Apoio
SUMÁRIO
2 APRESENTAÇÃO
9 PARTE 1 |
CAPITALISMO, MATERNIDADE, CONTROLE
DA SEXUALIDADE E DO CORPO DAS MULHERES
9 O CAPITALISMO É HETEROPATRIARCAL E RACISTA
11 MATERNIDADE, UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL
16 MODELO DE SEXUALIDADE E CONTROLE DO CORPO
21 PARTE 2 |
DIREITO AO ABORTO: UMA DEFESA FEMINISTA
CONTRA O CONSERVADORISMO
21 NEGAÇÃO DAS MULHERES COMO SUJEITO: O QUE DIZEM
OS ANTI-DIREITOS
24 FEMINISTAS PELA VIDA DAS MULHERES, COM AUTONOMIA
E IGUALDADE
29 PARTE 3 |
OS CAMINHOS DA LUTA PELO DIREITO
AO ABORTO NO BRASIL
30 ANOS 1960 E 1970: RETOMADA DA ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
30 ANOS 1980: AMPLIAÇÃO DO DEBATE FEMINISTA NA SOCIEDADE
33 ANOS 1990: MOVIMENTAÇÕES EM TORNO DO DIREITO
AO ABORTO EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO
36 ANOS 2000: CONTRADIÇÕES E REAÇÃO CONSERVADORA
42 MAIS FEMINISMO NA LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO
47 PARTE 4 |
O ABORTO HOJE: CRIMINALIZAÇÃO,
CLANDESTINIDADE E LUTA
47 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
50 AUTONOMIA EM QUESTÃO: A GEOPOLÍTICA DO ABORTO
52 AS MUDANÇAS NA FORMA DE FAZER ABORTO
58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
APRESENTAÇÃO
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ISIS UTSCH
ELAINE CAMPOS
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HELENA ZELIC
HELENA ZELIC
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AUTONOMIA E IGUALDADE
DIREITO AO ABORTO
HELENA ZELIC
CÍNTIA BARENHO
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ABORTO:
UM ASSUNTO
DE MULHERES
RISCO E ALÍVIO
FRENTE À
GRAVIDEZ INDESEJADA
Todos os dias as mulheres tomam a
decisão sobre levar adiante uma gravidez
ou abortar. Essa decisão acontece no espaço
doméstico ou privado e não é livre de
conflitos e tensões. As mulheres sabem todas
as responsabilidades que ter filhos implica
para elas e essas responsabilidades não são
as mesmas para os homens. As mulheres
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ELAINE CAMPOS
ARQUIVO SOF
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AUTONOMIA E IGUALDADE
PARTE 1 |
CAPITALISMO,
MATERNIDADE
E CONTROLE DA
SEXUALIDADE
O CAPITALISMO É
HETEROPATRIARCAL
E RACISTA
Desde sua origem, o capitalismo se estrutura
interligando diferentes relações de dominação,
como o patriarcado, o racismo, o colonialismo
e a opressão da sexualidade. Esse modelo
expandiu-se e continua a expandir-se para
todos os povos e regiões do mundo usando a
violência como ferramenta para sua imposição.
O capitalismo incorporou o patriarcado
como fundamental na sua estrutura, separando
o trabalho de produção de bens para o
mercado e as tarefas reprodutivas – isto é o
trabalho doméstico e de cuidados. Para isso,
fortaleceu a divisão entre uma esfera pública e
outra privada. A primeira considerada como o
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MATERNIDADE,
ARQUIVO SOF
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DIREITO AO ABORTO
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As práticas e lutas das mulheres a partir Essa luta, histórica e atual, se conecta com a
de suas necessidades e experiências concretas resistência de mulheres brasileiras, mães, negras
também contribuem para alterar a visão e periféricas, cujos filhos são exterminados
hegemônica sobre a maternidade e a família – pela violência policial, pelo racismo e pela
idealizada como nos comerciais de margarina. criminalização da pobreza.
O compartilhamento do cuidado das crianças
entrou com força na agenda política nos anos IDEALIZAÇÃO DA
70 e 80, a partir da organização das mulheres ETERNA CUIDADORA
da classe trabalhadora e de periferias urbanas O mito do amor materno como
na luta por creches. Afirmou-se aí o direito das incondicional e instintivo foi desvendado nos
mulheres ao trabalho e o cuidado como algo anos 1980 pelo livro de Elisabete Badinter. Ela
necessário, que deve ser assumido pelo Estado. mostrou como este mito foi historicamente
Não são todas as mulheres que querem ser construído e como se tornou uma armadilha
mães. E não são todas as mulheres que podem que legitimou a desigualdade sexual.
ser mães, às vezes não por impedimentos Na construção de uma ideologia familista, a
biológicos, mas pela violência estrutural e o condição subalterna da mulher no interior da
terror de Estado. As mulheres que tiveram família foi justificada pela afirmação de uma
seus filhos desaparecidos pelas ditaduras natureza diferente da mulher, determinada
militares, como na Argentina, politizam a pela biologia. Haveria, assim, uma essência
maternidade na luta por memória e justiça. feminina definida pela capacidade de gerar
ELAINE CAMPOS
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DIREITO AO ABORTO
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ELAINE CAMPOS
vida e ser mãe. Nesse mito, a feminilidade A mistificação do amor materno opera
é associada a um suposto gosto natural das fortemente na ideologia familista. Ainda hoje,
mulheres em cuidar e servir. Mais uma vez, essa mulheres que decidem não casar, mulheres
naturalização e essencialização do feminino lésbicas ou mulheres que decidem não ser mães
é um instrumento para justificar e reforçar a enfrentam questionamentos e julgamentos
opressão das mulheres. constantes por fugir à norma.
Esse ideal imposto de “ser mulher”, Mesmo com a diversidade de práticas
marcado pela permanente disponibilidade e de organizações familiares e com as
para a maternidade e/ou para o cuidado, é transformações conquistadas pelas mulheres
reforçado por diversos aparatos, mecanismos na afirmação de seu lugar como sujeitos
e instituições. É notável o papel das novelas autônomos, a reação patriarcal é forte. Ela tem
e séries na consolidação desse imaginário: a como base um discurso ideológico que afirma
maioria das tramas gira em torno de mulheres que as mulheres estão mais infelizes e culpadas
cujas vidas se realizam pelo casamento e se por terem entrado no mundo do trabalho e
desenrolam até a felicidade final, que ocorre não dar conta de dedicar o tempo, o cuidado e
com o anúncio da gravidez, culminado com o o trabalho para suas famílias.
