O MAL-ESTAR NA ESCOLA
José Outeiral e Cleon Cerezer
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SUMÁRIO
1. A ADOLESCÊNCIA, A CRIATIVIDADE, OS LIMITES E A ESCOLA
José Outeiral
2. O TRABALHO COM GRUPOS NA ESCOLA
José Outeiral
3. VIOLÊNCIA NO CORPO E NA MENTE: CONSEQÜÊNCIAS DA REALIDADE
BRASILEIRA
José Outeiral
4. TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E PATOLOGIA TRANSICIONAL
José Outeiral
5. AGRESSIVIDADE, TRANSGRESSÃO E LIMITES NO DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
José Outeiral
Cleon Cerezer
6. A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO PATERNA NO DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
José Outeiral
Cleon Cerezer
7. A ESCUTA DO MAL-ESTAR NA SALA DE AULA: UM ENSAIO SOBRE
PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE
Cleon Cerezer
8. ADOLESCÊNCIA: MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE
José Outeiral
2
CAPÍTULO 1
MESFISTÓFELES
Pois acertaste vindo até mim.
ESTUDANTE
Com franqueza, estivesse eu longe já:
Estas paredes, aulas, salas,
Não sei como hei de suportá-las.
É tão restrito e angustiante o espaço,
De verde não se vê pedaço,
E ficam-me, nas aulas, bancos,
Pensar, ouvido e vista estancados.
MEFISTÓFELES
Antes do mais, dizei-me logo
A faculdade que elegeste.
ESTUDANTE
Quero ficar muito erudito,
Perceber tudo o que há na terra,
E tudo o que no céu se encerra,
Natura e ciência, ao infinito
*
Colaboraram na elaboração deste capítulo a professora Paulina Silbert e a psicóloga Joyce Permigotti.
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“colocar limites”. Esta situação “kafkiana” esclareceu-se com a eclosão, de uma greve dos
professores em que veio a “tona” a profunda irritação dos adultos com a instituição
mantenedora. Este fato tornou clara e evidente que a dificuldade dos professores em colocar
“limites” na agressividade dos adolescentes com a escola era, inconscientemente, porque os
adolescentes “executavam” o que eles, adultos, gostariam de fazer: esta era a raiz da
dificuldade em colocar “limites”.
Situações idênticas poderão ocorrer nas famílias cujos adolescentes têm problemas
de conduta e falta de “limites”. Esta falta de “limites” impede o adolescente de exercitar sua
capacidade de pensar, de ser criativo e espontâneo.
Com este exemplo, quero enfatizar que a falta de “limites” na adolescência é
conseqüência, em maior ou menor grau, de dificuldades dos adultos, pois nenhuma criança
nasce com a noção de limites. A noção de “limites” se desenvolve num longo processo de
identificação da criança e do adolescente com seus pais, inicialmente, e, depois, com os
adultos que a sociedade disponibiliza como professores, artistas, desportistas, políticos, etc.
O segundo exemplo nos reporta a uma situação em que um grupo de crianças, de
dez a doze anos, mostrava-se agitado, com agressões e baixo rendimento escolar. A
“bagunça” estendia-se a todos os momentos em que estavam na escola. Um professor
observou que brincavam aos empurrões e lhe pareceu que, assim, buscavam um contato
físico entre si. Esta observação cuidadosa e oportuna fez com que o Serviço de Orientação
Educacional (SOE) reunisse o grupo para “conversar” sobre o que estava acontecendo. Os
assuntos trazidos evidenciaram que a puberdade estava produzindo toda a “turbulência” e
que mais que “agitados” estavam, realmente, “excitados” davam “puxões” e “empurrões”,
faziam freqüentes “reuniões dançantes” e chamavam de “galinha” uma menina que,
precocemente, apresentava os primeiros sinais da puberdade e que com suas “características
sexuais secundárias” provocava ansiedade na turma, que tentava então “queimá-la” numa
versão “púbere” da Inquisição. As reuniões do SOE ofereceram um “limite”, um espaço e
um tempo protegido, que propiciou substituir a agitação pela verbalização dos conflitos.
Certamente puni-los com “suspensões” e medidas disciplinares não seria um “limite”
adequado e sim uma “repressão” no mau sentido que, por vezes, tem esta palavra. Um
professor sensível e arguto ajudou os púberes em sua difícil “estrada” rumo ao
desenvolvimento adolescente.
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de uma forma sublimada, através de um grande interesse em aprender, ou, ao contrário, por
um desinteresse pela matéria. Algumas dificuldades escolares na adolescência se
assemelham a situações desse tipo. É interessante lembrar também, que trabalhar com
adolescentes, como já vimos, desperta o adolescente que existe nos adultos, e isto, nos
professores, poderá desenvolver distintos sentimentos por um determinado adolescente que
lhe evoque as situações de vida de sua própria adolescência.
O que confere à escola importância vital no processo de desenvolvimento do adolescente é
o fato dela ter a características de ser uma simulação da vida, na qual existem regras a
serem seguidas, mas que se pode transgredi-las sem sofrer as conseqüências, impostas pela
sociedade, e ser esta uma oportunidade de aprender com a transgressão.
Deve-se levar em conta, também, que a relação do aluno com a escola é afetada pela
significação que os pais dão a ela, aos estudos de seu filho e às relações dele com os demais
alunos. Pais que tenham sido submetidos a uma escolarização muito rígida podem,
inconscientemente, buscar uma escola permissiva que “compense” a sua vivência escolar
de sofrimento. Podem, por outro lado, fazer com que seus filhos sofram tanto quanto eles e
“passem” por tal situação para poderem se tornar “tão educados” quanto eles.
O desejo de saber e obter prazer pelo saber certamente está mediatizado em primeiro lugar
pelos pais e, depois, mais tarde, pelos professores e pela escola. Um pode compensar o
outro, ou até anular seus efeitos.
A escola não oportuniza somente a relação com o saber e, como uma atividade
eminentemente grupal, tem também funções de socialização. Em busca de sua identidade, o
adolescente encontra na micro-sociedade da escola um sistema de forças que atuam sobre
ele, onde, entre outras coisas, reedita seu ciúme fraterno, compete, divide, rivaliza, oprime e
é oprimido, ou seja, reproduz o sistema social. É por esta razão que a escola, muitas vezes,
pode detectar dificuldades no processo de desenvolvimento do aluno, que aparece por
inteiro na busca de si mesmo, e seu olhar sobre ele é, em geral, menos comprometido
emocionalmente do que acontece com os pais.
Podemos dizer, “brincando”, que, se ser adolescente é “difícil”, ser um adulto em contato
com ele é duplamente “difícil”: primeiro porque temos de lidar com o adolescente “de
fora”, externo, real, e depois com o adolescente “de dentro”. Novamente, enfatizamos a
importância de que o adulto que está em contato com o adolescente (pais, professores, etc.)
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tenha uma “visão binocular”, de dentro e de fora, do adolescente real e das “memórias
adolescentes”, carregadas ainda de impulsos, fantasias, desejos, emoções, etc., não como
algo indesejável, mas como demonstração de vida.
É muito importante também, que exista (se podemos chamar desta forma...) uma “relação
de confiança” entre a família e a escola escolhida, evidentemente, pelos pais para educar
seus filhos, isto é, para que os “auxilie” a educar seus filhos. Vemos, com freqüência, os
pais criticarem a filosofia pedagógica da escola escolhida na presença dos filhos, de uma
forma que predispõe o adolescente contra a escola. Evidentemente, críticas existirão de
parte a parte, mas elas deverão ser tratadas nos “canais de comunicação” adequados
existentes (ou serem criados) ligando o binômio família-escola.
É extremamente necessário que se evitem dissociações (tão freqüentes...) em que os pais
criticam a escola (projetando na instituição todos os aspectos negativos do processo ensino-
aprendizagem e, por vezes, da conduta dos filhos) e que a escola, por sua vez, faça o
mesmo (projetando na família todas as incompetências, falta de colocação de limites, falta
de participação, etc.) . A criação de uma “comunidade realmente operante” poderá tornar a
relação família-escola mais integrada e com menos “distorção e ruído” na comunicação.
Convenhamos que os adolescentes são, em algumas situações, hábeis em promover
dissociações entre, por exemplo, pai e mãe, entre família e escola, etc.
A família e a escola deverão compreender que, eventualmente, é melhor uma “troca” de
escola do que submeter o adolescente a um ambiente que não lhe é adequado e, para isto, é
necessário, às vezes, experimentar mais de uma instituição. Não basta que a escola tenha
sido aquela que o pai e a mãe cursaram, ou que os pais “imaginaram” que tenha “a melhor
proposta pedagógica”. É necessário encontrar uma instituição escolar que se aproxime do
adolescente (e sua família). Esta escola não precisará, inclusive, reproduzir os “valores
familiares”, propiciando, desta forma, outros modelos identificatórios para o adolescente,
que assim, terá mais elementos para construir sua “identidade”. É imprescindível,
entretanto, que a família e a escola saibam que estão “compartindo” esta experiência.
Para terminar este capítulo, quero fazer alguns comentários sobre a questão da vocação e da
escolha profissional.
Vocação diz respeito a características e habilidades inatas que apresentamos desde muito
cedo e tem relação com aspectos (impulsos, fantasias, etc.) de nossa personalidade.
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A escolha profissional, entretanto, diz respeito a uma situação que envolve, além da própria
pessoa, a circunstância social, como, por exemplo, o mercado de trabalho. Assim, poderá
ocorrer, muitas vezes, que um adolescente que revelava uma “certa vocação” terá que fazer
uma escolha profissional, mais ou menos, distante de sua tendência. Este momento, na
verdade um longo e penoso processo, é muito importante na vida dos indivíduos, e se
constitui em uma das tarefas principais das etapas finais da adolescência. Em um país como
o Brasil, onde o mercado de trabalho é restrito e/ou tem uma remuneração inadequada, mais
uma vez, o jovem tem de lidar com uma realidade, com freqüência, adversa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.
FREUD, Anna. Introduccion al psicanalisis para educadores. 4 ed., Buenos Aires:
Paidós. Biblioteca do Educador Contemporâneo. 1961.
FREUD, A . Introduccion al Psicanalisis para educadores, 5. Ed., Argentina: Editora Paidós, 1966.
KUPFER, M. C. Freud e a educação, o mestre do impossível. São Paulo: Ed. Scipione, 1989
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CAPITULO 2
Mas qual a escola? Essa é uma pergunta que os pais se fazem com freqüência e que
é extremamente necessária, pois uma criança ou um adolescente (e, inclusive seus pais)
poderá ou não se adaptar em um determinado ambiente escolar. As escolas são instituições
com “culturas” próprias e singulares (Cultura de Grupo; Bion, 1963) e que terão
significados diferentes para diferentes alunos. A escola, a sala de aula, é um lugar
“imaginário”, “mais além” do espaço real de cadeiras, classes e salas. Ela é o que o aluno
percebe a partir de sua história, seus desejos e seus medos. Na escola acontece um interjogo
de forças inconscientes que se cruzam, opõem-se, conflitam-se ou se reforçam, através de
situações manifestas, claras e evidentes, ou de um sutil operar oculto, latente, e, nem por
isso, menos importante. Cria-se, então, na escola, uma dinâmica grupal que precisa ser
compreendida, e nesse ambiente, a presença de profissionais com treinamento para o
trabalho com grupos é muito importante.
Algumas escolas têm seu processo educacional mais dirigido, com limites mais
estreitos, ao contrário de outras, mais abertas e mais liberais. Um adolescente, por exemplo,
com dificuldades de organização poderá se beneficiar (ou não) de um ambiente escolar
mais estruturado e de limites mais precisos, sendo necessário avaliar, em cada caso, a
situação, buscando conhecer como funciona determinada escola. As simplificações do tipo
“meu filho é tímido, portanto, precisa de uma escola mais liberal” ou “como ele não tem
limites, uma escola mais rígida irá ajudá-lo” não são sempre verdadeiras. O “óbvio
ululante” , no sentido que usa Nelson Rodrigues – nosso cronista do dia-a-dia – de que cada
criança e adolescente e cada escola têm peculiaridades próprias é fundamental. As escolas,
por seu lado, têm o que chamamos de um “currículo manifesto” e um “currículo oculto”, ou
seja, aquilo que manifestamente é dito e/ou escrito e a verdadeira prática no cotidiano da
sala de aula. É importante, também, que pais e professores saibam, dentro de uma visão
de dinâmica de grupo, que estes últimos serão os “recipientes” de impulsos, ansiedades,
fantasias, emoções, paixões e pensamentos, mais ou menos conscientes, que crianças e
adolescentes têm em relação a seus próprios pais. Amor e agressividade originalmente
dirigidos aos pais serão “transferidos”, (ou projetados) para os professores. Poderá, por
exemplo, acontecer que um adolescente irritado com seus pais tenha com estes uma atitude
aparentemente “adequada” extravasando com um professor toda a “ bronca” com pai e a
mãe. O professor ficará surpreso com a atitude do aluno, mas sua experiência e intuição lhe
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farão perceber que “algo se passa...” de diferente. Poderá acontecer também,, tomando o
exemplo anterior, que o adolescente não demonstre explicitamente a irritação dirigida aos
pais com o professor e que a conduta negativa venha na forma de um baixo rendimento
escolar. E não serão apenas os sentimentos agressivos que serão “transferidos desse modo”,
os amorosos também. Os professores são muitas vezes os primeiros objetos – após os pais –
de “amor edípico”, ocorrendo uma “transferência” amorosa. Por exemplo, um menino pode
transferir o amor que sente pela mãe para uma determinada professora, por esta lembrar-
lhe, consciente ou inconscientemente a figura materna. Esse amor tem um aspecto
incestuoso, produzindo ansiedade e culpa, o que poderá se manifestar de uma forma
sublimada, através de um grande interesse em aprender ou, ao contrário, por um
desinteresse pela matéria. Algumas dificuldades escolares se organizam em torno de
problemas desse tipo. É interessante também lembrar que trabalhar com crianças e
adolescentes desperta aspectos infantis e adolescentes nos adultos, e isto, nos professores,
poderá desenvolver distintos sentimentos por uma determinada criança ou adolescente que
lhe evoque sua próprias situações de vida nestas etapas do desenvolvimento.
A escola não oportuniza somente a relação com o saber e, como uma atividade
eminentemente grupal, também tem funções de sociabilização. Em busca de sua identidade
o jovem encontra na micro-sociedade que é a escola um sistema de forças que atuam sobre
ele: entre outras coisas, reedita seu ciúme fraterno, compete, divide, ou seja, exercita o
viver em grupo.
Como compreensão intersistêmica me refiro a um triângulo que tem, como é evidente , uma
interação muito dinâmica entre seus vértices: a família, a escola e a sociedade. Uma visão
que privilegie este enfoque é essencial para que o trabalho com um sistema educacional
seja efetivo. Uma outra visão, digamos espacial, para transmitir a minha idéia, é considerar
a escola como no meio do caminho entre a família e a sociedade: quase um “espaço” de
transicionalidade ( Winnicott, 1975): não é mais o conhecido e protegido “espaço familiar”
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e tampouco o tão temido e desejado “mundo adulto”. Assim, a escola é o locus onde a
criança e adolescente exercitam seus passos em direção a independência, à individualização
e à separação do seu grupo original. Pensando dessa forma, é necessário considerar que a
escola sofre importantes pressões, mais ou menos manifestas, às vezes diretamente e outras
vezes de forma indireta, em algumas situações em nível consciente e em muitas outras
inconscientemente, tanto por parte da família como pelo lado da sociedade. Defrontamo-
nos, então, com uma tarefa – a educação - complexa e difícil, e ao mesmo tempo sedutora e
gratificante, o que levou S. Freud, a considerá-la como “impossível”.
Parodiando S. Freud, quando ele se referiu à mulher, quero formular duas perguntas – “O
que quer a família?” e “O que quer a sociedade?”- para que possamos compreender o que a
família e a sociedade esperam da escola.
Inicialmente, é necessário dizer que não existe um “modelo” de família, mas sim uma
diversidade de modelos familiares, com muitos traços em comum entre si, mas com uma
infinidade de singularidades. É possível se pensar que cada família tem uma identidade
própria e, como tal, fantasias, situações traumáticas, perdas, mitos familiares, segredos e
uma historia. Trata-se, na verdade, de um agrupamento humano em constante evolução,
constituído com um intuito básico de prover a subsistência de seus integrantes e protegê-
los. É dessa maneira palco dos “dramas” de nossa espécie: amor, ódio, ciúme e inveja, entre
outros sentimentos mais ou menos confessáveis, que estão presentes no quotidiano deste
agrupamento especial. O que S. Freud descreve em Totem e tabu, ao falar da horda
primitiva, pode ser observado, tal como eu penso, com facilidade nas famílias; quero frisar,
entretanto, que escrevo sobre as “famílias comuns”. Os mecanismos que operam nos grupos
são, evidentemente, observados na dinâmica grupal da família, com o fato de que ali os
laços de dependência são fundamentais, e o convívio de seus integrantes é constante e
permanente, o que propicia que se revelem estados mentais primitivos (como testemunho
disso, podemos observar como as violências físicas e psíquicas contra crianças ocorrem,
com freqüência, dentro da própria família). Em relação aos filhos e às expectativas quanto à
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escola, encontramos várias fantasias familiares, das quais enumerarei apenas duas delas: (a)
o desejo de que a instituição escolar “eduque” o filho naquilo que a família não se julga
capaz, como, por exemplo, em relação a limites e sexualidade, e (b) que ele seja preparado
para o ingresso na universidade e para obter um êxito profissional e financeiro. A escolha
da escola pela família, assim, é um ponto que requer avaliação para que se possa entender o
que levou a tal decisão, quais as fantasias e expectativas, se considerarmos que cada
instituição, bem como as famílias, têm também suas características e peculiaridades,
algumas têm um sistema mais “rígido” e outras são mais “flexíveis”, determinadas escolas
são ligadas a grupos étnicos ou religiosos e isso determina uma história, uma maneira de
“ser”, enfim, uma identidade. Algumas terão uma perspectiva mais “humanista” e outras
serão mais “técnicas” e há as que ainda estão passando por transformações, pois – assim
como todas as instituições – elas têm um “ciclo vital”. A família precisa saber por que
optou por esta ou aquela escola, o que torna necessário conhecer a instituição tanto quanto
possível. As escolas não são organizadas para receber “qualquer criança”, assim como as
crianças não necessitam se adaptar a “qualquer escola”.
