Anda di halaman 1dari 120

1

O MAL-ESTAR NA ESCOLA
José Outeiral e Cleon Cerezer
--------------------------------------------------------------------------------------------------------------
SUMÁRIO
1. A ADOLESCÊNCIA, A CRIATIVIDADE, OS LIMITES E A ESCOLA
José Outeiral
2. O TRABALHO COM GRUPOS NA ESCOLA
José Outeiral
3. VIOLÊNCIA NO CORPO E NA MENTE: CONSEQÜÊNCIAS DA REALIDADE
BRASILEIRA
José Outeiral
4. TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E PATOLOGIA TRANSICIONAL
José Outeiral
5. AGRESSIVIDADE, TRANSGRESSÃO E LIMITES NO DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
José Outeiral
Cleon Cerezer
6. A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO PATERNA NO DESENVOLVIMENTO DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
José Outeiral
Cleon Cerezer
7. A ESCUTA DO MAL-ESTAR NA SALA DE AULA: UM ENSAIO SOBRE
PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE
Cleon Cerezer
8. ADOLESCÊNCIA: MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE
José Outeiral
2

CAPÍTULO 1

A ADOLESCÊNCIA, A CRIATIVIDADE, OS LIMITES E A ESCOLA*


José Outeiral

MESFISTÓFELES
Pois acertaste vindo até mim.

ESTUDANTE
Com franqueza, estivesse eu longe já:
Estas paredes, aulas, salas,
Não sei como hei de suportá-las.
É tão restrito e angustiante o espaço,
De verde não se vê pedaço,
E ficam-me, nas aulas, bancos,
Pensar, ouvido e vista estancados.

MEFISTÓFELES
Antes do mais, dizei-me logo
A faculdade que elegeste.

ESTUDANTE
Quero ficar muito erudito,
Perceber tudo o que há na terra,
E tudo o que no céu se encerra,
Natura e ciência, ao infinito

Tudo isto deixa-me tão tolo,


Como se um moinho me andasse no miolo.

Goethe, Fausto (1a Parte) (1808)

Educar, ao lado de Governar e Psicanalisar, é uma profissão impossível.


Freud (1937)

*
Colaboraram na elaboração deste capítulo a professora Paulina Silbert e a psicóloga Joyce Permigotti.
3

A adolescência é um momento muito criativo em função, entre outras coisas, de ser


um período de transformações. Nesta etapa da vida se conquista o chamado pensamento
formal, que oportuniza a pessoa raciocinar sobre hipóteses e elaborar conclusões a partir
delas.
Esta nova possibilidade de pensamento, exercitada pelo adolescente em seu dia-a-
dia, propicia-lhe um novo tipo de relação com o mundo adulto. Entretanto, nem sempre as
premissas de que se utiliza levam em conta a dimensão possível, do real. Para o adolescente
é fácil encontrar soluções para os problemas da humanidade, muito embora a maioria delas
não seja exeqüível na prática.
O caráter “mágico” que se estabelece entre o “pensado” e o “exeqüível” cria um
espaço importante para desenvolver a criatividade que, de início, mostra-se através de uma
atividade impulsiva, difusa e caótica (desde a ótica dos adultos), mas perfeitamente normal.
Aos poucos a atividade criativa vai assumindo um perfil mais definido, mais integrado e
produtivo. O período de transição, entretanto, necessita de um ambiente propício capaz de
suportar as tensões dos momentos iniciais deste processo criativo peculiar, tanto na família
como na escola. A criatividade na adolescência articula-se necessariamente com a noção
de limites. Limite é uma palavra que tem, muitas vezes, uma conotação negativa, ligada
erroneamente à “repressão”, “proibição”, “interdição”, etc.*, inclusive lembrando
“repressão política”. No entanto, limite é algo muito além disso: significa a criação de um
espaço protegido dentro do qual o adolescente poderá exercer sua espontaneidade e
criatividade sem receios e riscos. Precisamos lembrar que não existe conteúdo organizado
sem um continente que lhe dê forma.
Dois exemplos do antes exposto:
O primeiro deles refere-se a um problema encontrado em uma escola onde os
adolescentes apresentavam uma conduta destrutiva com os móveis e demais objetos da
classe, e os professores “não sabiam o que fazer”. Questionavam-se muito, faziam reuniões
e, enquanto isso os alunos “quebravam a escola”. Isto parecia incompreensível, pois os
professores eram experientes, muitos “pós-graduados” em Educação e a escola tinha um
regulamento interno que, formalmente, normatizava o que deveria ser feito nesses casos:
*
Embora saibamos que repressão no sentido usado em Psicanálise também significa um elemento
estruturante da personalidade.
4

“colocar limites”. Esta situação “kafkiana” esclareceu-se com a eclosão, de uma greve dos
professores em que veio a “tona” a profunda irritação dos adultos com a instituição
mantenedora. Este fato tornou clara e evidente que a dificuldade dos professores em colocar
“limites” na agressividade dos adolescentes com a escola era, inconscientemente, porque os
adolescentes “executavam” o que eles, adultos, gostariam de fazer: esta era a raiz da
dificuldade em colocar “limites”.
Situações idênticas poderão ocorrer nas famílias cujos adolescentes têm problemas
de conduta e falta de “limites”. Esta falta de “limites” impede o adolescente de exercitar sua
capacidade de pensar, de ser criativo e espontâneo.
Com este exemplo, quero enfatizar que a falta de “limites” na adolescência é
conseqüência, em maior ou menor grau, de dificuldades dos adultos, pois nenhuma criança
nasce com a noção de limites. A noção de “limites” se desenvolve num longo processo de
identificação da criança e do adolescente com seus pais, inicialmente, e, depois, com os
adultos que a sociedade disponibiliza como professores, artistas, desportistas, políticos, etc.
O segundo exemplo nos reporta a uma situação em que um grupo de crianças, de
dez a doze anos, mostrava-se agitado, com agressões e baixo rendimento escolar. A
“bagunça” estendia-se a todos os momentos em que estavam na escola. Um professor
observou que brincavam aos empurrões e lhe pareceu que, assim, buscavam um contato
físico entre si. Esta observação cuidadosa e oportuna fez com que o Serviço de Orientação
Educacional (SOE) reunisse o grupo para “conversar” sobre o que estava acontecendo. Os
assuntos trazidos evidenciaram que a puberdade estava produzindo toda a “turbulência” e
que mais que “agitados” estavam, realmente, “excitados” davam “puxões” e “empurrões”,
faziam freqüentes “reuniões dançantes” e chamavam de “galinha” uma menina que,
precocemente, apresentava os primeiros sinais da puberdade e que com suas “características
sexuais secundárias” provocava ansiedade na turma, que tentava então “queimá-la” numa
versão “púbere” da Inquisição. As reuniões do SOE ofereceram um “limite”, um espaço e
um tempo protegido, que propiciou substituir a agitação pela verbalização dos conflitos.
Certamente puni-los com “suspensões” e medidas disciplinares não seria um “limite”
adequado e sim uma “repressão” no mau sentido que, por vezes, tem esta palavra. Um
professor sensível e arguto ajudou os púberes em sua difícil “estrada” rumo ao
desenvolvimento adolescente.
5

É necessário enfatizar que as crianças e os adolescentes “pedem limites” e que o “limite” os


ajuda organizar sua mente. Os adultos, às vezes, não colocam “limites” porque assim será
mais “cômodo”. Colocar limites significa envolvimento, “conter” o adolescente, suportar
suas reclamações e protestos, enfim, enfrentar dificuldades. Os adultos poderão também ter
dificuldades em colocar “limites” em função de problemas com seus pais, tendo, talvez,
sentido-se “reprimidos” nas suas infâncias e adolescências, têm dificuldades com seus
filhos. Buscando evitar que eles passem pelo que não gostariam de ter vivido, acabam
contribuindo para o surgimento de “problemas”.
Não devemos esquecer os trabalhos do pedagogo britânico S. Neill, que ao relatar sua
experiência em uma escola, escreveu um livro chamado Liberdade sem medo, onde
descrevia uma experiência pedagógica extremamente liberal, e alguns anos depois,
escreveu um outro que, significativamente, intitulou Liberdade sem excesso.
A escola tem um significado primordial para o adolescente. Conforme o ambiente que ele
vivencia teremos um aprendizado prazeroso e propício ou distúrbios de conduta e/ou de
aprendizagem.
A função da escola é educar, isto é, conforme o significado etimológico da palavra,
“colocar para fora” o potencial do indivíduo e oferecer um ambiente propício ao
desenvolvimento destas potencialidades, ao contrário de ensinar, que é in + signo, ou seja,
colocar “signos para dentro” do indivíduo. Evidentemente, quando a criança chega na
escola, levando consigo aspectos constitucionais e vivências familiares, porém o ambiente
escolar será também uma peça fundamental em seu desenvolvimento. Estes três elementos -
aspectos constitucionais, vínculos familiares e ambiente escolar - constituirão o tripé do
processo educacional.
Mas qual a escola? Esta é uma pergunta que os pais se fazem com freqüência e que é
extremamente necessária, pois uma criança ou um adolescente (e, inclusive seus pais)
poderá ou não se adaptar em um determinado ambiente escolar. Cada escola tem uma “
cultura “ própria, a qual determinado aluno poderá ou não se adaptar. A escola, a sala de
aula, é um lugar “imaginário”, diferente do espaço real das cadeiras, classes e salas. Ela é o
que o aluno percebe a partir de sua história, seus desejos e seus medos. Na escola acontece
um interjogo de forças inconscientes que se cruzam, se opõem, se conflitam e se reforçam.
Algumas têm seu processo educacional mais dirigido, com limites mais estreitos, ao
6

contrário de outras, mais abertas e mais liberais. Um adolescente, com dificuldade de


organização, poderá se beneficiar (ou não) de um ambiente escolar mais estruturado e de
limites mais precisos, sendo necessário avaliar, em cada caso, a situação, buscando
conhecer como funciona determinada escola e, se necessário, buscando ajuda profissional
especializada. As simplificações do tipo: “meu filho é tímido, portanto, precisa de uma
escola mais liberal” ou “como ele não tem limites, uma escola mais rígida irá ajudá-lo” não
são sempre verdadeiras. O “óbvio ululante” que cada adolescente e cada escola têm
peculiaridades próprias é verdadeiro.
As escolas, por seu lado, têm o que chamamos de um “currículo manifesto” e um “currículo
oculto”, ou seja, aquilo que manifestamente é dito e/ou escrito, e a verdadeira prática no
dia-a-dia da sala de aula. Não são raras as experiências de ouvirmos falar, por exemplo, de
uma “educação libertadora”, às vezes isto dito com soberba e empáfia, e constatarmos,
depois, uma educação retrógrada e carregada de ambigüidades, que são “denunciadas” pela
percepção acurada dos alunos adolescentes. O processo educação/escola é hoje alvo de
questionamentos que se situam basicamente em dois pólos: a educação tradicional, na qual
nós adultos fomos formados, em contraposição à educação progressista, que propõe uma
relação mais prazerosa (satisfatória) com o conhecimento.
A primeira nos oferece algumas garantias, já que nos tornamos adultos pelos menos
supostamente aptos. Mas nem todos viveram esta experiência como proporcionando prazer,
alegria e satisfação em aprender, como deveria ser o processo educacional.
A segunda, dita progressista, tem favorecido, em alguns casos, a obtenção de uma relação
mais tranqüila e flexível com o mundo do conhecimento, desenvolvendo boa capacidade
para pensar de forma autônoma. Não pode garantir, no entanto, o montante de
conhecimento e cultura geral antes obtido. No capítulo sobre Adolescência: modernidade e
pós-modernidade estas questões são abordadas mais detalhadamente.
As dúvidas quanto à adequação de um ou de outro modelo, ou de uma síntese dos dois, não
são privilégio dos pais, mas dos educadores também. A Escola, a Educação, vive um
momento de perplexidade, sem definição de como conciliar as necessidades de uma
sociedade em mudança permanente (com contestação, transformações e mudanças de
paradigmas e valores) e uma proposta educacional que prepare o “homem do futuro”.
Temos que pensar, então, que nem sempre a escola “tem razão” e que muitas vezes a
7

apreciação do adolescente é correta. A escola é feita por pessoas (professores, supervisores,


orientadores e diretores são “pessoas”) que lidam melhor ou pior com determinadas
circunstâncias. Os pais têm de estar atentos para situações que se derivam destes fatos.
Qualquer “Manual de Educação Moderna” aponta como pressuposto a necessidade de
respeitar as características individuais do aluno; entretanto, o que se verifica na prática é a
realização de um ensino massificado, em grandes escolas de turmas enormes de alunos,
mais ao estilo de uma linha de montagem industrial. Como exemplo, verifica-se, também,
não raramente, a dificuldade que os professores e a própria escola têm para “reprovar”
(palavra extremamente inadequada) um aluno quando ele não conseguiu dominar o
conteúdo X de conhecimento em um tempo Y, e acabam colocando na família e/ou no
próprio aluno a resistência em aceitar a reprovação, como desculpa de sua própria
insegurança. Os professores, muitas vezes, não toleram as dificuldades de um determinado
aluno porque sentem estas dificuldades como “ferida narcísica” em sua capacidade de
ensinar.
Os pais e professores deverão saber, por outro lado, que estes serão os “recipientes” de
impulsos, fantasias, emoções e pensamentos mais ou menos conscientes que os
adolescentes têm em relação aos próprios pais. Amor e agressividade, originalmente
dirigidos aos pais, serão “transferidos” para os professores. Poderá acontecer que um
adolescente, irritado com seus pais, tenha com estes uma atitude aparentemente
“adequada”, extravasando com um professor toda a “bronca” com eles. O professor ficará
surpreso com a atitude do aluno, mas sua experiência e intuição lhe farão perceber que
“algo está acontecendo”. Os pais, se chamados à escola pelas atitudes do filho, poderão não
compreender o que sucede, já que ele está “tão calmo em casa”... . Poderá acontecer,
também, tomando o exemplo anterior, que o adolescente não demonstre explicitamente a
irritação dirigida aos pais com o professor e que a conduta negativa apareça sob a forma de
um baixo rendimento escolar na disciplina. Não serão apenas os sentimentos agressivos que
serão “transferidos” desse modo, os amorosos também. Os professores, à vezes, são os
primeiros objetos de “amor edípico”, ocorrendo uma “transferência amorosa”. Por
exemplo, um menino pode transferir o amor que sente pela mãe para uma determinada
professora, por esta lembrar-lhe, consciente ou inconscientemente, a figura materna. Este
amor tem um aspecto incestuoso, produzindo ansiedade e culpa, o que poderá se manifestar
8

de uma forma sublimada, através de um grande interesse em aprender, ou, ao contrário, por
um desinteresse pela matéria. Algumas dificuldades escolares na adolescência se
assemelham a situações desse tipo. É interessante lembrar também, que trabalhar com
adolescentes, como já vimos, desperta o adolescente que existe nos adultos, e isto, nos
professores, poderá desenvolver distintos sentimentos por um determinado adolescente que
lhe evoque as situações de vida de sua própria adolescência.
O que confere à escola importância vital no processo de desenvolvimento do adolescente é
o fato dela ter a características de ser uma simulação da vida, na qual existem regras a
serem seguidas, mas que se pode transgredi-las sem sofrer as conseqüências, impostas pela
sociedade, e ser esta uma oportunidade de aprender com a transgressão.
Deve-se levar em conta, também, que a relação do aluno com a escola é afetada pela
significação que os pais dão a ela, aos estudos de seu filho e às relações dele com os demais
alunos. Pais que tenham sido submetidos a uma escolarização muito rígida podem,
inconscientemente, buscar uma escola permissiva que “compense” a sua vivência escolar
de sofrimento. Podem, por outro lado, fazer com que seus filhos sofram tanto quanto eles e
“passem” por tal situação para poderem se tornar “tão educados” quanto eles.
O desejo de saber e obter prazer pelo saber certamente está mediatizado em primeiro lugar
pelos pais e, depois, mais tarde, pelos professores e pela escola. Um pode compensar o
outro, ou até anular seus efeitos.
A escola não oportuniza somente a relação com o saber e, como uma atividade
eminentemente grupal, tem também funções de socialização. Em busca de sua identidade, o
adolescente encontra na micro-sociedade da escola um sistema de forças que atuam sobre
ele, onde, entre outras coisas, reedita seu ciúme fraterno, compete, divide, rivaliza, oprime e
é oprimido, ou seja, reproduz o sistema social. É por esta razão que a escola, muitas vezes,
pode detectar dificuldades no processo de desenvolvimento do aluno, que aparece por
inteiro na busca de si mesmo, e seu olhar sobre ele é, em geral, menos comprometido
emocionalmente do que acontece com os pais.
Podemos dizer, “brincando”, que, se ser adolescente é “difícil”, ser um adulto em contato
com ele é duplamente “difícil”: primeiro porque temos de lidar com o adolescente “de
fora”, externo, real, e depois com o adolescente “de dentro”. Novamente, enfatizamos a
importância de que o adulto que está em contato com o adolescente (pais, professores, etc.)
9

tenha uma “visão binocular”, de dentro e de fora, do adolescente real e das “memórias
adolescentes”, carregadas ainda de impulsos, fantasias, desejos, emoções, etc., não como
algo indesejável, mas como demonstração de vida.
É muito importante também, que exista (se podemos chamar desta forma...) uma “relação
de confiança” entre a família e a escola escolhida, evidentemente, pelos pais para educar
seus filhos, isto é, para que os “auxilie” a educar seus filhos. Vemos, com freqüência, os
pais criticarem a filosofia pedagógica da escola escolhida na presença dos filhos, de uma
forma que predispõe o adolescente contra a escola. Evidentemente, críticas existirão de
parte a parte, mas elas deverão ser tratadas nos “canais de comunicação” adequados
existentes (ou serem criados) ligando o binômio família-escola.
É extremamente necessário que se evitem dissociações (tão freqüentes...) em que os pais
criticam a escola (projetando na instituição todos os aspectos negativos do processo ensino-
aprendizagem e, por vezes, da conduta dos filhos) e que a escola, por sua vez, faça o
mesmo (projetando na família todas as incompetências, falta de colocação de limites, falta
de participação, etc.) . A criação de uma “comunidade realmente operante” poderá tornar a
relação família-escola mais integrada e com menos “distorção e ruído” na comunicação.
Convenhamos que os adolescentes são, em algumas situações, hábeis em promover
dissociações entre, por exemplo, pai e mãe, entre família e escola, etc.
A família e a escola deverão compreender que, eventualmente, é melhor uma “troca” de
escola do que submeter o adolescente a um ambiente que não lhe é adequado e, para isto, é
necessário, às vezes, experimentar mais de uma instituição. Não basta que a escola tenha
sido aquela que o pai e a mãe cursaram, ou que os pais “imaginaram” que tenha “a melhor
proposta pedagógica”. É necessário encontrar uma instituição escolar que se aproxime do
adolescente (e sua família). Esta escola não precisará, inclusive, reproduzir os “valores
familiares”, propiciando, desta forma, outros modelos identificatórios para o adolescente,
que assim, terá mais elementos para construir sua “identidade”. É imprescindível,
entretanto, que a família e a escola saibam que estão “compartindo” esta experiência.
Para terminar este capítulo, quero fazer alguns comentários sobre a questão da vocação e da
escolha profissional.
Vocação diz respeito a características e habilidades inatas que apresentamos desde muito
cedo e tem relação com aspectos (impulsos, fantasias, etc.) de nossa personalidade.
10

A escolha profissional, entretanto, diz respeito a uma situação que envolve, além da própria
pessoa, a circunstância social, como, por exemplo, o mercado de trabalho. Assim, poderá
ocorrer, muitas vezes, que um adolescente que revelava uma “certa vocação” terá que fazer
uma escolha profissional, mais ou menos, distante de sua tendência. Este momento, na
verdade um longo e penoso processo, é muito importante na vida dos indivíduos, e se
constitui em uma das tarefas principais das etapas finais da adolescência. Em um país como
o Brasil, onde o mercado de trabalho é restrito e/ou tem uma remuneração inadequada, mais
uma vez, o jovem tem de lidar com uma realidade, com freqüência, adversa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
.
FREUD, Anna. Introduccion al psicanalisis para educadores. 4 ed., Buenos Aires:
Paidós. Biblioteca do Educador Contemporâneo. 1961.
FREUD, A . Introduccion al Psicanalisis para educadores, 5. Ed., Argentina: Editora Paidós, 1966.
KUPFER, M. C. Freud e a educação, o mestre do impossível. São Paulo: Ed. Scipione, 1989
11

CAPITULO 2

O TRABALHO COM GRUPOS NA ESCOLA


José Outeiral

“Educar, ao lado de governar e psicanalisar, é uma profissão impossível.”


Sigmund Freud (1937)

Acredito que são duas as contribuições principais que o psicanalista e o terapeuta de


grupo podem dar à instituição escolar: (1) a primeira é referente ao conhecimento
psicanalítico como uma teoria do desenvolvimento e do funcionamento da mente humana,
e a (2) segunda está ligada ao conhecimento da dinâmica grupal que se estabelece entre a
família, a escola e a sociedade. Na escola, a instrumentação para o trabalho grupal entre as
variadas combinações possíveis podem ser tais como: grupos de alunos, de professores, de
pais.
O relato que passo a apresentar resulta de minha experiência no trabalho com
comunidades escolares e como psicanalista e terapeuta de grupo.

UMA VISÃO GERAL

A escola tem, como sabemos, ao nível consciente, um papel primordial para a


criança e o adolescente. Conforme o ambiente que lhes é oferecido (e suas potencialidades),
teremos um aprendizado propício e prazeroso ou, então, distúrbios de conduta e/ou
aprendizagem. A função da escola é educar, isto é, conforme o significado etimológico da
palavra, “colocar para fora” o potencial do indivíduo, ao contrário de ensinar, que é
in+signo, ou seja “colocar signos para dentro” do indivíduo. Como foi exposto no capítulo
anterior, quando a criança (ou adolescente) chega na escola, ela traz seus aspectos
constitucionais e suas vivências familiares, mas o ambiente escolar será também uma peça
fundamental em seu desenvolvimento. Estes três elementos – aspectos constitucionais,
vínculos familiares e ambiente escolar – constituirão o tripé do processo educacional.
12

Mas qual a escola? Essa é uma pergunta que os pais se fazem com freqüência e que
é extremamente necessária, pois uma criança ou um adolescente (e, inclusive seus pais)
poderá ou não se adaptar em um determinado ambiente escolar. As escolas são instituições
com “culturas” próprias e singulares (Cultura de Grupo; Bion, 1963) e que terão
significados diferentes para diferentes alunos. A escola, a sala de aula, é um lugar
“imaginário”, “mais além” do espaço real de cadeiras, classes e salas. Ela é o que o aluno
percebe a partir de sua história, seus desejos e seus medos. Na escola acontece um interjogo
de forças inconscientes que se cruzam, opõem-se, conflitam-se ou se reforçam, através de
situações manifestas, claras e evidentes, ou de um sutil operar oculto, latente, e, nem por
isso, menos importante. Cria-se, então, na escola, uma dinâmica grupal que precisa ser
compreendida, e nesse ambiente, a presença de profissionais com treinamento para o
trabalho com grupos é muito importante.
Algumas escolas têm seu processo educacional mais dirigido, com limites mais
estreitos, ao contrário de outras, mais abertas e mais liberais. Um adolescente, por exemplo,
com dificuldades de organização poderá se beneficiar (ou não) de um ambiente escolar
mais estruturado e de limites mais precisos, sendo necessário avaliar, em cada caso, a
situação, buscando conhecer como funciona determinada escola. As simplificações do tipo
“meu filho é tímido, portanto, precisa de uma escola mais liberal” ou “como ele não tem
limites, uma escola mais rígida irá ajudá-lo” não são sempre verdadeiras. O “óbvio
ululante” , no sentido que usa Nelson Rodrigues – nosso cronista do dia-a-dia – de que cada
criança e adolescente e cada escola têm peculiaridades próprias é fundamental. As escolas,
por seu lado, têm o que chamamos de um “currículo manifesto” e um “currículo oculto”, ou
seja, aquilo que manifestamente é dito e/ou escrito e a verdadeira prática no cotidiano da
sala de aula. É importante, também, que pais e professores saibam, dentro de uma visão
de dinâmica de grupo, que estes últimos serão os “recipientes” de impulsos, ansiedades,
fantasias, emoções, paixões e pensamentos, mais ou menos conscientes, que crianças e
adolescentes têm em relação a seus próprios pais. Amor e agressividade originalmente
dirigidos aos pais serão “transferidos”, (ou projetados) para os professores. Poderá, por
exemplo, acontecer que um adolescente irritado com seus pais tenha com estes uma atitude
aparentemente “adequada” extravasando com um professor toda a “ bronca” com pai e a
mãe. O professor ficará surpreso com a atitude do aluno, mas sua experiência e intuição lhe
13

farão perceber que “algo se passa...” de diferente. Poderá acontecer também,, tomando o
exemplo anterior, que o adolescente não demonstre explicitamente a irritação dirigida aos
pais com o professor e que a conduta negativa venha na forma de um baixo rendimento
escolar. E não serão apenas os sentimentos agressivos que serão “transferidos desse modo”,
os amorosos também. Os professores são muitas vezes os primeiros objetos – após os pais –
de “amor edípico”, ocorrendo uma “transferência” amorosa. Por exemplo, um menino pode
transferir o amor que sente pela mãe para uma determinada professora, por esta lembrar-
lhe, consciente ou inconscientemente a figura materna. Esse amor tem um aspecto
incestuoso, produzindo ansiedade e culpa, o que poderá se manifestar de uma forma
sublimada, através de um grande interesse em aprender ou, ao contrário, por um
desinteresse pela matéria. Algumas dificuldades escolares se organizam em torno de
problemas desse tipo. É interessante também lembrar que trabalhar com crianças e
adolescentes desperta aspectos infantis e adolescentes nos adultos, e isto, nos professores,
poderá desenvolver distintos sentimentos por uma determinada criança ou adolescente que
lhe evoque sua próprias situações de vida nestas etapas do desenvolvimento.
A escola não oportuniza somente a relação com o saber e, como uma atividade
eminentemente grupal, também tem funções de sociabilização. Em busca de sua identidade
o jovem encontra na micro-sociedade que é a escola um sistema de forças que atuam sobre
ele: entre outras coisas, reedita seu ciúme fraterno, compete, divide, ou seja, exercita o
viver em grupo.

UMA COMPREENSÃO INTERSISTÊMICA

Como compreensão intersistêmica me refiro a um triângulo que tem, como é evidente , uma
interação muito dinâmica entre seus vértices: a família, a escola e a sociedade. Uma visão
que privilegie este enfoque é essencial para que o trabalho com um sistema educacional
seja efetivo. Uma outra visão, digamos espacial, para transmitir a minha idéia, é considerar
a escola como no meio do caminho entre a família e a sociedade: quase um “espaço” de
transicionalidade ( Winnicott, 1975): não é mais o conhecido e protegido “espaço familiar”
14

e tampouco o tão temido e desejado “mundo adulto”. Assim, a escola é o locus onde a
criança e adolescente exercitam seus passos em direção a independência, à individualização
e à separação do seu grupo original. Pensando dessa forma, é necessário considerar que a
escola sofre importantes pressões, mais ou menos manifestas, às vezes diretamente e outras
vezes de forma indireta, em algumas situações em nível consciente e em muitas outras
inconscientemente, tanto por parte da família como pelo lado da sociedade. Defrontamo-
nos, então, com uma tarefa – a educação - complexa e difícil, e ao mesmo tempo sedutora e
gratificante, o que levou S. Freud, a considerá-la como “impossível”.

Parodiando S. Freud, quando ele se referiu à mulher, quero formular duas perguntas – “O
que quer a família?” e “O que quer a sociedade?”- para que possamos compreender o que a
família e a sociedade esperam da escola.

O que quer a família?

Inicialmente, é necessário dizer que não existe um “modelo” de família, mas sim uma
diversidade de modelos familiares, com muitos traços em comum entre si, mas com uma
infinidade de singularidades. É possível se pensar que cada família tem uma identidade
própria e, como tal, fantasias, situações traumáticas, perdas, mitos familiares, segredos e
uma historia. Trata-se, na verdade, de um agrupamento humano em constante evolução,
constituído com um intuito básico de prover a subsistência de seus integrantes e protegê-
los. É dessa maneira palco dos “dramas” de nossa espécie: amor, ódio, ciúme e inveja, entre
outros sentimentos mais ou menos confessáveis, que estão presentes no quotidiano deste
agrupamento especial. O que S. Freud descreve em Totem e tabu, ao falar da horda
primitiva, pode ser observado, tal como eu penso, com facilidade nas famílias; quero frisar,
entretanto, que escrevo sobre as “famílias comuns”. Os mecanismos que operam nos grupos
são, evidentemente, observados na dinâmica grupal da família, com o fato de que ali os
laços de dependência são fundamentais, e o convívio de seus integrantes é constante e
permanente, o que propicia que se revelem estados mentais primitivos (como testemunho
disso, podemos observar como as violências físicas e psíquicas contra crianças ocorrem,
com freqüência, dentro da própria família). Em relação aos filhos e às expectativas quanto à
15

escola, encontramos várias fantasias familiares, das quais enumerarei apenas duas delas: (a)
o desejo de que a instituição escolar “eduque” o filho naquilo que a família não se julga
capaz, como, por exemplo, em relação a limites e sexualidade, e (b) que ele seja preparado
para o ingresso na universidade e para obter um êxito profissional e financeiro. A escolha
da escola pela família, assim, é um ponto que requer avaliação para que se possa entender o
que levou a tal decisão, quais as fantasias e expectativas, se considerarmos que cada
instituição, bem como as famílias, têm também suas características e peculiaridades,
algumas têm um sistema mais “rígido” e outras são mais “flexíveis”, determinadas escolas
são ligadas a grupos étnicos ou religiosos e isso determina uma história, uma maneira de
“ser”, enfim, uma identidade. Algumas terão uma perspectiva mais “humanista” e outras
serão mais “técnicas” e há as que ainda estão passando por transformações, pois – assim
como todas as instituições – elas têm um “ciclo vital”. A família precisa saber por que
optou por esta ou aquela escola, o que torna necessário conhecer a instituição tanto quanto
possível. As escolas não são organizadas para receber “qualquer criança”, assim como as
crianças não necessitam se adaptar a “qualquer escola”.

O que quer a sociedade?


A sociedade procura ter na escola uma instituição normativa que trate de transmitir a
cultura, incluindo aí, não apenas conteúdos acadêmicos, mas, e principalmente, seus
elementos éticos e estruturais. O currículo é construído em função desses fatores, de uma
forma manifesta (ou explicita, escrita em seus estatutos) ou latente (no dia-a-dia). Se, de
alguma maneira, a escola “colide” com as pretensões da sociedade, esta trata de submetê-la
a seus objetivos, das mais diversas maneiras. Podemos pensar, por exemplo, sobre a
situação do ensino público e refletir sobre este tema.

A DINÂMICA DE GRUPO NA ESCOLA

Podemos pensar, de uma maneira metodológica, que existirão três maneiras de operar com
grupos na escola: grupos de alunos, grupos de professores e grupos com pais. É certamente
possível fazermos diversas outras combinações, mas é sobre as referidas que vou comentar,
por serem as mais freqüentes. As ansiedades, as fantasias e as defesas serão as que
16

encontramos na dinâmica dos grupos em geral e que, em minha maneira de pensar, são
melhor trabalhadas dentro dos conceitos de grupo desenvolvido por W. Bion (1970). É
fundamental que conheçamos os mecanismos dos grupos de trabalho, grupos de
dependência, grupos de luta-e-fuga e grupos de acasalamento, tais como nos aporta este
autor.

GRUPOS COM ALUNOS

Atividades de grupo com alunos são fundamentais para uma “vida escolar” eficiente. Esses
grupos, tais como eu tenho acompanhado, são realizados semanal ou quinzenalmente (com
um total ótimo de não mais de 15 alunos), com as turmas divididas em dois grupos, por um
ou dois períodos escolares, coordenados – em geral – por um orientador escolar, seguindo a
idéia geral de grupos operativos (Zimmermann, 1969). Estes grupos são centrados
essencialmente em uma ou mais tarefas, tais como, por exemplo, os relacionamentos dentro
de uma sala de aula ou no manejo de situações ligadas a limites ou sexualidade, que em
minha maneira de ver são as “demandas” mais freqüentes. Passarei a relatar alguns
exemplos clínicos de situações.

O final do curso

Em uma escola (como acontece em quase todas) as turmas do terceiro ano do Ensino Médio
apresentavam uma conduta agressiva entre os próprios alunos e com os professores e no
“último dia de aula” (como já vinha acontecendo nos últimos meses...) criavam situações
difíceis, depredando a escola e causando tumultos na rua, o que tornava necessário chamar
não só os pais, mas inclusive a policia e “punir” exemplarmente alguns alunos. Foram então
realizadas reuniões com professores, ficando evidentes os seguintes aspectos: (a) que essas
“atuações” diziam respeito à dificuldade dos alunos de se separarem da escola ao final do
curso, refletindo assim uma dificuldade também com o processo de separação-individuação
em relação a seus próprios grupos familiares, uma das tarefas centrais da adolescência
(Outeiral, 1994), e (b) que os professores também tinham dificuldades em se separar dos
17

seus alunos, com os quais estavam em contato, muitas vezes desde a infância e que, de
forma inconsciente, também “atuavam” não conversando (não preparando) com os alunos
sobre isso, mas apresentando uma descrição “trágica” do mundo fora da escola ( “vestibular
muito difícil”, “perspectivas profissionais péssimas”, etc. ...só para citar algumas). Não
surpreendia assim que os alunos expressassem suas ansiedades e fantasias de uma maneira
manifesta com agressividade, bem como as de seus professores, que de uma maneira
inconsciente as projetavam neles e os faziam “atuar”, atacando a instituição e assim
negando a dor psíquica e a depressão de ter de se afastar de um local onde tinham tantas
ligações. Trabalhou-se, então, com alunos e professores em torno deste tema: (a) da
ansiedade de separação como fenômeno presente e fundamental de experiência humana; (b)
da “atuação agressiva” como negação dos sentimentos relacionados com a ansiedade de
separação (se denegrimos o objeto ao qual estamos ligados, sofremos menos com a
separação); e (c) como os fenômenos mentais observados eram comuns a alunos e
professores. A estratégia utilizada foi trabalhar em grupos com alunos, professores e pais.
Com os alunos, a partir do segundo semestre do último ano (nas reuniões, o tema
“separação” era trazido e discutido tanto no que dizia respeito à escola como à família),
com os professores (examinado como sentiam a saída dos alunos e como os “assuntavam”,
bem como fantasias e realidades deles próprios – em suas adolescências inclusive –
relacionadas a essa questão) e com os pais (sobre como enfrentaram os processos de
separação) em reuniões mais espaçadas. O discutir e compreender os fatos, nos diferentes
níveis (ansiedades, mecanismos de defesa, momentos evolutivos, funcionamento consciente
e inconsciente, dinâmica de grupo, etc.), auxiliou todos – alunos, professores e famílias – e
diminuiu em muito “o terror dos últimos dias de aula”, que foi substituído por excursões,
torneiros esportivos, apresentações teatrais sobre o tema, convite a profissionais para
falarem sobre sua profissões e o mercado de trabalho, etc.