nascimento de um filho, símbolo da felicidade Porém, para as mulheres da classe
e do destino cumprido. O maniqueísmo trabalhadora, a necessidade de trabalhar
patriarcal aparece nesse terreno e divide as longas jornadas para sustentar as famílias e,
personagens mulheres entre boas e más, sendo em consequência, o pouco tempo para ficar
que estas últimas, quando engravidam, o fazem com os filhos não são uma novidade. Isso nos
para “prender os homens”. coloca a necessidade – que também não é
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diferentes conforme o gênero e, cada vez mais O controle dos corpos e da sexualidade das
cedo, pela disseminação de uma indústria da mulheres se dá por mensagens contraditórias: o
pornografia extremamente patriarcal, racista e corpo das mulheres é visto como inadequado,
heteronormativa. objetificado diante de um padrão de
O modelo hegemônico de sexualidade feminilidade valorizado segundo o olhar
também é construído a partir de uma dupla masculino. Por outro lado, o corpo de algumas
moral entre mulheres e homens. Durante mulheres é “santificado” se estiver cumprindo
muito tempo, houve a exigência de virgindade a função da maternidade. Entretanto, essa
para algumas mulheres até o casamento, além visão é extremamente hipócrita e reduzida. Ao
de fidelidade. Já os homens eram (e ainda são) contrário do que é propagado, para o poder
incentivados a terem múltiplas experiências econômico a maternidade não representa
ao longo da vida. Para as mulheres, essa moral algo em especial, tanto é assim que a reforma
impunha outras exigências, separando-as entre trabalhista estendeu a permissão de trabalho
as que seriam para transar ou as que seriam para grávidas em locais insalubres. Além
para casar. disso, uma parte significativa das mulheres,
Hoje vivemos de modo diferente de nossas principalmente as negras, mostra que seus
mães e avós. Dentre outras mudanças, não há corpos não são sequer respeitados no parto (ver
obrigação da castidade para as mulheres como box ao lado).
um código moral imutável e a ausência de
virgindade já não é um tabu que fere a suposta SEXUALIDADE
honra masculina ameaçando a possibilidade SUBORDINADA
do casamento. Mas, ainda que de outra Atualmente, circula um discurso de
maneira, a dupla moral, que separa “meninas liberação da sexualidade, mas o que ocorre é
boas pra casar e boas para transar”, continua que tais liberdades permanecem dentro das
em vigor. normas da sexualidade masculina. O racismo
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DIREITO AO ABORTO
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DIREITO AO ABORTO
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ELAINE CAMPOS
jovens inclusive, usam desse mecanismo
de controle e opressão contra as mulheres,
espalhando imagens e vídeos e expõem a
sexualidade de meninas e mulheres, fenômeno
conhecido atualmente como “revenge porn/
porno-vingança”.
Nesse contexto hostil, de cobranças e
silenciamentos, a imposição da maternidade
pela moral familiar tradicional é uma injustiça
contra as mulheres e não se cobra dos homens.
Cada pessoa pode viver sua sexualidade
de maneira singular, mas quando entra
em choque com o comportamento sexual
regulado, isto é, a normatividade heterossexual
vigente na família, nas religiões e na sociedade
em geral, as punições e julgamentos causam
sofrimento, violência e injustiças.
POLITIZAR A SEXUALIDADE;
AFIRMAR A AUTONOMIA
O pensamento e as práticas patriarcais a submissão da experiência das mulheres
consideram as mulheres como seres passivos ao prazer dos homens, de desconstruir as
e imperfeitos, que não podem regular e normas que restringem e empobrecem suas
organizar com autonomia suas vidas: por isso experiências.
operam na chave do controle do corpo, da Nas relações heterossexuais, exigir dos
sexualidade e da capacidade reprodutiva das homens mais reciprocidade também é um
mulheres. Boa parte das mulheres enfrenta aprendizado na vivência da sexualidade e do
dificuldades de questionar o ideal romântico compartilhamento da responsabilidade sobre
de amor e a maternidade como ápice de a contracepção. Além de um aprendizado,
um relacionamento heterossexual e projeto é uma disputa permanente, uma vez que as
definidor de suas vidas. desigualdades impactam a subjetividade e
A politização da sexualidade com cada relação, em cada momento, coloca novos
a resistência feminista, a afirmação da desafios para essa negociação.
autonomia, da liberdade e do prazer e a A perspectiva da autonomia das mulheres
denúncia das formas implícitas e explícitas e da construção de igualdade nas relações
de violência sexual contribuem para provocar com os homens fortalece a crítica às falsas
mudanças e para fortalecer a capacidade de soluções da indústria farmacêutica, como o
cada pessoa ter autonomia em suas relações. uso de hormônios de diversos tipos que, além
Contribuem também para que se fale mais de fazer mal para a saúde, reforça para as
publicamente sobre a importância de conhecer mulheres a responsabilidade da prevenção da
o corpo e de legitimar os desejos das mulheres, gravidez indesejada e exime os homens
de enfrentar as inseguranças, de questionar dessa carga.
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JOAQUIM DUARTE
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PARTE 2 |
DIREITO AO ABORTO:
UMA DEFESA
FEMINISTA CONTRA O
CONSERVADORISMO
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Congresso Nacional, nas igrejas, na televisão, violência sexual. Existe uma continuidade
na internet e no rádio falando atrocidades entre a desresponsabilização dos homens
sobre o aborto e julgando permanentemente com a concepção e com o trabalho de
as mulheres. Esse julgamento, sabemos, não é cuidado permanente que a produção do
só porque as mulheres abortam, mas por seu viver demanda. As mulheres são, assim, as
comportamento, pelas roupas, sexualidade, tom únicas responsabilizadas por engravidar, e são
de voz, modos de agir, ou seja, por ser mulheres. principalmente elas que têm que lidar com a
Quem atua contra o aborto constrói consequência de uma gravidez – desejada ou
o argumento de que as mulheres não – por toda a vida.
seriam irresponsáveis, tirando qualquer Mesmo entre as gerações mais jovens, a
responsabilidade dos homens na concepção, gravidez e o aborto estão sujeitos a julgamentos
inclusive com discursos permissivos à e culpabilizações, expressos em comentários do
A falta de acesso permanente e estável prática da maioria das mulheres, mas que as
à anticoncepção é um dos fatores falhas podem acontecer.
principais para a gravidez indesejada e O mesmo estudo apontou que a taxa de
o aborto. O padrão de sexualidade e a falha dos métodos é de, em média, 4,7%.
recusa dos homens em usar a camisinha é Esse cálculo foi feito relacionando a
determinante. quantidade de mulheres com gravidez
No Brasil, 86% das mulheres que não desejada e o uso típico dos métodos
procuraram os serviços de saúde pública anticoncepcionais. Alguns métodos têm
foram atendidas em relação ao acesso aos maior taxa de falha do que outros, e isso está
métodos contraceptivos. relacionado com a falha do método em si, e
Fonte: Ministério da Saúde com a falha no uso do método. Por exemplo,
no caso da camisinha masculina, esse pode
Um estudo realizado com mulheres ser o principal método utilizado por um casal,
(entre 15 e 49 anos, casadas ou em união mas pode ser que não o utilizem em 100%
estável), demonstrou que o uso de métodos nas relações sexuais. Assim, o preservativo
contraceptivos é a prática da maioria, mas masculino chega a alcançar 14% de falhas,
ainda não é realidade para grande parte dos que estão relacionadas ao mau uso, além da
casais heterossexuais. falha prevista.
A África é o continente com menor uso
de métodos contraceptivos. Apenas 28 a Método utilizado Taxa estimada de falha
cada 100 mulheres utilizam algum método. DIU – Dispositivo intrauterino 0,8
Na América Latina os dados são semelhantes Pílulas hormonais 5
aos da América do Norte: cerca de 72% das Preservativo masculino 14
mulheres utilizam algum tipo de método Coito Interrompido 19
contraceptivo. Esses números confirmam Esterilização feminina 0,5
Esterilização masculina 0,3
que o uso de métodos contraceptivos é uma Elaboração própria a partir de dados da OMS, 2013.
