. Por

6 we tend, in everyday life,to be radically unaware of our own doxa, our own perspective in the common
world. It needs to be worked on, drowned out of us (…) to be delivery of our own doxa is to be made aware
of oneself as an individual member of a community , possessed of a unique perspective
constituir-se somente dos muros das cidades e das fronteiras de suas leis, o caráter
do mundo político não era visto nem vivenciado nas relações entre cidadãos, no
mundo que havia entre eles, que era comum a todos embora diferente a cada um
(socrates, 580).

Em contraposição á solução gregas ás fragilidades do discurso e da ação– o nomos- que


tinha como efeito a limitação de perspectivas ao interior do muros da cidade e, ao mesmo tempo,
buscava a limitação da ação tendo em vista a unificação dos papéis de agente e autor, como
anteriormente afirmado, a maiêutica socrática, ao tornar a cada um sua doxa conhecida e, por
conseqüência, se tornassem perceptíveis á doxa alheia, minizava o ideal heróico de competição.
Como afirma André Duarte:

(...) a maiêutica ensinava-nos a colocar-se na posição a partir da qual o mundo se


abre apara o outro, e não, evidentemente, a aceitar o ponto de vista de qualquer
outro. O ganho político deste exercício não dizia respeito ao conhecimento de todos
os pontos de vista possíveis sobre um determinado assunto político, mas á
explicitação do caráter comum do mundo em que tais gestos aparecem sob diversas
perspectivas diferentes. (...) (Duarte, 171).

A percepção do mundo comum através da opinião individual mitigaria o espírito agonal


grego, mas não através de uma verdade única que se opunha á multiplicação de opiniões, mas
através da percepção de que as opiniões derivam de um mundo comum que se localiza entre os
homens e que tal mundo é estável, durável e permanente. A ênfase se deslocava da identidade
heróica limitada aos muros da polis para a percepção do mundo comum. Este deslocamento
permite Arendt encontrar em Sócrates a figura do filósofo que, “quis - em vez de desempenhar um
papel político –tornar a filosofia aberta á polis ‘ (arendt, Sócrates, 69)
O pensamento, na filosofia socrática, tem como condição, o diálogo silencioso comigo
mesmo significando um constante auto- reexame e esta atividade solitária adquire relevância
política ao defender a polis e o cidadão de um código político- moral único, que não leva em
conta as contingências do mundo. Afirma Arendt:

Para Sócrates, o homem não é ainda um ´animal racional´, um ser dotado da


capacidade de razão, mas um ser pensante cujo pensamento se manifesta na forma
de discurso. Até certo ponto, esta preocupação com o discurso já existia na filosofia
pré-socrática, e a identidade entre discurso e pensamento, que juntos são logos é ,
talvez, uma das características mais notórias da cultura grega. O que Sócrates
acrescenta a essa identidade foi o diálogo do eu comigo mesmo como a condição
primaria do pensamento. A relevância política da descoberta de Sócrates é que ela
afirma a solidão, antes e depois de Sócrates tida como perspectiva e habitus
profissional e exclusivo do filósofo, e que a pólis considerava ser naturalmente
antipolítica, é, ao contrario a condição para o bom funcionamento da polis (arendt,
Sócrates, 66-67).

Dentro da perspectiva socrática, o modo de vida singular do filósofo – o diálogo consigo-


mesmo- pode desempenhar, colateralmente, o papel de mantedor da pluralidade. Arendt afirma
que a atividade de pensar nos retira a segurança que possuímos anteriormente, as convicções que
possuíamos no momento em que nos encontramos envolvidos no mundo: as regras de conduta que
aplicamos ás contingências particulares do mundo não resistem ao constante reexame do
pensamento (RJ psm). Ao reexame que constitui o pensamento não cabem regras orientadoras
alheias a este diálogo consigo mesmo, e assim a adoção de um critério orientador e único no
âmbito da pluralidade é impermeável ao reexame do pensamento do homem no singular.
O nascimento da tradição do pensamento político, que se inicia com a filosofia platônica,
tem no conflito entre a verdade acessível ao filosofo e as opiniões do cidadão sua principal marca.
Se a política vivenciada na polis era entendida como a manifestação da perspectiva do cidadão do
seu lugar no mundo, a filosofia platônica introduz na política um absoluto na figura da verdade
resultante da contemplação que se localizaria acima das interações que têm lugar teia de relações
humanas. A filosofia política platônica funda-se na verdade absoluta a que o filósofo tem acesso e
na subseqüente imposição destas verdades como guias e orientadora do âmbitos político. É
possível entender o conflito entre cidadão e filósofo como o conflito entre a verdade filosófica,
imutável e eterna e a as perspectivas plurais dos cidadãos, sujeitas á contingência do mundo:trata-
se da contraposição das inúmeras opiniões existentes na interação entre cidadãos e a verdade
eterna e imutável resultante da contemplação. A contemplação permite a recepção de uma verdade
única, transcendente e imutável, e esta verdade subordina o perspectivismo da atividade política á
contemplação. Como afirma Arendt:

(...) a enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro tipo de atividade,


inclusive a ação, não é de origem cristã. Encontramo-la na filosofia política de
Platão, em que toda reorganização da vida na pólis é não apenas dirigida pelo
superior discernimento do filósofo, mas não tem outra finalidade senão tornar
possível o modo de vida filosófico (ch17).

A superioridade da verdade filosófica advém justamente de sua unicidade, de sua


eternidade e transcendência em relação á pluralidade da doxa, derivadas das contingências um
mundo de aparências. O rótulo de superioridade da verdade filosófica é conquistado, segundo
Arendt, pelo impacto do julgamento de Sócrates que levou Platão a “desdenhar as opiniões” ao
ver Sócrates condenado pela opinião ateniense (ARENDT SOCRATES). Assim, na ótica platônica
há uma verdade que não só orienta os assuntos humanos, mas, principalmente, se aplicada á
política permite a continuidade da vida contemplativa.
Segue-se que o filósofo platônico tem o papel de impor as verdades derivadas da
contemplação ao âmbito dos negócios humanos, de modo que sua segurança seja mantida. A
introdução da verdade transcendente ao âmbito político se apresenta de imediato como uma
ameaça á pluralidade. Não se trata apenas da óbvia substituição das inúmeras perspectivas dos
cidadãos pela verdade filosófica, mas também do fim do diálogo consigo mesmo no interior do
filósofo: há, segundo Arendt, uma correspondência entre o diálogo interior consigo mesmo e a
pluralidade expressa através do diálogo político entre iguais:

A faculdade do discurso e o fato da pluralidade humana correspondem-se


mutuamente, não apenas no sentido em que eu uso palavras para comunicar-me com
aqueles com quem convivo no mundo, mas, ainda mais relevante, no sentido de que,
falando comigo mesmo, convivo comigo mesmo. (ARENDT, SOCRATES, 62).

Análoga á convivência entre iguais, ao estar-junto atribuído ao corpo político, há o estar-


junto consigo próprio que é o fundamento do pensamento socrático. Portanto, o diálogo interior
socrático é também uma manifestação de pluralidade e, enquanto o filósofo se orienta pela
verdade única acessada através da contemplação renega-se simultaneamente o diálogo entre o
dois-em-um socrático em nome da verdade única filosófica. Cabe notar que a atividade do
pensamento, segundo Arendt, não produz verdades ou conclusões (pcm), sendo apenas o reexame
constante de si mesmo e, portanto, não guarda relações com a contemplação e sua busca de uma
verdade definitiva.
A abolição da pluralidade no interior do filósofo não é totalmente possível, pois o filósofo,
sendo ainda um homem, ainda vivencia esta pluralidade interior (arendt, Sócrates). A solução para
a presença desta pluralidade interior se encontra, na perspectiva platônica, na submissão do alma
ao corpo- este ultimo habitando o âmbito dos negócios humanos. Como explica Arendt:

(...) foi este conflito [entre a pluralidade interior e a verdade filosófica] que Platão
tentou generalizar como o conflito entre corpo e alma; ao passo que o corpo habita a
cidade dos homens, o divino que a filosofia percebe é visto como algo que é ele
próprio divino –a alma- e de alguma forma separado dos negócios humanos. Quanto
mais se tornar verdadeiro o filósofo, mais o filósofo se separa de seu corpo, e, dado
que enquanto estiver vivo, essa separação não poderá se concluir, ele tentara fazer o
que todo cidadão livre de Atenas fazia para libertar-se e separar-se das necessidades
da vida: governar o próprio corpo como o senhor governa os seus escravos (arendt,
Sócrates, 71).

Na impossibilidade de efetivar a condição de pluralidade - neste contexto entendida como


sua capacidade de se engajar no diálogo interior-, a filosofia platônica hierarquiza as capacidades
do filósofo: a pluralidade que se manifesta no seu interior é submetida á verdade que o filósofo
percebe através da contemplação, de maneira análoga á submissão das necessidades da vida á
primazia da atividade política, transformando, como afirma Anne Amiel, “(...) o acordo amigável
consigo próprio em relação de comando e obediência, concebida como obediência do corpo á
alma (amiel, 90).”
Esta relação de subordinação entre a alma e o corpo no interior do filósofo é transposta ao
domínio político, trazendo consigo a relação de mando e obediência ao âmbito político á
semelhança da relação de mando e obediência que acontece no interior do filosofo:

O conceito do exercício de poder, tal como encontrada em Platão e como se tornou


autoridade na tradição do pensamento político, tem duas fontes distintas na
experiência privada: uma foi a experiência que Platão compartilhou com os gregos ,
segundo o qual o exercício de poder consistiria primordialmente em dominar
escravos e se expressa como a relação senhor-escravo, de mandar e obedecer. Outra
foi a necessidade utópica do filosofo de se tornar o governante da cidade, isto é, de
impor a cidade idéias (...) Estas não podem ser comunicadas á multidão á maneira
convencional de persuasão (...) porque sua revelação e percepção não são
comunicáveis pela via do discurso e menos ainda pela via do discurso que
caracteriza a persuasão” (atpp,99).

Se o filósofo abole o diálogo no seu interior e o substitui pela hierarquia entre o corpo –
que habita a cidade – e alma – capaz de contemplação- , quando esta hierarquia é transposta ao
domínio político, o filósofo percebe a cidade como um corpo, que deve ser controlado de modo
que as demandas da cidade não ameacem a contemplação. O paralelo é traçado a partir do
governo que o senhor exerce sobre o escravo, governo este em que o escravo satisfaz as
necessidades da vida biológica no âmbito domestico de modo que o cidadão pudesse se dedicar á
política (arendt, Sócrates). A percepção da cidade como um corpo proporciona a abolição da
possibilidade da ação, já que a condição da pluralidade – que permite a efetivação da ação – é
extinta. Como expõe Margaret Hull:

(…) a introdução de um universal rígido e absoluto obstrui a habilidade de


desenvolver um “quem” distinto através da ação política. Se não bastasse, um
universal, na visão de Arendt, destrói a própria ação política já que, através da
atividade política cada individuo é capaz de transcender o mero “ o que” que define
alguém (..)ao invés de um desenvolvimento frágil e gradual de “ quem” alguém é
através de atos e palavras(...)7(32).

Assim, a cidade é vista á semelhança de um único homem, que possui características


comuns ao homem como entidade única, como consequência de um âmbito público estruturado
para não permitir a expressão da unicidade de cada cidadão originada de atos e palavras: a
identidade única de cada um não está presente e , portanto, a espontaneidade não encontra lugar
em uma comunidade política orientada por uma única verdade.
No trecho acima citado, Arendt se refere á verdade filosófica que comanda a cidade como
não comunicável pelo discurso e pela persuasão. A incomunicabilidade da verdade nasce do
thaumadzein, do espanto do filosofo frente ao eterno que é objeto de contemplação:

Thaumadzein, o espanto com o que é porque é, para Platão, é um pathos, algo do


que se padece e , como tal, completamente distinto do doxadzein, formar uma
opinião sobre algo. O espanto que o homem padece ou que lhe cabe não pode ser
relatado em palavras, por ser demasiado geral. (ARENDT, SOCRATES, 77).

A experiência mundana sempre se refere às contingências do mundo, enquanto que a


experiência do espanto do filósofo se refere ao eterno, que não é dotado de especificidade, isto é,
7 (…) the introduction of a strict universality and absoluteness preclude the ability to develop a distinct
”whoness” through political action. If nothing else, the universal destroys political action in Arendt´s eyes,
since, through political activity each individual is able to forsake the mere ”whatness” of one´s being (..) in
favor of a gradual and fragile development of one´s “who” through unique speech and deeds
trata-se da experiência com o geral que é detentor de uma validade permanente e intraduzível em
palavras. O nascimento da filosofia através da experiência do espanto, como nota Anne Amiel,
caracteriza a filosofia como uma experiência solitária e supra mundana. (ref ).
No entanto, toda verdade coage seja a verdade fatual, seja a verdade racional, seja a
verdade filosófica, e todas têm em comum o faro de serem impermeáveis á discussão. Arendt
afirma: “Para aqueles que as aceitam [a verdade], elas não são alteradas pela multidões ou pela
ausência de multidões que acolhem a mesma preposição; a persuasão ou a discussão é inútil, pois
o caráter da asserção não é de natureza persuasiva e sim coercitiva” (vp, 297).
O governante, quando guiado pela verdade, substitui o herói, fazer de grandes feitos e
pronunciador de palavras pelo estadista (arendt, oqh). A função do governante em um corpo
político impermeável a discussão, fundamentado na verdade filosófica, é executar os padrões
derivados da verdade (dana Villa), não mais agir efetivando sua unicidade: o âmbito político é
agora dotado de um elemento orientador ao qual cabe ao governante executar. Assim, da verdade
filosófica surge a divisão entre governantes e governados, cujo critério é justamente o acesso á
verdade transcendente: a divisão entre aquele que executa a política baseado nestes padrões e
aqueles que vivem sob estes padrões.
Se a verdade é inume á deliberação, resta saber de onde deriva sua legitimidade, isto é,
como coagir a multidão a seguir um guia derivado de uma proposição não comunicável. Arendt
destaca o papel dos mitos platônicos como forma de legitimar o governo do rei-filósofo, de modo
que a verdade filosófica seja seguida e não apenas percebida pela multidão como mais uma
opinião, mas como padrões absolutos e reguladores do âmbito político. A persuasão, como afirma
Arendt, é a única forma de lidar com a multidão (oqa,176), porém, a verdade é impermeável a
persuasão, e a solução platônica para este dilema de legitimidade reside na criação do mito de
castigos e recompensas em uma vida futura, presente nos capítulos finais de A República.
A crença em um estado futuro após a morte torna supérflua a persuasão: a multidão
legitima os padrões do filósofo, mesmo sem acessar estes padrões, amparados na existência além
vida, que promete castigos ou recompensas baseados na obediência ás regras do corpo político
derivadas da verdade filosófica. Cabe notar que Platão, ao introduzir na política a coerção através
de um mito de vida futura introduz na política grega um elemento de coerção, que contrasta com a
igualdade reinante na polis (amiel).
Se a crença o inferno se destina á multidão que não acessa a verdade, a alegoria da
caverna, descrita em A República se destina a explicitar a relação entre política e filosofia para
aqueles capazes de contemplação (Sócrates,oqa). Como os mitos infernais justificam a verdade
através da crença em um estado além da vida destinada àqueles que não acessam a vida
contemplativa, a alegoria da caverna se destina àqueles que também são capazes de contemplação.
Esta destinação do mito da caverna é notada por Atendt pelo fato de que as personagens da estória
não fazem uso da palavra, mas apenas contemplam as sombras na parede. Como afirma Arendt:

Na verdade, as duas palavras mais significantes para designar a atividade humana,


fala e ação, estão conspicuamente ausentes da história. A única ocupação dos
habitantes da caverna é olhar para a parede; e é óbvio que lhes encanta o poder de
ver, independente de qualquer necessidade filosófica (Sócrates, 75).

Assim, aqueles que estão na caverna estão sujeitos ao reino das aparências, imersos na
contemplação e nada comunicando ou deliberando. Ainda que não em contato com a realidade a
que o filósofo tem acesso, a contemplação é o que define esta comunidade. A fonte da
legitimidade do governo do filósofo–rei é a sua capacidade de contemplação, capacidade esta que
divide com seus companheiros na caverna, mas a contemplação daquele que governa não se limita
ás aparências- ás sombras na parede - mas a verdade transcendente a que o filósofo tem acesso ao
sair da caverna.
A ausência da política – ação e discurso- é justificada pelo projeto platônico que visa
descrever,nas palavras de Arendt: “como a política, a esfera dos assuntos humanos parece do
ponto de vista da filosofia (Sócrates)”. Do ponto de vista da filosofia platônica a política não é
entendida como a atividade em que diversas perspectivas interagem, mas como o âmbito em que a
contemplação é o principal modo de existência. A condição humana descrita na alegoria da
caverna é apolítica, o que garante o governo do rei-filósofo (Ca).
A legitimidade da verdade platônica é, portanto, descrita através dos mitos – seja no mito
de recompensas e castigos futuros, seja no mito da caverna- no entanto, resta a questão de como
uma verdade transcendente e incomunicável pode ser transposta ao âmbito dos negócios humanos
ou, posto em outras palavras, como aplicar a verdade filosófica ao domínio político.
Na filosófica platônica há uma modificação no interior da teoria das Formas: a Forma do
belo, antes considerada a forma máxima de contemplação, cede lugar ao Bem. Tal modificação, na
leitura arendtiana, se dá em um contexto político com a finalidade de permitir o governo das
idéias na polis.
Desde o ponto de vista da idéia em si, que pode ser definido como aquilo que
ilumina, o belo, que não pode ser utilizado , mas apenas resplandece, tinha muito
mais direito de ser eleito a idéia das idéias. A diferença entre o bom e o belo, para
nós com certeza e ainda mais para os gregos, é que o bom aplicável e contém e si
mesmo um elemento de uso. Foi somente iluminando a esfera das idéias com a idéia
de bem que Platão pode lançar mão das idéias para propósitos políticos (...) e erigir
sua ideocracia, onde as idéias eternas foram traduzidas em leis humanas (socrates
52).

O critério nesta mudança na filosofia platônica não é mais a possibilidade de


contemplação pura, mas a possibilidade de traduzir o que é contemplado para o âmbito político.
Como Arendt afirma, a idéia de bem se equivalia na Grécia, á idéia de “bom para”, representando
de maneira óbvia uma Forma que poderia ser traduzida á teia de relações humanas (ref).
As idéias como guia seriam padrões de comportamento, e, na analogia traçada por Arendt,
as idéias equivaleriam ao metro, que transcende todas as outras coisas que deveria medir (oqa)
assim, o bom para, como uma verdade filosófica, transcende tudo aquilo que deve medir, servindo
de orientador aos negócios políticos. De acordo com Miguel Abensour, há uma modificação na
função das Formas:” a função de mensuração triunfou sobre a função das Formas de
contemplação das essências8” (970. Trad nossa).
Com a adoção da idéia do bem como padrão, Platão aproxima a política do processo de
fabricação: a comunidade política deve ser construída de acordo com um modelo transcendente, a
semelhança do modelo que orienta o artífice na fabricação de um objeto tangível.
A partir da transposição da fabricação ao reino da política, um novo elemento adentra o
âmbito dos negócios humanos: um absoluto, que guiaria as interações humanas e que se
localizaria acima da ação e do discurso. O produto acabado da obra é a materialização de um
modelo mental imaginado pelo artífice. Nas palavras de Arendt:

esse modelo pode ser uma imagem vista pelos olhos da mente ou um esboço, no
qual a imagem já passou por um ensaio de materialização por meio da obra. Em todo
caso, o que orienta a obra de fabricação está fora do fabricante e precede o efetivo
processo da obra. (arendt, ch,, 175).

