Anda di halaman 1dari 18

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

PPGF – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Um Ebó para Exu das encruzilhadas

PEDRO PAULO GUIMARÃES DE MENZES

RIO DE JANEIRO
2019
Ialorixá: Exu apoie-nos, ó Exu, apoie aquele que fez o ebó bem feito.
Coro: Exu apoie aquele que fez o ebó bem feito. Exu o apoie.

(Èṣù gbé, Èṣù gbé o, Ení ṣ'ebo l'oré o


Èṣù gbé, Ení ṣ'ebo lóre o, Èṣù gbé o)
(...)
Ialorixá: Lálúpon, entreguei o ebó à Exu. Exu apoie aquele que fez o ebó bem feito.
Coro: A água acalma a fúria do fogo. Exu apoie aquele que fez o ebó bem feito.

Ialorixá: Epo acalma a fúria de Exu. Exu é quem receberá o nosso Ebó.
Coro: Quem receberá nosso ebó?
Ialorixá: Exu é quem receberá nosso ebó.

(Lálúpon, mo gbé ebo re ìdi Èṣù. Èṣù gbé, Ení ṣ'ebo l'óre.
Omi ní `nparó iná. Èṣù gbé, Ení ṣ'ebo l'óre.

Epo l'èrò Èṣù. Èṣù ni yóo gba ebo wa.


Tani o gba ebo?
Èṣù ni yóo gba ebo wa.)

(SÀLÁMÌ, Síkírù. Cânticos dos orixás na África. Editora Oduduwa, 1991.)

1 - Introdução

Este texto começa estando à sombra do problema do prefácio. Prefácios, apresentações,


introduções ou etc, são elementos fundamentais privilegiados dentro da arquitetura de um
pensamento - dentro da estrutura de um texto. Mas mesmo que, enquanto fundamento, sejam eles
que preparam o solo e que põem as bases para o entendimento do texto, introduções não são
propriamente o que sustenta um pensamento. Nessa arquitetura prefácios aparecem marcados e
atravessados pelo signo da porta - como portas.

Eles abrem e fecham um texto. São as entradas e saídas oficiais. Guias dos significados,
introduzem, dizem como iniciar e o fim, por onde se começa e onde aquilo vai terminar, como
ler, qual o percurso, o programa, o cronograma, a trajetória, a hierarquia dos andares e níveis
superiores, a distância entre o tema central (cerne ou núcleo da discussão) e o debate periférico
(suplementar, ornamental ou supérfluo), as interrupções e os interruptores, etc. Nos textos, eles
estabilizam a tagarelice das palavras escritas na intenção apresentada pelo autor – o abre para
uma possibilidade de leitura, dando a chave para seu entendimento, e o fecha para outras,
enclausura o texto em um limite em que pode ser lido. O prefácio introduz o que o livro quer-

1
dizer1 protegendo-o da possibilidade de afastar-se do seu sentido autêntico, original e próprio - a
introdução evita que as palavras de um livro sejam pervertidas em um sentido impróprio.
Adiantam ou antecipam o significado do que está porvir, garantindo que sempre seja o mesmo -
prevê sua conclusão, seu destino.

Tateando nesse sentido, a frase com que Marcel Mauss e Henri Hubert abrem - a
apresentação de - Sobre o Sacrifício (2018) antecipa em muito o significado que ele alí deseja
inscrever ao texto - daquilo que ele deseja que sua argumentação faça visível. "Propusemo-nos
neste trabalho definir a natureza e a função social do sacrifício." (MAUSS, 2018, p. 07). A ideia
cortejada por esse trabalho foi proporcionar o encontro do pensamento acerca do problema do
sacrifício de Marcel Mauss e Henri Hubert com algumas práticas, o pensamento e questões
relativas às religiões afro-brasileiras, diaspóricas, brasileiras e africanas - principalmente o lugar
ocupado pelo sacrifício dentro da arquitetura desses sistemas de crenças e destes sistemas
religiosos.

Estar à sombra da questão do prefacio é ser assobrado pela seguinte problema: Como
fazer um prefácio que não esclareça, mas que torne perturbador? Um tal que, invés de recorrer
ao familiar e tornar menos turva e confusa a coisa, ele acolha o dissenso, a desfamiliarização do
objeto, nunca estando o texto plenamente presente ao entendimento. Uma arquitetura vazada,
que permita entrar e sair de outras maneiras, que não se dê por uma definição de solidez
inabalável, que não organize o tema central2. Assim, o que aqui desejei foi, mais que definir e
responder, levantar questões, perguntas e dúvidas que ajudem a tatear as dimensões - ou perder a
dimensão do tamanho - do problema do sacrifício. Não há uma conclusão prevista no projeto.

Isto explica, em parte a escolha da Macumba para este encontro com Mauss. A macumba,
que, aqui, rastreia diferentes religiões, culturas e cosmovisões, como o Catimbó de Jurema, o

1
Será possível, por outra via, um pensamento que nada queira dizer? Que escape à pretensão de "querer-dizer", de
explicar, definir, de dar o sentido ou significado? Incompleto e inesperado, que não preveja, antecipando tudo e
impedindo que qualquer coisa lhe aconteça? Um pensamento que não se oriente conscientemente no espaço?

2
Deste modo, este texto tenta conduzir-se de outra maneira no espaço da folha. A discussão sobre o lugar do
sacrifício é uma discussão arquitetônica da estrutura, tema de arquitetura. A questão da cultura e da religião é seara
das ciências sociais. Os problemas da identidade, essência, definição, assim como o do dissenso, desconstrução e
etc. são a hacienda familiar da filosofia. Seria, também, a conclusão mais importante do que o prefácio,
principalmente quando já se anunciou sua incompletude e inacabamento – sua necessidade de abrir e problematizar
mais do que de apresentar um objeto ao conhecimento? Este texto tem, portanto, várias entradas, saídas e temas sem
deter-se em uma apenas.

