contemporâneo
Dessa forma o controle do sujeito se torna cada vez mais sutil, sem
negar a presença de outras formas de controle, como o ideológico e o físico,
mas a gestão do afetivo acaba por ocupar lugar privilegiado nas relações de
dominação nas organizações na sociedade contemporânea. Vale ressaltar que
o gerencialismo atual é aperfeiçoado no sentido de se valorizar não apenas a
dimensão organizacional, mas de coordenar o funcionamento psíquico do
sujeito.
Para Gaulejac (2006), o trabalhador experimenta angústia e prazer no
ambiente organizacional, principalmente porque a empresa reconhece seu
trabalho por meio de promoções e vantagens financeiras — embora restritas a
alguns cargos —, mas ao mesmo tempo o investe de responsabilidades,
fazendo com que se sinta envolvido em uma espiral da qual não consegue se
livrar. Dessa maneira o trabalhador se envolve totalmente com o trabalho e o
“(...) seu apego é produzido por uma dependência psíquica que se relaciona
com os mesmos processos de vínculos amorosos, tais como a projeção, a
introjeção, a idealização, o prazer e a angústia” (GAULEJAC, 2006, p.95).
Assim é imprescindível, na análise crítica em estudos organizacionais,
estar atento não apenas aos determinismos sociais, mas também aos
determinismos psíquicos que são de extrema importância na compreensão das
relações de poder e de dominação, especialmente naquelas que contam com
estrutura estratégica.
Nesse sentido, o objetivo deste capítulo é apresentar uma pesquisa que
ilustra o conceito de gerencialismo no trabalho e a servidão voluntária dele
decorrente, tendo como eixo de análise a sedução do discurso organizacional.
Para tal, o capítulo está dividido em três partes. A primeira trata da cultura do
management, discutindo o gerencialismo no setor público e suas relações com
a universidade pesquisada. A segunda refere-se ao discurso organizacional e à
servidão voluntária no trabalho, especificamente dos professores universitários.
E na última parte é apresentada uma síntese do resultado da pesquisa, a fim
de ilustrar a aplicação empírica dos conceitos aqui discutidos.
A pesquisa
1
Os nomes dos sujeitos pesquisados são fictícios e utilizados de forma a preservar o sigilo das
informações.
“Sou completamente feliz, sou uma pessoa realizada profissionalmente, sinto
minha carreira completamente sedimentada, consolidada, eu estou no auge da
minha produção”. Nesta fala Joana expressa seu sentimento de felicidade,
realização profissional e orgulho em pertencer à universidade estudada, embora
durante a pesquisa esse mesmo sujeito tenha manifestado insatisfação com as
condições de trabalho oferecidas pela organização: “[...] eu gostaria só de ter um
pouco mais de condições de trabalho, ter uma secretária, mais infra-estrutura
dentro da universidade e realmente ter um salário melhor pra não precisar, por
exemplo, dar aula de especialização e muitas palestras [...] ou fazer consultorias
de empresas [...].
Observa-se que, apesar da falta de melhores condições de trabalho, Joana
se deixa seduzir pela exigências da instituição, em termos de produtividade e
desempenho, quando se manifesta: “ nós temos padrões muito altos de exigência
de desempenho, o critério é de quantidade e não qualidade, então você deve
escrever 10, 20, 30 artigos [...] além de uma sobrecarga, isso impede a
criatividade e a construção de um conhecimento original [...] particularmente não
sinto a influência desses aspectos (gerencialismo) nas minhas atividades porque
eu gosto de produzir, porque eu tenho o perfil de pesquisadora [...]. Notam-se
fascínio e orgulho pelo trabalho que realiza, mas também servidão ao sistema que
exige desempenho cada vez maior do profissional.
Do ponto de vista de José, “o trabalho do professor é missionário [...] a
questão de autonomia e liberdade na universidade pública é muito diferente da
universidade privada [...] o volume de trabalho é grande, mas quando sinto que dá
resultados [...] massageia o coração e eleva o ego profundamente [...]. A
fascinação é colocada aqui de forma religiosa, quase dogmática. O sentido do
trabalho para ele parece ser comparável ao sacerdócio: missão nobre, honrosa,
venerável, com certo grau de sacrifício, mas envolto em satisfação espiritual.
Parece que o sujeito abraçou a “missão divina” de ensinar, mesmo que a carga de
trabalho seja alta. Seduzido pela organização e seus valores, envolvido pela
busca de reconhecimento, comprometido com os ideais organizacionais e
submetido às normas e regras de produtividade e desempenho, José demonstra
estar feliz a tal ponto, que chega a sentir o coração massageado e o ego
elevado. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, submete-e às exigências da
organização do trabalho com prazer quase erótico, quando diz que o sentido do
seu trabalho “ me dá prazer, me dá tesão”. Entretanto, tenta justificar a
precarização da organização do trabalho quando diz que “[...] me proporciona
lazer (o trabalho) [...] e que também às vezes me causa, eu não diria sofrimento,
mas sim dissabores [...].