Ao transpor o processo de fabricação ao âmbito político, a orientação dos negócios


humanos se faz através de uma idéia que se localiza acima e além da interação proporcionada pelo
discurso e pela ação: a espontaneidade inerente á atividade política é substituída pela guia do
“bom para “, da mesma forma que o modelo guia o artífice. O bem possui a aplicabilidade, a
possibilidade de servir como guia ao âmbito político e permite á construção de um corpo político
como o artífice constrói um objeto.
O processo de fabricação é imbuído de violência. Arendt explica a obra como a
modificação –ou melhor, dizendo a violação- da natureza por mãos humanas: o artífice retira a
matéria prima da natureza e a modifica em um objeto tangível e mundano(ch, ref). Quando
transposto ao âmbito político, este elemento de violência inerente á fabricação é traduzido como
tirania. Como afirma Arendt: “(...) se a república deve ser feita por alguém que é o equivalente
político de um artesão ou de um artista, conforme uma técnica estabelecida e com regras e
medidas válidas nesta arte em particular, o tirano esta, com efeito, na melhor posição de
estabelecer o objetivo” (oqa, 152).
A imposição de padrões na construção de um corpo político se presta melhor aonde o
espaço de deliberação esta ausente, onde a deliberação dá lugar ao modelo acabado do artífice
político, explicado a conexão entre um absoluto transcendente na política e a tirania.
Arendt afirma ainda que Aristóteles, apesar das discordâncias com a filosofia platônica,
8 it is the function of measurement that triumphs over its function of contemplation of essences .
também perpetuou um conjunto de elementos que permaneceram na tradição do pensamento
político. A oposição encontrada em Platão entre a multidão e o filósofo, ou entre o modo de vida
contemplativo e o modo de vida político também é presente na filosofia política aristotélica.
Aristóteles, porém, adiciona á tradição do pensamento político um novo paradigma de
legitimidade no elemento de estabilidade na polis descrito em sua filosofia política.
Se a relação entre governar e ser governado deriva,na filosofia platônica, da atividade da
obra, a estabilidade política introduzida por Aristóteles tem como paradigma outra relação: a
relação entre professores e alunos. Arendt diferencia as fontes deste elemento anti-igualitário na
política em Platão e Aristóteles:

Para ele [Aristóteles], a razão não possuía características ditatoriais ou tirânicas (...)
A razão que aduz para sustentar que cada organismo político se compõe daqueles
que governam e daqueles que são governados decorre da superioridade do perito
sobre o leigo, e ele é bastante cônscio da diferença existente entre o agir e o fazer
para ir buscar seus exemplos na esfera da fabricação. Aristóteles foi, até onde posso
ver, quem primeiro recorreu, com o fito de estabelecer o governo no trato com os
assuntos humanos, á natureza que “estabeleceu a diferença entre os mais jovens e os
mais velhos, destinados uns a serem governados e outros a governar (oqa157).

Arendt é cônscia da importância na filosofia aristotélica da concepção polis como uma


comunidade onde está ausente o dominar e ser dominando, e o elemento autoritário, introduzido
pela filosofia Aristotélica – significando o elemento de estabilidade frente ás fragilidades da ação
– não deriva da linguagem de governo ou hierarquia. Segundo Arendt, Aristóteles busca no
domínio privado os fundamentos para uma organização da polis que minimize o debate
deliberativo que caracterizava a cidade–estado grega. Para tanto, é necessário descrever a
organização do domínio privado grego, cuja prioridade era satisfazer as necessidades da vida:

O domínio sobre a necessidade tem então como alvo controlar as necessidades da


vida, que coagem os homens e os mantêm sobre o seu poder. Mas tal domínio só
pode ser alcançado controlando os outros exercendo violência sobre eles, que, como
escravos, aliviam o homem livre de ser ele próprio coagido pela necessidade. O
homem livre, o cidadão da polis, não e coagido pelas necessidades físicas da vida
nem tampouco sujeito á dominação artificial dos outros (oqa,159).

A polis, como afirmado anteriormente, se fundamentava em uma igualdade artificial, em


que as desigualdades naturais eram secundárias frente ao rótulo de cidadão e de possibilidade de
participação política. Entre cidadãos, não é possível haver desigualdade sob a pena de ameaçar o
debate que caracteriza a atividade política. O domínio privado, por outro lado, se fundamenta em
desigualdades e se organiza sob a égide destas desigualdades: o âmbito familiar – oikos – se
estrutura sob o domínio de um senhor sobre escravos, como uma forma de manter as necessidades
da vida satisfeitas, de modo que fora do âmbito doméstico, aqueles que exerciam poder sobre
escravos poderiam participar da atividade política. Essa desigualdade, porém, não é a única que se
apresenta no âmbito domestico grego. Este âmbito, sendo regido pela natureza oferece a
desigualdes entre jovens e velhos. Tal exemplo, extraído de A Politica por Arendt oferece a chave
para se compreender a visão aristotélica da polis e seu elemento autoritário e externo á atividade
política:A desigualdade entre jovens e velhos, ao ser transposta ao âmbito político, percebe a polis
como um ambiente educacional (o que a). O paralelismo da educação com a atividade política
oferece um risco á atividade política, na medida em que ameaça o debate entre iguais na cidade.
Nas palavras de Dana Villa;

It follows that the primary task of the political community will not encourage end-
constitutive debate, but rather to enforce the nomos (…) upon the citizen body. It
does through a regime of moral education that last a lifetime and draws it
effectiveness from its coercive power.

Cabe notar que enquanto a coerção platônica se fundamentava na razão ou, no caso de ser
direcionada á multidão, nos mitos infernais, a coerção aristotélica se fundamenta na desigualdade
natural, que se transmuta em um saber moral, que projeta a polis e o nomos em elementos de
manutenção deste saber.
Se há um ponto comum nas filosofias política de Platão e Aristóteles, tal ponto comum se
encontra na imposição de valores exteriores ao âmbito da política- no domínio do discurso e da
ação-, ou, em outras palavras, na busca deste absoluto exterior que se mantêm por toda a tradição
do pensamento político. Mais ainda, a tradição do pensamento político introduz a hierarquia entre
governantes e governados, relegando a experiência coletiva da teia de relações humanas a
segundo plano. Estes elementos externos á política e a hierarquia que deles deriva, apesar de não
terem em vista a política em si, visam mitigar o perpectivismo, a falta de limites fixos da ação,
percebidas como antagonistas das verdades e do modo de vida do filósofo alimentando uma
ameaça á própria pluralidade. No entanto, cabe notar que no interior do próprio âmbito político,
nas capacidades da ação, é possível encontrar remédios as suas fragilidades, que visam não o
modo de vida do filósofo, mas a manutenção da pluralidade: o perdão e a promessa.

1.3.3-O perdão e a Promessa

Se, por um lado, a polis remediava a ilimitabilidade da ação através da “fabricação” de sua
lei e, se por outro a tradição do pensamento político na busca de estabilidade no âmbito dos
negócios humanos ameaça a própria condição da pluralidade, Arendt afirma que há, em
experiências inerentes ao “estar-junto” entre os homens a capacidade de mitigar as fragilidades da
ação: o perdão e promessa.

A redenção possível para a vicissitude da irreversibilidade – da incapacidade de se


desfazer o que se fez (...)- é a faculdade de perdoar. O remédio para a
imprevisibilidade, para a incerteza do futuro, está contido na faculdade de prometer
e cumprir promessas. As duas faculdades foram um par, pois a primeira delas, a de
perdoar, serve para desfazer os atos passados, cujos “pecados” pendem como a
espada de Dâmocles sobre cada geração; e a segunda , o brigar-se através de
promessas, serve para instaurar no futuro, que é por definição um oceano de
incertezas,” ilhas de segurança” sem as quais nem mesmo a continuidade, sem falar
na durabilidade de qualquer espécie , seria possível nas relações entre os homens’
(ch, 295).

As faculdades do perdão e da promessa relacionam-se intimamente com o elemento


inédito que define a ação. O inesperado, depois de ressoar na “teia de relações humanas”
representa um risco: temporalmente, pode-se afirmar que o perdão lida retrospectivamente com os
efeitos da ação, enquanto a promessa estabelece, em certa medida, controle nos futuros efeitos do
agir.
O perdão e promessa detêm importância na “teia de relações humanas” na medida em que
asseguram a manutenção e permanência do corpo político. A identificação das potencialidades
políticas da promessa e do perdão, porém, não se dá apenas pela proteção que oferecem ao espaço
público, mas principalmente porque o perdão e a promessa são eles próprios ações. Ambos
permitem a revelação da identidade do agente e ambos efetivam a condição da pluralidade.
O perdão é direcionadado a “quem age”:

Talvez o argumento mais plausível em defesa de que perdoar e agir são tão
intimamente ligados quando destruir e produzir resulte daquele aspecto do perdão no
qual a ação de desfazer o que foi feito parece ter o mesmo caráter revelador que o
próprio feito. O perdão e relação que ele estabelece constituem sempre um assunto
eminentemente pessoal (embora não necessariamente individual ou privado) no qual
“o que”é feito é perdoado em consideração a” quem” o fez.(ch 301)

. O perdão, segundo Arendt, não tem como elemento central o ato ; trata-se do
reconhecimento de que o agente que comete o ato permanece alheio ás ramificações e efeitos de
sua ação: o perdão é concedido tendo em vista a condição de agente, com todas as suas
vicissitudes, o perdão é concedida “em respeito á sua capacidade [do agente] de desencadear
novos atos para além de seus malfeitos” (correia,) . Infere-se, portanto, que nem todos os atos são
passiveis de perdão, apenas aqueles que, ressoantes com a imprevisibilidade da ação, produzem
inadvertidamente efeitos nefastos. O perdão, nas palavras de Arendt, se destina á “ofensas
cotidianas”, em que o agente desencadeou malfeitos ”sem o saber” (ch,300). Arendt define o
perdão como um “desfazer” de uma ação (Ch), de modo que um novo conjunto de interações
recomece.
Perdoar o agente em respeito á sua capacidade de iniciar algo novo permite caracterizar o
perdão como ação:

Se não fossemos perdoados, liberados das conseqüências daquilo que fizéssemos,


nossa capacidade de agir ficaria , por assim dizer, limitada a um único ato do qual
jamais nos recuperaríamos; seriamos sempre as vitimas de suas conseqüências, á
semelhança de um aprendiz de feiticeiro que não dispunha da f mágica para desfazer
o feitiço (ch, 295, 296) .

O perdão promove uma ruptura com as ações cujas consequências são indesejáveis: esta
ruptura permite caracterizar o perdão como uma “ação final” que permite que novas estórias
recomecem na “teia de relações humanas”.
A ação possui a capacidade de romper processos automáticos e tal ruptura é visível na
relação entre perdão e vingança. Arendt afirma que a vingança é uma “re-ação” a uma ação
indesejável, e o fato de se vingar mantém a “teia de relações humanas” refém do malfeito original.
Como afirma Margerite Lacaze:

For Arendt, revenge is a kind of automatism, whereby we simply ‘react’, unlike the
action of forgiving. In revenge we act like machines or animals without the power to
reflect or change history. In contrast, forgiving is linked to acting just like destroying
is linked to making. Revenge is destructive response 91530

A vingança inicia um processo automático, em que cada “re-ação” se conecta ao malfeito


original, eliminando a possibilidade de espontaneidade, um novo começo não orientado por um
meio-fim definido. A afirmaçã de Arendt da ação como ruptura pode ser vista com especificidade
na relação entre perdão e vingança, em que o perdão interrompe um processo automático e
cíclico.
O perdão como ação política não exclui a punição. De fato, Arendt afirma que: “A
alternativa ao perdão , mas de modo algum o seu oposto é a punição, e ambos têm em comum o
fato de que tentam pôr um fim a algo que, sem interferência adequada, poderia seguir
indefinidamente” (ch, 300, 301). Arendt ainda acrescenta que só podemos punir o que podemos
perdoar(ch), levando á possibilidade de atos que, segundo Arendt, não passíveis de perdão ou de
punição, e tais atos se caracterizam pela ausência de arrependimento. Para se compreender a
ligação entre perdão, punição e arrependimento, é necessário recorrer ao que Arendt considera “ o
mal sem raízes”: um mal que não se conecta com a faculdade da memória, que não se reexamina
constantemente e, por conseqüência, falta-lhe a “profundidade” proporcionada pelo pensamento:

(...) o maior mal perpetuado é o mal cometido por Ninguém , isto é, por um ser
humano que se recusa a ser uma pessoa. Dentro da estrutura conceitual destas
considerações, poderíamos dizer que o malfeitor que se recusa a pensar por si
mesmo, no que está fazendo e que, em retrospectiva, também se recusa a pensar no
que fez, isto é, voltar e lembrar o que fez (...) realmente deixou de constituir alguém.
Permanecendo teimosamente um ninguém, ele se revela inadequado para o
relacionamento com os outros que, bons,maus ou indiferentes, são no mínio pessoas
(pcm, 177).

Sem o reexame constante, sem a pluralidade interior da atividade do pensamento, não é


possível ser percebido, ao se relacionar com outros, como um agente único. A ausência de
pensamento que não retorna ao que fez, não o qualifica como ‘agente’, sendo impossível perdoar
o ato. Como afirma Claudia Hilb:
(...) o perdão – enquanto capacidade dos homens como atos da cena pública- implica
o arrependimento. Assim entendido, o perdão politicamente relevante é a ação que
resulta da capacidade dos homens fazerem-se responsáveis pela imprevisibilidade e
irreversibilidade da ação. Responsável quem julga que pode perdoar; responsável
quem cometeu o mal por inadvertência e que, no arrependimento, atualiza sua
capacidade de distinguir o bem que se quer do mal obtido. E podemos, por fim, pela
punição, recolocar a lei no lugar da afronta feita á ordem da comunidade, do
público, estruturando seu equilíbrio “ (166).

A “atualização da capacidade de distinguir o bem do mal” se insere, portanto, na atividade


do reexame, de se voltar ao que se cometeu, sendo uma manifestação da pluralidade interior do
agente que se espelha na capacidade de se relacionar com outros. O arrependimento, como uma
relação consigo mesmo, reflete a relação com o mundo.
O perdão direcionado ao “quem” (o agente) e não ao “o que” (o ato) permite relacionar o
ato do perdão com a condição da pluralidade. De acordo com Arendt,não é possível perdoar-se a
si mesmo (ch) como consequência de a identidade do agente ser impenetrável a si mesmo.O
reconhecimento da persona no âmbito público é alvo do perdão, e tal identidade não é
reconhecível por quem a detém; internamente o individuo mantém o debate plural consigo mesmo
porém, somente no âmbito publico, no papel de agente, é possível se apresentar como um “quem”
integralizado, reconhecível como tal e portanto receptível ao perdão.
A promessa, por seu lado, também é detentora da capacidade de revelar a identidade do
agente, neste caso, daquele que promete: a promessa não decorre apenas da incapacidade de se
prever as ramificações de uma ação, mas também, segundo Arendt, “ da obscuridade do coração
humano, ou seja, da inconfiabilidade fundamental dos homens que jamais podem garantir hoje
quem serão amanhã”CH. A identidade do individuo é dependente tanto de um mundo constituído
de objetos tangíveis, como também a identidade encontra abrigo no reconhecimento daqueles com
quem se compartilha o domínio público. A promessa mantém um grau de certeza nas ações futuras
e este grau de certeza se estende á identidade que “aparece” no domínio público, ou seja, a
identidade é reconhecida no futuro como aquele que faz promessas. Como afirma La caze; está
presente“ (…) the hope that promise will be kept links us to others and the certainty that keeping
promises confirms our identities” (153). A pluralidade presente na promessa se concretiza tanto na
percepção do agir coletivo, que torna a ação ilimitada e imprevisível, quanto na ligação
estabelecida quando se promete.
A promessa mantém o corpo político, isto é, garante sua estabilidade frente á pluralidade
de agentes-espectadores: o corpo político não depende da delimitação de uma lei invariável de
forma a se manter – como no nomos da polis - muito mesmos de sua conformidade com padrões
estabelecidos fora do âmbito da pluralidade, mas antes, depende de uma certa continuidade
presente tanto na identidade dos agentes que são parte do corpo político, como nas ações que
futuramente se concretizarão. Cabe notar, porém, que a previsibilidade garantida pela promessa é
limitada: a promessa se apresenta como “ilhas de segurança” em um oceano de incertezas. A
limitação da possibilidade de promessa garante que o corpo político ainda abrigará o inesperado;

No momento em que as promessas perdem ser caráter de isoladas ilhas de certeza


em um oceano de incerteza, ou seja, quando se abusa dessa faculdade para abarcar
todo o terreno futuro e traçar caminhos seguros em todas as direções, as promessas
perdem seu poder vinculante e todo o empreendimento acaba por se autosuprimir
9ch, 3050.

As promessas se situam em um contexto em que a imprevisibilidade e a ilimitabilidade,


como consequências do agir, permanecem presentes, no entanto, a generalização da promessa no
domínio político a emergência da soberania no corpo político e o estreitamento da possibilidade
de ação..
A liberdade, no pensamento de Arendt, é entendida como liberdade de ação. Mesmo no
âmbito político, aonde as fragilidades da ação parecem manter o agente preso a atos nos quais não
possui controle sobre limites ou ramificações de suas ações, a liberdade é efetiva na capacidade de
iniciar algo novo, de se “chamar á existência o que antes não existia, e que não foi nem mesmo
concebido como um objeto de cognição ou de imaginação, e que não, era, portanto estritamente
conhecido” (oql,198). A promessa representa, portanto, um elemento de soberania que se
manifesta na possibilidade de “dispor do futuro como o presente” (CH), de se manter um nível de
controle sobre as ações, mas como tal, deve se limitada de modo que a possibilidade de ação
continue a se manter no corpo político.
Arendt afirma que:

(...)obviamente nem a capacidade do homem para a mudança nem sua capacidade


para a preservação, são ilimitadas. Sendo a primeira imitada pela limitada pela
extensão entre o passado e o presente –nenhum homem começa ab ovo- e a segunda
pela imprevisibilidade do futuro (cr72).

A promessa, em sua ligação para o passado permite ao homem nascer em um mundo já


constituído, estável, aonde pode atuar como agente: a promessa cria um vínculo temporal entre e o
momento em que são feitas e o momento em que são cumpridas. Como explica Vanessa Lemm;

For Arendt, the faculty of promise is essentially a faculty of memory that has the
power to bring people back to their begging, that is, back to the moment when they
agreed in a propose. In this sense, the promise is a reminder that helps bounding the
groups together and linking the individual back to the past from which it happened
and from which it can begin again.

.Essa ligação entre passado e future fornece um equilíbrio entre a possibilidade de ação e
estabilidade do âmbito público. Politicamente, tal relação encontra sua expressão no momento de
fundação do corpo político, que permite, através de um passado estabelecido, que novas ações se
iniciem, conciliando o inicio do corpo político com os novos agentes que nele adentram.
O perdão e promessa são soluções os riscos do âmbito político que emergem das próprias
potencialidades da ação e, portanto, contrastam os padrões que se perpetuam na tradição do
pensamento político, que minimizam a pluralidade e a ação. Arendt caracteriza o perdão e a
promessa como os “únicos preceitos morais que não são aplicados á ação a partir de fora, de
alguma faculdade supostamente superior, mas sim da experiência da própria ação” (ch 306). O
perdão e a promessa estabelecem relações horizontais, contrastando com o viés hierárquico
presente na tradição do pensamento político. Cabe lembrar que a hierarquia presente na tradição
do pensamento político se origina na relação de mando e obediência instituída no interior do
filosofo, enquanto que o perdão e a promessa, como firma Arendt, “ são experiências que
ninguém pode ter consigo mesmo”, assim, o perdão e promessa reafirmam a pluralidade e se
opõem ao “governo de si” platônico (ch).
Esta discordância com a tradição se traduz na ausência do perdão, e, em certa medida, da
promessa, nos quadros normativos da tradição. A origem religiosa do perdão, que Arendt atribui á
Jesus de Nazaré, sobrevive residualmente no âmbito político, como nos institutos da anistia e
perdão presentes no sistema judiciário (arpp) enquanto que a promessa traduzida pela tradição se
diferencia da promessa como uma potencialidade da ação. A promessa tal como descrita por
Arendt encontra ressonância em experiências políticas tais quais a lei romana ou a constituição
americana, no entanto, tais experiências se diferenciam das teorias contratualistas no que diz
respeito á igualdade entre agentes.
2 - autoridade e estabilidade

2.1- a lei como promessa

Em contraste com a lei como limite entre o âmbito político, a polis, e o exterior, a lei
romana era concebida como uma aliança entre partes diversas. A concepção romana de lei é
fundamentada na faculdade de prometer e era sinônimo de ligação entre aqueles capazes de
promessa. Esta concepção de lei deriva da fundação da cidade de Roma: em contraste com
os gregos, os romanos se viam como descendentes daqueles que foram derrotados na Guerra
de Tróia, e a fundação do novo corpo politico advém de seu contrato com os povos que já
habitavam a península itálica. A fundação da cidade de Roma através do tratado se mantém
presente na política romana, em que cada nova promessa, além de dotar o corpo político de
estabilidade diante das incertezas do futuro, reencena a promessa inicial que originou o corpo
político.
Graças à importância da promessa, a politica romana permitiu uma multiplicidade de
perspectivas, que, na polis, se limitavam ao interior da cidade e à narrativa posterior dos fatos:

É como se comparasse aqui a bilateralidade político-espíritual e a


imparcialidade do poema homérico com uma realidade plena e cumprida que
realiza algo nunca antes realizado na História (,,,) ou seja, a plena justiça com
a causa ara com a causa dos vencidos não por parte da posteridade julgadora
(…) mas de parte do próprio decorrer histórico (107, oqp).