Uma vinheta de um grupo operativo com adolescentes


18

Estão reunidos cerca de 15 adolescentes, rapazes e moças, de uma mesma série com idades
entre 15 e 16 anos. O grupo é realizado por uma orientadora educacional a cada 15 dias e
tem a duração de 50 minutos, tempo que representa a duração de uma aula.
O clima é de risos, alguma coisa escondida é passada de mão em mão. A orientadora
intervém, perguntando o que se passa. Os adolescentes seguem rindo, como se
compartissem um segredo entre eles, com a orientadora “ficando de fora”.

Orientadora: “penso que vocês querem me manter de fora... Talvez esteja ocorrendo algo
como em casa, ou seja, vocês necessitam manter algo ‘escondido’ dos pais...”
Aluno: “Não é nada... é só uma brincadeira... quem sabe a professora tenta adivinhar o que
é?”
Os alunos começam novamente a rir. Dois ou três deles pedem silencio e tentam “cessar a
bagunça”. A orientadora percebe que uma parte do grupo começa a se ocupar com a
realização da “tarefa”.
Orientadora: “Parece que começa a haver, por parte da turma, um interesse pelo que nos
reúne aqui...”
Ela não faz sua intervenção se referindo a “alguns” alunos, mas trata de estendê-la a todo o
grupo, tomando a manifestação de alguns alunos como uma expressão de toda a turma. Os
alunos diminuem a “bagunça” e se mostram mais atentos: começa a se estabelecer um nível
mais integrado de funcionamento.
Um dos alunos: “Ei! Vamos calar a boca! Vamos terminar com essa esculhambação!”
A orientadora pensa que começa a surgir um movimento em torno de um líder autocrático
(“superegóico”, associa...), mas é rapidamente interrompida em seus pensamentos.
O mesmo aluno de antes: “Vamos organizar as coisas! O assunto é se podemos ou não fazer
provas com consulta... porque algumas disciplinas permitem e outras não...”
Os alunos agora estão (relativamente...) quietos e pararam de passar entre si uma camisinha
(preservativo), que havia sido distribuída a um deles como divulgação de uma campanha
contra a AIDS. A orientadora percebe que o tema da sexualidade, que causava a “bagunça
anterior”, ficou deixado de lado, embora seja o verdadeiro “emergente grupal”. Ela associa
que “deixar ou não deixar”, proibir ou não proibir, tem mais a ver com o tema da
19

camisinha/sexualidade do que o de poder-fazer-prova-com-consulta-ou-não. Evita


interpretar neste momento, resolvendo aguardar a evolução do grupo.
Vários alunos falando ao mesmo tempo: “É absurdo, ou deixam ou não deixam ! Uau,
vamos resolver isto agora! Ë impossível fazer provas sem consulta! Esta é uma escola
moderna ou não!”
O “líder autocrático” (agora com mais seguidores): “Vamos ficar quietos! Em ordem!”.
A orientadora até este momento havia “deixado” seguir o grupo, intervindo pouco. Percebe
que é necessário, agora, contribuir para a “organização”.
Orientadora: “Vamos objetivar! Ficamos hoje de conversar sobre haver ou não consulta na
prova, este é o nosso tema! Vamos fazer uma agenda e anotar os nomes de quem quiser
falar! Por ordem! Quem quer anotar os nomes?”
O “líder autocrático”: “Eu inscrevo quem quiser falar!”
Vários alunos levantam o dedo e são agendados. A orientadora percebe que o grupo estava
mais integrado. O “líder autocrático”, percebido também como um emergente grupal,
estava agora “mais democrático”. A dinâmica do grupo se encaminhava para a de “um
grupo de trabalho” (Work Group; Bion, 1961). Ocorre à orientadora que, em sua
experiência, os grupos de adolescentes, em todas as reuniões, passavam por um período
inicial de desorganização, que ela associou de várias maneiras: buscam investigar os
“limites” do grupo; precisam de um período de hesitação inicial (period of hesitation;
Winnicott, 1975), como descreve Donald Winnicott no Jogo da Espátula; que no inicio
predomina sempre um grupo de luta-e-fuga (Basic Assumption: Fight-flight; Bion, 1961). A
orientadora começa a “compreender teoricamente” o funcionamento grupal e a pensar na
organização deste material para levar para supervisão. Percebe, entretanto, que agora é ela,
em seu “devaneio teórico” que “ataca a tarefa” e volta para agenda...

Uma menina que era chamada de “galinha” pelos colegas...

Um grupo de adolescentes de 10 a 12 anos, mostrava-se agitado, com agressões e baixo


rendimento escolar. A “bagunça” estendia-se a todos os momentos em que estavam na
escola. Um professor observou que brincavam aos empurrões e lhe pareceu que, assim,
buscavam um contato físico entre si. Essa observação cuidadosa e oportuna fez com que o
20

Serviço de Orientação Educacional reunisse o grupo para “conversar” sobre o que estava
acontecendo. Os assuntos trazidos evidenciaram que a puberdade e a adolescência inicial
estavam produzindo toda a “turbulência” e que os mais “agitados” estavam, realmente,
mais “excitados”: davam “puxões” e “empurrões”, faziam freqüentes reuniões dançantes e
chamavam de “galinha” uma menina que, precocemente, apresentava os primeiros sinais de
puberdade e que, com suas características sexuais secundárias, provocava ansiedade na
turma, que tentava, então, “queimá-la” numa “versão púbere” da Inquisição. As reuniões
com o Serviço de Orientação Educacional ofereceram um “limite”, um espaço e um tempo
“protegido”, que propiciou substituir a “agitação” pela verbalização dos conflitos.

GRUPOS COM PROFESSORES

As atividades de grupo com professores poderão se desenvolver de várias maneiras: com


professores de uma mesma disciplina, de uma série, com professores de sala de aula e com
os que estão em atividades de apoio didático e/ou administrativo – são, enfim, variadas as
possibilidades. O trabalho de consultoria psiquiátrica (Silva, 1980) se constitui também em
um importante modelo de dinâmica de grupo que pode ser aplicado em uma escola. As
atividades grupais poderão ser organizadas de uma maneira sistemática (um semestre ou
um ano letivo) ou em torno de uma tarefa específica (com um número definido de
reuniões). O ideal é que sejam coordenadas por uma pessoa não diretamente envolvida nas
situações que serão examinadas e que por este motivo poderá manter uma visão mais
“neutra”. As resistências do trabalho grupal deverão ser compreendidas, aceitas e, se
necessário, assinaladas. Essa ressalva é importante porque, muitas vezes, existe uma
fantasia entre os professores de que são os “mestres” e que “não vão à escola para
aprender”, “representam o mundo adulto e, por isso, mais maduro, com razão, etc...”, sendo
difícil aceitar que também eles poderão aprender muito com a escola e, certamente, com os
adolescentes. O paradoxo da escola é de que lá, onde alguns ensinam a muitos, todos
aprendem! Para ilustrar, alguns exemplos:

A colocação de limites
21

Certa ocasião, comecei a trabalhar com um grupo de professores, a pedido deles,


porque estavam com “dificuldades em colocar limites em um grupo de alunos”; estes
quebravam objetos escolares, jogavam cadeiras pelas janelas e desafiavam os professores.
Os professores estavam, como diziam, “imobilizados”, sem saber se deveriam tomar
atitudes “mais firmes e até mais drásticas” ou “ir relevando e tentando conversar” com os
alunos. Temiam ser tanto “permissivos” como “castradores”, e a situação ia “se
arrastando...” Iniciamos a trabalhar com essas questões e eu me surpreendia com a
dificuldade que tinham de colocar limites “na prática” porque “na teoria” sabiam como
deveriam fazer frente às situações que estavam acontecendo. Era evidente que algo que
escapava à compreensão do conteúdo manifesto estava ocorrendo, isto é, havia certamente
elementos inconscientes impedindo uma visualização e uma tomada de posição. Enquanto
discutíamos e eu não compreendia o que se passava, os professores e funcionários desta
instituição entravam em greve, protestando “pela má situação salarial”. Ficou evidente,
então uma irritação importante dos “adultos” com a instituição, irritação essa que ainda não
havia surgido nas reuniões. Seguimos trabalhando, mesmo no período de greve, por
insistência dos professores, que queriam saber o que fazer com os alunos quando
retornassem. O trabalho em grupo possibilitou, entretanto, compreender o que acontecia.
Ficou evidente para os professores que suas dificuldades em pôr limites deviam-se ao fato
de que os alunos tinham atitudes que eles, de maneira inconsciente, estimulavam,
aprovavam e – de certa maneira – com sua passividade estimulavam; eles, “os adultos”, não
podiam “atacar” diretamente a instituição, coisa que os alunos faziam por eles... A
compreensão desses mecanismos permitiu “recuperarem” seu conhecimento pedagógico e
agir de forma madura e eficaz.

Os “bons” e os “maus” professores

A direção de uma escola havia decidido tomar um atitude com determinados professores
que estavam tendo “dificuldades” com os alunos, ou seja, não conseguiam colocar limites
ou, quando o faziam, era de forma “ríspida” e da qual os alunos muito reclamavam. Eram
tidos pela comunidade escolar como “professores mal-preparados”, na verdade, como
22

“maus professores”. Foram realizadas, então, inicialmente, atividades grupais com a


direção e com os orientadores educacionais. No trabalho, foi possível constatar que havia
uma grande dissociação, onde os alunos e parte dos professores (“os bons professores”)
depositavam em um pequeno grupo (“os maus professores”) todos os aspectos indesejáveis
e regressivos da comunidade escolar e, assim, estes tornavam-se os “bodes expiatórios”,
que, como no exemplo bíblico, necessitavam ser “sacrificados” para manter a homeostase
do grupo. Em um segundo momento trabalhamos com o grupo de professores e o grupo de
alunos. À medida que a dissociação foi sendo elaborada e a questão dos “bodes
expiatórios” melhor compreendida, estes últimos começaram a se recusar a assumir o papel
que lhes estava sendo designado, e os aspectos que eram projetados (e assumidos) neles
começou a ser melhor distribuído entre o grupo; todos tinham problemas em pôr limites.
Os “bons professores”, na verdade, tratavam de “seduzir” os alunos e assim melhor
controlá-los, ocultando suas dificuldades. A comunidade escolar funciona também como
um sistema de vasos comunicantes; a pressão dos alunos, isto é, a necessidade que tinham
de serem “contidos”, como é natural na adolescência, deslocava-se toda para um grupo de
professores que tinha, então, de lidar com uma “carga excessiva”. No trabalho com o grupo
de alunos, estes aspectos também foram examinados e foi interessante observar como eles
começaram a identificar os elementos “bodes expiatórios”, entre eles. O que inicialmente
parecia dirigir-se para um ritual de “sacrifício” pôde ser compreendido e possibilitou aos
diversos grupos uma atitude mais madura e compreensiva.

Alunos desinteressados

As professoras queixavam-se de que os alunos do turno da noite que trabalhavam


durante o dia recusavam-se a entrar n sala de aula, e a maioria permanecia nas imediações
da escola namorando, conversando ou fumando. Na atividade de grupo com os professores
conversamos sobre o tipo de aluno que freqüentava o turno noturno. Quase todos
trabalhavam e no serviço eram responsáveis. O que se passava, então, quando estavam na
escola? Não demorou muito para que se tornasse evidente que o currículo oferecido não
respondia às necessidades imediatas desses alunos, era pouco motivador e distanciado de
suas vivências. Mais interessante ainda foi perceber, progressivamente, num trabalho de
23

elaboração grupal, que também os professores estavam identificados “desinteresse” dos


alunos: sentiam-se desmotivados, pouco valorizados e não remunerados de uma forma
digna. Ficou claro que se sentiam como adolescentes e, assim, também não procuravam
respostas mais criativas e currículos mais atualizados.

Os níveis de competência

Em uma determinada situação os professores após conversarem com os pais e instados por
eles - que reclamavam da “pouca atenção” da escola pela “educação sexual” – começaram
a se mobilizar, organizar seminários, preparar currículos, convidar profissionais, etc., de
uma forma, digamos, “excessivamente preocupada e apurada”. Depois de algum tempo,
começaram a se sentir desestimulados e sem saber como encaminhar, na prática, as
questões “exigidas” pelos pais. Trabalhando em grupo, fomos percebendo como os pais
haviam acionado os professores, fazendo-os sentirem-se responsáveis por uma “educação”
que era, principalmente, encargo da família; os pais evitavam falar com os filhos sobre um
tema que lhes era difícil e o “passaram” para os professores; estes por sua vez sentiram-se,
inicialmente, “orgulhosos” da tarefa, mais valorizados como se “soubéssemos mais do que
os pais”, e excederam a sua competência. A reflexão permitiu compreender que seria mais
adequado chamar, antes dos adolescentes, os pais, para juntos definirem melhor a tarefa, as
competências e as formas de encaminhar o trabalho não só da escola , mas também – e
principalmente – nas casas, entre pais e adolescentes.

Consultoria psiquiátrica

Várias são as possibilidades de trabalho grupal dentro da perspectiva da consultoria


psiquiátrica (Silva, 1980). Minha experiência com essa atividade compreende um trabalho
semanal, programado para dois semestres letivos, com grupos de orientadores, em torno de
7 ou 8 profissionais. Com uma hora de duração em cada encontro. É necessário que seja um
projeto que tenha uma duração razoável, pois ele tem um objetivo informativo e, em certa
medida, também formativo, se considerarmos que as próprias vivências do grupo serão
trabalhadas para desenvolver habilidades nos participantes. A consigna básica é a discussão
24

de situações vividas em sala de aula, trazidas a critério dos orientadores. As principais


questões diziam respeito às dificuldades de um determinado aluno e de manejo de situações
de grupo em sala de aula. Quando, por exemplo, era trazido “um aluno” para discussão,
buscava-se ter uma visão global da dificuldade, momento evolutivo, situação familiar,
atitude dos colegas e professores, etc., estabelecendo-se uma reflexão entre todo o grupo;
algumas vezes se compreendia a “sintomatologia” como uma expressão do momento
evolutivo da criança; em outras ocasiões, como um “emergente grupal” (como um “bode
expiatório”) ou, ainda, como alguém que necessitava de ajuda especializada, discutindo-se,
então, o encaminhamento, entre muitas outras experiências. O grupo de orientadores
desenvolveu uma habilidade crescente em relação a estes elementos e ao seu próprio
funcionamento como grupo e, a partir disso, a aplicação deste conhecimento na dinâmica
grupal da sala de aula. Nas discussões, para exemplificar, alguns se mostravam mais rígidos
e “punitivos”; outros, condescendentes e “maleáveis”, o que oportunizava discutir os
mecanismos de cisão, identificação projetiva e introjetiva, etc. Considero este tipo de
atividade uma das mais importantes no trabalho com grupos de professores.

GRUPOS COM PAIS

Os grupos com pais poderão, também, ser de diversos tipos:


· Grandes grupos, com um tema geral para ser discutido, escolhido pelos pais e
com a ajuda de profissionais. Inicialmente, todos assistirão a uma exposição,
depois serão feitos pequenos grupos para reflexão e discussão sobre o tema (com
um secretário anotando as principais questões) e, ao final, haverá um retorno ao
trabalho em grande grupo, com uma breve exposição do secretário de cada
pequeno grupo e o coordenador fazendo uma síntese.
· Pequenos grupos para discussão de determinados temas ou situações específicas
sugeridos pelos próprios pais e/ou pela escola, com uma freqüência combinada,
como, por exemplo, uma reunião semanal ou quinzenal, de uma ou uma hora e
meia de duração, por período de alguns meses.
· Grupos de pais e professores (e, eventualmente, alunos) reunidos em conjunto,
para discutir questões comuns na comunidade escolar.
25

Exemplos

Drogas e sexualidade

Um assunto que surge, amiúde, como demanda de informação por parte dos pais é
“drogas”. Evidentemente, esse é um assunto muito importante, porém é significativa a
freqüência com que surge como tentativa de encobrir outras questões mais comuns, como a
“sexualidade”, pelas quais todos passam, o que não acontece com drogas, e sobre a qual é
muito mais difícil falar. Ter um “posicionamento” sobre “drogas” é fácil, mas sobre
“sexualidade” é bem mais difícil. Certa ocasião, uma escola religiosa, que até há poucos
anos havia sido exclusivamente feminina, organizou um programa chamado de
“Adolescência hoje”, incluindo toda a comunidade escolar. Ocorreram situações grupais
muito interessantes, algumas até mesmo cômicas. Em uma reunião de pais, com o auditório
lotado, antes de iniciar uma conferência sobre o tema “sexualidade na adolescência”, o
expositor foi até o banheiro. Inadvertidamente, uma religiosa da escola o fechou a chave no
banheiro, atrasando a reunião por mais de meia hora, com todos procurando o expositor...
Nesta mesma ocasião, após uma “conferência” com os alunos, alunas em sua maioria, o
expositor começou a receber perguntas escritas, e a primeira, significativamente, dizia “O
problema desta escola não é drogas é sexo...”, que ao ser lida causou muito riso em todos.
Estes episódios, de conteúdo maníaco pelas reações que produziram, permitiram trabalhar e
entender que a demanda verdadeiramente necessária da escola era o tema da sexualidade,
tanto por parte dos adultos como de adolescentes. O programa que havia sido planejado
passou a incluir então este tema tão emergente e difícil de ser abordado. O episódio do
banheiro foi tomado não como uma simples anedótica casualidade, mas como uma
expressão de emergente grupal, assim como a pergunta-afirmação de uma aluna também foi
compreendida desta forma. Tais fatos foram percebidos como “comunicações” de toda a
comunidade e utilizados para o entendimento da situação.

Trabalhando com o tema da identidade em uma “escola de comunidade”


26

Em uma “escola de comunidade”, isto é, ligada a uma comunidade religiosa e cultural foi
feito um trabalho, com pais e professores cujo tema era “Identidade e Juventude”.
Inicialmente, foi feito com um grupo de representantes dos pais, professores e um líder
religioso um levantamento de temas que lhes pareciam importantes para essa questão: o
ritual de iniciação dos jovens e um tema religioso sobre a morte. Surgiram, em torno desses
dois temas, variados elementos, como peças de teatro, filmes, poesias, contos, desenhos e
pinturas, etc. Os adultos mostraram-se muito interessados e estimulados na busca desses
elementos culturais e religiosos, como se a proposta, inicialmente, tendo os jovens como
pretexto, fosse uma demanda, um desejo deles próprios. Assim, em um primeiro momento,
trabalhou-se este tema com os adultos da comunidade, pais e professores. A dinâmica de
grupo utilizada transcorreu da seguinte forma: inicialmente se assistia (ou eram feitas
leitura coletivas) de contos, poesias, teatro ou cinema sobre os temas; posteriormente,
organizava-se uma mesa com profissionais de diversas áreas (literatura, psicanálise,
religião, etc.) para apresentação dos temas conforme a “ótica” de cada um e, após, o
“grande grupo” era dividido, as apresentações comentadas e finalmente o “grande grupo”
se reunia novamente para discussão. O importante, nesse trabalho, além da dinâmica
utilizada, foi compreender que a sugestão feita pelos alunos era importante para eles,
desejosos de trabalharem “suas raízes” e sua identidade religiosa e cultural. Tal experiência
produziu alguns textos que, desdobrados, hoje servem aos mesmos objetivos em outras
localidades e novos elementos culturais foram incorporados e, mesmo encontrados após
pesquisas.

A utilização do teatro como “mote” para o trabalho grupal com pais

Uma experiência interessante é a utilização de pequenos “esquetes”, escritos pelos


próprios alunos e/ou professores (Berlim, 1996), sobre temas de interesse levantados pelos
pais. Esses esquetes são apresentados pelos alunos e, depois, são discutidos entre os pais
com a coordenação de um orientador (ou profissional da área convidado). O teatro produz
um “impacto mobilizador” entre os participantes que é muito produtivo.
27

ELEMENTOS BÁSICOS DA DINÂMICA DE GRUPO NA ESCOLA

Esclarecendo meus marcos referenciais teóricos e clínicos básicos, quero fazer


referência a alguns textos que considero fundamentais: inicialmente a dois livros de
Sigmund Freud, Totem e tabu (1913) e Psicologia de grupo e análise do ego (1921); ao
clássico texto de Bion, Experiências com grupos; ao livro de David Zimerman, Estudo
sobre psicoterapia analítica de grupo (1969) ; ao livro de Luiz Carlos Osório e
colaboradores, Grupoterapia hoje (1986); ao de David Zimerman, Fundamentos básicos
das grupoterapias ( Zimerman, 1993) e, last but not least, os trabalhos Os sistemas sociais
como defesa contra as ansiedades persecutória e depressiva, de Elliott Jaques, e O
funcionamento dos sistemas sociais como defesa contra ansiedade, de Isabel Menzies
(1969). Acredito que esses livros e trabalhos serão de ajuda aos profissionais que
desenvolverem sua prática clínica nas escolas, e como eles quero compartir essas
referências que me foram úteis. Caso seja possível fazer uma síntese sobre a dinâmica de
grupo na escola (ou qualquer outra estrutura social), sugiro que imaginemos o seguinte
“esboço”:
· O grupo, evidentemente composto por indivíduos, funciona como se fosse uma
unidade, e seus componentes representam aspectos desta “unidade-formada-por-
partes”; a manifestação de um dos membros é tomada (embora nem sempre)
como um emergente de todo o grupo;
· A integração grupal permite aflorar (e, inclusive, produz) diversas ansiedades e
fantasias que determinam mecanismos de defesa do grupo e, por fim, a forma de
funcionamento mais ou menos integrada deste grupo;
· As necessidades predominantes serão do tipo confusional, paranóica e
depressiva, e os mecanismos de defesa mais observáveis (relacionados às
fantasias e ansiedades anteriormente descritas) são, principalmente, a cisão, a
identificação, a identificação projetiva e introjetiva e os mecanismos maníacos e
de reparação (Segal, 1964; Winnicott, 1935);
· Estes processos de funcionamento grupal determinam o surgimento de papéis no
grupo (“bode expiatório”, “bom aluno” ou “bom professor”, “mau aluno” ou
“mau professor”, “profeta”, etc.) que, quanto mais “fixos”, mais representam
28

uma atitude regressiva do grupo comum como um “todo” (e, consequentemente,


quanto mais “saudável” o grupo, mais estes papéis “circulam” entre seus
membros);
· O grupo tenderá a funcionar de uma maneira alternada entre o grupo de trabalho
e os supostos básicos de funcionamento grupal, tal como descritos por Bion
(1961), como “grupo de dependência”, “grupo de acasalamento” e “grupo de
luta-e-fuga”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERLIM, C. Esquetes. Comunicação pessoal, 1996.


BION, W. Experiências com grupos: os fundamentos da psicoterapia de grupo. Rio de
Janeiro: Imago, 1970.
FREUD, S. Totem e tabu, E.S., vol. XII, 1913.
FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego E.S., vol. XVII, 1921
MENZIES, I.; JAQUES, E. Los sistemas sociales como defensa contra la ansiedad. Buenos
Aires: Horme, 1969.
OSORIO, L.C. Grupoterapia hoje. Porto Alegre: Artes Médicas,1986
OUTEIRAL, J. Bion e os grupos. Trabalho apresentado em reunião clínica, na Sociedade
Psicanalítica de Pelotas, dez. 1990 12 pp.
OUTEIRAL, J. Adolescer: Estudos sobre adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
SEGAL, H. Introduction to the Work of Melanie Klein. William Heinemann-Medical Books ltd., 1964.
SILVA, A .C. Uma experiência de consultoria psiquiátrica em escola com população de
alunos adolescentes. In: ZIMMERMANN, D. Temas de Psiquiatria. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1980.
WINNICOTT, D. The maniac defense. In: WINNICOTT, D. Through paeditrics to Psychoanalysis. London:
The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1975
WINNICOTT, D. The observation of instants in a set situation. In: WINNICOTT, D. Through paediatrics to
psyco-analysis. London: The Hogarth Press and The Institute of Psyco-Analysis, 1975.
WINNICOTT, D. Transitional objets and transitional phenomena. In: WINNICOTT, D.
Through paediatrics to psyco-analisys. London: The Hogart Press and The Institute of
Psyco-Analysis, 1975.
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos básicos das grupoterapias. Porto Alegre: Artes Médicas,
1993
ZIMMERMANN, D. Estudos sobre psicoterapia analítica de grupo. São Paulo: Mestre Jou, 1971.
29

CAPITULO 3

VIOLÊNCIA NO CORPO E NA MENTE: CONSEQÜÊNCIAS DA


REALIDADE BRASILEIRA
José Outeiral

“O que viola o outro o corrompe”


(Maomé, citado por Masud Khan)

Como médico, psiquiatra de crianças e adolescentes e psicanalista, meu vértice de


observação é dado pela teoria e pela clinica psicanalítica. Minha prática é determinada,
entretanto, pelo trabalho clínico com uma fatia da população adolescente: aqueles que
possuem um suporte familiar “suficientemente bom”, têm acesso à escola, aos bens e
valores da sociedade de consumo; enfim adolescentes de nosso estrato social, nossos
adolescentes – filhos, alunos, pacientes, vizinhos, etc. - os adolescentes que fomos, há não
muitos anos, e os adolescentes com os quais convivemos hoje.
Sobre esses adolescentes – de nossa categoria social, econômica e cultural – muito
se tem escrito. Tenho, inclusive, alguns textos publicados sobre este tema. Quero avisar ao
leitor, entretanto, que neste capítulo estou escrevendo sobre adolescentes em relação aos
quais conheço pouco (e certamente incorrendo nos erros de falar sobre o que não sabemos –
ou sabemos?), os adolescentes “excluídos” .
Na verdade, trabalhei durante algum tempo num programa de Psiquiatria
Comunitária em uma vila periférica e, depois, com menores no Juizado da Infância e da
Juventude. Em diferentes ocasiões prestei assessoria à FEBEM e ao município de Porto
Alegre, no manejo com menores infratores e com crianças e adolescentes em situação de
rua ou albergados.
Na vila pude observar, por exemplo, que as adolescentes iniciavam sua vida genital
aos 14, 15 anos, com um número significativo delas engravidando e levando a termo ou não
a gestação, e praticamente todos os adolescentes, rapazes e moças, eram capazes de prover
parte ou a totalidade do seu sustento. Em uma escola de classe média que estudamos na
ocasião, a poucos quilômetros da vila, a situação era totalmente diferente: as moças
30

iniciavam sua vida genital aos 16, 17 anos, poucas engravidavam e nenhum dos
adolescentes trabalhava.
Não sei se esta denominação “adolescentes excluídos” é a mais correta ou oportuna,
mas é certo que ao menos eles são excluídos de nossas discussões e escritos. Quando
concordamos que adolescência é um fenômeno psicossocial (Outeiral, 1994),
reconhecemos que existirão aspectos comuns e também específicos, que caracterizarão o
processo adolescente nos diferentes estratos socioeconômicos e culturais de nossa
sociedade.
Quem são eles – os adolescentes excluídos – e quantos são? As estatísticas são muito
variáveis: alguns dizem que são cerca de vinte milhões de menores desfavorecidos, sete
vezes toda a população do Uruguai ou metade de toda a população da Argentina. Outros
contestarão estas cifras. Mas aí estarão eles: nas ruas, nas estradas, nos campos, nas cidades
e – de novo – nas ruas, entre os carros, provocando em nós os mais variados sentimentos,
confessáveis ou não: vergonha, repulsa, culpa, irritação, medo, etc... Melhor seria não vê-
los, não escutá-los, não senti-los: negá-los, denegá-los ou ainda (de maneira pedante)
podemos dizer Verneinung.
Laplanche e Pontalis, em seu Dicionário de Psicanálise , definem assim este termo:
Processo pelo qual o sujeito, embora formulando um dos seus desejos, pensamentos ou
sentimentos até então recalcados, continua a defender-se deles negando que lhes
pertençam.
Muitos poderão ser os aspectos sobre os quais poderemos nos inclinar para observá-los:
vou comentar apenas alguns deles, convidando o leitor a trazer outros. Vou me restringir ao
tema: a violência no corpo e na mente do adolescente – conseqüências da realidade
brasileira.

A DURAÇÃO E AS ETAPAS DA ADOLESCÊNCIA

Um dos primeiros elementos a serem considerados envolve o fato de que, empiricamente,


considero que nos estratos menos favorecidos de nossa sociedade o processo adolescente,
como tal, é desencadeado mais cedo e é em muitos sentidos, abreviado, sendo a passagem
31

da infância ao mundo adulto bastante rápida. Talvez esteja dizendo algo que pareça óbvio e
nada original, mas julgo necessário fazer este registro.
Podemos observar, com alguma facilidade, uma pseudo-maturidade que se
estabelece, incluindo neste aspecto padrões verbais aparentemente mais desenvolvidos e
uma conduta também em aparência mais adulta. Na verdade nos encontramos diante de
mecanismos defensivos, muitas vezes de sobrevivência do corpo e da mente, em que
estruturas clínicas como as compreendidas no amplo espectro da Tendência Anti-Social ou
do tipo Falso Self representam os níveis mais integrados. O conceito de trauma
acumulativo de Masud Khan também é de utilizade para a compreensão destas situações.

ESTADOS DA MENTE NA ADOLESCÊNCIA

OS EFEITOS TRAUMÁTICOS DA VIOLÊNCIA DA SOCIEDADE


Donald Winnicott nos auxilia neste campo ao descrever sua experiência clínica,
particularmente com crianças separadas das mães durante a evacuação de Londres, na
Segunda Guerra Mundial, com o conceito de Tendência Anti-Social, particularmente ao
referir-se à importância “dos efeitos da separação e da perda, da destruição e da morte”.

TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL
Em um Simpósio, realizado em 1994, pude comentar aspectos da Tendência Anti-Social, tal
como a concebeu Donald Winnicott. As apresentações deste encontro estão publicadas em
um livro editado por David Levisky (Levisky, 1997). O capítulo seguinte deste livro
abordará esta questão com maior profundidade.
Donald Winnicott distingue dois aspectos da privação: (1) deprivation a perda do bom
objeto e a perda do marco confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da
criança se sente segura (estado no qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) privation um
estado no qual jamais se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma
psicose. Assim ele mostrou que a tendência anti-social se articula em um ponto com as
psicoses e em outro com as neuroses. Estabeleceu, desta maneira, que a experiência de
privação dificulta à criança alcançar o estágio de reconhecimento e preocupação com o
outro e um sentido de responsabilidade social dentro do indivíduo.
32

Para este autor, pediatra e psicanalista, os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos
psicopatas mostram sinais de esperança. “A esperança orienta-se a recuperar o que se
perdeu, ou que isto seja devolvido e que os processos de maturação, que ficaram
congelados quando da perda, sejam liberados novamente”. Desta forma, Winnicott,
escreve Clare Winnicott (1989), “explicou ao menos parte da vida afetiva do homem sem
ter que recorrer a um instinto de morte herdado”. Para ele, o furto, por exemplo, está no
centro da tendência anti-social, associado à mentira. Na verdade, a criança que furta um
objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe, sobre quem ela se julga “com
direitos”.
Três são, então, os aspectos básicos da “tendência anti-social” para Donald Winnicott:
· ele relaciona a tendência anti-social “a uma falha ambiental precoce,
principalmente a uma falha na função materna”;
· Distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas: (a) quando a privação
ocorre depois de ter havido uma função materna “suficientemente boa” e por um
período de tempo suportável, a criança poderá desenvolver a tendência anti-
social” - deprivation; (b) se a privação (privation), ou a falha na função materna,
ocorrer desde o inicio da vida, poderá se desenvolver uma doença mental grave
ou uma psicose;
· Donald Winnicott considera que a “tendência anti-social” comporta um
sentimento de esperança, o que dá uma configuração clínica muito especial ao
problema.

FALSO-SELF
A outra questão diz respeito às organizações defensivas do tipo “falso-self”. Esta
situação resulta de cisões muito primitivas ocorridas no ego, com o intuito de proteger o
“verdadeiro self” das falhas e/ou intrusões ambientais, principalmente na relação com a
mãe. Este será um tipo de organização que conduzirá, eventualmente, o adolescente a
um grau razoável de “adaptação social”, embora saibamos que com o tributo da perda
da espontaneidade e da criatividade. Poderá ocorrer também o desenvolvimento de um
“falso self” em que o elemento adaptativo se relacionará a estruturas ligadas à
33

transgressão e a espaços sociais marginais: o adolescente se adaptará, dessa maneira, a


uma “gangue” ou a uma “turma” na qual buscará ser aceito e tratará de se moldar aos
padrões éticos vigentes nestes grupos.

