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Direito ao aborto, autonomia e igualdade

Apoio
SUMÁRIO

2 APRESENTAÇÃO

5 ABORTO: UM ASSUNTO DE MULHERES

9 PARTE 1 |
CAPITALISMO, MATERNIDADE, CONTROLE
DA SEXUALIDADE E DO CORPO DAS MULHERES
9 O CAPITALISMO É HETEROPATRIARCAL E RACISTA
11 MATERNIDADE, UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL
16 MODELO DE SEXUALIDADE E CONTROLE DO CORPO

21 PARTE 2 |
DIREITO AO ABORTO: UMA DEFESA FEMINISTA
CONTRA O CONSERVADORISMO
21 NEGAÇÃO DAS MULHERES COMO SUJEITO: O QUE DIZEM
OS ANTI-DIREITOS
24 FEMINISTAS PELA VIDA DAS MULHERES, COM AUTONOMIA
E IGUALDADE

29 PARTE 3 |
OS CAMINHOS DA LUTA PELO DIREITO
AO ABORTO NO BRASIL
30 ANOS 1960 E 1970: RETOMADA DA ORGANIZAÇÃO DAS MULHERES
30 ANOS 1980: AMPLIAÇÃO DO DEBATE FEMINISTA NA SOCIEDADE
33 ANOS 1990: MOVIMENTAÇÕES EM TORNO DO DIREITO
AO ABORTO EM TEMPOS DE NEOLIBERALISMO
36 ANOS 2000: CONTRADIÇÕES E REAÇÃO CONSERVADORA
42 MAIS FEMINISMO NA LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO

47 PARTE 4 |
O ABORTO HOJE: CRIMINALIZAÇÃO,
CLANDESTINIDADE E LUTA
47 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL
50 AUTONOMIA EM QUESTÃO: A GEOPOLÍTICA DO ABORTO
52 AS MUDANÇAS NA FORMA DE FAZER ABORTO

55 PARA SEGUIR EM LUTA

58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

APRESENTAÇÃO

A luta pelo direito ao aborto enfrenta


desafios específicos em cada tempo e
em cada lugar, entre os quais, o principal é
argumentos mobilizados pelos anti-direitos e
apresenta os princípios da defesa feminista do
direito ao aborto.
o de afirmar esse direito como fundamental
para a autonomia das mulheres e para a Um olhar para a história da luta pela
igualdade. Por outro lado, os setores contrários legalização do aborto é apresentado na terceira
à legalização do aborto, que classificamos parte, revelando os limites e acúmulos,
aqui como “anti-direitos”, mobilizam em suas mas também críticas e desafios para nossa
ações argumentos que reduzem a capacidade organização nos dias de hoje. Já a quarta parte
das mulheres de decidir sobre suas suas lança luz para os contornos das disputas em
vidas, tratando-as como meros objetos de torno do aborto, a discussão sobre os processos
reprodução. de criminalização e a geopolítica do aborto, as
dinâmicas da clandestinidade e a necessidade
Construímos esta publicação com base de garantir não apenas que o aborto não seja
em nossa experiência militante permanente, crime, mas que seja um direito garantido no
percorrendo os elementos que estruturam sistema público de saúde.
nossa visão política. Partimos de uma
aproximação do aborto como ele é, trazendo Esta publicação é resultado de muitas
dados dessa realidade no Brasil. Explicitamos discussões coletivas e reflexões realizadas no
nossa posição de que são as vozes das mulheres calor das lutas de resistência à contraofensiva
as vozes legítimas que importam nessa decisão, neoliberal e conservadora no Brasil, e pelo
definição e direito. direito ao aborto em particular.

Em seguida, apresentamos nossa Lutar pela legalização do aborto no Brasil


perspectiva sobre as estruturas do capitalismo do golpe, quando a reação patriarcal e racista
heteropatriarcal e racista, destacando o papel reforça uma política violenta e ultraliberal,
da imposição da maternidade e do controle de mais criminalização de quem luta e da
do corpo e da sexualidade na reprodução população pobre e negra, legitimada pelas
desse sistema. A segunda parte questiona os urnas, coloca ainda mais desafios. É preciso

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ISIS UTSCH
ELAINE CAMPOS

pensar juntas estratégias, combinar processos


de formação e ação, articulação das mulheres
e dos movimentos sociais em resistência. São
tempos difíceis e complexos para as lutadoras,
são tempos devastadores das condições de
vida das trabalhadoras e dos trabalhadores. As
respostas e os caminhos vamos construindo
em movimento e juntas. A resistência, a
irreverência e a persistência das mulheres
para garantir a sustentabilidade da vida e a
autonomia sobre suas vidas nos convoca a Que estes textos possam inspirar e subsidiar
todas para seguir lutando. E nos movemos com nossos debates, formações e ações pelo direito
a certeza de que mais direitos e igualdade para ao aborto, por autonomia e igualdade para
as mulheres só são possíveis quando articulados todas as mulheres.
com mais direito, igualdade e justiça para o
conjunto da classe trabalhadora. As semprevivas

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HELENA ZELIC

HELENA ZELIC

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AUTONOMIA E IGUALDADE
DIREITO AO ABORTO

HELENA ZELIC

CÍNTIA BARENHO
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ABORTO:
UM ASSUNTO
DE MULHERES

Nós, mulheres, abortamos. São nossas


as experiências que devem ser reconhecidas
no debate sobre a construção do direito ao
aborto como questão social e de autonomia
das mulheres. Ter direito ao aborto é ter o
direito de decidir sobre nosso destino e nossos
projetos de vida.
Ao nos depararmos com uma gravidez
indesejada, a reflexão que muitas de nós
fazemos considera não apenas os planos
que temos para nossa vida como também as
condições efetivas - objetivas ou subjetivas
- de levar a gestação adiante. Nossas
decisões estão sempre condicionadas pelas
possibilidades que temos e que também
são atravessadas por dinâmicas capitalistas,
racistas e heteropatriarcais, que impõem
ritmos, atropelam expectativas e enfraquecem
a possibilidade de controlarmos nossas
vidas e desejos.