Por meio da promessa, os romanos não limitavam a perspectiva do vencido à narrativa


posterior dos fatos, isto é, à imparcialidade historiográfica pu poética, mas ao próprio
“decorrer histórico” ou seja, á própria atividade política presente. A multiplicidade de
perspectivas, através da celebração de tratados era parte fundamental do que hoje é
considerado politica externa e definia a atividade politica cotidiana
A promessa, ao unir diferentes partes, cria um novo ”espaço-entre” as partes
contratantes, expandindo o domínio politico. Esta expansão da mundanidade permite aos
romanos incluir a legislação como uma atividade política, ao contrário da formulação do
nomos, que era concebido como uma atividade pré-política. Como Arendt afirma, as leis
gregas eram concebidas à semelhança dos muros da cidade, eram leis construídas como um
palco imutável aonde a ação poderia se desenrolar:
A lei, como os gregos a concebiam, não era acordo nem contrato, não surgia
entre os homens na fala das partes no agir e no contra-agir e, por conseguinte,
não é algo inserido no âmbito político , mas é, em essência, imaginada por
um legislador e precisa ser aprovado, antes de poder entrar na coisa política,
como tal é pré politica no sentido de ser constitutiva para todo ulterior agir
politico e lidar politicamente entre si '(oqp, 113).

A lei grega, portanto, não era uma resultante da ação, enquanto a lei romana se
originava da pluralidade, dos diferentes lugares no mundo que cada parte ocupa e de sua
interação em relação às contingências mundanas. Esta interação criava um espaço comum
entre as partes, espaço este constituído da capacidade de ambas as partes de agirem e de se
revelarem enquanto agentes políticos.
Se o nomos representava um meio de mitigar a ilimitabilidade da ação, essa mitigação
ocorria às custas da pluralidade. Peg Burghman afirma que (…) he law posesses the identity
od the greek citizen, which Arendt argues is first gained in battle . Greek political identity is
for Arendt initially gained in the violence of the war and then establishe legally in the
internbal booraland betwwen free citizen and slave (113). O elemento de violência presente
na perspectiva grega de ação, nascida nos campos de batalha, se mantém na reserva grega da
atividade politica ao seu âmbito interno: a politica externa grega não reconhecia a manutenção
de diferentes perspectivas e assim, a identidade como agente e abrigo pelo nomos coincidiam.
O corpo político romano, fundamentado na promessa, não só permitia e estabilização
frente ao futuro, mas também abria espaço a novas relações e a um aumento do mundo em
comum. Assim, Roma mantinha o equilíbrio entre a estabilidade e a mudança proporcionada
pela ação. Essa dupla face da lei mostra que a lei, na concepção arendtiana, não representa um
dispositivo a ser obedecido, mas antes, que o corpo político regido por leis deve abrir espaço
para a novidade representada pela ação. Como resume Arendt “a lei pode estabilizar e
legalizar uma mudança já ocorrida, mas a mudança em si é sempre resultado de uma ação
extra-legal (cr, 73)” .A mudança proporcionada pela ação é estabilizada pela lei, significando
que se torna parte da memória e do repertório de um determinado corpo politico. A
flexibilidade da lei como promessa permite que, ao mesmo tempo que seja oferecida uma
moldura estável diante das incertezas do futuro, surjam canais de ação. Como Resume André
Duarte:

(…) Arendt pensa as leis , e em particular a constituição, não apenas como


um elemento de estabilização (ver) continuamente trazido à esfera pública, à
maneira grega, mas também como princípios de inspiração da ação humana,
os quais propiciam o estabelecimento de novas relações entre os homens, à
maneira romana. As leis, portanto, não são eternas e absolutas como
mandamentos divinos, nem whatver fundamentos transcendentes ou
inquestionáveis, capazes de reparar a relatividade essencial do jogo politico,
mas constituem elações criadas por homens mortais para o trato de assuntos
que são contigentes “ (58).

As leis, nascendo da própria dimensão coletiva da ação, trazem em si a possibilidade


de abarcar a ação e, ao menos tempo, produzem um espaço politico para que esta ação tenha
seu lugar. Tal concepção de lei, que Arendt deve aos romanos, se encontra refletida na teria
politica de Montesquieu, na qual Arendt se apoia para traçar as relações entre poder, liberdade
e lei e encontra sua aplicação concreta na independência americana, como uma república
fundamentada no pacto e em que não há lugar para a soberania.

2.1.1 – Lei, poder e soberania

No ensaio “O que é a liberdade?” Arendt contrapõe os corpos políticos fundamentados


sob um poder soberano e os corpos políticos fundamentados na promessa: os primeiros seriam
uma ameaça á liberdade política e não forneceriam um palco estável para a ação e o discurso
(oql, ref). Para se compreender a relação arendtiana traçada entre lei e poder como pluralidade
e, mais ainda, as críticas à soberania é preciso se deter na concepção de poder defina por
Arendt.
Arendt rejeita a definição e poder como a efetivação de uma relação vertical de mando
e obediência: “O poder corresponde à capacidade humana não apenas para agir, mas também
para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um indivíduo, pertence a um grupo e
permanece em existência apenas enquanto o grupo se mantêm unido” (sv 60-61). O poder se
efetiva na ação entendida como uma atividade coletiva, mais especificamente, na capacidade
da ação de ecoar na “teia de relações humanas”. E se, como exposto anteriormente, a ação só
é possível pelo reconhecimento mútuo da igualdade entre agentes, o poder, para se manifestar,
depende desta igualdade:

O único fato material indispensável para a geração de poder é a convivência


entre os homens. Estes só retêm poder quando vivem tão próximos um dos
outros que as potencialidades da ação estão sempre presentes (…). O que
mantêm unidas as pessoas depois que passa o momento fugaz da ação (..) e o
que elas, ao mesmo tempo, mantêm vivo ao permanecerem unidos é o poder
(ch, 251).

O poder se concretiza no momento da ação e do discurso e se mantém na medida em


que atos e palavras ultrapassam o agente e geram novas ações na teia de relações humanas”. O
que mantém a existência da convivência politica é justamente esta capacidade da ação de ir
além do agente. O poder, portanto, une a teia de relações humanas e é exercido a cada nova
ação e contra-ação. O poder, em outras palavras, depende tanto da existência de condições
para ação como é atualizada a cada novo ato e palavra (DUARTE, RTEF).
O poder, portanto, não é um elemento fixo e institucional do domínio público-político,
mas antes, um atributo que se manifesta na atividade politica. Ao afirmar que “o poder não
pode ser armazenado” (CH), Arendt afirma este carácter relacional do poder, o fato que este
só aparece quando acontece a ação e o discurso (amiel, lj): o poder depende das relações
travadas no domínio público e sua única condição é, portanto, a plena manifestação da
pluralidade humana:

Sua [do poder} única limitação é a existência de outras pessoas, limitação


que não é acidental, pois o poder humano corresponde, antes de tudo à
condição humana da pluralidade. Pelo mesmo motivo, é possível dividir o
poder sem reduzi-lo, e a interação de poderes, tende, inclusive a gerar mais
poder, pelo menos enquanto a interação seguir viva e não tiver resultado em
um impasse (SR, 251).

O poder, portanto, não possui nenhuma relação com um suposto consenso político,
mas antes, com a possibilidade de cada um que pertence a um corpo político agir e efetivar a
condição da pluralidade. Desta ligação entre poder e pluralidade, é possível perceber que,
antes de extinguir o poder, sua divisão multiplica as possibilidades de ação e, por
consequência, gera mais poder.
A divisão de poder como a geração de mais poder deriva diretamente da leitura
arendtiana de Montesquieu. Da teoria da divisão de poderes exposta por Montesquieu, Arendt
conecta novas possibilidades de ação e a divisão do poder em diferentes orientações:

The three branches of govermment represent for him [Montesquieu] the three
main political activities of men: the making of laws, the executing of
decisions, and teh ability of judment that most accompany both. Ecah od
these activities engenders its own power. Power can be divided (…) because
it is not one instrument to be aplied to one goal.Its origins lies in tehse
multiple capacities of men for action; these activities have no end as long as
the body politic is alive; trheir imediate pupose isa precribed by the ever-
changing circiunstances of human and political life (…) (lp722).

O poder se refere sempre à ação como resposta à realidade mundana e contingente, e


não é um instrumento para que se atinja um fim definido, portanto, o poder se mantém
sempre que há um domínio público presente para a interação política. Ao mesmo tempo,
múltiplas possibilidades de interação significam uma multiplicação de poder, tornando o
poder mais presente quanto mais for dividido, quanto mais oportunidades de interação
surgirem.
Da divisão de poder decorre a importância dotada por Arendt ao federalismo
americano: a república americana se orienta por promessas e tratados, uma prática que se
iniciou ainda antes da independência americana. Tais tratados retomam a experiência romana
da lei como promessa, e como tal, concretizam a união de diversos centros de poder, sem
reduzir a capacidade de ação:

(…) o contrato mutuo pelo qual o poder é constituído por promessas contem
in nuce tanto o princípio republicano segundo o qual o poder reside no povo e
onde uma “sujeição mútua” torna o comando de o governo um absurdo (…)
quanto o princípio federativo, o princípio de uma república por acréscimo,
segundo o qual corpos políticos podem se combinar em alianças sem perder a
sua identidade (SR, 223).

Á semelhança da república romana, originada por um pacto e mantida por contratos


subsequentes, a república americana conserva seus pactos coloniais e de tais pactos surge uma
república fundamentada na união de vários estados com possibilidades de agir , não estando
subordinados a um poder central.
A geração de poder através do contrato depende na igualdade entre as partes. No
ensaio “Desobediência civil”, Arendt traça a diferença entre o que denomina a versão
“horizontal” do contrato e a versão “vertical”:

Havia [na teoria política do século XVII] a variante [do contrato] de Hobbes
segundo a qual todo indivíduo celebra um acordo com a autoridade secular
para garantir a sua segurança, por cuja proteção ele renuncia a todos os
direitos e poderes. Chamo isto de versão vertical do contrato social (…)
Havia (…) o contrato social aborígene de Locke que guiava não o governo,
mas a sociedade- entendendo-se a palavra no sentido latino de uma societas,
uma aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem
mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo. Eu chamo isso
de versão horizontal do contrato social (cr, 77).

A geração e a efetivação do poder pende da horizontalidade do contrato, isto é, de um


contrato em que ambas as partes são reconhecidas mutuamente como iguais: esta igualdade é
o reconhecimento mútuo da condição de agente, o que mantém a possibilidade e de agir e,
portanto, não há perda de poder de nenhuma das partes. A versão vertical do contrato tem
como consequência a delegação do poder de agir e, por extensão, o monopólio de poder em
um centro. Assim, esta versão do contrato, longe de gerar mais poder, é um caminho para
impotência, para a extinção da possibilidade de agir em concerto (SR,222).
A lei e o poder, portanto, não estabelecem relações excludentes e a lei age
simultaneamente como geradora de poder e como elemento estabilizador dos negócios
humanos. Para se compreender este duplo papel da lei é necessário recorrer à leitura
arendtiana de Montesquieu. Em O Espirito das Leis, Montesquieu diferencia entre a estrutura
e a essência das formas de governo, sendo este último elemento o que faz um determinado
governo a gir como age. A fonte da ação, segundo Arendt, se encontra nos princípios de ação
descritos por Montesquieu: “(…) Montesquieu, precisamente por ter como ponto de partida a
legalidade dos governos, viu que direito e poder não são suficientes para explicar tanto as
ações concretas e constantes dos cidadãos que vivem entre os muros da lei quanto o
desempenho dos próprios corpos políticos (…)” (pp, 112). A insuficiência da lei em animar a
ação deriva, segundo Arendt, do papel da lei em um corpo politico: as leis não promovem a
ação, mas antes a interditam, justificado pelo fato de que tudo o que não é proibido pela lei é
permitido (co, 363). Assim, as ações não são uma resultante direita da lei.
Os princípios de ação, se originam, portanto, de algo além do conjunto de códigos
legais de um determinado corpo politico. Arendt afirma que os princípios de ação se originam
de algo exterior ao âmbito politico (OQL, REF). Tal afirmação encontra sua justificativa na
interação, ou em um terro comum nas palavras de Aendt (CO, REF) entre o homem como
cidadão e o homem como integrante de um domínio privado não politico. A vida privada não
é regulamentada por leis, pois a lei se estrutura na definição e precedentes a partir de ações
anteriores. algo não possível na vida privada. A ação política como um acontecimento
imprevisível, também não se orienta por pretendentes, há, portanto, um elemento comum no
homem enquanto detentor de uma vida privada e o homem enquanto cidadão: esse elemento
comum se encontra na efetivação dos princípios de ação em um contexto publico. Como
afirma Anne Amiel: “(…) Arendt tend à lire les principes de governemment non seulmment
comme principes d´action, mais comme la transcription politiuqe-morale d´éxperiences
fundamentaales a vivre-ensemble”(REF). Do domínio privado, tais princípios se manifestam
publicamente, oferecendo o elemento característico da atividade politica. A estrutura de uma
forma de governo , isto é, a distribuição de poder e como é exercido, depende dos princípios
de ação.
Os princípios de ação, como afirmado anteriormente, se diferenciam dos motivos:
atingir um objetivo significa a exaustão do motivo assim que o objetivo é atingido, os
princípios, por outro lado, não se exaurem e continuam sendo atualizados através da ação:
“Distintamente de sua meta, o princípio de uma ação pode ser sempre repetido mais uma vez
sendo inexaurível e, diferentemente do motivo, a validade de um princípio é universal, não se
ligando a nenhuma pessoa ou grupo em essencial ” (oql, 195). Sendo inexaurível, nenhuma
ação é capaz de materializar o princípio que a rege de forma definitiva (PB). Assim, a
expressão dos princípios através da ação permite a concretização da condição da pluralidade:
não há uma expressão definitiva de um princípio de ação, mas antes, expressões plurais que
materializam a identidade de um agente enquanto cidadão de um corpo político.
A identidade do corpo político emerge através da manifestação dos princípios de ação
na lei. Segundo Arendt, o que orienta Montesquieu a cunhar a expressão “espírito das leis” é
justamente a expressão dos princípios de ação nas leis do corpo político.: “His [Montesquieu]
unifying spirit is first of all a basic experiemnce of men living and acting together, which
express simultaneasly on the laws of the polity and in actions of men living together “(REF)
Os princípios, portanto, orientam tanto o exercício de poder como orientam a
estabilidade do corpo político ao se concretizarem na lei. Como elementos que orientam o
exercício de poder, a manifestação dos princípios mantém o corpo politico estável, e ao
mesmo tempo, expressam a liberdade de agir: a ação equivale ao desempenho público, isto é,
à expressão dos princípios de ação como uma atividade pública e mundana, permitindo a
Arendt afirmar a liberdade como “virtuosidade” (OQL), como o desempenho público
orientado por princípios. A liberdade como a capacidade que se concretiza na atividade
política, na ação, pode ser definida como a expressão pública dos princípios.
No pensamento de Arendt existe uma conexão entre o poder e a liberdade e a
soberania, ao concentrar o poder representa um, perigo para o exercício da liberdade. A
ligação entre poder e liberdade está presente na diferenciação arendtiana entre a liberdade
política e a liberdade filosófica: contraposta aso que Arendt denomina de liberdade filosófica,
em que a liberdade é um atributo da relação do homem consigo mesmo, Arendt afirma a
liberdade política, tal como entendida na Antiguidade Clássica, experienciada na ação e no
discurso. A principal diferença entre estas duas formas de liberdade reside no fato de que a
liberdade política, é, parafraseando Arendt, uma realidade objetiva, que se apresenta na
expressão pública da pluralidade, enquanto que a liberdade interior é percebida no
relacionamento do homem com a faculdade da vontade. Como Arendt afirma, recorrendo a
Montesquieu: “(...) a filosofia não exige da liberdade mais só que o exercício da vontade “
(oql, 209). A liberdade política, em contraste, se apresenta na ação em um âmbito político
definido, ou seja, nas relações coletivas que a ação proporciona. Como Arendt afirma: “Para
Montesquieu, como para os antigos, era óbvio que um agente não poderia ser chamado de
livre quando lhe faltava a capacidade de fazer (…) (oql, 203).
No contraponto entre liberdade filosófica como um atributo da vontade e a liberdade
política que é vivenciada na ação, o que se encontra em jogo é justamente o poder. Arendt
afirma que a liberdade vivenciada no âmbito da pluralidade, na convivência pública, é
sinônimo de poder: a liberdade pode ser entendida como ausência de obstáculos para o agir, e
portanto, a liberdade aparace no exercício do poder (VE). Assim, por consequência, a
liberdade não se confunde com a faculdade da vontade, a liberdade se apresenta no ato e não
na satisfação de um “querer”. Como resume Maria Theresa Calvet: “Se a liberdade não diz
respeito à vontade é justamente porque ela é um assunto do poder no sentido do eu-posso (…)
Esse poder tem que ser pensando à partir da capacidade não do querer (…)” (12).
As teorias políticas da soberania, segundo Aendt, advêm da transposição da liberdade
filosófica, entendida como um atributo da vontade, ao domínio político. A vontade, como a
faculdade humana capaz de comandar, ao ser transposta ao domínio político transforma a
convivência pública em uma relação de mando e obediência:

Devido ao desvio filosófico da ação para a força de vontade, da liberdade


como um estado a ser manifesto na ação para o liberum arbritium, o ideal de
liberdade deixou de ser o virtuosismo (…) tornando-se soberania, o ideal de
um livre arbítrio, independente dos outros e eventualmente prevalecendo
sobre eles(oql, 211),

Arendt contrasta a liberdade fundamentada na ação – no “virtuosismo” do ato – e,


portanto, não sujeita ao cálculo de motivos tendo em vistas um objetivo, com a liberdade
como um atributo da vontade, ou seja, a liberdade como sinônimo do querer algo e orientada
para a satisfação deste querer. Como afirma Canovan: “ (…) the idea of self determination by
a general will (,,) dodges the realities of political plurality “( Canovan, 212). O corpo político
fundamentado na vontade desvanece as diferenças, a própria condição da pluralidade, em
nome da orientação ditada por esta vontade .
A vontade transposta ao domínio político pode ser vista na leitura arendtiana de
Rousseau, a quem Arendrt se refere como “o representante mais coerente da teoria da
soberania” (oql, 211), especialmente da teoria da vontade geral. A vontade geral
rousseauniana se a presenta como o elemento de unificação e identidade do corpo político: o
corpo político é definido pela sua orientação pela vontade geral, vontade esta que é única e
facilmente deduzível pela percepção única do que seria o melhor para o corpo politico ( SR,
113) Como explica Canovan:

(…) if the general will is, in fact , a rational deduction of the implications of
a single commom intent, then there must be a right answer , and a popular
general will is, in fact , a rational deducvtion of a single common intebnt, and
popular deliberation ver o resto (291).
A vontade geral nasce da uniformidade dos cidadãos em um determinado corpo
político e, desta uniformidade, nasce a perspectiva única do que o corpo político deve atingir,
Essa resposta única não leva em conta a pluralidade, a diversidade de perspectivas, mas antes,
a uniformidade, tornando a deliberação pública redundante. Cabe notar que a pluralidade, na
leitura arendtiana de Rousseau, é extinguida como consequência do fato de que cada cidadão
de um corpo político deve subordinar suas perspectivas á vontade geral. A unificação do corpo
político pela vontade geral se dá través da presença de um inimigo comum, que reuniria todo
o corpo político na hostilidade a esse inimigo:
(..,) esse inimigo existia dentro do peito de cada cidadão, a saber, em sua
vontade e interesse particular: o cerne da questão era que este inimigo
particular oculto só poderia se alçar ao nível de um inimigo comum –
unificando a ação a partir do seu interior – se apenas um reunisse todas as
vontades e interesses particulares. O inimigo comum dentro da nação é a
soma toral dos interesses particulares de todos os cidadãos sr 115.