Podemos pensar, de uma maneira metodológica, que existirão três maneiras de operar com
grupos na escola: grupos de alunos, grupos de professores e grupos com pais. É certamente
possível fazermos diversas outras combinações, mas é sobre as referidas que vou comentar,
por serem as mais freqüentes. As ansiedades, as fantasias e as defesas serão as que
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encontramos na dinâmica dos grupos em geral e que, em minha maneira de pensar, são
melhor trabalhadas dentro dos conceitos de grupo desenvolvido por W. Bion (1970). É
fundamental que conheçamos os mecanismos dos grupos de trabalho, grupos de
dependência, grupos de luta-e-fuga e grupos de acasalamento, tais como nos aporta este
autor.
Atividades de grupo com alunos são fundamentais para uma “vida escolar” eficiente. Esses
grupos, tais como eu tenho acompanhado, são realizados semanal ou quinzenalmente (com
um total ótimo de não mais de 15 alunos), com as turmas divididas em dois grupos, por um
ou dois períodos escolares, coordenados – em geral – por um orientador escolar, seguindo a
idéia geral de grupos operativos (Zimmermann, 1969). Estes grupos são centrados
essencialmente em uma ou mais tarefas, tais como, por exemplo, os relacionamentos dentro
de uma sala de aula ou no manejo de situações ligadas a limites ou sexualidade, que em
minha maneira de ver são as “demandas” mais freqüentes. Passarei a relatar alguns
exemplos clínicos de situações.
O final do curso
Em uma escola (como acontece em quase todas) as turmas do terceiro ano do Ensino Médio
apresentavam uma conduta agressiva entre os próprios alunos e com os professores e no
“último dia de aula” (como já vinha acontecendo nos últimos meses...) criavam situações
difíceis, depredando a escola e causando tumultos na rua, o que tornava necessário chamar
não só os pais, mas inclusive a policia e “punir” exemplarmente alguns alunos. Foram então
realizadas reuniões com professores, ficando evidentes os seguintes aspectos: (a) que essas
“atuações” diziam respeito à dificuldade dos alunos de se separarem da escola ao final do
curso, refletindo assim uma dificuldade também com o processo de separação-individuação
em relação a seus próprios grupos familiares, uma das tarefas centrais da adolescência
(Outeiral, 1994), e (b) que os professores também tinham dificuldades em se separar dos
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seus alunos, com os quais estavam em contato, muitas vezes desde a infância e que, de
forma inconsciente, também “atuavam” não conversando (não preparando) com os alunos
sobre isso, mas apresentando uma descrição “trágica” do mundo fora da escola ( “vestibular
muito difícil”, “perspectivas profissionais péssimas”, etc. ...só para citar algumas). Não
surpreendia assim que os alunos expressassem suas ansiedades e fantasias de uma maneira
manifesta com agressividade, bem como as de seus professores, que de uma maneira
inconsciente as projetavam neles e os faziam “atuar”, atacando a instituição e assim
negando a dor psíquica e a depressão de ter de se afastar de um local onde tinham tantas
ligações. Trabalhou-se, então, com alunos e professores em torno deste tema: (a) da
ansiedade de separação como fenômeno presente e fundamental de experiência humana; (b)
da “atuação agressiva” como negação dos sentimentos relacionados com a ansiedade de
separação (se denegrimos o objeto ao qual estamos ligados, sofremos menos com a
separação); e (c) como os fenômenos mentais observados eram comuns a alunos e
professores. A estratégia utilizada foi trabalhar em grupos com alunos, professores e pais.
Com os alunos, a partir do segundo semestre do último ano (nas reuniões, o tema
“separação” era trazido e discutido tanto no que dizia respeito à escola como à família),
com os professores (examinado como sentiam a saída dos alunos e como os “assuntavam”,
bem como fantasias e realidades deles próprios – em suas adolescências inclusive –
relacionadas a essa questão) e com os pais (sobre como enfrentaram os processos de
separação) em reuniões mais espaçadas. O discutir e compreender os fatos, nos diferentes
níveis (ansiedades, mecanismos de defesa, momentos evolutivos, funcionamento consciente
e inconsciente, dinâmica de grupo, etc.), auxiliou todos – alunos, professores e famílias – e
diminuiu em muito “o terror dos últimos dias de aula”, que foi substituído por excursões,
torneiros esportivos, apresentações teatrais sobre o tema, convite a profissionais para
falarem sobre sua profissões e o mercado de trabalho, etc.
Estão reunidos cerca de 15 adolescentes, rapazes e moças, de uma mesma série com idades
entre 15 e 16 anos. O grupo é realizado por uma orientadora educacional a cada 15 dias e
tem a duração de 50 minutos, tempo que representa a duração de uma aula.
O clima é de risos, alguma coisa escondida é passada de mão em mão. A orientadora
intervém, perguntando o que se passa. Os adolescentes seguem rindo, como se
compartissem um segredo entre eles, com a orientadora “ficando de fora”.
Orientadora: “penso que vocês querem me manter de fora... Talvez esteja ocorrendo algo
como em casa, ou seja, vocês necessitam manter algo ‘escondido’ dos pais...”
Aluno: “Não é nada... é só uma brincadeira... quem sabe a professora tenta adivinhar o que
é?”
Os alunos começam novamente a rir. Dois ou três deles pedem silencio e tentam “cessar a
bagunça”. A orientadora percebe que uma parte do grupo começa a se ocupar com a
realização da “tarefa”.
Orientadora: “Parece que começa a haver, por parte da turma, um interesse pelo que nos
reúne aqui...”
Ela não faz sua intervenção se referindo a “alguns” alunos, mas trata de estendê-la a todo o
grupo, tomando a manifestação de alguns alunos como uma expressão de toda a turma. Os
alunos diminuem a “bagunça” e se mostram mais atentos: começa a se estabelecer um nível
mais integrado de funcionamento.
Um dos alunos: “Ei! Vamos calar a boca! Vamos terminar com essa esculhambação!”
A orientadora pensa que começa a surgir um movimento em torno de um líder autocrático
(“superegóico”, associa...), mas é rapidamente interrompida em seus pensamentos.
O mesmo aluno de antes: “Vamos organizar as coisas! O assunto é se podemos ou não fazer
provas com consulta... porque algumas disciplinas permitem e outras não...”
Os alunos agora estão (relativamente...) quietos e pararam de passar entre si uma camisinha
(preservativo), que havia sido distribuída a um deles como divulgação de uma campanha
contra a AIDS. A orientadora percebe que o tema da sexualidade, que causava a “bagunça
anterior”, ficou deixado de lado, embora seja o verdadeiro “emergente grupal”. Ela associa
que “deixar ou não deixar”, proibir ou não proibir, tem mais a ver com o tema da
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Serviço de Orientação Educacional reunisse o grupo para “conversar” sobre o que estava
acontecendo. Os assuntos trazidos evidenciaram que a puberdade e a adolescência inicial
estavam produzindo toda a “turbulência” e que os mais “agitados” estavam, realmente,
mais “excitados”: davam “puxões” e “empurrões”, faziam freqüentes reuniões dançantes e
chamavam de “galinha” uma menina que, precocemente, apresentava os primeiros sinais de
puberdade e que, com suas características sexuais secundárias, provocava ansiedade na
turma, que tentava, então, “queimá-la” numa “versão púbere” da Inquisição. As reuniões
com o Serviço de Orientação Educacional ofereceram um “limite”, um espaço e um tempo
“protegido”, que propiciou substituir a “agitação” pela verbalização dos conflitos.
A colocação de limites
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A direção de uma escola havia decidido tomar um atitude com determinados professores
que estavam tendo “dificuldades” com os alunos, ou seja, não conseguiam colocar limites
ou, quando o faziam, era de forma “ríspida” e da qual os alunos muito reclamavam. Eram
tidos pela comunidade escolar como “professores mal-preparados”, na verdade, como
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Alunos desinteressados
Os níveis de competência
Em uma determinada situação os professores após conversarem com os pais e instados por
eles - que reclamavam da “pouca atenção” da escola pela “educação sexual” – começaram
a se mobilizar, organizar seminários, preparar currículos, convidar profissionais, etc., de
uma forma, digamos, “excessivamente preocupada e apurada”. Depois de algum tempo,
começaram a se sentir desestimulados e sem saber como encaminhar, na prática, as
questões “exigidas” pelos pais. Trabalhando em grupo, fomos percebendo como os pais
haviam acionado os professores, fazendo-os sentirem-se responsáveis por uma “educação”
que era, principalmente, encargo da família; os pais evitavam falar com os filhos sobre um
tema que lhes era difícil e o “passaram” para os professores; estes por sua vez sentiram-se,
inicialmente, “orgulhosos” da tarefa, mais valorizados como se “soubéssemos mais do que
os pais”, e excederam a sua competência. A reflexão permitiu compreender que seria mais
adequado chamar, antes dos adolescentes, os pais, para juntos definirem melhor a tarefa, as
competências e as formas de encaminhar o trabalho não só da escola , mas também – e
principalmente – nas casas, entre pais e adolescentes.
Consultoria psiquiátrica
Exemplos
Drogas e sexualidade
Um assunto que surge, amiúde, como demanda de informação por parte dos pais é
“drogas”. Evidentemente, esse é um assunto muito importante, porém é significativa a
freqüência com que surge como tentativa de encobrir outras questões mais comuns, como a
“sexualidade”, pelas quais todos passam, o que não acontece com drogas, e sobre a qual é
muito mais difícil falar. Ter um “posicionamento” sobre “drogas” é fácil, mas sobre
“sexualidade” é bem mais difícil. Certa ocasião, uma escola religiosa, que até há poucos
anos havia sido exclusivamente feminina, organizou um programa chamado de
“Adolescência hoje”, incluindo toda a comunidade escolar. Ocorreram situações grupais
muito interessantes, algumas até mesmo cômicas. Em uma reunião de pais, com o auditório
lotado, antes de iniciar uma conferência sobre o tema “sexualidade na adolescência”, o
expositor foi até o banheiro. Inadvertidamente, uma religiosa da escola o fechou a chave no
banheiro, atrasando a reunião por mais de meia hora, com todos procurando o expositor...
Nesta mesma ocasião, após uma “conferência” com os alunos, alunas em sua maioria, o
expositor começou a receber perguntas escritas, e a primeira, significativamente, dizia “O
problema desta escola não é drogas é sexo...”, que ao ser lida causou muito riso em todos.
Estes episódios, de conteúdo maníaco pelas reações que produziram, permitiram trabalhar e
entender que a demanda verdadeiramente necessária da escola era o tema da sexualidade,
tanto por parte dos adultos como de adolescentes. O programa que havia sido planejado
passou a incluir então este tema tão emergente e difícil de ser abordado. O episódio do
banheiro foi tomado não como uma simples anedótica casualidade, mas como uma
expressão de emergente grupal, assim como a pergunta-afirmação de uma aluna também foi
compreendida desta forma. Tais fatos foram percebidos como “comunicações” de toda a
comunidade e utilizados para o entendimento da situação.
Em uma “escola de comunidade”, isto é, ligada a uma comunidade religiosa e cultural foi
feito um trabalho, com pais e professores cujo tema era “Identidade e Juventude”.
Inicialmente, foi feito com um grupo de representantes dos pais, professores e um líder
religioso um levantamento de temas que lhes pareciam importantes para essa questão: o
ritual de iniciação dos jovens e um tema religioso sobre a morte. Surgiram, em torno desses
dois temas, variados elementos, como peças de teatro, filmes, poesias, contos, desenhos e
pinturas, etc. Os adultos mostraram-se muito interessados e estimulados na busca desses
elementos culturais e religiosos, como se a proposta, inicialmente, tendo os jovens como
pretexto, fosse uma demanda, um desejo deles próprios. Assim, em um primeiro momento,
trabalhou-se este tema com os adultos da comunidade, pais e professores. A dinâmica de
grupo utilizada transcorreu da seguinte forma: inicialmente se assistia (ou eram feitas
leitura coletivas) de contos, poesias, teatro ou cinema sobre os temas; posteriormente,
organizava-se uma mesa com profissionais de diversas áreas (literatura, psicanálise,
religião, etc.) para apresentação dos temas conforme a “ótica” de cada um e, após, o
“grande grupo” era dividido, as apresentações comentadas e finalmente o “grande grupo”
se reunia novamente para discussão. O importante, nesse trabalho, além da dinâmica
utilizada, foi compreender que a sugestão feita pelos alunos era importante para eles,
desejosos de trabalharem “suas raízes” e sua identidade religiosa e cultural. Tal experiência
produziu alguns textos que, desdobrados, hoje servem aos mesmos objetivos em outras
localidades e novos elementos culturais foram incorporados e, mesmo encontrados após
pesquisas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPITULO 3
iniciavam sua vida genital aos 16, 17 anos, poucas engravidavam e nenhum dos
adolescentes trabalhava.
Não sei se esta denominação “adolescentes excluídos” é a mais correta ou oportuna,
mas é certo que ao menos eles são excluídos de nossas discussões e escritos. Quando
concordamos que adolescência é um fenômeno psicossocial (Outeiral, 1994),
reconhecemos que existirão aspectos comuns e também específicos, que caracterizarão o
processo adolescente nos diferentes estratos socioeconômicos e culturais de nossa
sociedade.
Quem são eles – os adolescentes excluídos – e quantos são? As estatísticas são muito
variáveis: alguns dizem que são cerca de vinte milhões de menores desfavorecidos, sete
vezes toda a população do Uruguai ou metade de toda a população da Argentina. Outros
contestarão estas cifras. Mas aí estarão eles: nas ruas, nas estradas, nos campos, nas cidades
e – de novo – nas ruas, entre os carros, provocando em nós os mais variados sentimentos,
confessáveis ou não: vergonha, repulsa, culpa, irritação, medo, etc... Melhor seria não vê-
los, não escutá-los, não senti-los: negá-los, denegá-los ou ainda (de maneira pedante)
podemos dizer Verneinung.
Laplanche e Pontalis, em seu Dicionário de Psicanálise , definem assim este termo:
Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou
sentimentos até então recalcados, continua a defender-se deles negando que lhes
pertençam.
Muitos poderão ser os aspectos sobre os quais poderemos nos inclinar para observá-los:
vou comentar apenas alguns deles, convidando o leitor a trazer outros. Vou me restringir ao
tema: a violência no corpo e na mente do adolescente – conseqüências da realidade
brasileira.
da infância ao mundo adulto bastante rápida. Talvez esteja dizendo algo que pareça óbvio e
nada original, mas julgo necessário fazer este registro.
Podemos observar, com alguma facilidade, uma pseudo-maturidade que se
estabelece, incluindo neste aspecto padrões verbais aparentemente mais desenvolvidos e
uma conduta também em aparência mais adulta. Na verdade nos encontramos diante de
mecanismos defensivos, muitas vezes de sobrevivência do corpo e da mente, em que
estruturas clínicas como as compreendidas no amplo espectro da Tendência Anti-Social ou
do tipo Falso Self representam os níveis mais integrados. O conceito de trauma
acumulativo de Masud Khan também é de utilizade para a compreensão destas situações.
TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL
Em um Simpósio, realizado em 1994, pude comentar aspectos da Tendência Anti-Social, tal
como a concebeu Donald Winnicott. As apresentações deste encontro estão publicadas em
um livro editado por David Levisky (Levisky, 1997). O capítulo seguinte deste livro
abordará esta questão com maior profundidade.
Donald Winnicott distingue dois aspectos da privação: (1) deprivation a perda do bom
objeto e a perda do marco confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da
criança se sente segura (estado no qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) privation um
estado no qual jamais se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma
psicose. Assim ele mostrou que a tendência anti-social se articula em um ponto com as
psicoses e em outro com as neuroses. Estabeleceu, desta maneira, que a experiência de
privação dificulta à criança alcançar o estágio de reconhecimento e preocupação com o
outro e um sentido de responsabilidade social dentro do indivíduo.
32
Para este autor, pediatra e psicanalista, os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos
psicopatas mostram sinais de esperança. “A esperança orienta-se a recuperar o que se
perdeu, ou que isto seja devolvido e que os processos de maturação, que ficaram
congelados quando da perda, sejam liberados novamente”. Desta forma, Winnicott,
escreve Clare Winnicott (1989), “explicou ao menos parte da vida afetiva do homem sem
ter que recorrer a um instinto de morte herdado”. Para ele, o furto, por exemplo, está no
centro da tendência anti-social, associado à mentira. Na verdade, a criança que furta um
objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe, sobre quem ela se julga “com
direitos”.
Três são, então, os aspectos básicos da “tendência anti-social” para Donald Winnicott:
· ele relaciona a tendência anti-social “a uma falha ambiental precoce,
principalmente a uma falha na função materna”;
· Distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas: (a) quando a privação
ocorre depois de ter havido uma função materna “suficientemente boa” e por um
período de tempo suportável, a criança poderá desenvolver a tendência anti-
social” - deprivation; (b) se a privação (privation), ou a falha na função materna,
ocorrer desde o inicio da vida, poderá se desenvolver uma doença mental grave
ou uma psicose;
· Donald Winnicott considera que a “tendência anti-social” comporta um
sentimento de esperança, o que dá uma configuração clínica muito especial ao
problema.
FALSO-SELF
A outra questão diz respeito às organizações defensivas do tipo “falso-self”. Esta
situação resulta de cisões muito primitivas ocorridas no ego, com o intuito de proteger o
“verdadeiro self” das falhas e/ou intrusões ambientais, principalmente na relação com a
mãe. Este será um tipo de organização que conduzirá, eventualmente, o adolescente a
um grau razoável de “adaptação social”, embora saibamos que com o tributo da perda
da espontaneidade e da criatividade. Poderá ocorrer também o desenvolvimento de um
“falso self” em que o elemento adaptativo se relacionará a estruturas ligadas à
33
PATOLOGIA DA TRANSICIONALIDADE
No simpósio referido antes, estabeleci, seguindo Donald Winnicott e outros autores, a
relação entre a tendência anti-social e a patologia da transicionalidade. Evidentemente
as patologias vinculadas a um inexistente (ou insuficientemente desenvolvido) ou com
um desenvolvimento atípico (“estruturas lacunares” de K. Friedlander) do superego,
fracasso de uma elaboração edípica e regressão e/ou fixação a elementos pré-gentais
estarão presentes nestes adolescentes. Esta patologia estrutural, reconhecível em termos
metapsicológicos, tem também sua representação psíquica nas alterações do self
decorrentes de falhas nas transicionalidade. Vários autores discorrem sobre estes
aspectos, bastante conhecidos na bibliografia especializada (Outeiral, 1995).