2
Candomblé, os Terreiros de Mina, Terreiros de Encantaria, as diversas Nações, as Linhas
Cruzadas, etc., não designa nem o atendimento singular e individual do feiticeiro à sua clientela
– feitiços oriundos de poderes particulares – nem uma estrutura que amarra todas as diferenças a
partir do mesmo cerne ou função – critério para a presença da estrutura. Nem estruturado nem
desorganizado: nem um nem outro apenas. Talvez possamos dizer que a Macumba é uma
estrutura não centrada – acêntrica – ou, pelo menos, que seu centro-cerne-núcleo é
constantemente deslocado e torcido.

A explicação tradicional à nomeação de certas práticas como Macumba é associá-las à


um tipo de “reco-reco”, um instrumento presente nos mais variados ritos africanos. Luiz Antonio
Simas nos diz que “O instrumento macumba designa uma espécie de reco-reco que se toca com
duas varetas, uma fazendo o grave e outra o agudo. O termo tem provável origem no quimbundo
"mukumbu"; que significa som. Foi relativamente popular na época dos pioneiros do samba e eu
nunca vi um” (SIMAS, 2015). Mas o autor prefere outra explicação:

A expressão macumba vem muito provavelmente do quicongo kumba: feiticeiro (o


prefixo “ma”, no quicongo, forma o plural). Kumba também designa os encantadores
das palavras, poetas.

Macumba seria, então, a terra dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e


palavras que podem fustigar e atazanar a razão intransigente e propor maneiras plurais
de reexistência pela radicalidade do encanto, em meio às doenças geradas pela retidão
castradora do mundo como experiência singular de morte. (SIMAS, 2018, p.7)

Vemos, portanto, como que para Simas a macumba se coloca em oposição “às doenças
geradas pela retidão castradora” através de seu poder de “fustigar e atazanar a razão
intransigente” (a razão que se recusa a ceder ou ser torcida) com encantamentos e com seu
caráter dinâmico e plural de re-inscrição (re-existir). Em um universo re-encantado, onde o
sagrado e o profano se confundem (nada é apenas sagrado, nem apenas profano), como pensar a
consagração, o sacrilégio e a heresia (uma falta de gravidade muito diferente do “impuro” pois
este é também cercado de solenidade)? Ou, ainda, que dúvidas levanta acerca do sacrifício
enquanto intermediário irradiador (já que deuses e humanos estão em comunicação direta)? A
Macumba é então – e esse já é quase seu lugar-comum – uma expressão de magia,
curandeirismo, encantamento, e não como uma religião propriamente dita.

3
Designá-la desta maneira, enquanto “feitiçaria” e não como religião, nos permite,
também, acessar um espaço (um entre-lugar) que põem em contato – simultanemante fazendo
inseparável e tornando indeterminado onde começa ou termina os limites de seu campo e sua
presença – o mundo sobrenatural-sagrado-divino e o mundano. Os Rituais de incorporação, de
fechamento do corpo, a pajelança, cerimônias de invocação de espíritos, magia dos nós, jogos
adivinhatórios de búzios, uso de ervas, sacrifício de animais, etc. dão à macumba um caráter
mágico, acerca dos sistemas religiosos que compõe a macumba podemos dizer que

são consideradas religiões de caráter mágico, fetichista, apresentando, comumente – e a


umbanda é uma exceção –, a presença de rituais sacrificiais, a imolação de
animais em honra aos deuses, sendo esta uma de suas principais características,
juntamente com o fenômeno da possessão, tomada do corpo dos adeptos pelas
divindades, que atuam “na terra” por meio dos médiuns em estado de transe,
inconscientes, os chamados “cavalos de santo”. (HUBERT, 2011, p.83)

A exceção do campo cercado pelo termo “macumba” é, metodologicamente, a Umbanda.


Mas essa separação é apenas ficcional e serve ao propósito de criar alguns contrastes com certas
formas de institucionalização da crença em um livro, um dogma homogeneizante ou uma
religião propriamente organizada – acabada e delimitada em seu próprio e que pode, portanto,
ser repetida em sua identidade e protegida de cair em alteridade ou degenerar-se do que lhe é
original e autêntico. Deste modo, também é meu desejo que a Umbanda seja vista – apesar do
contraste aqui aparente – à partir de uma perturbação de sua identidade pois, um dos temas
tratados obliquamente nesse trabalho é pensar a possibilidade de todo território coberto pelo
nome próprio de um conceito tornar-se terreiro, encruzilhada. De território à terreiro, também é
a Umbanda marcada pelo dissenso, pela perda de significado autêntico.

Certas manifestações culturais-religiosas “macumbeiras” tem o Estado e sociedade como


pivô de sua institucionalização e cristalização. A sociedade, temendo a indeterminação
macumbeira, impõe um recuo à identidade como forma de escapar da marginalização e do
preconceito social. Para que as manifestações de “feitiçaria”, “curanderismo”, “batuques” e etc.,
pudessem ser descriminalizadas, terem preservada a liberdade de culto e serem permitidas de se
expressarem publicamente, tiveram que se constituir como instituições culturais-religiosas, com
uma identidade, pensamento e crenças próprias que não devem ser violadas (MONTEIRO apud.

4
MALANDRINO, 2008, p. 3). Assim, Brígida C. Malandrino escreve que: “Tal processo fez com
que a magia, existente na época do regime escravocrata, não fosse erradicada, mas lida de uma
nova maneira – como religião, o que resultou na produção de novas formas de expressão e de
instituições religiosas.” (MALANDRINO, 2008, p. 3).