Assim, as perspectivas dos cidadãos seriam relegadas em nome da unificação em torno


do que seria o interesse do corpo político, interesse este só alcançado pela homogeneidade dos
cidadãos. A pluralidade, na leitura de Arendt, é sacrificada para que surja um corpo político
unido e coeso e tal elemento de união – a vontade geral-se encontra acima e além de qualquer
deliberação pública.
Na vontade geral de Rousseau é ainda encontrado um exemplo do fato que a vontade
não oferece estabilidade ao corpo político. Arendt afirma que, segundo Rousseau, a vontade
não se obriga para o futuro (oql, ref): a vontade geral de Rousseau é fundamentalmente um
elemento de unificação do corpo político, portanto, pode mudar de direção desde continue
única (amiel ref). A promessa, por outro lado, representa uma certa constância na orientação
daqueles que aderem ao pacto.
Da crítica arendtiana à soberania, se encontra a justificativa para a firmação de que
“soberania e tirania se equivalem ” (sr) . A soberania pressupõe a existência de um centro de
poder e, por consequência, é uma ameaça à pluralidade. As promessas, porém, além de
estabilizarem o corpo político, representam uma expressão da ação e da pluralidade.

2.1.2-Lei e ação

Se se considerar a pluralidade como uma condição para o exercício do poder e, ao


mesmo tempo, a lei como fonte de estabilização do corpo político, cabe esclarecer, no
pensamento de Arendt, a relação entra a ação como o inesperado e a lei como estabilidade. Se
o poder é sinônimo de possibilidade de ação em concerto, o poder seria uma ameaça contante
à própria estabilidade fornecida pela lei. No entanto, a relação entre lei e poder, segundo
Arendt, não seria uma relação mutuamente excludente: a lei não significa a extinção da ação e
a ação não é uma ameaça à lei. A lei, grosso modo, é simultaneamente gerada e mantida pelo
poder e portanto, pode, simultaneamente, abarcar o novo e manter o mundo comum.
Esta visão da relação entre lei e poder situa Arendt, mais uma vez, na contramão da
tradição do pensamento político. Arendt resume as visões tradicionais da relação entre lei e
poder: “On one side we learn that power enforces law in order to bring about lawfullness; on
the other, the law is conveid as a lomotation and the boundary of power, which may not be
oversteeped”(ref). A objeção de Arendt a respeito da primeira concepção tradicional da
relação entre lei e poder reside no fato de que, considerando as tradicionais classificações de
formas de governo, baseadas em quem exerce o poder (o governo de um só caracterizaria a
monarquia, o governo de poucos a aristocracia e o governo e todos a democracia) a
distribuição do poder perderia sua importância: a ênfase estaria no fato do poder se orientar e
reforçar a lei ou ignorá-la. Portanto, o fato do corpo político seguir a lei teria mais
importância do que a possibilidade de múltiplos centros de ação, ou em outras palavras, a
existência de múltiplas instâncias para o exercício do poder (ref). Se, por outro lado, a lei é
uma barreira ao exercício de poder, tal visão pressupõe o poder como uma força
potencialmente abusiva, que deve ter sua expansão refreada pela lei.
As implicações desta segunda concepção da relação entre lei e poder pode ser vista em
“Sobre a revolução”, onde Arendt traça uma comparação entre as duas revoluções do século
XVIII: a Revolução americana e a revolução francesa. A constituição americana pós-
independência, segundo Arendt, não enfatizava um limite ao poder político, mas antes,
priorizava erigir um conjunto de leis que permitisse a ação e o poder descentralizado, o que
não significa afirmar que os founding fathers americanos ignorassem a importância de um
governo cujo alcance fosse limitado: “As liberdades civis e o bem-estar privado são da alçada
do governo limitado, e a salvaguarda deles não depende da forma de governo (…) No entanto,
todas as liberdades garantidas pelas leis do governo constitucional são liberdades negativas”
(sr 191).Ora, qualquer forma de governo, com execeção da tirania, pode garantir as liberdades
fora do âmbito político. Arendt se refere à “desconfiança do poder”(ref) presente no
pensamento político, que não encontra expressão na constituição americana: a limitação do
poder é vista como acessório diante da fundação de múltiplas instâncias de ação. Anne Amiel
resume a orientação política da fundação americana:
(….) a tarefa é de facto estabelecer um poder central, federal, sem destruir os
poderes dos estados. E, evidentemente, essa construção do poder não pode
fundar-se numa declaração de direitos que, precisamente tem a função de
limitar este poder e que, eventualmente, são compreendidos (…) como
exteriores e independentes do corpo político(59).

A prioridade do constitucionalismo americano se encontra na instituição do


federalismo, isto é, na estruturação de diversos centros de ação. Uma declaração de direitos,
garantindo certas liberdades sem levar em conta a ação do cidadão, significa um a salvaguarda
contra o poder: a percepção de que o poder é uma força de dominação, que pode levar à
submissão e a extinção das liberdades negativas e, consequentemente deve ser refreado.
Porém, esta refração do governo como fundamento político é, por extensão, a retração do
âmbito político e, portanto, não dese servir de fundamento para o surgimento de um novo
corpo político.
Em contraste com a constituição americana que busca assegurar existência e
multiplicação do poder, a Declaração dos Direitos dos Homens, fundamento da revolução
francesa, tem como orientação a dotação de direitos a todos os homens:

A versão americana, de fato, proclama apenas a necessidade do governo


civilizado para toda a humanidade; a versão francesa, porém, proclama
existência de direitos fora e independe do corpo político, e então passa a
igualar estes direitos, a saber os direitos dos homens qua homens, aos direitos
políticos (sr 197).

O “governo limitado” presente na constituição americana é uma afirmação de que,


enquanto portador da condição de cidadão, esta garantia de liberdades negativas deve estar
presente no corpo político. O direito ao “governo limitado” deriva, portanto, do pertencimento
a um corpo político. A Declaração dos direitos dos homens francesa, no entanto, afirma
direitos ao homem na qualidade de ser natural, na qualidade de membro da espécie humana e
não enquanto na condição artificial de cidadão.
Em sua obra “As origens do totalitarismo”, Arendt observa a insuficiência de um
conjunto de direitos divorciados do pertencimento a um corpo político. A condição dos
refugiados no período entre-guerras europeu coloca a prova a vulnerabilidade dos direitos
humanos, como direitos independentes da condição de cidadão:

O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de um ser


humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam
acreditar nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam
perdido todas as outras qualidades específicas - exceto que ainda eram
humanos. O mundo não ia nada de sagrado na nudez de ser unicamente
humano (OT, 333().
A privação da condição de cidadão implica na privação do reconhecimento como um
igual, como um agente. A igualdade política, como antes afirmado, resulta da equalização
artificial de todos aqueles que pertencem a um corpo político na condição de cidadão, a
igualdade não é um atributo do homem enquanto espécie e só pode ser “elaborada
consensualmente pela ação conjunta dos homens através da comunidade política” (lafer).
A ineficácia da defesa dos direitos humanos, a não ser que seu sujeito esteja ligado a
um corpo político se origina da visão arendtiana de Estado-Nação. Os direitos humanos,
surgidos através da Declaração dos Direitos do Homem promulgada durante a revolução
francesa, teriam como função, na perspectiva dos revolucionários francesas, garantir uma
série de direitos que não seriam subordinados ao status de cidadão, isto é, ao pertencimento a
um corpo político. Porém, o advento do Estado-Nação é incompatível com a noção de
cidadania universal tal como exposta na declaração de direitos francesa. Para se compreender
o sentido arendtiano de Estado e nação é necessário observar que:

(…) a estrutura do Estado é fruto da secular revolução da monarquia e do


despotismo esclarecido. Fosse sob a forma de uma nova república ou de
monarquia constitucional reformada, o Estado herdou como função suprema
a proteção de todos os habitantes do seu território, independentemente da
nacionalidade, e deveria agir como instituição legal suprema (ot,261)

Observa-se, portanto, que a noção de Estado pode ser remetida ao absolutismo, ou,
mais claramente, à figura dos monarcas do ancien régime, que detinham a função de legitimar
o corpo político. A ligação entre absolutismo e o posterior desenvolvimento de uma noção de
Estado é indiscutível, argumenta Arendt (SR) e tal ligação deriva da busca de um elemento
uno e absoluto que desempenharia o papel de elemento de coesão do corpo político.
Ainda durante a Idade Média, emerge, em contraste com a estrutura do domínio
político durante a Antiguidade Clássica, uma instituição que se torna fonte absoluta de
legitimidade e legislação do corpo político: a Igreja. O ancien régime, surgido em uma esfera
política secularizada, busca na figura do monarca uma nova fonte absoluta para o corpo
político, Nas palavras de Anne Amiel: “(...) o absolutismo que parecia ter encontrado um
substituto para a perda de sanção religiosa serviria de facto para mascarar o problema da
autoridade, da instabilidade dos corpos políticos modernos “(ref). O problema político da
modernidade se encontra na tentativa de manter o corpo político coeso e estável na ausência
da sanção religiosa católica. Este problema persiste nas revoluções do século XVIII e
encontra a sua solução, no caso francês, na unidade do Estado.
A unidade do corpo político se vê abalada, porém, pelo desmoronamento da anterior
ordem estamental feudal. Em consequência, os antigos estamentos feudais se transfiguraram
em uma estrutura de classes:

A relação entre Estado e a sociedade foi determinada pela luta de classes, que
havia suplantado a antiga ordem feudal. Permeou a sociedade um liberalismo
individual que acreditava, erradamente, que o Estado governava meros
indivíduos, quando na realidade governava classes, e que via no Estado uma
espécie de entidade suprema, diante de qual todos os indivíduos tinham de
curvar-se (…) o Estado teve de reforçar todos as antigas tendências de
centralização, pois só uma administração fortemente centralizada, que
monopolizasse todos os instrumentos de violência e possibilidades de poder,
poderia contrabalançar as forças centrífugas constantemente geradas por uma
sociedade dominada por classes . (ot, 262)

Assim, o âmbito politico se vê diante de uma sociedade que, por lado é regida pelo
individualismo da nascente classe burguesa, e por outro e estrutura e regida por um sistema de
classes. A unificação de uma estrutura fragmentada em classes, normatizada pelo
individualismo que emerge com a burguesia e, na ausência de uma estrutura absoluta e
unificadora que era incorporada pela Igreja católica encontra seu novo elemento de coesão no
Estado.
No entanto, o Estado necessita de uma característica que permita torná-lo
reconhecível como a estrutura soberana do corpo político ou, em outras palavras, de um
menor denominador comum que unifique as classes sociais o individualismo vigente. Esta
característica é encontrada no conceito de nação:

Um povo se torna nação quando toma consciência de si de acordo com a sua


história; como tal, está ligado ao solo que é produto do seu trabalho passado e
onde a história deixou seus traços. Ele representa o milieu em que o homem
nasce, uma sociedade a que a pesso a que pertence por direito de nascença
(co, 236).

A união de um corpo político caracterizado tanto pela estrutura de classes como pelo
individualismo liberal se dá através da noção de uma história e de mundo compartilhado,
Porém, tal união baseada em uma identidade étnico-cultural teve como consequência a
subordinação do Estado aos ditames da nação, trazendo manifestações ao exercício do poder.
Arendt afirma que , dentro de uma estrutura de luta de classes, o estado sob o rotulo de nação
se apresenta como um conciliador destes diversos interesses, permitindo que o corpo político
se apresente como uno e indivisível. A conciliação se faria á partir da determinação do
interesse da nação acima do interesse de qualquer outro setor Neste papel conciliador a
possibilidade de ação se torna prerrogativa da instituição central: o Estrado.
Neste contexto, os direitos humanos se encontram frente a uma contradição: como
conciliar um conjunto de direitos universais com uma estrutura política delimitada pelo
conceito de nação. Arendt afirma que esta contradição tornou os sujeitos dos direitos humanos
apenas aqueles que pertenciam a um Estado-nação:

(…) a mesma nação era declarada, de uma só vez, sujeita a leis que
emanariam supostamente dos direitos do homem, e soberana, isto é,
independente de qualquer lei universal, nada reconhecendo como superior a
si própria. O resultado político desta contradição foi que daí por diante, os
direitos humanos passaram a ser protegidos e aplicados somente sob a forma
de direitos nacionais, e a própria instituição do Estado, cuja tarefa suprema
era proteger e garantir ao homem os seus direitos como homem, como
cidadão – isto é, indivíduo- e como membro do grupo, perdeu sua aparência
legal e racional e podia agora ser interpretada pelos românticos como a
sublime representação de uma alma nacional, que, pelo próprio fato de existir
devia estar acima e além. (ot, 262).

A contradição presente na tentativa de conciliação entre a nação e os direitos do


homem representa, no pensamento de Arendt, uma crítica á soberania: a nação seria o
elemento soberano, acima de qualquer interação presente no âmbito político e acima da lei. E,
como tal , se tornaria o orientador do âmbito político, anulando a pluralidade.
Em seu livro sobre as revoluções do século XVIII, Sobre a Revolução, Arendt
contrapõe o Estado-nacional, fundamentado em um elemento soberano, a nação, com uma
república federativa. O princípio de manutenção e estabilidade da federação não é a Vontade
Geral ou a nação, mas antes, a celebração de promessas que permite a expressão da
pluralidade e mantêm a capacidade de ação. Como afirma Ronald Beiner:

(…) the only way the state can be made a place os repository of human rights
is by taking the nation out of nation-state (…) The way to do this is by
meshing the state in a web of federal relations , both below and beyond the
state, tehrefpre getting away from the state as a site of soverreignty.Insofar as
nationalism as an ideology is bound to claim the national soverreignty this
configuratuon of the state depend upon liberationf ourselves from the
nationalist legacy” 9REF)

Assim, a federação não se orienta por um elemento soberano que se localizaria acima
das leis que regem o corpo político: a federação, por não depender da nação como elemntode
coesão e estabilidade, transforma a nacionalidade – entendida como uma herança étnico-
cultural-, segundo Arendt, em não mais um fator de crucial para a identidade política, mas em
uma identidade privada (EYN REF)
A federação, que Arendt identifica com a nascente república americana , não se
fundamenta nem em uma declaração de direitos que tem como sujeito o homem ligado a uma
identidade orientada pelo conceito de nação. O fundamento político da federação baseia-se em
promessas mútuas e contra seu elemento de coesão na capacidade de ação:

(…)a sede do poder era o povo, mas a fonte da lei viria a ser a constituição,
um documento escrito, uma coisa objetiva e duradoura, que certamente
poderia ser abordada por muitos ângulos diferentes e abordada de maneiras
diversas, que podia ser modificada e emendada de acordo com as
circunstâncias, mas que mesmo assim jamais era um estado de espírito
subjetivo como a vontade. (sr 207).

A promessa, na criação de um “espaço-entre” aqueles que são parte do tratado, permite


a ação: a promessa cria um mundo comum entre as partes, mundo que se torna o fundo estável
para atos e palavras. Fundamentada na promessa, a constituição se torna este “espaço-entre”,
o palco aonde tem lugar o exercício do poder, pois para a efetivação do poder “man must give
their world world and play a part, furnishing one another with assurances that the acceptation
of each in his assigned role will not be renbered by the unreability of others “ (207). A
constituição, ao mesmo tempo que fornece esta realidade conjunta, permite que a ação e o
discurso estejam sempre presentes: a multiplicidade de abordagens e emendas que a
constituição comporta é uma garantia que o novo será incluído no âmbito político e se tornará
parte do repertório do mundo das aparências. A relação entre ação e poder, tomando por base
a constituição americana, é o equilíbrio entre o nascimento de novas relações entre cidadãos e
estas novas relações serem englobadas à constituição como um mundo comum: a lei abarca as
diferentes instâncias de poder e, ao mesmo tempo, permite o exercício de poder sem a
presença da soberania (peg B, livro).

2 – Autoridade

A autoridade tal como Arendt a conceitua, é o elemento ligado diretamente à


permanência do espaço público: “A autoridade, assentando-se sobre um alicerce no passado
como sua inabalável pedra angular, deu ao mundo a permanência e a durabilidade de que
seres humanos necessitam precisamente por serem mortais”(oaq, 249). A estabilidade que a
autoridade oferece se origina de sua ligação com o início do corpo politico: compartilhando a
memória do início é possível conservar o corpo político como um pano de fundo frente a
efemeridade da ação e do discurso. Se o poder se concretiza na capacidade de ação em
concerto, isto é, na possibilidade da ação e do discurso, o poder não é suficiente para manter o
espaço público: Arendt afirma o exercício do poder como essencialmente não institucional
(CH, 249) e enquanto a ação em conjunto está presente, o poder se encontra. No entanto, a
comunidade política que constitui o espaço para a palavra e a ação depende de um elemento
estabilizador de modo a se manter.
A autoridade, porém, não está presente em todos os corpos políticos. Arendt afirma
que a autoridade se origina na república romana, na figura do senado, instituição esta ausente
na polis. As razões desta ausência se encontram nas próprias características da autoridade: em
primeiro lugar, a autoridade sugue caracterizada pelo “(…) reconhecimento inquestionável
daqueles a quem se pede que obedeçam, nem a persuasão nem a coerção são necessárias (SV,
62)”. A obediência à autoridade não é devida ao uso de violência: a obediência decorre do
reconhecimento da autoridade como ligada à fundação do corpo político. Da mesma forma, a
autoridade, como parte da vida política prescinde da violência.
Como a autoridade depende do reconhecimento inquestionável, a autoridade gera uma
estrutura hierárquica vertical o que a torna incompatível com a igualdade existente na
atividade politica grega. Em adição, cabe notar que a autoridade como sinônimo de
permanência não encontra lugar na politica grega, estruturada tendo em vista a expressão da
identidade do agente: a polis não prioriza a permanência futura do corpo politico
(AVRINTZER).
Não se trata, no pensamento político de Arendt de definir a “autoridade em geral”
(OQA), no entanto, a autoridade mantém alguma das características comuns: sua ligação com
a estabilidade e a legitimidade do corpo político.