Importante lembrar, a respeito da sedução, a Teoria da Sedução
Generalizada defendida por Laplanche e Pontalis (SALES, 2002), para tentar
estabelecer, do ponto de vista psicanalítico, a relação entre o professor — nesse
caso representado por José — e a instituição à qual pertence. Para os autores,
Freud teria abandonado a sua Teoria da Sedução baseado no fato de que “a
sedução seria uma construção, em termos de fantasia, do próprio sujeito”
(SALES, 2002, p.325), ou seja, algo endógeno e portanto, sem relação com o
exterior. Para eles, entretanto, a Teoria da Sedução Generalizada visava
“recuperar a positividade da teoria da sedução freudiana” (SALES, 2002, p.326),
posto que, para Freud, faltava algo real que pudesse sustentar a ficção imaginária
da fantasia.
De acordo com Laplanche, a origem da fantasia se encontra no confronto
entre o mundo da criança — por ainda não dominar a fala — e o mundo do adulto.
A construção da fantasia, e sua universalidade, segundo ele, está neste
confronto e na “emergência de sentimentos sexuais na criança” (SALES, 2002,
p.326). Prossegue Laplanche definindo os atores em cena: a criança que pede
ajuda “diante do transbordamento de sua excitação” e o adulto “que atende a este
pedido agindo a partir da dimensão de seu próprio inconsciente [...]” (SALES,
2002, p.326). O autor resume essa relação criança-adulto, como sendo aquela em
que o adulto sofre os desvios de si mesmo e a criança que precisa adaptar-se ao
mundo do adulto — e que, portanto, necessita enormemente dele —, mas que se
comporta de maneira frágil e imperfeita.
Tentando estabelecer uma transposição dessa relação entre a criança e o
adulto, pode-se considerar que a relação professor-universidade siga padrões
semelhantes. A organização diante do trabalhador passa por um processo de
clivagem, embora consciente em razão das regras e normas impostas, inclusive
cometendo falhas nessa relação com ela mesma — se se considerar o
trabalhador como a origem da própria organização — levando o trabalhador a
apelar ao aspecto infantil nela, organização. É nesse contexto, conforme
assinalou Pagès et. al (1987), que o professor inconscientemente estabelece uma
relação entre a organização e a figura materna. E nesse ambiente se
desenvolvem as fantasias e seduções que levam José ao imaginário missionário
e erótico em relação à universidade-mãe.
É possível também que no discurso “e quando você fala o nome da
universidade [...] as pessoas não têm noção”, seja uma manifestação de vaidade,
de orgulho em pertencer à instituição. Parece mais evidente quando Joana diz
que “eu também sou competitiva, eu também quero aparecer, ter os privilégios,
ser reconhecida [...]”, “eu me sinto diferenciada de fato”.
Nesta direção, a identificação, uma das fontes de poder citadas por
Enriquez (2007), se apresenta quando o professor manifesta sua admiração pela
instituição e a forma como a venera. Ele verbaliza, ainda que de forma disfarçada,
sua submissão ao poder exercido pela organização sobre sua vida profissional
quando diz que “as pessoas não têm noção”. Noção do seu amor pela
universidade, da força que ela exerce sobre ele, do seu grau de comprometimento
com ela.
Essa identificação, caracterizada pelo discurso, demonstra o fascínio que a
instituição exerce sobre o professor, conforme descrito por Siqueira (2006), na
medida em que nela ele realiza seus desejos de reconhecimento diante dos
colegas, da própria universidade e também de pessoas externas à organização.
Apesar das condições de pressão e excesso produtivo, recorrentes na
universidade pública, transparece o caráter sedutor, o fascínio incoerente
vivenciado pelo professor. O ambiente adverso e as condições precárias de
trabalho parecem proporcionar, por mais paradoxal que seja, certo sentimento de
servidão do professor para com a organização, talvez em decorrência da
liberdade e autonomia experimentados na organização do trabalho que contagia e
engana. Siqueira (2006) chama atenção para o fato de que, no ambiente de
trabalho o sujeito se encontra imbuído dos ideais da organização, embembendo-
se das normas, valores, convicções e padrões de conduta.