A indeterminação e o decentramento macumbeiro problematizam a unidade genérica dos


sacrifícios do estruturalismo, onde todos os sacrifícios seriam manifestações do mesmo
mecanismo e teriam o mesmo núcleo, o mesmo cerne ou o mesmo centro. Não é possível
perseguir a macumba à uma forma pura, sua expressão autêntica e sem contaminações ou
alterações. Por mais que nela estejam presentes o elemento iniciático (dos cultos e mistérios
fechados somente à iniciados) e uma rígida organização hierárquica interna aos terreiros (onde
cada um tem uma função), seu caráter aberto e dinâmico (para não dizer desorganizado) aparece
em diversos momentos e ritos: na ausência de um código moral universal à todos os
participantes, na ausência do rito puro e original, na confusão entre os campos do sagrado e do
profano, no espaçamento de diferenciação que opera com sua identidade (operado pelo encontro,
tanto no hibridismo fagocitante, quanto em decorrência do jogo de poder dentro do
colonialismo), etc. A macumba não busca exatamente exorcizar seus fantasmas mas, antes,
deixa-se ser assombrada por eles.

À Mauss muitas vezes é creditada a influência necessária para dar origem a diversas
correntes antropológicas, como o funcionalismo ou o estruturalismo – e é ao segundo que
daremos mais enfoque. Para além de uma simplista crítica ao modelo estrutural antropológico –
indiferente de se tratar de uma estrutura universal humana ou de seu fracionamento em modelos
de culturas, uma vez que ambos pressupõem uma estrutura estática e ahistórica, que permanece e
organiza o jogo das substituições, permutas e diferenças em uma identidade – o que se deseja
frisar é o entre-lugar macumbeiro – a encruzilhada entre rigidez e alteridade, entre tradição e
diferença. Na macumba, a permanência da estrutura cosmológica é o que permite às gerações,
minorias e pessoas visitarem-na e multiplicar os efeitos de diferença. Não sendo nem
desaparecimento escatológico da coisa pela diferença, nem purificação messiânica da identidade
resguardada, a macumba ocupa a encruzilhada entre o mesmo e a outra.

5
2 - MACUMBA: Hibridismo, sacrilégio, heresia, traição e tradição.

Macumba é hibridismo. Para além de um sincretismo simplista expresso como


assimilação, cooptação ou na mistura de identidades (como elementos em uma economia
finalizada e cristalizada na lápide fixa da identidade), o hibridismo macumbeiro é um movimento
que impede a inscrição autoritária de seu significado – é impossível atravessar todas das
diferenças, inclusive as por vir, e eleger sua forma “própria”. Assim nos fala Bhabha que:

As estratégias de hibridação revelam um movimento de estranhamento na inscrição


“autoritária” e até mesmo autoritarista do signo cultural. No momento em que o preceito
tenta se objetivar como um conhecimento generalizado ou uma prática normalizante e
hegemônica, a estratégia ou o discurso híbrido inaugura um espaço de negociação, onde
o poder é desigual, mas sua articulação não é nem assimilação, nem colaboração. Ela
possibilita o surgimento de um agenciamento “intersticial”, que recusa a representação
binária do antagonismo social. Os agenciamentos híbridos encontram sua voz em uma
dialética que não busca a supremacia ou a soberania cultural. Eles desdobram a cultura
parcial a partir da qual emergem para construir visões de comunidade e versões de
memórias históricas, que dão forma narrativa às posições minoritárias que ocupam: o
fora do dentro; a parte no todo. (BHABHA, 2011: 91).

Hibridismo não é uma soma/adição do nome próprio ocidental com o africano (como
suposto na “identidade” afro-brasileira) tampouco da cosmovisão católica com as africanas
(como se pressupõe na aproximação entre das entidades e dos santos católicos sob a efígie do
colonialismo), ele é a instauração de uma zona de indeterminação, onde os elementos tornam-se
indistintos e são forjados-negociados – afinal, quem ou o que é brasileiro? Não se trata, também,
de simplesmente apagar as marcas (linhas, trajetórias, traços e cicatrizes) que rastreiam a
presença da identidade, enunciando que qualquer coisa é qualquer coisa ou que nada pode ser
medido e definido (que qualquer um pode ser brasileiro, por exemplo), isso seria novamente
apaziguar a situação anulando a dúvida e resolvendo a questão. Só podemos falar da
desconstrução de uma identidade a partir da real dúvida entre o mesmo e o outro, entre o
pertencimento ou não: Um jogo entre os critérios e sua subversão.

Hibridismo é uma posição incerta entre pertencer ou não que, invés de apaziguar as
identidades (indicando onde ocorre sua performance pura e original e onde aparece misturada)
problematiza o interno e o externo, o que é próprio e o que é impróprio, o que e quem pertence

6
ou não, perturbando assim a questão mesma da identidade e do reconhecimento. A seguir
veremos alguns momentos onde o hibridismo assombra a noção de Macumba.