2.1- Fundação e autoridade: a república romana

A fundação de um novo corpo político representa, no pensamento de Arendt, a ação


por excelência. Como Arendt explica a relação entre ação e fundação:

A gramática da ação: a ação é a única faculdade humana que requer uma


pluralidade de homens; a sintaxe do poder: o poder é o único atributo
humano que se aplica exclusivamente ao entremeio mundano onde os
homens se relacionam entre si, unindo-se no ato de fundação em virtude de
fazer e manter promessas, o que, na esfera política é provavelmente a
faculdade humana suprema “ (SR, 228).
A fundação, como o exemplo primordial da ação política, se apresenta sobre duas
faces: a fundação depende de uma ação conjunta, se configurando como exercício de poder e,
simultaneamente, a fundação permite a constituição de um espaço onde é possível manter
preservar o poder. Conectada á ação, a fundação se articula com a liberdade: a fundação,
representa a ação no qual um “nós” é constituído, ou seja, a fundação permite a existência de
uma coletividade identificável que se apresenta como um espaço onde a liberdade política
pode se manifestar de maneira tangível e concreta (ve),
A fundação como a manifestação primordial da ação política permite a ruptura de
processos automáticos: trazendo a tona o novo, a fundação rompe com qualquer ordem
estabelecida e é percebida como um evento único e singular. Arendt afirma: “O hiato
legendário entre um não-mais e um ainda não indica claramente que a liberdade não seria um
resultado automático da liberação , que o fim do velho não é necessariamente o começo do
novo (…)” (VE, 339). O hiato legendário entre um “não mais” w um “ainda-não” isto é, o
momento da fundação afirma que, sem a capacidade humana para a ação não é possível a
constituição de um espaço aonde a liberdade é capaz de se realizar. Cabe notar o significado
da liberação no pensamento arendtiasno e como tal conceito difere de liberdade política: a
libertação ocorre no fim de uma situação de opressão política, e a liberdade, por outro lado, é
uma realidade vivenciável, concretizada na possibilidade de discurso e ação (sr). O
surgimento de um espaço para a palavra e a ação não é uma consequência que
inevitavelmente se segue a qualquer modificação no corpo político: um tema constante no
pensamento de Arendt é o inesperado e a contingência da ação, que não se liga a nenhuma
cadeia de causas e consequências. A fundação representaria esta capacidade de modificação
do mundo, sem se subordinar a qualquer processo alheio ás interações políticas entre os
homens,
A fundação traz na sua concretização, segundo Arendt, um elemento de arbitrariedade
(SR); tal arbitrariedade é ligada á contingência que caracteriza a fundação. A fundação, como
uma ocorrência da capacidade humana para a ação, poderia não se concretizar. A fundação
traz em si sua arbitrariedade expressa em como tornar a fundação um elemento inteligível,
isto é, como inserir a fundação em um repertorio mundano de memória. Como explica Arendt:

No contínuo de tempo normal, todo efeito transforma-se imediatamente em


uma causa de futuras ocorrências; mas quando a cadeia causal é quebrada
(…) não resta nada em que o iniciante possa se agarrar. O pensamento de um
começo absoluto (…) elimina a sequência de temporalidade tanto quanto o
pensamento de fim absoluto (…) (341, VE).
Arendt se refere ao fato de que, confrontados com o novo e inesperado, com um
evento que não se insere em uma sequência linear de temporalidade, os homens se confrontam
com a arbitrariedade do início, com a impossibilidade de se compreender o evento da
fundação a partir da indeterminação de sua ocorrência.
Em A Vida do Espírito, Arendt identifica duas tradições de fundações; a tradição
romana e a tradição hebraica. Estas tradições mostram maneiras distintas de solucionar a
arbitrariedade inerente ao início, no entanto, o que as duas tradições guardam em comum, em
suas narrativas, é o ato fundacional precedido de uma luta pela libertação no caso romano, a
libertação como a fuga de Tróia e, no sendo caso a fuga hebraica do julgo egípcio. A
libertação, em ambos os casos, é seguida da constituição da liberdade, seja através da
fundação da república romana ou através da vida na terra prometida mosaica. No entanto, de
maior importância politica é a tentativa das duas narrativas de se reconciliarem com a
arbitrariedade do evento de fundação: A solução hebraica se fundamenta na existência de um
único Deus absoluto, acima de qualquer acontecimento mundano, que torna o ato fundacional
compatível com uma linearidade temporal. O Deus absoluto hebraico seria a fonte de
legitimação do corpo político:

(…) assim como Deus “no princípio criou o céu e a terra” permanecendo
anterior a ela, também o legislador humano – criado à imagem de Deus e,
portanto, capaz de imitá-lo quando lança as fundações de uma nova
comunidade humana, cria condições para toda a vida politica e
desenvolvimento histórico futuros (VE, 342)

A narrativa fundacional romana, por outro lado, percebe a fundação como um


acontecimento mundano, resultante da interação humana: se a legitimidade na tradição
hebraica é derivada de um Deus absoluto e transcendente, a legitimidade do ato fundacional
romano advém do fato de que, os romanos “(…) deduziram conscientemente sua existência
politica de uma derrota, a qual se seguiu uma nova fundação em terra estranha, mas na
verdade não uma fundação nova e inaudita, mas a fundação renovada para algo velho (o qp,
196)”. A fundação romana se conecta assim, a derrota na Guera de Tróia, e se reconcilia com
a arbitrariedade inerente aos novos inícios por se apresentar como uma refundação da pátria
perdida. Estas duas tradições, compreender a fundação como derivada de um absoluto ou
como um acontecimento mundano são fundamentais na definição das diferentes formas de
autoridade em corpos politicas modernos, como será exposto posteriormente.
A resolução da perplexidade do incio na tradição romana se dá através da percepção da
refundação como participante de um contexto temporal linear. Arendt afirma:

(…) a fundação de Roma, como os próprios romanos a tinham


compreendido, não era um começo absolutamente novo. Segundo Virgílio,
era o ressurgimento de Tróia e o restabelecimento de uma cidade-estado que
precedera Roma. Portanto, a linha de continuidade exigida pelo próprio
continuo de tempo e pela faculdade da memória (…) nunca teria sido
quebrada (VE, 344).

A fundação de Roma é entendida como um acontecimento mundano, como um evento


resultante da interação humana após a guerra de Tróia e a sua legitimidade reside na narrativa
compartilhada da derrota bélica em constaste com a busca de uma fonte transcendente para a
fundação presente na narrativa hebraica.. Como afirma Yves Sintomer: “Les iniciateurs/trices
dabs leur acte present la loi pour eux-(elles) mêmes , pour entamer leur entreprise et por pour
pemetre son accomplissemment“ A legitimidade do ato fundacional romano é derivada da
percepção de Roma como a continuação de corpo político anterior e, a compreensão da
fundação como refundação torna as origens do corpo político um evento inteligível.
A fundação romana, em sua mundanidade e na sua autopercepção como refundação se
apresenta como a ruptura, como o início de algo inédito. Se tal afirmação parece paradoxal, há
de se levar em conta o que permitia a Roma , apesar de conexão com o passado troiano, ser
percebida como este novo evento. Arendt, a partir da leitura de Virgílio, descreve a
autocompreensão romana após a fundação:

O que quer que fosse anterior a essa primeira fundação, ela própria o
ressurgimento de algum passado definido, estava situado fora da história; era
a natureza cuja eternidade cíclica poderia fornecer um refúgio contra a
marcha para adiante no tempo, a direção vertical e retilínea da história – em
lugar do ócio, otium- para quando os homens cansassem dos negócios (não-
ocios) da cidadania (…) , mas cuja origem não tinha qualquer interesse
porque se encontrava além do alcance da ação (ve, 346).

Assim, a familiar oposição arendtiana entre a vida cíclica ligada ao âmbito natural da
existência e a vida regida pela ação que descreve uma trajetória retilínea, encontra sua
expressão na fundação de Roma. Dentro desta perspectiva a fundação se apresenta como um
evento capaz d er omper o automatismo natural. Nas palavras de Dean Hammer:

For Virgil, the founding of Rome marks the beggining of time, not as
metaphysical momment but as counting time at urbe conditia (…) . The
phrase, which translates as “from the founbding of the city” serves as the
title for Lyvi´s history of Rome and suggests, in Arendt´s interpretation of
Virgil, that history begins whem there are tales to tell of humans living and
acting togheter “ (129).

A história é a história dos feitos humanos e a fundação marca o início de uma


coletividade em que estes feitos se tornam uma possibilidade . A fundação permite o início de
um domínio politico e o incio de atos e palavras que podem ser relembrados e, no contexto,
romano, é ligada á capacidade de memória, traçando a relação romana entre religião,
autoridade e tradição.
A autoridade, como um elemento estabilizador do corpo político surge em Roma e é
derivada da noção romana de fundação, Tal autoridade, institucionalizada no Senado Romano
e seus participantes, segundo Arendt, eram descentes daqueles que haviam tomado parte na
fundação (OQA, 164), De fato, segundo Arendt, a presença da fundação era constante em
Roma: “A autoridade, em contraposição ao poder (potestas) , tinha suas raízes no passado,
mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade que o poder e a força dos
vivos” ( oqa, 164). As palavras e atos que caracterizam o exercício do poder se davam sob o
pano de fundo da memória da fundação.
A ligação entre fundação e autoridade pode ser percebida pela constante reencenção da
fundação promovida pelo Senado Romano; o Senado institucionaliza os princípios expressos
na fundação, de modo que estes princípios sejam constantemente atualizados através da ação.
Arendt afirma que a palavra auctoritas é derivada do verbo latino augere que significa
aumentar e, o que era “aumentado”, isto é, constantemente atualizado, era o evento da
fundação (o qa164). Se o início de Roma é compreendido como uma refundação de Tróia, a
ideia de refundação continua na república romana:

(…) the romans conception of founding is disctintive and in fact points to a


significant departure from a Greek conception precisely because founding is
not seem as a “once-for-all” affair. Founding appears much more as an
incremental process. In which “sucessive foundings” in Livys words,
variOusly shape Roman customs, laws ans institutions ) (REF)

Estas fundações sucessivas se apresentam no Senado romano: a função do Senado era


prover o âmbito politico romano de conselhos, ou seja, orientar a política romana no conjunto
de acordo com os princípios políticos nascidos da fundação (OQA, 165). Nota-se que o
Senado, fonte de autoridade, não promove a ação política propriamente dita, originando a
divisão romana entre a autoridade institucionalizada e potestas, o exercício do poder, isto é, a
capacidade de ação.
A legitimidade do Senado para orientar a política romana é derivada da presença
constante da fundação: a memória da fundação é o elemento de coesão do corpo político. Esta
constante presença da fundação é responsável pela ligação romana entre autoridade, tradição e
religião. Segundo Arendt, a religião romana: “(…) significava, literalmente re-ligare: ser
ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte
sempre lendário esforço de lançar fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a
eternidade. Ser religioso significava ligar-se ao passado” (OQA, 163). A fundação, portanto,
era dotada de caráter sagrado, trazendo a exigência de que a vida politica romana se atrelasse
aos valores tradicionais que emergiam com a fundação; segundo Arendt, no âmbito politico
romano, agir sem a sanção do passado era inconcebível (OQA, 166): os romanos se
percebiam como os herdeiros dos troianos derrotados e a refundação romana se concretizava
não como fundar Troia novamente mas, em extrair da narrativa da derrota troiana valores
normativos , que guiariam a ação e se tornariam o critério para a sanção do Senado Romano
(ref, Sintomer).
A solução romana para a arbitrariedade da fundação é encontrada na narrativa
tradicional da orgiem do corpo politico, que dita os parâmetros para as ações subsequentes.
Como afirma Hammer:

The principles articulated by roman historiographers are, thenselves, the


product of a highly contextualized tradiction in which the community sets its
identity. Tradition defines not only why something something is virtuous,
distinct, or honored, as well as feared, distrusted, or hated, but also provides
the emotional basis for adherence to these principles

Cada ato é remetido à fundação e a mitigação da arbitrariedade do início se dá pela


concepção romana de refundação onde o estar-junto inicial que origina o corpo político se
mantém sempre presente. Cada ato remete à fundação , institucionalizada na figura do
Senado.
A ênfase de Arendt no tratamento da autoridade romana e sua íntima ligação com a
fundação não exclui a relação ambivalente entre a ação a institucionalização proporcionada
pela autoridade. A autoridade, com a capacidade de dotar as ações de sanção, gera uma
estrutura hierárquica no âmbito político onde a ação se subordina aos princípios da fundação.

Ao contrário do nosso conceito de crescimento em que se cresce para o


futuro, para os romanos o crescimento se dirigia ao passado. Se se quiser
relacionar esta atitude com a ordem hierárquica estabelecida pela autoridade,
visualizando essa hierarquia na familiar imagem da pirâmide, é como se o
cimo da pirâmide não se estendesse ate as alturas de um céu acima da terra
(…) mas nas profundezes de um passado recente (OQA166)
Apesar do caráter mundano da auctoritas romana, que se origina na ação que funda o
corpo político, a autoridade estrutura o corpo político sob uma estrutura vertical: o papel do
Senado em sancionar a ação significa que a fundação se torna o ponto focal de toda atividade
politica.,
É possível afirmar que ocorre, no domínio público romano, uma tensão entre a
estabilidade fornecida pela autoridade e a capacidade de ação e exercício do poder. Sintomer
afirma que:

Sa face [da autoridade] était de priver par avance le pouvoir populaire de


toute legitimé autonome. Considere avec le recul de l´historien (enne) , la
dichotomie entre les deux principes du governemment romain appraît
largamment comme la concurrence de deux modes de legitimacion du povoir
“ (122).

Arendt, no texto Sobre a Violência afirma que o poder necessita de legitimação, e


acrescenta que esta legitimação pode se apresentar sobre a forma de autoridade ou sobre uma
forma dioversa (SV, ref). No pensamento arendtiano são encontradas inúmeras instâncias
onde o poder é dotado de legitimidade na ausência de autoridade: o caso da polis é
emblemático, aonde o poder e exercido na ausência de uma instituição estabilizadora que se
localiza entre a persuasão e a coerção. O poder, como ação em conjunto, se legitima no
reconhecimento de outros como cidadãos, como também dotados da capacidade de agir.
Como afirma João Mauricio Leitão Adeodato : “(....) o poder legítimo (..) define-se por levar
em consideração a pessoa do outro, uma vez que a ação, o direito, a politica constituem-se na
intersubjetividade (207)”. O poder tem a possibilidade de se legitimar no próprio exercício da
atividade politica e pode prescindir da autoridade como fonte de legitimidade.
Arendt, em uma breve passagem de As Origens do Totalitarismo afirma que a
autoridade visa restringir ou limitar a liberdade (OT). Esta limitação pode ser vista na relação
estabelecida entre auctoritas e potestas na república romana. Hammer afirma que:

(…) with this institucional inovation [a autoridade] the power of the people
(potestas in populus) was disntinguish from the authority of the senate (…) .
The function of the senate was to estabilize the republican order by means of
an instuticional power that could limit people power and prevent it from
desintegration into mob rule”

Se a autoridade, no caso romano, representa uma forma de limitar as vulnerabilidades


da ação, fornecendo um fundo estável sob o qual tem lugar a atividade politica, por outro
lado, este fundo estável se apresenta como uma conexão rígida com o acontecimento da
fundação. Da relação entre o Senado e o poder, deriva-se que a iniciativa expressa na ação se
subordina aos princípios normativos expressos na fundação. Arendt afirma sobre a
sacralidade do passado:

A força coercitiva dessa autoridade esta intimamente ligada á força coercitiva


dos auspices , que ao contrário do oráculo grego não sugere o curso objetivo
dos eventos futuros, mas revela meramente a aprovação ou desaprovação
divina das decisões feitas pelos homens (OQA, 165)

A presença do passado na religião romana encontra sua tradução na função do Senado


de guiar as ações tendo em vista a fundação. Os exemplos do passado se tornam o critério
para a ação. Giorgio Agambem descreve a relação entre a ação e a autoridade:

Tudo se passa (…) como se, para uma coisa existir no direito, fosse
necessária a relação entre dois elementos (ou dois sujeitos): aquele que é
munido de auctoritas e aquele que toma a iniciativa em sentido estrito.. Se os
dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então ao to será perfeito. Se
ao contrário, houver entre eles uma distância ou uma ruptura, será necessário
introduzir a auctoritas para que o ato seja válido (118).

Em suma, a autoridade na república romana é uma instituição caracterizada pela


ambiguidade: se por um lado a autoridade fornece um fundo estável para o domínio público e
surge da interação politica do momento de fundação, por outro lado, a autoridade se apresenta
como uma limitação à capacidade de inciativa. Tal contradição, porém, não é unânime em
toda forma de autoridade: a república americana apesenta uma forma de autoridade que não se
encontra ligada a uma tradição (AVRINTZER) ou o sistema de conselhos revolucionários,
descritos por Arendt, representam uma forma de se estabilizar e legitimar o âmbito público
sem recorrer à hierarquia. .

A autoridade supramundana e a questão do absoluto

Após a queda de Roma, uma instituição assume o papel de dotar o âmbito político de
estabilidade e legitimidade: a Igreja Católica. A autoridade exercida pela Igreja Católica se
apresenta como um amalgama dos elementos políticos presentes na república romana com a
tradição do pensamento político grego, especialmente a filosofia política platônica. Arendt
define: “Na medida em que a Igreja católica incorporou a filosofia grega na estrutura de suas
doutrinas e crenças dogmáticas, ela amalgamou o conceito político romano de autoridade, que
era inevitavelmente baseado em um início, á noção grega e medidas e regras transcendentes”.
(OQA, 170). Á presença da fundação era acrescentada a noção platônica de um elemento
regulador do domínio politico que se encontrava além da opinião e da expressão da
pluralidade.
A importância política do início, do evento de fundação, se insere na doutrina cristã,
segundo Arendt, quando o “testemunho do nascimento, morte e ressurreição de Cristo” (OQA,
168) se tornam a ênfase do catolicismo medieval. No primeiro plano da doutrina medieval não
se encontram a obediência às leis de Deus, mas o nascimento de uma história que se inicia
com a passagem do Messias na Terra. A sacralidade do nascimento de uma cidade como início
da história nos primórdios da república romana é transposta para o nascimento do filho de
Deus. Desta forma é possível traçar um paralelo entre a trindade romana expressa na
fundação, religião e autoridade com a nova ordem medieval: a fundação que é marcada pelo
nascimento de Cristo, uma tradição que remete a este nascimento e uma religião
fundamentada no passado em que o Messias estava presente.
O nascimento do Messias, com suas implicações transcendentes, permite a aglutinação
da importância politica romana dada à fundação com o pensamento politico grego. A política
romana, fundamentada em promessas mútuas, prescinde da filosofia política grega que, como
exposto, buscava um padrão que se localizava para além da teia de relações humanas. Esta
incompatibilidade entre a filosofia política grega e prática política romana, aliada à
importância política do passado na vida romana, origina a relação ambivalente romana com a
filosofia grega:

A filosofia grega embora nunca totalmente aceita e as vezes até


veementemente combatida, especialmente por Cicero, impôs não obstante as
suas categorias de pensamento político, porque os romanos reconheciam-na
como única e, consequentemente, eterna fundação da filosofia, da mesma
forma que exigiam que a fundação de Roma fosse reconhecida pelo mundo
inteiro como a única e terna fundação política do mundo”(TPP100),

Os romanos se percebiam como “o povo gêmeo dos gregos” (OQA) e, a vida politica
romana, incondicionalmente ligada ao passado, se traduzia no fato que Roma não sistematiza
na forma de uma teoria política, suas experiências primordiais, como a primazia de promessas
mútuas (TPP, 101): a filosofia política, sob a perspectiva romana, era tradição do pensamento
político grego gerando uma separação entre a prática política que constitui a república romana
e a sistematização de conceitos teóricos políticos. A Igreja Católica, como uma instituição
romana e confrontada com esta divisão, unifica o pensamento politico grego com a prática
romana da fundação. Cabe notar que a fundação tanto no caso da república romana como no
caso da Igreja católica tem como efeito o englobamento do mundo sob a instituição da
fundação: na emergência de uma nova cronologia que se inicia com a fundação de Roma ou
com o nascimento do novo Messias, há o início de uma nova história que abarca o mundo.
O pensamento politico platônico, na visão de Arendt, como antes exposto, se
fundamenta na introdução das ideias -entendidas como elementos transcendentes acessíveis
pela contemplação -no âmbito politico. A Igreja Católica traz em seu interior um conjunto de
parâmetros transcendentes que se tornam a própria definição de sua autoridade. Como
consequência, emerge no papel politico da Igreja Católica um terceiro papel das leis: as leis
não mais traçam os limites do âmbito publico como ocorria na polis e as leis não mais se
fundamentam em promessas mútuas capazes de manter a pluralidade, mas se tornam padrões
de medida capazes de normatizar e valorar o âmbito dos negócios humanos. A legitimidade de
um sistema normativo fundamentado em leis transcendentes, no pensamento politico
platônico, se originaria, para aqueles incapazes de alcançar as ideias através de contemplação,
na promessa de um estado de recompensas e castigos além da morte. É possível afirmar a
congruência das medidas transcendentais platônicas com a tradição de fundação hebraica em
que um Deus único, eterno e transcendente dota a comunidade de legitimidade . Adeoato
afirma como caraterística deste modo de legitimidade supramundana:

O caráter extrínseco daquilo que pretendem seja o fundamento da


legitimidade, já que tanto os mandamentos divinos quanto os assim ditos
evidentes ditames da razão aparecem como pilares incondicionados, externos,
prévios e superiores às normas que o poder vigente efetivamente impõe ao
meio social (adeotado, 40)

Assim, esta forma de legitimidade cria no âmbito público, grosso modo, duas
instâncias normativas: uma instância superior ao âmbito da palavra e ação, da qual emana a
legitimidade e a autoridade do corpo político e um conjunto de normas que se adéquam à
mutabilidade advinda da interação na teia de relações humanas. Ilustrando a autoridade
presente na Igreja Católica medieval, Arendt propõe a seguinte imagem:

Como imagem para o governo autoritário, proponho a forma da pirâmide,


bem conhecida no pensamento politico tradicional. A pirâmide, com efeito, é
uma imagem particularmente ajustada a uma estrutura governamental cuja
fonte de autoridade jaz externa a si própria, porém cuja sede do poder se
localiza em seu topo, do qual a autoridade e o poder se filtram para a base de
maneira tal que cada camada consecutiva possui alguma autoridade, embora
menos que a imediatamente superior, e onde, precisamente devido a esse
cuidadoso processo de filtragem, todos os níveis, desde o topo ate a base, não
se acham firmemente integrados no todo mas se inter-relacionam com raios
convergentes cujo ponto focal comum é o topo da pirâmide, bem como a
fonte transcendente de autoridade acima dela (OQA, 135).
Observa-se, na ilustração de Arendt, uma fonte transcendente de autoridade e uma
camada superior hierarquicamente, que detêm a maior concentração de poder. Neste contexto
de uma autoridade supramundana trata-se da divisão entre autoridade e poder, já presente na
experiência política romana, que se traduz, no pensamento politico tradicional como a divisão
entre a lei natural e a lei positiva: uma instância transcendente de autoridade eterna e absoluta
que não se imiscui no âmbito dos negócios humanos, este último mutável graças à capacidade
dos homens de se relacionarem e de agirem. Há portanto uma relação de subordinação entre a
lei natural, que emana da instância transcendente de autoridade, e as leis positivas, que regem
a ação política:

The standards of right and wrong as they are laid down in positive law have,
as it were two aspects: they are absolute insofar as they own their existence to
a universally valid law beyond the power and the competence of men; but
they are also mere conventions, related to people and only valid within
certains limnitations insofar as they were positived and framed by men.
Without the first the universally valid law would remain without reality in the
world of men; without the second , the lawas and regulations laid down by
men would lack their ultimate souce of authorithy amd legitimation.

Se a legitimidade de um corpo político neste contexto depende de um elemento supra-


mundano, tal elemento traz o componente coercitivo que torna as leis obedecidas. Por outro
lado, o escopo desta fonte transcendente de autoridade deve ser limitado: as leis positivas
seriam uma tradução desta fonte transcendente de autoridade e legitimidade para as
contingências mundanas da atividade politica.
Na ordem jurídica medieval, a legitimação e a estabilidade era fornecida peça
transcendência religiosa institucionalizada na Igreja Católica e o poder, isto é, a capacidade de
ação, em consequência, se subordinava à autoridade católica. Se trata da separação entre
autoridade e poder já presente na república romana porém, no contexto medieval, a fundação
que origina a autoridade é uma fundação derivada de um evento supramundano e não mais a
resultante do nascimento de um corpo político fundamentado em promessas mútuas.
A secularização do domínio público no início da Idade Moderna, traz consigo o
problema da legitimidade com a queda do poder político católico. Arendt resume as
perplexidades inerentes a ausência de um elemento absoluto e supramundano capaz de
estabilizar e legitimar o corpo político:

A secularização, a emancipação da esfera secular perante a tutela da Igreja,


inevitavelmente levantava o problema de como fundar e constituir uma nova
autoridade, sem a qual a esfera secular, longe de adquirir uma nova dignidade
própria, perderia inclusive a importância derivada que possuíra sob os
auspícios da Igreja. Em termos teóricos é como se o absolutismo tentasse
resolver o problema da autoridade sem ter recursos aos meios revolucionários
de uma nova fundação; em outras palavras, ele resolvia o problema dentro do
quadro de referências já dado, no qual a legitimidade do governo em geral e
da autoridade da lei e do poder secular em particular sempre tinha se
justificado relacionando-os com uma fonte absoluta que não pertencia a este
mundo (SR 210).

O absolutismo mantém a presença de uma fonte de autoridade acima da mundanidade dos


negócios humanos porém, esta figura de autoridade, personificada no monarca absoluto
característico do antigo regime, se torna também o centro de poder, trazendo a soberania às
experiências politicas europeias. No entanto, o monarca absoluto não poderia abarcar a
transcendência necessária à legitimação das leis: claramente, apesar das “teorias do direito
divino” que legitimam os principies, a monarquia absoluta não era dotada do sagrado que
amanava da fundação da Igreja Católica e, portanto, o príncipe “na linguagem da teoria
politica não era um sucessor, mas um usurpador” (SR, 210). Ocorre portanto, na ordem
absolutista uma lacuna na legitimidade expressa no fato de que o monarca absoluto não é
portador da transcendência que legitima o corpo politico.
A secularização e a consequente lacuna de legitimidade originam as revoluções do
século XVIII (SR, 53): a tentativa de fundação de um novo espaço para a palavra e a ação,
expressas na independência americana e na revolução francesa, se dão sob um âmbito político
em que a autoridade não é reconhecida. Se esta crise de legitimidade se mostra na Revolução
Francesa, onde a nova fundação se confrontava com o passado absolutista, a revolução
americana não é imune as perplexidades da constituição de uma nova autoridade: ambas as
revoluções se deparam com o problema de fundar um novo corpo político na ausência de um
elemento transcendente.
Na busca de um absoluto que legitimasse o âmbito político a revolução francesa
subsistiu o monarca absoluto pelo povo. A identidade desta entidade denomina “povo” só
pode ser esclarecida, na perspectiva de Arendt, pela chamada “questão social” que predomina
na Revolução Francesa. A frança pré-revolucionária se apresentava como cenário dominado
pela pobreza e a solução dos problemas econômicos se torna a prioridade dos revolucionários
franceses. Assim, o povo é definido como o conjunto daqueles que se encontram na camada
mais baixa da população: “A expressão le peuple [o povo] é essencial para qualquer
entendimento da revolução francesa (…). Pela primeira vez a expressão passou a esbranger
não só os excluídos do governo, não só os cidadãos, mas a arraia-miúda” (SR, 111). A
Revolução Francesa sofre um desvio frente a miséria dos franceses, priorizando a luta contra a
pobreza em detrimento da constituição de um espaço para o discurso e a ação, caracterizando
o que Arendt denomina de “questão social”. Em consequência desta priorização das
necessidades materiais no âmbito politico, o conceito de povo não é conectado à capacidade
de ação politica, mas à capacidade material.
Arendt afirma que “(…) a revolta dos pobres contra os ricos traz em si um impulso
totalmente diferente e muito maior do que a força da rebelião dos oprimidos contra os
opressores. Essa força devastadora pode parecer quase irresistível, pois brota e é alimentada
pela necessidade da própria vida biológica” (SR, 155). Essa força que nasce diretamente da
busca da satisfação das necessidades biológicas e possui caráter coercitivo: devem ser
satisfeitas sob a pena da extinção da vida (CANOVAN). Fundamentar a revolução nestas
necessidades significaria subordinar a liberdade politica e a constituição de um espaço estável
para a palavra e a ação ao ritmo e á violência primária das necessidades biológicas. Na
Revolução Francesa ocorre a congruência da força necessária para satisfação das necessidades
biológicas com a percepção do evento da revolução como um processo, à semelhança do
processo cíclico que acompanha a satisfação das necessidades corpóreas. Como afirma Amiel:
“(…) é de facto a necessidade vital, absolutamente legitima em sua ordem, que vai subverter,
no nascimento, o domínio diferente da liberdade, impor a metáfora do processo irresistível, da
'’torrente revolucionária '” (91). A revolução, à semelhança dos processos vitais, de força
impositiva, se torna uma força sobre-humana, além do alcance da ação e da mundanidade. A
percepção de revolução é modificada: a revolução não constitui um espaço para a liberdade,
mas um processo permanente à semelhança dos processos naturais que devem ser satisfeitos
continuamente
A identificação do povo com aqueles que sofrem coma necessidade e a instauração do
conceito de povo como o absoluto instaurador e legitimador das leis torna o novo corpo
politico instável. Se, como afirmado anteriormente, a soberania não fornece estabilidade ao
corpo político, no caso específico francês esta instabilidade deriva do fato de que o poder e
autoridade emanavam do povo, identificado com o processo revolucionário. A lei superior que
dava origem ao corpo político era o próprio “processo revolucionário”, visto como um
movimento constante, independente das ações humanas; o processo revolucionário pode ser
entendido como um processo natural em que homem, enquanto agente politico e capaz de
interações, não deve interferir (SR, 238). Nota-se, portanto, que a busca do absoluto durante a
Revolução Francesa e sua identificação com o povo e a submissão da constituição de um
espaço político ao “processo revolucionário” impossibilita a construção de um espaço
político. Se Arendt no texto “Sobre a Revolução” compara a Revolução francesa com a
Independência Americana, uma importante diferença reside justamente na incapacidade da
primeira de se orientar frente as perplexidades da fundação de um espaço de liberdade, não
conseguindo conciliar a origem transcendente para a legitimação do corpo político com as
interações inerentes ao discurso e á ação (BIGNOTTO)

A fundação americana

A lacuna de legitimidade também se manifestou na fundação de um novo corpo


político após a independência americana. Apesar de a nova república não ser herdeira do
absolutismo europeu, os Estados Unidos também se deparam com a busca de um elemento
transcendente que dotaria o corpo político de autoridade e legitimidade. A busca pelo
elemento originador das leis positivas no corpo político americano é uma consequência da
interpretação tradicional do conceito de lei:

(…) o modelo pelo qual a humanidade ocidental concebe a quintessencia de


todas as leis, mesmo aquelas de origem indubitavelmente romana, e mesmo
na interpretação jurídica que se utilizavam de todos os termos da jurisdição
romana, esse modelo não era, em si, absolutamente romano; era do decálogo”
(sr, 245).

O entendimento da lei como um mandamento coloca em questão a origem destas leis:


o problema se coloca em como se perceber a lei como um mandamento e, ao mesmo tempo,
justificar a obediência à lei. É necessário, portanto, uma fonte que garanta a obediência a estes
mandamentos. Como afirma Arendt: “a questão era a mesma de sempre: a lei natural precisa
da sanção divina para abrigar os homens” (sr, 46). A busca pelo absoluto se insere na
percepção da independência como atrelada a uma tradição de pensamento político, no entanto,
a prática politica americana entra em choque com esta concepção tradicional, tornando a
fundação da república americana um acontecimento único.
A presença de uma sanção divina de modo a promover a obediência às leis se faz
presente nas constituições estaduais da república federativa americana, aonde se encontra a
menção a um estado futuro de castigos e recompensas, conectando estas constituições à
tradição platônica do “medo do inferno” e à tradição cristã de autoridade política. No entanto,
este elemento religioso se encontra ausente na Declaração de Independência. Esta ausência
não significa a ausência de um elemento transcendente que legitime o corpo político, mas sim
que o elemento absoluto se encontra em outra instância de legitimidade: o poder das verdades
autoevidentes. Arendt se detêm sobre uma frase presente no preâmbulo da Declaração de
Independência -”Consideramos estas verdades autoevidentes”- e afirma:

Por serem autoevidentes, essas verdades são pré-racionais – informam a


razão, mas não resultam dela -e, como estão além da revelação e da
argumentação, em certo sentido são tão coercitivas quanto o poder despótico
e tao absolutas quanto as verdades reveladas da religião ou as verdades
axiomáticas da matemática (SR, 248).

A pretensa autoevidência de qualquer asserção inserida no domínio público, segundo o


pensamento de Arendt, é contrária à pluralidade de perspectivas que animam a atividade
política. Preposições autoevidentes, nascidas da capacidade racional dos homens “não são
alterados pelas multidões ou pela ausência de multidão quer acolhem a mesma proposição; a
persuasão ou a dissuasão é inútil, pois o conteúdo da asserção não é de natureza persuasiva,
mas sim coercitiva”(REF) e, mais importante, uma proposição autoevidente não oferece a
possibilidade de compartilhamento como ocorre com as diferentes opiniões sobre um mundo
comum (ENNEDEAU, 1034).
A existência deste absoluto, afirmado na Declaração de Independência, concretizaria a
fundação americana como estruturada sob uma força coercitiva que ameaça a expressão da
pluralidade: a república americana se mostraria impotente na ausência do “agir em concerto”
proporcionado pela expressão de diferentes perspectivas (HONIG). A prática politica
americana, no entanto, não é dependente deste absoluto: a presença de asserções apresentadas
como verdades autoevidentes no texto da Declaração de independência nada mais é do que a
explicitação de que a linguagem revolução americana se atrelava à tradição (HONIG).
Esta aparente contradição presente na revolução americana entre uma linguagem
atrelada à tradição e um acontecimento político de repleto de particularidades é encontrada na
análise de Arendt do preâmbulo da constituição americana: Arendt afirma que Thomas
Jefferson ao apresentar certas afirmações como autoevidentes se atenta ao fato de que uma
verdade autoevidente não necessita de concordância – expressa no plural “concordamos” no
texto - ao contrário de qualquer elemento que faz o papel de um absoluto transcendente(SR,
278). Jefferson, portanto, na prática politica sustentava a fundação como um evento de caráter
coletivo, nascido da ação e do discurso. A afirmação de um espaço coletivo de atividade
política presente no texto da declaração de independência é o que transforma a fundação da
república americana em um evento mundano, que afirma sua desconexão coma tradição de
um absoluto na política.
O que efetivamente transformou a república americana em um caso particular de
emergência da autoridade foi o “ato de fundação” (sr, ref): se a busca de um absoluto
representava a ligação teórica dos founding fathers americanos com a tradição do pensamento
político estabelecida na secularização do domínio politico, o ato politico da fundação
americana, em contraste, se apresentava como herdeiro das práticas coloniais de ação politica,
principalmente na celebração de promessas mútuas entre agentes políticos.
A presença de promessas mutias como ação politica anterior à independência
americana, expressa nos pactos coloniais, permite ao corpo politico americano se reconhecer
como um conjunto de cidadãos. Ao contrário da França, onde “povo” era uma denominação
desconectada do âmbito politico e nascida da “questão social”, nos Estados Unidos povo
adquire uma conotação política sendo o conceito reconhecido como aqueles capazes de ação.
Assim, a república americana é herdeira de corpos políticos constituídos por agentes ainda no
período colonial através de promessas mútuas. Tendo em vista esta forma de “agir em
concerto”, Arendt dota de importância especialmente o Pacto do Mayflower:

O fato realmente espantoso em toda a história é que este evidente medo


mutuo vinha acompanhado pela não menos evidente confiança em seu
próprio poder, dado e confirmado por ninguém e fundado em nenhuma
violência, de se reunirem em um corpo politico civil que, mantido
exclusivamente pela força da promessa mutua, na presença de Deus e um dos
outros, e que se supunha dotado de poder suficiente para formular, constituir
e regular todas as leis e instrumentos de governo necessários (sr 219.

Estas constituições de corpos políticos civis são equivalentes á constituição do poder:


em sua possibilidade de agir em concerto, estes pactos não supunham a lei como dependente
da obediência para adquirir validade: a validade da lei derivava da interação política. O poder
já era uma realidade na América pre-independência, enquanto na França, a constituição de um
espaço para a palavra e ação deve se originar na ausência de uma prática política e,
consequentemente, se rende a soberania.
A fundação da república americana repousa no exercício de poder através da
celebração promessas mutuas, na existência de um conjunto de agentes que se relaciona
politicamente. A institucionalização deste exercício de poder se deu através da Constituição: a
constituição maraca o momento em que, independente do governo britânico, o poder das
promessas mútuas celebradas pelos agentes se torna o fundamento de um novo corpo político.
A importância da constituição no pensamento de Arendt é ligada ao seu entendimento
do que consiste uma revolução. Se a revolução é a “fundação da liberdade”, isto é, a
emergência de um espaço para a palavra e a ação, a constituição, como a institucionalização
de um espaço político, representa o ápice da revolução. O pensamento de Arendt diverge,
portanto, da noção de um “processo revolucionário”: como afirmado antes, no contexto do
“processo revolucionário”, a revolução seria não seria uma ação que constitui um corpo
político estável e permanente, mas um desenrolar continuo; Dentro desta ótica, e a instituição
de uma constituição representaria um retrocesso ao finalizar o processo revolucionário. A
“fundação da liberdade” culmina na instituição deu uma constituição, entendida como a
resultante de uma ação coletiva que cria o espaço da palavra e da ação (SR, 198). A
Constituição é o próprio mundo comum que relaciona os cidadãos politicamente, pro tanto,
não se apresenta como um conjunto de normas, mas como o fundo estavel sob o qual tem
lugar o discurso e a ação (REF)
A Constituição americana representa dois papéis, se apresentando simultaneamente
como p marco da fundação e como a criação coletiva de um espaço de poder. A Constituição
se apresenta como resultante das promessas mutuas que caracterizavam a ação politica no
período colonial e se torna o marco do momento em que a ação através de promessas é
promovida nacionalmente. Não se trata da inauguração de um novo poder, mas da
institucionalização dos pactos presentes na ex-colonia. Arendt descreve a “constituição do
poder”: “(…) de criar um sistema de poderes que se refreassem e se equilibrassem de tal
forma que nem o poder da União nem o poder de suas partes, os estados devidamente
constituídos, viessem a se diminuir e a se destruir mutuamente” (SR, 201). Na “constituição
do poder” se concretizam os dois pilares da política americana – a organização em uma
federação e a fundamentação do corpo polático em promessas mútuas – , que não limitam o
exercício do poder, mas criam possibilidades para a atividade política.
A importância da Constituição com uma reificação do momento fundacional nos
Estados Unidos mostra a influência romana na prática política do founding fathers.
Remetendo ao início do corpo político, a Constituição americana compartilha com a vida
política romana a veneração do passado: “Para chamar de religiosa a atitude dos americanos
em relação á Constituição , é preciso entender a palavra 'religião' em sentido romano original,
e então a devoção deles consistiria em religare , em se ligar de volta ao início (…)” (SR, 255).
De modo análoga à presença constante da fundação na vida politica romana, a presença do
passado na república americana se faz presente através da conexão entre fundação e
constituição: a constituição representa os princípios expressos na experiência de fundação.
A república americana, a semelhança politica romana deriva sua autoridade da
fundação e assim, a constituição como o marco da fundação se torna a fonte de autoridade.
Mais especificamente, a autoridade da constituição se faz presente através do Supremo
Tribunal. A república americana segue a politica romana ao separar uma instância de
autoridade das instâncias de poder: “(…) sua própria autoridade [da suprema corte] o fazia
inapto para o poder, assim como, inversamente, o próprio poder da legislatura fazia o senado
inapto para exercer a autoridade” (SR, 257). O poder exercido na propositura de leis tornava o
Senado, na visão dos founding fathers,, incapaz de dotar o corpo político de estabilidade,
enquanto a Suprema corte, com a principal função de revisão a constituição, , se apresenta
como guardiã da estabilidade da república.
A relação entre a autoridade da constituição e a possibilidade de revisão constitucional
pela Suprema Corte exemplificam a relação entre ação e estabilidade no corpo político
americano. Celso Lafer expõe esta relação:

(…) as instituições políticas ainda que tenham sido superiormente elaborada, não
têm existência independente. Estão sujeitas e dependem de sucessivos atos para
subsistirem, pois o Estado não é um produto do pensamento, mas sim da ação. Ação
que exige a vida pública, para que a possível coincidência entre palavra viva e
palavra vivida possa seguir e assegurar a sobrevivência da instituição através da
criatividade (PPP, 74).

A instituição da autoridade na Suprema Corte permite a estabilidade e, ao mesmo


tempo possibilita a ação: a constituição como fonte de autoridade não é um elemento externo
ao domínio mundano da política mas antes originado pela ação conjunta que define a
fundação. A possibilidade de uma revisão constitucional é a admissão da possibilidade de
ação no corpo político. A Constituição americana, com a sua permissão para emendas e
metodificações, concretiza a capacidade de “aumento” presente na autoridade; desta forma se
equilibra a conservação, por permitir que o corpo político sempre se remeta ao passado, com a
pluralidade e a mutabilidade presentes no exercício de poder
Esta capacidade de aumento, porém, guarda diferenças coma autoridade do Senado
durante a república romana; tal diferença se mostra na relação vertical entre autoridade e
poder presente na república romana e a relação horizontal permitida na estrutura da Suprema
Corte americana. Em contraste com a função “politica” do Senado romano, em orientar a vida
política romana de acordo com os princípios expressos na fundação, a revisão constitucional
promovida pela Suprema Corte admite a modificação e a mutabilidade nos negócios humanos
derivados da capacidade de alão. Nas palavras de Leonardo Avrinteer, se trata da
“atualização” da fundação, que rompe com a hierarquia entre autoridade e poder (REF). O
rompimento da hierarquia entre poder e autoridade é uma consequência da particularidade da
fundação americana: a fundação, apesar de ligada no âmbito teórico à tradição de um absoluto
na esfera pública e pela história política romana, em sua prática politica não repete nenhum
dos dois fundamentos teóricos. A fundação romana que se auto-percebia como a fundação de
Troia, como uma re-fundação; a fundação americana, por outro lado, foi concretizada sem o
apelo a um passado:

[os americanos] admitiam que não se tratava mais de fundar romana de novo
sim de fundar uma nova Roma, que a linha de continuidade que unia a
política ocidental à fundação da cidade eterna e liga esta fundação, por sua
vez, às memórias pré-históricas da Grécia e de Troia tinham se rompido e não
podiam ser restauradas”9SR, 271).