TRAUMA ACUMULATIVO
Masud Khan utiliza o conceito de “trauma acumulativo” para descrever situações que,
penso, se aplicam a esses adolescentes com freqüência. Ele parte da concepção de
Freud sobre a função da mãe como escudo protetor, desenvolvida em “Além do
principio do prazer” (1920). Masud Khan escreve ( Khan, 1963):
Meu argumento é que o trauma acumulativo resulta de fendas observadas
no papel da mãe como escudo protetor durante todo o curso de
desenvolvimento, desde a infância até a adolescência – isto é, em todas as
áreas da experiência onde a criança precisa da mãe como um ego auxiliar
para sustentar suas funções do ego, ainda imaturas e instáveis... O trauma
acumulativo procede, portanto, das tensões que uma criança experimenta no
contexto da sua dependência de ego em relação à mãe como seu escudo
protetor e ego auxiliar... Nesse contexto, seria mais exato dizer que estas
fendas, repetidas no correr do tempo e entremeadas no processo de
desenvolvimento se acumulam de forma silenciosa s invisível. Daí a
dificuldade e identificá-los clinicamente na infância. Pouco a pouco vão se
fixando até formarem os traços específicos de determinadas estruturas de
caráter (Greenacre, 1958). Gostaria de limitar-me apenas a declarar que o
emprego da palavra trauma no conceito de trauma acumulativo não nos
deve levar erroneamente a considerar tais fendas observadas na papel da
mãe com escudo protetor como traumáticas na época ou no período em que
ocorreram. Só adquirem valor acumulativamente e retrospectivamente...
34
Masud Khan utiliza também alguns dos conceitos básicos de Donald Winnicott para
desenvolver suas idéias. Para ele o que leva a mãe a desenvolver o papel de escudo
protetor é o que Winnicott chama de preocupação materna primária, em que a mãe
suficientemente boa, através de suas funções de holding, handling e apresentação de
objeto interagem com seu bebê. O conceito de intrusão (impingment) também é
fundamental, Masud Khan comenta ( Khan, 1963):
E a intromissão das necessidades e conflitos pessoais da mãe que
caracterizo como fracasso no papel que desempenha como escudo protetor:
O papel da mãe como escudo protetor não é passivo; é uma atitude alerte,
de adaptação e organização. O papel de escudo protetor é resultado das
funções de ego maternas autônomas e isentas de conflito. Se os conflitos
pessoais interferirem aqui, o resultado será um desvio do papel de escudo
protetor para a simbiose ou fuga para uma rejeição. Como a criança
reagirá a esses fracassos da natureza, intensidade, duração e freqüência do
trauma.
A ATUAÇÃO
A atuação, ou o agir, constitui um meio comum de comunicação e de tentativa de
evitação – como defesa maníaca – das ansiedades confusionais, paranóides e
depressivas na adolescência. Nos adolescentes a que estou me referindo, pelos seus
precários meios de estruturação psíquica, este modelo de funcionamento mental – o
atuar como comunicação e como defesa maníaca – será mais intenso.
A FAMÍLIA
As estruturas familiares desses adolescentes serão as mais diversas. Muitos terão grupos
familiares com peculiaridades: com muita freqüência, acredito, esta será caracterizada
pelo abandono parental – principalmente o pai – e um número significativo será
constituídos por filhos “naturais”. Júlio Aray, analista venezuelano, realizou em seu país
um importante estudo sobre o abandono parental e a situação do filho “natural”, na
Venezuela, que correspondia a 20% de todos os nascimentos, chegando a observações
aproximadas às que estou considerando. A migração do campo para a cidade, com todos
37
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JUNQUEIRA FILHO, L. et alii ( 1995) . Corpo Mente. Uma fronteira móvel. São Paulo, Casa do Psicólogo,
1995.
LEVISKY, D. ( 1997) Adolescência e Violência. Conseqüências da Realidade Brasileira. Porto Alegre,
Editora Artes Médicas, 1991.
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OUTEIRAL, J. et alii 9 1995) . Adolescente Bordeline. Porto Alegre, Editora Artes Médicas,
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_____( 1995) , Adolescer. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1995.
_____( 1997). “Tendência Anti-social e Patologia do Espaço Transicional”.
In: LEVISKY, D. Adolescência e Violência Conseqüências da Realidade Brasileira.
Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1997.
WINNICOTT, D. ( 1965). The Maturational Process and the Facilitating Environment.
Londres, Hogarth Press, 1995.
______( 1975). Through Pediatrics to Psycho-analysis. Londres. Hogarth Press, 1975.
______( 1975). Playing and Reality, Londres, Hogarth Press, 1975.
39
CAPÍTULO 4
José Outeiral
A Tendência Anti-Social
A tendência anti-social é um dos temas básicos nas contribuições de Donald W. Winnicott
(DWW), pediatra e psicanalista inglês falecido em 1971.
Este autor desenvolveu o estudo da tendência anti-social procedendo a uma articulação com
as duas áreas de experiência humana: o meio ambiente e a realidade interna. Os conceitos
sobre este tema, desenvolvidos especialmente a partir de suas vivências durante a II Guerra
Mundial, com crianças evacuadas de Londres e enviadas para longe de suas famílias,
encontram-se dispersos em trabalhos, artigos, conferências, aulas, para profissionais e para
leigos, e que foram, em parte, reunidos num texto póstumo por Clare Winnicott
(Deprivation and delinquency, 1984), no qual ela escreve:
A partir destas vivências, Winnicott desenvolveu sua teoria sobre a tendência anti-social, na
qual distingue dois tipos de privação: (1) ( deprivation) perda do “bom objeto” e a perda do
marco confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da criança se sente segura
( estado no qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) ( privation) um estado no qual
jamais se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma psicose. Assim,
ele mostrou que a tendência anti-social se articula em um ponto com as psicoses e em outro
com as neuroses. Estabeleceu especialmente a experiência de privação com a
impossibilidade de alcançar a posição depressiva e um sentido de responsabilidade social
dentro do indivíduo.
Para DWW os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos psicopatas mostram “sinais de
esperança”. “A esperança orienta-se a recuperar o que se perdeu, ou que isto seja
devolvido e que os processos de maturação, que ficaram ‘congelados’ quando da perda,
sejam liberados novamente. Desta forma, Winnicott explicou ao menos parte da vida
afetiva do homem sem ter que recorrer a um instinto de morte herdado” (Clare Winnicott,
1989).
O conceito de privação envolve um fracasso ambiental na etapa de dependência relativa. A
privação, assim, refere-se a um ambiente suficientemente bom vivenciado e perdido,
41
quando o bebê já é capaz de perceber a relação de dependência, isto é, quando sua evolução
se tornou possível perceber a natureza do “desajuste ambiental”.
Esta concepção deu uma nova ótica à compreensão que a teoria psicanalítica tinha, de uma
maneira geral, sobre a delinqüência e a marginalidade, que eram atribuídas à ansiedade ou à
culpa decorrentes da inevitável ambivalência inconsciente:
“Quero dizer, eram considerados como fruto do conflito surgido quando o
ódio (e, portanto, o desejo de destruir) se dirige contra uma pessoa muito
amada e necessária. A idéia básica era a de que, quando a culpa se
acumula e não encontra saída na sublimação ou na reparação , algo tem
que ser feito, ou atuado (acted out), para que o indivíduo se sinta culpado
disto. Em outras palavras, a etiologia da delinqüência era vista,
principalmente, em termos da luta que se trava no muno interior, ou psique,
do indivíduo” (DWW, 1984).
ela se julga com “direitos”. Tais “direitos” derivam do fato de que sob o ponto de vista da
criança – no “espaço de ilusão” que, como veremos a seguir, representa a experiência
onipotente que “a mãe suficientemente boa” propicia ao bebe - o seio que a mãe oferece é
percebido pelo bebê como criado por ele; a mãe, desta forma, é “criada” pelo bebê.
Assim, após esta breve abordagem, gostaria de sublinhar três aspectos básicos da
concepção de “tendência anti-social” em DWW:
1. Ele relaciona a “tendência anti-social” a uma falha ambiental precoce,
principalmente a uma falha na função materna;
2. Distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas. (a) Quando a privação
ocorre depois de ter havido uma função materna “suficientemente boa” e por
um período de tempo suportável, a criança poderá desenvolver a
“tendência anti-social” (deprivation) . (b) Se a privação (privation), ou a falha
da função materna, ocorrer desde o inicio da vida, poderá se desenvolver uma
doença mental ou uma psicose, por exemplo;
3. DWW considera que a “tendência anti-social” comporta um sentimento de
esperança, o que dá uma configuração clínica muito especial ao problema.
A Patologia da Transicionalidade
Uma das mais originais e difundidas concepções de DWW é o conceito de objetos e
fenômenos transicionais. Em um artigo intitulado Transitional objects and transitional
phenomena (1951) e no livro publicado vinte anos depois, Playing and reality (1971) além
de em vários seus outros trabalhos, este conceito é desenvolvido tanto em seu aspecto
metapsicológico como clínico
Sinteticamente, poderemos estabelecer a seguinte configuração para melhor compreender
estes conceitos que, penso, de uma certa forma já são bastante conhecidos de todos aqueles
que têm seu interesse dirigido ao desenvolvimento da criança: aqueles que observam os
bebês e suas mães terão notado que há uma série de eventos que “(...) começam com as
primeiras atividades na estimulação da zona erógena oral e que acabam por conduzir a
uma ligação a um ursinho, uma boneca ou, ainda, a um brinquedo macio...” (DWW, 1975).
O urso destes objetos constitui “a primeira possessão que seja não-eu”, o que nos dá uma
43
idéia da importância destes acontecimentos na vida do bebê. Para DWW o que importa, na
verdade, e isto é muito importante sob o ponto de vista da clínica, não é tanto a fralda, o
cobertor ou o ursinho, mas o uso que o bebê faz do objeto (DWW, 1968).
Estes conceitos introduzidos por DWW na psicanálise são conhecidos da literatura, da
filosofia e das artes em geral, como ele próprio escreve. Fernando Pessoa costumava dizer
que quem aprecia uma paisagem está vendo, na verdade, duas: a paisagem verdadeira e
uma outra, a interna, e que a arte nasce da sobreposição destas duas imagens. É interessante
registrar que Freud escreveu que nada do que disse não fora antes dito por um poeta...
André Green, em seu livro Conferências brasileiras (1990), fala-nos de uma "lei geral":
sempre que dividimos um espaço em dois, atribuindo a cada um destes espaços
propriedades contrárias, criamos um terceiro espaço na intersecção dos dois, que é a
formação de compromisso da divisão entre os dois espaços anteriores. Este terceiro espaço
comportará atributos dos dois espaços separados. Ele escreve:
“(...) é sempre assim em psicanálise: a partir do momento em que há dois
termos antinômicos, duas estruturas opostas por diferenças radicais, vocês
acharão lugar para um terceiro espaço, que é um espaço de compromisso,
que combina com as características de ambos. A simbolização é isso: a
reunião de duas partes separadas que, reunidas, formam uma totalidade, na
qual cada um dos dois espaços conserva suas características, enquanto uma
terceira estrutura é criada pela união dos dois, tendo esta terceira estrutura
características diferentes de cada uma das metades".
Experiência de ilusão é a base dos objetos e dos fenômenos transicionais, enfim, daquilo
que, ao tentar colocar esta vivência anterior à "representação de palavra" em palavras,
chamamos de "transicionalidade".
Talvez seja útil comentar brevemente as "funções" que DWW atribuiu à "mãe
suficientemente boa”, ou seja, àquela que não é "boa" nem "má". Esta mãe seria capaz de
"adoecer sadiamente", dentro da noção de paradoxo tão essencial à obra deste autor,
oferecendo ao seu bebê a "área de ilusão", referida antes, assim como as seguintes funções:
holding, ou seja, a sustentação física e emocional; handing, compreendendo os cuidados
básicos essenciais para a sobrevivência do tão imaturo bebê humano; a noção de
apresentação de objeto quando a mãe procura adaptar-se às necessidades da criança e, ao
mesmo tempo, propiciar uma gradativa frustração e, por último e nem por isso menos
importante, a noção de continuidade de cuidados ao self.
Outros pontos básicos sobre o desenvolvimento emocional primitivo, tais como o caminho
da dependência absoluta à independência, o conceito de personalização e de integração e
não-integração, as agonias primitivas ou ansiedades impensáveis, deverão ser apenas
referidos, em função dos objetivos deste capítulo.
Antes de continuar, gostaria de contar uma piada e falar de uma curiosidade.
A Piada...
André Green, no livro já citado (Conferências brasileiras, 1990), escreveu o seguinte:
(...) e como conheci Winnicott, não muito, mas enfim, vi que tipo de homem ele era,
imaginei-o na British Psycho-Analytical Society, em pleno período de 'controvérsias', entre
Melanie Klein e Anna Freud, com Anna Freud à sua direita, o tempo todo insistindo no
objeto da realidade externa, e à sua esquerda Melanie Klein, que enchia seus ouvidos com
os objetos internos. Nosso Winnicott diz: “Estou cheio destas mulheres! O externo, o
interno... o externo, o interno... Não quero ter de escolher. Então eu invento um terceiro
objeto: o objeto transicional".
A Curiosidade...
Spinoza, em seu Tratado da gramática hebraica, diz que há nomes que são distintos. Assim
parece ter sido com Winnicott e seu objeto transicional. Collete Chiland comenta que viu
45
Winnicott, em 1960, em Londres divertir-se com o fato de que o "cot" de seu nome
significa, em inglês, berço, ele comentava que via uma "predisposição" para ter
desenvolvido a teoria do holding, Collete Chiland faz, então, um jogo de palavras
lembrando o personagem da literatura infantil inglesa Winnie-the-Poob (ursinho Puff, entre
nós), criação de A.A. Milne (1882-1956), publicado em 1926, e que é citado junto com
peanuts de Schulz no livro de DWW, Playing and Reality (1971). Winnie-the-Poob é um
urso de pelúcia... O nome Winnicott seria então um urso de pelúcia em um berço... (Figura
3).
Retomando...
Há uma série de situações psicopatológicas descritas por DWW na área da
transicionalidade.
Nas situações de perda e separação, DWW descreveu a seguinte observação:
(...) como exemplo do manejo da criança da separação e da perda, chamo a
atenção para o modo como a separação pode influenciar os fenômenos
transicionais. Como se sabe, quando a mãe, ou alguma outra pessoa de
quem o bebê depende, está ausente, não há uma modificação imediata, uma
vez que o bebê possui uma lembrança ou imagem mental da mãe, ou aquilo
que podemos chamar de uma representação interna dela, a qual permanece
viva por um determinado tempo, então a lembrança, ou representação
interna da mãe, se esmaece. À medida que isto ocorre , os fenômenos
transicionais torna-se gradativamente sem sentido e o bebê não pode
experimentá-los. Podemos observar o objeto sendo descaracterizado.
Exatamente antes da perda podemos, às vezes, perceber o exagero do uso de
um objeto transicional como parte da negação de que haja ameaça de ele se
tornar sem sentido” (DWW, 1975).
DWW cita o exemplo ilustrativo desta situação ao descrever o uso de um cordão por um
menino, no qual há uma identificação materna - baseada em sua própria insegurança em
relação à mãe - que poderia se transformar em homossexualismo: da mesma maneira, a
preocupação com cordões comportará um potencial para perversões.
Júlio de Mello Filho, em seu trabalho Donald Winnicott, 20 anos depois (Mello, 1989),
comenta como DWW se referiu à patologia da transicionalidade em situações que incluem
a mentira, o furto, o fetichismo, a drogadição e o uso de talismã, nos rituais obsessivos.
46
M. Masud Khan desenvolve, por outro lado, um importante estudo sobre as perversões em
um livro intitulado Alienations in pervertion (1979), articulando o conceito e a
metapsicologia dos objetos transicionais com tais patologias.
Peter Giovacchini é outro autor que estudou os aspectos da psicopatologia da
transicionalidade, particularmete em um artigo intitulado "O adolescente borderline como
objeto transicional: uma variação comum", no qual considera que sendo a adolescência
47
"uma fase transicional da vida", esta etapa, particularmente nas patologias borderline,
ilustra-nos muito significativamente as contribuições de DWW sobre o tema. Ele chama a
atenção, em especial, para as mães que usam seus filhos como "objetos transicionais". Este
estudo é uma continuidade do trabalho de Llili Lobel sobre objetos transicionais na história
da infância de adolescentes borderline, onde a ausência destes objetos foi encontrada em 18
dos 20 adolescentes estudados (Outeiral, 1993).
Assim podemos observar como muitas das manifestações de tendência anti-social
vinculam-se ‘a patologia da transicionalidade. Em uma conferência, em 1950, DWW
concluiu que a maioria das crianças incluídas na categoria de desajustadas ou não tiveram
um objeto transicional ou o perderam, e considera que os objetos transicionais permitem à
criança simbolizar e ser capaz de tolerar frustrações e privações.
É necessário, agora, um breve comentário sobre o conceito de agressão e,
conseqüentemente, da violência. DWW via a agressão primária no sentido do etimológico
da palavra – agredere, ir na direção de alguém, raiz das palavras agregar, agrupar –
principalmente em termos de motilidade muscular, ou mesmo, de atividade. Ele não
utilizava em seu esquema conceitual (metapsicológico) a noção de destrutividade em
termos de um instinto de morte, como fez Freud, e também não aceitava o ponto de vista
kleiniano de que existe inveja (primária) do objeto bom (pessoa ou objeto parcial) e que
conduz à destrutividade desde os primórdios da vida. Desta maneira ele postulou uma teoria
pulsional considerando a existência de uma destrutividade sem cólera.
Gostaria, já no final, de incluir uma categoria de tendência anti-social, que se refere às
pessoas, descrita por C. Bollas (1987), como “normóticas” (normotic): um indivíduo que é
anormalmente normal e que objetiva “des-subjetificar” o self para se tornar um objeto-
coisa. Corresponderia, em um certo sentido, ao conceito de falso-self de DWW, quando o
sujeito poderá, inclusive, ter uma excelente adaptação, por exemplo, às custas de sua saúde
mental, espontaneidade e criatividade.
Para DWW, no que diz respeito ao tratamento, as crianças e adolescentes que apresentam
uma tendência anti-social podem ser tratadas de duas maneiras. Podem receber psicoterapia
individual ou pode-se-lhes oferecer um “ambiente estável e forte, com assistência e amor
pessoais e doses crescentes de liberdade. De fato, sem esta segunda alternativa, a primeira
(psicoterapia pessoal) não terá grande possibilidade de êxito” (DWW, 1990).
48
Estes versos colocam a questão da privação inicial (“já de saída a minha estrada
entortou”), a falta de um “ambiente facilitador” ou de uma “mãe suficientemente boa” (“um
anjo safado”) e, ao mesmo tempo, a esperança (“mas vou até o fim”), elementos
constituintes do que DWW descreveu como tendência anti-social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Janeiro: Imago.
GREEN, A. (1990) Conferências brasileiras: metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago.
HOLLANDA, C. B. (1989) Letra e Música. São Paulo: Cia das Letras.