PATOLOGIA DA TRANSICIONALIDADE
No simpósio referido antes, estabeleci, seguindo Donald Winnicott e outros autores, a
relação entre a tendência anti-social e a patologia da transicionalidade. Evidentemente
as patologias vinculadas a um inexistente (ou insuficientemente desenvolvido) ou com
um desenvolvimento atípico (“estruturas lacunares” de K. Friedlander) do superego,
fracasso de uma elaboração edípica e regressão e/ou fixação a elementos pré-gentais
estarão presentes nestes adolescentes. Esta patologia estrutural, reconhecível em termos
metapsicológicos, tem também sua representação psíquica nas alterações do self
decorrentes de falhas nas transicionalidade. Vários autores discorrem sobre estes
aspectos, bastante conhecidos na bibliografia especializada (Outeiral, 1995).

TRAUMA ACUMULATIVO
Masud Khan utiliza o conceito de “trauma acumulativo” para descrever situações que,
penso, se aplicam a esses adolescentes com freqüência. Ele parte da concepção de
Freud sobre a função da mãe como escudo protetor, desenvolvida em “Além do
principio do prazer” (1920). Masud Khan escreve ( Khan, 1963):
Meu argumento é que o trauma acumulativo resulta de fendas observadas
no papel da mãe como escudo protetor durante todo o curso de
desenvolvimento, desde a infância até a adolescência – isto é, em todas as
áreas da experiência onde a criança precisa da mãe como um ego auxiliar
para sustentar suas funções do ego, ainda imaturas e instáveis... O trauma
acumulativo procede, portanto, das tensões que uma criança experimenta no
contexto da sua dependência de ego em relação à mãe como seu escudo
protetor e ego auxiliar... Nesse contexto, seria mais exato dizer que estas
fendas, repetidas no correr do tempo e entremeadas no processo de
desenvolvimento se acumulam de forma silenciosa s invisível. Daí a
dificuldade e identificá-los clinicamente na infância. Pouco a pouco vão se
fixando até formarem os traços específicos de determinadas estruturas de
caráter (Greenacre, 1958). Gostaria de limitar-me apenas a declarar que o
emprego da palavra trauma no conceito de trauma acumulativo não nos
deve levar erroneamente a considerar tais fendas observadas na papel da
mãe com escudo protetor como traumáticas na época ou no período em que
ocorreram. Só adquirem valor acumulativamente e retrospectivamente...
34

Deve ajudar a substituir reconstruções incriminadoras, como mães más,


rejeitadoras ou sedutoras, bem como construções antropomórficas - os
objetos parciais – tais como seio “bom” ou “mau”. Em segundo lugar,
poderia ser feito um exame mais convincente do interjogo patogênico de
variáveis específicas inerentes ao relacionamento total do equipamento
físico e psíquico da criança e de como o ambiente enfrenta este interjogo...”

Masud Khan utiliza também alguns dos conceitos básicos de Donald Winnicott para
desenvolver suas idéias. Para ele o que leva a mãe a desenvolver o papel de escudo
protetor é o que Winnicott chama de preocupação materna primária, em que a mãe
suficientemente boa, através de suas funções de holding, handling e apresentação de
objeto interagem com seu bebê. O conceito de intrusão (impingment) também é
fundamental, Masud Khan comenta ( Khan, 1963):
E a intromissão das necessidades e conflitos pessoais da mãe que
caracterizo como fracasso no papel que desempenha como escudo protetor:
O papel da mãe como escudo protetor não é passivo; é uma atitude alerte,
de adaptação e organização. O papel de escudo protetor é resultado das
funções de ego maternas autônomas e isentas de conflito. Se os conflitos
pessoais interferirem aqui, o resultado será um desvio do papel de escudo
protetor para a simbiose ou fuga para uma rejeição. Como a criança
reagirá a esses fracassos da natureza, intensidade, duração e freqüência do
trauma.

A ATUAÇÃO
A atuação, ou o agir, constitui um meio comum de comunicação e de tentativa de
evitação – como defesa maníaca – das ansiedades confusionais, paranóides e
depressivas na adolescência. Nos adolescentes a que estou me referindo, pelos seus
precários meios de estruturação psíquica, este modelo de funcionamento mental – o
atuar como comunicação e como defesa maníaca – será mais intenso.

OS MODELOS OPERACIONAIS DE PENSAMENTO


A adolescência se constitui de movimentos (flutuações) progressivos e regressivos. Nas
flutuações progressivas predomina o processo secundário, o pensamento abstrato e os
modelos verbais de comunicação. Nas flutuações regressivas, tão comuns nos
35

adolescentes a que estou me referindo, predomina o processo primário, o pensamento


concreto e o “agir” como modelo comunicacional operante.

O PROCESSO DE SEPARAÇÃO – INDIVIDUAÇÃO


A adolescência é um processo em que se reatualiza o processo de separação-
individuação, tal como descrito por Margareth Mahler e outros autores. Os adolescentes
sem uma estrutura familiar adequada e com uma relação materna falha nas primeiras
etapas do desenvolvimento experimentarão dificuldades nesta tarefa. A Sindrome
Bordeline (difusão de identidade, utilização de mecanismos primitivos de defesa -
particularmente a cisão - e precário juízo de realidade), relacionada aos processos
referidos antes, poderá estar presente como uma expressão patológica (Outeiral, 1995).

OS PROCESSOS IDENTIFICATÓRIOS, A PERSONALIDADE E A FORMAÇÃO


DA IDENTIDADE
Os processos de identificação são fundamentais na adolescência, particularmente na
constituição da identidade. Os padrões de identificação destes adolescentes serão
basicamente aqueles encontrados, em especial, nos indivíduos que representam a
possibilidade de sobrevivência. Evidentemente serão modelos e padrões de
identificação bastante distintos dos modelos das classes sociais mais favorecidas. A
ética (ou as estruturas superegóicas) que se constituirá a partir de então será peculiar. A
falta de um continente familiar adequado, de um espaço e de um limite, que criem as
condições propícias para o desenvolvimento e para a estruturação da personalidade,
poderá determinar uma atividade impulsiva, pouca tolerância à frustração e uma
tendência ao acting-out. Além das dificuldades na estrutura egóica, o ideal de ego e o
superego tenderão a apresentar deficiências com identificações patológicas.

A RELAÇÃO COM O CORPO


Em um trabalho anterior, publicado com Luiz Carlos Osório, tive a oportunidade de
escrever sobre ao corpo na adolescência, descrevendo os diversos aspectos desta
“personalização” ou, como diz Donald Winnicott, da integração da psique-soma.
36

É importante que o grau de normalidade de um adolescente pode ser detectado através


de sua atitude em relação ao corpo. Pode senti-lo como totalmente próprio ou, em casos
de má elaboração da “personalização”, como pertencente a outro, especialmente à mãe,
como figura materna presente ou ausente. Como resultado, todas as mudanças corporais
são vividas como persecutórias (com o corpo e/ou seus órgãos, transformando-se em
um depositário de intensas ansiedades confusionais e paranóides), maníacas (com a
negação onipotente de toda dor psíquica que individualmente acompanha o processo)
ou fóbicas (com uma evitação em que todas as transformações corporais não são
referidas). Em situações-limite as transformações corporais levam a graves transtornos
na relação do adolescente com o próprio corpo, que é sentido como alvo invasivo,
estranho e persecutório e podem chegar a um ataque ao próprio corpo ou a expo-lo a
perigos, sem senti-lo como próprio. O montante de culpa inerente a este processo
autodestrutivo pode explicar alguns casos de adolescentes suicidas ou que realizaram
tentativas inconscientes de suicídio através de acidentes. O ataque ao corpo é vivido
como um ataque de algo externo, não necessariamente a morte da mente. Uma outra
forma importante de suicídio pode ser dada, como nos revela Masud Khan, encontrando
alguém que nos destrua ou mate: talvez muitos adolescentes excluídos busquem este
caminho, criando ou buscando situações que os livre de seguir vivendo de modo tão
adverso.
Concluindo, podemos dizer que a relação do adolescente com o seu corpo é um dos
indícios da integridade de seu ego.

A FAMÍLIA
As estruturas familiares desses adolescentes serão as mais diversas. Muitos terão grupos
familiares com peculiaridades: com muita freqüência, acredito, esta será caracterizada
pelo abandono parental – principalmente o pai – e um número significativo será
constituídos por filhos “naturais”. Júlio Aray, analista venezuelano, realizou em seu país
um importante estudo sobre o abandono parental e a situação do filho “natural”, na
Venezuela, que correspondia a 20% de todos os nascimentos, chegando a observações
aproximadas às que estou considerando. A migração do campo para a cidade, com todos
37

os resultados desta mudança familiar: de espaço, cultura, efeitos econômicos, de


afastamento do grupo familiar de origem, etc., são elementos desagregadores.
Nos adolescentes para os quais não existe nenhuma estrutura familiar, os grupos de
adolescentes, como as gangues ou as turmas, buscarão prover esta falta. O filme Pixote,
de H. Babenco, nos dá uma idéia desse aspecto.
A ausência da figura paterna é muito freqüente e está associada a falta de limites e ao
desenvolvimento de padrões alterados de conduta. A função paterna será associada,
muitas vezes, com uma figura de um delinqüente “poderoso”.

... E, POR ÚLTIMO, MAS LAST BUT NOT LEAST...A SEXUALIDADE


Pouco sabemos da sexualidade destes adolescentes, mas podemos inferir que as
experiências, assim como a própria adolescência, acontecerão mais cedo.
Pela sua (des)estruturação familiar estarão mais expostos a situações traumáticas nestas
etapas. A negligência e o abuso (no âmbito familiar, inclusive), embora evidentemente
não específicas dessas categorias sociais, estarão mais presentes por vários motivos: a
relação da transmissão transgeracional da negligência e do abuso (em que uma mãe –
ou o pai - que foi negligenciada ou abusada em sua infância ou adolescência tem um
risco maior de repetir isso com seus filhos); as situações materiais expondo-os a
presenciar a intimidade de outros; a busca de conquistar afeto através da relação genital
(em que um pênis terá mais a representação de um seio que o genital masculino); a
utilização da promiscuidade sexual para criar um sentido de pertencer a um grupo; a
utilização do sexo para sobrevivência; a promiscuidade sexual como um ataque ao
corpo e uma situação homicida, etc. E inúmeros outros aspectos. O jornalista Gilberto
Dimenstein tem escrito sobre isso ao pesquisar sobre a prostituição na infância e na
adolescência.
Para finalizar, quero dizer que, motivado por um parecer dado no Supremo Tribunal
Federal – de que não existem meninas de 12 anos, e sim mulheres de 12 anos, a partir
de um estupro sofrido por uma menina de 12 anos - , que existem, sim, meninas de 12
anos, independente de classe social, e também meninos, expostos às mais violentas
formas de exclusão social, de abuso, de negligência e mesmo de extermínio.
38

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
JUNQUEIRA FILHO, L. et alii ( 1995) . Corpo Mente. Uma fronteira móvel. São Paulo, Casa do Psicólogo,
1995.
LEVISKY, D. ( 1997) Adolescência e Violência. Conseqüências da Realidade Brasileira. Porto Alegre,
Editora Artes Médicas, 1991.
OUTEIRAL J. & GRANA, R. ( 1991). Donald Winnicott. Estudos. Porto Alegre, Editora
Artes Médicas, 1991.
OUTEIRAL, J. et alii 9 1995) . Adolescente Bordeline. Porto Alegre, Editora Artes Médicas,
1995.
_____( 1995) , Adolescer. Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1995.
_____( 1997). “Tendência Anti-social e Patologia do Espaço Transicional”.
In: LEVISKY, D. Adolescência e Violência Conseqüências da Realidade Brasileira.
Porto Alegre, Editora Artes Médicas, 1997.
WINNICOTT, D. ( 1965). The Maturational Process and the Facilitating Environment.
Londres, Hogarth Press, 1995.
______( 1975). Through Pediatrics to Psycho-analysis. Londres. Hogarth Press, 1975.
______( 1975). Playing and Reality, Londres, Hogarth Press, 1975.
39

CAPÍTULO 4

TENDÊNCIA ANTI-SOCIAL E PATOLOGIA TRANSICIONAL

José Outeiral

“(...) gostaria que existisse idade alguma


entre os dezesseis e vinte e três anos ou
que os jovens dormissem todo este tempo;
pois nada existe nesse meio tempo senão
promiscuidade com crianças,
ultrajes com os anciãos, roubos e brigas”
(“Um conto de inverno”, Shakespeare)

A Tendência Anti-Social
A tendência anti-social é um dos temas básicos nas contribuições de Donald W. Winnicott
(DWW), pediatra e psicanalista inglês falecido em 1971.
Este autor desenvolveu o estudo da tendência anti-social procedendo a uma articulação com
as duas áreas de experiência humana: o meio ambiente e a realidade interna. Os conceitos
sobre este tema, desenvolvidos especialmente a partir de suas vivências durante a II Guerra
Mundial, com crianças evacuadas de Londres e enviadas para longe de suas famílias,
encontram-se dispersos em trabalhos, artigos, conferências, aulas, para profissionais e para
leigos, e que foram, em parte, reunidos num texto póstumo por Clare Winnicott
(Deprivation and delinquency, 1984), no qual ela escreve:

“(...) os distúrbios de conduta (comportamento), ou o que Winnicott


designou freqüentemente por distúrbios de caráter, foram por ele
considerados como as manifestações clínicas da tendência anti-social.
Variam desde a gula e a enurese noturna, num extremo da escala, até as
perversões e todos os tipos de psicopatia (exceto a lesão cerebral) no outro
extremo. A atribuição das origens da tendência anti-social à privação mais
ou menos específica durante a infância do indivíduo deu toda uma nova
dimensão à teoria do desenvolvimento emocional de Donald Winnicott”.
40

Durante a II Guerra Mundial, DWW foi nomeado psiquiatra-consultor do Plano de


Evacuação Governamental numa área de recepção de crianças evacuadas da Inglaterra
(Oxfordshire). Foi esta experiência, no período entre 1940 e 1945, que lhe permitiu
articular os conceitos de privação e tendência anti-social. .
Clare Winnicott, na introdução de Deprivation and delinquency, escreveu:
“A experiência de evacuação teve um efeito profundo em Winnicott, pois ele
teve de enfrentar, de modo concentrado, a confusão gerada pela
desintegração maciça da vida familiar e teve de vivenciar o efeito da
privação e da perda, da destruição e da morte. As reações pessoais sobre a
forma de comportamento bizarro e delinqüente tiveram de ser controladas e
gradualmente compreendidas por Winnicott. As crianças com quem
trabalhou tinham chegado ao fim da linha; não tinham mais para onde ir e
como mantê-las tornou-se a principal preocupação de todos que tentavam
ajudá-las ( ...) não há duvidas que trabalhar com crianças desamparadas
deu uma dimensão inteiramente nova ao pensamento de Winnicott, à sua
prática e afetou seus conceitos básicos sobre crescimento e desenvolvimento
emocional.”

A partir destas vivências, Winnicott desenvolveu sua teoria sobre a tendência anti-social, na
qual distingue dois tipos de privação: (1) ( deprivation) perda do “bom objeto” e a perda do
marco confiável dentro do qual a vida instintiva e espontânea da criança se sente segura
( estado no qual se teve algo bom que foi perdido) e (2) ( privation) um estado no qual
jamais se teve algo e que resulta em doença mental ou no domínio de uma psicose. Assim,
ele mostrou que a tendência anti-social se articula em um ponto com as psicoses e em outro
com as neuroses. Estabeleceu especialmente a experiência de privação com a
impossibilidade de alcançar a posição depressiva e um sentido de responsabilidade social
dentro do indivíduo.
Para DWW os atos anti-sociais dos delinqüentes e dos psicopatas mostram “sinais de
esperança”. “A esperança orienta-se a recuperar o que se perdeu, ou que isto seja
devolvido e que os processos de maturação, que ficaram ‘congelados’ quando da perda,
sejam liberados novamente. Desta forma, Winnicott explicou ao menos parte da vida
afetiva do homem sem ter que recorrer a um instinto de morte herdado” (Clare Winnicott,
1989).
O conceito de privação envolve um fracasso ambiental na etapa de dependência relativa. A
privação, assim, refere-se a um ambiente suficientemente bom vivenciado e perdido,
41

quando o bebê já é capaz de perceber a relação de dependência, isto é, quando sua evolução
se tornou possível perceber a natureza do “desajuste ambiental”.
Esta concepção deu uma nova ótica à compreensão que a teoria psicanalítica tinha, de uma
maneira geral, sobre a delinqüência e a marginalidade, que eram atribuídas à ansiedade ou à
culpa decorrentes da inevitável ambivalência inconsciente:
“Quero dizer, eram considerados como fruto do conflito surgido quando o
ódio (e, portanto, o desejo de destruir) se dirige contra uma pessoa muito
amada e necessária. A idéia básica era a de que, quando a culpa se
acumula e não encontra saída na sublimação ou na reparação , algo tem
que ser feito, ou atuado (acted out), para que o indivíduo se sinta culpado
disto. Em outras palavras, a etiologia da delinqüência era vista,
principalmente, em termos da luta que se trava no muno interior, ou psique,
do indivíduo” (DWW, 1984).

Freud, no prefácio de Juventude desorientada (1925), de A. Aichhorn, enfatizou esta


questão, ressaltando a necessidade de compreendermos psicanaliticamente o problema da
delinqüência, e em um trabalho anterior, intitulado Criminosos devido a um sentimento de
culpa (1916), já havia estabelecido as bases desta compreensão dos atos anti-sociais.
Antes mesmo de sua experiência com crianças evacuadas durante a II Guerra Mundial,
DWW parecia, com freqüência, considerar, em alguns casos o fator ambiental como
decisivo, tal como descreve no exemplo de Verônica, que com 1 ano e meio passou a
“molhar a cama” todas as noites, depois de sua mãe ter passado um mês hospitalizada, ou
Ellen, que cometia roubos na escola e cuja família se desfez quando ela tinha 1 ano, ou
Francis, cujos episódios violentos estavam ligados à depressão da mãe.
Em várias outras situações, entretanto, DWW atribuía a origem dos problemas aos conflitos
inconscientes. Talvez possamos dizer, certamente no intuito de provocar celeuma, que
DWW foi o mais freudiano dos analistas ingleses. Sua compreensão dos distúrbios de
comportamento remete-nos à equação etiológica das doenças mentais, ou à série
complementar, tal como foi esboçada por Freud em Três ensaios sobre uma teoria sexual
(1905).
Como exemplo, no intuito de explicar melhor o que estamos dizendo, vamos considerar a
opinião que DWW desenvolveu em relação ao sintoma “furto”:
O furto, para ele, está no centro da tendência anti-social, associado à mentira. Na verdade, a
criança que furta um objeto não está desejando o objeto roubado, mas a mãe, sobre quem
42

ela se julga com “direitos”. Tais “direitos” derivam do fato de que sob o ponto de vista da
criança – no “espaço de ilusão” que, como veremos a seguir, representa a experiência
onipotente que “a mãe suficientemente boa” propicia ao bebe - o seio que a mãe oferece é
percebido pelo bebê como criado por ele; a mãe, desta forma, é “criada” pelo bebê.
Assim, após esta breve abordagem, gostaria de sublinhar três aspectos básicos da
concepção de “tendência anti-social” em DWW:
1. Ele relaciona a “tendência anti-social” a uma falha ambiental precoce,
principalmente a uma falha na função materna;
2. Distingue dois tipos de reação da criança a estas falhas. (a) Quando a privação
ocorre depois de ter havido uma função materna “suficientemente boa” e por
um período de tempo suportável, a criança poderá desenvolver a
“tendência anti-social” (deprivation) . (b) Se a privação (privation), ou a falha
da função materna, ocorrer desde o inicio da vida, poderá se desenvolver uma
doença mental ou uma psicose, por exemplo;
3. DWW considera que a “tendência anti-social” comporta um sentimento de
esperança, o que dá uma configuração clínica muito especial ao problema.

A Patologia da Transicionalidade
Uma das mais originais e difundidas concepções de DWW é o conceito de objetos e
fenômenos transicionais. Em um artigo intitulado Transitional objects and transitional
phenomena (1951) e no livro publicado vinte anos depois, Playing and reality (1971) além
de em vários seus outros trabalhos, este conceito é desenvolvido tanto em seu aspecto
metapsicológico como clínico
Sinteticamente, poderemos estabelecer a seguinte configuração para melhor compreender
estes conceitos que, penso, de uma certa forma já são bastante conhecidos de todos aqueles
que têm seu interesse dirigido ao desenvolvimento da criança: aqueles que observam os
bebês e suas mães terão notado que há uma série de eventos que “(...) começam com as
primeiras atividades na estimulação da zona erógena oral e que acabam por conduzir a
uma ligação a um ursinho, uma boneca ou, ainda, a um brinquedo macio...” (DWW, 1975).
O urso destes objetos constitui “a primeira possessão que seja não-eu”, o que nos dá uma
43

idéia da importância destes acontecimentos na vida do bebê. Para DWW o que importa, na
verdade, e isto é muito importante sob o ponto de vista da clínica, não é tanto a fralda, o
cobertor ou o ursinho, mas o uso que o bebê faz do objeto (DWW, 1968).
Estes conceitos introduzidos por DWW na psicanálise são conhecidos da literatura, da
filosofia e das artes em geral, como ele próprio escreve. Fernando Pessoa costumava dizer
que quem aprecia uma paisagem está vendo, na verdade, duas: a paisagem verdadeira e
uma outra, a interna, e que a arte nasce da sobreposição destas duas imagens. É interessante
registrar que Freud escreveu que nada do que disse não fora antes dito por um poeta...
André Green, em seu livro Conferências brasileiras (1990), fala-nos de uma "lei geral":
sempre que dividimos um espaço em dois, atribuindo a cada um destes espaços
propriedades contrárias, criamos um terceiro espaço na intersecção dos dois, que é a
formação de compromisso da divisão entre os dois espaços anteriores. Este terceiro espaço
comportará atributos dos dois espaços separados. Ele escreve:
“(...) é sempre assim em psicanálise: a partir do momento em que há dois
termos antinômicos, duas estruturas opostas por diferenças radicais, vocês
acharão lugar para um terceiro espaço, que é um espaço de compromisso,
que combina com as características de ambos. A simbolização é isso: a
reunião de duas partes separadas que, reunidas, formam uma totalidade, na
qual cada um dos dois espaços conserva suas características, enquanto uma
terceira estrutura é criada pela união dos dois, tendo esta terceira estrutura
características diferentes de cada uma das metades".

Este é o espaço onde se desenvolvem os fenômenos e os objetos transicionais.


DWW considera que é necessária uma "mãe suficientemente boa" para que o bebê possa
evoluir do "princípio do prazer" para o "princípio da realidade" (ou no sentido e, para além
dela, da identificação primária - Freud, 1923). Esta mãe "começa com uma adaptação
quase completa às necessidades de seu bebê e, à medida que o tempo passa, adapta-se
cada vez menos completamente, de modo gradativo, segundo a crescente capacidade do
bebê de lidar com o fracasso dela" (DWW, 1975). A "mãe suficientemente boa" propicia,
desta forma, a ilusão de que o seio dela faz parte do bebê e que é uma criação dele e que
está sob seu controle mágico e onipotente. Lembremos que "ilusão" tem origem
etimológica em ludere, ou seja, brincar. Sinteticamente poderemos dizer que a mãe oferece
o seio ao bebê de tal forma que lhe permite pensar que o seio que ali foi posto é criado por
ele. Esta vivência seria a raiz do gesto espontâneo, da criatividade e da experiência cultural.
44

Experiência de ilusão é a base dos objetos e dos fenômenos transicionais, enfim, daquilo
que, ao tentar colocar esta vivência anterior à "representação de palavra" em palavras,
chamamos de "transicionalidade".
Talvez seja útil comentar brevemente as "funções" que DWW atribuiu à "mãe
suficientemente boa”, ou seja, àquela que não é "boa" nem "má". Esta mãe seria capaz de
"adoecer sadiamente", dentro da noção de paradoxo tão essencial à obra deste autor,
oferecendo ao seu bebê a "área de ilusão", referida antes, assim como as seguintes funções:
holding, ou seja, a sustentação física e emocional; handing, compreendendo os cuidados
básicos essenciais para a sobrevivência do tão imaturo bebê humano; a noção de
apresentação de objeto quando a mãe procura adaptar-se às necessidades da criança e, ao
mesmo tempo, propiciar uma gradativa frustração e, por último e nem por isso menos
importante, a noção de continuidade de cuidados ao self.
Outros pontos básicos sobre o desenvolvimento emocional primitivo, tais como o caminho
da dependência absoluta à independência, o conceito de personalização e de integração e
não-integração, as agonias primitivas ou ansiedades impensáveis, deverão ser apenas
referidos, em função dos objetivos deste capítulo.
Antes de continuar, gostaria de contar uma piada e falar de uma curiosidade.

A Piada...
André Green, no livro já citado (Conferências brasileiras, 1990), escreveu o seguinte:
(...) e como conheci Winnicott, não muito, mas enfim, vi que tipo de homem ele era,
imaginei-o na British Psycho-Analytical Society, em pleno período de 'controvérsias', entre
Melanie Klein e Anna Freud, com Anna Freud à sua direita, o tempo todo insistindo no
objeto da realidade externa, e à sua esquerda Melanie Klein, que enchia seus ouvidos com
os objetos internos. Nosso Winnicott diz: “Estou cheio destas mulheres! O externo, o
interno... o externo, o interno... Não quero ter de escolher. Então eu invento um terceiro
objeto: o objeto transicional".

A Curiosidade...
Spinoza, em seu Tratado da gramática hebraica, diz que há nomes que são distintos. Assim
parece ter sido com Winnicott e seu objeto transicional. Collete Chiland comenta que viu
45

Winnicott, em 1960, em Londres divertir-se com o fato de que o "cot" de seu nome
significa, em inglês, berço, ele comentava que via uma "predisposição" para ter
desenvolvido a teoria do holding, Collete Chiland faz, então, um jogo de palavras
lembrando o personagem da literatura infantil inglesa Winnie-the-Poob (ursinho Puff, entre
nós), criação de A.A. Milne (1882-1956), publicado em 1926, e que é citado junto com
peanuts de Schulz no livro de DWW, Playing and Reality (1971). Winnie-the-Poob é um
urso de pelúcia... O nome Winnicott seria então um urso de pelúcia em um berço... (Figura
3).

Retomando...
Há uma série de situações psicopatológicas descritas por DWW na área da
transicionalidade.
Nas situações de perda e separação, DWW descreveu a seguinte observação:
(...) como exemplo do manejo da criança da separação e da perda, chamo a
atenção para o modo como a separação pode influenciar os fenômenos
transicionais. Como se sabe, quando a mãe, ou alguma outra pessoa de
quem o bebê depende, está ausente, não há uma modificação imediata, uma
vez que o bebê possui uma lembrança ou imagem mental da mãe, ou aquilo
que podemos chamar de uma representação interna dela, a qual permanece
viva por um determinado tempo, então a lembrança, ou representação
interna da mãe, se esmaece. À medida que isto ocorre , os fenômenos
transicionais torna-se gradativamente sem sentido e o bebê não pode
experimentá-los. Podemos observar o objeto sendo descaracterizado.
Exatamente antes da perda podemos, às vezes, perceber o exagero do uso de
um objeto transicional como parte da negação de que haja ameaça de ele se
tornar sem sentido” (DWW, 1975).

DWW cita o exemplo ilustrativo desta situação ao descrever o uso de um cordão por um
menino, no qual há uma identificação materna - baseada em sua própria insegurança em
relação à mãe - que poderia se transformar em homossexualismo: da mesma maneira, a
preocupação com cordões comportará um potencial para perversões.
Júlio de Mello Filho, em seu trabalho Donald Winnicott, 20 anos depois (Mello, 1989),
comenta como DWW se referiu à patologia da transicionalidade em situações que incluem
a mentira, o furto, o fetichismo, a drogadição e o uso de talismã, nos rituais obsessivos.
46

É interessante ressaltar que o menino do cordão, referido antes, desenvolveu na


adolescência um quadro de drogadição. A este respeito Eduardo Kalina, psicanalista
argentino, escreveu o trabalho "A incapacidade estar só e o uso abusivo de drogas
psicotóxicas", que faz parte do livro editado por mim , Donald Winnicott: estudos, no qual
há uma correlação entre a transicionalidade e o uso de drogas (Outeiral et alli, 1990). O
próprio DWW também estabeleceu uma relação entre a psicopatologia da transicionalidade
e o uso de drogas.
Para Paulina Kernberg, as observações clínicas parecem indicar que os aspectos
transicionais em crianças borderline estão ausentes ou podem adquirir uma qualidade
bizarra. Em adolescentes borderline, esta autora diz que, a história de aspectos transicionais
é inexistente. O relato de um objeto transicional pressupõe a aquisição de uma relação
objetal positiva com a mãe que possa ser internalizada, assim, a relação da criança com seu
objeto internalizado pode ser produzida num mundo intermediário da experiência.
Ela escreve:
"Não é surpreendente que as crianças borderline que não desenvolveram
um sentido positivo de self em relação com um objeto positivo (no contexto
de uma experiência de conforto e prazer com a mãe) não adotem um objeto
transicional na fase dos 8 aos 24 meses, ou uma qualidade apropriada -
isto é, um objeto experimentado na gestalt da experiência materna, como a
ponta do lençol, a fralda, ou um brinquedo macio. Pelo contrário, estas
crianças tendem a continuar 'penduradas' na sua mãe, procurando
experiências simbólicas positivas ou reabastecimentos positivos, ou tendem
a representar sua relações com a "mãe má da separação", vinculando-se
objetos inanimados - como a criança que tinha como objeto transicional um
telefone, o qual levava cinsigo aonde fosse. Além disso, os objetos
transicionais das crianças borderline reproduzem caracteristicamente as
imagens do self ou imagens semelhantes ao companheiro imaginário, em
contrate com os objetos transicionais que refletem uma interação mãe-filho
positiva".

M. Masud Khan desenvolve, por outro lado, um importante estudo sobre as perversões em
um livro intitulado Alienations in pervertion (1979), articulando o conceito e a
metapsicologia dos objetos transicionais com tais patologias.
Peter Giovacchini é outro autor que estudou os aspectos da psicopatologia da
transicionalidade, particularmete em um artigo intitulado "O adolescente borderline como
objeto transicional: uma variação comum", no qual considera que sendo a adolescência
47

"uma fase transicional da vida", esta etapa, particularmente nas patologias borderline,
ilustra-nos muito significativamente as contribuições de DWW sobre o tema. Ele chama a
atenção, em especial, para as mães que usam seus filhos como "objetos transicionais". Este
estudo é uma continuidade do trabalho de Llili Lobel sobre objetos transicionais na história
da infância de adolescentes borderline, onde a ausência destes objetos foi encontrada em 18
dos 20 adolescentes estudados (Outeiral, 1993).
Assim podemos observar como muitas das manifestações de tendência anti-social
vinculam-se ‘a patologia da transicionalidade. Em uma conferência, em 1950, DWW
concluiu que a maioria das crianças incluídas na categoria de desajustadas ou não tiveram
um objeto transicional ou o perderam, e considera que os objetos transicionais permitem à
criança simbolizar e ser capaz de tolerar frustrações e privações.
É necessário, agora, um breve comentário sobre o conceito de agressão e,
conseqüentemente, da violência. DWW via a agressão primária no sentido do etimológico
da palavra – agredere, ir na direção de alguém, raiz das palavras agregar, agrupar –
principalmente em termos de motilidade muscular, ou mesmo, de atividade. Ele não
utilizava em seu esquema conceitual (metapsicológico) a noção de destrutividade em
termos de um instinto de morte, como fez Freud, e também não aceitava o ponto de vista
kleiniano de que existe inveja (primária) do objeto bom (pessoa ou objeto parcial) e que
conduz à destrutividade desde os primórdios da vida. Desta maneira ele postulou uma teoria
pulsional considerando a existência de uma destrutividade sem cólera.
Gostaria, já no final, de incluir uma categoria de tendência anti-social, que se refere às
pessoas, descrita por C. Bollas (1987), como “normóticas” (normotic): um indivíduo que é
anormalmente normal e que objetiva “des-subjetificar” o self para se tornar um objeto-
coisa. Corresponderia, em um certo sentido, ao conceito de falso-self de DWW, quando o
sujeito poderá, inclusive, ter uma excelente adaptação, por exemplo, às custas de sua saúde
mental, espontaneidade e criatividade.
Para DWW, no que diz respeito ao tratamento, as crianças e adolescentes que apresentam
uma tendência anti-social podem ser tratadas de duas maneiras. Podem receber psicoterapia
individual ou pode-se-lhes oferecer um “ambiente estável e forte, com assistência e amor
pessoais e doses crescentes de liberdade. De fato, sem esta segunda alternativa, a primeira
(psicoterapia pessoal) não terá grande possibilidade de êxito” (DWW, 1990).
48

Quando desenvolvi o tema da “Tendência Anti-Social e Patologia no Espaço Transicional”,


o fiz dentro da ótica de meu instrumento para compreender a mente humana. Este é,
entretanto, apenas um dos vértices dentro dos quais este problema tão complexo deve ser
equacionado.
Com o objetivo de sugerir idéias para uma discussão, é interessante ler os versos de Chico
Buarque (1987) em “Até o Fim”:
Quando nasci veio um anjo safado
o chato de um querubim
E decretou que eu estava predestinado
a ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Estes versos colocam a questão da privação inicial (“já de saída a minha estrada
entortou”), a falta de um “ambiente facilitador” ou de uma “mãe suficientemente boa” (“um
anjo safado”) e, ao mesmo tempo, a esperança (“mas vou até o fim”), elementos
constituintes do que DWW descreveu como tendência anti-social.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAVIS, M. & WALLBRIDGE, D. (1982). Limite e espaço: introdução à obra de Donald Winnicott. Rio de
Janeiro: Imago.
GREEN, A. (1990) Conferências brasileiras: metapsicologia dos limites. Rio de Janeiro: Imago.
HOLLANDA, C. B. (1989) Letra e Música. São Paulo: Cia das Letras.
OUTEIRAL, J. (1991) Distúrbios de conduta na adolescência. In: MAAKAROUN, M. et alli. Tratado da
adolescência. Rio de Janeiro: Cultura Médica. Pp. 494-591.
OUTEIRAL, J. & GRAÑA, R. (1991) Donald Winnicott: estudos. Porto Alegre: Artes Médicas.
WINNICOTT, D. (1965). The maturational process and the faciliting enviroment. London: Hogart Press.
WINNICOTT, D. (1975). Thorough paediatrics to psycho-analysis. London: Hogart Press.
WINNICOTT, D. (1965). Playing and Reality. London: Hogart Press.
49

CAPÍTULO 5

AGRESSIVIDADE, TRANSGRESSÃO E LIMITES


NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

José Outeiral
Cleon Cerezer

Muitos de nós ficamos nos perguntando porque a violência parece estar aumentando a cada
dia que passa e qual a responsabilidade dos adultos na criação de seus filhos com relação a
isso. Porque umas das primeiras causas de morte na adolescência, no Brasil, é homicídio?
Porque nas escolas norte-americanas, jovens matam outros jovens com verdadeiros arsenais
bélicos, aparentemente por motivos banais. Ou então, porque encontramos, cada vez mais
freqüentemente, armas nas mãos de crianças e adolescentes nas salas de aula. A briguinha
da saída, o “- te pego na saída!” (frase característica de ameaça de brigas na escola) virou
“- te mato na saída!”, sendo que alguns nem esperam o momento da saída, enfrentam
colegas, professores, diretores e funcionários, com suas “destruidoras ameaças” a qualquer
momento. Então vem a tona uma questão bastante suscitada atualmente: “agressividade e
limites”.