2.1 - Híbrido entre estruturado e desorganizado

Mauss acreditava na união do sistema sacrificial em uma unidade genérica (que reúne
vários ritos sob um único gênero: o sacrifício) (MAUSS, 2018, p. 19). Assim, apesar de sua
multiplicidade e infinita variedade, o autor coloca:

Há continuidade entre as formas do sacrifício. Elas são ao mesmo tempo muito diversas
e muito semelhantes para que seja possível dividi-Ias em grupos muito caracterizados.
Todas têm o mesmo núcleo, e é isso que faz a sua unidade. São os invólucros de um
mesmo mecanismo que vamos agora desmontar e descrever. (MAUSS, 2018, p. 24)

As encruzilhadas entre a identidade estrutural e o devaneio ou errância (ou, porque não,


sua vadiagem, pensando em Exu e nos Zés Pilintras) na Macumba nos conduzem a uma
possibilidade: Não a temos presente ou, ainda, encontramos uma ausência de significado. Nesse
Jogo de repetição e perda entre a presença e a ausência não podemos dizer quando estes se fazem
autenticamente e puramente presentes, pois não detemos sua forma original, os limites de seu
próprio. Um jogo entre o mesmo e o outro onde a macumba carece (ou lhe falta) uma liga entre
sua dispersão e superabundância. É vazia de cerne-centro mas sem recair em uma nostalgia da
identidade perdida – invés disso ela afirma o mundo dinâmico e sem erro. Não é possível,
portanto, centrar sua multiplicidade, diferença e espaçamento (movimento de diferenciação) em
um mito de referência ou mito capital. A natureza do campo – do terreiro – exclui a totalização.

Intotalização que não deve ser atribuída nem à impossibilidade de cobrir todo o campo
empírico (até o conhecimento absoluto no fim da história apaziguando a identidade), nem à
poluição desmedida por complementos que nos leva à perder o essencial. A superabundância de
diferenças não é nem a soma ou adição de identidades, mas antes sua perturbação e, mesmo que
a “macumba” seja extinta ainda assim não se fechará seu conjunto de possibilidades e
significações; nem são ornamentos supérfluos ou complementos que possam ser descartados para
esclarecer o núcleo. Invés disso, ela é um suplemento-suplente que substitui a identidade em sua

7
ausência (passando a valer como o cerne-identidade da coisa) ao mesmo tempo em que “vem a
mais” modificando-a e deslocando seu cerne-centro para outro lugar.

Este campo só permite estas substituições infinitas porque é finito, isto é, porque em vez
de ser um campo inesgotável, como na hipótese clássica, em vez de ser demasiado
grande, lhe falta algo, a saber um centro que detenha e fundamente o jogo das
substituições. [...] Não se pode determinar o centro e esgotar a totalização porque o
signo que substitui o centro, que supre, que ocupa o seu lugar na sua ausência, esse
signo acrescenta-se, vem a mais, como suplemento. (DERRIDA, 1971, p. 245)

A superabundância do significante, o seu caráter suplementar, resulta portanto de uma


finitude, isto é, de uma falta que deve ser suprida. (DERRIDA, IDEM, p. 246)

Desta encruzilhada entre unidade e dispersão já adiantamos algo na introdução, como as


diferenças entre as os agentes que compõem a Macumba, o que já bastaria para atestar tal
deslocamento e deslizamento de seu cerne identitário uma vez que tais modificações não
acréscimos de complementos supérfluos. “Nas bandas de cá baixam santos que a África não
viu.” (SIMAS; RUFINO, 2018, p.9), como é o culto aos caboblos de cantimbó, nos Terreiros de
Catimbó, espíritos que representam os nativos da terra ameríndios e que ensinam a pajelança –
ou até os caboclos de encantaria, que moram em cosmocidade de Jurema. As diferenças entre a
Encantaria e o Candomblé são mais que ornamentais. Outro exemplo é a feijoada de Ogum, pois
o feijão preto é ameríndio (muito conhecido pelos guaranis) ou, principalmente, o milho, cereal
ameríndio que não existia na África e que está presente do axoxô de Oxossi, na pipoca de
Obalauiê, na canjica de Oxalá. Não se pode, portanto, chegar à um mito ou forma original e pura.

Essa dinâmica da fluidez política é sentida quando, por exemplo, há algum dissenso-
discordância e uma conseqüente cisão que acarreta a criação de um novo terreiro com práticas
diferentes pelos dissidentes. Coisa que ocorre, por exemplo, quando um Pai-de-Santo morre e
encena-se uma verdadeira guerra entre os orixás (cada um auxiliado por seus filhos) para eleger
o novo e, aqueles que não concordam com o resultado dos búzios (que espelha o estado do
mundo espiritual) abandonam sua linha para formar outro terreiro. Não se trata de uma nova
estrutura ou uma nova “religião” nascendo, ahistórica e pura, mas sim da suplementação dos
ritos sob o mesmo nome próprio. A mesma coisa, mas completamente diferente, entre o mesmo e
o outro.

8
Outro momento em que a não totalização (totalização seja pela função, seja pela
estrutura) da Macumba pode ser tateada é na ausência de uma moral universal a todos os
adeptos. Diferentemente das religiões monoteístas abraânicas a Macumba não tem um código
explícito de ética mas baseia-se numa constante negociação. Mesmo a obrigação sacrificial é
restrita entre o fiel e seu orixá e não em uma ritualística mecânica prescritiva. Como diz Prandi:

Não é por acaso que a noção de ―obrigação no candomblé está restrita à relação entre o
fiel e o orixá e não a uma pauta de conduta organizada em termos de deveres e direitos
entre os homens. A ideia de ―obrigação não está relacionada, assim, nem à ideia de
regras morais para reger a vida e nem a comportamentos generalizados. (PRANDI,
1991, p. 154)

Do mesmo modo é ausente a noção de “pecado”. Não há referência de uma moral


transcendental – além ou fora deste mundo e indiferente a seus acontecimentos – que deve ser
seguida independente das dinâmicas mutáveis e contextos ou de quem é o agente moral:

não existe pecado no candomblé, porque não existe um código de conduta geral
aplicável a todos os seres humanos, nem mesmo a todos os seguidores da religião dos
orixás. Por isso que Kileuy e Oxaguiã (2009, s.p.) com tranquilidade afirmam que a
função primordial do candomblé é cultuar as divindades (orixás, inquices ou voduns)
Tal raciocínio encontra-se justificado no candomblé, pois o orixá não existe para regular
o comportamento do ser humano, muito menos entender o mundo como algo ruim, ao
contrário: não há nada além desse mundo, não há salvação, agradar o orixá é poder pedir
proteção no mundo, mas jamais para fora dele, aliás o mundo é lugar de felicidade
(PRANDI, 1991, p. 160).