OUTEIRAL, J. (1991) Distúrbios de conduta na adolescência. In: MAAKAROUN, M. et alli. Tratado da
adolescência. Rio de Janeiro: Cultura Médica. Pp. 494-591.
OUTEIRAL, J. & GRAÑA, R. (1991) Donald Winnicott: estudos. Porto Alegre: Artes Médicas.
WINNICOTT, D. (1965). The maturational process and the faciliting enviroment. London: Hogart Press.
WINNICOTT, D. (1975). Thorough paediatrics to psycho-analysis. London: Hogart Press.
WINNICOTT, D. (1965). Playing and Reality. London: Hogart Press.
49
CAPÍTULO 5
José Outeiral
Cleon Cerezer
Muitos de nós ficamos nos perguntando porque a violência parece estar aumentando a cada
dia que passa e qual a responsabilidade dos adultos na criação de seus filhos com relação a
isso. Porque umas das primeiras causas de morte na adolescência, no Brasil, é homicídio?
Porque nas escolas norte-americanas, jovens matam outros jovens com verdadeiros arsenais
bélicos, aparentemente por motivos banais. Ou então, porque encontramos, cada vez mais
freqüentemente, armas nas mãos de crianças e adolescentes nas salas de aula. A briguinha
da saída, o “- te pego na saída!” (frase característica de ameaça de brigas na escola) virou
“- te mato na saída!”, sendo que alguns nem esperam o momento da saída, enfrentam
colegas, professores, diretores e funcionários, com suas “destruidoras ameaças” a qualquer
momento. Então vem a tona uma questão bastante suscitada atualmente: “agressividade e
limites”.
formulação clássica de que o encontro com o "objeto" é que desencadeia a agressão, para
Donald Winnicott a agressão é que cria a exterioridade. E, podemos dizer com ele dentro de
uma concepção paradoxal, que a capacidade de agressão libidinal conduz à criatividade e
ao encontro do "outro" (mãe, família e sociedade) e do "princípio de realidade". Tommasi
(1997) pensando sobre o conceito de agressividade na obra de Winnicott diz:
“...o ser humano não é agressivo em sua origem, a qualidade destrutiva é
simplesmente um sintoma do estar vivo, não é o princípio de uma não-
unidade, é uma etapa do desenvolvimento. É a chamada destrutividade
primária, que consiste em um modo de preservar a unidade sem riscos (é um
estado de excitação e não de frustração)”.
Neste sentido, para Winnicott, a "agressão" não tem intencionalidade no sentido de ira, ódio
ou violência e se encontra ligada, desta maneira ao "amor instintivo". Ele considera,
entretanto, que se este "gesto agressivo" não encontrar o "objeto" (ou a mãe, ou um limite)
que o acolha, esta "falha ambiental" resultará, aí sim, na agressividade se tornando cada vez
mais “intensa e destrutiva, conseqüente à frustração”, resultando em violência. Esta
compreensão é uma maneira de pensar "limite" como um gesto necessário e imprescindível
para evitar a violência e ajudar a criança (e o adolescente) a integrar a agressão em seu
desenvolvimento normal.
A graduação do quantum de agressão é que vai nos oferecer um olhar em que nível esse “ir
de encontro ao outro” se processa. Necessitamos de uma quantidade ótima de agressão para
conviver com os “outros” diariamente, por exemplo, ao sairmos para trabalhar cedo numa
manhã fria de inverno, temos de ativar nosso potencial agressivo para romper com a força
da inércia. Ultrapassando essa quantidade ótima e “suficiente” para buscar o contato com o
outro, o gesto agressivo tende a aumentar sua intensidade. Quando não encontra o outro, o
sujeito tende a aumentar a quantidade dos gestos agressivos na direção desse outro,
buscando continência para esse movimento. Se não encontra esse outro (mãe/continente),
tornar-se-á então descontrolado, desesperado, desamparado, por fim, violento.
A cultura ocidental, judaico-cristã, com sua ênfase na culpa, toma a agressão como se esta
fora um "pecado original" e não como um elemento fundamental para o desenvolvimento
da personalidade normal. Donald Winnicott (Winnicott, 1964)escreve: "...em resumo, a
agressão tem dois significados. Por um lado, constitui direta ou indiretamente uma reação
à frustração. Por outro lado, é uma das muitas fontes de energia de um indivíduo.
51
Acreditamos que esta longa citação se justifica pela clareza que explicita questões
importantes como: 1) as raízes da agressão no desenvolvimento normal e 2) o papel da mãe,
ao compreender e "sobreviver" aos movimentos "agressivos" de seu bebê. Queremos, desde
logo, deixar claro que todos nós, no quotidiano de nossas relações, funcionamos, por vezes
(na escola, por exemplo, como alunos ou professores), dentro destes padrões pretéritos.
Alicia Fernandez discutindo sobre o papel fundamental do professor no processo de
aprendizagem salienta, inicialmente, que é condição sine qua non o reconhecimento da
importância da figura do professor na construção das subjetividades dos seres humanos, e
por ocupar um papel tão estruturante como este é que tem de dar-se conta que os atos
agressivos dos alunos dirigidos a ele necessitam de significado, pois se “... frente a um ato
agressivo dirigido a minha pessoa, não consigo usar minha capacidade criativa para
situar-me frente a esta situação e poder no mínimo pensa-la (não digo resolvê-la), sou eu
52
quem estou agredindo a mim mesma, mais do que o aluno que está me agredindo...”
(Fernandez, 1992).
Não esqueçamos que ao falar em “figura”, em “papel”, estamos nos remetendo ao caráter
simbólico das relações entre as pessoas. Na relação professor-aluno, se o professor não
conseguir tomar a distância necessária das situações que o fazem sofrer, percebendo a
diferenciação entre o que é fruto do imaginário e o que é a representação simbólica dessa
relação o que acontece é, conforme Fernandez (1992), “... considerar a situação onde há
uma criança e uma professora agredida como se elas fossem únicas no mundo e sempre
houvessem vivido isoladas, as duas sozinhas em uma ilha, o que significa não poder situar-
se em um nível simbólico”.
O distanciamento necessário frente a uma situação de agressão vivida pelo professor é um
desafio e, ao mesmo tempo, uma estratégia a serviço do trabalho de professor. Ao conseguir
questionar-se e talvez se responder acerca de, por exemplo, “- A quem esta criança agride
quando me agride?” Pois tomar essa agressão como direta, como se fosse a pessoa do
professor é persistir no nível imaginário sem conseguir simbolizar (nível simbólico) o que
está presente (explicita e implicitamente) na situação que se descortina naquele momento.
Simbolizar, neste caso, é poder descentrar-se, é permitir-se pensar que este aluno está
agredindo, através da pessoa do professor, outras situações de sua vida, ocorre uma
transferência para este campo de relação outras vivências de seu cotidiano.
Podemos pensar, então, que “agressividade”, impulso mediatizado, está situada no nível
simbólico, enquanto que a “agressão”, em geral, que não está mediatizada, não inclui o
caráter simbólico, é o ato puro. “A agressividade faz parte do impulso de conhecer e a
agressão, ao contrário, dificulta a possibilidade de pensar. A agressividade pode estar à
serviço do da autoria do pensamento. A agressão pode estar a serviço da destruição do
pensamento” (Fernandez, 1992).
Masud Khan (1988), um psicanalista nascido na Índia e formado na Inglaterra, o que lhe
permitiu perceber aspectos transculturais do desenvolvimento, escreve sobre esta questão:
"...Ao examinar os três livros das religiões monoteístas - o Antigo
Testamento, a Bíblia e o Alcorão - somos surpreendidas pelo fato de que a
transgressão encontra-se nos primórdios tanto do caráter individual como
das culturas coletivas. Expandindo esta idéia, percebemos que não há,
naturalmente, transgressão sem que haja uma interdição. No final das
contas, tendo colocado um casal humano no paraíso o sagrado Senhor
proibiu-os de comer determinado fruto, seguindo-se a inevitável
transgressão. Observamos também que a transgressão quase sempre é em
caráter e acontecimento sexual. Como conseqüência nasceram Abel e Caim.
Lutaram pelo poder e Caim matou seu irmão Abel. Portanto, desde os
primórdios da vida humana, de acordo com estas três escrituras,
transgressão, sexo e assassinato formam uma curiosa trindade... A principal
tarefa que se propõe cada religião monoteísta é fazer com que a pessoa
assuma a responsabilidade por sua transgressão, o que só é possível se ela
despertar para a natureza desta (a transgressão)...".
Os professores “sabem” que o ato aprender é transgressor por si mesmo; rompe-se com um
conhecimento para adotar outro. Quantas vezes acontecem situações em que a
“transgressão” esta presente na sala de aula? Preocupante se não ocorressem. Até mesmo
impossível de se pensar o ato de aprender como desvinculado do ato de transgredir.
(Bick, 1987; Anzieu, 1988). É com a "preocupação materna primária" (Winnicott, 1954), ou
com a "função continente", que este "limite" é oferecido ao bebê. Posteriormente, estando
estabelecida esta relação fusional e/ou simbiótica entre a mãe e o bebê (FIGURA 1), cabe
ao pai (ou a própria mãe exercendo uma função paterna) romper esta "unidade mãe-bebê"
(FIGURA 2) e constituir uma estrutura triangular (ou Edípica, seguindo a Sigmund Freud).
Mãe Bebê
Pai
Mãe Bebê
O bebê tem seu nascimento psicológico e na cultura realizado pelo pai ou pelo
representante simbólico deste. No momento que exerce esta função de corte e interdição, o
pai exerce o que chamamos de função paterna. Trataremos mais detalhadamente sobre este
tema no capítulo sobre “função paterna .
Queremos, fundamentalmente, enfatizar nas colocações anteriores que a noção e a
internalização (como parte de uma estrutura psíquica, o super-eu) de "limites" é: (1)
estabelecida nas primeiras etapas (ou primeiros anos) do desenvolvimento e (2) que é uma
função primordialmente da família. Não queremos dizer com estas afirmações,
absolutamente, que a escola e a sociedade não tenham responsabilidade neste processo, mas
sim que é necessário que tenhamos uma idéia de onde estão as raízes, pois quando um
“adulto” não consegue oferecer um ambiente continente a uma criança seria semelhante a
vermos um espetáculo teatral sem cenário, sem contexto, sem platéia. Por mais brilhante
que seja o ator, em algum momento perceberá que não está sendo compreendido como
deseja, sentir-se-á desamparado. O bebê que não recebe continência no seu ambiente vai
experimentar uma vivência de desamparo e pode ficar traumatizado com isso, o que irá
56
depender da intensidade afetiva dessas vivências. Poderá tornar-se uma pessoa que se
relaciona com os outros desistindo fácil de suas ambições ou agredindo destrutivamente
para obter satisfação de seus impulsos, além outras possíveis desadaptações ao longo da
vida destes indivíduos.
Falar em adultos, é falar também dos diversos contextos aos quais a criança está inserida: é,
na realidade, o mundo dos adultos o responsável por tornar um “ser” em “ser humano”.
Metaforicamente como um leque abrindo-se, a criança relaciona-se com os pais
(cuidadores) e familiares, num primeiro momento, a seguir com o ambiente escolar e, por
fim, na adolescência, abre-se totalmente para a cultura e sociedade onde estiver inserida.
A adolescência é um período de transformações, um momento muito criativo. Uma nova
possibilidade de pensamento conquistada (pensamento formal - que oportuniza raciocinar
sobre hipóteses e elaborar conclusões a partir delas) começa a ser exercitada pelo
adolescente em seu dia-a-dia, propiciando-lhe um novo tipo de relação com o mundo
adulto. Para o adolescente é fácil encontrar soluções para os problemas da humanidade,
muito embora a maioria delas não seja exeqüível na prática.
O caráter “mágico” que se estabelece entre o “pensado” e o “exeqüível” cria um espaço
importante para desenvolver a criatividade. Inicialmente, o potencial criativo do
adolescente mostra-se através de uma atividade impulsiva, difusa e caótica (visto da ótica
dos adultos), mas perfeitamente normal. Aos poucos, uma atividade criativa vai assumindo
um perfil mais definido, mais integrado e produtivo. Criatividade na adolescência articula-
se necessariamente com a noção de limites. A necessidade de um ambiente propício capaz
de suportar as tensões dos momentos iniciais deste processo criativo peculiar, tanto na
família como na escola é que demarcam esse período de transição.
Limite é uma palavra que tem, muitas vezes, uma conotação negativa, ligada erroneamente
à “repressão”, “proibição”, “interdição”, etc.* Limite, retomando, significa a criação de um
tempo e um espaço protegido dentro do qual a criança e o adolescente poderá exercer sua
espontaneidade e criatividade sem receios e riscos. Não existe conteúdo organizado sem um
continente que lhe dê forma.
*
Embora saibamos que repressão no sentido usado em Psicanálise também significa um elemento
estruturante da personalidade.
57
Queremos apresentar alguns exemplos para ilustrar e dar "uma clínica" ao pensamento que
estamos desenvolvendo.
Imaginemos, então, uma situação quotidiana para explicitar melhor estas questões: uma
criança de três ou quatro anos pega um pincel e na parede da sala de sua casa desenha um
monigote (FIGURA 3) e diz, com júbilo, para os pais que a tudo assistem: "esta é a
mamãe!" Temos agora não mais um, mas dois problemas...
(A) Em primeiro lugar a criança através de seu desenho revela seu desenvolvimento
psicomotor e perceptivo e com sua fala comunica uma escolha amorosa, revelando aos pais
(e ao mundo!) seu crescimento e desenvolvimento. Quando fecha o círculo que representa a
cabeça do monigote, por exemplo, a criança não só exercita sua motricidade, como já
vimos, como também simboliza as primeiras noções de dentro e fora, interno e externo, Eu
e o Outro, de conteúdo e continente: isto é, de “limites”. Ao realizar seu desenho da figura
humana, primeira representação de seu esquema corporal, a criança experimenta um
sentimento de júbilo, momento de satisfação, gratificação narcisista, experiências
fundamentais para a construção da auto-estima, espontaneidade e criatividade.
(B) Em segundo lugar, esta mesma criança com seu desenho “sujou” a parede da casa. Os
pais se defrontam, agora, com uma dificuldade importante: tolher este gesto espontâneo e
criativo e impedir o filho de continuar “a sujar” a parede da sala ou permitir que continue
desenhando “sem limites”? Eles terão a possibilidade de um amplo leque de atitudes, das
quais poderemos considerar dois pólos:
O (1) primeiro pólo é colocar “limites” no sentido de tolher o gesto espontâneo (Winnicott,
1971) da criança. Conforme a “sofisticação” dos pais eles poderão fazer isto de várias
maneiras: a) simplesmente nem perceberão o que a criança fez; b) poderão, com violência,
tirar o pincel da mão da criança e dar-lhe algumas palmadas ou ameaçar surrá-la se ela
repetir “de novo” este gesto de “sujar” a parede; c) se forem mais “cultos” poderão utilizar
a culpa (instrumento bastante comum na civilização judaico-cristã) e mandar a criança para
a “cadeirinha-de-pensar” ou para o quarto até que ela reflita e se “arrependa da bobagem
que fez” e então deve pedir perdão/desculpas para os pais e prometer “não sujar mais as
paredes”, ou seja, não “pecar mais”; d) ou se forem ainda “mais polidos, informados e sutis,
(FIGURA 4) simplesmente (e mais não será necessário) dirão a criança que no seu desenho
“faltam” os cabelos da mamãe, que a mamãe tem sobrancelhas, cílios, pupilas, que “faltam”
58
os dedos das mãos e que, a propósito, são cinco dedos, que a mamãe usa vestido, que ela
“esqueceu” de fazer as orelhas da mamãe, que ela “esqueceu” de desenhar também o chão e
a linha de terra “como as professoras gostam, pois revela que a criança é segura!”... enfim,
desqualificarão o gesto infantil e mostrarão que seu desenho “é uma droga!”. A criança
pensará, então, que se mostrar seu desenvolvimento e se “revelar” é muito perigoso, ou
algo pecaminoso que deve necessitar de perdão e que pode levar ao castigo e que o desenho
que imaginava ser “ótimo” nada mais é que “porcaria”. Ela tratará, assim, de não ser
espontânea e criativa (e sua auto-estima ficará muito baixa), pois isto significa riscos sérios.
Como sabemos muito bem a auto-estima, a criatividade e a espontaneidade são algumas das
funções vinculadas à pulsão epistemofílica, a pulsão vinculada a busca do conhecimento e a
curiosidade (Outeiral, 1982).
Donald Winnicott descreveu esta experiência no âmbito de seu conceito de “falso self”, que
é uma defesa altamente organizada para proteger “o verdadeiro self” das falhas e instruções
ambientais. Todos nós conhecemos pessoas que não saem de casa antes de perguntar a
alguém se estão bem vestidas e se a pessoa indagada mostra qualquer dúvida provoca uma
grande ansiedade no outro, que corre a experimentar várias indumentárias, com grande
ansiedade e sem poder decidir...
O (2) segundo pólo é colocar “limites” no sentido do ambiente (família, escola, etc.) ser um
facilitador que ofereça proteção (para si mesmo e para os outros) ao viver criativo que
envolve, inclusive, agressão e transgressões. Os pais, então, poderão elogiar o desenho, mas
explicar que a parede da sala não é o melhor local para desenhar, pois é um espaço
compartido por todos, mas que na parede de seu quarto, ou em um quadro que será posto lá,
ou em folhas de papel que a criança receberá (assim como algumas canetas coloridas...)
poderá fazer seus desenhos. Os pais, inclusive, passarão no quarto para ver e elogiar os
trabalhos e (quem sabe?) um dia colocarão uma folha com o desenho na parede da sala.
Este é o “limite” a que me refiro: presença, proteção, admiração e estímulo ao gesto
espontâneo e criativo do filho, do aluno...
Não é incomum encontrarmos referências de cuidadores em relação aos seus filhos e
professores em relação aos seus alunos de dizerem que “deram” limites a eles, no sentido
de terem escolhido o castigo correto para determinada situação enfrentada, sem
preocuparem-se se tal atitude foi tolhedor do potencial criativo, da espontaneidade, da
59
pela realidade que se apresenta a nós e da forma como ela se apresenta. O gesto na direção
do outro (agressão) busca acolhimento e sentido. Cabe ao adulto dar sentido aos gestos
infantis, vendo limite como estabelecimento de um tempo e um espaço, onde, através do
viver criativo, a criança e o adolescente possam experienciar seu desenvolvimento e sua
atividade pulsional (amor e agressão) em segurança para si mesmo e para com os outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPÍTULO 6
José Outeiral
Cleon Cerezer
Há um caminho a ser percorrido desde o tornar-se pai até a “função pai” ou “função
paterna”. O exercício desta função nos diversos contextos, aos quais nos inserimos, é ao
que nos propomos aqui discutir, ou seja, a importância da função paterna no
desenvolvimento da criança e do adolescente.