I. A propósito de uma re-discussão do valor positivo da agressão no desenvolvimento


normal.
Certamente nos será útil, agora, a partir de um raciocínio clínico, construirmos algumas
idéias. Poderíamos imaginar um bebê ainda no ventre da mãe e sugerimos que o leitor
pense na relação mãe-bebê como uma metáfora, por exemplo, do que pode acontecer na
sala de aula na relação professor-aluno. Os movimentos do bebê resultam de uma
"vitalidade e motilidade primária e inata" e ao "erotismo muscular", ao prazer do
movimento "em si". A agressividade presente neste movimento tem o sentido de
"agredere", que etimologicamente - com sabemos - significa "ir à direção, ou fazer um
gesto na direção de alguém" e surge daí a palavra "agregar", por exemplo. Os movimentos
(inatos e expressão de sua vitalidade) do bebê representam sua busca de "um objeto", a mãe
e, por conseguinte, da exterioridade e do reconhecimento do "outro". Ao contrário da
50

formulação clássica de que o encontro com o "objeto" é que desencadeia a agressão, para
Donald Winnicott a agressão é que cria a exterioridade. E, podemos dizer com ele dentro de
uma concepção paradoxal, que a capacidade de agressão libidinal conduz à criatividade e
ao encontro do "outro" (mãe, família e sociedade) e do "princípio de realidade". Tommasi
(1997) pensando sobre o conceito de agressividade na obra de Winnicott diz:
“...o ser humano não é agressivo em sua origem, a qualidade destrutiva é
simplesmente um sintoma do estar vivo, não é o princípio de uma não-
unidade, é uma etapa do desenvolvimento. É a chamada destrutividade
primária, que consiste em um modo de preservar a unidade sem riscos (é um
estado de excitação e não de frustração)”.

Neste sentido, para Winnicott, a "agressão" não tem intencionalidade no sentido de ira, ódio
ou violência e se encontra ligada, desta maneira ao "amor instintivo". Ele considera,
entretanto, que se este "gesto agressivo" não encontrar o "objeto" (ou a mãe, ou um limite)
que o acolha, esta "falha ambiental" resultará, aí sim, na agressividade se tornando cada vez
mais “intensa e destrutiva, conseqüente à frustração”, resultando em violência. Esta
compreensão é uma maneira de pensar "limite" como um gesto necessário e imprescindível
para evitar a violência e ajudar a criança (e o adolescente) a integrar a agressão em seu
desenvolvimento normal.
A graduação do quantum de agressão é que vai nos oferecer um olhar em que nível esse “ir
de encontro ao outro” se processa. Necessitamos de uma quantidade ótima de agressão para
conviver com os “outros” diariamente, por exemplo, ao sairmos para trabalhar cedo numa
manhã fria de inverno, temos de ativar nosso potencial agressivo para romper com a força
da inércia. Ultrapassando essa quantidade ótima e “suficiente” para buscar o contato com o
outro, o gesto agressivo tende a aumentar sua intensidade. Quando não encontra o outro, o
sujeito tende a aumentar a quantidade dos gestos agressivos na direção desse outro,
buscando continência para esse movimento. Se não encontra esse outro (mãe/continente),
tornar-se-á então descontrolado, desesperado, desamparado, por fim, violento.
A cultura ocidental, judaico-cristã, com sua ênfase na culpa, toma a agressão como se esta
fora um "pecado original" e não como um elemento fundamental para o desenvolvimento
da personalidade normal. Donald Winnicott (Winnicott, 1964)escreve: "...em resumo, a
agressão tem dois significados. Por um lado, constitui direta ou indiretamente uma reação
à frustração. Por outro lado, é uma das muitas fontes de energia de um indivíduo.
51

Problemas intensamente complexos surgem a partir de um exame mais detalhado desta


situação...".
Em seu artigo A amamentação como comunicação, Donald Winnicott (Winnicott, 1968), é
ainda mais específico:
"...chego, afinal, ao que considero a observação mais importante neste
campo, e que diz respeito à existência da agressividade no bebê. Com
o passar do tempo o bebê começa a chorar, gritar e arranhar. Na
situação de amamentação havia, no início, uma atividade vigorosa da
gengiva, um tipo de atividade que pode facilmente resultar em
rachaduras no mamilo; alguns bebês realmente aderem ao seio com
as gengivas e o machucam bastante. Não se pode afirmar, entretanto,
que estejam tentando ferir, porque o bebê ainda não está
suficientemente desenvolvido para que a agressividade já possa
significar alguma coisa. Com o passar do tempo, porém, os bebês já
tem um impulso para morder. Trata-se do início de algo muito
importante, que diz respeito a crueldade, aos impulsos e à utilização
dos objetos desprotegidos... A mãe pode perceber facilmente o que se
passa com o bebê neste estágio em que ela está sendo destruída por
ele, se tiver conhecimento da situação e proteger-se sem se valer da
retaliação e da vingança. Em outras palavras, ela tem uma função a
cumprir sempre que o bebê morder, arranhar, puxar os cabelos e
chutar, e esta função é sobreviver. O bebê se encarregará do resto. Se
ela sobreviver, o bebê encontrará um novo significado para a palavra
amor, e uma nova coisa surgirá em sua vida: a fantasia é como se o
bebê agora pudesse dizer para a sua mãe: ´Eu a amo por ter
sobrevivido à minha tentativa de destruí-la".

Acreditamos que esta longa citação se justifica pela clareza que explicita questões
importantes como: 1) as raízes da agressão no desenvolvimento normal e 2) o papel da mãe,
ao compreender e "sobreviver" aos movimentos "agressivos" de seu bebê. Queremos, desde
logo, deixar claro que todos nós, no quotidiano de nossas relações, funcionamos, por vezes
(na escola, por exemplo, como alunos ou professores), dentro destes padrões pretéritos.
Alicia Fernandez discutindo sobre o papel fundamental do professor no processo de
aprendizagem salienta, inicialmente, que é condição sine qua non o reconhecimento da
importância da figura do professor na construção das subjetividades dos seres humanos, e
por ocupar um papel tão estruturante como este é que tem de dar-se conta que os atos
agressivos dos alunos dirigidos a ele necessitam de significado, pois se “... frente a um ato
agressivo dirigido a minha pessoa, não consigo usar minha capacidade criativa para
situar-me frente a esta situação e poder no mínimo pensa-la (não digo resolvê-la), sou eu
52

quem estou agredindo a mim mesma, mais do que o aluno que está me agredindo...”
(Fernandez, 1992).
Não esqueçamos que ao falar em “figura”, em “papel”, estamos nos remetendo ao caráter
simbólico das relações entre as pessoas. Na relação professor-aluno, se o professor não
conseguir tomar a distância necessária das situações que o fazem sofrer, percebendo a
diferenciação entre o que é fruto do imaginário e o que é a representação simbólica dessa
relação o que acontece é, conforme Fernandez (1992), “... considerar a situação onde há
uma criança e uma professora agredida como se elas fossem únicas no mundo e sempre
houvessem vivido isoladas, as duas sozinhas em uma ilha, o que significa não poder situar-
se em um nível simbólico”.
O distanciamento necessário frente a uma situação de agressão vivida pelo professor é um
desafio e, ao mesmo tempo, uma estratégia a serviço do trabalho de professor. Ao conseguir
questionar-se e talvez se responder acerca de, por exemplo, “- A quem esta criança agride
quando me agride?” Pois tomar essa agressão como direta, como se fosse a pessoa do
professor é persistir no nível imaginário sem conseguir simbolizar (nível simbólico) o que
está presente (explicita e implicitamente) na situação que se descortina naquele momento.
Simbolizar, neste caso, é poder descentrar-se, é permitir-se pensar que este aluno está
agredindo, através da pessoa do professor, outras situações de sua vida, ocorre uma
transferência para este campo de relação outras vivências de seu cotidiano.
Podemos pensar, então, que “agressividade”, impulso mediatizado, está situada no nível
simbólico, enquanto que a “agressão”, em geral, que não está mediatizada, não inclui o
caráter simbólico, é o ato puro. “A agressividade faz parte do impulso de conhecer e a
agressão, ao contrário, dificulta a possibilidade de pensar. A agressividade pode estar à
serviço do da autoria do pensamento. A agressão pode estar a serviço da destruição do
pensamento” (Fernandez, 1992).

II. A transgressão como parte do desenvolvimento normal e da organização da


identidade
Na construção de sua identidade, a criança (e particularmente o adolescente) tem a
necessidade de "ser único", isto é, "um indivíduo" (cujo significado é exatamente "ser
único"). A única possibilidade de alguém ser, então, um indivíduo, diferente assim de todos
53

os demais é através da transgressão das normas da família, da escola e da sociedade onde


vive. Este processo, a transgressão, está descrito na Bíblia, no livro da Gênesis (1989, p.
23-24), através da metáfora da criação de Adão e Eva que, ao trangredirem, conhecem o
bem e o mal e são expulsos do paraíso. Desta maneira adquirem a condição humana, a qual
foi extendida a nós. Lá está escrito:
“... A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé
Deus fizera. Disse ela à mulher: ‘Então foi isto mesmo que Deus mandou:
Não podeis comer de nenhuma árvore do jardim do paraíso?’ Respondeu a
mulher à Serpente: ‘Podemos comer dos frutos das árvores do jardim do
paraíso; somente do fruto da árvore que está no meio do jardim do paraíso,
disse Deus: Não podeis dele comer, nem tocá-lo, senão morrereis’. A
Serpente disse à mulher: ‘Nada disso! Vós não morrereis! Mas Deus sabe
que no dia em que dele comerdes, abrir-se-vos-ão os olhos e sereis como
Deus, conhecendo o Bem e o Mal...” (Gn 3, 1-5)

Masud Khan (1988), um psicanalista nascido na Índia e formado na Inglaterra, o que lhe
permitiu perceber aspectos transculturais do desenvolvimento, escreve sobre esta questão:
"...Ao examinar os três livros das religiões monoteístas - o Antigo
Testamento, a Bíblia e o Alcorão - somos surpreendidas pelo fato de que a
transgressão encontra-se nos primórdios tanto do caráter individual como
das culturas coletivas. Expandindo esta idéia, percebemos que não há,
naturalmente, transgressão sem que haja uma interdição. No final das
contas, tendo colocado um casal humano no paraíso o sagrado Senhor
proibiu-os de comer determinado fruto, seguindo-se a inevitável
transgressão. Observamos também que a transgressão quase sempre é em
caráter e acontecimento sexual. Como conseqüência nasceram Abel e Caim.
Lutaram pelo poder e Caim matou seu irmão Abel. Portanto, desde os
primórdios da vida humana, de acordo com estas três escrituras,
transgressão, sexo e assassinato formam uma curiosa trindade... A principal
tarefa que se propõe cada religião monoteísta é fazer com que a pessoa
assuma a responsabilidade por sua transgressão, o que só é possível se ela
despertar para a natureza desta (a transgressão)...".

Os professores “sabem” que o ato aprender é transgressor por si mesmo; rompe-se com um
conhecimento para adotar outro. Quantas vezes acontecem situações em que a
“transgressão” esta presente na sala de aula? Preocupante se não ocorressem. Até mesmo
impossível de se pensar o ato de aprender como desvinculado do ato de transgredir.

III. A necessidade dos limites para o desenvolvimento e proteção da criança e do


adolescente.
54

No intuito de compreender a necessidade de transgredir que tem a criança e o adolescente,


como parte do desenvolvimento normal e de sua constituição como "indivíduo", é
necessário também ressaltar a importância dos pais, da família, da escola e da sociedade em
estabelecer "limites", que protejam os indivíduos em desenvolvimento e aos outros durante
as "transgressões".
“Limites” têm a ver com a criação de um tempo e espaço que possibilitem um viver
criativo, onde não haja riscos ou ameaças para a criança ou adolescente e tampouco para os
outros. Pensemos que, a criança, antes de nascer, desenvolve-se num ambiente de onde
obtém os recursos para crescer, dentre eles a noção de limite, pois desde a vida intra-útero,
já há algo que limita (espaço criado) as possibilidades de sua expansão. Ao mesmo tempo
em que a criança é livre para desenvolver-se, ela é limitada pela parede uterina, que
determina o limite ao crescimento do feto, o qual sente-se protegido dos perigos externos
através dela. Esta mesma criança, ao nascer, terá esta parede derrubada e toda essa “função-
útero-continente” (dar limite e deixar crescer) terá de ser exercida pelos cuidadores da
criança (mãe, pai, outros) no ambiente em que ela se desenvolverá, pois as particularidades
serão outras e o bebê começará sua relação direta com o mundo externo.
Ao falamos da “função-útero-continente” do cuidador, estamos nos referindo a sua função
continente, a qual poderia ser vista de duas formas complementares: 1) o oferecimento de
um espaço afetivo suficientemente bom (Winnicott, 1954) ao desenvolvimento do bebê e
2) funcionar como continente das ansiedades primitivas da criança. Assim como o
continente e o oceano se relacionam, a mãe (cuidador) recebe a turbulência oceânica dos
impulsos agressivos e sexuais do seu filho e tem o papel de conter (receber e acalmar)
devolvendo de forma mais organizada estes sentimentos para o seu bebê, nomeando um
sentido para estas vivências infantis que constituirão a personalidade deste ser humano.
Exemplo disso é a sintonia sensível da mãe com seu filho quando este chora e ela
“discrimina” o que significa aquele choro, na verdade ela está nomeando sentimentos de
seu filho ou praticando agressões primárias necessárias conforme escreve Piera Aulagnier.
O "limite" ao qual nos referimos é, fundamentalmente, “contato, presença e proteção” por
um lado e por outro a apresentação progressiva do "princípio de realidade" através das
inevitáveis (e necessárias) frustrações... A mãe, ao tomar o bebê no colo, possibilita neste
contato pele-a-pele as primeiras noções do Eu e Não-Eu, interno e externo, sujeito e objeto
55

(Bick, 1987; Anzieu, 1988). É com a "preocupação materna primária" (Winnicott, 1954), ou
com a "função continente", que este "limite" é oferecido ao bebê. Posteriormente, estando
estabelecida esta relação fusional e/ou simbiótica entre a mãe e o bebê (FIGURA 1), cabe
ao pai (ou a própria mãe exercendo uma função paterna) romper esta "unidade mãe-bebê"
(FIGURA 2) e constituir uma estrutura triangular (ou Edípica, seguindo a Sigmund Freud).

Mãe Bebê

FIGURA 1: Função Materna

Pai

Mãe Bebê

FIGURA 2: Função Paterna do corte simbólico da relação inicial

O bebê tem seu nascimento psicológico e na cultura realizado pelo pai ou pelo
representante simbólico deste. No momento que exerce esta função de corte e interdição, o
pai exerce o que chamamos de função paterna. Trataremos mais detalhadamente sobre este
tema no capítulo sobre “função paterna .
Queremos, fundamentalmente, enfatizar nas colocações anteriores que a noção e a
internalização (como parte de uma estrutura psíquica, o super-eu) de "limites" é: (1)
estabelecida nas primeiras etapas (ou primeiros anos) do desenvolvimento e (2) que é uma
função primordialmente da família. Não queremos dizer com estas afirmações,
absolutamente, que a escola e a sociedade não tenham responsabilidade neste processo, mas
sim que é necessário que tenhamos uma idéia de onde estão as raízes, pois quando um
“adulto” não consegue oferecer um ambiente continente a uma criança seria semelhante a
vermos um espetáculo teatral sem cenário, sem contexto, sem platéia. Por mais brilhante
que seja o ator, em algum momento perceberá que não está sendo compreendido como
deseja, sentir-se-á desamparado. O bebê que não recebe continência no seu ambiente vai
experimentar uma vivência de desamparo e pode ficar traumatizado com isso, o que irá
56

depender da intensidade afetiva dessas vivências. Poderá tornar-se uma pessoa que se
relaciona com os outros desistindo fácil de suas ambições ou agredindo destrutivamente
para obter satisfação de seus impulsos, além outras possíveis desadaptações ao longo da
vida destes indivíduos.
Falar em adultos, é falar também dos diversos contextos aos quais a criança está inserida: é,
na realidade, o mundo dos adultos o responsável por tornar um “ser” em “ser humano”.
Metaforicamente como um leque abrindo-se, a criança relaciona-se com os pais
(cuidadores) e familiares, num primeiro momento, a seguir com o ambiente escolar e, por
fim, na adolescência, abre-se totalmente para a cultura e sociedade onde estiver inserida.
A adolescência é um período de transformações, um momento muito criativo. Uma nova
possibilidade de pensamento conquistada (pensamento formal - que oportuniza raciocinar
sobre hipóteses e elaborar conclusões a partir delas) começa a ser exercitada pelo
adolescente em seu dia-a-dia, propiciando-lhe um novo tipo de relação com o mundo
adulto. Para o adolescente é fácil encontrar soluções para os problemas da humanidade,
muito embora a maioria delas não seja exeqüível na prática.
O caráter “mágico” que se estabelece entre o “pensado” e o “exeqüível” cria um espaço
importante para desenvolver a criatividade. Inicialmente, o potencial criativo do
adolescente mostra-se através de uma atividade impulsiva, difusa e caótica (visto da ótica
dos adultos), mas perfeitamente normal. Aos poucos, uma atividade criativa vai assumindo
um perfil mais definido, mais integrado e produtivo. Criatividade na adolescência articula-
se necessariamente com a noção de limites. A necessidade de um ambiente propício capaz
de suportar as tensões dos momentos iniciais deste processo criativo peculiar, tanto na
família como na escola é que demarcam esse período de transição.
Limite é uma palavra que tem, muitas vezes, uma conotação negativa, ligada erroneamente
à “repressão”, “proibição”, “interdição”, etc.* Limite, retomando, significa a criação de um
tempo e um espaço protegido dentro do qual a criança e o adolescente poderá exercer sua
espontaneidade e criatividade sem receios e riscos. Não existe conteúdo organizado sem um
continente que lhe dê forma.

*
Embora saibamos que repressão no sentido usado em Psicanálise também significa um elemento
estruturante da personalidade.
57

Queremos apresentar alguns exemplos para ilustrar e dar "uma clínica" ao pensamento que
estamos desenvolvendo.
Imaginemos, então, uma situação quotidiana para explicitar melhor estas questões: uma
criança de três ou quatro anos pega um pincel e na parede da sala de sua casa desenha um
monigote (FIGURA 3) e diz, com júbilo, para os pais que a tudo assistem: "esta é a
mamãe!" Temos agora não mais um, mas dois problemas...
(A) Em primeiro lugar a criança através de seu desenho revela seu desenvolvimento
psicomotor e perceptivo e com sua fala comunica uma escolha amorosa, revelando aos pais
(e ao mundo!) seu crescimento e desenvolvimento. Quando fecha o círculo que representa a
cabeça do monigote, por exemplo, a criança não só exercita sua motricidade, como já
vimos, como também simboliza as primeiras noções de dentro e fora, interno e externo, Eu
e o Outro, de conteúdo e continente: isto é, de “limites”. Ao realizar seu desenho da figura
humana, primeira representação de seu esquema corporal, a criança experimenta um
sentimento de júbilo, momento de satisfação, gratificação narcisista, experiências
fundamentais para a construção da auto-estima, espontaneidade e criatividade.
(B) Em segundo lugar, esta mesma criança com seu desenho “sujou” a parede da casa. Os
pais se defrontam, agora, com uma dificuldade importante: tolher este gesto espontâneo e
criativo e impedir o filho de continuar “a sujar” a parede da sala ou permitir que continue
desenhando “sem limites”? Eles terão a possibilidade de um amplo leque de atitudes, das
quais poderemos considerar dois pólos:
O (1) primeiro pólo é colocar “limites” no sentido de tolher o gesto espontâneo (Winnicott,
1971) da criança. Conforme a “sofisticação” dos pais eles poderão fazer isto de várias
maneiras: a) simplesmente nem perceberão o que a criança fez; b) poderão, com violência,
tirar o pincel da mão da criança e dar-lhe algumas palmadas ou ameaçar surrá-la se ela
repetir “de novo” este gesto de “sujar” a parede; c) se forem mais “cultos” poderão utilizar
a culpa (instrumento bastante comum na civilização judaico-cristã) e mandar a criança para
a “cadeirinha-de-pensar” ou para o quarto até que ela reflita e se “arrependa da bobagem
que fez” e então deve pedir perdão/desculpas para os pais e prometer “não sujar mais as
paredes”, ou seja, não “pecar mais”; d) ou se forem ainda “mais polidos, informados e sutis,
(FIGURA 4) simplesmente (e mais não será necessário) dirão a criança que no seu desenho
“faltam” os cabelos da mamãe, que a mamãe tem sobrancelhas, cílios, pupilas, que “faltam”
58

os dedos das mãos e que, a propósito, são cinco dedos, que a mamãe usa vestido, que ela
“esqueceu” de fazer as orelhas da mamãe, que ela “esqueceu” de desenhar também o chão e
a linha de terra “como as professoras gostam, pois revela que a criança é segura!”... enfim,
desqualificarão o gesto infantil e mostrarão que seu desenho “é uma droga!”. A criança
pensará, então, que se mostrar seu desenvolvimento e se “revelar” é muito perigoso, ou
algo pecaminoso que deve necessitar de perdão e que pode levar ao castigo e que o desenho
que imaginava ser “ótimo” nada mais é que “porcaria”. Ela tratará, assim, de não ser
espontânea e criativa (e sua auto-estima ficará muito baixa), pois isto significa riscos sérios.
Como sabemos muito bem a auto-estima, a criatividade e a espontaneidade são algumas das
funções vinculadas à pulsão epistemofílica, a pulsão vinculada a busca do conhecimento e a
curiosidade (Outeiral, 1982).
Donald Winnicott descreveu esta experiência no âmbito de seu conceito de “falso self”, que
é uma defesa altamente organizada para proteger “o verdadeiro self” das falhas e instruções
ambientais. Todos nós conhecemos pessoas que não saem de casa antes de perguntar a
alguém se estão bem vestidas e se a pessoa indagada mostra qualquer dúvida provoca uma
grande ansiedade no outro, que corre a experimentar várias indumentárias, com grande
ansiedade e sem poder decidir...
O (2) segundo pólo é colocar “limites” no sentido do ambiente (família, escola, etc.) ser um
facilitador que ofereça proteção (para si mesmo e para os outros) ao viver criativo que
envolve, inclusive, agressão e transgressões. Os pais, então, poderão elogiar o desenho, mas
explicar que a parede da sala não é o melhor local para desenhar, pois é um espaço
compartido por todos, mas que na parede de seu quarto, ou em um quadro que será posto lá,
ou em folhas de papel que a criança receberá (assim como algumas canetas coloridas...)
poderá fazer seus desenhos. Os pais, inclusive, passarão no quarto para ver e elogiar os
trabalhos e (quem sabe?) um dia colocarão uma folha com o desenho na parede da sala.
Este é o “limite” a que me refiro: presença, proteção, admiração e estímulo ao gesto
espontâneo e criativo do filho, do aluno...
Não é incomum encontrarmos referências de cuidadores em relação aos seus filhos e
professores em relação aos seus alunos de dizerem que “deram” limites a eles, no sentido
de terem escolhido o castigo correto para determinada situação enfrentada, sem
preocuparem-se se tal atitude foi tolhedor do potencial criativo, da espontaneidade, da
59

curiosidade de saber e do próprio desenvolvimento da auto-estima destes sujeitos


castigados. Geralmente, este “dar limites”, pelo que se observa cotidianamente, alterna-se
entre três categorias: a da violência, da culpa ou da desqualificação. Violência quando um
adulto bate numa criança que desrespeita as regras impostas. Culpa quando o adulto diz a
essa criança para pensar sobre o que fez e depois, quando ela estiver arrependida, o adulto
poderosa e onipotentemente a desculpa (tira-lhe a culpa). A desqualificação é quando o
adulto aponta à criança que aquilo que fez apresenta erros, falhas, que não é bem assim
como desenhou, precisa reparos, seria como dizer que por mais que ela tente mostrar seu
amadurecimento, criatividade e espontaneidade ela ainda não tem competência para isso.
Estas seriam as três maneiras não adequadas para lidar com a situação, pois a criança
poderá experimentar um desamparo muito grande e aniquilador de suas potencialidades
criativas.
À escola, como momento subsequente a família, cabe complementar a educação da criança
através do conhecimento formal. Cabe a ela saber e trabalhar nas diferenças entre Educar
(despertar o potencial interno do indivíduo, auxiliá-lo a colocar “para fora” este potencial e
ofercer um ambiente adequado ao desenvolvimento) e ensinar (colocar signos para dentro
do indivíduo). Essa diferença básica e fundamental é que nos faz perceber que, na verdade,
a sala de aula não é apenas um espaço físico com quadro, giz, cadeiras e mesas, e sim “um
espaço imaginário” onde “acontece um interjogo de forças inconscientes que se cruzam, se
opõem, se conflitam ou se reforçam” (Outeiral, 1994). “Aprender é aprender com alguém”
(Kupfer, 1989). O professor, desde que revestido por seu aluno de uma importância
especial, tem um poder de influência sobre o aluno que, por sua vez, colocará seu mestre
como substituto de suas figuras parentais. Freud chamou isso de transferência, ou seja, um
campo de relação, neste caso, entre o professor e o aluno no qual se estabelecem as
condições ou não para o aprendizado, sejam quais forem os conteúdos. Em outras palavras,
aprender e educar pressupõe, primeiro, a constituição de um vínculo; segundo, a
demarcação de diferenças e assinalamento das semelhanças e, terceiro, um ambiente
continente, onde frustrações e gratificações busquem equilíbrio.
Portanto, pensar em “limites” como punição ou proibição é tão ingênuo como pensar que
educar é tarefa ou dos pais, ou da escola. É muito mais que isso, é tarefa destes
conjuntamente com todo o contexto social onde estamos inseridos. Somos co-responsáveis
60

pela realidade que se apresenta a nós e da forma como ela se apresenta. O gesto na direção
do outro (agressão) busca acolhimento e sentido. Cabe ao adulto dar sentido aos gestos
infantis, vendo limite como estabelecimento de um tempo e um espaço, onde, através do
viver criativo, a criança e o adolescente possam experienciar seu desenvolvimento e sua
atividade pulsional (amor e agressão) em segurança para si mesmo e para com os outros.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZIEU, D. O Eu-pele. Casa do Psicólogo: São Paulo, 1989.


BIBLIA: MENSAGEM DE DEUS. Edições Loyola. 1989.
BICK, E. The experience of the skin in the early objects relations. In: HARRIS, M. & BICK, E. Collected
papers of Martha Harris and Esther Bick. The Clune Express: Scotland, 1987.
FERNANDEZ, A. Qual o teu papel na aprendizagem? Palestra proferida na II Jornada de Estudos
Pedagógicos. Porto Alegre, março 1992. Trancrição e tradução Eliane Tavares.
FREUD, Sigmund. Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro, Imago, 1997. 1 CD-ROM.
KHAN, M. Quando a primavera chegar. Escuta: São Paulo, 1988.
KUPFER, Maria Cristina. Freud e a Educação: O mestre do impossível. São Paulo, Scopione, 1989.
OUTEIRAL, J. A inibição dos impulsos epistemofílicos e as dificuldades de aprendizagem. In: OUTEIRAL,
J. et alli. Infância e Adolescência. Artes Médicas: Porto Alegre, 1982.
OUTEIRAL, J. O. Adolescer: Estudos sobre adolescência. Porto Alegre, Artes Médicas Sul, 1994.
TOMMASI, M. C. F. O conceito de agressividade na obra de Winnicott. Infanto – Revista de Neuropsiquiatria
da Infância e Adolescência. V. 5, n. 2, p. 73-76, 1997.
WINNICOTT, D. O Brincar e a Realidade. Imago: Rio de Janeiro, 1980.
WINNICOTT, D. Privação e delinqüência. Mrtins Fontes: São Paulo, 1987.
61

CAPÍTULO 6

A IMPORTÂNCIA DA FUNÇÃO PATERNA


NO DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

José Outeiral
Cleon Cerezer

Há um caminho a ser percorrido desde o tornar-se pai até a “função pai” ou “função
paterna”. O exercício desta função nos diversos contextos, aos quais nos inserimos, é ao
que nos propomos aqui discutir, ou seja, a importância da função paterna no
desenvolvimento da criança e do adolescente.
É importante pensarmos que a palavra pai denota relação, pois pensar em pai significa
pressupor uma mãe e um filho. Assim como falar mãe é falar de pai e filho. Ou falar em
filho é automaticamente falar de pai e mãe. É uma “ação entre” pessoas que, nomeadas
dessa forma, desenpenham papéis e funções. Portanto, falar de pai e mãe é também
falarmos de funções paterna e materna, que residem nas nossas representações e
significações internas de tais figuras.
O "pai" como função está ligado ao mundo das representações simbólicas internalizadas em
cada um de nós. A função paterna é em nível simbólico e independe da questão gênero, pois
provém das identificações e introjeções inauguradas na infância.
Antes de falarmos do pai como função ou da função paterna, do nível simbólico, cabe
ressaltar que o "pai" também envolve outras duas dimensões: a do real e do imaginário.
O pai real poderia ser novamente redimensionado em outros dois aspectos: o pai genitor e o
pai presencial, que necessariamente não precisa ser o mesmo. O pai genitor, como parte do
real, é aquele que emprestou seu código genético para, junto com a mãe, dar origem a um
novo ser da mesma espécie. É real porque a criança gerada carregará consigo, por toda
vida, o código genético desse pai genitor ou biológico. Um homem e uma mulher servem
de instrumentos reais ao imperativo dos genes em perpetuarem-se. Neste momento talvez
surge a primeira e constante dúvida para o pai, a qual é fundamentada na máxima de que
“pater semper incertus”. Cabe a esse pai conviver e tolerar essa dúvida inerente, pois
concretamente o filho desenvolve-se no corpo da mãe. Na história da paternidade (Dupuis,
62

1989), a descoberta da participação do homem na concepção do filho foi quando isolaram


um rebanho de animais com apenas fêmeas e elas “tornaram-se inférteis” por essa
condição, então descobriram que o macho servia para algo, fertilizar as fêmeas. E esta
conclusão foi estendida para a espécie humana.
O pai presencial significa o pai que é presente na relação com seu filho. Como foi dito,
anteriormente, não é necessariamente o genitor, mas aquele que, com sua presença, interage
com seu filho assim o chamando e sendo, por este, chamado de pai. O pai presencial é
aquele que adota alguém como filho e compromete sua presença como parte significativa
da vida de seu filho. É importante observar que, mesmo sendo genitor do seu filho, o pai
tem de optar por adotá-lo como tal. Este "adotar" significa comprometer sua presença real
(concreta e afetiva) para que este ser se desenvolva e cresça saudavelmente. O pai real
"presente" é aquele que assume o compromisso com o desenvolvimento de seu filho, seja
este do seu código genético ou não. No Brasil, um terço dos pais não reconhecem
oficialmente seus filhos. A falta do nome do pai poderia ser vista como mais um sintoma de
que muitos homens se ausentam de sua função de representante da ordem paterna.
A partir disso, podemos nos aprofundar nas questões ligadas ao universo representacional,
que originam-se desse processo inicial constitutivo, ou seja, as dimensões do pai
imaginário e do pai simbólico, as quais, em última análise, também são partes do pai real.
O pai imaginário deriva da seguinte projeção: "Qual pai serei?". Dentro das idealizações
introjetadas da figura paterna é constituída uma figura ideal de pai que sempre estará lá
alojada: um pai imaginário. Um filho antes de nascer povoa a imaginação de seus pais, ou
seja, a projeção que estes fazem dele, é um filho imaginário. Todos nós, por mais que
tenhamos filhos reais, teremos sempre outro(s) no imaginário. Se pensarmos como no início
deste capítulo, podemos dizer que falar em filho imaginário obrigatoriamente é falar
também de uma mãe e um pai imaginários. A imagem representacional do pai que temos
internalizado é o ponto de partida para constituirmos esse corpus do pai imaginário, que
igualmente está alojado internamente nas nossas representações e significações de figura
paterna. Quando o poeta canta: "se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho" (IRA),
talvez esteja sugerindo que, ainda sendo filho, apenas imagina, projeta, que pai será. Este
pai imaginário já existe nele, o fato de nascer seu filho desencadeará nele o ingresso no
mundo real da paternidade.
63

O pai da dimensão do simbólico é o pai que temos introjetado dentro de nós, que foi
constituído a partir de nossas vivências desde as identificações primárias na nossa origem
até as identificações secundárias no período de maior socialização infantil. Falar em pai
simbólico, introjetado, é falar da função paterna existente em cada um de nós.
Se existe um pai, necessariamente existe uma mãe. Com a função paterna não poderia ser
diferente, para falarmos dela, é importante falar um pouco também sobre função materna. A
qual tem a ver também com os registros internalizados dos momentos iniciais de nossas
vidas, nos quais, como bebês, precisamos de uma vivência de intensa fusão (simbiose
afetiva) com a mãe (Figura 1). Na espécie humana, a dependência da mãe, em nível
biológico e psicológico, é fundamental para tornar-se possível o desenvolvimento
(sobrevivência) do recém nascido. Enquanto que, em outras espécies de mamíferos
podemos observar que muitos indivíduos precisam de horas ou dias para independizarem-
se, na espécie humana, um indivíduo, por exemplo, leva anos para ser capaz de buscar seu
próprio alimento. A dependência da mãe, ou melhor, dessa função de cuidados maternos é
total na espécie humana.