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mães e quando, pois ele remete à liberdade vivenciar livremente a orientação de seu desejo,
e à autonomia das mulheres como um ser é preciso escapar da heteronormatividade
humano integral. hegemônica, que se impõe a serviço da
A decisão de não levar adiante uma sexualidade viril masculina.
gravidez é fruto do exercício da capacidade A defesa da livre orientação sexual e dos
de julgamento. As mulheres pensam, sentem diferentes modos de relacionamento e de
e sabem que “um filho é algo para a vida realização dos desejos precisa enfatizar a
toda” e, justamente, por isso, entendem sexualidade de modo positivo, situando-a
a complexidade de se tornarem mães e os como fonte de prazer, comunicação,
impactos que essa decisão tem em suas vidas afetividade, satisfação e bem-estar e
em cada momento. posicionando as mulheres como sujeitos
Em que pese a clandestinidade, as de sua própria sexualidade. Em tempos de
mulheres decidem pelo aborto. Mas assegurar ofensiva neoliberal e consumismo exarcebado,
a autonomia é mais do que decidir por si: é a defesa feminista sobre a sexualidade livre
preciso ter garantidas as condições de colocar precisa disputar com valores disseminados pelo
em prática suas decisões. No caso do aborto, mercado, que apresenta muitas armadilhas
isso tem a ver com apoio e informação e com como, por exemplo, a glamourização do
o acesso a meios seguros de interrupção da mercado do sexo.
gravidez. Porém essa não é a realidade da As mulheres negam que sejam definidas
maioria das mulheres trabalhadoras, negras e como apenas um útero a serviço da reprodução
pobres, que têm que se submeter a situações de ou como um corpo disponível e a serviço dos
riscos para realizar sua decisão. homens. A sexualidade deve estar vinculada
Nossa defesa da autonomia, portanto, só ao prazer e a maternidade deve ser um ato
se viabiliza com igualdade e justiça social. Por consciente, livre e intencional, resultado do
isso, além de reivindicar que o aborto deixe desejo das mulheres.
de ser crime, exigimos que ele seja legalizado,
garantido pelo Estado como um direito, com ABORTO, DIREITO
INALIENÁVEL
atendimento no serviço público de saúde, sem
pressões. O direito à liberdade e à autonomia das
mulheres em decidir se querem ou não se
DIREITO AO SEXO tornar mães, e em que momento, se contrapõe
POR PRAZER
ELAINE CAMPOS
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CAROL CALEF
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
expropriadas do conhecimento que detinham devem interferir: “Nós que parimos, nós
sobre os processos vitais para criar ou que decidimos” e os irônicos slogans: “Se
não vida nova, o que lhes conferia poder o Papa fosse mulher, o aborto seria legal e
enorme como sujeitos que decidem. Com seguro” ou “Cadê o homem que engravidou?
isso, de sujeitos autônomos nesse aspecto, Por que o crime é da mulher que abortou?”.
no capitalismo racista e heteropatriarcal, as Enfim, firmou-se o entendimento de que
mulheres foram transformadas em sujeitos sexualidade não é sinônimo de reprodução
dependentes, a quem se concedem direitos ou e que a decisão sobre a maternidade diz
não. Essa expropriação é visível, por exemplo, respeito somente às mulheres.
na perseguição às parteiras e doulas e na O feminismo recusa a tutela das instituições
consolidação do poder médico sobre o parto. capitalistas, patriarcais e racistas, afirmando
Também aparece nas restrições à aplicação que os discursos dos médicos, dos legisladores e
dos conhecimentos tradicionais sobre as dos juízes não deve se impor sobre a liberdade
propriedades de plantas medicinais. e a autonomia das mulheres.
Em oposição à maternidade como um
MOVIMENTO E imperativo divino que marcaria a natureza ou
AUTO-ORGANIZAÇÃO a condição das mulheres, as lutas feministas
PARA MUDAR pelo direito ao aborto, pela sexualidade livre
A VIDA DAS MULHERES e pela superação da divisão sexual do trabalho
Diante de todas essas questões, a participação contribuem para que a maternidade ganhe
em grupos e nos movimentos cria solidariedade outro sentido: a de uma decisão que é parte dos
entre as mulheres e permite viabilizar espaços projetos de vida das mulheres. Isso se articula
coletivos de liberdade e de construção de com as reivindicações de apoio à reprodução,
autonomia das mulheres para decidir sem culpa de compartilhamento dos cuidados, do direito
sobre ter ou não ter filhos. Principalmente, à creche, à redução da jornada de trabalho com
possibilita compreender que o aborto precisa ser salários dignos e com a participação dos homens
visto como um direito, livre das imposições das em todas as tarefas domésticas e de cuidados que
religiões e das pressões de todos os tipos para envolvem a criação dos filhos em uma relação
que efetivamente a decisão seja autônoma. heterossexual, assim como com a legitimidade
Um espaço coletivo de discussão e reflexão da maternidade fora desse tipo de relação.
sobre o aborto entre as mulheres é crucial
para que nos tornemos sujeito coletivo dessa
ELAINE CAMPOS
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ELAINE CAMPOS
ELAINE CAMPOS
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DIREITO AO ABORTO
ANDERSON BARBOSA
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OS CAMINHOS DA
LUTA PELO DIREITO
AO ABORTO NO
BRASIL
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
DINÂMICAS DO MOVIMENTO
FEMINISTA E O ABORTO
NA CONSTITUINTE DE 1988
Ao olhar para as dinâmicas do feminismo
sexualidade, contracepção e aborto, organizado brasileiro nos anos 1980, percebe-se uma
pela Casa da Mulher do Rio de Janeiro, pelo fragmentação temática e organizativa. Uma
Ceres, coletivo de mulheres do Rio de Janeiro, parte do movimento - com pouca relação
projeto mulher IDAC e Mulherando. Cerca com as organizações de esquerda - apostou
de 300 militantes de 57 grupos de mulheres de na estruturação de grupos de prestação
quase todo o país participaram desse encontro, de serviços (posteriormente identificados
que definiu o dia 28 de setembro como Dia como ONGs), que se articularam em redes
Nacional pelo Direito ao Aborto. temáticas. Por outro lado, também haviam
A questão do aborto aparecia também organizações amplas de mulheres nos bairros e
em espaços da esquerda, como no jornal na construção das lutas da classe trabalhadora.
Em tempo, que publicou diversas notícias e Essa fragmentação do movimento foi maior
artigos sobre o aborto, denunciando os efeitos a partir de 1983, com a entrada do PMDB –
da proibição na vida das mulheres pobres, Partido do Movimento Democrático Brasileiro
questionando propostas de planejamento - em vários governos estaduais. A partir daí
familiar que feriam a autonomia das mulheres, se deu a criação dos Conselhos da Condição
repercutindo campanhas internacionais e Feminina ou dos Direitos das Mulheres como
nacionais e defendendo o direito ao aborto, estruturas políticas para atuação nos governos,
como recupera Maria Fernanda Marcelino sendo o primeiro criado em São Paulo,
(2013) em uma análise sobre as publicações em 1983. A criação dos conselhos marcou
deste jornal entre 1975 e 1988. uma divisão de estratégias, um campo de
Também é possível verificar que o tema do disputa e polêmica no movimento feminista.
aborto ganhava mais espaço na sociedade com Alguns setores passaram a atuar a partir da
a repercussão do debate em grandes meios articulação com os governos e a estruturação
de comunicação. São algumas referências a dos Conselhos. No contexto de fragilidade
entrevista de Elis Regina para a RBS, em 1981, organizativa, o CNDM - Conselho Nacional
na qual defende o direito das mulheres ao dos Direitos da Mulher - criado em 1986,
aborto questionando a hipocrisia e o cinismo se colocou como o articulador da agenda do
da sociedade, que não deixava a população movimento para o processo da Assembleia
participar nem opinar sobre nada, muito Constituinte. As formas de participação neste
31
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ELAINE CAMPOS
delegação, e sim por relações de proximidade e
convites.