De acordo com Mendes (2007), os indivíduos se submetem ao desejo de
produção como forma de defesa ao sofrimento, na maior parte das vezes
inconsciente, fazendo com que os trabalhadores mantenham a produção exigida
pela organização. Mais adiante, complementa essa autora, procede-se uma
articulação entre a organização do trabalho e o comportamento neurótico
assumido pelos trabalhadores, ao submeter seus desejos aos da instituição.
Muito embora os sujeitos pesquisados tenham manifestado o caráter de
liberdade e autonomia que experimentam no contexto de trabalho, o discurso
exprime a insatisfação encontrada em seu dia-a-dia laboral. No desempenho de
suas atividades prevalece muito mais o aspecto individualista do que o coletivo. A
não ser quando se reúne para discutir temas relacionados a pesquisas ou em
encontros burocráticos para definir normas e procedimentos acadêmicos, além
obviamente, quando está em sala de aula, o trabalho do professor é, na maior
parte do tempo, solitário. Parece que esse “confinamento” opcional do professor
reflete uma estratégia mediativa para evitar as interferências normativas da
organização do trabalho, ao mesmo tempo em que contribui para que ele se livre
um pouco dos riscos da servidão voluntária.
O mesmo discurso se repete quando Pedro admite seu fascínio e sedução
em relação à instituição: “quando entrei aqui, fiz concurso para professor, te juro
que achava que não tinha a menor vocação [...] achava que era coisa passageira
[...] hoje em dia sou apaixonado pelo que faço, cada vez mais [...] eu gosto de
fazer mais e quero mais [...]. Embora admita que o reconhecimento no trabalho do
professor universitário passa pela capacidade produtitiva, em termos de artigos
científicos, orientações de monografias, dissertações e teses, publicações de
livros, e outros, Pedro se considera de uma [...] nova geração que enxerga a
universidade com outros olhos [...] eu vejo a universidade como um serviço, não
só pelo ponto de vista da ciência e formação, mas pelo lado da extensão
universitária [...] acredito no serviço voltado para a sociedade brasileira [...] é ter
uma verdadeira interação com as comunidades[...]. Neste sentido, Pedro renega,
de certa forma, as exigências por produtividade impostas pelos órgãos
fomentadores (Capes e CNPq), porque apesar de não ser vinculado ao sistema,
se não prosseguisse na carreira ascendendo de mestre para doutor, não
conseguiria assumir nenhuma função dentro da universidade: [...] eu fui obrigado
a fazer doutorado pra continuar a fazer outras atividades na universidade [...] se
eu não estivesse fazendo doutorado eu estava eliminado, eu estaria aqui quase
como um zumbi [...] pra todas as funções você tem que ter um título de doutor [...].
Para ele, a captação de recursos externos e parcerias em pesquisas com
organizações privadas são mais importantes, complementam sua renda e ainda
permitem investir em equipamentos, materiais e outros insumos para o seu
laboratório de pesquisa na universidade. Parece bastante clara a influência do
capitalismo acadêmico, um dos pilares do gerencialismo, no que se refere à
captação de recursos e melhoria da remuneração de Pedro. O governo brasileiro,
inclusive, acaba de aprovar o Decreto-Lei nº 6.114/2007, que permite aos
professores de universidades públicas exercer atividades de consultorias no
âmbito da administração pública federal, estabelecendo o pagamento de
gratificação, por hora trabalhada, como forma de complementação da
remuneração original.
A criação de incubadoras de empresas dentro do ambiente da universidade
pública também é consequência da influência gerencial privada na administração
pública, uma vez que permite o desvio dos objetivos da universidade pública, no
que tange ao ensino, para o objetivo meramente econômico. Será que não
estariam sendo violados valores éticos e morais, se o próprio professor
universitário mais tarde fosse consultor dessa empresa, quando ela estivesse
inserida no mercado de trabalho?
A sedução, no caso de Pedro, se relaciona mais com o aspecto financeiro; a
possibilidade de ganhos acima do salário normal de professor, além do que esses
investimentos privados permitem que ele exerça seu trabalho nas comunidades,
muito embora, em contrapartida, faça com se ausente da sala de aula. O exemplo
de Pedro espelha de modo geral o contexto de trabalho de grande parte dos
sujeitos pesquisados, em termos de produtividade, caracterizando a sedução e
fascínio vivenciados pelos professores que parecem não conseguir dizer não —
ou pelo menos ter certa dificuldade — às diversas demandas que se apresentam,
mesmo que isso possa prejudicar sua qualidade de vida .
Considerações finais
REFERÊNCIAS
Pagés, Max. et al. (1987). O poder das organizações. São Paulo: Atlas.
Paula, Ana Paula Paes de (2005a). Por uma nova gestão pública: limites e
potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV.