Lúcia Avelar*
ABERTO
Mulher e política:
o mito da igualdade
A progressiva participação das mulheres na vida política, deflagrada no século XX, deve ser vista
sob a perspectiva das mudanças sociais, culturais e políticas das sociedades. Entre essas mudan-
ças, o surgimento de novos tipos de famílias, a ruptura dos padrões familiares patriarcais e as novas
formas de produção no mundo do trabalho tiveram impacto sobre as relações sociais e solaparam
vida pública e privada.1 No caso do Brasil, as análises sobre mulheres na política também devem
levar em conta as razões pelas quais as desigualdades políticas e sociais permanecem, lado a lado,
Para um conjunto de países, a conquista dos direitos civis ocorreu durante o século XVIIII; a
dos direitos políticos, durante o século XIX; e a dos direitos sociais, ao longo do século XX.
Porém, a situação é muito diferente para os países latino-americanos e africanos, para o mundo
que todas as pessoas têm direitos iguais. O mito de uma cidadania universal continua obscure-
1 Ver artigo de minha autoria
publicado na Revista do Ibam
(Instituto Brasileiro de adminis- cendo as reais diferenças da fruição desigual dos direitos: são muitas as pessoas que vivem
tração Municipal), dez. 2000: “As
mulheres e as eleições munici-
pais de 2000”. sob uma situação de opressão e de desvantagem econômica, social e política (Young, 1989).
98 DEMOCRACIA VIVA Nº 32
ABERTO
As mulheres são um ótimo exemplo para termos Publicações como Nosso Jornal (1919)
uma idéia de quanto é longo o caminho da luta ou Revista Feminina (1915–1927), dirigidas às
pela extensão real dos direitos de cidadania aos mulheres de classe média urbana, ofereciam
muitos segmentos oprimidos. A democratização conteúdos conciliadores, opunham-se ao “fe-
é fruto de um longo processo de mudanças na minismo radical” presente em outros países, que
sociedade, pela incorporação dos grupos des- subvertia “os modelos clássicos da existência
privilegiados nos benefícios dos direitos que feminina” (Hahner, 1990, p.133). Reforçavam
igualam os indivíduos, indistintamente, no pla- também a idéia de que a arena política não era o
no político, econômico e social. “lugar próprio” das mulheres, e sim a casa, o lar.
Nesse cenário, surge Bertha Lutz,
nascida em São Paulo em 1894, que, após
Movimento das sufragettes
sete anos de estudo na Europa, volta ao
Se recuperarmos as primeiras manifestações das Brasil, veicula as idéias das campanhas pelo
mulheres brasileiras na direção de maior igualda- sufrágio e polemiza sobre a necessária in-
de, veremos que, com a estrutura da sociedade dependência das sufragettes brasileiras,
patriarcal, a posição das mulheres era de inferio- que deveriam deixar de viver de forma para-
ridade social, o que constrangia manifestações sitária e assumir responsabilidades políti-
mais incisivas pela independência e autonomia, cas. Além dela, o Comitê Internacional Pan-
mesmo na época em que, na Europa e nos Esta- Americano de Mulheres (Pan American
dos Unidos, se multiplicavam as associações vo- Women’s International Committee) trabalha-
luntárias com expressiva presença de mulheres. ria com a Liga Nacional de Mulheres Eleito-
Um jornal, O Bello Sexo, foi organizado por se- ras, e a Federação Brasileira para o Progres-
nhoras de classe alta com a intenção de serem so Feminino, fundada em 1922, filiada à
úteis à sociedade. Em 1870, algumas delas reivin- International Woman Suffrage Alliance, im-
dicaram educação extensiva às mulheres como a pulsionaria o movimento pela conquista do
chave para a emancipação feminina. Entretanto, voto das mulheres.
como reivindicar direitos em uma sociedade pro- Mas quem eram as sufragettes? Mé-
fundamente dividida étnica e socialmente, con- dicas, dentistas, advogadas, escritoras, es-
servadora e moralista (Hahner, 1990)?2 cultoras, poetisas, pintoras, engenheiras ci-
No início da década de 1920, líderes do vis, cientistas, funcionárias públicas,
nascente movimento das sufragettes mantinham parentes de políticos da alta elite. Isso facili-
ligações com as líderes do movimento interna- tava suas reivindicações como representan-
cional. Em 1922, no promissor centro industrial tes de um grupo de elite e independente de
de São Paulo, a Semana da Arte Moderna apre- qualquer movimento social ou partido polí-
sentava um clima de mudança cultural mais fa- tico. Mesmo assim, as sufragettes não esca-
vorável às pretensões das mulheres. Mas ape- param dos ataques da imprensa, que, fre-
nas as mulheres dotadas de riqueza e qüentemente, acusara-as de pertencerem ao
emancipação intelectual desfrutavam de auto- terceiro sexo, carentes de charme feminino,
nomia e independência. Em geral, os movimen- histéricas, declassées.
tos urbanos das décadas de 1920 e 1930 deixa- No ano de 1927, no estado do Rio
vam claro que as conquistas femininas não Grande do Norte, um político – Juvenal
resultariam em modificações na estrutura da Lamartine de Faria – fez mudanças no códi- 2 Esse livro oferece uma exce-
lente análise documental sobre
sociedade e da família. Na verdade, a movimen- go eleitoral do seu estado e invocou mudan- a atuação das mulheres brasi-
tação feita por mulheres de classe alta reiterava ças na Constituição Federal para que a ou- leiras no século XIX e nas pri-
meiras décadas do século XX,
a política conservadora da época. tra metade da população brasileira pudesse em busca do direito de voto.