Portanto, não se gestou um processo de
organização e coordenação autônomo do
movimento. Particularmente sobre o aborto,
a decisão inicial do CNDM foi de que não
colocaria o tema em debate, argumentando
que isso levaria a uma forte reação dos
conservadores e da direita. Porém, isso não
impediu que deputados tentassem incluir na
carta a proteção à vida “desde sua concepção”
– o que criminalizaria o aborto em todas as
situações, mesmo nas exceções já existentes Foi um período de crescimento do debate
no Código Penal. A aprovação desse texto na em particular no campo dos movimentos
subcomissão da Família acendeu um alerta no populares e sindicais. Entre os exemplos
movimento feminista, que buscou se contrapor relevantes está o processo organizado pelas
apresentando uma emenda popular – possível mulheres da Central Única dos Trabalhadores
com o recolhimento de pelo menos 30 mil (CUT), que organizou um amplo debate
assinaturas – para que o direito à vida fosse culminando com a aprovação da bandeira de
assegurado a partir do nascimento. Esse foi um descriminalização e legalização do aborto no 4º
momento de ir às ruas, definir ações para essa Congresso, realizado em setembro de 1991. Já
coleta, que envolveu centenas de mulheres. as mulheres do Partido dos Trabalhadores (PT)
O resultado foi que as mulheres conseguiram priorizam esse tema nos anos 1992 e 1993,
reverter essa proposta e aprovar o direito à na preparação para o debate de programa
vida desde o nascimento, que figura até hoje de governo para as eleições presidenciais em
na Constituição Federal – embora os setores 1994. No campo das ONGs, em 1991, foi
contrários ao aborto continuem tentando criada a Rede Nacional Feminista de Saúde
emplacar a figura do direito do nascituro. e Direitos Reprodutivos e Sexuais. Ainda
para citar exemplos dessa ampliação, em
AMPLIAÇÃO DO DEBATE 1993 a recém-criada Central de Movimentos
PELA LEGALIZAÇÃO Populares também incorpora o direito
DO ABORTO ao aborto como parte de sua plataforma.
Em 1988, a Rede Mundial de Direitos Estes exemplos mostram como o tema do
Reprodutivos e pela Saúde da Mulher lança a aborto foi ampliando para além dos grupos
campanha pela redução da morbi-mortalidade estritamente considerados feministas, em uma
materna criando o dia 28 de maio como um demonstração de que, no Brasil, o feminismo
dia internacional de luta, contribuindo para se constroi também nos movimentos
a disseminação do debate sobre as causas da populares.
mortalidade materna no mundo. No Brasil, isso Um marco para o debate sobre o aborto
favoreceu a discussão ampla do aborto como aconteceu durante o governo de Luiza
uma das principais causas de morte materna. Erundina, eleita prefeita da cidade de São
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
Paulo pelo PT entre 1989 e 1993. Nessa época, públicos os casos de aborto já previstos em lei
foi criado o primeiro serviço de aborto legal (Rocha, 2008). O texto, incorporado às outras
no país, precedido de debates e mobilização proposições em análise e com um substitutivo
popular para dar sustentação a essa proposta. da deputada Jandira Feghali (PCdoB), gerou
Direcionado à mulheres com gestação de risco um intenso debate na Câmara dos Deputados
ou vítimas de estupro, casos de aborto previstos e uma forte reação da bancada religiosa, que
em lei, o programa Aborto Legal dispensava a acabou travando a sua tramitação.
necessidade de autorização judicial – ainda que No movimento feminista, a discussão
exigisse apresentação de Boletim de Ocorrência colocada era em torno ao debate sobre
e laudo do Instituto Médico Legal (IML). descriminalizar ou legalizar o aborto. O
boletim Mulher e Saúde, da SOF, edição
ANOS 1990: MOVIMENTAÇÕES de maio 1993, nº 1, apresentou a seguinte
EM TORNO DO DIREITO AO argumentação: “nos espaços mais amplos do
ABORTO EM TEMPOS DE movimento, descriminalização e legalização
NEOLIBERALISMO têm sido entendidas como dois aspectos
Apesar do amplo processo desenvolvido nos complementares. Isso acontece porque o
anos 80, não se gestou um espaço comum, uma movimento não discute a partir do aspecto
campanha, onde todas essas vozes pudessem jurídico, mas sim a partir do direito ao aborto
tomar as decisões sobre as estratégias da luta e da garantia do acesso ao aborto gratuito e
pelo direito ao aborto. No Congresso Nacional, seguro.” Nesse sentido, setores principalmente
a Rede Saúde e o CFEMEA – Centro Feminista ligados à CUT e aos movimentos populares
de Estudos e Assessoria - eram as principais defendiam que o importante era a
interlocutoras para acompanhar os projetos de obrigatoriedade de que o Estado garantisse
lei relacionados ao aborto. Foram vários anos de o aborto na rede pública, entendendo que
debate sobre qual deveria ser o encaminhamento poderia fazer parte de uma legislação como da
em torno dos projetos. saúde, por exemplo, e não necessariamente do
No campo dos partidos, as mulheres do PT Código Penal.
atuaram para que, em 1989, o então deputado Já em meados de 1990, alguns
federal Jose Genoino Neto apresentasse ao grupos feministas fortaleceram outra
Congresso Nacional um Projeto de Lei com posição, defendendo que propor apenas a
seis artigos declarando a livre opção da mulher descriminalização facilitaria a aprovação de
de ter ou não filhos; o direito de interromper um projeto de lei. E, finalmente, depois da
a gravidez nos primeiros 90 dias de gestação; Conferência do Cairo (1994), a Rede Saúde
o direito a que esta interrupção fosse realizada e outros setores propuseram um projeto que
na rede pública hospitalar em seus diversos apenas regulamentava os casos previstos em lei.
níveis (federal, estadual e municipal). No E foi esse o projeto que tramitou na Câmara.
início da década de 90, havia 23 projetos A definição dessa estratégia não incorporou
de lei sobre o aborto, sendo que a maioria o conjunto do movimento de mulheres na
tratava da ampliação do direito e o projeto análise política e na tomada de decisão. Se
20/91 apresentado por Eduardo Jorge e isso tivesse ocorrido teriam a possibilidade
Sandra Starling, deputado e deputada federal de analisar qual o melhor caminho para
pelo PT, tratava de regulamentar nos serviços regulamentar o aborto nos serviços de saúde,
33
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
algo já previsto no Código Penal e com um descartado. Ao mesmo tempo, outros setores
histórico de implementação de serviço de do movimento que não foram considerados
aborto legal desde 1989 no hospital Jabaquara, para a tomada de decisões também não tiveram
em São Paulo, respaldado pela Portaria capacidade de impor outra dinâmica.