RISCO E ALÍVIO
FRENTE À
GRAVIDEZ INDESEJADA
Todos os dias as mulheres tomam a
decisão sobre levar adiante uma gravidez
ou abortar. Essa decisão acontece no espaço
doméstico ou privado e não é livre de
conflitos e tensões. As mulheres sabem todas
as responsabilidades que ter filhos implica
para elas e essas responsabilidades não são
as mesmas para os homens. As mulheres

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

abortam diante de uma gravidez indesejada


sendo jovens ou maduras, solteiras ou Para compreendermos a realidade sobre
casadas, já tendo ou não outros filhos. o aborto, é fundamental nos debruçarmos
Relatos de mulheres que buscam abortar sobre os dados referentes à saúde das
revelam que o impasse diante da descoberta
mulheres. Porém, por ser uma prática
de uma gravidez indesejada as ocupa
clandestina, as informações existentes
inteiramente e a procura de uma saída mais
ou menos segura se torna urgente. Entre as podem ser imprecisas, com números
mulheres de setores populares, a preocupação provavelmente inferiores à realidade já que
com as dificuldades econômicas e com o há uma subnotificação do aborto.
acesso para conseguir interromper a gravidez Os dados compilados aqui têm como
vêm antes de qualquer contradição com
fonte principal o Ministério da Saúde, a
o fato de ter uma religião ou com rígidos
padrões morais tradicionais presentes em partir do registro de vigilância de doenças
muitas comunidades. e agravos não transmissíveis. Eles apontam
O aborto é uma experiência muitas para um fato evidente: o aborto inseguro
vezes permeada pela solidão. A participação se transformou em um grande problema
do parceiro nessa decisão ou na busca por de saúde pública, que afeta sobretudo as
efetiva-la varia bastante. As mulheres negras
mulheres mais pobres e negras.
relatam menos a presença do companheiro do
que as mulheres brancas (Lima, 2014; Diniz e Outra fonte utilizada aqui é a Pesquisa
Medeiros, 2012). Nacional do Aborto (PNA 2016), que
O aborto pode ser uma experiência de combinou duas técnicas de sondagem: a de
autonomia para as mulheres se elas têm urna, com um questionário com perguntas
possibilidade de decidir sobre suas vidas, seus
fechadas preenchido por mulheres entre 18
corpos, tempo para si e relações de igualdade.
e 39 anos, e a de questionários preenchidos
Porém, em sociedades capitalistas, racistas e
heteropatriarcais como a nossa, em que ser por entrevistadoras em torno a questões
mulher é um cotidiano de muita sobrecarga, sociais e demográficas. A PNA foi realizada
julgamento e imposições, a experiência pelo Anis - Instituto de Bioética, Direitos
do aborto não pode ser romantizada. As Humanos e Gênero e a Universidade de
mulheres que decidem pelo aborto no Brasil
Brasília e, em 2016, ouviu um total de 2.002
se colocam em risco pois a clandestinidade
mulheres em cidades do Brasil urbano.
produz insegurança e criminalização. Esses
riscos são distribuídos desigualmente Finalmente, também utilizamos como
conforme a renda e a raça das mulheres, e referência os dados da pesquisa “As leis de
também de acordo com a idade e a região em aborto no mundo” (The World’s Abortion
que vivem. Laws), de 2018, realizada pelo Centro
Envolto em mais ou menos dificuldades, o
para os Direitos Reprodutivos (Center for
aborto que as mulheres decidem e conseguem
fazer resulta em alívio. Reproductive Rights).

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

O aborto é uma prática frequente e 250 mil hospitalizações no ano


persistente no mundo todo. 15 mil complicações
Ele é feito por mulheres de todas as classes 5 mil complicações de quase morte
sociais, grupos raciais, níveis educacionais e 203 mortes, quase uma a cada 2 dias
religiões, que são mães ou não e que vivem Fonte: Ministério da Saúde
relações estáveis ou não.
RENDA E ESCOLARIDADE
A cada ano são realizados entre 700 mil e 1 16% das brasileiras com renda familiar de
milhão de abortos no Brasil. até 1 salário mínimo já fez aborto.
Fonte: Ministério da Saúde 8% das mulheres com renda familiar
1 em cada 5 mulheres até os 40 anos já superior a 5 salários mínimos já fez
realizou pelo menos um aborto. aborto.
Fonte: PNA, 2016 Entre as mulheres que cursaram ensino
até quarta série/quinto ano, 22% fizeram
SAÚDE aborto.
O aborto clandestino é feito pelas mulheres Entre as mulheres com ensino superior,
independente da classe, mas as complicações 11% já fizeram aborto.
e morte atingem as mulheres mais Fonte: PNA 2016
vulneráveis – pobres e negras – sem acesso ao
procedimento seguro. RELIGIÕES
Fonte: Ministério da Saúde 68% das mulheres que fizeram aborto têm
alguma religião
Cerca de metade das mulheres que fazem 56% delas eram católicas
aborto em casa (48%) são internadas para 25% delas eram protestantes ou
finalizar o procedimento. evangélicas
Fonte: PNA 2016 Fonte: PNA 2016
A realização do aborto em condições
inseguras e suas sequelas são a quarta RELAÇÕES CONJUGAIS
causa de mortalidade materna no Brasil. Metade das mulheres que
Fonte: Ministério da Saúde interromperam uma gravidez
atualmente são casadas ou vivem com
Não é o procedimento do aborto em si que companheiros e têm filhos.
provoca a morte das mulheres, e sim os Fonte: PNA 2016
métodos e condições inseguras e a falta de
atendimento, impostos pela clandestinidade. FILHOS
67% das mulheres que fizeram aborto têm
filhos
Para cada morte materna por aborto, há pelo
Fonte: PNA 2016
menos 30 casos de complicações graves

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ELAINE CAMPOS

ARQUIVO SOF

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

PARTE 1 |
CAPITALISMO,
MATERNIDADE
E CONTROLE DA
SEXUALIDADE

O aborto é parte da vida das mulheres e os


seus significados variam de acordo com
as normas e valores construídos historicamente
e que estão em disputa permanente em cada
sociedade. Por isso precisamos compreender
a luta pelo direito ao aborto a partir de uma
dinâmica mais ampla das relações sociais
que estruturam a vida na nossa sociedade. O
debate e a reflexão feminista organizam esta
primeira parte da publicação, dividida em
torno a três eixos: as estruturas do capitalismo
heteropatriarcal e racista; a imposição da
maternidade; o controle do corpo e da
sexualidade.

O CAPITALISMO É
HETEROPATRIARCAL
E RACISTA
Desde sua origem, o capitalismo se estrutura
interligando diferentes relações de dominação,
como o patriarcado, o racismo, o colonialismo
e a opressão da sexualidade. Esse modelo
expandiu-se e continua a expandir-se para
todos os povos e regiões do mundo usando a
violência como ferramenta para sua imposição.
O capitalismo incorporou o patriarcado
como fundamental na sua estrutura, separando
o trabalho de produção de bens para o
mercado e as tarefas reprodutivas – isto é o
trabalho doméstico e de cuidados. Para isso,
fortaleceu a divisão entre uma esfera pública e
outra privada. A primeira considerada como o

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

lugar onde se dá a produção e a segunda onde referência as experiências dos homens, e


se dá a reprodução. Dessa forma, o trabalho é particularmente dos homens brancos. A
reduzido ao que tem valor monetário e todo separação entre público e privado, entre
o trabalho de reprodutivo, realizado pelas produção e reprodução, entre trabalho
mulheres de forma gratuita, é ocultado. assalariado e doméstico, entre razão e emoção,
A divisão sexual do trabalho separa e se insere nessa dinâmica de construção
hierarquiza o trabalho de homens e mulheres. permanente de lógicas de separação e
As atividades que garantem a reprodução da hierarquias.
vida – incluindo de indivíduos e da força de Essas separações e dicotomias aparentes
trabalho – são feminizadas e invisibilizadas, escondem a dependência masculina e da
desvalorizadas, desconsideradas como trabalho. sociedade do trabalho doméstico feito
Isso se dá como parte das relações sociais pelas mulheres, que é cotidiano e garante a
hierárquicas e de poder dos homens sobre as sustentabilidade da vida, além de reproduzir
mulheres, imbricadas às relações sociais de ou recriar elementos que mantêm e reforçam
classe e de raça. a opressão das mulheres. Entre eles, estão
A feminização do trabalho de reprodução a naturalização de atributos sociais que
da vida está profundamente ligada ao caracterizam a feminilidade, o reforço da
longo processo histórico de perseguição e maternidade como destino e realização
criminalização das mulheres, que detinham das mulheres, a heterossexualidade como
conhecimentos sobre o corpo, as práticas de organizadora do desejo, das relações e das
anticoncepção e a sexualidade, e da imposição famílias e a afirmação de que o trabalho
de um modelo de família nuclear, que doméstico e de cuidado é prova de amor.
subordina ainda mais a mulher ao homem e O ideal de família que é pregado
a confina à esfera doméstica. No Brasil e nas e naturalizado, além de ser racista e
Américas, uma nova forma de divisão sexual heteropatriarcal, não corresponde à realidade.
do trabalho também se instaurou, inclusive Como prolongamento do amor romântico,
com a violação dos corpos das mulheres esse modelo prega a esfera privada, íntima e
indígenas e negras escravizadas e a apropriação familiar como lugar do amor, dos afetos e dos
de sua capacidade reprodutiva. cuidados, encobrindo muitas vezes práticas de
A violência foi e continua sendo uma forma violência patriarcal, de exploração econômica
de controlar os povos e de controlar o corpo, do trabalho doméstico que as mulheres
a sexualidade e o trabalho das mulheres. A realizam de forma gratuita e o poder e os
criminalização do aborto e a instituição de um privilégios dos homens.
sistema de vigilância e punição das mulheres é Há bastante tempo as feministas afirmam
expressão desse controle patriarcal pelo Estado que o trabalho doméstico e de cuidados
no capitalismo. precisa ser reconhecido como trabalho
porque é fundamental para a produção do
LÓGICAS DE SEPARAÇÃO viver. Quando é realizado pelas mulheres
E HIERARQUIZAÇÃO gratuitamente, ele não é reconhecido, e
A organização da vida, da política e da quando é contratado, não é valorizado, já que
economia em sociedades patriarcais como é majoritariamente marcado pela precariedade,
a nossa é androcêntrica, ou seja, tem como ausência de direitos, salários baixos e longas

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

jornadas. No Brasil, é realizado em sua atributo do ser mulher e é profundamente


maioria por mulheres negras. Já nos países do ligada à construção do modelo patriarcal de
hemisfério norte, é feito principalmente por feminilidade. A economista feminista Amaia
imigrantes. Perez Orozco chama esse processo de ética
A chamada bipolarização do emprego reacionária do cuidado. Ela indica que essa
feminino – onde um pequeno grupo de ética atua simultaneamente na formação da
mulheres, em sua maioria brancas, estão em identidade feminina, marcada pelo sacrifício,
empregos reconhecidos e valorizados, enquanto pela maternidade e por uma visão de bem-
a maioria das mulheres, grande parte negras, estar que restringe a família a uma perspectiva
estão em trabalhos com baixa remuneração heteronormativa e individualiza e privatiza o
e precarizados – explicita as desigualdades cuidado.
que estruturam as relações sociais de classe, O reforço ao ideal de maternidade vai se
gênero e raça no Brasil. Por isso, definimos o moldando ao longo dos tempos, adaptando-
capitalismo como heteropatriarcal e racista. se aos discursos e às épocas, articulando
As imposições de normas e valores também as perspectivas de classe e raça.
hegemônicos não corresponde às práticas Um aspecto permanente é o vínculo entre
sociais existentes ou desejadas pela maioria das a naturalização da maternidade e o ideal de
mulheres. Nas próximas páginas vamos discutir família nuclear, impostos como valor, norma
e aprofundar as reflexões sobre a imposição e base da organização da reprodução. Nesse
da maternidade e o controle do corpo e da modelo, profundamente patriarcal, racista e
sexualidade, elementos centrais para a luta heteronormativo, haveria uma mãe cuidadora,
feminista pelo direito ao aborto. um homem provedor e filhos.

MATERNIDADE,
ARQUIVO SOF

UMA CONSTRUÇÃO SOCIAL


Nas sociedades patriarcais, a maternidade
nunca foi pensada como uma escolha, mas
como uma obrigação, ancorada na afirmação
de que essa seria a natureza feminina. Mesmo
com tanta luta feminista, em grande parte
do mundo as mulheres ainda são obrigadas
a ser mães, algo que é apresentado como seu
destino “natural” simplesmente porque quase
todas têm capacidade biológica para isso. Mas
a maternidade não é um fato biológico, e sim
social, que envolve trabalho, tempo e energia.
Ela deve ser resultado de uma decisão que as
mulheres devem ter o direito de tomar a partir
de seus projetos de vida.
A essencialização do amor materno
e da maternidade reforça a permanente
disponibilidade para os outros como

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

O perfil de família composto unicamente


As mulheres não são um grupo social por pai, mãe e filhos corresponde a 42,3%
homogêneo, ou seja, idêntico. A diversidade e
dos lares brasileiros, ou seja, não é maioria.
a desigualdade entre as mulheres se expressam
Quase um a cada cinco lares (19,9%) são
de diferentes formas ao longo da vida, na
compostos por casais sem filhos, e tem
relação com o trabalho, com o corpo, com a
sexualidade, mas também com a violência e aumentado a oficialização de casamentos
com os imaginários sobre a maternidade. As entre duas mulheres ou entre dois homens:
mulheres negras casam menos e engravidam entre 2013 e 2017, houve um aumento de
mais (Diniz e Medeiros, 2012). O modelo 45%.
de maternidade vinculado a uma família
As famílias monoparentais, compostas por
heterossexual, na qual o pai é o provedor
mulher e seu(s) filho(s), correspondem a
econômico e a mãe a cuidadora dos filhos, não
16,3% dos lares brasileiros, sendo 14,9%
é universal. Ele não se aplica, por exemplo,
para muitas mulheres que, em suas famílias, entre as mulheres brancas e 17,6% entre as
sempre conviveram com mulheres que mulheres negras.
garantiram o sustento da casa, muitas vezes em 40,5% das famílias eram chefiadas por
famílias estendidas que em nada se assemelham
mulheres em 2015. Do total das famílias
ao ideal de família nuclear. A realidade mostra,
chefiadas por mulheres, 55,5% são chefiadas
portanto, que o modelo de família nuclear não
por mulheres negras e 44,5% brancas. No
se aplica ao conjunto da sociedade, sobretudo
nas periferias, onde muitas mulheres são caso das famíliar monoparentais chefiadas
responsáveis sozinhas pelo sustento da casa e por mulheres, 58,8% são negras e 41,2%
em situações onde as famílias são reconstituídas brancas. No Brasil, 14,4% das casas só tinha
frente ao encarceramento e assassinato dos um morador.
jovens negros.
Os dados são da PNAD, 2015.
A defesa de um ideal heteronormativo
de família ocupa espaço central na reação
conservadora que enfrentamos atualmente.
Esse modelo tem como referência famílias ausentes no cuidado. Também se observam
brancas e de elite, dogmas cristãos e segue a múltiplos tipos de famílias como as hetero ou
lógica da divisão sexual do trabalho, onde o homossexuais, com mulheres mães solteiras,
homem seria o único responsável pelo sustento lares unipessoais, famílias extensas, entre outras
da casa e a mulher permaneceria no âmbito (ver box acima).
doméstico, cuidando da casa, dos filhos e Historicamente, vemos também que as
demais pessoas da família. Mais uma vez, a práticas sociais das mulheres pressionam e
realidade mostra que as coisas não funcionam alteram sua identificação principal como
assim, já que a maioria das mulheres trabalha esposas e mães. Por exemplo, a entrada
tanto dentro como fora de casa, sendo mais massiva de mulheres dos setores médios no
comum situações familiares nas quais as mercado de trabalho contribuiu para ampliar
mulheres estão presentes tanto no cuidado o questionamento ao papel exclusivo das
quanto no trabalho assalariado e os homens mulheres como mães, conferindo novos
presentes somente no trabalho assalariado e sentidos para a maternidade.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