Mãe Bebê

Figura 1: Função Materna

Neste momento em que esta dupla mãe-bebê está unida pela uma simbiose inicial da vida
humana, a função do pai real presente nesta relação é de fazer a maternagem dessa unidade
mãe-bebê, dar “colo” para que mãe e bebê desenvolvam-se afetivamente protegidos. O pai,
neste momento, ativa e exerce uma função materna da dupla (Figura 2). Que não soe
estranho falar em função materna do pai, poderíamos até brincar com a metáfora bíblica da
história da criação, na qual Adão pode ser visto como a “mãe” de Eva, pois a gestou de sua
costela, isto refere-se a idéia de função materna do homem.
64

Mãe
Bebê

Figura 2: Função Materna do pai

Conforme Bollas (2000)


“... Ao nos referirmos à mãe interna ou à ordem materna, incluímos as
funções psíquicas de recepção, gestação, parto e continência, bem como as
formas de comunicação baseadas em recursos não-verbais. Ao nos
referirmos ao pai interno ou à ordem paterna, incluímos as funções de
penetração, inseminação, guarda, encontro, criação e aplicação das leis e,
ao especificar este tipo de comunicação, estamos nos referindo a função
mosaica...” Pai

Para prosseguirmos, falemos de um segundo momento do desenvolvimento emocional da


criança, subsequente àquele em que mãe e bebê sentem-se fusionados, impõe-se que o
mundo como um terceiro nessa relação inicial seja introduzido e esta é a função simbólica
do pai, a função paterna. O pai é encarregado do “corte simbólico” da relação inicial mãe-
bebê, ele apresenta o mundo ao seu filho (ver Figura 3). Simbolicamente, o pai diz: “esta
mulher será sempre tua mãe, jamais tua mulher”. A função do pai separa a criança da mãe:
interdiz a fusão-confusão original, imaginária (This, 1987). O filho deixa de ser fabricação
materna e, simbolizado, nomeado com o nome do pai, torna-se filho de um par criativo1.

Pai

Mãe Bebê

Figura 3: Função Paterna do corte simbólico da relação inicial

A possibilidade de maior ou menor inserção do pai (mundo externo) como interditor dessa
relação inicial mãe-bebê desencadeia também um outro processo, que está associado neste
momento de “corte”, Margareth Mahler (Mahler,1982) chamou tal situação de processo de
separação-individuação. Mãe e bebê terão de tolerar que tanto um como o outro conviva
1
Ser criador é aquele que provoca algo e não sabe no que vai dar.
65

com outras pessoas em outras situações. Cabe a mãe sugerir o pai ao seu filho como o
portador da lei mantida em seu nome e como o outro inatingível pronto para vir do real.
Não só falará deste pai como irá demonstrar seu amor por ele. Alguma dificuldade de
separação neste momento sempre será observada nos dois pólos da relação, irá depender da
intensidade com que isso acontece, para mãe, por exemplo, tolerar essa separação simbólica
vai depender também de como ela vivenciou tal ansiedade com sua mãe original e com esta
mãe internalizada está representada e significada dentro dela.
A função paterna de corte simbólico da relação mãe-bebê é o que provoca o chamado
nascimento psicológico da criança (Mahler). Com essa interdição, o pai trinifica a díade e
introduz simbolicamente o mundo nas representações e significações do seu filho (This,
1987).

Figura 4: Da díade a Tríade

O pai, interposto entre mãe e filho, apresenta o mundo de outra forma ao seu bebê. Uma
diferença que plasticamente elucida muito bem isso é a maneira como pai e mãe geralmente
seguram o bebê. A mãe segura o bebê, geralmente, no colo, com a criança na posição
horizontal, e com o seu rosto olhando para o rosto do seu bebê (Figura 5), enquanto que o
pai posiciona seu filho na vertical,com o rosto voltado para o mundo e fazendo menção de
jogá-lo à frente (Figura 6).

Figura 5 Figura 6
A função do pai é de nomear, marcar sua presença como representatnte da lei que garante
ao infante o acesso ao desejo. Paradoxalmente esta é uma proibição que permite. Com
66

relação ao desejo de aprender, por exemplo, o professor, desde que revestido por seu aluno
de uma importância especial, tem um poder de influência sobre o aluno que, por sua vez,
colocará seu mestre como substituto de suas figuras parentais, ou seja, exercer funções e
representar as ordens materna e paterna. Quando um professor separa a criança de sua mãe
na chegada a escola e estimula que esta brinque com os colegas de turma, está exercendo
função paterna, pois corta simbolicamente a relação da dupla e estimula a inserção do
indivíduo no mundo. As ordens materna e paterna, segundo Bollas (2000), referem-se
simultaneamente a duas dimensões do inconsciente. Ele diz: “... concebo o inconsciente
recalcado primariamente funcionando de acordo com a ordem materna, cuja ‘lei’ básica,
se assim o quisermos, é a da recepção. O inconsciente recalcado secundariamente é o que
funciona de acordo com a ordem paterna e segue a lei do recalque. Convidar, repelir. Sim,
não...”
Não é incomum a pergunta se o fato da mãe exercer a função de pai e mãe provoca alguma
carência paterna na criança. Poderíamos pensar que é uma sobrecarga de funções para uma
pessoa só, e o êxito disso vai depender de como essa mãe vivenciou suas relações originais
com seu pai e sua mãe. Talvez não haja carência de função paterna (simbólica), mas
carência de conviver com um sujeito masculino para identificações ligadas a figura de
gênero ou estabelecer as diferenças. Este homem não precisa ser necessariamente um
companheiro da mãe, pode ser um tio, avô, padrinho, amigo, professor...
Portanto, independente a qual gênero pertencemos, teremos internalizados dentro de nós
uma mãe e um pai simbólicos, que manifestam-se em nossos atos como funções materna e
paterna. A partir das vivências infantis constituímos um corpus simbólico do que
representam e significam pai e mãe, Raquel Z. Goldstein (1995) chamou isso de
“transcender a imagem para captar a função”. É a partir das relações com o pai real que
constituímos um pai simbólico e, por conseguinte, a função paterna. Do pai nasce a função
paterna. O exemplo máximo disso é quando o pai real presencial morre e após o processo
de luto pela perda deste conseguimos percebê-lo em nossos atos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOLLAS, C. Hysteria. Trad. Monica Seicman. São Paulo: Escuta, 2000.


67

DUPUIS, J. D. Em nome do pai: uma história da paternidade. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
GOLDSTEIN, R. Z. And then... Why Lacan? Lima: Fondo Editorial – Biblioteca Peruana de Psicoanalisis,
1995.
MAHLER, M. O processo de separação-individuação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.
THIS, B. O pai: ato de nascimento. Trad. Mário Fleig e Luiz Carlos Petry. Porto Alegre: Artes Médicas,
1987.
68

CAPÍTULO 7

A ESCUTA DO MAL-ESTAR NA SALA DE AULA: UM ENSAIO


SOBRE PSICANÁLISE E EDUCAÇÃO NA ATUALIDADE

Cleon Cerezer

Historicamente, psicanálise e educação vêm tentando articularem-se juntas, conforme


FILLOUX (1999), desde quando Sandor Ferenczi (discípulo de Freud), em 1908, proferiu
uma conferência sobre o tema “psicanálise e pedagogia”, na qual questionava o caráter
repressivo da educação da sua época. A seguir, Pfister, Bovet e Zulliger foram os pioneiros
em pensar a psicanálise juntamente com a educação. Depois destes vieram muitas outras
publicações até os tempos atuais. Freud, enquanto pode, acompanhava todos esses
movimentos e sempre estimulou que a psicanálise se estendesse a outras disciplinas,
mesmo deixando claro que enquanto “a educação implica numa finalidade de adaptação a
uma ordem social a psicanálise não visa nem a adaptação, nem a formação de rebeldes”
(FREUD, apud FILLOUX, 1999, p.18).
A articulação de psicanálise com educação parte desse conflito paradoxal, pois “no
contexto da civilização, a educação tem por finalidade e função social explícita de
estabelecimento de laços, de ligações cada vez mais abrangentes entre os homens.”
(MURTA, p.156, 1999), ou ainda, conforme FILLOUX (1999 p.17), o “objetivo de
qualquer educação é ensinar a criança a domar seus instintos, motivo pelo qual é impossível
permitir-lhe liberdade total, autorizá-la a obedecer sem restrições a todos os seus impulsos:
‘a educação deve portanto inibir, proibir, reprimir”, porém “mesmo que a adaptação seja
um efeito inevitável do educar, ela não aglutina em si o objetivo da Educação que pode ser
sintetizado como sendo o de levar à produção de uma relação com o saber” (MENDONÇA
FILHO, 1998, p.73).
A psicanálise, por sua vez, “não diz o que deve ser feito, mas, reflete sobre o que tem sido
feito na educação” (MONTEIRO, 1999, p.188), devido ao fato de que “a psicanálise se
apresenta ao mesmo tempo como uma prática (a cura analítica) e um saber (o corpus dos
conhecimentos analíticos)” (FILLOUX, 1999, p. 9). A educação, ao seu lado, pode referir-
se as práticas ou as teorizações das práticas quando: a) trata-se de transpor o modelo da
cura à prática pedagógica ou a teoria desta prática; b) trata-se de inspirar a prática ou teoria
69

pedagógica pelo saber analítico; c) trata-se de utilizar esse saber para uma exploração do
campo pedagógico que leve à produção de novos conhecimentos sobre o dito campo;
d) trata-se, enfim, de ser analista no próprio ato de pesquisa e de escuta do que se passa no
campo. Os dois últimos refletem uma abordagem que utiliza a interpretação analítica para o
conhecimento, e podem ser conceitualizados em termos de leitura e de decifragem. A
unidade dessas duas reside na consideração do inconsciente tanto na atividade e teoria
pedagógicas, quanto na pesquisa fundamental (FILLOUX, 1999, p.10).
Desta psicanálise que escuta o discurso e lê a realidade que buscamos como possibilidade
de articulação no cotidiano da escola. Pensemos, hipoteticamente, numa situação de
“tensão” entre alunos e professores de uma 6a série do ensino fundamental de uma escola,
onde a “escola” queixava-se de uma “turma problema”, alunos “agressivos, indisciplinados,
irresponsáveis, desafiadores e com uma sexualidade aguçada”. Os professores, além de
compartilharem com a visão da escola, diziam estar cansando-se rapidamente quando
entravam na turma, sentindo-se impotentes diante da realidade apresentada e, segundo eles:
“perdidos, sem saber o que fazer, imobilizados em sua capacidade de pensar”. Vejamos, por
exemplo, a seguinte situação: na aula, o professor argumenta com seu aluno que sem aquele
conhecimento, que está sendo ensinado, ele não vai ser nada na vida ou não vai conseguir
um emprego, etc... E o aluno lhe responde, com propriedade, que não precisa daquilo para
ser alguém, pois seu pai é pedreiro e tem uma casa de dois pisos enquanto o professor vive
de aluguel. O professor estudou, o pai não. A professor se vê num impasse e se cala, o aluno
triunfa. Não estou fazendo uma epopéia ao não-conhecimento, simplesmente ofereço um
exemplo prático de uma realidade paradoxal e, porque não, paralisante. Na resposta do
aluno o professor é levado a sentir o mal-estar que é viver na atualidade espremido entre
seus conceitos, sua formação e a prática do ato educativo no cotidiano da sala de aula.
Nas entrevistas de debate, realizada com os professores, a tentativa empírica foi de buscar
significados, explicações, hipóteses para o que estaria acontecendo naquela realidade
escolar, subjetivando, assim, a experiência vivida, ou seja, criar estratégias de pensamento
para significar uma vivência. “Não para interpretar os problemas sociais a partir de uma
subjetividade (...) mas para pensar como se produz a subjetividade do sujeito a partir do
ordenamento dos sistemas simbólicos transmitidos pelo social” (SCHÄFFER, 1999, p.35).
Talvez tenha apenas feito a aplicação técnica de uma ciência, diferentemente do que deve
70

pretender a psicanálise no campo educacional, pois na “medida em que a psicanálise


oferece à pesquisa um corpus de conhecimento, bem como uma abordagem especifica do
que é da ordem do inconsciente, esta abordagem pode ser concebida como um instrumento
de pesquisa que explore especificamente este campo” (FILLOUX, 1999, p.31).
Articular psicanálise e educação é um grande desafio. O fato da psicanálise se oferecer
como um importante fundante do instrumento da escuta é o que nos possibilita, muitas
vezes, contribuir na leitura do mal-estar vivido pelo professor na sala de aula em relação ao
ato educativo na atualidade.
Preliminarmente, gostaria de definir o ambiente da sala de aula como um campo onde
“acontece um interjogo de forças inconscientes que se cruzam, se opõem, se conflitam ou
se reforçam” (OUTEIRAL, 1994, p.36), independente do espaço físico que ocupa, pois
transcende as quatro paredes com mesas e cadeiras. É neste ambiente que acontece a
relação professor-aluno, que MEDEIROS (1999, p.159) aborda da seguinte forma: “ O
campo das condutas humanas, do agir humano que, na escola, se apresenta sob o termo de
disciplina ou (in)disciplina escolar”, isto tem sido uma das principais preocupações dos
professores na atualidade gerando um verdadeiro mal-estar. Na atualidade, “cada vez que
um professor se dirige a uma sala de aula se reitera a pergunta a cerca de como fazer para
que as crianças não se dispersem, não atrapalhem os colegas e, mais ainda, prestem atenção
à aula, se interessem pelas atividades propostas” (MEDEIROS, 1999, p.158).
DINIZ (1998) refere que sua impressão do cotidiano escolar é de uma insatisfação
generalizada por parte das professoras, manifestando-se como “negação” das discussões,
inerentes ao espaço pedagógico propriamente dito, e uma supremacia do discurso da
queixa. “O mal-estar por não poder se explicitar no cotidiano escolar, afetaria o sujeito
retornando sob a forma de adoecimento. Adoece o sujeito, por não conseguir simbolizar o
mal-estar, não conseguir transformá-lo em palavras” (DINIZ, 1998, p.206). Diria que o
professor não está sendo escutado e nem tendo a possibilidade de decifrar o que se passa
com ele. “Antes, o professor parecia saber o que falava ao sujeito. Hoje, pensa falar com
um objeto. E se desespera porque não consegue ensinar nada para esse suposto objeto”
(KUPFER, 2000, p. 121). A contradição aqui, saudável diria, é o aluno negar-se a ser um
objeto apenas maturativo e exigir ser considerado sujeito de sua educação, de seu
inconsciente. Conforme LAJONQUIÈRE (1998, p. 8-9) “cabe pensar tanto o mal-estar pela
71

ineficácia educativa quanto as justificativas formuladas como sendo produtos do


inconsciente pedagógico”.
Diante desse clima de mal-estar no ambiente escolar “as professoras se convencem de que
pouco podem fazer para reverter a situação de fracasso do aluno, de abandono da escola e
de descompromisso social e político com a educação, e se acomodam, procurando formas,
saídas estratégicas, para conviver pacificamente com esse quadro que se repete
diariamente” (MURTA, 1999, p.138).
Fazendo uso de uma analogia digamos que “...foi pela escuta cuidadosa da histeria que
Freud pode surpreender o que existia de volúpia nas dores lancinantes do sofrimento
humano” (BIRMAN, 1999, p.123). Da mesma forma, pela escuta cuidadosa dos sintomas
presentes no mal-estar na sala de aula, por parte dos professores, é que penso que algumas
fronteiras são possíveis entre psicanálise e educação, pois “a subjetividade é
inequivocamente uma das matérias primas do campo da educação, sendo em torno dela que
os operadores e engrenagens deste campo giram com suas práticas e seus propósitos, em
última instância” (BIRMAN, 2000, p.11).
O instrumento da escuta envolve não só o sentido do ouvir, mas o de fazer uma leitura
subjetiva da linguagem apresentada pelo sujeito que está sendo escutado. Como afirma
ANCHANTE (1994, p. 97), “se o analista é um especialista em saber escutar, está na
medida em que o que escuta é a fala do sujeito. Porque, através da fala, o sujeito diz mais
do que pretende dizer e quando diz, não sabe o que está dizendo. Há um saber a mais que
lhe escapa” e na fala do professor não só há a ausência de domínio sobre o que é falado,
mas também sobre os efeitos de seu discurso no aluno.
Tais motivos levam a pensar que é “imprescindível que o educador seja escutado, assim
como a sua instituição, no que eles trazem de angústia e sofrimento” (ALMEIDA, p.68-69,
1999).
Segundo DINIZ (1998, p. 213), que pesquisou sobre o sofrimento da mulher professora,
“(..) a escuta foi essencial como instrumento de trabalho, sendo
propiciadora de reflexões, embora não possa defini-la como uma escuta
propriamente clínica, mas que não perdeu de vista, nas falas, a emergência
do sujeito através dos ditos e não-ditos de sua história. A escuta
psicanalítica, contudo significou também uma dificuldade: não aplicar essa
teoria à pedagogia, mas lançar questões que pudessem fazer furo em um
saber já constituído”.
72

A escuta de uma fala ou de um discurso é o que nos possibilita uma leitura subjetiva
daquilo que está sendo expressado. Se podemos nos arriscar a fazer uma escuta que
chamamos de psicanalítica, nossa leitura igualmente será de cunho psicanalítico, ou seja,
“uma leitura que inclua o discurso social que circula em torno do educativo
e do escolar (...) estará produzindo uma inflexão na ação do psicanalista e o
levará a uma prática que não coincide mais com uma clínica psicanalítica
‘ortodoxa’, pois ele terá de se movimentar o suficiente para ouvir pais e
escola. Isto amplia o campo de ação do psicanalista, que passa a incluir a
instituição escolar como lugar de escuta” (KUPFER, 2000, p. 34).

E é neste ambiente da escuta, o escolar, que se dá a prática educativa, o ato educativo, o


qual requer do professor a habilidade de regredir ao nível do seu aluno para compreendê-lo
e, simultaneamente, manter-se no lugar do (outro) adulto na relação. A criança necessita da
existência de um adulto para se tornar um humano civilizado. Contudo, o ato de educar
uma criança não ocorre sem conflitos, dúvidas e arrependimentos. Isto é, o caminho pelo
qual o adulto conduz a criança no processo educativo não é linear nem imune a erros.
“Somente alguém que possa sondar as mentes das crianças será capaz de educá-las e nós,
pessoas adultas, não podemos entender as crianças porque não mais entendemos a nossa
própria infância. Nossa amnésia infantil prova que nos tornamos estranhos à nossa
infância” (FREUD, 1997).
“O ato de educar está no cerne da visão psicanalítica de sujeito. Pode-se
concebe-lo como o ato por meio do qual o Outro primordial se intromete na
carne do infâns, transformando-a em linguagem. É pela educação que um
adulto marca seu filho com marcas de desejo; assim o ato educativo pode
ser ampliado a todo ato de adulto dirigido a uma criança ‘com o sentido de
filiar o aprendiz a uma tradição existencial, permitindo que este se
reconheça no outro” (KUPFER, p. 35, 2000).

Segundo ALMEIDA (1999, p. 68), cabe ao educador sustentar a lei simbólica do pai como
função, ou seja, “a condição de suportar o fracasso constitutivo do ato educativo”, pois o
impossível da educação, como dizia Freud, tem haver com os ideais educativos, os quais
irão se confrontar, sempre, com algo “ineducável” do sujeito. A função paterna 2 de corte
simbólico das relações iniciais com a mãe pode também ser vislumbrada na relação do
professor/educador com seu aluno, é através do corte simbólico provocado pelo professor
que o aluno rompe com conhecimentos adquiridos e busca construir novos. O educador tem

2
Ver capítulo específico sobre esse tema
73

de descobrir-se como o mediador do conhecimento e a possibilidade de significação deste


conhecimento que, pelo aluno, passam pela via da linguagem e da fala que é sempre
endereçada a um Outro. Aprender é aprender com alguém, e na relação professor-aluno
diversos outros estão implicados.

“Se a psicanálise pode contribuir, de alguma forma, com o campo da


educação é apontando para a necessidade de uma postura reflexiva sobre a
tarefa educativa, que supõe uma re-significação, a ser feita pelo professor,
de sua atuação junto aos alunos” (ALMEIDA, 1999, p.64).

Analisemos a seguinte situação de uma professora conversando com o psicólogo escolar


durante uma reunião de assessoria a professores:
Silvana – Ontem, lá na escola onde eu sou professora, tinha uma palestra sobre
alunos especiais e eu ia dar uma prova, aí meus alunos disseram que queriam ir à
palestra, eu já percebi que era para não ter prova. Mas decidi fazê-los pensar sobre
o que estavam me pedindo e me darem os motivos para irem na palestra. Eles
ficaram meio assim no início, e tu sabes que começaram a ver que tinham muitos
motivos para ir na palestra, um tem um irmão que é excepcional, outro conhece um
vizinho e gostaria de saber como falar com ele...foi bem legal a conversa, e tu
sabes que a conclusão foi que foram à palestra e depois do recreio, eu tinha 2
períodos, eles fizeram a prova.
Psic. – Parece que provocaste uma parada para o pensamento, ou seja, na verdade
estava buscando um significado para irem na palestra, para ela tornar-se
importante e não como uma matação de aula...”

O ponto importante das discussões em torno do exemplo trazido pela professora sobre irem
a palestra ou fazer a prova está no professor levar a turma a pensar e significar seu ato, para
que este não seja um simples conluio entre professor e aluno para não estarem na sala de
aula e nem pensarem os porquês dessa vontade. O fato da temática da palestra tratar de
pessoas portadoras de cuidados especiais e a necessidade de distanciamento do problema
dessas pessoas para que possamos ajudá-las fez com que fosse estabelecido um paralelo
com o ato educativo na escola regular, onde o professor também necessita de uma distância
ótima de seu aluno sem misturar-se, e alguns professores confessam que essa é uma tarefa
difícil, sentem uma necessidade concreta de ajudar, pois não conseguem precisar o valor
simbólico de seu trabalho, que é vivido inconscientemente como uma agudização do mal-
estar atual na sala de aula. Vejamos:
74

MA – É, mas a gente tem vontade de levar o aluno para dentro da casa da gente, e
a gente sabe que não dá certo, tem colegas que já fizeram e não recomendam para
ninguém... O ser humano é uma máquina muito complexa, para não conseguir se
misturar é dificíl.
Verônica – Eu misturo tudo, até choro junto com as mães, alunos...
MA – É ver o aluno como uma terceira pessoa. A gente já sai comprando coisas
para dar aos alunos, prendedor para as gurias...
MH – Cartela de tic-tac para prender o cabelo...Esses dias eu dei uns para uma
menina e no outro dia ela veio com todos no cabelo.
Psic. – Será que é dessa forma que vocês pensam em ficar na cabeça dos alunos?

Observa-se, neste momento, uma dificuldade do professor, na atualidade, de colocar o


aluno como um Outro, como um terceiro na relação com o saber - tríade esta que articula-se
em papéis simbólicos definidos e provocam a construção mediada do conhecimento - pois é
na relação assimétrica do professor com seu aluno que se produz, na diferença, o
conhecimento. Os desvios do mal-estar buscados pelo professor nas suas relações de
trabalho ou com o seu trabalho denota sua atual dificuldade de encarar o mal-estar como
algo que faz parte da prática do ato educativo na atualidade, embora muitas vezes o
professor não se dê conta disso e nem queira dar-se conta do mal-estar inerente a educação,
pois educar é uma das tarefas impossíveis, junto com o governar e o psicanalisar como
dizia Freud. Impossível porque é indimensionável a abrangência do ato educativo por parte
do professor perante o seu aluno. Dentro de variáveis incontáveis é que se dá o aprender,
estabelecido numa relação que demarca as diferenças entre o professor e o aluno, um sabe
uma coisa e o outro sabe outra, quando encontram-se provocam a construção do
conhecimento – ensinamento e aprendizado. A relação ambivalente de dependência,
estabelecida assim, é geradora de mal-estar, dessa advém, paradoxalmente, sujeitos
desviantes do mal-estar.
Um outro viés a ser mais amplamente explorado num estudo posterior é a visão da
experiência do professor na prática do ato educativo sendo, por muitas vezes, posta em
questionamento de isto ser ou não um trabalho. Por vezes o ensinar parece ser visto como
não-trabalho, ao mesmo tempo em que dá muito trabalho praticá-lo. Talvez aqui se funde
um dos principais objetivos da escuta psicanalítica do cotidiano da sala de aula, ou seja, de
pensar sobre a complexidade do valor simbólico do trabalho do professor/educador na
atualidade, a partir do mal-estar vivido por este na sala de aula.
75

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, S. F. C. Psicanálise e Educação: Entre a transmissão e o ensino, algumas questões e impasses. In:
COLÓQUIO DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICANALÍTICAS E EDUCACIONAIS
SOBRE INFÂNCIA, I. A psicanálise e os impasses da educação. USP/ LEPSI: São Paulo, de 15 a
16/out./1999. P. 63-69.
ANCHANTE, Cesar. Olhar, corpo e fala na escola. Revista do GEEMPA. N.3, P.96-101, mar. 1994.
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
BIRMAN, J. Subjetividade, contemporaneidade e educação. In: CANDAU, V. M. (org.). Cultura ,
linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
DINIZ. O mal-estar das mulheres professoras. In: LOPES, E. M. T. (Org.) et al. A psicanálise escuta a
educação. Belo Horizonte: Autentica, 1998.
FILLOUX, J. C. Psicanálise e pedagogia ou: sobre considerar o inconsciente no campo pedagógico. In:
COLÓQUIO DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICANALÍTICAS E EDUCACIONAIS
SOBRE INFÂNCIA, I. A psicanálise e os impasses da educação. USP/ LEPSI: São Paulo, de 15 a
16/out./1999. P. 9-42.
FREUD, S. O interesse da psicanálise para as ciências não-psicológicas (Parte II). Edição Eletrônica
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. 1 CD-ROM.
KUPFER, M. C. M. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2000.
LAJONQUIÈRE, L. A Psicanálise e o mal-estar pedagógico. Revista Brasileira de Educação da ANPED,
n.8, mai-ago, 1998. P.92-98.
MINERBO, M. Estratégias de investigação em psicanálise. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
MURTA, C. Ambivalência na prática pedagógica: uma leitura a partir de Sigmund Freud. In: COLÓQUIO
DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS PSICANALÍTICAS E EDUCACIONAIS SOBRE
INFÂNCIA, I. A psicanálise e os impasses da educação. USP/ LEPSI: São Paulo, de 15 a 16/out./1999. P.
138-157.
OUTEIRAL, J. O. Adolescer: estudos sobre adolescência. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
SCHÄFFER, M. Subjetividade e enunciação. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 24, n.1, p. 19-38,
jan/jun. 1999
76

CAPÍTULO 8

ADOLESCÊNCIA: MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE

José Outeiral

“Não sou nenhum Spinoza para fazer piruetas no ar”


Tchekhov

Outro título possível...

A metamorfose ambulante de Pedrinho Skywalker em Gotham City

Enunciado....
O enunciado básico desta bricollage é que vivemos um período onde a sociedade e a
cultura sofrem intensas mudanças e transformações de paradigmas e valores que incidem
poderosamente na existência dos adolescentes, criando um gap generacional, entre eles e
os adultos. Este período é denominado por alguns autores como pós-modernidade.

Definição
A pós-modernidade é um conceito multifacetado que chama a nossa atenção para um
conjunto de mudanças sociais e culturais profundas que estão acontecendo neste final do
século XX em muitas sociedades “avançadas”. Tudo está englobado: uma mudança
tecnológica acelerada, envolvendo as telecomunicações e o poder da informática, alterações
nas relações políticas, e o surgimento de movimentos sociais, especialmente os
relacionados com aspectos étnicos e raciais, ecológicos e de competição entre os sexos.
Mas a questão é ainda mais abrangente: estará a modernidade em si, como uma entidade
77

sócio-cultural, desintegrando-se e levando consigo todo o suntuoso edifício da cosmo-visão


iluminista ? (David Lyon)

Metamorfose ambulante
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo.
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor
lhe tenho horror
lhe faço amor.

Raul Seixas, Metamorfose ambulante (1973)

-I-
A clínica do quotidiano nos permite constatar que, efetivamente, uma série de paradigmas e
valores de nossa Sociedade, circunstâncias que se mantiveram relativamente estáveis no
decurso de várias gerações que nos antecederam, estão sendo contestados, modificados e,
mesmo, substituídos por outros muito diferentes. Esta observação pode ser descrita como o
“advento” da condição pós-moderna (ou “... a lógica cultural do capitalismo tardio”,
como descreve F. Jamelson), ou seja, a etapa intermediária entre o “esgotamento” da
modernidade e o período que a irá suceder e que não sabemos, exatamente, como será.
Na sociedade humana (escrevem vários autores, como Bertrand Russel) desde os seus
primórdios, sempre foi assim: durante um certo espaço de tempo, às vezes, abrangendo
alguns séculos, uma série de elementos sociais, econômicos e culturais permanecem,
aparentemente, estáveis até que em um determinado momento, que poderá ocupar algumas
gerações, ocorre uma “ruptura”, surgindo momentos de instabilidade, incertezas e
mudanças bruscas, e após uma nova etapa se estabelece. Foi assim, por exemplo, ao final
do medievo, em torno dos séculos XV e XVI, quando a modernidade começou a se
estruturar.
Uma metáfora que costumo utilizar para dar uma maior nitidez ao que escrevo (valendo
sempre lembrar, com Goethe, que “...a nitidez é uma conveniente distribuição de luz e
sombra ...”, ou seja, que não pretendo “explicar tudo”) é o movimento das placas
tectônicas. Estas placas, que compõem a superfície terrestre, durante longos espaços de
tempo, aparentemente (embora estejam, na verdade, em constante movimento e produzindo
78

um acúmulo de energia), parecem estar em repouso, até que o acúmulo de energia produz
movimentos perceptíveis a que denominamos terremotos e novas acomodações surgem
então. Não esqueçamos que nosso continente sul-americano era unido à África... Estas
novas acomodações darão lugar a novos terremotos e assim sucessivamente, num
movimento contínuo. Com o desenvolvimento da sociedade Humana acontece algo
parecido: a Idade Média, como comentei antes, foi “estável” durante alguns séculos,
ocorreu um “terremoto” durante algumas gerações, e se estabeleceu, então, a Idade
Moderna.
É possível, pensam alguns autores, que estejamos vivendo um “ terremoto “ – a condição
pós-moderna - , período de transição entre a modernidade e o que a irá suceder... logo
surge a pergunta sobre que fatores provocam essas “mudanças”? Voltemos, por breves
momentos e com uma lente de maior aumento, até à Idade Média, caracterizada,
especialmente, pela estrutura feudal e por uma visão de mundo teológica. O
desenvolvimento do comércio trazido pelas grandes navegações, o avanço do conhecimento
científico sobre a interpretação teológica do mundo, o desenvolvimento das cidades e do
comércio (surgem os “ burgos “, as cidades, muitas vezes cidades-estado , e os “burgueses”,
uma nova classe social), a invenção da imprensa (a descoberta de J. Gutemberg –
1397/1468 - colocou o conhecimento obtido através dos livros e da Bíblia- a primeira
Bíblia foi impressa em 1454 -, em especial, ao alcance de muitos, o que antes era restrito ao
trabalho dos monges copistas e que permanecia na posse da Igreja, originando mudanças
das quais o livro de Humberto Eco, O nome da rosa , nos relata magnificamente), na
esteira desse processo surge a Reforma Protestante e a Contra-reforma, enfim, um sem
número de fatores sociais, econômicos e culturais se modificaram. Houve um esvaziamento
do medievo nos séculos XV, XVI e XVII e o nascimento e o desenvolvimento da
modernidade. A modernidade, que é representada, por exemplo, pelo ideário da Revolução
Francesa de 1779 - liberdade, igualdade e fraternidade – propiciou o surgimento da
revolução industrial, a noção de Estado Nacional , o respeito pelo cidadão e pelas leis
constitucionais, uma ênfase sobre a “razão” e no conhecimento cientifico, o
estabelecimento da “família burguesa”, configurando uma visão de mundo (explicitada por
filósofos como Spinoza, Descartes, Kant e Comte, entre outros) considerada como o
79

Iluminismo, período das luzes, em oposição a agora chamada idade das trevas , a Idade
Média.
A Revolução Industrial, por exemplo, consolidou a modernidade e artistas a descreveram
com clareza. No plano religioso a Reforma desencadeada por Martim Lutero (não
esqueçamos que foi ele quem traduzindo e assim difundindo a Bíblia, com a possibilidade
oferecida pela invenção de Gutemberg, unificou o idioma Alemão) representou uma
transformação ao atingir a hegemonia da Igreja Católica e do papado romano, criando o
cenário para o tema que Max Weber explora em seu livro A ética protestante e o espírito
do capitalismo.
Neste período um novo conceito de família, a família burguesa, surge, como tão bem
descreve Ph. Ariés. A própria arquitetura doméstica se modifica, surgindo a idéia de
privacidade e, por exemplo, os quartos de dormir, o que não existia, praticamente, até
então: todos dormiam numa mesma peça, adultos, crianças e visitantes ocasionais,
próximos ao local de preparo das refeições, espaço aquecido. O crescimento das cidades
criou, também, a necessidade dos nomes-de-família, pois se nas pequenas aldeias todos se
conheciam e a genealogia era sabida pela coletividade, na cidade era necessário nomear a
família para dar identidade: o pescador passou a ter um nome de família e a se chamar
Johan Fisherman... ou o emigrante portugues, vindo para o Brasil no século XVIII,
chamado Manuel e habitante da pequena Vila dos Outeiros, região de outeiros – morros -
no norte de Portugal, quase na Galícia, passou a ser chamado de Manuel Outeiral ... O “al”
acrescido pela influência moura de quase 900 anos de domínio na península ibérica.
A passagem da Idade Média para a Idade Moderna não se realizou sem “traumas”, mas sim
através de uma “turbulência”, às vezes fraturas bruscas e outras uma suave découpage, que
envolveu, muitíssimas vezes, a violência: Nicolau Copérnico e Galileu Galilei são
exemplos desses tempos de mudança, quando ao afirmarem a teoria heliocentrica, com os
astros girando ao redor do sol, em oposição a crença da época de que todos os astros
giravam ao redor da terra, foram execrados por determinação do status quo ou do
establishment vigente (uso expressões em idiomas diferentes para marcar o texto, um
hipertexto, pois, como sabemos ou não, o latim foi o idioma da Idade Média, o francês da
Idade Moderna e o inglês é o da Pós-modernidade...). As idéias destes matemáticos e
astrônomos colocavam em risco os paradigmas e os valores da época e eles foram punidos,
80

na verdade, na busca do poder em banir as novas idéias laicas e o espírito científico que
eles representavam e que colidiam com um modelo de interpretação teológico da vida e do
mundo (Gleiser, 1997).