Municipal nº 692/89 de 24/04/89. Aos É talvez nesse tema do aborto que tenha
poucos, outros hospitais, em outras cidades, ficado mais visível a hierarquia não explicitada
foram implantando o serviço de aborto no campo do feminismo entre as chamadas
nos casos previstos em lei, demonstrando “feministas” e o “movimento de mulheres”.
a necessidade de vontade política do poder Está subjacente e subliminar nessa visão
executivo. um modo de tratar o feminismo como se
Em 1995, o então deputado Severino uma parte fosse mais feminista que a outra,
Cavalcante apresentou uma Proposta de composta por mulheres em geral do campo
Emenda Constitucional (PEC) que propunha popular (Faria, 2005). No fim das contas, essa
alterar a Constituição para defesa da vida hierarquia legitimou um setor do movimento
desde a concepção, buscando assim inviabilizar para definir questões cruciais sem a necessidade
qualquer proposta de descriminalização do de processos amplos que congregassem todas as
aborto. Essa proposta foi um dos primeiros envolvidas nessa luta pelo direito ao aborto.
sinais de uma forma mais ativa de atuação de O foco no projeto que regulamentava o
grupos religiosos contrários ao aborto, que se aborto legal no serviço público tinha como
deu de forma semelhante em diversos países argumento construir a descriminalização
da América Latina. Após a derrota dessa PEC, por etapas. No entanto, a regulamentação
em 1996, setores do movimento voltam a se poderia ter percorrido outros caminhos. E
articular em torno do que foi chamado aborto de fato o que ocorreu foi que o Conselho
legal. Essa posição foi tão hegemônica que, Nacional de Saúde aprovou a resolução nº258
naquele momento, era quase impossível se de 06/11/1997 que “Solicita ao Ministério
posicionar pela descriminalização do aborto. da Saúde que proceda à normatização da
É preciso lembrar que, nos anos 1990 regulamentação do atendimento nos casos de
o neoliberalismo se tornou hegemônico, aborto legal pelo SUS”. Assim, em novembro
e a aplicação das receitas do Consenso de 1998, o Ministério da Saúde, então sob o
de Washington indicavam a redução dos comando de José Serra, implantou a Norma
investimentos sociais e mais presença do Técnica Prevenção e tratamento aos agravos
mercado em áreas fundamentais para a vida. resultantes da violência sexual contra mulheres
e adolescentes1.
LOBBY OU Há portanto um balanço crítico sobre a
LUTA DE MASSAS? tática que prevaleceu no feminismo, ou seja,
Ainda é necessário realizar um balanço de reduzir o projeto de lei da legalização para
sobre as posições tomadas pelo feminismo que a regulamentação, que não necessitava de uma
influíram no rumo do debate da questão do legislação específica, bastando regulamentação
aborto no Brasil. Na prática, o que prevaleceu
1. Em 2005, o Ministério da Saúde elaborou uma nova norma técnica de
nos anos 1990 foi priorizar o lobby no atenção humanizada ao abortamento que, para além do aborto previsto
em lei, orienta profissionais de saúde para o atendimento humanizado
Congresso e nos meios de comunicação. Com nos casos de entrada nos hospitais com auto aborto incompleto. Esta
norma técnica também dispensa a obrigatoriedade do boletim de
essa estratégia, o potencial de mobilização foi ocorrência para o atendimento da mulher vítima de violência.
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AUTONOMIA E IGUALDADE
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AUTONOMIA E IGUALDADE
ARQUIVO SOF
de Deus e Sara nossa Terra. A análise da
composição e movimentação dessas Frentes e
da proposição de projetos nas comissões e por
meio de discursos em plenário demonstra que
a liderança dos anti-direitos não se restringe
aos parlamentares evangélicos, nem a partidos
específicos (Biroli et al, 2017).
Exemplos dessa reorganização e ofensiva
contra os direitos das mulheres são as
proposições como o Estatuto do Nascituro
(PL 478/2007), que conferia proteção
jurídica aos não-nascidos, e o projeto que
ficou conhecido como Bolsa Estupro (PL
1763/2007), que previa ajuda financeira sofreram intervenção policial nas cidades
para mulheres que não desistissem de uma de Porto Alegre, Belém, Rio de Janeiro,
gravidez fruto da violação. Anos mais tarde os Fortaleza, entre outras.
dois projetos foram fundidos. Tentativas de criminalizar as ativistas
Mas essa ofensiva se deu para além dos também acompanharam essa ofensiva.
muros do Congresso Nacional e dos cultos. Manifestações da defesa do direito ao aborto
A propaganda antiaborto é intensificada em lambe-lambes espalhados pelas cidades
em outdoors espalhados em várias capitais foram consideradas “apologia ao crime” no
brasileiras. A ofensiva de criminalização Mato Grosso do Sul. Felizmente os inquéritos
começou a ganhar forma, com fechamentos de não foram adiante. O direito de questionar
a criminalização do aborto faz parte da
clínicas que praticavam aborto, em operações
possibilidade de crítica do dispositivo que
policiais sempre acompanhadas de câmeras
controla o direito fundamental à autonomia e
de jornais dos grandes conglomerados de
à dignidade das mulheres. Categorizar esse tipo
comunicação, como a Rede Globo.
de manifestação como crime fere a liberdade de
Foi assim em abril de 2007, quando o
expressão e o direito à informação, necessários
Ministério Público do Mato Grosso do Sul
para o funcionamento da democracia.
fechou um estabelecimento clandestino e
tornou pública uma lista com 10 mil nomes
COMBINAÇÃO DE
de pacientes que abortaram. Dessas, mais de ESTRATÉGIAS FEMINISTAS
1.000 mulheres foram indiciadas e algumas Ao longo dos anos 2000, foram muitas
foram condenadas, tendo que cumprir penas iniciativas e estratégias do movimento
como prestação de serviços comunitários feminista para intensificar o debate sobre a
em creches e escolas2. As profissionais que legalização do aborto.
trabalhavam naquela clínica foram condenadas Na Marcha Mundial das Mulheres, desde
pelo júri popular. Esse tipo de ação tornou- 2004, os dizeres “Eu aborto, tu abortas,
se cada vez mais comum e várias clínicas somos todas clandestinas” e “Essa hipocrisia
2. https://apublica.org/2013/09/milhares-de-mulheres-expostas/ dá hemorragia! Legalizar o aborto, direito
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
HELENAZELIC
intervenções urbanas em diferentes lugares
no Brasil. A batucada acompanha com as
músicas e palavras de ordem “Legalize! O
corpo é nosso! É nossa escolha! É pela vida das
mulheres”.
O objetivo desse tipo de ação é colocar
o debate sobre o aborto diretamente
na sociedade. O diálogo acontece em
ações nas redes e nas ruas, panfletagens e
manifestações a cada 28 de setembro – Dia
ARQUIVO SOF
de Luta pela Descriminalização do Aborto.
Em muitos estados, já em 2005 a MMM
impulsionou a criação de comitês pela
legalização do aborto com a participação
do movimento feminista, do movimento
estudantil, de mulheres da CUT, de
partidos políticos de esquerda e conselhos
de profissionais como o de Serviço Social
(CRESS) e o de Medicina (CRM-SP).
ARQUIVO SOF
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
do aborto como grave questão de saúde foi a visão de campanha que prevaleceu. No
pública e na necessidade de humanização do segundo turno, no acirramento da disputa,
atendimento ao aborto. a campanha do PT se deixou encurralar
pelas chantagens dos setores religiosos,
A FORÇA DA particularmente de setores das igrejas
REAÇÃO CONSERVADORA: católicas e evangélicas (Biroli et al, 2017).
O ABORTO NAS ELEIÇÕES Caindo na armadilha de tentar dar garantias
PRESIDENCIAIS
a esses setores, apresentou um documento
Um forte sinal da força dos setores
considerado inaceitável pelas feministas e por
conservadores se verifica na forma como
vários setores progressistas. A confusão entre
a questão do aborto apareceu nas eleições
religião e política foi reforçada nessas eleições
presidenciais, especialmente nos anos em
e significou cada vez mais uma afronta à
que Dilma Rousseff foi candidata e eleita
laicidade do Estado (Faria, 2011).