2.2 - Híbrido entre sagrado e profano

A Macumba é híbrida entre o sagrado e o profano, coisa muito diferente da mescla do


puro e do impuro como nos colocado por Mauss. Para o autor “o puro e o impuro não são
contrários que se excluem, mas dois aspectos da realidade religiosa.” (MAUSS, 2018, p.64).
Deste modo o sacrifício não serve somente para aumentar o caráter religioso, curar, purificar,
comungar ou aproximar dos deuses (perfeitos e benevolentes), ele serve do mesmo modo para

9
dessacralizar, expulsando ou eliminando o caráter religioso das coisas e pessoas e, podendo ou
não, causar doenças infortúnios ou causar o mal afastando o “bem”. Assim Mauss nos coloca:

[...] acabamos de ver que dois estados, um de pureza perfeita, outro de impureza,
podiam dar ensejo a um mesmo procedimento sacrificial, no qual os elementos não
apenas são idênticos como se dispõem na mesma ordem e se orientam no mesmo
sentido. (MAUSS, 2018, p.63)

[...] o puro e o impuro não são contrários que se excluem, mas dois aspectos da
realidade religiosa. As forças religiosas [...] podem ser exercidas tanto para o bem
quanto para o mal, o que depende das circunstâncias, dos ritos empregados etc. Assim
se explica como o mesmo mecanismo sacrificial pode satisfazer necessidades religiosas
extremamente diferentes. [...] É apto ao bem e ao mal; a vítima representa tanto a morte
quanto a vida, a doença e a saúde, o pecado e o mérito, a falsidade e a verdade. Ela é o
meio de concentração do religioso:exprime-o, encarna-o, transporta-o. É agindo sobre
ela que se age sobre ele, que se dirige o religioso, seja atraindo-o e absorvendo-o, seja
expulsando-o e eliminando-o. (MAUSS, 2018, p. 65)

Ao agrupar essa variedade de sacrifícios em uma unidade sacrificial Mauss consegue


juntar o puro e o impuro mas permanesce um abismo entre o mundano-profano e o sagrado-
religioso. Para agir no sagrado é necessário agir na vítima – o sacrifício e a vítima são,
doravante, as pontes ou os intermediários entre os mundos.

Vê-se qual é o traço distintivo da consagração no sacrifício: que a coisa consagrada


sirva de intermediário entre o sacrificante, ou o objeto que deve receber os efeitos úteis
do sacrifício, e a divindade à qual o sacrifício é endereçado. O homem e o deus não
estão em contato imediato. (MAUSS, 2018, p.17)

Ora, na macumba, exemplarmente nos Terreiros de Encantaria, os deuses, espíritos e


entidades participam ativamente do quotidiano, e vice versa com os humanos constantemente
interferindo na arquitetura da cosmogonia divina. Tanto fala-se diretamente com o deus, que em
muitos casos vem pessoalmente receber o sacrifício, quanto qualquer um pode “encantar-se” e
ascender a mestre de jurema ou “caboclo encantado”, não se tratando de alguém que morreu e,
portanto, separou-se completamente de sua função, corpo e papel mundano – passando a exercer
um papel nas dinâmicas divinas. O “Encantado” permanesce “vivo”, no mundo dos vivos,
conectado a sua dinâmica e interagindo com os vivos.

10
ENCANTARIA: Conjunto de ritos fundamentados na crença em caboclos encantados e
encantadas. O encantado não é o espírito de um ser humano que morreu. Ele é o ser
arrebatado, que superou a morte e a vida como conceitos biológicos e passou a viver
transformado em árvore, pedra, acidente geográfico, planta, vento, areia, flor, pássaro.
Sem deixar de ser ele mesmo e aquilo em que se transformou, o encantado interage
ritualísticamente com os viventes através do transe. (SIMAS, 2016b)

A Encantaria não passou pelo processo de desencantamento do mundo onde recorre-se à


uma explicação natural a partir da “natureza de Deus” ou da “natureza da natureza” (donde,
indiferentemente, tudo desenrola-se naturalmente a partir da essência das coisas). A Encantaria,
habitando o sobrenatural, não tem uma causa ou explicação natural para os eventos – as coisas
tem explicação sobrenatural. Há nela, também, uma zona de indeterminação híbrida entre o
“outro mundo” e o mundo dos vivos, não há exatamente um mundo estático onde habitam as
divindades, deste modo, o sobrenatural e o natural, o profano e o religioso confundem-se.
Doravante Alhandra é, simultaneamente, praia no sul da Paraíba e cidade encantada de Jurema;
pedras, plantas, ventos, pássaros e etc. não são nem coisas nem entidades apenas, nem um nem o
outro puramente3. As coisas mundanas são assim, portanto, também sagradas, mesmo sem ritos
de consagração – e vice versa.