- II –
W. Bion, psicanalista inglês, escreve sobre estes fenômenos sociais ao desenvolver os
conceitos de mudança catastrófica (que se superpõe ao que denominei de “terremoto” na
metáfora geológica) e do papel do místico. Como médico e psicanalista meu vértice de
observação dos fatos é, naturalmente, limitado: a complexidade destas questões exige, na
verdade, o concurso de várias áreas do conhecimento. Até agora me aventurei de maneira
arrogante, entre outros, na sociologia e na filosofia, elementos fora de meu quotidiano
médico, mas buscava preparar o caminho para poder escrever sobre minha prática,
articulando conceitos e buscando, se tiver engenho e sorte para tanto, fazer uma razoável
tessitura destes campos.
L. Grimberg (Grimberg, 1973 ) tece considerações sobre a mudança catastrófica, se
referindo ao campo psicanalítico, mas expressando idéias que se aplicam à sociedade como
um todo:
Mudança catatrófica é uma expressão escolhida por Bion para assinalar uma conjunção
constante de fatos, cuja realização pode encontrar-se em diversos campos; entre eles, a
mente, o grupo, a sessão psicanalítica e a sociedade. Os fatos a que se refere à conjunção
constante podem ser observados quando aparece uma idéia nova (...) a idéia nova contém,
para Bion, uma força potencialmente disruptiva que violenta, em maior ou menor grau, a
estrutura do campo em que se manifesta. Assim, um novo descobrimento violenta a
estrutura de uma teoria pré-existente (...) Referindo-se a fatos em particular, tal como
acontecem nos pequenos grupos terapêuticos, a idéia nova expressada numa interpretação
ou representada pela pessoa de um novo integrante, promove uma mudança na estrutura do
grupo. Uma estrutura se transforma em outra através de momentos de desorganização,
sofrimento e frustração; o crescimento estará em função dessas vicissitudes...
Pelo exposto, pensando com W. Bion, teremos que quando um conhecimento ( ou um fato
novo surge ), ele altera e transforma a estrutura de uma Sociedade, que não consegue mais
exercer uma função continente adequada para o que era considerado um conjunto de
81

verdades ( paradigmas, valores, etc... ); nesse momento ocorre uma mudança catastrófica e
uma nova estrutura se estabelece. Uma outra concepção importante que nos oferece W.
Bion diz respeito ao que ele denomina o místico e a relação deste com o grupo. O místico
como o representante grupal de uma nova idéia ou concepção.
Vejamos, novamente, o que escreve L. Grimberg:
O indivíduo excepcional pode ser descrito de diferentes maneiras; pode-se chamá-lo de
gênio, místico ou messias. Bion utiliza, de preferência , o termo místico para referir-se aos
indivíduos excepcionais em qualquer campo, seja o científico, o religioso, o artístico ou
outro (...) O místico ou o gênio, portador de uma idéia nova é sempre disruptivo para o
grupo (...) de fato, todo gênio, místico ou messias será criativo e niilista, ambas as coisas
seguramente (...) desde que a origem de suas contribuições será seguramente destrutiva
de certas leis, convenções, cultura ou coerência de algum grupo...
Sugiro, seguindo essa linha de pensamento, que os adolescentes exercem ao longo de
muitos momentos históricos o papel do místico, promovendo mudanças catastróficas e
fazendo, assim, andar o carrossel da saga humana, a evolução de nossa sociedade. W. Bion,
inclusive, postulou em uma palestra que adolescência é um exemplo de turbulência
emocional, que ocorre quando uma criança que parecia calma, tranqüila, comportada e
dócil se torna agitada, contestadora e perturbadora. Em um dos capítulos deste livro
descrevi como os adolescentes, tanto por motivos internos (buscando, por exemplo,
externalizar ativamente na transformação social os processos internos de transformação
corporal que sofrem passivamente, realizando a transformação do passivo em ativo, como
sugere S. Freud ao descrever o par antitético passividade-atividade, ou na externalização
social da rivalidade resultante da re-edição edípica nesta etapa) e/ou externos (sentido
crítico social aguçado ao alcançar níveis abstratos de pensamento, ausência de
compromissos sociais como adultos, pais ou profissionais, etc.) é, historicamente, um dos
principais agentes de transformação social.

- III –
Embora utilize, obviamente, referenciais teóricos, quero dirigir minhas idéias pela clínica e
pelo quotidiano de minha prática, que representa mais de três décadas de atividade
psiquiátrica e clínica com crianças, adolescentes e suas famílias. Não tenho o intento de
82

estar construindo um paper ou ser um scholar, mas sim o de estar buscando interlocutores
para discutir minhas idéias, ou a síntese de um conjunto de idéias que sou capaz de realizar
hoje. Procuro também uma linguagem, tanto quanto possível, que seja comum, distante do
jargão técnico habitual: se for possível, com esta linguagem com a qual nos relacionamos
no dia-a-dia e tão ao gosto de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista britânico. Vale citar,
a propósito, um filósofo fundamental para a cultura contemporânea e, particularmente, para
a pós-modernidade que foi F. Nietzsche (Apud Souza, 1989):
Quem sabe o que é profundo, busca a clareza; quem deseja parecer profundo para
multidão, procura ser obscuro, pois a multidão toma por profundo aquilo que não vê: ela é
medrosa, hesita em entrar na água.
Retomemos alguns conceitos que nos serão úteis, embora referidos mais profundamente
nos capítulos iniciais. É bem conhecido que a adolescência é um período evolutivo onde
transformações bio-psico-sociais acontecem, determinando um momento de passagem do
conhecido mundo da infância ao tão desejado e temido mundo adulto. A adolescência é
caracterizada por inúmeros elementos, dos quais quero referir alguns: (1) a perda do corpo
infantil, dos pais da infância e da identidade infantil ; (2) da passagem do mundo
endogâmico ao universo exogâmico ; (3) da construção de novas identificações assim como
de desidentificações; (4) da resignificação das “ narrativas “ de self; (5) da reelaboração do
narcisismo; (6) da reorganização de novas estruturas e estados de mente; (7) da aquisição
de novos níveis operacionais de pensamento (do concreto ao abstrato) e de novos níveis de
comunicação (do não verbal ao verbal); (8) da apropriação do novo corpo; (9) do
recrudescimento das fantasias edípicas; (10) vivência de uma nova etapa do processo de
separação-individuação; (11) da construção de novos vínculos com os pais, caracterizados
por menor dependência e idealização; (12) da primazia da zona erótica genital; (13) da
busca de um objeto amoroso; (14) da definição da escolha profissional (15) do predomínio
do ideal de ego sobre o ego ideal ; enfim, de muitos outros aspectos que seria possível
seguir citando, mas, em síntese, da organização da identidade em seus aspectos sociais,
temporais e espaciais ( Aberastury & Knobel, 1971; Grimberg, 1971; Outeiral, 1982; 1992;
2000 ). Em vários trabalhos anteriores enfoquei diferentes aspectos deste momento
evolutivo. As transformações da adolescência ocasionam flutuações que se caracterizam
por momentos progressivos – onde predomina, entre outros aspectos, o processo
83

secundário, o pensamento abstrato e a comunicação verbal – e momentos regressivos – com


a emergência do processo primário, da concretização defensiva do pensamento e a
retomada de níveis não verbais de comunicação.
É necessário, também, considerar que, da mesma forma com que o conceito de criança
como indivíduo em desenvolvimento e com necessidades específicas surge em torno do
século XVIII (Ariés, 1975), o conceito de adolescência como período evolutivo se
organiza no século XX, entre as duas grandes guerras mundiais (1914-18 e 1939-45).
Assim, adolescência é um fenômeno bastante recente e que requer, ainda, muitas
teorizações. Em capítulos anteriores este aspecto foi desenvolvido com mais detalhes.
Alguns autores têm desenvolvido teses referindo que o conceito de criança se modifica de
maneira intensa na cultura contemporânea. O Caderno Mais, da Folha de São Paulo (24 de
julho de 1994), apresenta ensaios neste sentido e o editor escreveu o seguinte:
O reino encantado chega ao fim. A criança vira paródia dos devaneios adultos na era pós-
industrial. A infância talvez tenha sido a mais duradoura das utopias concebidas pela
modernidade. Como tantos outros ideais imaginados nos últimos 200 anos, o do mundo
maravilhoso das crianças também entra em crise na era pós-industrial e pós-moderna. O
aumento da violência contra crianças e o da criminalidade infantil, o abandono e o
sacrifício a que estão sujeitas no centro e na periferia do capitalismo, o excesso de
produtos tecnológicos destinados ao seu consumo não fazem hoje mais o que explicitar o
outro lado deste sonho: uma criatura perversa do próprio mundo adulto.
Neste mesmo Caderno Mais, Alfredo Jerusalinsky e Eda Tavares dão o significativo título
a seu artigo: Era uma vez... já não é mais. Entre uma mãe dispersiva e um pai
desqualificado, a criança vai se introduzindo no mundo virtual.
A observação clínica me permite conjecturar que o período de latência, essencial ao
desenvolvimento e tal como descrito por Sigmund Freud, se abrevia, invadido por uma
adolescência cada vez mais precoce. Este período de latência corresponde, de certa
maneira, nas teorias do desenvolvimento à idade escolar. Laplanche e Pontalis, em seu
clássico Vocabulário da Psicanálise, descrevem este período de latência nos relembrando
de sua importância no desenvolvimento psíquico:
Período que vai do declínio da sexualidade infantil (aos cinco ou seis anos) até o início da
puberdade e que marca uma pausa na evolução da sexualidade. Observa-se nele, desse
84

ponto de vista, uma diminuição das atividades sexuais, a dessexualização das relações de
objeto e dos sentimentos (e, especialmente, a predominância da ternura sobre os desejos
sexuais), o aparecimento de sentimentos como o pudor ou a repugnância e de aspirações
morais e estéticas. Segundo a teoria psicanalítica, o período de latência tem sua origem no
declínio do complexo de Édipo; corresponde a uma intensificação do recalque – que tem
como efeito uma amnésia sobre os primeiros anos - a uma transformação dos
investimentos de objeto em identificações com os pais e a um desenvolvimento das
sublimações.
Considerando que minha conjectura anterior tenha algum sentido, poderemos imaginar o
que representa a excessiva exposição à sexualidade e ao erotismo genital a que são
submetidas as crianças, numa forma que configura um abuso, através da cultura; me refiro
por exemplo, aos meios de comunicação e a responsabilidade da família e da sociedade
neste processo. A abreviação do período de latência resulta em dificuldades que
repercurtirão, é evidente, em vários aspectos da estruturação do psiquismo, interferindo no
desenvolvimento normal, tanto na área da conduta como nos processos afetivos e
cognitivos. Num contraponto à “invenção” da infância pela modernidade temos, hoje, a
“des-invenção” da infância pela pós-modernidade.
Não encontramos mais, com a mesma incidência, na clínica contemporânea, como
escrevem diversos autores (Outeiral, 2000), as clássicas histerias estudadas por S. Freud
mas, em seu lugar, detectamos quadros correlatos da “pós-modernidade”, como os
transtornos narcísicos, síndromes borderline (que Ch. Bollas em seu livro Hysteria define
como a expressão atual das “antigas” histerias ...), tendências anti-sociais, fobias,
transtorno de pânico, etc.... Se considerarmos os transtornos pela “abreviação” da infância
como “acontecimentos clínicos pós-modernos”, poderemos pensar que a velocidade e a
fragmentação, junto com outros elementos etiológicos, é verdade, configurariam como uma
síndrome do zapping, “a dificuldade de concentração e a necessidade de ficar passando de
um canal ao outro de televisão”, alguns dos transtornos vinculados ao déficit de atenção e à
hiperatividade...

- IV –
Quero, agora, convidar o leitor a compartir algumas observações, resultantes de três
décadas de trabalho clínico e de observações do quotidiano. Estas observações se dirigem a
85

transformações sofridas pela família e pelos adolescentes nestes trinta últimos anos.
Recordemos a hipótese da metáfora geológica, a de que estamos vivendo o “terremoto” e
que este acontecimento envolve, habitualmente, duas ou três gerações , para
desenvolvermos nossas idéias...
Vejamos as transformações sofridas pela família, depois de muitas gerações com poucas
mudanças e uma longa (talvez alguns séculos) estabilidade.
(a) na década de setenta as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem
da família patriarcal para a família nuclear. Devemos considerar nesta mudança múltiplos
elementos, dos quais quero referir dois: (1) o crescimento rápido e desordenado dos centros
urbanos às custas de um intenso fluxo migratório vindo das zonas rurais (na década de
quarenta, no século XX, o Censo Demográfico do IBGE revelava que cerca de 30 % da
população vivia nas grandes cidades, enquanto 70% habitava as zonas rurais e pequenas
cidades, situação que se inverte na passagem para o século XXI quando 80% da população
habita nos centros urbanos maiores e apenas 20% nas zonas rurais) e (2) o ingresso da
mulher, a partir dos anos sessenta especialmente (legalmente até 1962 a mulher necessitava
da aprovação do marido para ter atividades fora do lar), no mercado de trabalho. A família
patriarcal, constituída por grupos familiares de vários graus de parentesco (avós, tios,
primos, etc), habitando espaços próximos e, às vezes, participantes de uma mesma
atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar de proteção, no
caso de dificuldades por parte dos pais, assim como um número maior de modelos para
identificação (mais uniformes, coerentes e estáveis e pertencentes a uma mesma cultura).
Este grupo familiar é próprio das zonas rurais e dos pequenos vilarejos do interior. Com a
rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar a família nuclear,
constituída por um casal (ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias
segundo o IBGE) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos,
isolados e solitários na multidão das grandes cidades e desenraizados de suas culturas.
Exatamente nesta década observamos que crianças e adolescentes passam a chamar de tios
os adultos em geral e os professores em particular . Estes novos tios, penso que, são assim
denominados por uma nostalgia pelo grupo familiar mais amplo e protetor: crianças e
adolescentes ( e seus pais ) em busca da família perdida. Paulo Freire não concordava com
86

esta denominação, mas penso que, se nos anos setenta, os alunos chamavam professores de
tios, hoje os professores são convocados inclusive a exercer funções maternas e paternas.
(b) na década de oitenta as questões diziam respeito às novas configurações familiares:
famílias reconstituídas, com filhos de casamentos anteriores e do novo casamento, tendo
este fato social o reconhecimento com a lei do divórcio. Numa sala de aula, nos anos
cinquenta, poucas crianças tinham os pais separados, enquanto hoje um grande número vive
esta situação.
(c) na última década temos a possibilidade de uma mulher ter um filho sem relações
genitais com um homem, através da fertilização assistida: o desenvolvimento tecnológico
nos aporta novas estruturas familiares... Não uma “produção independente”, mas uma
gestação e um bebê sem ter acontecido uma relação genital e o pai “apenas um
desconhecido doador de esperma”...
A mulher obtém uma definitiva inserção no mercado de trabalho e o tempo com os filhos se
torna menor do que nas gerações anteriores. Creches, berçários e as escolas infantis se
tornam necessárias para compensar a ausência materna, e nem sempre são locais
adequados e às vezes a família não tem acesso a esses recursos. A função paterna é cada
vez mais inexistente nos grandes centros urbanos. É interessante ler o que Zuenir Ventura
escreve em seu livro Cidade Partida sobre esta questão. O autor descreve o Rio de Janeiro
de hoje e suas dificuldades e comenta o que segue, a propósito de um baile funk, onde duas
“galeras” começavam a brigar... Ari da Ilha, que estava presente, é um homem velho e
doente, mas um respeitado líder da comunidade, e intervém da seguinte maneira para
“acalmar” os ânimos ...
Ari da Ilha pegou o microfone, mandou parar o som e começou a falar. O discurso a
princípio foi todo de persuasão.
-Nós estamos aqui para nos divertir. É um baile de paz. Vocês têm que dar um bom
exemplo. Esse baile não pode ter tumulto.
Como um pai enérgico daqueles 2 mil jovens, foi aos poucos engrossando a mensagem,
mas mantendo o bom humor.
-Vocês conhecem nosso regulamento, não conhecem? Quem fizer coisa errada leva
palmada na bunda.
87

Ficou claro até para mim que ele estava usando um eufemismo. Sem dúvida, palmada
queria dizer palmatória, um castigo muito usado em Lucas e que poderia até quebrar
mãos.
A ordem definitiva veio no final da fala:
- E vamos acabar com esse negócio de trenzinho. Isso dá confusão.

O que aconteceu ?
Ari da Ilha, velho e doente, mas respeitado, exerceu uma função paterna e restabeleceu a
ordem na festa !
Agora vejamos as mudanças que observo nos adolescentes, período que a Organização
Mundial da Saúde situa entre dez e vinte anos. Revisando os conceitos teremos que
puberdade corresponde aos processos biológicos e adolescência a fenômenos psico-sociais.
Nos anos setenta a criança se tornava púbere e após adolescência; nos anos 80, puberdade e
adolescência ocorrendo concomitantemente e na última década observo conduta
adolescente (namoro, contestação, etc.) em indivíduos ainda não púberes, antes dos dez
anos, com sete ou oito anos. Penso, inclusive, que o conceito de infância, como momento
evolutivo e com necessidades específicas, conceito estabelecido com o Iluminismo, sofre o
risco de sofrer profundas transformações: alguém terá escrito, em algum lugar, sobre o risco
de termos o fim da infância na cultura contemporânea.
Existem, é necessário ressaltar, ainda outros diferenciais como o ambiente socio-
econômico-cultural onde o adolescente se desenvolve. Nas classes sociais menos
favorecidas o processo adolescente começa e termina mais cedo, enquanto que nas classes
sociais mais favorecidas acontece também mais cedo, mas termina bem mais tarde.
Em décadas anteriores a criança (como nas sociedades primitivas), após breves rituais de
iniciação se tornava um adulto (Outeiral, 1998). Hoje a adolescência se alonga cada vez
mais, ocorrendo, inclusive, a adultescência, termo, veremos adiante, que designa o ideal de
ser adolescente para sempre, com adultos tendo condutas adolescentes e faltando padrões
adultos para os “verdadeiros” adolescentes se identificarem.
Concluindo, após várias gerações onde paradigmas e valores permaneciam estáveis temos,
hoje, uma sociedade em mudança, com rápidas transformações, numa alteração, por vezes,
frenética ou maníaca, onde a incerteza e a dúvida, nas famílias e nas escolas, são evidentes.
88

- V–
Considerando que este conjunto de idéias seja verdadeiro, quais serão os paradigmas ou
valores que estão sendo contestados, modificados ou substituídos por outros?
Como adultos “ modernos “ ( pais, professores, etc. ) e adolescentes “ pós-modernos “ se
relacionam ?
Como lidar com, por exemplo, a circunstância de que a globalização, pela facilidade e
rapidez dos meios de comunicação, cria desejos e uma lógica cultural própria dos países
com um desenvolvimento capitalista avançado em crianças e adolescentes de um país que,
como o nosso, nem ingressou plenamente na modernidade? Como então, nós, adultos
“antigos”, posto que “modernos”, poderemos entender e nos comunicar com adolescentes
(inclusive os de periferia) que, por hipótese, querem um tênis de marca norte-americana e
um boné do The Lakers usados por adolescentes classe média alta de Boston e Chicago?
É difícil encontrarmos nos adolescentes de hoje uma continuidade com as experiências
adolescentes dos pais: por exemplo, o Pedrinho do Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro
Lobato, típico adolescente da modernidade, honesto, respeitoso com os mais velhos,
nacionalista, integrado na família, reflexivo e preocupado com os fatos sociais e da
natureza, etc. O que encontramos, brinco, é um Pedrinho Skywalker, mistura complexa e
confusa do Pedrinho do Monteiro Lobato e Luke Skywalker, o adolescente do seriado
Guerra nas Estrelas de G. Lucas.
São muitas as perguntas e eu não tenho respostas: primeiro porque, é obvio, não tenho as
respostas e se, por acaso, as tivesse , não mataria uma boa pergunta com uma resposta,
como o filósofo Blanchot ensinou (A resposta é a desgraça da pergunta). Procuro, pois,
produzir inquietação e dúvida, reflexão e pensamento. Novamente quero buscar a ajuda de
duas citações de F. Nietzsche:
O que enlouquece é a certeza, não a dúvida.
É do caos que nasce uma estrela.
Como bons “modernos” e “iluministas”, nascidos em um país que tem como dístico do
pavilhão nacional a expressão Ordem e Progresso, vinda do positivismo do século XIX e
das primeiras décadas do século XX, obra de Augusto Comte, acreditamos que a dúvida e o
caos são indesejáveis e com isto perdemos a chance de descobrir que é também na
89

ausência, na falta, na dúvida e no caos que surge o pensamento e a razão e não só na ordem
e na estabilidade.

- VI –
É necessário conceituar, o que não é tarefa fácil, modernidade e pós-modernidade. Para
tornar a tarefa menos insípida, vamos recorrer a alguns autores.
Dois filósofos, um brasileiro e outro francês, tentam dar conta da questão e escrevem:
A época em que vivemos deve ser considerada uma época de transição entre os
paradigmas da ciência moderna e um novo paradigma, de cuja emergência vão se
acumulando os sinais. E que, na falta de uma melhor designação, chamo de ciência pós-
moderna. B. Santos (Santos, 1989)
A que chamamos pós-modernidade? (...) Devo dizer que tenho uma certa dificuldade em
responder a esta questão (...) porque nunca compreendi completamente o que se queria
dizer quando se empregava o termo modernidade. M. Foucault (Apud Smart, 1993)
O nosso humorista maior, Millor Fernandes, também se aventura no tema:
Afinal, o que é pós-modernismo? O modernismo um pouco depois? Não, acho eu, mas o
próprio modernismo, apenas já velho e precisando mudar de nome. E o que é
modernismo? Arte conceitual, criações minimalistas, música decididamente anti-musical,
algaravias. Sinônimo daquilo que em tecnologia se chama progresso. Ambos, modernismo
e progresso, já sendo, isto é, já eram ... Millor Fernandes (Fernandes, 1994)
Como reconhecer o pós-moderno: se de algum modo você consegue definir se o quadro
está de cabeça para baixo ou não – é pintura pós-moderna./ Se você entende tão bem como
quando lê uma bula de hidropitiasinolfoteína – é literatura pós-moderna./ Se você vê, vira
e revira, e o sentido está no revirar e no não dito – é poesia pós-moderna./ Se você tem de
segurar a tampa enquanto faz xixi no vaso, é design pós-moderno./ Se você devolve ao
bombeiro hidráulico pensando que é uma ferramenta esquecida, e depois descobre que é
um presente do seu gatão – é escultura pós-moderna./ Se chove dentro – é arquitetura pós
moderna. / Se você fracassa porque procurava exatamente a anti-vitória – é filosofia pós-
moderna./ Se você pratica homossexualismo não por formação ou destinação biológica,
mas por experimentalismo sadomasoco-niilista – você é uma boneca pós-moderna e muito
da louca, bicho (a)! Millor Fernandes (Fernandes, 1994)
90

Millor Fernades, como eu e muitos outros, é “ apenas “ um moderno e, talvez, por isso
tome esse viés, digamos, “ pouco deslumbrado “ para definir a pós-modernidade: ao
contrário do que talvez escreveriam alguns autores franceses .
O materialismo histórico nos ensina que as transformações que se operam nas sociedades e
nas culturas se dão através de um continuun progressivo, e somente após um certo grau de
acumulação quantitativa teremos uma alteração qualitativa, como pude expor com mais
detalhes antes. Este acúmulo de experiências, que determinam as alterações qualitativas,
são observados periodicamente na história da humanidade, ocasionando mudança nos
valores éticos e morais, na estética e na produção cultural, na estrutura e na dinâmica das
organizações sociais assim como na política, na concepção da família e nas relações entre
os homens. Como vimos, estas transformações que ocorrem na sociedade costumam
acontecer após alguns séculos de estabilidade.
Feathstone (Feathstone, 1995) considera, com razão, que o termo modernité foi introduzido
por Charles Baudelaire (1821-1867) para quem moderno significava um “senso de
novidade “. As sociedades modernas, para este “poeta maldito”, produziriam um desfile
incessante de mercadorias, edificações, modas, tipos sociais e movimentos culturais, todos
destinados a uma rápida substituição por outros, reforçando um sentido de transitoriedade
ao momento presente. O flâneur, nos espaços públicos das grandes cidades, era capaz de
vivenciar aquelas imagens e fragmentos caleidoscópicos cuja novidade, imediatez e
vividez, juntamente com a sua natureza efêmera e justaposição, frequentemente parecia
estranha “.
O texto seminal de Charles Baudelaire (Baudelaire, 1869) sobre a modernidade e que marca
a incorporação do termo e de seus conceitos ao pensamento ocidental é o ensaio intitulado
Sobre a modernidade (publicado póstumamente, em 1869, na revista L’Art Romantique)
onde ele se revela o precursor da estética moderna e se torna um ponto de referência para a
compreensão da modernidade hoje. Sua écriture baseia-se numa crítica a Constantin Guiz,
desenhista, gravador e aquarelista, e ele conclui suas observações da seguinte maneira:
A modernidade é o transitório, o fugidio, o contingente; é uma metade da arte, sendo a
outra o eterno, o imutável... (... ) Constantin Guys buscou por toda a parte a beleza
passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo que o leitor nos permitiu chamar de
modernidade.
91

O termo pós-modernidade, por sua vez, aparece também através da pena de Charles
Baudelaire e Th. Gautier, em 1864, quando estes poetas escreveram “pós-modernidade” ao
fazerem uma crítica da “ sociedade moderna e burguesa da época “ (Gardner, 1993; Christo,
1997). É, entretanto, somente em 1947, que Arnold Toynbee, matemático, historiador e
filósofo inglês sistematiza a observação de que uma série de paradigmas da modernidade
estavam sendo contestados e transformados pela, assim chamada, pós-modernidade.
O escritor ingles Charles Jencks, entretanto, retira dos franceses a introdução da expressão
“pós-moderno” e a credita ao poeta John Watkins Chapman, seu conterrâneo, que a teria
usado em 1870 (Appignanesi & Garrat, 1995).
Ricardo Goldemberg (Chahlub, 1994), cita Luc Ferry situando o pós-modernismo entre
1975 e 1976 e lembra de um filme de Mel Brooks. Nesse filme dezenas de homens lutam
com espadas e lanças. Soa, então, um apito e todos param de lutar e começam a pintar. Um
deles explica então que começou o Renascimento. Lógico que as transformações não se dão
desta maneira, mas, repito, ocupam muitas gerações.
Jean-François Lyotard (Smart, 1993) polemiza, como é necessário, sobre a expressão pós-
modernidade, ao escrever:
...ou será a pós-modernidade o passatempo de um velhote que espiona o monte de lixo à
procura de restos , que fala de inconsciências, lapsos, limites, fronteiras, gulags,
parataxes, absurdos ou paradoxos, transformando-os na glória de sua novidade, na sua
promessa de mudança ?
Comparto com alguns autores, especialmente Sérgio Rouanet (Rouanet & Mafessoli, 1994)
a necessidade de discutirmos se o Brasil, com suas particularidades, passa da modernidade
à pós-modernidade, pois é evidente que a modernidade não se “instalou” efetivamente entre
nós e, consequentemente, não podemos falar de um esgotamento da modernidade em nosso
país. Mas, como nos trópicos as possibilidades nunca se esgotam e a globalização é uma
realidade, não só econômica mas também cultural, a pós-modernidade poderá estar entre
nós...
É interessante, agora, explicitar algumas das características da pós-modernidade:
velocidade, banalização, cultura do descartável, fragmentação, globalização, mundo de
imagens, virtualidade, simulacro, des-subjetivação, des-historicização, des-territorialização,
etc. Não se trata, é evidente, de tomar a pós-modernidade como a encarnação do mal, ela é
92

um momento de passagem e como tal de inevitável turbulência. Não sei, ao certo, se ela
existe realmente como momento histórico e cultural, ou se é apenas uma criação
intelectual, mas é interessante e útil que façamos, a partir dessas idéias um exercício de
compreensão deste mal estar na cultura, parodiando o criador da psicanálise.

- VII –
Ao comentar os aspectos que envolvem o processo adolescente, estrutura e dinâmica que
abarca tanto o adolescente como sua família e a sociedade, quero considerar novamente
que esta experiência evolutiva se realiza em um momento em que a sociedade sofre
intensas e rápidas transformações ( talvez, melhor dito, um conjunto de rupturas ) de uma
série de paradigmas ( idéías, valores morais e estéticos, processos de pensamento, etc . )
que podem ser considerados dentro do conflito “modernidade versus pós-modernidade”.
Assim, vou abordar uma série de elementos paradigmáticos que serão comentados cada um
por sua vez, embora queira deixar bem claro que cada um deles é um fio de uma trama
tecidual, elementos entremeados, partícipes de uma interação dialética, que estarão isolados
apenas por uma questão didática e metodológica. Fica ao leitor a sugestão para que
estabeleça a ligação entre eles, organizando este puzzle complexo e fragmentado que é o
quadro de nossa sociedade atual e, inclusive, aumente a lista dos paradigmas abordados.

1. O tempo rápido ou A geração fast. O mundo delivery


A rapidez das transformações globais torna obsoletos os costumes, a política e a ciência.
(Antonio Negri, A desmedida do mundo, Caderno Mais, Folha de São Paulo, 20 de
setembro de 1998).
O enunciado básico é de que o tempo das crianças e adolescentes hoje é muito mais rápido
do que o tempo dos adultos: refiro-me, evidentemente, ao tempo interno, tempo de
elaboração das experiências, e não apenas ao tempo cronológico, tempo do movimento dos
astros, das estações, das colheitas ou dos relógios. Eles são fast kids, mas nós não somos
fast parents... Sabemos que é difícil conceituar o tempo ou falar dele. Santo Agostinho,
filósofo da Idade Média (século V) procurou dar conta dessa dificuldade ao comentar que
... não se pode vê-lo, nem sentir, nem escutar, nem cheirar e provar...
93

Maurício Knobel (Knobel, 1974) considera que o adolescente tem uma característica muito
especial em sua relação ao tempo. Ele escreve:
Desde o ponto de vista da conduta observável é possível dizer que o adolescente vive com
uma certa desconexão temporal: converte o tempo presente e ativo como uma maneira de
manejá-lo. No tocante à sua expressão de conduta o adolescente parece viver em processo
primário com respeito ao temporal. As urgências são enormes e, às vezes, as postergações
são aparentemente irracionais.
A afirmativa de Maurício Knobel nos remete ao fato de que é próprio desse momento
evolutivo a utilização do tempo dentro de critérios do processo primário, tal como descrito
por S. Freud, quando o tempo é vivido predominantemente em função das demandas
internas, inconscientes, tempo interno, tempo de elaboração. Os adolescentes vivem, então,
em função de suas transformações psíquicas, este afastamento do tempo cronológico. Esta
situação é mais intensa quando a sociedade sofre, como vimos, ela própria, intensas e
rápidas transformações em sua concepção de tempo. A globalização fez, através das
comunicações rápidas e mais fáceis, um tempo fast... Como exemplo posso lembrar que
quando Abraão Lincon foi assassinado os americanos mandaram avisar os ingleses, através
de um barco muito veloz, do acontecido: a viagem levou treze dias. Hoje qualquer
acontecimento na Casa Branca estará em nossas casas em tempo real, ou à noite teremos
todos os fatos nos noticiários de televisão e informações adicionais pela internet.
Sugiro que continuemos um pouco mais com Maurício Knobel (Knobel, 1974) :
O transcorrer do tempo se vai fazendo mais objetivo (conceitual) sendo adquiridas noções
de lapsos cronologicamente orientados. Por isso creio que se poderia falar de um tempo
existencial, que seria um tempo em si, um tempo vivencial ou experiencial, e um tempo
conceitual.
Como havíamos comentado antes o autor aborda a distinção que os gregos faziam de
chronos, o tempo conceitual, e tempus, o tempo interno, da subjetividade do ser. Essa
distinção entre esses dois tempos é essencial ao sentido de self (ou ao going on being de
Donald Winnicott) e a organização da personalidade, realizações estreitamente ligadas ao
processo adolescente. Nessa etapa a noção de tempo assume, basicamente, características
corporais e rítmicas; tempo de dormir, tempo de comer, tempo de estudar, etc.
Progressivamente, acompanhando o lento desenvolver do processo o adolescente vai
94

adquirindo uma noção de tempo conceitualizada, que implica na discriminação entre


passado-presente-futuro, interno e externo e a aceitação da perda do corpo infantil, da
identidade infantil e dos pais da infância (Aberastury, 1973; Outeiral, 1983). Surge, então, a
capacidade de espera, da elaboração do presente e do estabelecimento de um projeto para o
futuro a partir das memórias do passado. Como posso perceber, ajudado também pela
observação clínica,, o processo adolescente no que respeita aos paradigmas vinculados ao
tempo são complexos e difíceis de serem elaborados, situação que se problematiza ainda
mais quando nos defrontamos (além de uma velocidade maior) com transformações e
rupturas no conceito de temporalidade.
Penso que será interessante prosseguir em nossa discussão comentando a experiência com o
tempo vivenciada pelos pais, assim como pelos adultos em geral, em contraste com a dos
adolescentes. Nós, adultos, vivemos um tempo onde, por exemplo, o aprendizado da
“tabuada”, as quatro operações básicas da matemática, era um processo demorado que
ocupava alguns anos da infância. Lembro dos professores dividirem as turmas de alunos e
promoverem acirradas competições sobre a “tabuada”. Os adolescentes hoje, talvez, não
saibam hoje nem o significado da palavra “tabuada” e são capazes de realizar as operações
matemáticas básicas e algumas complexas, instantaneamente, com uma pequena
calculadora simples de operar, de custo baixo, com formato de cartão e movida por energia
luminosa... É difícil, com essa “prótese”, explicar a importância do desenvolvimento do
pensamento matemático...