(em 2010 e 2014). A chantagem foi uma
das marcas da atuação dos movimentos anti-
CONSOLIDAÇÃO DA
direitos e reforçou a misoginia que marcou
BANCADA CONSERVADORA
essas eleições.
Fortalecida com as chantagens eleitorais
Em 2010, a candidata Dilma Rousseff
e para a composição da coalizão para formar
sofreu diversos ataques em relação ao seu
posicionamento pró-legalização do aborto. a base “aliada” do governo, a ofensiva
A grande mídia, que já vinha atuando da direita conservadora patriarcal no
na criminalização das mulheres e das Congresso ampliou sua ação, ainda mais
clínicas, reforçou mais uma vez a agenda agressiva à autonomia das mulheres. O
do conservadorismo, buscando enfraquecer PL 5069/13, de Eduardo Cunha, visava
essa candidatura. A rejeição à legalização obstruir o atendimento às vítimas de
do aborto era a maior em quase 20 anos: estupro e dificultar o acesso à contracepção
segundo a pesquisa Datafolha, 71% da de emergência. Já a PEC 181/2015,
população acreditava que a legislação sobre conhecida como PEC Cavalo de Troia, ao
aborto deveria ficar como estava e apenas 7% propor a ampliação dos direitos de licença-
defendiam a descriminalização. Em 1994 esse maternidade para as mães de nascidos
número era 34%, sendo que 19% defendiam prematuros, também inseria o direito à vida
a descriminalização em qualquer caso. Já em desde a concepção no texto constitucional –
2006, o índice relativo à conservação da lei o que os setores conservadores tentam fazer
era de 63%, sendo que 11% defendiam a desde a constituinte.
descriminalização.4
Esse momento poderia ter sido usado para ESTRATÉGIAS JUDICIAIS
fazer uma disputa de valores e denunciar o OU JUDICIALIZAÇÃO
conservadorismo na sociedade, mas essa não DA POLÍTICA?
Enquanto isso, em 2012, o Supremo
4. Fontes: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/8/28/cotidiano/2.html Tribunal Federal (STF) autorizou a
http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/1226779-posicao-
politica-opiniao-sobre-o-aborto-pena-de-morte-descriminalizacao- interrupção da gestação no caso de fetos
da-maconha-e-maioridade-penal-47-dos-eleitores-brasileiros-se-
posicionam-a-direita.shtml
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ARQUIVO MMM
apresentada em 2004, pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Saúde. A
decisão ocorreu em meio a muito debate e
muita pressão de grupos religiosos. O voto
do relator, Marco Aurélio Mello, destacou
que o direito à vida de um feto sem chances
de sobreviver não poderia se sobrepor à
dignidade e à autonomia da mulher.
Em 2016, o Habeas Corpus 124.306 do
STF entendeu que a consideração do aborto
como um crime (conforme estabelecido
nos artigos 124 a 126 do Código Penal)
é incompatível com os direitos sexuais e
reprodutivos, a autonomia e a integridade
física e psíquica da mulher.
Com base nessa decisão, em 2017, o
PSOL, em parceria com a Anis - Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero,
propôs a ADPF 442, que requer a
descriminalização do aborto até a 12ª
semana.
A ADPF 442 argumenta que o fato
de o aborto ser um crime viola direitos
fundamentais previstos na Constituição,
como o direito à dignidade, à cidadania e
à vida. Assim, demanda que o Supremo
a essa proposição. Não existe um prazo para
Tribunal Federal analise o caso levando
a tramitação dessa Ação, pois a pauta do
em conta que o Código Penal é anterior à
STF depende diretamente da vontade de seu
Constituição de 1988. Uma das funções da
presidente. Em um contexto de avanço do
suprema corte é fazer a revisão constitucional
conservadorismo patriarcal, que atinge todas
de práticas legislativas que ferem os direitos
as estruturas do poder, inclusive o judiciário,
fundamentais. Assim, o Tribunal criaria um
é improvável que a descriminalização do
precedente para impedir a aplicação dos
aborto seja pautada. Além disso, ainda que
artigos 124 e 126 do Código Penal, relativos
a aprovação da ADPF seja um importante
ao autoaborto e ao aborto em terceiros,
passo para a descriminalização do aborto no
respectivamente. Em agosto de 2018, o
Brasil, a sua aprovação por si só seria incapaz
STF realizou uma audiência pública para
de garantir que o conjunto das mulheres –
ouvir os argumentos contrários e favoráveis
especialmente as mulheres pobres e negras,
5. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental defendeu que são as que mais recorrem ao aborto
que a gestação de feto anencefálo é perigosa à saúde da gestante e,
portanto,o aborto nesse caso se enquadra nas hipóteses legais clandestino – pudessem acessar esse direito.
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AUTONOMIA E IGUALDADE
ELAINE CAMPOS
PELA LEGALIZAÇÃO DO
ABORTO
É fato que a reação conservadora patriarcal
tem crescido e atinge proporções não
conhecidas anteriormente. Ao mesmo tempo,
o feminismo se amplia a partir de dinâmicas
já existentes e com muita força de mulheres
jovens e estudantes, conectadas e ativas na
internet.
Desde 2013, o feminismo tem ocupado as
ruas para barrar propostas conservadoras em
relação ao aborto. Convocada nas redes sociais
e construída junto com os movimentos sociais
organizados, uma mobilização contrária
ao Estatuto do Nascituro juntou mais de 3
mil mulheres na Praça da Sé em junho de
2013, inaugurando um novo momento de
convergência de movimentos para a luta pelo
direito à autonomia de nossos corpos.
Em novembro de 2015, milhares de
mulheres protestaram contra o PL 5069 de
Eduardo Cunha, que restringe o acesso ao
aborto mesmo nos casos previstos em lei. Com
cartazes e palavras de ordem que não apenas
rejeitavam o projeto de lei, mas reivindicavam
a legalização do aborto e a saída de Cunha da
presidência do Congresso, as feministas foram
protagonistas no desgaste do parlamentar e na
ANDERSON BARBOSA
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
da “escola sem partido”, que se constitui, na populares é limitada. Além de não garantir
verdade, como uma lei da mordaça contra o a correlação de forças necessária para sua
livre debate e o pensamento crítico, criam um legalização, essa estratégia não garante que o
caldo de cultura desfavorável à ampliação de direito ao aborto – uma vez legalizado – seja
direitos, especialmente os das mulheres. de fato implementado no serviço público de
A luta pelo direito ao aborto legal, seguro e saúde e que se alterem as representações sociais
gratuito se torna mais desafiadora, mas não por misóginas sobre ele.
isso menos urgente. A maré verde que tomou A questão do aborto precisa ser mais
conta da Argentina, com a aprovação da politizada e não pode ser reduzida a uma
legalização do aborto pelo Congresso argentino experiência individual, como se fosse
no primeiro semestre de 2018, nos influencia. desvinculada de processos coletivos e sociais.