É importante pensarmos que a palavra pai denota relação, pois pensar em pai significa
pressupor uma mãe e um filho. Assim como falar mãe é falar de pai e filho. Ou falar em
filho é automaticamente falar de pai e mãe. É uma “ação entre” pessoas que, nomeadas
dessa forma, desenpenham papéis e funções. Portanto, falar de pai e mãe é também
falarmos de funções paterna e materna, que residem nas nossas representações e
significações internas de tais figuras.
O "pai" como função está ligado ao mundo das representações simbólicas internalizadas em
cada um de nós. A função paterna é em nível simbólico e independe da questão gênero, pois
provém das identificações e introjeções inauguradas na infância.
Antes de falarmos do pai como função ou da função paterna, do nível simbólico, cabe
ressaltar que o "pai" também envolve outras duas dimensões: a do real e do imaginário.
O pai real poderia ser novamente redimensionado em outros dois aspectos: o pai genitor e o
pai presencial, que necessariamente não precisa ser o mesmo. O pai genitor, como parte do
real, é aquele que emprestou seu código genético para, junto com a mãe, dar origem a um
novo ser da mesma espécie. É real porque a criança gerada carregará consigo, por toda
vida, o código genético desse pai genitor ou biológico. Um homem e uma mulher servem
de instrumentos reais ao imperativo dos genes em perpetuarem-se. Neste momento talvez
surge a primeira e constante dúvida para o pai, a qual é fundamentada na máxima de que
“pater semper incertus”. Cabe a esse pai conviver e tolerar essa dúvida inerente, pois
concretamente o filho desenvolve-se no corpo da mãe. Na história da paternidade (Dupuis,
62
O pai da dimensão do simbólico é o pai que temos introjetado dentro de nós, que foi
constituído a partir de nossas vivências desde as identificações primárias na nossa origem
até as identificações secundárias no período de maior socialização infantil. Falar em pai
simbólico, introjetado, é falar da função paterna existente em cada um de nós.
Se existe um pai, necessariamente existe uma mãe. Com a função paterna não poderia ser
diferente, para falarmos dela, é importante falar um pouco também sobre função materna. A
qual tem a ver também com os registros internalizados dos momentos iniciais de nossas
vidas, nos quais, como bebês, precisamos de uma vivência de intensa fusão (simbiose
afetiva) com a mãe (Figura 1). Na espécie humana, a dependência da mãe, em nível
biológico e psicológico, é fundamental para tornar-se possível o desenvolvimento
(sobrevivência) do recém nascido. Enquanto que, em outras espécies de mamíferos
podemos observar que muitos indivíduos precisam de horas ou dias para independizarem-
se, na espécie humana, um indivíduo, por exemplo, leva anos para ser capaz de buscar seu
próprio alimento. A dependência da mãe, ou melhor, dessa função de cuidados maternos é
total na espécie humana.
Mãe Bebê
Neste momento em que esta dupla mãe-bebê está unida pela uma simbiose inicial da vida
humana, a função do pai real presente nesta relação é de fazer a maternagem dessa unidade
mãe-bebê, dar “colo” para que mãe e bebê desenvolvam-se afetivamente protegidos. O pai,
neste momento, ativa e exerce uma função materna da dupla (Figura 2). Que não soe
estranho falar em função materna do pai, poderíamos até brincar com a metáfora bíblica da
história da criação, na qual Adão pode ser visto como a “mãe” de Eva, pois a gestou de sua
costela, isto refere-se a idéia de função materna do homem.
64
Mãe
Bebê
Pai
Mãe Bebê
A possibilidade de maior ou menor inserção do pai (mundo externo) como interditor dessa
relação inicial mãe-bebê desencadeia também um outro processo, que está associado neste
momento de “corte”, Margareth Mahler (Mahler,1982) chamou tal situação de processo de
separação-individuação. Mãe e bebê terão de tolerar que tanto um como o outro conviva
1
Ser criador é aquele que provoca algo e não sabe no que vai dar.
65
com outras pessoas em outras situações. Cabe a mãe sugerir o pai ao seu filho como o
portador da lei mantida em seu nome e como o outro inatingível pronto para vir do real.
Não só falará deste pai como irá demonstrar seu amor por ele. Alguma dificuldade de
separação neste momento sempre será observada nos dois pólos da relação, irá depender da
intensidade com que isso acontece, para mãe, por exemplo, tolerar essa separação simbólica
vai depender também de como ela vivenciou tal ansiedade com sua mãe original e com esta
mãe internalizada está representada e significada dentro dela.
A função paterna de corte simbólico da relação mãe-bebê é o que provoca o chamado
nascimento psicológico da criança (Mahler). Com essa interdição, o pai trinifica a díade e
introduz simbolicamente o mundo nas representações e significações do seu filho (This,
1987).
O pai, interposto entre mãe e filho, apresenta o mundo de outra forma ao seu bebê. Uma
diferença que plasticamente elucida muito bem isso é a maneira como pai e mãe geralmente
seguram o bebê. A mãe segura o bebê, geralmente, no colo, com a criança na posição
horizontal, e com o seu rosto olhando para o rosto do seu bebê (Figura 5), enquanto que o
pai posiciona seu filho na vertical,com o rosto voltado para o mundo e fazendo menção de
jogá-lo à frente (Figura 6).
Figura 5 Figura 6
A função do pai é de nomear, marcar sua presença como representatnte da lei que garante
ao infante o acesso ao desejo. Paradoxalmente esta é uma proibição que permite. Com
66
relação ao desejo de aprender, por exemplo, o professor, desde que revestido por seu aluno
de uma importância especial, tem um poder de influência sobre o aluno que, por sua vez,
colocará seu mestre como substituto de suas figuras parentais, ou seja, exercer funções e
representar as ordens materna e paterna. Quando um professor separa a criança de sua mãe
na chegada a escola e estimula que esta brinque com os colegas de turma, está exercendo
função paterna, pois corta simbolicamente a relação da dupla e estimula a inserção do
indivíduo no mundo. As ordens materna e paterna, segundo Bollas (2000), referem-se
simultaneamente a duas dimensões do inconsciente. Ele diz: “... concebo o inconsciente
recalcado primariamente funcionando de acordo com a ordem materna, cuja ‘lei’ básica,
se assim o quisermos, é a da recepção. O inconsciente recalcado secundariamente é o que
funciona de acordo com a ordem paterna e segue a lei do recalque. Convidar, repelir. Sim,
não...”
Não é incomum a pergunta se o fato da mãe exercer a função de pai e mãe provoca alguma
carência paterna na criança. Poderíamos pensar que é uma sobrecarga de funções para uma
pessoa só, e o êxito disso vai depender de como essa mãe vivenciou suas relações originais
com seu pai e sua mãe. Talvez não haja carência de função paterna (simbólica), mas
carência de conviver com um sujeito masculino para identificações ligadas a figura de
gênero ou estabelecer as diferenças. Este homem não precisa ser necessariamente um
companheiro da mãe, pode ser um tio, avô, padrinho, amigo, professor...
Portanto, independente a qual gênero pertencemos, teremos internalizados dentro de nós
uma mãe e um pai simbólicos, que manifestam-se em nossos atos como funções materna e
paterna. A partir das vivências infantis constituímos um corpus simbólico do que
representam e significam pai e mãe, Raquel Z. Goldstein (1995) chamou isso de
“transcender a imagem para captar a função”. É a partir das relações com o pai real que
constituímos um pai simbólico e, por conseguinte, a função paterna. Do pai nasce a função
paterna. O exemplo máximo disso é quando o pai real presencial morre e após o processo
de luto pela perda deste conseguimos percebê-lo em nossos atos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUPUIS, J. D. Em nome do pai: uma história da paternidade. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
GOLDSTEIN, R. Z. And then... Why Lacan? Lima: Fondo Editorial – Biblioteca Peruana de Psicoanalisis,
1995.
MAHLER, M. O processo de separação-individuação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
THIS, B. O pai: ato de nascimento. Trad. Mário Fleig e Luiz Carlos Petry. Porto Alegre: Artes Médicas,
1987.
68
CAPÍTULO 7
Cleon Cerezer
pedagógica pelo saber analítico; c) trata-se de utilizar esse saber para uma exploração do
campo pedagógico que leve à produção de novos conhecimentos sobre o dito campo;
d) trata-se, enfim, de ser analista no próprio ato de pesquisa e de escuta do que se passa no
campo. Os dois últimos refletem uma abordagem que utiliza a interpretação analítica para o
conhecimento, e podem ser conceitualizados em termos de leitura e de decifragem. A
unidade dessas duas reside na consideração do inconsciente tanto na atividade e teoria
pedagógicas, quanto na pesquisa fundamental (FILLOUX, 1999, p.10).
Desta psicanálise que escuta o discurso e lê a realidade que buscamos como possibilidade
de articulação no cotidiano da escola. Pensemos, hipoteticamente, numa situação de
“tensão” entre alunos e professores de uma 6a série do ensino fundamental de uma escola,
onde a “escola” queixava-se de uma “turma problema”, alunos “agressivos, indisciplinados,
irresponsáveis, desafiadores e com uma sexualidade aguçada”. Os professores, além de
compartilharem com a visão da escola, diziam estar cansando-se rapidamente quando
entravam na turma, sentindo-se impotentes diante da realidade apresentada e, segundo eles:
“perdidos, sem saber o que fazer, imobilizados em sua capacidade de pensar”. Vejamos, por
exemplo, a seguinte situação: na aula, o professor argumenta com seu aluno que sem aquele
conhecimento, que está sendo ensinado, ele não vai ser nada na vida ou não vai conseguir
um emprego, etc... E o aluno lhe responde, com propriedade, que não precisa daquilo para
ser alguém, pois seu pai é pedreiro e tem uma casa de dois pisos enquanto o professor vive
de aluguel. O professor estudou, o pai não. A professor se vê num impasse e se cala, o aluno
triunfa. Não estou fazendo uma epopéia ao não-conhecimento, simplesmente ofereço um
exemplo prático de uma realidade paradoxal e, porque não, paralisante. Na resposta do
aluno o professor é levado a sentir o mal-estar que é viver na atualidade espremido entre
seus conceitos, sua formação e a prática do ato educativo no cotidiano da sala de aula.
Nas entrevistas de debate, realizada com os professores, a tentativa empírica foi de buscar
significados, explicações, hipóteses para o que estaria acontecendo naquela realidade
escolar, subjetivando, assim, a experiência vivida, ou seja, criar estratégias de pensamento
para significar uma vivência. “Não para interpretar os problemas sociais a partir de uma
subjetividade (...) mas para pensar como se produz a subjetividade do sujeito a partir do
ordenamento dos sistemas simbólicos transmitidos pelo social” (SCHÄFFER, 1999, p.35).
Talvez tenha apenas feito a aplicação técnica de uma ciência, diferentemente do que deve
70
A escuta de uma fala ou de um discurso é o que nos possibilita uma leitura subjetiva
daquilo que está sendo expressado. Se podemos nos arriscar a fazer uma escuta que
chamamos de psicanalítica, nossa leitura igualmente será de cunho psicanalítico, ou seja,
“uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo
e do escolar (...) estará produzindo uma inflexão na ação do psicanalista e o
levará a uma prática que não coincide mais com uma clínica psicanalítica
‘ortodoxa’, pois ele terá de se movimentar o suficiente para ouvir pais e
escola. Isto amplia o campo de ação do psicanalista, que passa a incluir a
instituição escolar como lugar de escuta” (KUPFER, 2000, p. 34).
Segundo ALMEIDA (1999, p. 68), cabe ao educador sustentar a lei simbólica do pai como
função, ou seja, “a condição de suportar o fracasso constitutivo do ato educativo”, pois o
impossível da educação, como dizia Freud, tem haver com os ideais educativos, os quais
irão se confrontar, sempre, com algo “ineducável” do sujeito. A função paterna 2 de corte
simbólico das relações iniciais com a mãe pode também ser vislumbrada na relação do
professor/educador com seu aluno, é através do corte simbólico provocado pelo professor
que o aluno rompe com conhecimentos adquiridos e busca construir novos. O educador tem
2
Ver capítulo específico sobre esse tema
73
O ponto importante das discussões em torno do exemplo trazido pela professora sobre irem
a palestra ou fazer a prova está no professor levar a turma a pensar e significar seu ato, para
que este não seja um simples conluio entre professor e aluno para não estarem na sala de
aula e nem pensarem os porquês dessa vontade. O fato da temática da palestra tratar de
pessoas portadoras de cuidados especiais e a necessidade de distanciamento do problema
dessas pessoas para que possamos ajudá-las fez com que fosse estabelecido um paralelo
com o ato educativo na escola regular, onde o professor também necessita de uma distância
ótima de seu aluno sem misturar-se, e alguns professores confessam que essa é uma tarefa
difícil, sentem uma necessidade concreta de ajudar, pois não conseguem precisar o valor
simbólico de seu trabalho, que é vivido inconscientemente como uma agudização do mal-
estar atual na sala de aula. Vejamos:
74
MA – É, mas a gente tem vontade de levar o aluno para dentro da casa da gente, e
a gente sabe que não dá certo, tem colegas que já fizeram e não recomendam para
ninguém... O ser humano é uma máquina muito complexa, para não conseguir se
misturar é dificíl.
Verônica – Eu misturo tudo, até choro junto com as mães, alunos...
MA – É ver o aluno como uma terceira pessoa. A gente já sai comprando coisas
para dar aos alunos, prendedor para as gurias...
MH – Cartela de tic-tac para prender o cabelo...Esses dias eu dei uns para uma
menina e no outro dia ela veio com todos no cabelo.
Psic. – Será que é dessa forma que vocês pensam em ficar na cabeça dos alunos?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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COLÓQUIO DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICANALÍTICAS E EDUCACIONAIS
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FILLOUX, J. C. Psicanálise e pedagogia ou: sobre considerar o inconsciente no campo pedagógico. In:
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FREUD, S. O interesse da psicanálise para as ciências não-psicológicas (Parte II). Edição Eletrônica
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KUPFER, M. C. M. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.
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SCHÄFFER, M. Subjetividade e enunciação. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 24, n.1, p. 19-38,
jan/jun. 1999
76
CAPÍTULO 8
José Outeiral
Enunciado....
O enunciado básico desta bricollage é que vivemos um período onde a sociedade e a
cultura sofrem intensas mudanças e transformações de paradigmas e valores que incidem
poderosamente na existência dos adolescentes, criando um gap generacional, entre eles e
os adultos. Este período é denominado por alguns autores como pós-modernidade.
Definição
A pós-modernidade é um conceito multifacetado que chama a nossa atenção para um
conjunto de mudanças sociais e culturais profundas que estão acontecendo neste final do
século XX em muitas sociedades “avançadas”. Tudo está englobado: uma mudança
tecnológica acelerada, envolvendo as telecomunicações e o poder da informática, alterações
nas relações políticas, e o surgimento de movimentos sociais, especialmente os
relacionados com aspectos étnicos e raciais, ecológicos e de competição entre os sexos.
Mas a questão é ainda mais abrangente: estará a modernidade em si, como uma entidade
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Metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo.
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
lhe tenho horror
lhe faço amor.
-I-
A clínica do quotidiano nos permite constatar que, efetivamente, uma série de paradigmas e
valores de nossa Sociedade, circunstâncias que se mantiveram relativamente estáveis no
decurso de várias gerações que nos antecederam, estão sendo contestados, modificados e,
mesmo, substituídos por outros muito diferentes. Esta observação pode ser descrita como o
“advento” da condição pós-moderna (ou “... a lógica cultural do capitalismo tardio”,
como descreve F. Jamelson), ou seja, a etapa intermediária entre o “esgotamento” da
modernidade e o período que a irá suceder e que não sabemos, exatamente, como será.
Na sociedade humana (escrevem vários autores, como Bertrand Russel) desde os seus
primórdios, sempre foi assim: durante um certo espaço de tempo, às vezes, abrangendo
alguns séculos, uma série de elementos sociais, econômicos e culturais permanecem,
aparentemente, estáveis até que em um determinado momento, que poderá ocupar algumas
gerações, ocorre uma “ruptura”, surgindo momentos de instabilidade, incertezas e
mudanças bruscas, e após uma nova etapa se estabelece. Foi assim, por exemplo, ao final
do medievo, em torno dos séculos XV e XVI, quando a modernidade começou a se
estruturar.
Uma metáfora que costumo utilizar para dar uma maior nitidez ao que escrevo (valendo
sempre lembrar, com Goethe, que “...a nitidez é uma conveniente distribuição de luz e
sombra ...”, ou seja, que não pretendo “explicar tudo”) é o movimento das placas
tectônicas. Estas placas, que compõem a superfície terrestre, durante longos espaços de
tempo, aparentemente (embora estejam, na verdade, em constante movimento e produzindo
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um acúmulo de energia), parecem estar em repouso, até que o acúmulo de energia produz
movimentos perceptíveis a que denominamos terremotos e novas acomodações surgem
então. Não esqueçamos que nosso continente sul-americano era unido à África... Estas
novas acomodações darão lugar a novos terremotos e assim sucessivamente, num
movimento contínuo. Com o desenvolvimento da sociedade Humana acontece algo
parecido: a Idade Média, como comentei antes, foi “estável” durante alguns séculos,
ocorreu um “terremoto” durante algumas gerações, e se estabeleceu, então, a Idade
Moderna.
É possível, pensam alguns autores, que estejamos vivendo um “ terremoto “ – a condição
pós-moderna - , período de transição entre a modernidade e o que a irá suceder... logo
surge a pergunta sobre que fatores provocam essas “mudanças”? Voltemos, por breves
momentos e com uma lente de maior aumento, até à Idade Média, caracterizada,
especialmente, pela estrutura feudal e por uma visão de mundo teológica. O
desenvolvimento do comércio trazido pelas grandes navegações, o avanço do conhecimento
científico sobre a interpretação teológica do mundo, o desenvolvimento das cidades e do
comércio (surgem os “ burgos “, as cidades, muitas vezes cidades-estado , e os “burgueses”,
uma nova classe social), a invenção da imprensa (a descoberta de J. Gutemberg –
1397/1468 - colocou o conhecimento obtido através dos livros e da Bíblia- a primeira
Bíblia foi impressa em 1454 -, em especial, ao alcance de muitos, o que antes era restrito ao
trabalho dos monges copistas e que permanecia na posse da Igreja, originando mudanças
das quais o livro de Humberto Eco, O nome da rosa , nos relata magnificamente), na
esteira desse processo surge a Reforma Protestante e a Contra-reforma, enfim, um sem
número de fatores sociais, econômicos e culturais se modificaram. Houve um esvaziamento
do medievo nos séculos XV, XVI e XVII e o nascimento e o desenvolvimento da
modernidade. A modernidade, que é representada, por exemplo, pelo ideário da Revolução
Francesa de 1779 - liberdade, igualdade e fraternidade – propiciou o surgimento da
revolução industrial, a noção de Estado Nacional , o respeito pelo cidadão e pelas leis
constitucionais, uma ênfase sobre a “razão” e no conhecimento cientifico, o
estabelecimento da “família burguesa”, configurando uma visão de mundo (explicitada por
filósofos como Spinoza, Descartes, Kant e Comte, entre outros) considerada como o
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Iluminismo, período das luzes, em oposição a agora chamada idade das trevas , a Idade
Média.