As práticas e lutas das mulheres a partir Essa luta, histórica e atual, se conecta com a
de suas necessidades e experiências concretas resistência de mulheres brasileiras, mães, negras
também contribuem para alterar a visão e periféricas, cujos filhos são exterminados
hegemônica sobre a maternidade e a família – pela violência policial, pelo racismo e pela
idealizada como nos comerciais de margarina. criminalização da pobreza.
O compartilhamento do cuidado das crianças
entrou com força na agenda política nos anos IDEALIZAÇÃO DA
70 e 80, a partir da organização das mulheres ETERNA CUIDADORA
da classe trabalhadora e de periferias urbanas O mito do amor materno como
na luta por creches. Afirmou-se aí o direito das incondicional e instintivo foi desvendado nos
mulheres ao trabalho e o cuidado como algo anos 1980 pelo livro de Elisabete Badinter. Ela
necessário, que deve ser assumido pelo Estado. mostrou como este mito foi historicamente
Não são todas as mulheres que querem ser construído e como se tornou uma armadilha
mães. E não são todas as mulheres que podem que legitimou a desigualdade sexual.
ser mães, às vezes não por impedimentos Na construção de uma ideologia familista, a
biológicos, mas pela violência estrutural e o condição subalterna da mulher no interior da
terror de Estado. As mulheres que tiveram família foi justificada pela afirmação de uma
seus filhos desaparecidos pelas ditaduras natureza diferente da mulher, determinada
militares, como na Argentina, politizam a pela biologia. Haveria, assim, uma essência
maternidade na luta por memória e justiça. feminina definida pela capacidade de gerar
ELAINE CAMPOS

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
ELAINE CAMPOS

vida e ser mãe. Nesse mito, a feminilidade A mistificação do amor materno opera
é associada a um suposto gosto natural das fortemente na ideologia familista. Ainda hoje,
mulheres em cuidar e servir. Mais uma vez, essa mulheres que decidem não casar, mulheres
naturalização e essencialização do feminino lésbicas ou mulheres que decidem não ser mães
é um instrumento para justificar e reforçar a enfrentam questionamentos e julgamentos
opressão das mulheres. constantes por fugir à norma.
Esse ideal imposto de “ser mulher”, Mesmo com a diversidade de práticas
marcado pela permanente disponibilidade e de organizações familiares e com as
para a maternidade e/ou para o cuidado, é transformações conquistadas pelas mulheres
reforçado por diversos aparatos, mecanismos na afirmação de seu lugar como sujeitos
e instituições. É notável o papel das novelas autônomos, a reação patriarcal é forte. Ela tem
e séries na consolidação desse imaginário: a como base um discurso ideológico que afirma
maioria das tramas gira em torno de mulheres que as mulheres estão mais infelizes e culpadas
cujas vidas se realizam pelo casamento e se por terem entrado no mundo do trabalho e
desenrolam até a felicidade final, que ocorre não dar conta de dedicar o tempo, o cuidado e
com o anúncio da gravidez, culminado com o o trabalho para suas famílias.
nascimento de um filho, símbolo da felicidade Porém, para as mulheres da classe
e do destino cumprido. O maniqueísmo trabalhadora, a necessidade de trabalhar
patriarcal aparece nesse terreno e divide as longas jornadas para sustentar as famílias e,
personagens mulheres entre boas e más, sendo em consequência, o pouco tempo para ficar
que estas últimas, quando engravidam, o fazem com os filhos não são uma novidade. Isso nos
para “prender os homens”. coloca a necessidade – que também não é

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Extrato da intervenção de Soujourner


Trouth na Convenção de Direitos da
construção, focada na experiência de algumas
Mulher em 1851, em Ohio, nos Estados mulheres da elite, já foi questionada há muito
Unidos: tempo, por exemplo, no discurso “Não sou
“Aqueles homens ali dizem que as uma mulher?”, feito pela afroamericana
mulheres precisam de ajuda para subir em Sojourner Trouth (1797-1883), que lutou
carruagens, e devem ser carregadas para pela abolição da escravidão e em defesa dos
direitos das mulheres nos Estados Unidos, e
atravessar valas, e que merecem o melhor
conquistou sua própria liberdade em 1827
lugar onde quer que estejam. Ninguém
(ver box ao lado).
jamais me ajudou a subir em carruagens,
O questionamento a essa construção
ou a saltar sobre poças de lama, e nunca
continua atual. Para as mulheres negras
me ofereceram melhor lugar algum!
predomina uma ideia de que são fortes e dão
E não sou uma mulher? Olhem para conta de aguentar tudo, inclusive sendo essa
mim? Olhem para meus braços! Eu arei uma marca nos discursos e práticas da violência
e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, obstétrica – no pré-natal e no parto - no Brasil.
e homem algum poderia estar à minha Ao mesmo tempo, as mulheres são enaltecidas
frente. E não sou uma mulher? Eu poderia por suas capacidades supostamente ilimitadas
trabalhar tanto e comer tanto quanto de entrega e dedicação aos filhos, ao marido e à
qualquer homem – desde que eu tivesse família. Abnegação, sacrifício, doçura e entrega
oportunidade para isso – e suportar o total constituem elementos de uma identidade
açoite também! E não sou uma mulher? atribuída e interiorizada em maior ou menor
Eu pari treze filhos e vi a maioria deles grau pelas mulheres como expressão do amor
ser vendida para a escravidão, e quando materno naturalizado.
eu clamei com a minha dor de mãe, Para grande parte das mulheres, a
ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não maternidade não é uma idealização e os
sou uma mulher?” questionamentos e conflitos sobre ser mãe ou
não se fazem presentes ao longo de suas vidas.
Para algumas mulheres, esse conflito aparece
de agora – de questionar a divisão sexual do justo quando estão diante de uma gravidez
trabalho, a sobrecarga de trabalho e a ausência indesejada, pois ser mãe não passa nem
de condições dignas de emprego e moradia, perto dos planos que fazem ou na imagem
que impõem conflitos e pressões à maioria que projetam para o seu futuro. Por isso, é
das mulheres trabalhadoras. Estes aspectos preciso articular nossa análise política sobre
são vividos todos os dias pelas mulheres e, em o aborto ao conhecimento e debate sobre as
geral, estão ausentes do cotidiano dos homens. condições concretas de lidar com nosso corpo
e sexualidade com autonomia para evitar uma
MITO DA FRAGILIDADE gravidez indesejada. Como veremos a seguir, a
FEMININA sexualidade das mulheres heterossexuais ainda
As mulheres são socializadas tendo suas está subordinada aos desejos e necessidades dos
experiências e habilidades desvalorizadas. homens e, para as mulheres como um todo,
Há um reforço de que as mulheres seriam ainda vinculada a um imaginário que atrela
frágeis e por isso precisariam de proteção. Essa sexo e reprodução.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Uma em cada quatro mulheres sofre algum