Mesmo que a votação do senado argentino Mais do que a afirmação de discursos
tenha barrado o projeto, a mobilização feministas como “meu corpo, eu que decido”,
massiva, forte e intensa de milhares de compreendemos a necessidade de se reforçar
mulheres colocou essa reivindicação em outro processos amplos de formação e educação
patamar, e esta não é uma luta que acaba na popular. Estes devem se pautar a partir do
votação de um projeto de lei, muito menos feminismo, da afirmação da justiça e da
com uma eleição. autonomia das mulheres, do reconhecimento
das relações de poder e do enfrentamento às
MOBILIZAÇÃO DE MASSA: contradições vivenciadas pelas mulheres no
MUITO ALÉM DO LOBBY cotidiano das batalhas para que o corpo/vida
Olhar para a história e construir um sejam de fato seus.
balanço crítico significa reconhecer os acertos A luta pelo direito ao aborto em tempos
e também os limites e/ou equívocos das de golpe e de autoritarismo legitimado pelas
estratégias utilizadas na luta pelo direito ao eleições mais uma vez coloca o desafio de
aborto. articular o direito ao aborto com a disputa
Ao contrário da visão que foi hegemônica mais geral em curso na sociedade, sobretudo
no feminismo em um período, especialmente em defesa da democracia. Em alguma medida,
na atuação no Congresso Nacional, afirmamos as conexões entre a agenda feminista e o
que não é possível aprovar o direito ao aborto conjunto da luta social são mais evidentes hoje,
com estratégias que prescindem da força das já que o acirramento dos discursos e práticas
mulheres trabalhadoras e dos setores populares. reacionárias têm bases explicitamente racistas
No campo do feminismo construído pela e patriarcais. A solidariedade dos movimentos
Marcha Mundial das Mulheres, o desafio sociais e organizações de esquerda com as lutas
é manter uma estratégia permanente feministas e antirracistas precisa se traduzir em
que combina a centralidade da defesa da compromisso e ações concretas.
autonomia das mulheres com a ampla O desafio é manter um patamar de
mobilização da sociedade. lutas permanente, que transpasse as ondas
A busca por ampliar o direito ao aborto e mobilizadoras, que se popularize e se amplie
alcançar sua legalização por meio de recursos para mais setores e que, assim, consiga garantir
legislativos e jurídicos sem que haja um debate às mulheres a autonomia em relação a seus
intenso desde as mulheres dos movimentos corpos e suas vidas.
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PARTE 4 |
O ABORTO HOJE:
CRIMINALIZAÇÃO,
CLANDESTINIDADE
E LUTA
A CRIMINALIZAÇÃO DO
ABORTO NO BRASIL
No Brasil, a prática do aborto só é permitida
quando a gravidez coloca riscos para a vida da
mulher, quando é fruto de violência sexual e
quando há formação de fetos anencéfalos. A
pena para a mulher que aborta em situações
diferentes dessas é de um a três anos de reclusão.
Para quem pratica um aborto em outra pessoa
com o seu consentimento, essa pena pode variar
de um a quatro anos de reclusão.
Durante muito tempo, apesar de estar
disposto no Código Penal, era muito raro que
uma mulher fosse de fato criminalizada por
fazer um aborto. As consequências do aborto
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AUTONOMIA EM QUESTÃO:
Nos Estados Unidos o aborto foi
A GEOPOLÍTICA DO ABORTO
descriminalizado em 1973 pela Corte
Uma pesquisa realizada pelo
Constitucional sob o argumento de se
Instituto Guttmacher, organização tratar de uma questão individual, de
norte-americana parceira da direito à privacidade. Isso não garantiu
Universidade de Columbia e da que as mulheres pudessem acessar o direito
IPPF (Federação Internacional de à autonomia sobre seus corpos. Dois
Planejamento Familiar) indicou que anos depois, em 1975, a mesma Corte
a taxa anual de aborto nos países norte-americana, pela pressão da reação
do norte (ditos desenvolvidos), conservadora, determinou que, por se tratar
de um direito individual, o Estado não tinha
onde a prática é legalizada, caiu
nenhuma responsabilidade sobre o assunto.
significativamente em 20 anos – de 46
Portanto, recursos públicos não poderiam
para 27 abortos em cada mil mulheres ser utilizados para realizar procedimentos de
na idade reprodutiva. Já em países do aborto. Assim, apesar de o aborto não ser um
sul global (ditos subdesenvolvidos) crime há mais de 45 anos, no país onde a
a taxa, mesmo que tenha diminuído, saúde é uma mercadoria as mulheres de baixa
apresentou certa estabilidade, renda ainda encontram muitas barreiras ao
passando de 39 para 36 mulheres a tentar interromper uma gravidez indesejada.
cada mil. Na França, o processo de
O estudo comparou os dados de descriminalização do aborto contou com
muitas frentes de atuação, em uma ampla
1990 a 1994 e de 2010 a 2014. A maior
mobilização conduzida pelas feministas.
taxa de declínio ocorreu na Europa
Em 1971, circulou um manifesto em
Oriental, devido à intensificação do que 343 mulheres conhecidas, dentre elas
uso efetivo de contraceptivos. O Simone de Beauvoir e Catherine Deneuve,
centro asiático foi outro local onde as declararam já ter feito aborto. Em 1973,
taxas caíram significativamente. um processo jurídico na cidade de Bobigny
Segundo a Organização Mundial envolvendo uma jovem de 16 anos
da Saúde, a África é o continente violentada sexualmente ganhou visibilidade
onde as mulheres menos abortam nacional. Em 1975, a Assembleia Nacional
descriminalizou o aborto. Desde 1982,
proporcionalmente e onde elas
o sistema de saúde francês reembolsa as
mais morrem com a prática. O
cidadãs do país que desejam interromper a
continente africano representa 27% gravidez.
dos nascimentos anuais e 14% das Em Moçambique o aborto não é crime,
mulheres em idade fértil (15 a 49 anos) mas especialmente nas áreas rurais as
no mundo são africanas. Porém, 62% mulheres continuam a recorrer ao aborto
das mortes em decorrência de aborto inseguro, porque não há uma política de
inseguro acontecem nessa região. saúde que assegure esse direito.
Na África do Sul, desde 1996, o
aborto é legalizado e pode ser realizado em
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Fonte da informação: Word Abortion Laws – Center for Reproductive Rights (2018).
Mapa recriado a partir de sistematização da Revista Época.
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Brasil, há clínicas de aborto bem equipadas, A curetagem pós aborto tem sido
com procedimentos higiênicos e cuidados o procedimento mais realizado em
pós-abortamento. Mas também há clínicas hospitais públicos (Menezes e Aquino,
precárias e aplicação de sondas com pouca 2009). O Ministério da Saúde procurou
higiene. O acesso aos tipos de clínica é melhorar o atendimento às mulheres
marcado pela renda e pela raça. em processo de abortamento em
aborto medicamentoso, feito com o 2005, com a Norma Técnica de
uso de comprimidos pode ser realizado com Atenção Humanizada ao Abortamento,
o Misoprostol ou com a combinação das
enfatizando a capacidade de escuta
substâncias Misoprostol e Mifepristona.
das mulheres sem pré-julgamentos,
Mas esses não são os únicos métodos.
com procedimentos básicos
Entre as mulheres rurais circulam receitas de
chás e muitos conhecimentos acumulados de acolhimento. Tal medida foi
sobre o aborto. importante diante de casos de falta
O misoprostol é popularmente conhecido de privacidade, pressões para que
como Cytotec, nome de mercado do mulheres admitissem ter induzido
medicamento vendido pela companhia o aborto e maus tratos e denúncias
farmacêutica Pfizer. Esse medicamento foi dos profissionais de saúde, levando
produzido e comercializado inicialmente para as mulheres a serem processadas. As
tratar úlceras no estômago, e como efeito
mulheres que precisam fazer aborto
colateral, provoca contrações uterinas. A
clandestino correm três riscos no
descoberta do efeito abortivo desse remédio
foi feita pelas mulheres e por farmacêuticos Brasil: o risco de ser processada e
dos bairros durante os anos 80. A difusão considerada criminosa, o risco de
de seu uso, substituindo as sondas, chás ou perder a vida e o risco de ficar com
objetos pontiagudos, resultou na redução sequelas, como o de ficar estéril.
do número de internações por complicações
de abortamento (DINIZ, 2008) . O Brasil
foi o primeiro país do mundo a restringir a
circulação de misoprostol, em 1998, e proibiu dilatação do colo do útero. A mifepristona não
totalmente a sua comercialização em 2005. é fabricada no Brasil.