A Revolução Industrial, por exemplo, consolidou a modernidade e artistas a descreveram
com clareza. No plano religioso a Reforma desencadeada por Martim Lutero (não
esqueçamos que foi ele quem traduzindo e assim difundindo a Bíblia, com a possibilidade
oferecida pela invenção de Gutemberg, unificou o idioma Alemão) representou uma
transformação ao atingir a hegemonia da Igreja Católica e do papado romano, criando o
cenário para o tema que Max Weber explora em seu livro A ética protestante e o espírito
do capitalismo.
Neste período um novo conceito de família, a família burguesa, surge, como tão bem
descreve Ph. Ariés. A própria arquitetura doméstica se modifica, surgindo a idéia de
privacidade e, por exemplo, os quartos de dormir, o que não existia, praticamente, até
então: todos dormiam numa mesma peça, adultos, crianças e visitantes ocasionais,
próximos ao local de preparo das refeições, espaço aquecido. O crescimento das cidades
criou, também, a necessidade dos nomes-de-família, pois se nas pequenas aldeias todos se
conheciam e a genealogia era sabida pela coletividade, na cidade era necessário nomear a
família para dar identidade: o pescador passou a ter um nome de família e a se chamar
Johan Fisherman... ou o emigrante portugues, vindo para o Brasil no século XVIII,
chamado Manuel e habitante da pequena Vila dos Outeiros, região de outeiros – morros -
no norte de Portugal, quase na Galícia, passou a ser chamado de Manuel Outeiral ... O “al”
acrescido pela influência moura de quase 900 anos de domínio na península ibérica.
A passagem da Idade Média para a Idade Moderna não se realizou sem “traumas”, mas sim
através de uma “turbulência”, às vezes fraturas bruscas e outras uma suave découpage, que
envolveu, muitíssimas vezes, a violência: Nicolau Copérnico e Galileu Galilei são
exemplos desses tempos de mudança, quando ao afirmarem a teoria heliocentrica, com os
astros girando ao redor do sol, em oposição a crença da época de que todos os astros
giravam ao redor da terra, foram execrados por determinação do status quo ou do
establishment vigente (uso expressões em idiomas diferentes para marcar o texto, um
hipertexto, pois, como sabemos ou não, o latim foi o idioma da Idade Média, o francês da
Idade Moderna e o inglês é o da Pós-modernidade...). As idéias destes matemáticos e
astrônomos colocavam em risco os paradigmas e os valores da época e eles foram punidos,
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na verdade, na busca do poder em banir as novas idéias laicas e o espírito científico que
eles representavam e que colidiam com um modelo de interpretação teológico da vida e do
mundo (Gleiser, 1997).
- II –
W. Bion, psicanalista inglês, escreve sobre estes fenômenos sociais ao desenvolver os
conceitos de mudança catastrófica (que se superpõe ao que denominei de “terremoto” na
metáfora geológica) e do papel do místico. Como médico e psicanalista meu vértice de
observação dos fatos é, naturalmente, limitado: a complexidade destas questões exige, na
verdade, o concurso de várias áreas do conhecimento. Até agora me aventurei de maneira
arrogante, entre outros, na sociologia e na filosofia, elementos fora de meu quotidiano
médico, mas buscava preparar o caminho para poder escrever sobre minha prática,
articulando conceitos e buscando, se tiver engenho e sorte para tanto, fazer uma razoável
tessitura destes campos.
L. Grimberg (Grimberg, 1973 ) tece considerações sobre a mudança catastrófica, se
referindo ao campo psicanalítico, mas expressando idéias que se aplicam à sociedade como
um todo:
Mudança catatrófica é uma expressão escolhida por Bion para assinalar uma conjunção
constante de fatos, cuja realização pode encontrar-se em diversos campos; entre eles, a
mente, o grupo, a sessão psicanalítica e a sociedade. Os fatos a que se refere à conjunção
constante podem ser observados quando aparece uma idéia nova (...) a idéia nova contém,
para Bion, uma força potencialmente disruptiva que violenta, em maior ou menor grau, a
estrutura do campo em que se manifesta. Assim, um novo descobrimento violenta a
estrutura de uma teoria pré-existente (...) Referindo-se a fatos em particular, tal como
acontecem nos pequenos grupos terapêuticos, a idéia nova expressada numa interpretação
ou representada pela pessoa de um novo integrante, promove uma mudança na estrutura do
grupo. Uma estrutura se transforma em outra através de momentos de desorganização,
sofrimento e frustração; o crescimento estará em função dessas vicissitudes...
Pelo exposto, pensando com W. Bion, teremos que quando um conhecimento ( ou um fato
novo surge ), ele altera e transforma a estrutura de uma Sociedade, que não consegue mais
exercer uma função continente adequada para o que era considerado um conjunto de
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verdades ( paradigmas, valores, etc... ); nesse momento ocorre uma mudança catastrófica e
uma nova estrutura se estabelece. Uma outra concepção importante que nos oferece W.
Bion diz respeito ao que ele denomina o místico e a relação deste com o grupo. O místico
como o representante grupal de uma nova idéia ou concepção.
Vejamos, novamente, o que escreve L. Grimberg:
O indivíduo excepcional pode ser descrito de diferentes maneiras; pode-se chamá-lo de
gênio, místico ou messias. Bion utiliza, de preferência , o termo místico para referir-se aos
indivíduos excepcionais em qualquer campo, seja o científico, o religioso, o artístico ou
outro (...) O místico ou o gênio, portador de uma idéia nova é sempre disruptivo para o
grupo (...) de fato, todo gênio, místico ou messias será criativo e niilista, ambas as coisas
seguramente (...) desde que a origem de suas contribuições será seguramente destrutiva
de certas leis, convenções, cultura ou coerência de algum grupo...
Sugiro, seguindo essa linha de pensamento, que os adolescentes exercem ao longo de
muitos momentos históricos o papel do místico, promovendo mudanças catastróficas e
fazendo, assim, andar o carrossel da saga humana, a evolução de nossa sociedade. W. Bion,
inclusive, postulou em uma palestra que adolescência é um exemplo de turbulência
emocional, que ocorre quando uma criança que parecia calma, tranqüila, comportada e
dócil se torna agitada, contestadora e perturbadora. Em um dos capítulos deste livro
descrevi como os adolescentes, tanto por motivos internos (buscando, por exemplo,
externalizar ativamente na transformação social os processos internos de transformação
corporal que sofrem passivamente, realizando a transformação do passivo em ativo, como
sugere S. Freud ao descrever o par antitético passividade-atividade, ou na externalização
social da rivalidade resultante da re-edição edípica nesta etapa) e/ou externos (sentido
crítico social aguçado ao alcançar níveis abstratos de pensamento, ausência de
compromissos sociais como adultos, pais ou profissionais, etc.) é, historicamente, um dos
principais agentes de transformação social.
- III –
Embora utilize, obviamente, referenciais teóricos, quero dirigir minhas idéias pela clínica e
pelo quotidiano de minha prática, que representa mais de três décadas de atividade
psiquiátrica e clínica com crianças, adolescentes e suas famílias. Não tenho o intento de
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estar construindo um paper ou ser um scholar, mas sim o de estar buscando interlocutores
para discutir minhas idéias, ou a síntese de um conjunto de idéias que sou capaz de realizar
hoje. Procuro também uma linguagem, tanto quanto possível, que seja comum, distante do
jargão técnico habitual: se for possível, com esta linguagem com a qual nos relacionamos
no dia-a-dia e tão ao gosto de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico. Vale citar,
a propósito, um filósofo fundamental para a cultura contemporânea e, particularmente, para
a pós-modernidade que foi F. Nietzsche (Apud Souza, 1989):
Quem sabe o que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para
multidão, procura ser obscuro, pois a multidão toma por profundo aquilo que não vê: ela é
medrosa, hesita em entrar na água.
Retomemos alguns conceitos que nos serão úteis, embora referidos mais profundamente
nos capítulos iniciais. É bem conhecido que a adolescência é um período evolutivo onde
transformações bio-psico-sociais acontecem, determinando um momento de passagem do
conhecido mundo da infância ao tão desejado e temido mundo adulto. A adolescência é
caracterizada por inúmeros elementos, dos quais quero referir alguns: (1) a perda do corpo
infantil, dos pais da infância e da identidade infantil ; (2) da passagem do mundo
endogâmico ao universo exogâmico ; (3) da construção de novas identificações assim como
de desidentificações; (4) da resignificação das “ narrativas “ de self; (5) da reelaboração do
narcisismo; (6) da reorganização de novas estruturas e estados de mente; (7) da aquisição
de novos níveis operacionais de pensamento (do concreto ao abstrato) e de novos níveis de
comunicação (do não verbal ao verbal); (8) da apropriação do novo corpo; (9) do
recrudescimento das fantasias edípicas; (10) vivência de uma nova etapa do processo de
separação-individuação; (11) da construção de novos vínculos com os pais, caracterizados
por menor dependência e idealização; (12) da primazia da zona erótica genital; (13) da
busca de um objeto amoroso; (14) da definição da escolha profissional (15) do predomínio
do ideal de ego sobre o ego ideal ; enfim, de muitos outros aspectos que seria possível
seguir citando, mas, em síntese, da organização da identidade em seus aspectos sociais,
temporais e espaciais ( Aberastury & Knobel, 1971; Grimberg, 1971; Outeiral, 1982; 1992;
2000 ). Em vários trabalhos anteriores enfoquei diferentes aspectos deste momento
evolutivo. As transformações da adolescência ocasionam flutuações que se caracterizam
por momentos progressivos – onde predomina, entre outros aspectos, o processo
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ponto de vista, uma diminuição das atividades sexuais, a dessexualização das relações de
objeto e dos sentimentos (e, especialmente, a predominância da ternura sobre os desejos
sexuais), o aparecimento de sentimentos como o pudor ou a repugnância e de aspirações
morais e estéticas. Segundo a teoria psicanalítica, o período de latência tem sua origem no
declínio do complexo de Édipo; corresponde a uma intensificação do recalque – que tem
como efeito uma amnésia sobre os primeiros anos - a uma transformação dos
investimentos de objeto em identificações com os pais e a um desenvolvimento das
sublimações.
Considerando que minha conjectura anterior tenha algum sentido, poderemos imaginar o
que representa a excessiva exposição à sexualidade e ao erotismo genital a que são
submetidas as crianças, numa forma que configura um abuso, através da cultura; me refiro
por exemplo, aos meios de comunicação e a responsabilidade da família e da sociedade
neste processo. A abreviação do período de latência resulta em dificuldades que
repercurtirão, é evidente, em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no
desenvolvimento normal, tanto na área da conduta como nos processos afetivos e
cognitivos. Num contraponto à “invenção” da infância pela modernidade temos, hoje, a
“des-invenção” da infância pela pós-modernidade.
Não encontramos mais, com a mesma incidência, na clínica contemporânea, como
escrevem diversos autores (Outeiral, 2000), as clássicas histerias estudadas por S. Freud
mas, em seu lugar, detectamos quadros correlatos da “pós-modernidade”, como os
transtornos narcísicos, síndromes borderline (que Ch. Bollas em seu livro Hysteria define
como a expressão atual das “antigas” histerias ...), tendências anti-sociais, fobias,
transtorno de pânico, etc.... Se considerarmos os transtornos pela “abreviação” da infância
como “acontecimentos clínicos pós-modernos”, poderemos pensar que a velocidade e a
fragmentação, junto com outros elementos etiológicos, é verdade, configurariam como uma
síndrome do zapping, “a dificuldade de concentração e a necessidade de ficar passando de
um canal ao outro de televisão”, alguns dos transtornos vinculados ao déficit de atenção e à
hiperatividade...
- IV –
Quero, agora, convidar o leitor a compartir algumas observações, resultantes de três
décadas de trabalho clínico e de observações do quotidiano. Estas observações se dirigem a
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transformações sofridas pela família e pelos adolescentes nestes trinta últimos anos.
Recordemos a hipótese da metáfora geológica, a de que estamos vivendo o “terremoto” e
que este acontecimento envolve, habitualmente, duas ou três gerações , para
desenvolvermos nossas idéias...
Vejamos as transformações sofridas pela família, depois de muitas gerações com poucas
mudanças e uma longa (talvez alguns séculos) estabilidade.
(a) na década de setenta as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem
da família patriarcal para a família nuclear. Devemos considerar nesta mudança múltiplos
elementos, dos quais quero referir dois: (1) o crescimento rápido e desordenado dos centros
urbanos às custas de um intenso fluxo migratório vindo das zonas rurais (na década de
quarenta, no século XX, o Censo Demográfico do IBGE revelava que cerca de 30 % da
população vivia nas grandes cidades, enquanto 70% habitava as zonas rurais e pequenas
cidades, situação que se inverte na passagem para o século XXI quando 80% da população
habita nos centros urbanos maiores e apenas 20% nas zonas rurais) e (2) o ingresso da
mulher, a partir dos anos sessenta especialmente (legalmente até 1962 a mulher necessitava
da aprovação do marido para ter atividades fora do lar), no mercado de trabalho. A família
patriarcal, constituída por grupos familiares de vários graus de parentesco (avós, tios,
primos, etc), habitando espaços próximos e, às vezes, participantes de uma mesma
atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de proteção, no
caso de dificuldades por parte dos pais, assim como um número maior de modelos para
identificação (mais uniformes, coerentes e estáveis e pertencentes a uma mesma cultura).
Este grupo familiar é próprio das zonas rurais e dos pequenos vilarejos do interior. Com a
rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a família nuclear,
constituída por um casal (ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias
segundo o IBGE) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos,
isolados e solitários na multidão das grandes cidades e desenraizados de suas culturas.
Exatamente nesta década observamos que crianças e adolescentes passam a chamar de tios
os adultos em geral e os professores em particular . Estes novos tios, penso que, são assim
denominados por uma nostalgia pelo grupo familiar mais amplo e protetor: crianças e
adolescentes ( e seus pais ) em busca da família perdida. Paulo Freire não concordava com
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esta denominação, mas penso que, se nos anos setenta, os alunos chamavam professores de
tios, hoje os professores são convocados inclusive a exercer funções maternas e paternas.
(b) na década de oitenta as questões diziam respeito às novas configurações familiares:
famílias reconstituídas, com filhos de casamentos anteriores e do novo casamento, tendo
este fato social o reconhecimento com a lei do divórcio. Numa sala de aula, nos anos
cinquenta, poucas crianças tinham os pais separados, enquanto hoje um grande número vive
esta situação.
(c) na última década temos a possibilidade de uma mulher ter um filho sem relações
genitais com um homem, através da fertilização assistida: o desenvolvimento tecnológico
nos aporta novas estruturas familiares... Não uma “produção independente”, mas uma
gestação e um bebê sem ter acontecido uma relação genital e o pai “apenas um
desconhecido doador de esperma”...
A mulher obtém uma definitiva inserção no mercado de trabalho e o tempo com os filhos se
torna menor do que nas gerações anteriores. Creches, berçários e as escolas infantis se
tornam necessárias para compensar a ausência materna, e nem sempre são locais
adequados e às vezes a família não tem acesso a esses recursos. A função paterna é cada
vez mais inexistente nos grandes centros urbanos. É interessante ler o que Zuenir Ventura
escreve em seu livro Cidade Partida sobre esta questão. O autor descreve o Rio de Janeiro
de hoje e suas dificuldades e comenta o que segue, a propósito de um baile funk, onde duas
“galeras” começavam a brigar... Ari da Ilha, que estava presente, é um homem velho e
doente, mas um respeitado líder da comunidade, e intervém da seguinte maneira para
“acalmar” os ânimos ...
Ari da Ilha pegou o microfone, mandou parar o som e começou a falar. O discurso a
princípio foi todo de persuasão.
-Nós estamos aqui para nos divertir. É um baile de paz. Vocês têm que dar um bom
exemplo. Esse baile não pode ter tumulto.
Como um pai enérgico daqueles 2 mil jovens, foi aos poucos engrossando a mensagem,
mas mantendo o bom humor.
-Vocês conhecem nosso regulamento, não conhecem? Quem fizer coisa errada leva
palmada na bunda.
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Ficou claro até para mim que ele estava usando um eufemismo. Sem dúvida, palmada
queria dizer palmatória, um castigo muito usado em Lucas e que poderia até quebrar
mãos.
A ordem definitiva veio no final da fala:
- E vamos acabar com esse negócio de trenzinho. Isso dá confusão.
O que aconteceu ?
Ari da Ilha, velho e doente, mas respeitado, exerceu uma função paterna e restabeleceu a
ordem na festa !
Agora vejamos as mudanças que observo nos adolescentes, período que a Organização
Mundial da Saúde situa entre dez e vinte anos. Revisando os conceitos teremos que
puberdade corresponde aos processos biológicos e adolescência a fenômenos psico-sociais.
Nos anos setenta a criança se tornava púbere e após adolescência; nos anos 80, puberdade e
adolescência ocorrendo concomitantemente e na última década observo conduta
adolescente (namoro, contestação, etc.) em indivíduos ainda não púberes, antes dos dez
anos, com sete ou oito anos. Penso, inclusive, que o conceito de infância, como momento
evolutivo e com necessidades específicas, conceito estabelecido com o Iluminismo, sofre o
risco de sofrer profundas transformações: alguém terá escrito, em algum lugar, sobre o risco
de termos o fim da infância na cultura contemporânea.
Existem, é necessário ressaltar, ainda outros diferenciais como o ambiente socio-
econômico-cultural onde o adolescente se desenvolve. Nas classes sociais menos
favorecidas o processo adolescente começa e termina mais cedo, enquanto que nas classes
sociais mais favorecidas acontece também mais cedo, mas termina bem mais tarde.