As “perplexidades do início” se mostram de maneira mais aguda na fundação


americana, pois se trata de uma fundação que não tem a possibilidade de se ligar a qualquer
tradição do passo (HONIG): na fundação americana, os revolucionários se deparam com o
começo, sem o consolo de qualquer acontecimento prévio que tornasse este começo
inteligível. O problema do início, como antes exposto, origina as lendas de fundação, como
forma de compreender os eventos novos que rompem com uma ordem anterior A origem,
afirma Arendt, “se insinua em quase todas especulações temporais que se desviam da noção
usualmente aceita do tempo como fluxo contínuo; era, portanto, um objeto quase natural da
especulação e imaginação terrenas” (SR, 254).
Sem o apelo a qualquer tradição anterior, as perplexidades do inicio na Revolução
Americana são resolvidas através da Constituição americana, que se torna um documento
escrito, ou uma reificação, que deixa registrada de maneira mundana o evento da fundação
(REF) ou, em outras palavras, a constituição se torna o marco do início da mesma forma que a
fundação de Roma ou o nascimento do Messias nas tradições anteriores A revisão
constitucional promovida pela Suprema Corte permite a retomada dos princípios da fundação
que se adaptam ao exercício do poder e da ação. Assim, a legitimidade da república americana
não é encontrada em um absoluto, mas ante, na própria ação em conjunto na reificação dos
princípios da fundação que permite que a origem do corpo político se faça sempre presente
(HONIG). A fundação prescinde da conexão com qualquer tradição anterior. Como afirma
Arendt: “o que salva o ato de iniciar de sua própria arbitrariedade , é que ele traz dentro de si
seu próprio início” (sr,272), O próprio evento de fundação cria o precedente que orientará a
ação futura, porém, tais precedentes estão sujeito a revisões, permitindo a atualização da
liberdade.
Na república americana há uma salvaguarda que protege a estabilidade do corpo
político: se a Constituição legitima e fornece um fundo estável á ação e ao discurso e, se ao
mesmo tempo, no corpo político com a quebra da hierarquia entre poder e autoridade se abre
a possibilidade para a ação, os founding fathers se preocupam com o efeito da opinião no
domínio político.
Esta preocupação com a opinião não é uma retomada do pensamento político grego
platônico, onde a opinião representaria uma ameaça aos preceitos que regem o corpo político,
mas sim uma preocupação com a unaniminidade de perspectivas que caracterizaria a
democracia. Como explica Arendt:

A democracia, para o século XVIII ainda era uma forma de governo e não
uma ideologia ou uma indicação de preferências de classe, era abominada,
portanto, porque se considerava que a opinião pública dominaria onde
deveria prevalecer o espírito público e o sinal desta distorção era a
unanimidade entre os cidadãos (SR, 286).

A democracia era entendida dentro do tradicional quadro conceitual das formas de


governo, onde a monarquia é o governo de um, a aristocracia o governo de poucos e a
democracia o governo de muito. Na visão dos founding fathers, a democracia é ligada ao
perigo de que o corpo político seja dominado e orientado por uma multidão unânime,
desaguando em soberania. Anne Amiel salienta: “A ideia-força aqui é que a oposição, tão
onipresente nos Federalist Papers, à democracia não provém tanto do receio da igualdade
social como da instabilidade, das convulsões, das mortes violentas (…)” (81) Não se trata, em
suma, da preocupação com os recursos econômicos que motiva esta desconfiança em relação
a democracia, mas antes, a preocupação com o fim da pluralidade no corpo político.
É preciso levar em conta que esta desconfiança a democracia não acarreta a tentativa
de abolição da opinião, mas se trata de tornar as opiniões dos cidadãos condizentes com o
“espírito público”, isto é, de tornar as opiniões expressões de perspectivas plurais sobre o
mundo comum. Para se compreender como conciliar a opinião com o “espírito público”
defendido pelos founding fathers, é necessário explicar as características da opinião:

as opiniões (…) nunca pertencem a grupos, e sim apenas a indivíduos (…) e,


nenhuma multidão, seja de uma multidão ou de uma parte ou de toda a
sociedade, jamais será capaz de formar uma opinião. As opiniões surgem
sempre que os homens se comunicam livremente e têm direito de expressar
suas opiniões em grupo (SR, 288).

A afirmativa de Arendt parece contraria pois, se de um lado a opinião é individual, por


outro promove a visão de que a formação de opiniões depende de outros cidadãos; trata-se,
entretanto, como anteriormente exposto do conceito de “mentalidade alargada”. Portanto, a
existência de uma “opinião pública” representa uma ameaça tanto para a condição de agente
político, que depende de outras opiniões para formular o seu discurso, como para o corpo
político, pela ligação entre soberania e instabilidade.
Para assumir carácter público, a opinião deve ser “purificada” de quaisquer elementos
idiossincráticos, de modo a emergir como uma perspectiva de um agente sobre o mundo em
comum (SR, 298) Trata-se de substituir a opinião pública, unânime, nascida não de uma
preocupação política, mas de um indivíduo divorciado do papel de agente ( como ilustrado na
questão social francesa) por efetivamente uma opinião efetivamente de caráter público
(AMIEL). Esta purificação de opiniões é alcançada, nos Estados Unidos, através da
instituição do Senado
O senado americano não é o local da autoridade do corpo político, porém, ao agir
impedindo a formação de uma opinião pública, o Senado colabora com a estabilidade do
corpo político. Arendt descreve a função do Senado:

Como as opiniões se formam e se testam em um processo de trocas de


opiniões contrárias, suas diferenças só podem ser mediadas por um corpo de
homens escolhido para este fim; tais homens, tomados individualmente, não
são sábios, mas têm como finalidade comum a sabedoria-a sabedoria nas
condições de flexibilidade e fragilidade da mente humana (SR, 289).

O Senado como este conjunto de homens, sublinha Arendt, não se orientaria pela
sabedoria filosófica ou pela razão enfatizada no pensamento iluminista (SR, 288) mas pela
deliberação dobre as contingências mundanas , de modo que as opiniões se tornem
perspectivas sobre um mundo comum.

A desobediência civil

Em Sobre a Revolução, Arendt afirma que apenas quando a lei é entendida como uM
mandamento sé necessário buscar um absoluto que explique a sua origem. No caso
americano, como visto, a lei não nasce de um absoluto, mas só próprio evento da fundação e,
portanto, não é compreendida como um mandamento que exige obediência.
Para se compreender o significado desta afirmativa, é necessário compreender o
significado arendtiano de obediência: A obediência pressupõe uma relação hierárquica que,
como antes exposto, não estava presente na política grega, mas que se refletia na relação entre
política e filosofia, em que a capacidade contemplativa do filósofo lhe garantia o monopólio
de ação sobre a polis. Arendt sublinha que o modelo desta relação hierárquica se origina no
domínio privado. A obediência, sendo estranha ao domínio político, não cabe nas atividades
de discurso e ação: “o único domínio em que a palavra [obediência] poderia possivelmente ser
apliacada a adultos que não escravos, é o domínio da religião, quando as pessoas dizem que
obedecem á palavra ou ao comando de Deus (…)” (RJ, 111-112). A lei como mandamento
pressupõe esta ordem transcendente de autoridade e portanto, acarreta uma relação de
obediência.
A obediência tem como consequência a ausência de possibilidade de ação por aqueles
que obedecem. Tal fato aponta para uma dupla consequência: por um lado, a ausência de ação
implica na ausência de poder, por outro a ausência de ação implica na ausência de instituições
animadas pela atividade politica. Sobre a impotência da obediência, é preciso ter em mente a
definição arendtiana do poder como “ação em concerto” e a consequente capacidade da ação
coletiva de gerar poder. Como exemplifica Arendt:

(…) toda ação realizada por uma pluralidade de homens pode ser divida em
dois estágios; o começo que é iniciado por um “líder”, e a realização, em que
muitos participam para levar a cabo o que então se torna um empreendimento
comum. Em nosso contexto o que importa é a compreensão de que ninguém,
por mais forte que seja, pode realizar alguma coisa, boa ou má, sem ajuda dos
outros o que temos aqui é a noção de uma igualdade que justifica um 'líder' ,
que nunca mais é do que o primus inter pares, o primeiro entre seus pares.
Aqueles que parecem obedecer-lhe realmente o apoiam (...) sem esta
'‘obediência’' , ele nada poderia fazer, ao passo que na creche ou em
condições de escravidão (...) e a criança e o escravo que fica sem ação caso se
recusa a “cooperar” (RJ 109-110)

O poder como um sinônimo de ação e de discurso exige a igualdade e,


consequentemente, na ausência desta igualdade, a ação não se torna possível.
Além da impotência, a obediência gera uma questão institucional: as instituições são
animadas pela ação e, ao mesmo tempo, como visto no conceito de autoridade, há instituições
responsáveis pela estabilidade do corpo político. Uma mediação possível entre a estabilidade
e ação se encontra na prática da desobediência civil: esta mediação se dá, principalmente, pelo
fato de que, como observa Arendt, toda mudança ocorrida em um corpo político não é prevista
no texto da lei, a mudança, em suma, é sempre extralegal (CR, REF) e, portanto, a
possibilidade de ação representa a possibilidade de rompimento com a estabilidade política, A
prática da desobediência civil tornaria a mudança possível tendo como pano de fundo a
estabilidade política..
A desobediência civil é um ato político, o que implica em algumas características: a
desobediência civil somente se concretiza através da ação em conjunto, o que permite a
expressão da pluralidade. Arendt, portanto, diferencia a prática da desobediência civil da
fugira do objetor de consciência individual: o contestador civil é parte de um grupo e,
segundo Arendt: “(….) o contestador civil, ainda que seja moralmente um dissidente da
maioria age em nome e para o bem de um grupo; ele desafia a lei e as autoridades
estabelecidas no terreno da dissenção básica , e não porque, como indivíduo, queira algum
privilegio para só (…)” (CR, 69). O contestador civil age motivado por uma visão sobre o
mundo comum e a prática da desobediência civil permite a expressão de sua perspectiva;
longe da preocupação do contestador civil está a preocupação com seu interesse enquanto
indivíduo. A distinção entre a preocupação com o mundo em comum em contraposição com o
indivíduo enquanto ente privado se torna clara na relação traçada por Arendt entre ética e
política: Aendt afirma que “no centro das considerações morais da conduta humana se está o
eu; no centro das considerações políticas de conduta está o mundo “ (RJ, 220). Esta distinção
sublinha a diferença entre o contestador civil e o objetor de consciência; no ensaio “ A
Desobediência Civil”, Arendt exemplifica a figura do objetor de consciência em dois
personagens: Sócrates e Henry David Thoreau, e, no centro dação destes dois personagens se
encontra a relação do homem consigo mesmo. Na morte de Sócrates e na prisão de Thoreau,
o que se encontra em jogo e a consciência dos dois personagens. A consciência, afirma
Arendt: “(….) é apolítica, não está primordialmente interessada no mundo aonde crime é
cometido usa consequências que isto terá no curso futuro do mundo” (CR, 58). A ênfase recai
no relacionamento do homem consigo mesmo enquanto capaz de pensar , enquanto capaz do
diálogo consigo mesmo. A consciência não implica o cuidado com o mundo, mas antes uma
retirada do mundo comum de modo que o indivíduo pensante mantenha um relacionamento
harmônico consigo mesmo. Como afirma Odilio Aguiar:

Arendt relaciona o movimento de desobediência civil à moral do bom


cidadão. O bom cidadão é julgado, não pelas virtudes morais, mas pelas
virtudes políticas, pela capacidade de se desprender do autointeresse e se
ocupar do mundo comum. O bom cidadão guia-se pela consciência secular,
aquela que aparece na capacidade de fazer e cumprir promessas e não pela
voz da consciência, aquela que aparece quando se está sozinho” (190)

A conduta do cidadão se orienta pelo mundo comum criado pela interação política ,
interação esta em que, como exposto, a promessa desempenha um papel fundamental; o
“bom cidadão” é motivado pela preocupação com o mundo comum gerado pela atividade
politica e, seja qual for o objeto da ação do contestador civil, esta ação nasce pela
preocupação com os efeitos de determinada norma no domínio público.
Cabe notar que o que define a virtude política se encontra justamente na capacidade de
ação, na capacidade de modificar o mundo ao redor a partir da formação de uma opinião e,
assim, no pensamento de Arendt, a obediência por si só não é uma virtude política. Como uma
ação que visa o mundo comum, a desobediência civil concretiza a pluralidade, por permitir a
expressão da opinião no domínio público. O objetor de consciência , em contraste, tem a ação
motivada pelo seu relacionamento consigo mesmo.
Como uma forma de ação a desobediência civil só é possível em um corpo político
fundamentado no que Arendt denomina a “versão horizontal do contrato”, em que a
possibilidade de ação, poder e expressão da pluralidade estão sempre presentes (CR, 78). A
presença constante da ação possui consequências imediatas no consentimento sob o qual se
assenta o corpo político:

Todo homem nasce membro de uma comunidade periarticular e só pode


sobreviver se nela é bem-vindo e se se sente a vontade. A situação fatual do
recém-nascido implica uma espécie de consentimento; ou seja num tipo de
conformação às regras com as quais é jogado no grande jogo da vida no
grupo particular a que ele pertence por nascimento. Todos nos vivemos e
sobrevivemos por uma espécie de consentimento tácito (…) poderíamos, no
entanto , chamá-lo de voluntário quando acontece de a criança nascer numa
comunidade na qual a dissidência também e uma possibilidade legal e de
facto quando ela se tornar adulta. Dissidência implica em consentimento e é a
marca do governo livre; quem sabe que pode divergir sabe também que de
certo modo esta consentido quando não diverge (cr 78-79).

Se o respeito às leis é fundamentado no desejo de “jogar” , isto é, no desejo de ser


parte da comunidade política e de agir tendo como pano de fundo os limites propostos pela
estabilidade do domínio político (DUARTE, REF), estes limites já se encontram determinados
a cada recém-chegado à comunidade política. Apenas quando a possibilidade de mudança
politica através da ação se encontra presente, é possível entender este consentimento não
como obediência, mas como um consentimento tácito (SMITH).
A ligação entre o dissenso e ao pacto horizontal indica o tipo demudança possibilitada
pela desobediência civil, na medida em que é considerada uma forma de ação política
legitima: se o contrato horizontal funda a república, ao corpo político repousa na capacidade
de se manter as condições originais da fundação (CR, 88). Portanto, uma das características da
desobediência civil é que esta prática é orientada por leis específicas nascidas das
contingências mundanas: “(….) o consentimento tácito universal (…) deve ser
cuidadosamente diferenciado do consentimento a leis específicas ou politicas específicas com
as quais não se identifica mesmo que sejam resultado de decisões majoritárias (cr, 79)” . Não
se trata de, na prática da desobediência civil, de negar os fundamentos do corpo político, seus
elementos de origem e legitimidade, mas antes de atualizar estes elementos. A mudança
promovida pela desobediência civil não é a mudança expressa na revolução, que funda um
novo corpo político, mas é uma mudança que mantém o espírito da fundação presente,
adaptando-o à contingências mundanas (SMITH)
O sistema de conselhos

A Constituição americana seria, segundo Arendt, a realização tangível e material do


início do corpo político e, ao mesmo tempo, representaria uma forma de estabilidade e
legitimidade que prescindiria da relação hierárquica entre poder e autoridade. No entanto, a
Constituição americana, na perspectiva de Arendt, falha ao prover a nova república de um
espaço onde a ação se torne uma ocorrência cotidiana. Como afirma Anne Amiel:

O que Arendt quer mostrar é que, se a Constituição americana faz justiça ao


poder, ao juízo, à opinião, aos direitos, aos interesses, às qualidades que
permitem “construir o edifício”, ela ignora de facto a ação e as suas
potencialidades e não deixa espaço às qualidades que permitem a
Constituição (92).

Se a Constituição americana é a realização tangível da “fundação da liberdade”, esta


constituição falha ao não permitir que a experiência do início, experimentada na fundação, se
torne uma experiência cotidiana.
A Constituição americana explicita a aparente oposição, sempre presente, entre a
fundação como ação por excelência e a durabilidade do corpo político. Como afirma Arendt:

Na medida em que o maior acontecimento em toda revolução é o ato de


fundação, o espírito da revolução contem dois elementos que nos parece
irreconciliáveis e até contraditórios; o ato de fundar um novo corpo político,
de conceber uma forma de governo, supõe uma séria preocupação com a
estabilidade e durabilidade da nova estrutura, por outro lado, a experiência
vivida pelos homens empenhados neste grave assunto é a percepção
divergente de os humanos têm a capacidade de iniciar alguma coisa, o
entusiasmo que sempre compartilha o nascimento de algo novo na terra (SR,
238)

Arendt se detém sobre esta aparente contradição ao analisar os questionamentos de


Thomas Jefferson após a revolução americana; a principal preocupação de Jefferson era
fundamentada em como, após a instituição do corpo político, seria possível possibilitar às
futuras gerações a “felicidade pública”, o prazer da vida política experimentada na ação por
excelência na experiência da fundação. Tal preocupação se mostra no fato de que a
Constituição americana falha ao incorporar os pactos coloniais e as associações municipais
presentes na Nova Inglaterra pré-revolução na Constituição (SR, ref); Assim a prática que
origina a revolução e que culmina em uma perspectiva de fundação não encontra eco no corpo
político já constituído.
O corpo político fundamentado na democracia representativa não permite a
experiência da “felicidade pública” De fato, Arendt apresenta severas críticas ao processo
eleitoral como instância única de participação política.
A primeira crítica de Arendt à democracia representativa se centra nos partidos
políticos que, de acordo com Arendt, não representam um fórum adequado à ação e ao
discurso. Os partidos políticos não oferecem um espaço aonde uma pluralidade de opiniões
pode se manifestar: “(…) a própria clivagem entre os especialistas do partido que '‘sabiam’' e
a massa do povo que supostamente deveria colocar em prática esse saber não levava em conta
a capacidade do cidadão médio de agir e formar opinião própria” (SR, 332). Os programas
partidários seriam, de acordo com Arendt, não o resultado de uma deliberação conjunta sobre
o mundo comum, mas o resultado da aplicação de uma ideologia isto é, a aplicação de um
conjunto de explicações que ofereceria respostas de como lidar com o âmbito político.
Arendt enfatiza, em texto sobre a Revolução Húngara de 1956, o fato de que, no
sistema representativo, o eleitor se encontra impelido a escolher determinado representante e,
o critério de escolha seria a aderência de tal representante à ideologia partidária, não
desempenhando nenhum papel a deliberação e a persuasão que caracterizam o âmbito político
(RRH, ref). Esta desconexão entre partido e opinião traz a segunda critica de Arendt ao
sistema representativo; tal sistema promove a percepção da política como administração.
Como Arendt afirma:

(…) desde o início, o partido como instituição pressupunha ou que a


participação do cidadão nos assuntos públicos era garantida por outros órgãos
públicos, ou que tal participação não era necessária e as camadas da
população recém – admitidas deveriam se contentar com a representação ou,
por fim, que todas as questões políticas no Estado do bem-estar social são,
em última análise, problemas administrativos a serem tratados e decididos
por especialistas caso em que nem mesmo chegam a desejar a uma autêntica
área de ação, mas são funcionários administrativos cujo encargo, embora no
interesse público, não se diferencia em essência dos encargos de uma
administração privada (SR)

A crítica de Arendt à percepção da política como uma atividade administrativa se


fundamenta em uma rígida separação em a atividade política e a econômica ; tal separação se
encontra na diferença entre a necessidade e liberdade, entre o domínio natural e o artificial da
existência. Se a ação não se orienta pela categoria de meios e fins, a ação é desconectada de
qualquer tipo de necessidade. A separação entre a vida política e a vida regida pela
necessidade afirma a preponderância da vida artificial, atualizada pela ação e pelo discurso,
sobre a vida regida pelas necessidades biológicas. A interpolação entre economia e política
representa, em última instância, o desvirtuamento de política, que se tornaria subordinada à
solução de problemas ligados à necessidade. Mais do que isso, como afirma Kateb, as
questões econômicas, por sua natureza técnica, promovem uma perspectiva única (REF)
enquanto a atividade política se caracteriza pela emergência de diversos pontos de vista. O
âmbito da política, em suma, não se confunde com a provisão de meios de sobrevivência. O
conjunto de politicas visando a economia, segundo Arendt, é o resultado de uma decisão de
especialistas, e se tornam a base dos programas partidários.
Os partidos políticos falham na tentativa de prover possibilidades para a ação e o
discurso, no entanto, Arendt afirma uma vantagem política em corpos políticos enque o
bipartidarismo é presente:

No sistema bipartidário, um partido sempre representa o governo e realmente


governa o país, de sorte que, temporariamente, o partido no poder identifica-
se com o Estado (…) Como ambos os partidos são planejados e organizados
para governarem alternadamente, todos os setores da administração são
planejados e organizados para esta alternação (…). As vantagens deste
sistema são óbvias: elimina as diferenças entre o governo e o Estado; mantém
tanto o poder como o Estado de hoje ou amanhã ; e, consequentemente não
dá azo a especulações grandiosas a respeito do Poder e do Estado como se
fosse algo fora do alcance humano, entidades metafísicas independente da
vontade e da ação do cidadão (OT 284-285).