As mulheres transgridem essas normas tipo de violência obstétrica, segundo a
em suas experiências e práticas e vivem a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero
sexualidade independente da reprodução, nos espaços público e privado”, realizada
o que as coloca diante do prazer e do pela Fundação Perseu Abramo em 2010.
perigo (desejos inconscientes e medo das Essa proporção aumenta entre as mulheres
consequências), sentimentos muitas vezes negras. Os tipos de violência mais frequente
misturados. As relações de poder também são gritos, procedimentos dolorosos sem
se expressam no terreno da sexualidade e consentimento ou informação, falta de
as desigualdades entre homens e mulheres anestesia e até negligência. Entre as frases
aparecem como o domínio masculino no seu
mais ouvidas está a ideia de que “não chorou
exercício.
na hora de fazer, porque está chorando
As igrejas, os médicos, os próprios cônjuges
agora?” e, entre as mulheres negras, está
ou parceiros e as famílias que incorporam a
norma conservadora quanto aos interditos ou mais presente o relato de que os médicos se
proibições referentes à sexualidade acabam recusam a usar anestesia, o que concretiza
por jogar as mulheres em pleno conflito entre em práticas dolorosas o estereótipo racista
a vontade e a possibilidade de ser ou não ser de que as mulheres negras seriam mais
mãe. A pouca margem de negociação para a fortes.
prevenção da gravidez é realidade para muitas
mulheres e evitar engravidar acaba por ser uma
preocupação exclusivamente sua.
normatiza e hierarquiza e não abarca o
MODELO DE SEXUALIDADE E conjunto das experiências das mulheres – e
CONTROLE DO CORPO nem a dos homens.
Em tempos de banalização da sexualidade, A naturalização também marca a visão
retomamos a visão feminista de que as práticas hegemônica sobre a sexualidade, como
e experiências sexuais das mulheres não são se houvesse uma essência determinada
só prazer ou só perigo. Mais informação biologicamente. Aos homens se atribui uma
e autonomia econômica não significam sexualidade baseada na força, na virilidade e na
automaticamente mais liberdade sexual para as ideia de que eles teriam um desejo insaciável,
mulheres. Existem muitas contradições entre enquanto para as mulheres a sexualidade seria
liberdade e imposições, discursos e práticas. marcada pela passividade, vinculada mais à
Os conflitos e controles que colonizam reprodução que ao prazer.
os corpos e as subjetividades são ativos na Mas a sexualidade, como todas as outras
manutenção e recriação de tabus, inseguranças dimensões da nossa vida, é marcada por
ou normatizações. construções sociais, que passam pelos
O controle da sexualidade das mulheres imaginários culturais, pelas religiões, pelas
se vincula à imposição da heterossexualidade relações de homens e mulheres com seus
como norma, ao modelo de família centrado corpos e com as expectativas sociais, pelas
no poder masculino, à divisão sexual do desigualdades e pelas relações de poder.
trabalho e à maternidade como referência Os desejos e as fantasias são construídos
do ser mulher. Esse modelo de sexualidade nas diferentes fases da vida por mensagens

16
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

diferentes conforme o gênero e, cada vez mais O controle dos corpos e da sexualidade das
cedo, pela disseminação de uma indústria da mulheres se dá por mensagens contraditórias: o
pornografia extremamente patriarcal, racista e corpo das mulheres é visto como inadequado,
heteronormativa. objetificado diante de um padrão de
O modelo hegemônico de sexualidade feminilidade valorizado segundo o olhar
também é construído a partir de uma dupla masculino. Por outro lado, o corpo de algumas
moral entre mulheres e homens. Durante mulheres é “santificado” se estiver cumprindo
muito tempo, houve a exigência de virgindade a função da maternidade. Entretanto, essa
para algumas mulheres até o casamento, além visão é extremamente hipócrita e reduzida. Ao
de fidelidade. Já os homens eram (e ainda são) contrário do que é propagado, para o poder
incentivados a terem múltiplas experiências econômico a maternidade não representa
ao longo da vida. Para as mulheres, essa moral algo em especial, tanto é assim que a reforma
impunha outras exigências, separando-as entre trabalhista estendeu a permissão de trabalho
as que seriam para transar ou as que seriam para grávidas em locais insalubres. Além
para casar. disso, uma parte significativa das mulheres,
Hoje vivemos de modo diferente de nossas principalmente as negras, mostra que seus
mães e avós. Dentre outras mudanças, não há corpos não são sequer respeitados no parto (ver
obrigação da castidade para as mulheres como box ao lado).
um código moral imutável e a ausência de
virgindade já não é um tabu que fere a suposta SEXUALIDADE
honra masculina ameaçando a possibilidade SUBORDINADA
do casamento. Mas, ainda que de outra Atualmente, circula um discurso de
maneira, a dupla moral, que separa “meninas liberação da sexualidade, mas o que ocorre é
boas pra casar e boas para transar”, continua que tais liberdades permanecem dentro das
em vigor. normas da sexualidade masculina. O racismo