Em décadas anteriores a criança (como nas sociedades primitivas), após breves rituais de
iniciação se tornava um adulto (Outeiral, 1998). Hoje a adolescência se alonga cada vez
mais, ocorrendo, inclusive, a adultescência, termo, veremos adiante, que designa o ideal de
ser adolescente para sempre, com adultos tendo condutas adolescentes e faltando padrões
adultos para os “verdadeiros” adolescentes se identificarem.
Concluindo, após várias gerações onde paradigmas e valores permaneciam estáveis temos,
hoje, uma sociedade em mudança, com rápidas transformações, numa alteração, por vezes,
frenética ou maníaca, onde a incerteza e a dúvida, nas famílias e nas escolas, são evidentes.
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- V–
Considerando que este conjunto de idéias seja verdadeiro, quais serão os paradigmas ou
valores que estão sendo contestados, modificados ou substituídos por outros?
Como adultos “ modernos “ ( pais, professores, etc. ) e adolescentes “ pós-modernos “ se
relacionam ?
Como lidar com, por exemplo, a circunstância de que a globalização, pela facilidade e
rapidez dos meios de comunicação, cria desejos e uma lógica cultural própria dos países
com um desenvolvimento capitalista avançado em crianças e adolescentes de um país que,
como o nosso, nem ingressou plenamente na modernidade? Como então, nós, adultos
“antigos”, posto que “modernos”, poderemos entender e nos comunicar com adolescentes
(inclusive os de periferia) que, por hipótese, querem um tênis de marca norte-americana e
um boné do The Lakers usados por adolescentes classe média alta de Boston e Chicago?
É difícil encontrarmos nos adolescentes de hoje uma continuidade com as experiências
adolescentes dos pais: por exemplo, o Pedrinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro
Lobato, típico adolescente da modernidade, honesto, respeitoso com os mais velhos,
nacionalista, integrado na família, reflexivo e preocupado com os fatos sociais e da
natureza, etc. O que encontramos, brinco, é um Pedrinho Skywalker, mistura complexa e
confusa do Pedrinho do Monteiro Lobato e Luke Skywalker, o adolescente do seriado
Guerra nas Estrelas de G. Lucas.
São muitas as perguntas e eu não tenho respostas: primeiro porque, é obvio, não tenho as
respostas e se, por acaso, as tivesse , não mataria uma boa pergunta com uma resposta,
como o filósofo Blanchot ensinou (A resposta é a desgraça da pergunta). Procuro, pois,
produzir inquietação e dúvida, reflexão e pensamento. Novamente quero buscar a ajuda de
duas citações de F. Nietzsche:
O que enlouquece é a certeza, não a dúvida.
É do caos que nasce uma estrela.
Como bons “modernos” e “iluministas”, nascidos em um país que tem como dístico do
pavilhão nacional a expressão Ordem e Progresso, vinda do positivismo do século XIX e
das primeiras décadas do século XX, obra de Augusto Comte, acreditamos que a dúvida e o
caos são indesejáveis e com isto perdemos a chance de descobrir que é também na
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ausência, na falta, na dúvida e no caos que surge o pensamento e a razão e não só na ordem
e na estabilidade.
- VI –
É necessário conceituar, o que não é tarefa fácil, modernidade e pós-modernidade. Para
tornar a tarefa menos insípida, vamos recorrer a alguns autores.
Dois filósofos, um brasileiro e outro francês, tentam dar conta da questão e escrevem:
A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre os
paradigmas da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência vão se
acumulando os sinais. E que, na falta de uma melhor designação, chamo de ciência pós-
moderna. B. Santos (Santos, 1989)
A que chamamos pós-modernidade? (...) Devo dizer que tenho uma certa dificuldade em
responder a esta questão (...) porque nunca compreendi completamente o que se queria
dizer quando se empregava o termo modernidade. M. Foucault (Apud Smart, 1993)
O nosso humorista maior, Millor Fernandes, também se aventura no tema:
Afinal, o que é pós-modernismo? O modernismo um pouco depois? Não, acho eu, mas o
próprio modernismo, apenas já velho e precisando mudar de nome. E o que é
modernismo? Arte conceitual, criações minimalistas, música decididamente anti-musical,
algaravias. Sinônimo daquilo que em tecnologia se chama progresso. Ambos, modernismo
e progresso, já sendo, isto é, já eram ... Millor Fernandes (Fernandes, 1994)
Como reconhecer o pós-moderno: se de algum modo você consegue definir se o quadro
está de cabeça para baixo ou não – é pintura pós-moderna./ Se você entende tão bem como
quando lê uma bula de hidropitiasinolfoteína – é literatura pós-moderna./ Se você vê, vira
e revira, e o sentido está no revirar e no não dito – é poesia pós-moderna./ Se você tem de
segurar a tampa enquanto faz xixi no vaso, é design pós-moderno./ Se você devolve ao
bombeiro hidráulico pensando que é uma ferramenta esquecida, e depois descobre que é
um presente do seu gatão – é escultura pós-moderna./ Se chove dentro – é arquitetura pós
moderna. / Se você fracassa porque procurava exatamente a anti-vitória – é filosofia pós-
moderna./ Se você pratica homossexualismo não por formação ou destinação biológica,
mas por experimentalismo sadomasoco-niilista – você é uma boneca pós-moderna e muito
da louca, bicho (a)! Millor Fernandes (Fernandes, 1994)
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Millor Fernades, como eu e muitos outros, é “ apenas “ um moderno e, talvez, por isso
tome esse viés, digamos, “ pouco deslumbrado “ para definir a pós-modernidade: ao
contrário do que talvez escreveriam alguns autores franceses .
O materialismo histórico nos ensina que as transformações que se operam nas sociedades e
nas culturas se dão através de um continuun progressivo, e somente após um certo grau de
acumulação quantitativa teremos uma alteração qualitativa, como pude expor com mais
detalhes antes. Este acúmulo de experiências, que determinam as alterações qualitativas,
são observados periodicamente na história da humanidade, ocasionando mudança nos
valores éticos e morais, na estética e na produção cultural, na estrutura e na dinâmica das
organizações sociais assim como na política, na concepção da família e nas relações entre
os homens. Como vimos, estas transformações que ocorrem na sociedade costumam
acontecer após alguns séculos de estabilidade.
Feathstone (Feathstone, 1995) considera, com razão, que o termo modernité foi introduzido
por Charles Baudelaire (1821-1867) para quem moderno significava um “senso de
novidade “. As sociedades modernas, para este “poeta maldito”, produziriam um desfile
incessante de mercadorias, edificações, modas, tipos sociais e movimentos culturais, todos
destinados a uma rápida substituição por outros, reforçando um sentido de transitoriedade
ao momento presente. O flâneur, nos espaços públicos das grandes cidades, era capaz de
vivenciar aquelas imagens e fragmentos caleidoscópicos cuja novidade, imediatez e
vividez, juntamente com a sua natureza efêmera e justaposição, frequentemente parecia
estranha “.
O texto seminal de Charles Baudelaire (Baudelaire, 1869) sobre a modernidade e que marca
a incorporação do termo e de seus conceitos ao pensamento ocidental é o ensaio intitulado
Sobre a modernidade (publicado póstumamente, em 1869, na revista L’Art Romantique)
onde ele se revela o precursor da estética moderna e se torna um ponto de referência para a
compreensão da modernidade hoje. Sua écriture baseia-se numa crítica a Constantin Guiz,
desenhista, gravador e aquarelista, e ele conclui suas observações da seguinte maneira:
A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a
outra o eterno, o imutável... (... ) Constantin Guys buscou por toda a parte a beleza
passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de
modernidade.
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O termo pós-modernidade, por sua vez, aparece também através da pena de Charles
Baudelaire e Th. Gautier, em 1864, quando estes poetas escreveram “pós-modernidade” ao
fazerem uma crítica da “ sociedade moderna e burguesa da época “ (Gardner, 1993; Christo,
1997). É, entretanto, somente em 1947, que Arnold Toynbee, matemático, historiador e
filósofo inglês sistematiza a observação de que uma série de paradigmas da modernidade
estavam sendo contestados e transformados pela, assim chamada, pós-modernidade.
O escritor ingles Charles Jencks, entretanto, retira dos franceses a introdução da expressão
“pós-moderno” e a credita ao poeta John Watkins Chapman, seu conterrâneo, que a teria
usado em 1870 (Appignanesi & Garrat, 1995).
Ricardo Goldemberg (Chahlub, 1994), cita Luc Ferry situando o pós-modernismo entre
1975 e 1976 e lembra de um filme de Mel Brooks. Nesse filme dezenas de homens lutam
com espadas e lanças. Soa, então, um apito e todos param de lutar e começam a pintar. Um
deles explica então que começou o Renascimento. Lógico que as transformações não se dão
desta maneira, mas, repito, ocupam muitas gerações.
Jean-François Lyotard (Smart, 1993) polemiza, como é necessário, sobre a expressão pós-
modernidade, ao escrever:
...ou será a pós-modernidade o passatempo de um velhote que espiona o monte de lixo à
procura de restos , que fala de inconsciências, lapsos, limites, fronteiras, gulags,
parataxes, absurdos ou paradoxos, transformando-os na glória de sua novidade, na sua
promessa de mudança ?
Comparto com alguns autores, especialmente Sérgio Rouanet (Rouanet & Mafessoli, 1994)
a necessidade de discutirmos se o Brasil, com suas particularidades, passa da modernidade
à pós-modernidade, pois é evidente que a modernidade não se “instalou” efetivamente entre
nós e, consequentemente, não podemos falar de um esgotamento da modernidade em nosso
país. Mas, como nos trópicos as possibilidades nunca se esgotam e a globalização é uma
realidade, não só econômica mas também cultural, a pós-modernidade poderá estar entre
nós...
É interessante, agora, explicitar algumas das características da pós-modernidade:
velocidade, banalização, cultura do descartável, fragmentação, globalização, mundo de
imagens, virtualidade, simulacro, des-subjetivação, des-historicização, des-territorialização,
etc. Não se trata, é evidente, de tomar a pós-modernidade como a encarnação do mal, ela é
92
um momento de passagem e como tal de inevitável turbulência. Não sei, ao certo, se ela
existe realmente como momento histórico e cultural, ou se é apenas uma criação
intelectual, mas é interessante e útil que façamos, a partir dessas idéias um exercício de
compreensão deste mal estar na cultura, parodiando o criador da psicanálise.
- VII –
Ao comentar os aspectos que envolvem o processo adolescente, estrutura e dinâmica que
abarca tanto o adolescente como sua família e a sociedade, quero considerar novamente
que esta experiência evolutiva se realiza em um momento em que a sociedade sofre
intensas e rápidas transformações ( talvez, melhor dito, um conjunto de rupturas ) de uma
série de paradigmas ( idéías, valores morais e estéticos, processos de pensamento, etc . )
que podem ser considerados dentro do conflito “modernidade versus pós-modernidade”.
Assim, vou abordar uma série de elementos paradigmáticos que serão comentados cada um
por sua vez, embora queira deixar bem claro que cada um deles é um fio de uma trama
tecidual, elementos entremeados, partícipes de uma interação dialética, que estarão isolados
apenas por uma questão didática e metodológica. Fica ao leitor a sugestão para que
estabeleça a ligação entre eles, organizando este puzzle complexo e fragmentado que é o
quadro de nossa sociedade atual e, inclusive, aumente a lista dos paradigmas abordados.
Maurício Knobel (Knobel, 1974) considera que o adolescente tem uma característica muito
especial em sua relação ao tempo. Ele escreve:
Desde o ponto de vista da conduta observável é possível dizer que o adolescente vive com
uma certa desconexão temporal: converte o tempo presente e ativo como uma maneira de
manejá-lo. No tocante à sua expressão de conduta o adolescente parece viver em processo
primário com respeito ao temporal. As urgências são enormes e, às vezes, as postergações
são aparentemente irracionais.
A afirmativa de Maurício Knobel nos remete ao fato de que é próprio desse momento
evolutivo a utilização do tempo dentro de critérios do processo primário, tal como descrito
por S. Freud, quando o tempo é vivido predominantemente em função das demandas
internas, inconscientes, tempo interno, tempo de elaboração. Os adolescentes vivem, então,
em função de suas transformações psíquicas, este afastamento do tempo cronológico. Esta
situação é mais intensa quando a sociedade sofre, como vimos, ela própria, intensas e
rápidas transformações em sua concepção de tempo. A globalização fez, através das
comunicações rápidas e mais fáceis, um tempo fast... Como exemplo posso lembrar que
quando Abraão Lincon foi assassinado os americanos mandaram avisar os ingleses, através
de um barco muito veloz, do acontecido: a viagem levou treze dias. Hoje qualquer
acontecimento na Casa Branca estará em nossas casas em tempo real, ou à noite teremos
todos os fatos nos noticiários de televisão e informações adicionais pela internet.
Sugiro que continuemos um pouco mais com Maurício Knobel (Knobel, 1974) :
O transcorrer do tempo se vai fazendo mais objetivo (conceitual) sendo adquiridas noções
de lapsos cronologicamente orientados. Por isso creio que se poderia falar de um tempo
existencial, que seria um tempo em si, um tempo vivencial ou experiencial, e um tempo
conceitual.
Como havíamos comentado antes o autor aborda a distinção que os gregos faziam de
chronos, o tempo conceitual, e tempus, o tempo interno, da subjetividade do ser. Essa
distinção entre esses dois tempos é essencial ao sentido de self (ou ao going on being de
Donald Winnicott) e a organização da personalidade, realizações estreitamente ligadas ao
processo adolescente. Nessa etapa a noção de tempo assume, basicamente, características
corporais e rítmicas; tempo de dormir, tempo de comer, tempo de estudar, etc.
Progressivamente, acompanhando o lento desenvolver do processo o adolescente vai
94
várias dessas funções estão preenchidas e são oferecidas “ prontas “, para a geração
delivery, por um software e um hardware cada vez mais rápidos (embora também
rapidamente se tornem obsoletos), imediatamente, como é próprio de uma cultura “fast
food”, para serem consumidas por um “espectador” que assiste... “Assiste” caracteriza bem
a questão, pois sugere algo passivo: ninguém “assiste” um livro, nós “lemos” um livro!
Meus filhos me mostraram, há pouco, um CD-ROM com a obra do Jorge Amado: lá pelas
tantas surge na tela uma prateleira com a lombada de cada um dos livros do autor e
clicando com “mouse” sobre um deles surge uma síntese da obra (“ não há tempo a perder...
”) e clicando sobre o nome de um dos personagens surge uma breve biografia e logo
depois um trecho de um filme sobre o livro ou de uma telenovela e logo depois, um novo
“clique”, um fragmento de uma música cantada por um popular cantor baiano sobre o texto
e logo depois alguns críticos fazendo comentários de poucos minutos e logo depois um
comentário sobre o pensamento político do escritor e logo depois... enfim, tudo muito
rápido e pronto, percebido por mim na forma com que tento transmitir ao leitor através da
“estrutura gramatical pós-moderna”. Não necessário imaginar e criar pois tudo está criado e
imediatamente pronto para o “input”.
A velocidade “das coisas” é, então, muita distinta entre duas gerações, entre pais e filhos. O
advento da cibernética possibilita ao adolescente uma experiência vital de extrema
velocidade: operações matemáticas, contatos imediatos com todo o mundo através da
internet, acesso a uma quantidade de informações quase inesgotável, etc. É difícil para um
adulto (e imagine para os adolescentes) pensar como nos anos sessenta funcionavam os
Bancos sem os computadores (e funcionavam...). Este contraste entre a referência
velocidade/tempo entre a geração dos adultos e a dos adolescentes me leva a inferir que um
dos vetores que nos levam a encontrar “hoje”, mais do que “ontem”, adolescentes
“atuadores” se deve a esta quebra de paradigma: a tradicional, ou moderna, cadeia
impulso-pensamento-ação cede lugar a um modelo novo caracterizado pela supressão do
pensamento que demanda elaboração e, por conseguinte tempo e que se configura “pós-
modernamente” como impulso-ação, baixa tolerância à frustração, dificuldades em
postergar a realização dos desejos e busca de descarga imediata dos impulsos. Há um
frenético não paro, se paro penso, se penso dói. B. Brecht escreveu, a propósito, que
quando o homem atinge a verdade descobre também o sofrimento. Acredito, inclusive, que
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uma ampla faixa de nossa clínica é hoje constituída por pacientes com sintomatologia na
área da conduta e na organização do pensamento: um número maior de Hamlets do que
Édipos, no que muitos autores concordam (Outeiral; 1993; Outeiral, 2000)
Estas colocações são, evidentemente, apenas um esquema e na verdade um esquema
insuficiente; mas todos concordamos em que, embora se constitua um elemento comum ao
processo adolescente em qualquer período, na sociedade atual, há uma exacerbação destes
aspectos. Cybelle Weimberg chama estes adolescentes de “geração delivery”...
3. A banalização
Christopher Bollas escrevendo o capítulo Estado de mente fascista de seu livro Sendo um
personagem (Bollas, 1992) desenvolve idéias sobre os vários estratagemas que o estado de
mente fascista, em seu aspecto individual ou social, utiliza, citando entre mecanismos a
“banalização”.A “banalização” é um mecanismo mental que se desenvolve insidiosamente
e, dessa maneira (de uma forma sutil e silenciosa), modifica um paradigma. Novamente é
útil recorrer à clínica, observando o quotidiano.
Quando ingressei na Faculdade de Medicina, ao dezessete anos, nunca havia tido contato
real com um morto. Ao iniciarem as aulas recebi um cadáver com o qual eu deveria estar
em contato, estudando a anatomia e fazendo dissecações, durante todo um ano nas aulas de
anatomia. Eu o retirava da cuba de formol todas as manhãs e esta vivência me mobilizava
intensamente: me perguntava se aquele homem havia tido uma mulher e filhos, como havia
sido seu “fado” de acabar como meu objeto de estudo, teria tido uma profissão? Dávamos
um nome, inclusive, ao cadáver. Ele era subjetivado e historicizado, algo ao estilo
“moderno”. Era comum não comermos carne porque o cadáver nos vinha à mente,
usávamos luvas, preocupados com alguma possibilidade de infecção e uma máscara porque
o formol irritava as mucosas. Nesse meio tempo íamos fazendo as dissecações e o cadáver,
homem morto e possuidor de um nome e de uma história, ao final do semestre era apenas “
peças anatômicas “: ossos, músculos, vísceras, etc... Não era necessário mais usar luvas,
pois o formol “esterelizava” e tampouco máscara porque nos acostumamos ao formol e
fazíamos um intervalo para lanchar na própria sala de anatomia. Banalizada a situação
havia apenas fragmentação, des-subjetivação e des-historicização, não um sujeito, mas uma
coisa.
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4. A ordem da narrativa
Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos e resíduos.
Deleuze e Guatari (Jameson, 1994)
Historicizar sempre.