O campo da literatura também me permite comentar essa “fratura”. A leitura de um livro


contrasta muito com a utilização de um texto multimídia. O livro é uma longa seqüência de
uns poucos sinais, não muito mais que duas dezenas, que revelam uma narrativa que
convida, progressivamente, através do tempo, à utilização da imaginação: a leitura de
Grabiela, cravo e canela, de Jorge Amado permite que cada leitor, por exemplo, “construa”
sua Gabriela, lentamente e de tal forma que a imaginação de quem lê não corresponde à
Gabriela nem do escritor e nem do ilustrador, Carybé. Há, na literatura, com seu convite à
criação e à imaginação, uma interação escritor-leitor, uma experiência compartida, de
mutualidade, de um espaço estético a ser preenchido pelo leitor e que leva à uma vivência
ativa de quem se aventura nesta viagem que é “ler”. Nos meios de comunicação multimídia
95

várias dessas funções estão preenchidas e são oferecidas “ prontas “, para a geração
delivery, por um software e um hardware cada vez mais rápidos (embora também
rapidamente se tornem obsoletos), imediatamente, como é próprio de uma cultura “fast
food”, para serem consumidas por um “espectador” que assiste... “Assiste” caracteriza bem
a questão, pois sugere algo passivo: ninguém “assiste” um livro, nós “lemos” um livro!
Meus filhos me mostraram, há pouco, um CD-ROM com a obra do Jorge Amado: lá pelas
tantas surge na tela uma prateleira com a lombada de cada um dos livros do autor e
clicando com “mouse” sobre um deles surge uma síntese da obra (“ não há tempo a perder...
”) e clicando sobre o nome de um dos personagens surge uma breve biografia e logo
depois um trecho de um filme sobre o livro ou de uma telenovela e logo depois, um novo
“clique”, um fragmento de uma música cantada por um popular cantor baiano sobre o texto
e logo depois alguns críticos fazendo comentários de poucos minutos e logo depois um
comentário sobre o pensamento político do escritor e logo depois... enfim, tudo muito
rápido e pronto, percebido por mim na forma com que tento transmitir ao leitor através da
“estrutura gramatical pós-moderna”. Não necessário imaginar e criar pois tudo está criado e
imediatamente pronto para o “input”.
A velocidade “das coisas” é, então, muita distinta entre duas gerações, entre pais e filhos. O
advento da cibernética possibilita ao adolescente uma experiência vital de extrema
velocidade: operações matemáticas, contatos imediatos com todo o mundo através da
internet, acesso a uma quantidade de informações quase inesgotável, etc. É difícil para um
adulto (e imagine para os adolescentes) pensar como nos anos sessenta funcionavam os
Bancos sem os computadores (e funcionavam...). Este contraste entre a referência
velocidade/tempo entre a geração dos adultos e a dos adolescentes me leva a inferir que um
dos vetores que nos levam a encontrar “hoje”, mais do que “ontem”, adolescentes
“atuadores” se deve a esta quebra de paradigma: a tradicional, ou moderna, cadeia
impulso-pensamento-ação cede lugar a um modelo novo caracterizado pela supressão do
pensamento que demanda elaboração e, por conseguinte tempo e que se configura “pós-
modernamente” como impulso-ação, baixa tolerância à frustração, dificuldades em
postergar a realização dos desejos e busca de descarga imediata dos impulsos. Há um
frenético não paro, se paro penso, se penso dói. B. Brecht escreveu, a propósito, que
quando o homem atinge a verdade descobre também o sofrimento. Acredito, inclusive, que
96

uma ampla faixa de nossa clínica é hoje constituída por pacientes com sintomatologia na
área da conduta e na organização do pensamento: um número maior de Hamlets do que
Édipos, no que muitos autores concordam (Outeiral; 1993; Outeiral, 2000)
Estas colocações são, evidentemente, apenas um esquema e na verdade um esquema
insuficiente; mas todos concordamos em que, embora se constitua um elemento comum ao
processo adolescente em qualquer período, na sociedade atual, há uma exacerbação destes
aspectos. Cybelle Weimberg chama estes adolescentes de “geração delivery”...

2. A cultura do descartável ou o permanente versus o efêmero


Encontramos dois paradigmas generacionais que se chocam: a modernidade busca a
permanência e a pós-modernidade o descartável. Charles baudelaire descreveu em seus
versos essa transição ao falar do amor do flâneur pela mulher fugidia, aquela que passa e
que não será mais encontrada.
O descartável surge, pensam alguns, como F. Jameson, com o “fordismo” e com o advento
da cibernética. Quando Henri Ford, em Detroit, na década de vinte, criou a linha de
montagem para produzir em maior número e a custo mais baixo seu “modelo T”, criou o
problema de que não eram mais necessários tantos empregados (imaginem hoje, em uma
montadora de automóveis com a robótica). A questão do desemprego ficou posta. O que
fazer? Criar bens de duração curta para que novos empregos sejam criados, particularmente
no setor terceário (de serviços).
Essa condição se revela quando, por exemplo, o currículo de algumas Escolas de
Engenharia possue uma disciplina sobre “durabilidade de materiais”. Não apenas o estudo
da fadiga dos componentes da asa de um avião, mas também determinar quanto tempo
deverá “durar” certo material, que comporá um eletrodoméstico ou um automóvel, ou
qualquer outro produto, para que após certo tempo esse material se deteriore e produza a
necessidade do consumidor se “descartar” dele e adquirir um novo produto. Os automóveis
são feitos para durar muitos menos do que os construídos na década passada: a explicação é
de que assim se manterá a cadeia produtiva e, em conseqüência, os empregos... numa lógica
perversa, um tanto perversa, sob o ponto de vista de um antigo, isto é, um homem moderno.
Em nossas casas acontece o mesmo: as avós dos adolescentes de hoje não colocarão fora
um copo de vidro, vazio, de geléia: é um objeto duradouro, com uma utilidade e poderá ser
97

necessário em algum momento. Preservarão o copo seguindo um padrão de sua cultura. Os


adolescentes, entretanto, convivem e lidam com um sem-número de objetos descartáveis
em seu cotidiano.
Considerando que entre algumas das características da pós-modernidade encontramos a
des-subjetivação e a des-historicização, as relações entre as pessoas também poderão ter
características descartáveis; caricatamente, o sujeito será tomado como um gadget
descartável .

3. A banalização
Christopher Bollas escrevendo o capítulo Estado de mente fascista de seu livro Sendo um
personagem (Bollas, 1992) desenvolve idéias sobre os vários estratagemas que o estado de
mente fascista, em seu aspecto individual ou social, utiliza, citando entre mecanismos a
“banalização”.A “banalização” é um mecanismo mental que se desenvolve insidiosamente
e, dessa maneira (de uma forma sutil e silenciosa), modifica um paradigma. Novamente é
útil recorrer à clínica, observando o quotidiano.
Quando ingressei na Faculdade de Medicina, ao dezessete anos, nunca havia tido contato
real com um morto. Ao iniciarem as aulas recebi um cadáver com o qual eu deveria estar
em contato, estudando a anatomia e fazendo dissecações, durante todo um ano nas aulas de
anatomia. Eu o retirava da cuba de formol todas as manhãs e esta vivência me mobilizava
intensamente: me perguntava se aquele homem havia tido uma mulher e filhos, como havia
sido seu “fado” de acabar como meu objeto de estudo, teria tido uma profissão? Dávamos
um nome, inclusive, ao cadáver. Ele era subjetivado e historicizado, algo ao estilo
“moderno”. Era comum não comermos carne porque o cadáver nos vinha à mente,
usávamos luvas, preocupados com alguma possibilidade de infecção e uma máscara porque
o formol irritava as mucosas. Nesse meio tempo íamos fazendo as dissecações e o cadáver,
homem morto e possuidor de um nome e de uma história, ao final do semestre era apenas “
peças anatômicas “: ossos, músculos, vísceras, etc... Não era necessário mais usar luvas,
pois o formol “esterelizava” e tampouco máscara porque nos acostumamos ao formol e
fazíamos um intervalo para lanchar na própria sala de anatomia. Banalizada a situação
havia apenas fragmentação, des-subjetivação e des-historicização, não um sujeito, mas uma
coisa.
98

Acontece algo semelhante ao descrito antes com a violência e a sexualidade. Quando


alguém e exposto a uma situação continuada de violência, a tendência é que para conseguir
sobreviver o indivíduo banalize a situação. Bruno Bettelheim (Bettelheim, 1973;1989),
conhecido psicanalista que esteve preso durante a Segunda Guerra Mundial, nos campos de
concentração nazistas de Dachau e Buchenwald, nos descreve com clareza a operação desse
mecanismo – a banalização – cuja raiz está no mecanismo de negação, um dos mecanismos
básicos da defesa do ego. Podemos imaginar o que ocorre na mente de crianças e
adolescentes expostas, por exemplo, através da mídia a uma noção banalizada da violência,
David Levisky (Levisky, 1997) escreve, assim como Raquel Soifer, sobre os efeitos da
mídia na estruturação psíquica de indivíduos em desenvolvimento: uma criança ou um
adolescente assistindo a vários assassinatos, diariamente, pela televisão modificará sua
maneira de perceber a violência da mesma forma que modificará sua erótica se
constantemente exposto a uma sexualidade, em todas as suas formas e matizes, desde
quando assiste a um filme, uma novela ou uma propaganda. O Ministério da Justiça
divulgou uma pesquisa que constatou que as crianças brasileiras assistiam cerca de duas a
três horas de televisão por dia...

4. A ordem da narrativa

Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos e resíduos.
Deleuze e Guatari (Jameson, 1994)

Historicizar sempre.
F. Jameson (Jameson, 1994)

A maneira que encontro para começar a apresentar essa questão é através da narrativa
literária, O romance, expressão literária da modernidade, é introduzido na cultura ocidental
através, principalmente, de W. Goethe (1749-1832). Georg Lukács ao comentar Os anos de
formação de Wilhelm Meister, lembra que esta estrutura narrativa, que coloca o homem
real e seu desenvolvimento como elemento central, domina a literatura européia desde o
Renanascimento e é o ponto nodal da literatura do Iluminismo, atinge seu ápice com W.
99

Goethe. O romance de formação, o buildingroman, cujos exemplos clássicos poderão ser,


para meu gosto, o Os sofrimentos do jovem Wherter (1774) e o Os anos de aprendizado de
Wilhelm Meister (1793-1795) trazem, na pena de W. Goethe não apenas a consolidação de
um modelo narrativo literário, mas a racional narrativa que pressupões “um início, um meio
e um fim”: a descrição do ambiente e a construção dos personagens, a trama e seu
desenvolvimento e, finalmente, a esperada terminação da história que cativa e leva o leitor
até este momento. Este modelo de início-meio-fim é alterado na pós-modernidade: é
possível se iniciar pelo meio, ir daí para o fim (ou para o início) e voltar ao meio. Há um
andamento repleto de “idas-e-vindas”, “flashbacks” (voltas ao passado), “flash-forwards”
(antecipações), fragmentações, simbologias e metáforas, elementos segmentados, etc. O
cinema nos dá exemplos importantes dessa nova narrativa com filmes como American
graffiti, Star Wars, Chinatown, Body Heat, Raiders of the lost ark, Blade Riunner, Kiss
of the spider woman e tantos outros, como nos relata Steven Connor (Connor, 1989) em
seu artigo TV, vídeo e pós-modernos.
Esta estrutura narrativa abrange não só as produções culturais como também as narrativas
de self, que cada indivíduo apresenta como parte de sua personalidade (Bollas, 1998;
Outeiral, 2000).

5. Uma nova erótica, o “ficar” na adolescência


Os adultos se defrontam hoje com uma erótica dos adolescentes diferente em muitos
aspectos daquela que eles vivenciaram quando jovens, digamos nos anos sessenta ou
setenta ... Reunindo os quatro itens anteriores – (1) rapidez, (2) banalização, (3) elementos
descartáveis e (4) alteração na ordem da narrativa - é a questão do “ficar”. Na
adolescência inicial é comum “ficar” com vários parceiros numa mesma festa e quem os
observa poderá ter a impressão de um “grande enamoramento” (que durará, entretanto,
apenas alguns minutos) e, no dia seguinte, não será de bom tom cumprimentar o parceiro,
devendo-se, inclusive, ignorá-lo e não fazer menção ao acontecido. É evidente que os pais
dos adolescentes também vivenciaram estas experiências. A diferença é que
“romanticamente” (ou de uma forma moderna) davam ao fato um nome “elegante”, como
“saída à francesa” e, o mais importante, buscava-se não encontrar o parceiro, ou a parceira,
100

nos dias seguintes por um certo sentimento de constrangimento ou culpa de ter criado uma
expectativa no outro; tal consideração hoje é praticamente inexistente.
Poderá ser interessante lembrar (a modernidade busca historicizar, insisto) que os pais dos
adolescentes pertenceram ao que, prosaicamente, podemos chamar, seguindo a Woody
Allen, “a era do rádio”. As famílias se reuniam, à noite, e ouviam os capítulos diários de
uma novela no rádio, sempre com alguma dramaticidade, e todos – em especial, é claro, os
adolescentes - iam construindo em seu imaginário os personagens: processo lento,
progressivo. Hoje, em uma novela de televisão, som e imagem reunidos, os personagens
são apresentados, já na vinheta de abertura, completamente despidos: somo privados do
estímulo de “desnudar” erótica e criativamente, aos poucos, à medida que a intimidade vai
se estabelecendo, progressivamente, descoberta após descoberta, o personagem que nos
desperta o desejo, a sensualidade.... A situação atual cria uma erótica que, de certa forma,
adquire autonomia em relação ao desejo: ou seja, o objeto está “pronto e oferecido” antes
mesmo de ser desejado. Não existe mais, então, “este obscuro objeto do desejo” tão ao
gosto dos modernos...
A literatura, por exemplo, incita uma participação ativa e progressiva na construção do
objeto erótico: a leitura de um livro de Jorge Amado, por exemplo, nos convida a criar,
digamos, uma figura feminina, bastante diferente das ilustrações de Carybé, uma
personagem só nossa.
A banalização que envolve a sexualidade determina a necessidade da criação de estímulos
mais intensos e diferentes: a simples imagem despida não é suficiente. É necessário, nos
aproximando de uma cultura ao agrado do marques de Sade, ou gótica (lembram-se de que
estamos em Gotham City), ou perversa como diriam alguns psicanalistas, criar fetiches,
como a tiazinha ou a feiticeira.

6. A estética da pós-modernidade
A estética é, num sentido amplo, uma forma, que através da beleza, busca cativar e
interessar – por meio do prazer estético e assim, transmitir um conteúdo a alguém . Um
pintor renascentista, por exemplo, buscava através de novos elementos estéticos da pintura
religiosa interessar o espectador e transmitir-lhe a idéia de Deus. Um professor busca
101

através de seu plano de aula e por meio de sua maneira de expor este plano transmitir
conteúdos aos alunos: ele é, em essência, um esteta.
A dificuldade é que estéticas da modernidade e da pós-modernidade são diferentes. O
professor, que utilizei como exemplo, é um esteta de modernidade e seus alunos estão
vivenciando a estética da pós-modernidade; cria-se um gap entre uns e outros... mas é
necessário explicitar mais. Eu diria que a estética do adulto pode ser referida com o filme
Casablanca. O filme, em síntese, tem o seu ápice na cena final do aeroporto quando o casal
se despede e a mocinha volta para Paris e o mocinho permanece na África. Ela o ama, mas
volta para seu marido em Paris, pois eles tem um “história de vida” e um “respeito mútuo”,
além dela considerá-lo um homem de valor, íntegro e que luta ao lado do “bem”, isto é, na
resistência francesa contra os nazistas . Os “modernos” choram com o filme emocionados
pelos “paradigmas e os valores” que conseguem, através da razão sobrepujar a paixão. Os
adolescentes não se emocionam da mesma forma pelo filme: para eles é absurdo que ela
volte a Paris se não ama o marido e deveria, é óbvio, ficar em Casablanca com seu “
verdadeiro “ amor. A estética dos adolescentes impregnados pela estética da pós-
modernidade é o vídeo-clip: breve, curto, fragmentado, desfocado, às vezes, sem início-
meio-fim, não conta, em termos da modernidade, uma história verdadeira. Mas tem uma
estética e transmite um conteúdo. Levando estas questões para a escola, penso que há uma
fratura entre a fala da escola – moderna , tipo Casablanca – e a escuta dos alunos – pós-
modernos, tipo vídeo-clip.
Posso também abrir a questão, já referida por muitos autores, da estética do corpo na
cultura contemporânea, particularmente no tocante aos jovens. Arriscaria a dizer que os
transtornos alimentares ( anorexia nervosa, obesidade e bulimia ) poderão fazer parte do
que Henri-Pierre Jeudy ( Jeudy, 2000 ) chamou de doenças pós-modernas, ao referir-se ao
pânico e a fobia social. Na sociedade contemporânea a estética pós-moderna do corpo,
profundamente narcísica, cria um sujeito onde a redução da subjetividade e a ênfase na
materialidade transforma o homem/sujeito em homem/objeto. Não havia visto, na clínica,
tantos destes transtornos de alimentação como na última década. Jacques Lacan, referido
por alguns como um psicanalista da pós-modernidade (Appignanesi & Garrat, 1995), no
seu Seminário XVII, trata deste homem, na verdade um objeto-sintoma, quase um gadget
(objetos tecnológicos da ciência contemporânea), através de seu conceito de letosas
102

(neologismo criado por ele a partir dos termos gregos “alétheia” e “ousia”, para referir-se,
numa simplificação que faço, aos “seres-objetos da tecnologia”).

7. A ética
This above all: to thine own self be true
And it must follow, as the night the day
Thou canst not then be false to any man
Shakespeare, Hamlet (Apud Winnicott, 1994)

Todos nós sabemos o que é ética, mas se somos solicitados a conceituá-la a tarefa não é tão
simples. Fábio Herrmann (Herrmann, 1995; 2000) considera que há uma relação clássica
entre ética e ser verdadeiro, referindo-se ao compromisso do indivíduo com ele mesmo e
com os outros. Ele escreve:
Que significa ética? No começo do livro II da Ética a Nicômano, “Aristóteles ensina: A
virtude moral é adquirida em virtude do hábito, donde ter-se formado seu nome (étike) por
uma pequena modificação da palavra étos (hábito) ‘... A ética vale como uma forma de
reflexão sobre nós mesmos muito mais como fonte de conclusões normativas. Ético é
pensar”.
Como psicanalista, tenho um vértice de observação em relação à ética e é a partir deste
ponto que quero fazer algumas considerações. Temos, então, algumas sendas a percorrer:
(1) Fábio Herrmann comenta que ético é pensar; (2) Jacques Lacan, por sua vez, lança o
aforisma de que ético é não ser o desejo do outro; (3) Humberto Eco expressa a opinião de
que a ética surge quando o outro entra em cena .
Estas três idéias me estimulam a seguir adiante, buscando especificar mais. Vejamos...
A ética se constitui na relação do indivíduo com seu ambiente, através de mecanismos de
identificação: inicialmente com os pais, a família, e, posteriormente, com os modelos
identificatórios que a sociedade oportuniza às suas crianças e adolescentes: pais de amigos,
professores, artistas, desportistas, políticos, etc. Que padrões constituem estes modelos
para identificação e, por conseguinte, para a constituição da estrutura ética e moral da
personalidade das crianças e adolescentes que a família e a sociedade oferece ?
103

Sigmund Freud descreveu o super-ego como a instância psíquica que, através das
identificações, possibilita a internalização das leis e normas de conduta, da ética e da moral,
de uma determinada cultura. Nesse processo de constituição do super-ego encontramos dois
momentos anteriores, o ego-ideal – predominantemente narcísico, incapaz de reconhecer o
outro como algo externo a si mesmo, caracterizado também pela concretude e onde a ação
predomina sobre o pensamento – e o ideal de ego – simbólico, menos narcísico e
reconhecendo o outro como externo. A passagem de um ao outro é possibilitada por
identificações boas e adequadas. Quando essas identificações – a cultura do mundo adulto –
falham em seu papel teremos dificuldades na estruturação do super-ego. Meu enunciado é
de que na sociedade atual não são oferecidas identificações suficientemente boas às
crianças e adolescentes. Este enunciado, se verdadeiro, significa o risco de termos uma
geração de adolescentes presa ao ego-ideal – excessivamente narcísica, atuadora, com
dificuldades no reconhecimento do outro como um sujeito externo e com dificuldades na
simbolização e. consequentemente, com o pensamento. Ao clássico aforisma de Sigmund
Freud – onde há id deve haver ego – eu colocaria um outro: onde há ego-ideal deveria
haver ideal de ego...
Devemos pensar nos modelos e identificações que a sociedade contemporânea oferece: a
família em rápida mudança de valores e perplexa, por um lado, e a sociedade, de outro,
revelando e transmitindo - através da mídia, da política, etc - uma cultura, em alguns
aspectos, perversa.
Sigamos adiante, abrindo nosso leque.
Adultescência, um novo termo, foi criado e, inclusive, incluido no conhecido dicionário
New Oxford Dictionary (Cadermo Mais. Folha de São Paulo. 20 de setembro de 1998),
mistura, em inglês. das palavras “adult” (adulto) e “adolescent” (adolescente).
Adultescente – pessoa imbuída de cultura jovem, mas com idade suficiente para não o ser.
Geralmente entre os 35 e 45 anos, os adultescentes não conseguem aceitar o fato de
estarem deixando de ser jovens (David Rowan, Um glossário para os anos 90).
Como ficam os adolescentes tendo de lidar com modelos identificatórios inadequados e/ou
com adultos que querem ser adolescentes? Onde encontrar modelos adultos suficientemente
bons? A pergunta, sem resposta, é um convite para pensarmos juntos.
104

8. Os espaços da modernidade e o espaço virtual da pós-modernidade


Os modernos vivenciaram dois espaços: o espaço da realidade externa e o espaço interno,
das fantasias, das emoções e dos sonhos. Muitos filósofos da modernidade estudaram o
quanto a realidade externa é possível de ser “objetivamente” percebida sem a influência de
categorias do espaço interno. Os adolescentes, entretanto, convivem com um terceiro
espaço: o espaço virtual. Este é um novo espaço com características especiais, surgido há
pouco mais de cinqüenta anos, muito recente, portanto ele é capaz, dizem, de interagir. A
pós-modernidade tem, inclusive, muito a ver com a relação e com o próprio início deste
período do cyberespaço ( Levy, 1995).
Vejamos um exemplo da clínica do quotidiano. Once upon a time... imaginemos uma
família de classe média, um casal e três filhos. O pai compra um computador e instala a
internet, para que os filhos façam suas pesquisas para os trabalhos escolares. O pai trabalha
o dia todo, os filhos estudam pela manhã e pela tarde e a mulher é professora pela manhã e
á tarde tem os afazeres domésticos... uma vida comum e, até certo ponto, monótona e sem
emoções... Um dia a mulher “entra” na internet e num determinado “chat” encontra um
homem “do outro lado do mundo”. Começam a conversar; era um homem “gentil que dizia
coisas muito interessantes” e a que a “compreendia”. No dia de seu aniversário, que o
marido e os filhos “quase” esqueceram, o homem mandou-lhe um cartão de “feliz
aniversário, musicado e com uma coração vermelho palpitante “... ela se sentiu emocionada
como há muitos anos não se sentia... Começou, então, uma conversa mais sensual, mais
erótica e, por fim, um diálogo que, soube depois, faria inveja a Antonio Bocage. A mulher,
antiga, pois era apenas moderna e não pós-moderna, apertava uma tecla no computador –
delete – e acreditava que tudo ficava apagado. Num domingo à tarde, toda a família na sala,
onde ficava a televisão e o computador, e o marido, que entendia um pouco mais que ela
desta fascinante máquina, foi procurar alguns E-mails na lixeira do computador e, atônito,
“puxou todas as conversas” da esposa e do homem virtual. Ficou apavorado, pois convivia
com a esposa há mais de vinte anos e nunca imaginara que ela quisesse ouvir tais coisas e,
muito menos, escrever o que ele lia... os filhos colocaram-se contra a mãe, que de Mãe
Santa, passou a mulher “adúltera”... e o mais impressionante, a própria mulher não
reconhecia o que lia como algo “seu”, que tudo aquilo fosse uma expressão de seu self !
105

O que aconteceu ...


A modernidade, como escrevi antes, enfatizou a existência de dois espaços (sob, por
exemplo, a influência do romantismo, pois estamos falando de uma história de amor,
quando esta corrente literária estabelecida por W. Goethe, colocou o homem e suas
emoções no centro do universo): (1) o espaço interno, das emoções e dos desejos, das
pulsões, da alma e do mundo dos sonhos, topos psíquico tão nosso conhecido, e (2) o
espaço externo, dos acontecimentos reais... A modernidade coloca as coisas nos seus
devidos lugares, no lugar certo, cada coisa em seu lugar, buscando a certeza e seguindo a
Descartes, kant e a Comte ... A pós-modernidade criou um novo espaço, o cyberespaço, do
qual nos fala, entre outros tantos, Pierre Levy e Jean Baudrillard: o espaço virtual... o
espaço desta nova máquina, que é interativa e que denominamos computador.
Desconstruindo (ou dando foco) à história clínica dessa esposa e de sua família... essa
mulher, cuja narrativa de self, como escreve Ch. Bollas, relaciona-se ao “moderno”, de
certa maneira ao antigo e ao passado, só reconhecia dois espaços, o interno e o externo, e o
espaço virtual, espaço da cultura contemporânea, espaço hight-tec, lhe é estranho e
desconstrói sua estrutura de self.
Pierre Levy ( Levy, 1995 ), pensador ligado à pós-modernidade e ao conceito de
cyberespaço, escreve a propósito:
A força e a velocidade da virtualização contemporânea são tão grandes que exilam as
pessoas dos seus próprios saberes, expulsam-nas de sua identidade.
Este autor, em seu livro Qu´est-ce que le virtuel ? (Levy, 1995), partindo de algumas
idéias de Gilles Deleuze, afirma que o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual e
desenvolve a tese de o conceito de “virtual” se opõe ao conceito de dasein de M. Heidegger
do ser-um-ser-humano ou, literalmente, ser-aí. O virtual se relaciona ao ser-lá, a “não-
presença”, diferente do ser-aí.
Vejamos algumas outras idéias deste autor, buscando compreender melhor os paradigmas
que constituem o conceito de virtual e o choque com os paradigmas da modernidade:
Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se
tornam não presentes, se desterritorializam... a virtualização submete a narrativa clássica
a uma prova rude: unidade de tempo sem unidade de lugar.
106

O cyberespaço intervém também no conceito de identidade, o que nos é dado pelo conceito
de “hipercorpo”.
A virtualização do corpo incita a viagens e a todas as trocas. Os transplantes criam uma
grande circulação de órgãos entre corpos humanos. De um indivíduo ao outro e também
entre os mortos e os vivos... cada corpo torna-se parte integrante de um imenso hipercorpo
híbrido e mundializado...
Jean Baudrillard ( Baudrillard, 1997 ) é outro autor que nos ajuda nesta collage:
As máquinas só produzem máquinas. Isto é cada vez mais verdadeiro na medida do
aperfeiçoamento das tecnologias virtuais. Num nível maquinal, de imersão na maquinaria,
não há mais distinção homem-máquina: a máquina se localiza nos dois lados da interface.
Talvez não sejamos mais que espaços pertencentes a ela – o homem transformado em
realidade virtual da máquina, seu operador, o que corresponde à essência da tela. Há um
para além do espelho, mas não para além da tela. As dimensões do próprio tempo
confundem-se no tempo real. E a característica de todo e qualquer espaço virtual sendo de
estar aí, vazio e logo suscetível de ser preenchido com qualquer coisa, resta entrar, em
tempo real, em interação com o “vazio”...
Articulando estas idéias poderemos ser levados a pensar que quando alguém “brinca” com
um jogo eletrônico no computador não está verdadeiramente “brincando”, mas sim “sendo
brincado pela máquina”.

9. O predomínio do externo, da forma e da parte sobre o interno, o conteúdo e o todo


A modernidade sempre buscou a valorização do “conteúdo” sobre a forma e o externo (a
aparência física) e do conjunto sobre as partes (subordinação das pessoas ao estado
nacional), buscando no campo do indivíduo a “pessoa total”. A pós-modernidade, em
oposição, valoriza a aparência, a superfície e a fragmentação. O número de cirurgias
plásticas e os transtornos de alimentação nos levam a pensar como a cultura pós-moderna,
narcisista, incide sobre os adolescentes.

10. O mito do herói


Otto Rank (Rank, 1961) escreveu sobre o mito do nascimento do herói, onde a partir de
vários relatos míticos, da literatura e das religiões, encontra elementos comuns na “vida”
107

dos heróis e faz um conjunto de observações psicanalíticas sobre o tema. O herói da


modernidade, espelhado na cultura grega antiga, tem como uma referência, por exemplo,
Don Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes, romance de cavalaria do quinhentos.
Don Quixote enlouquece e dedica a sua vida a uma causa, o amor. Os heróis modernos têm
sempre uma causa “justa, solidária e coletiva”: um amor, uma religião, uma ideologia, etc,
pela qual dedicam ou sacrificam sua vida. O herói pós-moderno, em oposição, tem uma
causa estritamente pessoal, da qual deve obter o máximo de proveito, não solidária,
egoística; nunca deve se sacrificar ou oferecer a vida por ela. Deve, isto sim, desfrutar das
benesses! O novo herói, o herói pós-moderno, é um super-herói narcísico, maníaco e
predador.

11. O conhecimento da horizontalidade versus o conhecimento vertical


A passagem da Idade Média, com sua visão teológica do mundo e suas explicações mágicas
e místicas para os fatos do mundo, deu lugar na Idade Moderna à busca da explicação
científica, da raiz do conhecimento em determinada área, do genoma para compreender
melhor o homem, é próprio da modernidade: a busca da profundidade confere um estatuto
baseado na razão e na ciência. A pós-modernidade, entretanto, busca o conhecimento
horizontal: um adolescente que assiste a um vídeo de ciências naturais sobre os animais da
savana africana poderá ser capaz de realizar uma “conferência” sobre o tema: ele fala do
clima, das espécies que vivem neste habitat e de seus hábitos alimentares e reprodutivos.
Mas ele não pesquisou, nunca esteve lá, não leu nada sobre o assunto, assistiu imagens e
poucas explicações, que ele simplesmente reproduz com habilidade. O resumo, a síntese, é
o que é buscado, principalmente através de imagens, elemento fundamental desta condição
pós-moderna.

12. O falso versus o verdadeiro. A pós-modernidade como a cultura do simulacro.


A invenção da fotografia no século XIX possibilitou a reprodução bastante perfeita da
realidade, liberando o artista para se aventurar mais além, chegando ao impressionismo e às
outras formas modernas de representação. A utilização dos negativos fotográficos
propiciou uma série de reproduções e, hoje, com uma máquina xerox teremos um grande
número de cópias, bastante reais.
108

Um dos representantes mais significativo deste momento é Andy Warhol (1930-87).