17
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

atua nessa dinâmica complexa: as mulheres apresentado como preocupação e amor,


negras são vistas, especialmente na juventude, mascarando seu conteúdo de posse e controle.
como mulheres para transar, mas não para Ao mesmo tempo, se retoma hoje o debate
manter relações estáveis de afeto mútuo. sobre o “amor livre” e o “poliamor”, muitas
A sociedade impõe, cada vez mais cedo, a vezes dentro de moldes conservadores. É
necessidade de que as meninas se apresentem preciso questionar se essas fórmulas acabam
como sedutoras, expondo corpos femininos com os privilégios masculinos ou se os
constantemente na publicidade e, novamente, reproduzem, se substituem um modelo por
alimentando a ideia de que a sexualidade outro que também aprisiona e se desconstroem
feminina está disponível aos desejos e vontades ou não as relações de poder.
dos homens. Esses são processos sociais que
interferem na forma como a sexualidade é DESVINCULAR A SEXUALIDADE
percebida e vivenciada. Essa banalização se DA MATERNIDADE
expressa na ideia de que ser livre é fazer o Por conta da luta feminista e das mudanças
que quiser com o corpo – olhar destituído de nos modos de vida, um contingente maior de
qualquer questionamento crítico aos padrões mulheres pode ter acesso aos questionamentos
impostos, que moldam os desejos e a visão de de que, para uma vivência prazerosa da
estética, entre outros aspectos. sexualidade, o sexo deve ser separado da
O controle e a padronização da sexualidade reprodução, e a maternidade não pode ser uma
são uma constante e ocultam a pressão obrigação.
permanente para que as mulheres estejam Mas ainda é comum relatos de mulheres
sempre dispostas sexualmente, em nome de que chegaram aos hospitais em processo de
uma suposta liberação. Exemplo disso são as abortamento, de que sofreram violência verbal
pílulas que supostamente incentivam a libido. com alusões à sua sexualidade, atitudes que
As mulheres são estimuladas a alterarem seu profissionais de saúde que deveriam acolhê-
comportamento sexual de acordo com as novas las expressam como punição: “se fez sexo, tem
exigências masculinas. E, caso elas questionem que aguentar as consequências”. São tratadas
esse modelo androcêntrico, são consideradas como irresponsáveis por viverem a sexualidade
moralistas, puritanas e reprimidas. e negarem a maternidade naquele momento.
A lógica de relacionamento que nega a Chama atenção, também, o fato de que esses são
afetividade e o compromisso como expressão os mesmos tipos de falas que as mulheres relatam
da liberdade sexual convive com a fantasia ouvir quando sofrem violência obstétrica.
feminina de que, em algum momento, vai A punição por não corresponder ao
surgir uma pessoa que vai “completar” sua mandato da maternidade e o estigma por não
vida e corresponder a suas expectativas. corresponder às normas sexuais hegemônicas
Dessa forma, uma subjetividade que nega a aparece com força na experiência das lésbicas
autonomia e a legitimidade dos desejos das e bissexuais. Os julgamentos e punições que
mulheres é construída, na medida em que estes as mulheres enfrentam por desobedecer as
são atrelados às expectativas de ser e estar para normas e tentar viver a sexualidade como
o outro e não para si mesmas. decidem se expressam também na preocupação
As relações estão permeadas por ferramentas permanente de “ficar falada, ter má fama”. Não
de controle. O ciúme continua sendo são poucos os casos em que os homens, muitos

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ELAINE CAMPOS
jovens inclusive, usam desse mecanismo
de controle e opressão contra as mulheres,
espalhando imagens e vídeos e expõem a
sexualidade de meninas e mulheres, fenômeno
conhecido atualmente como “revenge porn/
porno-vingança”.
Nesse contexto hostil, de cobranças e
silenciamentos, a imposição da maternidade
pela moral familiar tradicional é uma injustiça
contra as mulheres e não se cobra dos homens.
Cada pessoa pode viver sua sexualidade
de maneira singular, mas quando entra
em choque com o comportamento sexual
regulado, isto é, a normatividade heterossexual
vigente na família, nas religiões e na sociedade
em geral, as punições e julgamentos causam
sofrimento, violência e injustiças.

POLITIZAR A SEXUALIDADE;
AFIRMAR A AUTONOMIA
O pensamento e as práticas patriarcais a submissão da experiência das mulheres
consideram as mulheres como seres passivos ao prazer dos homens, de desconstruir as
e imperfeitos, que não podem regular e normas que restringem e empobrecem suas
organizar com autonomia suas vidas: por isso experiências.
operam na chave do controle do corpo, da Nas relações heterossexuais, exigir dos
sexualidade e da capacidade reprodutiva das homens mais reciprocidade também é um
mulheres. Boa parte das mulheres enfrenta aprendizado na vivência da sexualidade e do
dificuldades de questionar o ideal romântico compartilhamento da responsabilidade sobre
de amor e a maternidade como ápice de a contracepção. Além de um aprendizado,
um relacionamento heterossexual e projeto é uma disputa permanente, uma vez que as
definidor de suas vidas. desigualdades impactam a subjetividade e
A politização da sexualidade com cada relação, em cada momento, coloca novos
a resistência feminista, a afirmação da desafios para essa negociação.
autonomia, da liberdade e do prazer e a A perspectiva da autonomia das mulheres
denúncia das formas implícitas e explícitas e da construção de igualdade nas relações
de violência sexual contribuem para provocar com os homens fortalece a crítica às falsas
mudanças e para fortalecer a capacidade de soluções da indústria farmacêutica, como o
cada pessoa ter autonomia em suas relações. uso de hormônios de diversos tipos que, além
Contribuem também para que se fale mais de fazer mal para a saúde, reforça para as
publicamente sobre a importância de conhecer mulheres a responsabilidade da prevenção da
o corpo e de legitimar os desejos das mulheres, gravidez indesejada e exime os homens
de enfrentar as inseguranças, de questionar dessa carga.