A rainha da ciência, a rainha da Tambaba, ela vira uma pedra. A gente vê, o pessoal vê
uma pedra, mas não é pedra é uma rainha. (VÓ BIU apud. RUFINO, no prelo)

Tambaba é a cidade de todas as ciências! É uma pedra encantada. E nessa pedra só entra
na cidade quem tem parte nela. (VÓ BIU apud. RUFINO, no prelo)

Podemos observar esse movimento também a partir da cultura alimentar dentro do


candomblé, por exemplo, onde tanto os alimentos profanos invadiram o mundo religioso – como
o milho e o feijão – quanto as “comidas de santo” tornaram-se parte do quotidiano cultural:

3
ALHANDRA: Cidade no litoral sul da Paraíba; é a representação dos reinos do Juremá na terra. Reza a tradição
que em Alhandra os poderes dos Mestres da Jurema teriam sido anunciados.
JUREMÁ: Espaço invisível em que habitam os mestres da jurema e seus subordinados. Há, dependendo da linha do
Catimbó, quem trabalhe com cinco ou sete reinos, formados por aldeias ou cidades e habitados pelos Mestres. Para a
linha de cinco, os reinos são os do Vajucá, Urubá, Josafá, Juremal e Tenemé (ou Tenema). Para a linha de sete,
temos os reinos de Vajucá, Juremal, Urubá, Tigre, Canindé, Josafá e Fundo do Mar.

11
O ato de dividir alimentos com as divindades está presente em várias culturas e é parte
constitutiva de importantes religiões. Ele manifesta-se no Brasil com especial força nos
candomblés. Tal prática, um dos fundamentos litúrgicos mais significativos do culto aos
orixás, há muito ultrapassou os limites dos terreiros rituais e rompeu as fronteiras entre
o sagrado e o profano – que para essas religiosidades não são dimensões antagônicas. A
comida de santo chegou às mesas com força suficiente para marcar a nossa culinária
cotidiana e temperar de sabores a cozinha brasileira.
[...]
O jogo é de mão dupla: receitas de comidas sagradas saíram das mesas rituais para as
mesas de nossas casas e restaurantes. Receitas saídas do nosso cotidiano, por sua vez,
chegaram, dotadas de novos sentidos e significados, às cozinhas dos terreiros. (SIMAS,
2016)

Por fim, resta dizer que: por mais que tudo adquira um certo tipo de caráter religioso ou
espiritual, as ofertas, sacrifícios e imolações são endereçadas às entidades e não sacrifícios da
entidade ou o rito de alimentar-se do deus (do corpo do deus). Por mais que a entidade esteja
presente e encantada, no sacrifício do bode não é o deus encarnado quem é morto, nem sua carne
consumida para, ao alimentar-se da carne do deus, tornar o agente mais sagrado. Isso afasta um
pouco a Macumba dos sacrifícios totêmicos, fetichistas e animistas donde ou tudo tem espírito
ou o fetiche-totem é uma entidade ou o deus.

3 – Considerações finais: Ebó sem cerimônia

Esses foram apenas alguns casos de hibridismo duma longa lista de exemplos que
exigiria muito mais tempo para, por fim, não serem nunca esgotados. Como escrito na
apresentação a Macumba não será totalizada e esse é um projeto sem conclusão. Algumas
considerações finais, porém, podem ainda serem importantes. Ao final do texto espero que a
noção de hibridismo tenha sido um elemento chave frente as interpretações simplistas do
sincretismo religioso afro-brasileiro como mistura do catolicismo com religiões africanas ou
como – sua pior versão – um “mito do encontro das três raças”. Invés de invisibilizar ou calar
conflitos raciais, culturais, de gênero, etc. através do apaziguamento identitário na figura da raça
miscigenada, o hibridismo chama atenção para as minorias e para o dissenso que impossibilitam,
perturbando inconclusivamente, o fechamento da identidade.

12
Em Mauss, um detalhe marcante (para mim) é a diferença entre oferendas e o sacrifício.
“Percebe-se que a diferença entre os dois tipos de operações se deve à sua desigual gravidade e à
sua desigual eficácia. No caso do sacrifício as energias religiosas postas em jogo são mais fortes
e, assim, devastadoras.” (MAUSS, 2018, p. 18). A distinção entre os dois é o reconhecimento da
solenidade, da seriedade, da gravidade de que se movimentam forças mais poderosas, e que
acarretam conseqüências também mais poderosas. “Assim, num sacrifício suficientemente
solene, no momento em que grãos são triturados suplica-se que não se vinguem do sacrificante
pelo mal que lhes é feito. Quando bolos são postos sobre cacos de louça para assar,suplica-se que
não se despedacem; quando são cortados, implora-se que não firam o sacrificante e o
ssacerdotes.” (MAUSS, 2018, p. 19).

Essa divisão é capital porque nos ajuda a pensar um possível diagnóstico da


contemporaneidade donde, (1) porque nos recusarmos a fazer sacrifícios – “matar” ou abrir mão
de práticas tóxicas, como na expiação e purificação, ou de fazer votos e dos mais diversos
sacrifícios – (2) nós perdemos o sentido de sagrado e de consagração sacrificial (a mais forte em
gravidade), nenhuma questão alcança mais esse grau de tratamento sonele e serio, (3) disso
decorre a completa indiferença à vida humana, ao sofrimento, ao etnocídio, etc. Hoje em dia
nada mais é consagrado, tudo teve seu caráter sagrado profanado pela secularização liberal
biopolítica e pós-ideológica.