Tornou-se famoso por suas imagens em série de produtos para consumo, pessoas
transformadas em objetos (Marylin Monroe, Mao-Tse-Tung, etc.) ou mesmo simples
objetos como latas de sopa Campbell. Freqüentando os ambientes mais variados de New
York, munido de uma máquina Polaroid (fotos instantâneas) clicava imagens e as
reproduzia seriadas em silk-screen ou em tinta acrílica, trabalho mais de seus assistentes de
que dele mesmo, “produzindo” (seu studio se chamava The factory, a fábrica) quadros
disputados por museus e colecionadores. Este pós-moderno personagem, algo gótico, com
sua peruca platinada, óculos escuros e uma pálida maquiagem, através de suas obras
transmitiam a idéia da perda da identidade na sociedade industrial (refiro-me à segunda
revolução industrial). Ele escreveu frases como: pinto isso porque queria ser uma
máquina... Acho que seria sensacional se todo o mundo fosse idêntico... Quero que o
mundo pense da mesma maneira, como uma máquina... Se querem conhecer Andy Warhol
olhem para a superfície de meus quadros, dos meus filmes e isso sou eu. Não há nada por
trás disso. Fez, também, mais de sessenta filmes que suplantaram as fronteiras possíveis da
banalidade: um de seus filmes, mudo, intitulado Sleep, tem seis horas de duração,
registrando apenas um homem dormindo. Sobre esse filme ele comentou que gosto de
coisas chatas... Atingido por um tiro desferido por um dos figurantes de seus filmes, na
Unidade de Tratamento Intensivo, buscava se informar das notícias publicadas na mídia
sobre seu estado clínico e tratava de fotografar seus ferimentos. Sua arte, entretanto, não
pode ser restrita a uma análise que a julgue repetitiva, banalizada e despersonalizada. Julian
Schnabel, pintor contemporâneo, talvez exagerando, registrou com alguma pertinência que
Andy mostrou o horror do nosso tempo tanto quanto Goya o fez em sua época. Ele é um
personagem exemplo da pós-modernidade, da cultura do simulacro.
Donald Winnicott, pediatra e psicanalista inglês, desenvolveu o conceito de verdadeiro e
falso self, definindo o falso self como uma defesa altamente organizada, que frente a um
ambiente que não exerce adequadamente suas funções (maternas) busca proteger o
verdadeiro self do aniquilamento. Júlio de Mello Filho (Mello, 1997) escreveu a propósito
deste falso self, adaptativo , um artigo intitulado Vivendo num país de falsos selves.
109

13. A importância da história para a modernidade e o fim da história na pós-


modernidade
A modernidade tratou de historicizar o homem e sua cultura, na busca de estabelecer sua
identidade. As grandes pesquisas arqueológicas e de paleontologia, na busca da construção
da história, foram um frisson no século XIX. S. Freud, como sabemos, pensador exemplar
da modernidade, utilizou freqüentemente a metáfora arqueológica para descrever sua
criação, a psicanálise, e tinha uma grande coleção de objetos antigos.
A pós-modernidade, inversamente, “decretou” o fim da história. O historiador americano
Francis Fukuyama, em seu livro The end of history and the last man, lançado em 1992,
num tom evangélico profetizou o fim da história como uma New Gospel (do inglês antigo,
godspel, good news) do fim do milênio. Numa mixórdia, que foi prontamente aceita por
alguns pós-modernos, F. Fukuyama liga seu tom evangélico da new gospel ao pensamento
de K. Marx e de G. F. Hegel e, num exercício que mais lembra uma impostura intelectual
(Sokal, 1955), “celebra” o triunfo de um novo capitalismo neoliberal e o final da história.
Este autor, funcionário do departamento de estado norte-americano, escreve que nunca mais
acontecerão grandes transformações históricas: o capitalismo em suas novas formas é a
sociedade final. Devemos abandonar as utopias, pois o admirável mundo novo aí está.
Devemos esquecer as lutas políticas, os debates filosóficos e as realizações artísticas de
vanguarda.

14. A modernidade e suas utopias e o fim das utopias na pós-modernidade


A modernidade acredita, como os jovens de 1968, que quando muitos sonham juntos os
sonhos se tornam realidade. É a necessidade das utopias, algo que mesmo não sendo
factível em sua totalidade move o gênero humano em direção ao progresso, ao respeito pelo
humano, sua vida e seus sonhos.O herói, este aspecto utópico de cada um de nós, e que a
literatura, e mesmo a vida, nos revelam é essencial. A utopia leva o humano mais ao alto.
A pós-modernidade, com o fim-da-história e seus heróis pós-modernos, expulsa a utopia.
Não há o que desejar senão consumir o que está produzido simulacros, simulações do real,
ser feliz é ter uma calça Lee velha e desbotada… O último herói da modernidade para a
geração de 68, Ernesto Guevara, não se pretende que seja um ideal utópico para os jovens,
mas uma estampa numa t-shirt da Forum de Tufik Dusek.
110

15. No lugar do simbólico o mundo de imagens da pós-modernidade


Jacques Lacan desenvolveu seus conceitos sobre o desenvolvimento humano enfatizando o
estágio do espelho. Com seus estudos ele revelou a importância da passagem do
imáginário, mundo psíquico dependente da imagem, para o simbólico. A pós-modernidade
é um mundo preso à imagem, onde a visualização e a concretude resultante são
fundamentais. Nada existe senão como imagem: uma pessoa é a sua imagem visual, não
simbólica. O imáginário,é um momento predominantemente narcísico, onde, como no
mito, o indivíduo esta preso, profundamente enamorado, de sua própria imagem e não
reconhece o Outro. Há falha na capacidade simbólica, com tudo o que resulta disso. O
mesmo Jacques Lacan, psicanalista ligado aos grupos de vanguarda, como os surrealistas e,
de certa forma, aos pensadores da pós-modernidade, vincula esta perda da função simbólica
ao declínio do pai e da função paterna, pois é o pai o sustentador do simbólico.

16. Globalização
Albert Dunlap definiu da seguinte forma para o Times Book a posição das grandes
corporações econômicas, as “multinacionais”: “A companhia pertence às pessoas que nela
investem – não aos seus empregados, fornecedores ou à localidade em que se situa”.
A geopolítica e a noção de Nação e Estado, práticas da modernidade, foram subistuídas pela
geoeconomia e pela globalização, determinada principalmente pelas grandes corporações
supranacionais, símbolos da pós-modernidade. A velocidade e a facilidade das
comunicações e o cyberespaço, progresso fantástico e inevitável, fica a serviço do capital e
não do social, ao mesmo tempo em que aproxima, exclui do progresso social grandes
parcelas populacionais (Bauman, Z., 1998 ).
A globalização não deve terminar com as diferenças, preservando as identidades. O avanço
tecnológico que possui é fundamental para o progresso da cultura humana. A internet, por
exemplo, pela facilidade de comunicação que oferece e pelas informações que
disponibiliza, inevitavelmente se colocará a serviço do progresso social e humano.
111

17. O fim das certezas


A pós-modernidade é definida, por vários autores (Prigogine, 1996) como o período do fim
das certezas. A física newtoniana, por exemplo, marco da modernidade que é confrontada
pela teoria quântica e suas novas formulações e pelas teorias do caos. O que temos hoje é
uma descrição que se articula, com um instável equilíbrio, entre duas representações
alienantes, a de um mundo submetido ao determinismo (matemático) e a de um mundo
arbitrário submetido apenas ao acaso. Os adolescentes estão neste mundo, que os convida a
ser uma metamorfose ambulante.
Terry Eagleton, em seu livro As ilusões do pós-modernismo (Eagleton, 1996), parte de seis
tópicos – primórdios, ambivalências, histórias, sujeitos, falácias e contradições – mostra
como a condição pós-moderna “conseguiu derrubar” certezas supostamente inabaláveis.
Ele escreve:
A cultura pós-moderna produziu em sua breve existência um conjunto de obras ricas,
ousadas e divertidas, em todos os campos da arte. Ela também gerou um excesso de
material kitsch execrável. Derrubou um bom número de certezas complacentes,
contaminou purezas protegidas com desvelo e transgrediu normas opressoras. Tal maneira
de ver baseia-se em circunstâncias concretas: emerge da mudança histórica ocorrida no
Ocidente rumo uma nova forma de capitalismo – o mundo efêmero e descentralizado da
tecnologia, do consumismo e da industria cultural, no qual as industrias de serviço,
finanças e informações triunfam sobre a produção tradicional, e a política de classes cede
terreno a uma série difusa de “políticas de identidade”, Pós-modernismo é, portanto, um
estilo de cultura que obscurece as fronteiras entre cultura “elitista” e cultura “popular”,
bem como entre arte e experiência cotidiana.

18. O adolescente e a ocupação dos espaços


A prova primeira da existência é ocupar o espaço
Le Corbusier, arquiteto
A PM lá em cima como se estivesse numa torre, tomando conta de um campo de
concentração, os traficantes ali ao lado do orelhão, armados, os aviões passando tão
baixo e os trens tão perto que os ruídos se confundem, o funk fazendo a trilha sonora –
112

tudo isso lembra uma montagem pós-moderna feita com pedaços incongruentes de vários
mundos e épocas.
Zuenir Ventura, Cidade Partida (Rio de Janeiro), 1994
A ocupação do espaço, doméstico ou público, pelos adolescentes é uma das formas que eles
utilizam para lidar com as transformações físicas, psicológicas e sociais e as fantasias e
ansiedades que esse processo acarreta. Sabemos que a identidade se articula em três pontos
– espacial, temporal e social – e a relação destas mudanças, especialmente as corporais,
com a ocupação dos espaços é bem evidente.
Arminda Aberastury (Aberastury, 1971) nos auxilia, nessa linha especulativa, quando
escreve em seu livro El niño y sus dibujos :
Reproduzir o próprio corpo, o dos pais e após tratar de desenhar casas é a cronologia do
desenho no desenvolvimento normal. Como a casa é um símbolo do esquema corporal se
compreende que seja o primeiro objeto inanimado que aparece nos desenhos.
A arrumação do quarto de um adolescente (ou a forma com que “recheia” sua mochila
escolar) nos dá uma dimensão, bastante aproximada de seu mundo interno...
A ocupação do espaço público (escola, bares, shopping, praças, etc.) também é
significativa. Eles necessitam, por exemplo, “migrar” de um espaço para outro a cada
intervalo de tempo, revelando o que Françoise Dolto chama o “Complexo de Lagosta”, se
referindo a este animal que ao transformar periodicamente o corpo perde a “casca” que o
envolve (Dolto, 1989). Durante alguns meses todos freqüentam um mesmo local e depois
“migram” para outro... é como o corpo infantil que tem de ser abandonado (ansiedade
depressiva e confusional frente a perda do conhecido) e o outro corpo, o adulto, encontrado
e habitado (ansiedade paranóide frente ao desconhecido).
Mats Lieberg ( Lieberg, 1994 ) em um estudo da Universidade de Manchester sobre a
ocupação do espaço público pelos teenagers, realiza uma pesquisa que nos mostra a
“migração” através da cidade como correlata com as transformações da identidade. Aliás,
Mário Quintana, o poeta maior dos gaúchos, significativamente, correlacionando a
geografia com a anatomia escreve em seus versos...
Olho o mapa da cidade como quem examinasse a anatomia de um corpo
É que nem fosse meu corpo!
113

O arquiteto Norberg-Schulz, em seu livro Novos caminhos da arquitetura: existência,


espaço e arquitetura (Norberg-Schulz, 1975), descreve a relação espaço-persona da
seguinte maneira:
Lugares, caminhos e regiões são os esquemas básicos de orientação, isto é, os elementos
constituintes do espaço existencial. Quando se combinam o espaço se converte em uma
dimensão real da existência humana... somente se define interior e exterior quando se pode
dizer que se “habita” ou se “reside”... em função dessa conexão as experiências e as
memórias do homem se localizam e o “interior” do espaço vem a ser uma expressão do “
interior “ da personalidade. A “identidade” está, pois, intimamente associada com a
experiência de lugar, especialmente nos anos de formação da personalidade.
Estes comentários foram feitos por um arquiteto, que embora não seja um psicanalista,
compreende perfeitamente as questões envolvidas na relação espaço arquitetônico e o
espaço existencial.
Onde habita, hoje, o adolescente? Provocativamente respondo: em Gotham city!
Gotham City, cidade de Batman e Robin, New York ou Los Angeles, lá e aqui, é a
apresentação conceitual e estética do espaço pós-moderno. A representação seqüencial dos
estilos – clássico, gótico e moderno – é mixada e surge a figurabilidade pós-moderna:
Gotham City é esta collage. Lembremos que gótico foi um termo cunhado pelos teóricos
renacentistas italianos para caracterizar uma estética vinculada ao estilo bárbaro germânico
que se impunha frente a antica e buona maniera moderna – o velho e bom estilo moderno
(Appignanesi & Garrat, 1995)... O gótico também evoca um tipo de romance noir onde o
Marques de Sade fez desfilar seus personagens e suas vigorosas experiências. Reparando
em alguns prédios bastante conhecidos de New York veremos o gótico e também o clássico
e o moderno numa clara composição pós-moderna, aliás foi esta cidade que inspirou o autor
de Gotham City.
É Los Angeles, entretanto, para vários teóricos, a cidade exemplo do espaço pós-moderno.
J. Baudrillard, em seu livro America (Baudrillard, 1988), comenta que LA está livre de
toda a profundidade... um hiperespaço exterior, sem origem e sem pontos de referência.
Para este autor LA é uma visão do humano pós-moderno patético. J. Baudrillart e tout
court consideram que o pós-moderno se separa do moderno, entre outros aspectos, quando
a produção de demanda – dos consumidores – se torna central: a produção de necessidades
114

e desejos, a mobilização do desejo e da fantasia, da política de distração (Lyon, 1998). Há


um olhar diferente na cidade pós-moderna: é o olhar do turista ou do zapping. Não mais o
olhar dos flâneurs, olhares de passantes sem pressa, nos boulevares de Paris, típico olhar
moderno.
David Lyon ( Lyon, 1998 ) escreve LA:
Vários comentadores consideram Los Angeles a primeira cidade realmente pós-moderna
do mundo. A beira do mar, a grande metrópole comporta um número elevado de profissões
de alta tecnologia, serviços a preços baixos e trabalhos de manufatura. Mas ela passou
por uma desindustrialização e uma reconstituição tão rápidas (seletivas) que Edward Soja
a chamou de “a janela paradigmática pela qual se pode ver a última metade do século
vinte”. Todavia é difícil focalizar esse fluxo urbano fragmentário, constantemente em
movimento, que está em toda a parte, global.
Os habitantes de LA estão entre o local e o global, mini-cidades étnicas, convivendo um
grande avanço tecnológico com favelas imundas e arredores meio-modernos. Bairros
chamados Veneza, Manhattan Beach, Ontário, Westminster, etc., convivem
simultaneamente, interconectadas. Uma babel de línguas, onde yuppies e imigrantes ilegais
se diferenciam e se confundem. David Lyon (Lyon, 1998) comenta que nestes espaços, o
projeto do eu se traduz num projeto de posses de bens desejados e na busca de estilos de
vida artificialmente modelados... O consumismo não conhece limites... uma vez
estabelecida ,uma cultura do consumo dessa espécie é não-discriminadora e tudo se
transforma num iten de consumo, até o significado, a verdade e o conhecimento... A
imagem, o estilo e o desenho do produto transpõem as metanarrativas modernas e
assumem a tarefa de conferir significado. “As coisas se fragmentam” disse W.B. Yeats,
prescientemente, “o centro não consegue se sustentar”. Assim, a falta de centro, simbólica
de LA, se torna uma metáfora para a cultura de consumo pós-moderna em geral: tudo está
fragmentado, heterogêneo, disperso, plural – sujeito às escolhas do consumidor... Valores e
crenças perdem qualquer sentido de coerência, sem mencionar o de continuidade, no
mundo de escolha do consumidor; de mídia múltipla e de pós-modernidade globalizada.
Não pretendo privar o leitor de buscar ele próprio o esclarecedor livro de David Lyon e por
isso abrevio a citação. É a distopia, embora não tenhamos chegado ainda em 2019, de
Blade Runner e seus andróides. Reconhecemos este lugar: Gotham City é aquí!
115

- VIII –
Penso que seria interessante fazer alguns breves comentários sobre uma escola que possa
enfrentar estes desafios, tendo a certeza de estar fazendo comentários nada originais e que,
certamente, alguém fez melhor antes. Mas que escola seria esta? Aquela que preservando
valores essenciais da modernidade esteja aberta ao progresso e ao novo. Minhas
observações se derivam mais de uma prática com crianças, adolescentes e escolas do que de
idéias que eu tenha tido a oportunidade de desenvolver uma teorização sobre elas. Obtenho
respaldo, entretanto, com um importante pensador que escreveu, no século IXX, que a
prática é o critério da verdade.
Julgo que três pontos seriam essenciais: olhar a criança com (1) um novo olhar e educar
para (2) brincar e (3) pensar.

Olhar a criança com um novo olhar


Enfatizo com este destaque a importância de oferecer à criança este novo olhar, que
significa propiciar à ela subjetivação e historicização. Compreender as diferenças entre
ensinar (colocar signos para dentro) e educar (criar condições ambientais para que a
criança e o adolescente desenvolvam, no seu ritmo, seu potencial), recusando o papel de
impor um fordismo na escola, uma linha de montagem onde os gadgets crianças são
produzidos para o gozo de uma sociedade consumista. Faço referência a um novo olhar que
confira à criança um narcisismo de vida, como explica André Green, distante do narcisismo
de morte ao qual ela está condenada por uma sociedade que estabelece com seus filhos uma
relação perversa, do abandono à violência, da exploração sexual à transformação em seres
para o consumo rápido.

Educar para brincar


Minha hipótese é que a escola poderá ajudar a criança e o adolescente a descobrir o brincar,
experiência perdida em um mundo de concreto, de objetos prontos para o consumo e um
uso não criativo, recuperando a perda da tradição do brincar e de criar o brinquedo. As
grandes corporações levam seus gerentes com MBA para seminários, onde eles são
116

ensinados a brincar: num reconhecimento explícito da importância do brincar para o


desenvolvimento da criatividade e de que o brincar está esquecido.

Educar para pensar


Em muitos momentos, ao longo do texto, referi como o pensar está problematizado na
condição pós-moderna. A escola tem a função de resgatar este aspecto fundamental do
desenvolvimento da criança e do adolescente.
Esta nova escola terá, desde meu ponto de vista como médico, uma função fundamental de
promoção da saúde e prevenção da doença. Seu currículo não se dirigirá a penas a matérias
dissociadas entre si, às vezes sem nenhum entrelaçamento, um currículo fragmentado.
Voltada no sentido de fornecer elementos e um sentido prático para a vida Será também
uma escola para pais, incluindo a família nos seus objetivos principais. Enfim, uma escola
para a vida, onde o progresso tecnológico estará serviço da pessoa.

The last but not the least


A escola deve se constituir também em uma “escola para os pais”, onde estes possam
discutir todas estas questões e muitas outras que surgem a cada momento.

- IX -
Epílogo
Há, doravante, no que se refere à ordem social e política, um problema específico da
infância, a exemplo da sexualidade, da droga, da violência, do ódio – de todos os
problemas mais insolúveis derivados da exclusão social. Como outros tantos domínios, a
infância e a adolescência convertem-se hoje em espaço destinado por seu abandono à
deriva e à delinquência.
J. Baudrillard, Tela Total
J. Baudrillard (Baudrillard, 1997), pensador sobre a condição pós-moderna, nos recomenda
calma, crianças sempre haverá. Mas como? Objeto de curiosidade ou de perversão sexual,
ou de compaixão ou de manipulação e de experimentação pedagógica ou simplesmente
como vestígio de uma genealogia do vivo?
117

A modernidade tem ainda, com todas as suas crises, valores e paradigmas necessários ao
humano e sua cultura, embora haja um mal-estar nesta cultura… Mesmo um político
conservador, como Francisco Welffott reconhece a relação entre a globalização e a criação
de conjuntos humanos descartáveis, quando escreve (Wellfortt, 2000):
Um dos problemas mais graves do capitalismo na época da globalização é a criação de
grandes conjuntos humanos considerados “ desnecessários “ ( descartáveis ) do ponto de
vista econômico.
A violência, desta maneira, está presente nesta globalização que se torna cada vez mais
excludente sob o ponto de vista social, pois o avanço tecnológico não significa,
necessariamente, um avanço de condições mais humanas para as populações.
Temos hoje mais de 30 guerras regionais, em todos os continentes, onde as vítimas fatais
são principalmente as populações civis com aproximadamente 90 % de todas as baixas: na I
Grande Guerra (1914-18) morreram cerca de 15% de civis e na II Grande Guerra (1939-45)
foram 45 %. Estes dados representam principalmente crianças, mulheres e idosos.
Existe hoje, como escreveu Sigmund Freud no final da década de 20 ( Freud, 1930 ), um
mal-estar na civilização. É certo que ele levantava questões relativas ao estatuto do sujeito
na modernidade, pois a psicanálise é uma leitura da subjetividade e de seus impasses na
modernidade (Birman, 1998), mal-estar este que, entretanto, podemos estender para a pós-
modernidade e seus intentos de dessubjetivação. Um conjunto significativo de autores tem
escrito sob o tema, desde o ponto de vista psicanalítico (Rouanet, 1987; Rouanet, 1993;
Costa & Katz, 1996; Birman, 1998; Rocca, 2000; Cukier, 2000), enfatizando as alterações
psíquicas que se observa relacionadas, diretamente ou indiretamente, com as questões
levantadas neste texto. Elisabetta de Rocca (Rocca, 2000) considera o seguinte:
A cultura pós-moderna, caracterizada pelo domínio da imagem e velocidade e
massificação da informação, sustenta aspectos eróticos e tanáticos. Entre os primeiros está
a possibilidade de um acesso mais rápido e completo do conhecimento global e uma
conscientização cada vez maior da inexistência de verdades definitivas e completas, o que
contribui para destruir dogmatismos estéreis e facilita o respeito pelo novo e pelo
diferente. São fatores tanáticos a violência, a superficialidade, a pouca qualificação dos
valores transcendentes e a excessiva importância que se outorga às possessões visíveis. O
sujeito-ideal (termo com o qual Piera Aulangier denomina a parte do superego que dá
118

conta da incorporação dos valores predominantes no contexto socio-cultural). É, em nosso


tempo, um ser perfeito, complexo e exitoso, o que supõe uma negação do limite e da
castração. Ideal de completude narcisista, que permite qualificar a cultura atual de
falocêntrica ou fálico-narcisista. Sabemos, como psicanalistas, que não aceder á castração
conduz, real ou metaforicamente, à morte psíquica e/ou física. Se a Freud coube lutar
contra o excesso de repressão, a nós hoje cabe – como testemunham as novas patologias –
combater a violência que implica a proposta onipotente da cultura atual, que tende a
dificultar nossa tarefa, porque potencializa o atrativo demoníaco da completude, sempre à
espreita em algum canto do psiquismo. Dois aspectos da sociedade pós-moderna
requerem atenção particular. São eles: o ataque ao processo de pensamento que supõem a
intensidade e a rapidez excessiva dos estímulos que dificultam as representações claras e o
acesso ao pensamento, gerando vivências de caos e vazio; nulificação da história, à
exigência de viver no imediatismo do presente que, somada às profecias de previsões
catastróficas para a sobrevivência da espécie humana, incrementa a culpa patológica e
diminui a possibilidade reparatória e as esperanças de projetar-se no futuro. O ataque ao
pensamento e a desvalorização da história são realidades fáticas que exigem uma atenção
particular e uma reflexão mancomunada, porque constituem verdadeiros desafios para o
desempenho de nosso trabalho.
A autora desenvolve seus comentários muito próximos às observações que faço ao longo do
texto. Na verdade, estes são temas bastante discutidos em diversas áreas do conhecimento
humanístico. Não tenho nenhuma dúvida da validade e da vitalidade da psicanálise neste
momento, espaço da experiência humana, experiência compartida, de subjetivação e
historicização, como instrumento de levar ao futuro, ao homem do novo século, alguns dos
valores fundamentais da modernidade.

Bibliografia

Os textos colocados na bibliografia não estão todos referidos no texto. Foram, entretanto, necessários
para o desenvolvimento das idéias nele contidas: por isso sua presença na bibliografia, pois poderão ser
úteis também ao leitor .

ABERASTURY, A. (1971). El ninõ y sus dibujos. Revista Argentina de Psiquiatria Y Psicologia da


Infancia y Adolescencia. Set., 1971, 2/1. ASAPPIA/PAIDÓS. Buenos Aires. pp 17-29
ABERASTURY, A. et alli (1973). Adolescencia. Ed. Kargieman. Buenos Aires. 1973
ABERASTURY, A. et alii (1981). Adolescência normal. Artes Médicas. São paulo. 1981
119

ANZIEU, D. (1989). O Eu-pele. Casa do Psicólogo. São Paulo. 1989


APPIGNANESI, R. & GARRAT, C. (1999). Introducing postmodernism. Icon Books. UK. 1999
ARMONY, N. (1998). Borderline: uma nova normalidade. Revinter. Rio de Janeiro.1998
BACHELARD, G. (1948). A terra e os devaneios do repouso. Ensaio sobre as imagens da intimidade.
martins Fontes. São Paulo 1990
BACHELARD, G. (1949) A psicanálise do fogo. Martins Fontes. São paulo. 1990
BAUDELAIRE, C. (1869). Sobre a modernidade. Paz e Terra. São Paulo. 1996
BAUDELAIRE, C. (1867). As flores do mal. Nova Fronteira. Rio de Janeiro. 1985
BAUDRILLARD, J. (1997). Tela total. Mito e ironias da era do virtual e da imagem. Sulina. Porto Alegre.
1997
BAUMAN, Z. (1998). Globalização: as conseqüências humanas. Jorge Zahar editores. Rio da Janeiro. 1998
BELMONT, S. (1998). Prefácio. In: Armony, N. Borderline: uma outra normalidade. Revinter. Rio de
janeiro. 1998
BETTELHEIM, B. (1976). Conducta individual y social in situaciones extremas. In: Bettelheim, B. et alii
Psicologia del torturador. Rodolfo Alonso Editor. Bs. As. 1973
BETTELHEIM, B. (1976). Psychanalyse des contes de fées. Résponses. Paris. 1976
BETTELHEIM, B. (1989). Sobrevivência. Artes Médicas. Porto Alegre. 1989
BICK, E. (1987). The experience of the skin in the early object relations. In : Harris. M. & Bick, E. Collect
papers of Martha Harris and Esther Bick. The Clune Press. Scotland. 1987
BIRMAN, J. (1998). Mal-estar na modernidade. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 1998
BLEGER, J. (1967) .Simbiosis y ambiguidade. Paidós.Bs. As. 1967
BLEGER, J. et alii (1973) La identidad en el adolescente. Paidós. Bs. As. 1973
BLOS, P. (1962). Psicoanalisis de la adolescencia. Ed. México. 1962
BOLLAS, C. (1992). Sendo um personagem. Revinter. Rio de Janeiro. 1998
CARROL, L. (1976). Alice. Summus . São Paulo. 1976
Chalub, S. ey alii (1994). Pós-moderno. Imago. Rio de janeiro. 1994
CHRISTO, A. L. (1997). As veredas perdidas da pós-modernidade. Caros Amigos. ano 1, n. 2. 1977
CONNOR, S. (1989). Cultura pós-moderna. Introdução às teorias do contemporâneo. Loyola. São Paulo.
1996
COSTA, G. & KATZ, G. (1996). O adolescente e a família pós-moderna. Rev. Bras. de Psicanálise. Vol.
XXX (2):329-40, 1996
CUKIER. J. (2000). Aceleração, simultaneidade, globalização, transformação socio-econômica no fim-
de-século: seus efeitos psíquicos. Revista de psicanálise/SSPA. Vol. VII, N 1. Abr. 2000
DECIA, P. (1997). Sociólogo analisa a globalização e cultura em “ O desmanche da cultura “. Folha de
São paulo. /Ilustrada. 28 de junho de 1997, pg. 6
DOLTO, F. (1980). La causa de los adolescentes. Seix Barral . Barcelona. 1990
DOLTO, F. (1989). Palavras para a adolescência ou o complexo de lagosta. Atlantida. Bs. As. 1993
EAGLETON, T. (1996). As ilusões do pós-modernismo. Jorge Zahar editores. Rio de Janeiro. 1996
ELIOT. T. S. (1948). Notas para uma definição de cultura. Perspectiva. São Paulo. 1988
FERNANDES, M.(1994). Millor definitivo. LP&M. Porto Alegre. 1994
FLAX , J. (1992). Final analysis ? Psychoanalysis in the post-modern west. In: Annual of Psychoanalysis.
Vol. XXII. The Analytic Press. N; J. 1994
FEARSTHONE, M. (1995). O desmancha da cultura.Globalização, pós-modernismo e identidade. Livros
Studio Nobre. São paulo. 1997
FIGEL, J. (1964). Psicologia del vestido. Paidós. Bs. As. 1964
FRANCO JÚNIOR (1996) O que é ser jovem. Folha de são Paulo/ Resenhas. 12 de junho de 1996. pg. 3
FREUD, S. (1923). O ego e o id. In: Freud, S. Edição Standart Brasileira daas Obras Completas de Sigmund
Freud. Vol. XIX: 13-80. Imago. Rio de Janeiro. 1969
GARDNER, J. Cultura ou lixo ? Uma visão provocativa da arte contemporânea. Civilização Brasileira.
Rio de Janeiro. 1996
GLEISER, M. (1997). A dança do universo. Companhia das Letras. São Paulo. 1997
GOLDEMBERG, G. (1991). Psicologia jurídica da criança e do adolescente. Editora Forense. Rio de
Janeiro. 1991
GRIMBERG, L. & GRIMBERG, R. (1971). Identidad y cambio. Kargieman. Bs. As. 1971
HARVEY, D. (1989). Condição pós-moderna. Loyola. São Paulo. 1996
KHAN, M. (1983) . Hidden selves. The Hogarth press. London. 19983
120

KNOBEL, M. (1973). El pensamiento y la temporalidad en el psicoanalisis de la adolescencia. In:


Aberastury, A. et alli. Adolescência . Karkiegman. Bs. As. 1973
KNOBEL, M. (1974). El sindrome de la adolescencia normal. In: Aberastury, A. & Knobel. M. La
adolescencia normal. Paidós. Bs. As. 1974
KNOBEL, M. (1980). A adolescência e a família atual. Uma visão psicanalítica. Ateneu. Rio de Janeiro.
1980
LIEBERG, M. (1994). A ropiating the city: teenager´s use of public space. In : Neary, S. et alii. The Urban
experience. A people environment perspective. E & FN SPON. London. 1994
LEVINSKY, D. (1997). Adolescência e violência. Casa do Psicólogo, São Paulo. 1997
LÉVY, P. (1995). O que é o virtual ? Editora 34. São Paulo. 1996
LYOTARD, J-F. (1985). La posmodernidad. Gedisa Editorial. Barcelona. 1996
JAMESON, F. (1991). Pós-modernismo. A lógica cultual do capitalismo tardio. Ática. São Paulo. 1997
JAMESON, F. (1994). As sementes do tempo. Ática. São Paulo. 1997
JAMESON, F. (1995). Espaço e imagem. Teorias do pós-modernismo e outros ensaios. Editra UFRJ. Rio
de Janeiro. 1995
JERUSALINKY, A. et alii (1997). Adolescência: entre o passado e o futuro. APPOA/Artes e Ofício. Porto
Alegre. 1997
JUNQUEIRA, L.C. et alii (1995). O corpo e a mente. Uma fronteira móvel. Casa do Psicólogo . São Paulo.
1995
MORAES, E. (1999). Limites do moderno: o pensmento estético de Mário de Andrade. Relume –
Dumará. São paulo. 1999
NORBERG-SCHULZ, C. ( 1975 ). Nuevos camiños de la arquitectura: existencia, espacio y arquitectura.
Editorial Blume. Bs. As. 1975
OSÓRIO, L. C. (1989). Adolescência hoje . Artes Médicas. Porto Alegre. 1989
OUTEIRAL, J. (1982a). O corpo na adolescência. In: Osório, L.C. et alii. Medicina do Adolescente. Artes
Médicas. Porto Alegre. 1982
OUTEIRAL, J. et alii (1982). A bela adormecida no bosque. Um estudo sobre a temporalidade na
adolescência. Rev. Psiq. RS, 5(1):37-9, jan-ab. 1983
OUTEIRAL, J. (1992). Adolescer. Artes Médicas. Porto Alegre. 1992
OUTEIRAL, J. (2000). Clínica psicanalítica de crianças e adolescentes. Revinter. Rio de Janeiro. 2000
PRIGOGINE, I. (1996). O fim das certezas. UNESP. São Paulo. 1996
RANK, O (1961). El mito del nacimiento del heroe. Paidós. Bs.As. 1961
ROCCA, E. (2000). A psicanálise na sociedade pós-moderna. Revista de psicanálise/ SPPA. Vol. VII, N 1.
Abril 2000
ROUANET, S. (1987). As razões do iluminismo. Companhia das Letras. São Paulo. 1987
ROUANET, S. (1993). Mal-estar na moernidade. Companhia das Letras. São Paulo. 1993
SANTOS, B. (1995). Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. Cortez Editora. São
Paulo. 1995
SANTOS, B. (1989). Introdução à uma ciência pós-moderna. Graal. Rio de Janeiro. 1989
SARLO, B. (1994). Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo. Cultura na Argentina.
Ed.UFRJ. Rio de Janeiro. 1997
SCHILDER, P.(1975) Imagem y aparencial del corpo humano. Paidós. Bs. As. 1975
SCHMIDT, M. (1996). Nova história crítica: moderna e contemporânea. Nova geração. São Paulo. 1996
SMART. B. (1993). A pós-modernidade. Publicações Europa-América. Lisboa. 1997
SENNET, R. (1943). Carne e pedra. O corpo e a cidade na civilização ocidental. Record. São Paulo. 1994
SOUZA, R. (1987). Nossos adolescentes. Artes Médicas. Porto Alegre. 1987
VATTINO, G. (1985). O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Martins
Fontes. São Paulo. 1996
WINNICOTT, D. (1987). Privação e delinquência. Martins Fontes. São Paulo. 1987
WELLFOTT, F. (2000). A cultura e as revolções da modernização. Cadernos do nosso tempo. Edições
Fundo Nacional de Cultura. Rio de Janeiro. 2000

Anda mungkin juga menyukai