Ao contrário do sistema multipartidário, em que o Estado é visto como uma instituição


acima da competição eleitoral isto é, como um objetivo que se localiza acima das diferenças
partidárias, no sistema bipartidário, o Estado é organizado para a alternância de poder e,
portanto, a organização estatal leva em conta a disputa partidária, permitindo que o Estado
seja percebido como parte integrante da vida política. O corpo político regido pelo
bipartidarismo permite ainda, na visão de Arendt, que o cidadão se torne mais próximo das
instituições: No sistema bipartidário, afirma Arendt, um partido só se mantêm se tem a
possibilidade de eventualmente governar (OT, 286) assim, um cidadão que participa da vida
política através de quaisquer um dos partidos, também detêm a possibilidade de se tornar
próximo do Estado.
Se o sistema partidário não permite a efetiva participação política, Arendt se volta aos
conselhos revolucionários, presentes em diversos momentos históricos, como a fundamento
de uma nova forma de governo que permitiria a ação e o discurso. Os conselhos permitiriam u
continuidade da atividade política enquanto para os partidos políticos, segundo Arendt: “(...)
própria necessidade de ação era transitória e não tinham nenhuma dúvida de que qualquer
ação adicional, após a vitória da revolução, simplesmente se mostraria desnecessária ou
subversiva (SR 341)” . Os conselhos revolucionários permitem a continuidade da ação e do
discurso do modo como estas atividades foram vivenciadas no evento da fundação. Os
partidos políticos limitam a possibilidade de participação política e, na perspectiva da
organização partidária, a manutenção da atividade política representa uma ameaça a
estabilidade do corpo político surgido com a revolução.
O sistema de conselhos não seria incompatível com um corpo político estável. Arendt
afirma que nos diversos momentos em que os conselhos se tornaram realidade sua estrutura
era a mesma: um conjunto de conselhos locais que elegiam delegados para conselhos
superiores. Arendt afirma:

(…) enquanto a autoridade em todos os governos autoritários que


conhecemos vem de cima para baixo, neste caso a autoridade não se teria
gerado nem de cima nem de baixo, e sim a cada camada da pirâmide; e
evidentemente poderia constituir a solução para um dos problemas mais
sérios de toda política moderna, que não é conciliar igualdade e liberdade, e
sim como conciliar igualdade e autoridade (SR, 347-348).

Esta conciliação entre igualdade e autoridade encontrada no sistema de conselhos é


derivada da possibilidade de cada conselho exercer o poder, isto é, cada conselho detêm a
capacidade de ação e no fato de que os conselhos independem de uma fonte transcendente de
legitimidade e estabilidade e da veneração de um passado fundacional (AMIEL). Sobre a
conciliação entre permitida pela estrutura de conselhos, John Sitton afirma:

(…) each council would have respect for the opinion of others and realize
that certain things must be done , wheter that particular council agreed or not.
to the extention that this relation to authorithy is realized , Arendt belives ,
the tension between authority and equality would be allivieted among the
featured councils. The key phrase “higher council” would therefore not refer
to any coercive power but to the fact of including a larger territorial area as
the primary, but not exclusive, focus of deliberations.

A igualdade seria garantia pelo fato de que cada instância seria detentora do poder de
ação; Assim, de maneira diferente da estrutura de um governo fundamentado em uma
autoridade superior e supramundana, a hierarquia é substituída por múltiplas arenas para a
atividade política e a estabilidade do corpo político deriva da autonomia de ação que subsiste
em cada instância.
A forma de governo derivada dos conselhos revolucionários se diferencia da
participação política proporcionada pelo instituto da desobediência civil. Enquanto esta última
se direciona a um determinado dispositivo normativo presente no corpo político, o sistema de
conselhos permite a participação política constante é originado do fato de que os conselhos
são organizados territorialmente; Arendt, ao relacionar os conselhos com a proposta de
Thomas Jefferson das “repúblicas elementares”. ´retende reafirmar que os conselhos se
organizaram não por associações corporativas ou grupos de interesse, mas se apresentariam
como um fórum político permanente que possibilitaria ao cidadão se engajar na ação e no
discurso.
Totalitarismo

Um tema constante na obra de Arendt é o senso comum, entendido como o bom senso
que nos faz compreender o mundo: Arendt define o senso comum como o sentido interno que
nos permite organizar aquilo que foi recebido pelos nossos cinco sentidos (a vida do espirito).
É uma sentido interno, que orienta nossas percepções em um todo coerente.
Frente aos horrores totalitários, o senso comum se mostra impotente e perplexo.
Arendt não está interessada em definir a singularidade do fenômeno totalitário
A instabilidade totalitária

Arendt define o totalitarismo como “uma formas inteiramente nova de governo” (OT,
531), com tal afirmação, Arendt diferencia o totalitarismo de outras formas de governo, que
limitam a liberdade; na ótica de Arendt, o totalitarismo não se confunde com qualquer forma
de ditadura ou de governo autoritário. A principal diferença reside na ausência de
institucionalização que caracteriza os regimes totalitários:

(…) o princípio da autoridade é, para todos os efeitos, diametralmente


oposto ao princípio totalitário. O seu carácter primígeno aparece na história
romana: ali, autoridade, sob qualquer forma, visa atingir e limitar a liberdade,
mas nunca a aboli-la. O domínio totalitário, porém visa a abolição da
liberdade até mesmo a abolição de toda espontaneidade humana e não a
simples restrição, por mais tirânica que seja, da liberdade (OT, 455).

O regime totalitário se subordina a uma ideologia que forneceria uma explicação


integral para a realidade presente e mais que isso, descreve o futuro. A definição arendtiana de
ideologia pressupõe uma visão de mundo que, ao explicar o presente e prever o futuro, se
mostra divorciada da realidade. A explicação ideológica não admite as contingências
mundanas (CO, 369), sua pretensa veracidade ignora qualquer elemento imprevisível nascido
da interação política. o Se subordinando aos ditames da ideologia, o regime totalitário
extingue quaisquer possibilidades de ação: o espontâneo e inesperado que caracteriza a ação é
um desafio frontal aos ditames ideológicos. O regime totalitário, se orientando pela ideologia,
visa transformar o mundo e tornar o futuro naquilo que é previsto pelo seu ideário; um
elemento estável no regime totalitário significaria um obstáculo rumo ao à utopia prevista
ideologicamente.
Na perspectiva de Arendt, portanto, o totalitarismo não se contunde com qualquer
forma de governo que possua um elemento capaz de estabilizar o domínio público. A
incompatibilidade entre totalitarismo e estabilidade pode ser explicitada nas referências de
Arendt à Itália fascista; a Itália fascista, no dizer de Arendt, se mostra uma ditadura
unipartidária, e como tal, se caracteriza pela intersecção entre o partido e o Estado. Como
consequência, uma ditadura de partido único não percebe a máquina partidária como “acima
do Estado” mas como uma estrutura capaz de se imiscuir na instituição estatal Assim, uma
ditadura unipartidária depende da estabilidade fornecida pelo Estado:

O movimento fascista, que era “um partido acima dos partidos”, na medida
em que dizia representar o interesse da nação como um todo, apoderou-se da
máquina estatal, identificando-se com a mais alta autoridade nacional e
tentou transformar todo o povo em “parte do Estado”. Não se considera,
contudo, “acima do Estado” e seus líderes não se consideravam “acima da
nação” (OT, 291).

O Estado, na ditadura unipartidária, se torna unificado sob os ditames do partido. O


partido neste contexto não é constituído ideologicamente e não pretende revelar uma infalível
visão de mundo, mas antes, constituir um Estado rígido e monolítico. No regime totalitário,
em contraste, a força motriz não é o partido, mas antes o movimento incessante animado pela
ideologia e qualquer forma de institucionalização representaria um obstáculo à realização do
futuro previsto pelo regime totalitário.
Uma ditadura monopartidária é, portanto, uma estrutura rígida e estável. Tal estrutura
compreende a existência do Estado como instituição e se encontra descrita na estrutura do
governo autoritário rigidamente hierarquizado: a fonte de autoridade se encontra acima do
âmbito político e detém o monopólio de poder. Como uma estrutura regida pela autoridade,
um conjunto de leis positivas se encontra presente na ditadura unipartidária, leis estas que são
derivadas da autoridade absoluta identificada com o partido, Com afirma Andrew Arato:

(…) there are also authoritariam regimes that are dictorships necessarily
imploying hierarchy, stability and at least some limitation to absolute power.
While such regime is not a rechsstaat or a rule of law state, it still has,
according to Arendt, the genuine principle of law as a command” (483-484).

A estrutura hierárquica presente na ditadura pressupõe a existência de leis. E tal


concepção de lei se fundamenta na primazia da obediência; mesmo presente uma concepção
de lei que não leva em conta a capacidade de ação, o corpo político é dotado de estabilidade.
O regime totalitário, por sua vez, se caracterizado pelo constante movimento, não se limita
por nenhuma normatização legal, justificando a afirmativa de Arendt de que :

Em vez de dizer que o governo totalitário não tem precedentes, poderíamos


dizer que ele destrói a própria alternativa sobre a qual se baseiam, na filosofia
política, todas as definições da essência de governo, isto é, a alternativa entre
governo legal ou ilegal, entre poder arbitrário e poder legítimo (OT, 513).

Se o totalitarismo não se encontra limitado por nenhuma lei, a ideologia pode se


manifestar livremente. Arendt, ao afirmar a indistinção entre poder legítimo e ilegítimo
presente no totalitarismo, recorre à taxonomia das formas de governo presente na teoria
política. Se a tirania é descrita como o governo de um só homem de acordo com a sua vontade
e não limitado por leis, Arendt sublinha a impossibilidade de se considerar o totalitarismo
como o governo fundamentado em qualquer vontade humana: “o ditador totalitário, numa
aguda distinção do tirano, não acredita que é um agente livre com o poder de executar sua
verdade arbitrária, e se julga o executor da lei mais alta” (co, 365)” Um tirano age de acordo
com a sua vontade, ignorando qualquer limite legal, enquanto o regime totalitário é conduzido
de acordo com os ditames da ideologia. Como resume Canovan:

The hallmark of tyranny had always been lawlessness: legitimed governemmet was
legitimated by laws, whereas tyranny meant the breach of these boundaries so that
the tyrant could rage his will across the country. But (…) totalitarianism was not
lawless in that way, thus its laws were not civil laws protecting rights, but the
supposed laws of nature or history.

O totalitarismo, como um regime ideologicamente orientado, dota o líder de um papel


que diferencia o totalitarismo da tirania: o líder, no totalitarismo, nada mais é do que o
intérprete da ideologia. Tal papel, contribui para o “amorfismo” do regime totalitário: o líder
não representaria o ápice da estrutura, mas sim, como um intérprete da ideologia, transmite as
ações do regime, ou nas palavras de Arendt; “O desejo do fuher pode encarnar-se em qualquer
parte e qualquer mimento, sem que o próprio fuher esteja ligado a qualquer hierarquia (...)”
(ot 455). Esta ausência de hierarquia se traduz na ausência de uma clara fundamentação
institucional nos regimes totalitários: Arendt afirma que uma das características do regime
totalitário é e multiplicação de orgãos (OT, 488), isto é, a presença simultânea de diversos
instâncias estatatis, de modo que as ordens do líder , ou em outras palavras, o centro das ações
governamentais se desloque constantemente ( OT,449).
Ainda é possível, na comparação arendtiana entre a tirania e o totalitarismo, observar a
impossibilidade de atividade política sob o regime totalitário; se a ideologia fundamenta o
regime totalitário, as ações de um Estado totalitário são orientadas para o cumprimento dos
ditames ideológicos através do terror. Arendt define o terror como o instrumento pelo qual os
regimes totalitários tentar realizar as prescrições da ideologia:
Do mesmo modo como as leis positivas, embora definam transgressões, são
independentes destas - a ausência de crimes numa sociedade não torna as leis
supérfluas, mas, pelo contrário, significa o pleno domínio das leis - também o terror
no governo totalitário deixa de ser uma meio para suprimir a oposição, embora ainda
seja usado para tais fins. O terror torna-se total quando independe de toda oposição;
reina supremo quando ninguém mais lhe barra o caminho. Se a legalidade é a
essência do governo não tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania, então o terror
é a essência do governo totalitário. (OT, 517).

Arendt, ao se referir ao terror, se refere ao fato de que, no regime totalitário, a


finalidade de tornar realidade a prescrição ideológica, institui um regime de perseguição em
que a identidade da vítima e do carrasco independem das ações respectivas: o papel de vítima
e carrasco é determinado ideologicamente (CO, REF).
A presença generalizada do terror tem como consequência a abolição da ação em um
regime totalitário:

(…) o medo deixa de ter sentido quando a escolha das vítimas não gurda nenhuma
relação com as ações e os pensamentos dos indivíduos. O medo, embora seja com
certeza o estado espírito geral dos países totalitários, deixa de ser um princípio de
ação e não pode mais servir de guia para atos específicos” (CO, 368)

Se em um regime ditatorial se opor significa se tornar uma vítima , as ações daqueles


que vivem sob um regime totalitário não representa nenhuma garantia de se assumir o papel
de vítima ou carrasco, assim, qualquer princípio de ação, que Arendt, em sua leitura de
Montesquieu, conceitua de guias para ação em determinado corpo político se torna
irrelevante.
O totalitarismo, definido pela ideologia e terror, representa uma nova forma de
governo que se diferencia de quaisquer outras formas de governo que submetiam a liberdade.
Sua negação radical da capacidade de ação em nome da ideologia e do terror, torna o
totalitarismo, no dizer de Arendt uma potencialidade e um risco (OT, 531). Arendt ,
paradoxalmente, afirma que o totalitarismo é uma resultante da capacidade humana de trazer
o inesperado; Assim, ao afirmar que sob o regime totalitário a divisa “tudo é possível” se
torna real, afirma que a capacidade de ação traz em si um risco. Se a ação é capaz de
constituir espaços aonde a liberdade se torna realidade, a ação, ao mesmo tempo pode se
tornar uma ameaça á própria expressão da pluralidade.
Considerações finais

Podemos constatar que a ação no pensamento de Hannah Arendt não é incompatível


com a institucionalização. A relação entre ação e institucionalização, apesar de possível não é,
porém, isenta de problemas e, os pontos problemáticos desta relação se localizam na
existência de uma instância de estabilidade e permanência do corpo político que permita que
ao ato e a palavra “apareçam”, para fazer uso de um termo arendtiano.
Se a relação entre ação e institucionalização se mostra não isenta de críticas como na
ligação entre auctoritas e postestas na república romana, a posterior secularização da política
na Idade Moderna, dá origem à presença da soberania nos corpos políticos. A soberania
implica na ameaça à capacidade de ação e à liberdade em nome de um corpo político que,
pretensamente, teria garantida sua durabilidade. No entanto, como foi exposto, permanência
sob a soberania não é possível.
Fora do âmbito da soberania na Idade moderna, a autoridade exibe outras feições na
república americana. A fundação que não remete a uma fonte transcendente ou que não se
traduz em uma veneração do passado – e por tal veneração compreendemos ao atrelamento do
poder à autoridade-permite que possibilidades de ação estejam presentes no corpo político.
Se a institucionalização da ação em suas feições mais rígidas, como nos regimes
ditatoriais e autoritários, suprime a ação, o totalitarismo, com sua ausência de
institucionalização, representa a abolição da liberdade. Esta ausência de instituições se dá
graças ao papel central que a ideologia desempenha nos regimes totalitários. Se os regimes
totalitários seguiram a Lei Racial ou a Lei da História, este guia supra-humano não se
confunde com a transcendência das leis naturais em corpos políticos autoritários

A legitimidade totalitária, desfiando a legalidade e pretendendo estabelecer


diretamente o reino da justiça na Terra, executa a lei da história ou da natureza sem
convertê-la em critérios de certo e errado que norteiem a conduta individual.
Aplica-se diretamente à humanidade , sem atender a conduta dos homens. Espera
que a lei da Natureza ou a lei da História , devidamente executada , engendre a
humanidade a humanidade como produto final; essa esperança (...) é acalentada por
todos os governos totalitários (OT, 514)

A ideologia, portanto, não se traduz em nenhuma lei positiva. Como exposto, em um


corpo político regido por uma fonte de legitimidade transcendente , a lei natural superior ao
âmbito dos negócios humanos é transposta, no conjunto de leis positivas, à normatização da
conduta humana. Assim, a ação humana ainda detém certa relevância. No regime totalitário,
ao contrário, a primazia da ideologia significa a abolição da conduta humana, de modo que
toda ação nada mais é do que um entrave aos ditames ideológicos.
A primazia ideológica totalitária se mostra na instituição de campos de concentração
que, segundo Arendt, definem o que é o regime de dominação total. A relevância dos campos
reside no fato de que os campos, no dizer de Arendt, são laboratórios que concretizam ,
integralmente, a hegemonia da ideologia. Regidos pela ideologia, os campos prescindem de
qualquer relação com a conduta humana, e, mais do que isso, prescindem de qualquer
utilidade para o regime, como Arendt afirma sobre os campos nazistas “(...) nem mesmo as
supremas urgências das atividades militares poderiam interferir nestas “políticas
demográficas”. Era como se os nazistas achassem mais importante manter as fábricas de
extermínio do que ganhar a guerra “(co, 261).
As instituições, como exposto, dependem da interação humana de modo que se tornem
reconhecíveis e legitimas. A ausência de instituições em um regime totalitário impossibilita a
simbiose entre instituição e ação. Uma das carateristas do regime totalitário, que ocupa as
reflexões finais de Arendt em um posfácio escrito posteriormente a As Origens do
Totalitarismo, se ocupa da ausência de interação que reina sob o totalitarismo. Arendt afirma
que o domínio ideológico depende do isolamento, o domínio ideológico, é uma resultante
direta da incapacidade de se compartilhar perspectivas sobre um mundo comum. Uma das
características da ideologia é o fato de que se apresenta como um conjunto logico de
preposições, e a tal lógica, como visto constantemente no pensamento de Arendt , é uma
ameça à manifestação política da pluralidade. Na ausência de um domínio público, onde seja
possível constituir uma “teia de relações humanas”, a ideologia se torna a única forma de se
encontrar lugar no mundo:

O “raciocínio frio como gelo” e o poderoso tentáculo da dialética que nos segura
como um torno parecem ser o último apoio num mundo onde ninguém merece
confiança e onde não se pode contar com coisa alguma. É a coerção interna, cujo
conteúdo , cujo conteúdo único é a rigorosa evitação de contradições , que parece
confirmar a identidade de homem independente de todos relacionamento com os
outros (OT<530)

A descrição arendtiana de um regime totalitário , fundamentado na primazia da


ideologia e no terror como realização desta ideologia, é o que diferencia o regime nazista ou o
regime stalinista de outras formas de governo. Podemos afirmar, portanto, que tal descrição ,
enfatizando a ausência de instituições, é o que diferencia a teoria de Arendt de concepções
de totalitarismo que entendem este regime à semelhança de ditaduras e de regime s
autoritários *CANOVA, 2000)
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