Hoje em dia se faz ebó por telefone. Sacrifícios, como se diz cordialmente, “sem
cerimônia”. Como se isso não bastasse, formas híbridas irrompem dentro – e fora, no entre-lugar
subversivo de ruptura e continuidade – das mais diferentes culturas, como formas de
tecnoxamanismo ou as raves Sufis da juventude islâmica no Paquistão4. Seriam essas formas
marginalizadas e periféricas dos ritos sintomas da degeneração, do afastamento do sentido da
coisa, sintomas de que a abandonamos, de sua morte? Há realmente, como discutido em aula, um
afastamento ou recusa do sacrifício, ou o sacrifício é um espectro, impossível de matar, nem
presente nem ausente e sempre retornando para nos assombrar de uma forma ou outra? Será
possível, talvez, que as formas de sacrifício já tenham sido deslocadas-descentralizadas de tal
maneira e à partir de tais contextos que seu núcleo e o critério de sua presença não seja mais a

4
KHAN, Ali. Sufis, Drugs and Rock and Roll. Revista PETRIe : 2015 in: http://www.petrieinventory.com/sufis-
drugs-and-rock-and-roll-1

13
solenidade sacral? Mais além: será que ainda é o nome próprio do sagrado algo com o qual não
se brinca? Se assim fosse não conseguimos medir sua presença à partir dos critérios tradicionais
que rastreiam sua presença (seriam formas imperceptíveis de se fazerem presentes no espaço
pela arquitetura do pensamento tradicional) mas, mesmo assim, ele ainda está lá, presente nos
terreiros, nas raves ou em mil outros contextos só invisíveis para nós.

O Ebó é um caso exemplar para se pensar imbricadamente a secularização (perda do


sentido de sagrado) e a questão do sacrifício. O Ebó de Exu, também chamado Ipadê é um ato
propiciatório aos ritos (para que Exu abra os caminhos e não atrapalhe o andamento da
cerimônia) e não o momento de maior gravidade ou sacralidade, onde movimentam-se as forças
mais poderosas e solenes do ritual. Os materiais do Ebó, antes cercados de toda pompa, agora
podem ser adquiridos mercadologicamente em locais como o “mercadão de Madureira” ao lado
de artigos para a casa e bonecos-brinquedos chineses (não os originais ou autênticos, mas os
fake) – profanando sua sacralidade com dinheiro e lucro invés de objetivos morais.

A noção de hibridismo a que recorremos é aquela de Homi Bhabha, para o qual


“Hibridismo é heresia.” (BHABHA, 1998, p. 309). A blasfêmia ou heresia do hibridismo não é
nem macular o sagrado, o que poderíamos considerar o campo do impuro e não do
herético/blasfêmico; nem um simples rompimento da tradição; nem uma representação deturpada
(uma deturpação) do sagrado pelo secular. Ela coloca a autoridade das representações autênticas
(daquelas avaliadas, autorizadas e sancionadas legítimas) em cheque, pois a blasfêmia é o “ato
transgressor da tradução cultural” (BHABHA, 1998, p. 310). Não apenas o ato de traduzir
difetentemente a mesma tradição, mas de fazê-lo transgressoramente, denunciando a
artificialidade das representações dominantes de maneira que qualquer pretensão à uma
identidade autêntica ou pura seja vista como imposição autoritária.

A blasfêmia vai alem do rompimento da tradição e substitui sua pretensão a uma pureza
de origens por uma poética de reposicionamento e reinscrição. [...] é um momento em
que o assunto ou o conteúdo de uma tradição cultural está sendo dominado, ou alienado,
no ato da tradução. (BHABHA,1998, p.309)

Traduzidas ambiguamente enquanto sagradas e profanas (entre sagrada e profana; nem


sagrada, nem profana; apenas) ocorre uma dispersão do significado cultural-religioso da

14
consagração. As coisas, marcadas pelo dissenso, são simultenamente sagradas para um e profana
outro – não somente como culturas em conflito, mas internamente à identidade perdendo, assim,
a certeza do que lhe é próprio.

O exemplo de onde Bhabha tira suas conclusões é o livro Versos Satânicos (1988) de
Salman Rushdie – livro pelo qual o autor indiano recebeu do aiatolá Khomeini do Irã uma
sentença de morte (fatwa ordenando sua morte) junto com todos os envolvidos, fato que
conduziu ao assassinato de seu tradutor japonês, Hitoshi Igarashi, em 1991. Uma das possíveis
leituras do livro é como uma tradução do Corão para a orientação existencial dos migrantes pós-
coloniais – o deus do Corão torna-se o deus dos migrantes. A acusação ao livro não foi porque
ele era uma interpretação errada do Corão, nem pelos “pecados” escritos na obra (como o amor
homoafetivo e outros) – mas sim “na ofensa da ‘deturpação de nomes’ do Islã” (BHABHA,
1998, p. 309). O “verdadeiro crime” de Rushdie, pelo qual recebeu sua fatwa de morte foi
utilizar nomes sagrados em contextos e espaços (ou para fins) profanos (como em romances de
realismo mágico: o próprio Versos Satânicos), seu crime foi o de não reconhecer que o sagrado
não pode ser usado levianamente.

Como profanar algo nesse paradigma de dispersão do significado de sacralidade? Quando


a traição, o dinamismo, a blasfêmia, a infidelidade e a heresia são simultâneos à memória, à atos
de resistência política, à tradições e ao respeito à culturas e visões marginais das culturas? Como
compreender quando a juventude afronta a tradição recusando a solenidade, a seriedade e a
gravidade dos ritos? Pior, se para a juventude talvez seja o cerne da sacralidade a
insubordinação? As noções de tradicional e moderno nos entre-lugares, como nos escreve
Bhabha, estão para além de uma simples deturpação da sacralidade pela secularização, pois a
práticas híbridas chegam a “confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as
fronteiras costumeiras entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como questionar as
expectativas normativas de desenvolvimento e progresso.” (BHABHA, 1994, p.21), introduzindo
outras temporalidades à invenção da tradição, afastando qualquer acesso imediato a identidade
original (BHABHA, 1998, p. 21) criando um hiáto-hífem entre pedagogia e performance. Não
seria o crime de toda juventude não reconhecer a sacralidade dos ídolos dos mais velhos?