F. Jameson (Jameson, 1994)
A maneira que encontro para começar a apresentar essa questão é através da narrativa
literária, O romance, expressão literária da modernidade, é introduzido na cultura ocidental
através, principalmente, de W. Goethe (1749-1832). Georg Lukács ao comentar Os anos de
formação de Wilhelm Meister, lembra que esta estrutura narrativa, que coloca o homem
real e seu desenvolvimento como elemento central, domina a literatura européia desde o
Renanascimento e é o ponto nodal da literatura do Iluminismo, atinge seu ápice com W.
99
nos dias seguintes por um certo sentimento de constrangimento ou culpa de ter criado uma
expectativa no outro; tal consideração hoje é praticamente inexistente.
Poderá ser interessante lembrar (a modernidade busca historicizar, insisto) que os pais dos
adolescentes pertenceram ao que, prosaicamente, podemos chamar, seguindo a Woody
Allen, “a era do rádio”. As famílias se reuniam, à noite, e ouviam os capítulos diários de
uma novela no rádio, sempre com alguma dramaticidade, e todos – em especial, é claro, os
adolescentes - iam construindo em seu imaginário os personagens: processo lento,
progressivo. Hoje, em uma novela de televisão, som e imagem reunidos, os personagens
são apresentados, já na vinheta de abertura, completamente despidos: somo privados do
estímulo de “desnudar” erótica e criativamente, aos poucos, à medida que a intimidade vai
se estabelecendo, progressivamente, descoberta após descoberta, o personagem que nos
desperta o desejo, a sensualidade.... A situação atual cria uma erótica que, de certa forma,
adquire autonomia em relação ao desejo: ou seja, o objeto está “pronto e oferecido” antes
mesmo de ser desejado. Não existe mais, então, “este obscuro objeto do desejo” tão ao
gosto dos modernos...
A literatura, por exemplo, incita uma participação ativa e progressiva na construção do
objeto erótico: a leitura de um livro de Jorge Amado, por exemplo, nos convida a criar,
digamos, uma figura feminina, bastante diferente das ilustrações de Carybé, uma
personagem só nossa.
A banalização que envolve a sexualidade determina a necessidade da criação de estímulos
mais intensos e diferentes: a simples imagem despida não é suficiente. É necessário, nos
aproximando de uma cultura ao agrado do marques de Sade, ou gótica (lembram-se de que
estamos em Gotham City), ou perversa como diriam alguns psicanalistas, criar fetiches,
como a tiazinha ou a feiticeira.
6. A estética da pós-modernidade
A estética é, num sentido amplo, uma forma, que através da beleza, busca cativar e
interessar – por meio do prazer estético e assim, transmitir um conteúdo a alguém . Um
pintor renascentista, por exemplo, buscava através de novos elementos estéticos da pintura
religiosa interessar o espectador e transmitir-lhe a idéia de Deus. Um professor busca
101
através de seu plano de aula e por meio de sua maneira de expor este plano transmitir
conteúdos aos alunos: ele é, em essência, um esteta.
A dificuldade é que estéticas da modernidade e da pós-modernidade são diferentes. O
professor, que utilizei como exemplo, é um esteta de modernidade e seus alunos estão
vivenciando a estética da pós-modernidade; cria-se um gap entre uns e outros... mas é
necessário explicitar mais. Eu diria que a estética do adulto pode ser referida com o filme
Casablanca. O filme, em síntese, tem o seu ápice na cena final do aeroporto quando o casal
se despede e a mocinha volta para Paris e o mocinho permanece na África. Ela o ama, mas
volta para seu marido em Paris, pois eles tem um “história de vida” e um “respeito mútuo”,
além dela considerá-lo um homem de valor, íntegro e que luta ao lado do “bem”, isto é, na
resistência francesa contra os nazistas . Os “modernos” choram com o filme emocionados
pelos “paradigmas e os valores” que conseguem, através da razão sobrepujar a paixão. Os
adolescentes não se emocionam da mesma forma pelo filme: para eles é absurdo que ela
volte a Paris se não ama o marido e deveria, é óbvio, ficar em Casablanca com seu “
verdadeiro “ amor. A estética dos adolescentes impregnados pela estética da pós-
modernidade é o vídeo-clip: breve, curto, fragmentado, desfocado, às vezes, sem início-
meio-fim, não conta, em termos da modernidade, uma história verdadeira. Mas tem uma
estética e transmite um conteúdo. Levando estas questões para a escola, penso que há uma
fratura entre a fala da escola – moderna , tipo Casablanca – e a escuta dos alunos – pós-
modernos, tipo vídeo-clip.
Posso também abrir a questão, já referida por muitos autores, da estética do corpo na
cultura contemporânea, particularmente no tocante aos jovens. Arriscaria a dizer que os
transtornos alimentares ( anorexia nervosa, obesidade e bulimia ) poderão fazer parte do
que Henri-Pierre Jeudy ( Jeudy, 2000 ) chamou de doenças pós-modernas, ao referir-se ao
pânico e a fobia social. Na sociedade contemporânea a estética pós-moderna do corpo,
profundamente narcísica, cria um sujeito onde a redução da subjetividade e a ênfase na
materialidade transforma o homem/sujeito em homem/objeto. Não havia visto, na clínica,
tantos destes transtornos de alimentação como na última década. Jacques Lacan, referido
por alguns como um psicanalista da pós-modernidade (Appignanesi & Garrat, 1995), no
seu Seminário XVII, trata deste homem, na verdade um objeto-sintoma, quase um gadget
(objetos tecnológicos da ciência contemporânea), através de seu conceito de letosas
102
(neologismo criado por ele a partir dos termos gregos “alétheia” e “ousia”, para referir-se,
numa simplificação que faço, aos “seres-objetos da tecnologia”).
7. A ética
This above all: to thine own self be true
And it must follow, as the night the day
Thou canst not then be false to any man
Shakespeare, Hamlet (Apud Winnicott, 1994)
Todos nós sabemos o que é ética, mas se somos solicitados a conceituá-la a tarefa não é tão
simples. Fábio Herrmann (Herrmann, 1995; 2000) considera que há uma relação clássica
entre ética e ser verdadeiro, referindo-se ao compromisso do indivíduo com ele mesmo e
com os outros. Ele escreve:
Que significa ética? No começo do livro II da Ética a Nicômano, “Aristóteles ensina: A
virtude moral é adquirida em virtude do hábito, donde ter-se formado seu nome (étike) por
uma pequena modificação da palavra étos (hábito) ‘... A ética vale como uma forma de
reflexão sobre nós mesmos muito mais como fonte de conclusões normativas. Ético é
pensar”.
Como psicanalista, tenho um vértice de observação em relação à ética e é a partir deste
ponto que quero fazer algumas considerações. Temos, então, algumas sendas a percorrer:
(1) Fábio Herrmann comenta que ético é pensar; (2) Jacques Lacan, por sua vez, lança o
aforisma de que ético é não ser o desejo do outro; (3) Humberto Eco expressa a opinião de
que a ética surge quando o outro entra em cena .
Estas três idéias me estimulam a seguir adiante, buscando especificar mais. Vejamos...
A ética se constitui na relação do indivíduo com seu ambiente, através de mecanismos de
identificação: inicialmente com os pais, a família, e, posteriormente, com os modelos
identificatórios que a sociedade oportuniza às suas crianças e adolescentes: pais de amigos,
professores, artistas, desportistas, políticos, etc. Que padrões constituem estes modelos
para identificação e, por conseguinte, para a constituição da estrutura ética e moral da
personalidade das crianças e adolescentes que a família e a sociedade oferece ?
103
Sigmund Freud descreveu o super-ego como a instância psíquica que, através das
identificações, possibilita a internalização das leis e normas de conduta, da ética e da moral,
de uma determinada cultura. Nesse processo de constituição do super-ego encontramos dois
momentos anteriores, o ego-ideal – predominantemente narcísico, incapaz de reconhecer o
outro como algo externo a si mesmo, caracterizado também pela concretude e onde a ação
predomina sobre o pensamento – e o ideal de ego – simbólico, menos narcísico e
reconhecendo o outro como externo. A passagem de um ao outro é possibilitada por
identificações boas e adequadas. Quando essas identificações – a cultura do mundo adulto –
falham em seu papel teremos dificuldades na estruturação do super-ego. Meu enunciado é
de que na sociedade atual não são oferecidas identificações suficientemente boas às
crianças e adolescentes. Este enunciado, se verdadeiro, significa o risco de termos uma
geração de adolescentes presa ao ego-ideal – excessivamente narcísica, atuadora, com
dificuldades no reconhecimento do outro como um sujeito externo e com dificuldades na
simbolização e. consequentemente, com o pensamento. Ao clássico aforisma de Sigmund
Freud – onde há id deve haver ego – eu colocaria um outro: onde há ego-ideal deveria
haver ideal de ego...
Devemos pensar nos modelos e identificações que a sociedade contemporânea oferece: a
família em rápida mudança de valores e perplexa, por um lado, e a sociedade, de outro,
revelando e transmitindo - através da mídia, da política, etc - uma cultura, em alguns
aspectos, perversa.
Sigamos adiante, abrindo nosso leque.
Adultescência, um novo termo, foi criado e, inclusive, incluido no conhecido dicionário
New Oxford Dictionary (Cadermo Mais. Folha de São Paulo. 20 de setembro de 1998),
mistura, em inglês. das palavras “adult” (adulto) e “adolescent” (adolescente).
Adultescente – pessoa imbuída de cultura jovem, mas com idade suficiente para não o ser.
Geralmente entre os 35 e 45 anos, os adultescentes não conseguem aceitar o fato de
estarem deixando de ser jovens (David Rowan, Um glossário para os anos 90).
Como ficam os adolescentes tendo de lidar com modelos identificatórios inadequados e/ou
com adultos que querem ser adolescentes? Onde encontrar modelos adultos suficientemente
bons? A pergunta, sem resposta, é um convite para pensarmos juntos.
104
O cyberespaço intervém também no conceito de identidade, o que nos é dado pelo conceito
de “hipercorpo”.
A virtualização do corpo incita a viagens e a todas as trocas. Os transplantes criam uma
grande circulação de órgãos entre corpos humanos. De um indivíduo ao outro e também
entre os mortos e os vivos... cada corpo torna-se parte integrante de um imenso hipercorpo
híbrido e mundializado...
Jean Baudrillard ( Baudrillard, 1997 ) é outro autor que nos ajuda nesta collage:
As máquinas só produzem máquinas. Isto é cada vez mais verdadeiro na medida do
aperfeiçoamento das tecnologias virtuais. Num nível maquinal, de imersão na maquinaria,
não há mais distinção homem-máquina: a máquina se localiza nos dois lados da interface.
Talvez não sejamos mais que espaços pertencentes a ela – o homem transformado em
realidade virtual da máquina, seu operador, o que corresponde à essência da tela. Há um
para além do espelho, mas não para além da tela. As dimensões do próprio tempo
confundem-se no tempo real. E a característica de todo e qualquer espaço virtual sendo de
estar aí, vazio e logo suscetível de ser preenchido com qualquer coisa, resta entrar, em
tempo real, em interação com o “vazio”...
Articulando estas idéias poderemos ser levados a pensar que quando alguém “brinca” com
um jogo eletrônico no computador não está verdadeiramente “brincando”, mas sim “sendo
brincado pela máquina”.
16. Globalização
Albert Dunlap definiu da seguinte forma para o Times Book a posição das grandes
corporações econômicas, as “multinacionais”: “A companhia pertence às pessoas que nela
investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa”.
A geopolítica e a noção de Nação e Estado, práticas da modernidade, foram subistuídas pela
geoeconomia e pela globalização, determinada principalmente pelas grandes corporações
supranacionais, símbolos da pós-modernidade. A velocidade e a facilidade das
comunicações e o cyberespaço, progresso fantástico e inevitável, fica a serviço do capital e
não do social, ao mesmo tempo em que aproxima, exclui do progresso social grandes
parcelas populacionais (Bauman, Z., 1998 ).
A globalização não deve terminar com as diferenças, preservando as identidades. O avanço
tecnológico que possui é fundamental para o progresso da cultura humana. A internet, por
exemplo, pela facilidade de comunicação que oferece e pelas informações que
disponibiliza, inevitavelmente se colocará a serviço do progresso social e humano.
111
tudo isso lembra uma montagem pós-moderna feita com pedaços incongruentes de vários
mundos e épocas.
Zuenir Ventura, Cidade Partida (Rio de Janeiro), 1994
A ocupação do espaço, doméstico ou público, pelos adolescentes é uma das formas que eles
utilizam para lidar com as transformações físicas, psicológicas e sociais e as fantasias e
ansiedades que esse processo acarreta. Sabemos que a identidade se articula em três pontos
– espacial, temporal e social – e a relação destas mudanças, especialmente as corporais,
com a ocupação dos espaços é bem evidente.
Arminda Aberastury (Aberastury, 1971) nos auxilia, nessa linha especulativa, quando
escreve em seu livro El niño y sus dibujos :
Reproduzir o próprio corpo, o dos pais e após tratar de desenhar casas é a cronologia do
desenho no desenvolvimento normal. Como a casa é um símbolo do esquema corporal se
compreende que seja o primeiro objeto inanimado que aparece nos desenhos.
A arrumação do quarto de um adolescente (ou a forma com que “recheia” sua mochila
escolar) nos dá uma dimensão, bastante aproximada de seu mundo interno...
A ocupação do espaço público (escola, bares, shopping, praças, etc.) também é
significativa. Eles necessitam, por exemplo, “migrar” de um espaço para outro a cada
intervalo de tempo, revelando o que Françoise Dolto chama o “Complexo de Lagosta”, se
referindo a este animal que ao transformar periodicamente o corpo perde a “casca” que o
envolve (Dolto, 1989). Durante alguns meses todos freqüentam um mesmo local e depois
“migram” para outro... é como o corpo infantil que tem de ser abandonado (ansiedade
depressiva e confusional frente a perda do conhecido) e o outro corpo, o adulto, encontrado
e habitado (ansiedade paranóide frente ao desconhecido).
Mats Lieberg ( Lieberg, 1994 ) em um estudo da Universidade de Manchester sobre a
ocupação do espaço público pelos teenagers, realiza uma pesquisa que nos mostra a
“migração” através da cidade como correlata com as transformações da identidade. Aliás,
Mário Quintana, o poeta maior dos gaúchos, significativamente, correlacionando a
geografia com a anatomia escreve em seus versos...
Olho o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo
É que nem fosse meu corpo!
113
- VIII –
Penso que seria interessante fazer alguns breves comentários sobre uma escola que possa
enfrentar estes desafios, tendo a certeza de estar fazendo comentários nada originais e que,
certamente, alguém fez melhor antes. Mas que escola seria esta? Aquela que preservando
valores essenciais da modernidade esteja aberta ao progresso e ao novo. Minhas
observações se derivam mais de uma prática com crianças, adolescentes e escolas do que de
idéias que eu tenha tido a oportunidade de desenvolver uma teorização sobre elas. Obtenho
respaldo, entretanto, com um importante pensador que escreveu, no século IXX, que a
prática é o critério da verdade.
Julgo que três pontos seriam essenciais: olhar a criança com (1) um novo olhar e educar
para (2) brincar e (3) pensar.
- IX -
Epílogo
Há, doravante, no que se refere à ordem social e política, um problema específico da
infância, a exemplo da sexualidade, da droga, da violência, do ódio – de todos os
problemas mais insolúveis derivados da exclusão social. Como outros tantos domínios, a
infância e a adolescência convertem-se hoje em espaço destinado por seu abandono à
deriva e à delinquência.
J. Baudrillard, Tela Total
J. Baudrillard (Baudrillard, 1997), pensador sobre a condição pós-moderna, nos recomenda
calma, crianças sempre haverá. Mas como? Objeto de curiosidade ou de perversão sexual,
ou de compaixão ou de manipulação e de experimentação pedagógica ou simplesmente
como vestígio de uma genealogia do vivo?
117
A modernidade tem ainda, com todas as suas crises, valores e paradigmas necessários ao
humano e sua cultura, embora haja um mal-estar nesta cultura… Mesmo um político
conservador, como Francisco Welffott reconhece a relação entre a globalização e a criação
de conjuntos humanos descartáveis, quando escreve (Wellfortt, 2000):
Um dos problemas mais graves do capitalismo na época da globalização é a criação de
grandes conjuntos humanos considerados “ desnecessários “ ( descartáveis ) do ponto de
vista econômico.
A violência, desta maneira, está presente nesta globalização que se torna cada vez mais
excludente sob o ponto de vista social, pois o avanço tecnológico não significa,
necessariamente, um avanço de condições mais humanas para as populações.
Temos hoje mais de 30 guerras regionais, em todos os continentes, onde as vítimas fatais
são principalmente as populações civis com aproximadamente 90 % de todas as baixas: na I
Grande Guerra (1914-18) morreram cerca de 15% de civis e na II Grande Guerra (1939-45)
foram 45 %. Estes dados representam principalmente crianças, mulheres e idosos.
Existe hoje, como escreveu Sigmund Freud no final da década de 20 ( Freud, 1930 ), um
mal-estar na civilização. É certo que ele levantava questões relativas ao estatuto do sujeito
na modernidade, pois a psicanálise é uma leitura da subjetividade e de seus impasses na
modernidade (Birman, 1998), mal-estar este que, entretanto, podemos estender para a pós-
modernidade e seus intentos de dessubjetivação. Um conjunto significativo de autores tem
escrito sob o tema, desde o ponto de vista psicanalítico (Rouanet, 1987; Rouanet, 1993;
Costa & Katz, 1996; Birman, 1998; Rocca, 2000; Cukier, 2000), enfatizando as alterações
psíquicas que se observa relacionadas, diretamente ou indiretamente, com as questões
levantadas neste texto. Elisabetta de Rocca (Rocca, 2000) considera o seguinte:
A cultura pós-moderna, caracterizada pelo domínio da imagem e velocidade e
massificação da informação, sustenta aspectos eróticos e tanáticos. Entre os primeiros está
a possibilidade de um acesso mais rápido e completo do conhecimento global e uma
conscientização cada vez maior da inexistência de verdades definitivas e completas, o que
contribui para destruir dogmatismos estéreis e facilita o respeito pelo novo e pelo
diferente. São fatores tanáticos a violência, a superficialidade, a pouca qualificação dos
valores transcendentes e a excessiva importância que se outorga às possessões visíveis. O
sujeito-ideal (termo com o qual Piera Aulangier denomina a parte do superego que dá
118
Bibliografia
Os textos colocados na bibliografia não estão todos referidos no texto. Foram, entretanto, necessários
para o desenvolvimento das idéias nele contidas: por isso sua presença na bibliografia, pois poderão ser
úteis também ao leitor .