exercer plenamente seus direitos políticos. outros grupos da sociedade. Desde a implanta-
Apoiou e elegeu a filha de um chefe político ção dos programas de ajustes estruturais na mai-
da cidade de Lages para o cargo de prefeita. oria dos países latino-americanos, pelo menos
O direito de voto das mulheres, entre- 16 milhões de pessoas ficaram fora do mercado.
tanto, viria por decreto assinado pelo presiden- A resposta das mulheres diante dessa
te Getúlio Vargas em 24 de fevereiro de 1932. Os situação é clara: mais do que nunca, é preciso
temas defendidos pelas feministas da década continuar lutando por uma “política da pre-
de 1930 eram: interesses das mulheres trabalha- sença” (Phillips, 1995). A representação polí-
doras; necessidade de instituir educação em tica das mulheres torna-se fundamental, prin-
colégios mistos; mudança da legislação que re- cipalmente se levarmos em consideração as
conhecia como incapaz a mulher casada; políti- reais divisões no mundo das mulheres, como
ca voltada às crianças abandonadas; e a eman- as clivagens de classe, de etnias e de raça
cipação econômica das mulheres. Com a ditadura (Young, 1989). As mulheres têm de relacionar
de Getúlio Vargas (1937–1945), a articulação des- suas necessidades concretas com o ativismo,
sas reivindicações foi diluída. como qualquer outro grupo socialmente mar-
As mulheres votariam, efetivamente, ape- ginalizado que necessita da arena pública para
nas em 1946. Somente no fim da década de 1970 exercer influência política e atingir seus fins.
e durante a década de 1980, ocorreria um efetivo A adoção de cotas, sem dúvida,
ativismo feminino, com movimentos sociais or- incrementou a presença das mulheres na re-
ganizados em torno de novos temas relaciona- presentação política. Em alguns países, os par-
dos à ascensão educacional das mulheres. Mas tidos adotaram medidas complementares para
a dificuldade maior continuaria sendo a mesma aumentar o número de mulheres em seus qua-
de décadas anteriores e que persiste até os nos- dros. Em uma época de enorme volatilidade
sos dias: como construir coalizões em uma soci- política, na qual os partidos políticos perdem a
edade profundamente desigual? sua função tradicional, a política torna-se cada
Numerosas líderes feministas saíram das vez mais personalizada. A assimilação de mu-
fileiras das universidades, dos movimentos de lheres na competição eleitoral é usada como
base da Igreja Católica, de antigos partidos clan- um recurso positivo nas estratégias eleitorais.
destinos, como o Partido Comunista Brasileiro. Foi o caso do Partido Verde na Alema-
Apesar da onda de manifestações vibrantes que nha, que decidiu, em 1986, alternar homens e
atravessou o período da transição brasileira mulheres em suas listas eleitorais. Um dos prin-
(1974–1985), os partidos políticos permanece- cipais argumentos utilizado para justificar a
ram fechados às representações de mulheres. medida é o modo diferencial como as mulheres
Multiplicavam-se as “seções femininas”, ver- atuam, introduzindo elementos de mudança na
dadeiros guetos de mulheres, cujo objetivo real qualidade do exercício da política.3
era o de excluí-las do jogo político. O posicio-
namento ideológico das mulheres torna-se mais
Qual representação?
claro durante a construção de um novo espaço
político, de esquerda, representado pela políti- Qual é, na verdade, o fim a ser alcançado com
ca da sociedade organizada. o aumento dessa representação? O objetivo,
por excelência, é modificar o quadro da sub-
representação política das mulheres, a partir
Duro golpe
da defesa da concepção de representação
O ativismo feminino internacional, particularmen- substantiva e da eleição de mulheres consci-
te nos países da América Latina, sofre um grande entes do seu status inferior na sociedade e na
golpe quando, após décadas de crescimento eco- política. Em outras palavras, a questão-chave
nômico dos países em desenvolvimento, as cri- não é eleger mais mulheres, e sim eleger mu-
ses decorrentes dos endividamentos externos lheres feministas.
submetidos aos programas de ajustes estrutu- O feminismo, como ideologia políti-
3 Não é sem razão que alguns rais, monitorados pelas agências internacionais ca, é elemento crucial na construção de
partidos políticos no Brasil
lançam candidaturas femini- de crédito, põem essas economias em situações identidades políticas femininas porque é um
nas como um meio de chamar de enorme vulnerabilidade. conjunto estruturado de idéias que guia a
a atenção do eleitorado. Nes-
se caminho, as mulheres polí- Nos países latino-americanos, as desi- ação política. É também a consciência de
ticas têm de estar atentas e
levar em conta o apoio das gualdades sociais se aprofundam. É um duro que as mulheres são discriminadas e não
mulheres de diferentes orga- golpe contra os avanços alcançados no cam- usufruem das mesmas condições de igual-
nizações profissionais, sindi-
cais etc. po dos direitos de cidadania das mulheres e de dade que os homens, a convicção de que
diferenças decorrentes de sexo, etnia e raça? volvimento político das nações devem pro- 5 Direitos sociais sem represen-
tação política é paternalismo;
Como construir um discurso dirigido ao elei- duzir informações e análises que esclare- representação sem direitos
torado esclarecendo por que as mulheres fa- çam as condições para a participação da sociais não existe. Ver os arti-
gos da International Political
zem diferença na política? Como difundir o mulher na vida política. Science Review (2000).
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