Atualmente, apenas o laboratório Ebron, Para conseguir esses medicamentos no
localizado em Caruaru (Pernambuco), produz Brasil, as mulheres enfrentam as dinâmicas
e comercializa essa substância para o Sistema de um mercado clandestino, o que impõe
Público de Saúde, para a realização do aborto vulnerabilidades, como o risco da adulteração
legal e indução de partos. do produto, além de preços muitas vezes
A mifepristona é um bloqueador de inacessíveis para a maioria.
progesterona, hormônio produzido durante Pesquisas indicam que o uso do misoprostol
a gravidez que impede a expulsão do tem levado a uma maior frequência de
endométrio. Ela é utilizada para facilitar o abortos completos e menores índices de
procedimento abortivo com medicamentos, hemorragias e infecções, embora ainda haja
auxiliando, entre outras propriedades, na incidência significativa de internações por
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
abortamentos incompletos. Isso porque quanto desigualdade é enorme, é importante que essas
menos recursos, mais as mulheres podem redes não sejam um fim em si mesmo, mas
ser vítimas de aquisição de medicamentos que reforcem à luta pelo direito ao aborto,
falsos e usar o medicamento de forma como acontece na Argentina. Isso porque o
incorreta por não ter acesso a informações. alcance e a diversidade de mulheres que esses
Muitas mulheres desconhecem como devem grupos conseguem atingir está muito aquém da
proceder após complicações do aborto pelo realidade concreta das mulheres. Além disso,
uso de medicamentos, postergando a busca de para que a autonomia das mulheres se realize
atendimento e se expondo a um risco maior. com justiça social é preciso que o direito ao
aborto nos marcos da saúde pública e universal
REDES DE seja garantido.
ACOMPANHAMENTO
As redes de acompanhamento às ABORTO COMO DIREITO,
mulheres que abortam são uma estratégia de NÃO MERCADORIA
solidariedade por meio de ações concretas, Em âmbito internacional, em articulações
que vão desde o acolhimento de mulheres que atuam em torno do aborto, verificamos
em situação de gravidez indesejada, uma mudança do discurso em direção à
encaminhamento para atendimento nos reivindicação do aborto seguro, feito em
casos previstos em lei e disponibilização casa, com comprimidos. Em 2017, o 28 de
de informações sobre os métodos seguros setembro, que na América Latina é o dia de
de se realizar um aborto. As redes de luta pela descriminalização do aborto, foi
acompanhamento estão espalhadas pelo internacionalizado como um dia pelo “aborto
mundo e funcionam pela internet, por linhas seguro”. A exigência do direito e do suporte
telefônicas ou presencialmente. Na América do Estado têm desaparecido do discurso e das
Latina, existem experiências desse tipo na reivindicações.
Argentina, no Chile, no Peru, no Equador e no Fazemos essa discussão desde um lugar
Uruguai. bem situado e crítico à forma como grupos
O acompanhamento feminista das mulheres ligados ao mercado – e mesmo grandes
que abortam propõe que estas sejam sujeito das empresas transnacionais – têm tentado
intervenções que decidem fazer em seus corpos incorporar slogans e discursos feministas.
e, nesse sentido, questiona o poder médico. Mas isso não altera sua lógica de exploração,
Essas redes têm sido muito importante para já que o mercado tenta fazer do feminismo
garantir o direito das mulheres à informação um componente do “novo espírito” do
e para a construção do conhecimento e da capitalismo global.
autonomia das mulheres sobre o corpo. É por isso que estamos atentas às
As redes feministas rompem a barreira movimentações da indústria farmacêutica
do silêncio e do obscurantismo em torno ao em torno do aborto. O lobby desse setor
aborto. Nesse sentido, podem contribuir muito para liberar o misoprostol existe porque
na ampliação e no fortalecimento das lutas pelo há interesse em vender esse medicamento.
direito ao aborto. Especialmente nos países Não temos dúvida que, para as empresas, o
marcados historicamente pela colonização, objetivo é a livre circulação de medicamentos
onde o racismo estrutura a sociedade e a e o aumento de suas vendas. Mas, para as
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MARIAJULIA-MMM-SP
mulheres, o que importa é ter autonomia e marcos das lutas por democracia e contra o
liberdade. Isso significa ter direito ao aborto, neoliberalismo.
mas também construir novas relações e
práticas sociais baseadas na igualdade e na PARA SEGUIR EM LUTA
liberdade de fato, para que diminuam as A luta pela legalização do aborto
gestações indesejadas. demanda do feminismo a construção de
Por isso a luta pela autonomia e pelo uma agenda de luta permanente, capaz de
direito ao aborto está ligada à nossa crítica mobilizar e organizar mulheres e setores mais
feminista da mercantilização da vida. A amplos, com capacidade de convocar ações
expansão do capital sobre todas as esferas conjuntas. Isso envolve jurídico, , serviço
da vida não pode definir os rumos nem social, mas também os movimentos sociais
as fronteiras da nossa sexualidade e da populares.
nossa liberdade. A mera disponibilização Mobilizações massivas são resultado
de medicamentos não garante o acesso de trabalho consistente, de médio e de
universal das mulheres, muito menos avança longo prazo. É preciso ampliar o diálogo e
na construção de autonomia. O aborto desenvolver um trabalho com profissionais
seguro não pode ser limitado pelos preços de saúde, médicas e médicos progressistas,
inacessíveis do mercado ou pela falta de uma enfermeiras, assistentes sociais e psicólogas da
orientação que considere as necessidades de área da saúde para o atendimento das mulheres
cada mulher. em situação de abortamento.
O feminismo, que afirma a igualdade É urgente construir estratégias coletivas
como princípio organizador da sociedade, do movimento para incidir tanto na resistência
coloca a necessidade de construir outras como na proposição de ações em espaços
práticas sociais. Essa perspectiva exige saber institucionais.
como lidar com o aborto, e como reivindicar Afirmamos o direito ao aborto no
a garantia de direitos pelo Estado junto com serviço público de saúde, porque esse deve ser
a desmercantilização e desprivatização da um direito garantido para todas as mulheres
vida. O direito ao aborto e o direito universal que decidam interromper a gravidez. Mas
à saúde pública precisam andar juntos, nos nosso argumento vai além da questão do
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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
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Direito ao aborto, autonomia Direito ao aborto, autonomia e igualdade
Publicação da SOF – Sempreviva Organização Feminista
e igualdade
Redação
Maria Lucia da Silveira Maria Lúcia da Silveira, Nalu Faria, Renata Moreno,
Carla Vitória, Sonia Coelho
Nalu Faria
Renata Moreno Revisão
Carla Vitória Aventura da Narração / Alessandra Ceregatti