15
Exu leva aos homens o oráculo de Ifá gostem, alguma coisa que os satisfaça. Eu conheço algo
que pode fazer isso. É uma grande coisa que é feita com
Em épocas remotas os deuses passaram fome. dezesseis caroços de dendê. Arranja os cocos da
palmeira e entenda seu significado. Assim poderás
Às vezes, por longos períodos, eles não recebiam reconquistar os homens".
bastante comida de seus filhos que viviam na Terra.
Exu foi ao local onde havia palmeiras
Os deuses cada vez mais se indispunham uns com os
outros e lutavam entre si guerras assombrosas. e conseguiu ganhar dos macacos dezesseis cocos.

Os descendentes dos deuses não pensavam mais neles e Exu pensou e pensou, mas não atinava
os deuses se perguntavam o que poderiam fazer.
no que fazer com eles.
Como ser novamente alimentados pelos homens?
Os macacos então lhe disseram:
Os homens não faziam mais oferendas e os deuses
tinham fome. "Exu, não sabes o que fazer com os dezesseis cocos de
palmeira?"
Sem a proteção dos deuses, a desgraça tinha se abatido
sobre a Terra e os homens viviam doentes, pobres, “Vai andando pelo mundo e em cada lugar pergunta o
infelizes. que significam esses cocos de palmeira. Deves ir a
dezesseis lugares para saber o que significam esses
Um dia Exu pegou a estrada e foi em busca de solução. cocos de palmeira. Em cada um desses lugares
recolherás dezesseis odus. Recolherás dezesseis
Exu foi até Iemanjá em busca de algo que pudesse histórias, dezesseis oráculos. Cada história tem a sua
recuperar a boa vontade dos homens. sabedoria, conselhos que podem ajudar os homens. Vai
juntando os odus e ao final de um ano terás aprendido o
Iemanjá lhe disse: suficiente. Aprenderás dezesseis vezes dezesseis odus.
Então volta para onde vivem os deuses. Ensina aos
"Nada conseguirás. Xapanã já tentou afligir os homens homens o que terás aprendido e os homens irão cuidar
com doenças, mas eles não vieram lhe oferecer de Exu de novo".
sacrifícios".
Exu fez o que lhe foi dito e retornou ao Orum, o Céu
Iemanjá disse: dos orixás.

"Exu matará todos os homens, mas eles não lhe darão o Exu mostrou aos deuses os odus que havia aprendido e
que comer. Xangô já lançou muitos raios e já matou os deuses disseram:
muitos homens, mas eles nem se preocupam com ele.
Então é melhor que procures solução noutra direção. Os "Isso é muito bom".
homens não têm medo de morrer. Em vez de ameaçá-
los com a morte, mostra a eles alguma coisa que seja Os deuses, então, ensinaram o novo saber aos seus
tão boa que eles sintam vontade de tê-la. E que, para descendentes, os homens.
tanto, desejem continuar vivos".
Os homens então puderam saber todos os dias
Exu retomou o seu caminho e foi procurar Orungã.
os desígnios dos deuses e os acontecimentos do porvir.
Orungã lhe disse:
Quando jogavam os dezesseis cocos de dendê e
"Eu sei por que vieste. Os dezesseis deuses têm fome. É interpretavam o odu que eles indicavam, sabiam da
preciso dar aos homens alguma coisa de que eles grande quantidade de mal que havia no futuro.

1
Eles aprenderam a fazer sacrifícios aos orixás para Foi assim que Exu trouxe aos homens o Ifá.
afastar os males que os ameaçavam.

Eles recomeçaram a sacrificar animais e a cozinhar suas


carnes para os deuses. (Exu leva aos homens o oráculo de Ifá, apud. PRANDI,
2001, p. 78)
Os orixás estavam satisfeitos e felizes.

Bibliografia:

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Ed. UFMG, 1998.

DERRIDA, Jacques. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. A escritura
e a diferença, v. 2, p. 229-249, 1971.

HUBERT, Stefan. Manjar dos deuses: as oferendas nas religiões afro-brasileiras. Primeiros
Estudos, São Paulo, n. 1, p. 81-104, 2011.

KHAN, Ali. Sufis, Drugs and Rock and Roll. Revista PETRIe: 2015 in:
http://www.petrieinventory.com/sufis-drugs-and-rock-and-roll-1

MALANDRINO, Brígida Carla. Macumba e umbanda: aproximações. Simpósio da Associação


Brasileira da História das Religiões, v. 10, 2008.

MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. Ubu Editora LTDA-ME, 2018.

PRANDI, J. Reginaldo. Mitologia dos orixás. Editora Companhia das Letras, 2001.

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas.
Mórula, 2018.

______,____________. Sabores Sagrados. Disponível em:


http://hisbrasileiras.blogspot.com/2015/04/sabores-sagrados.html 27 de fevereiro de 2016a.

______,____________. Macumba é rito e exu é matemático. Disponível em:


http://hisbrasileiras.blogspot.com/2015/07/macumba.html 21 de julho de 2015.

______,____________. Notas básicas para um fichário dos encantos. Disponível em:


http://hisbrasileiras.blogspot.com/2016/06/notas-basicas-para-um-fichario-dos.html 11 de junho
de 2016b.

RUFINO, Luiz. A ciência encantada. Disponível em:


https://www.academia.edu/20079012/A_Ci%C3%AAncia_Encantada no prelo.

Anda mungkin juga menyukai