19
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

JOAQUIM DUARTE

20
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

PARTE 2 |
DIREITO AO ABORTO:
UMA DEFESA
FEMINISTA CONTRA O
CONSERVADORISMO

A presentamos nas próximas páginas


contrapontos feministas aos principais
argumentos dos setores contrários aos direitos
das mulheres, e ao aborto, em particular. Em
seguida, retomamos os principais elementos da
defesa feminista do aborto.

NEGAÇÃO DAS MULHERES


COMO SUJEITO:
O QUE DIZEM OS
ANTI-DIREITOS
Quando a questão do aborto se coloca no
debate público, os setores que são contrários
a esse direito das mulheres mobilizam em
seus argumentos os elementos enunciados
anteriormente, que definem as relações
patriarcais. Ou seja, normalmente a questão
CLARISSA WOLF

não é o aborto em si, mas sim a negação da


autonomia das mulheres sobre suas vidas e
sua capacidade reprodutiva e os lugares sociais
esperados ou impostos socialmente às mulheres.
Questionamos, portanto, as premissas
dos argumentos contrários ao direito aborto,
porque estes partem do não reconhecimento
das mulheres como seres em si, completos, cujo
corpo e a vida pertence a cada uma e não aos
homens ou à sociedade. A proibição do aborto
está relacionada com o não reconhecimento
do direito das mulheres a decidirem sobre a
maternidade e sobre a sexualidade.
No Brasil, setores conservadores
extremamente poderosos estão o tempo todo no

21
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Congresso Nacional, nas igrejas, na televisão, violência sexual. Existe uma continuidade
na internet e no rádio falando atrocidades entre a desresponsabilização dos homens
sobre o aborto e julgando permanentemente com a concepção e com o trabalho de
as mulheres. Esse julgamento, sabemos, não é cuidado permanente que a produção do
só porque as mulheres abortam, mas por seu viver demanda. As mulheres são, assim, as
comportamento, pelas roupas, sexualidade, tom únicas responsabilizadas por engravidar, e são
de voz, modos de agir, ou seja, por ser mulheres. principalmente elas que têm que lidar com a
Quem atua contra o aborto constrói consequência de uma gravidez – desejada ou
o argumento de que as mulheres não – por toda a vida.
seriam irresponsáveis, tirando qualquer Mesmo entre as gerações mais jovens, a
responsabilidade dos homens na concepção, gravidez e o aborto estão sujeitos a julgamentos
inclusive com discursos permissivos à e culpabilizações, expressos em comentários do

A falta de acesso permanente e estável prática da maioria das mulheres, mas que as
à anticoncepção é um dos fatores falhas podem acontecer.
principais para a gravidez indesejada e O mesmo estudo apontou que a taxa de
o aborto. O padrão de sexualidade e a falha dos métodos é de, em média, 4,7%.
recusa dos homens em usar a camisinha é Esse cálculo foi feito relacionando a
determinante. quantidade de mulheres com gravidez
No Brasil, 86% das mulheres que não desejada e o uso típico dos métodos
procuraram os serviços de saúde pública anticoncepcionais. Alguns métodos têm
foram atendidas em relação ao acesso aos maior taxa de falha do que outros, e isso está
métodos contraceptivos. relacionado com a falha do método em si, e
Fonte: Ministério da Saúde com a falha no uso do método. Por exemplo,
no caso da camisinha masculina, esse pode
Um estudo realizado com mulheres ser o principal método utilizado por um casal,
(entre 15 e 49 anos, casadas ou em união mas pode ser que não o utilizem em 100%
estável), demonstrou que o uso de métodos nas relações sexuais. Assim, o preservativo
contraceptivos é a prática da maioria, mas masculino chega a alcançar 14% de falhas,
ainda não é realidade para grande parte dos que estão relacionadas ao mau uso, além da
casais heterossexuais. falha prevista.
A África é o continente com menor uso
de métodos contraceptivos. Apenas 28 a Método utilizado Taxa estimada de falha
cada 100 mulheres utilizam algum método. DIU – Dispositivo intrauterino 0,8
Na América Latina os dados são semelhantes Pílulas hormonais 5
aos da América do Norte: cerca de 72% das Preservativo masculino 14
mulheres utilizam algum tipo de método Coito Interrompido 19
contraceptivo. Esses números confirmam Esterilização feminina 0,5
Esterilização masculina 0,3
que o uso de métodos contraceptivos é uma Elaboração própria a partir de dados da OMS, 2013.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

GABRIELA BILÓ/FUTURA PRESS-FOLHAPRESS


tipo “engravidou porque quis”, remetendo a
informações sobre métodos contraceptivos que
teoricamente estariam disponíveis hoje em dia.
Ao mesmo tempo, a energia sexual, o desejo e
o prazer estão entre os tabus e os preconceitos
reforçados pela moral conservadora vigente,
que encobre e silencia o que tem a ver com a
vivência livre e prazerosa da sexualidade das
mulheres em geral, de lésbicas e bissexuais.
As forças conservadoras na sociedade
não querem que se discuta a sexualidade.
Além de ser altamente repressor, isso Permeadas pela ideologia patriarcal e por
ainda dificulta a prevenção da gravidez e o visões religiosas em seus matizes mais ou
enfrentamento à violência contra as mulheres. menos fundamentalistas, as instituições fazem
O discurso conservador prefere centrar- valer tais ideologias como verdade ao afirmar
se nos riscos associados ao sexo, como as que o aborto corresponderia moralmente
doenças sexualmente transmissíveis. Assim, a um assassinato. Isso é feito tornando os
crenças, mitos e interditos continuam sendo embriões fecundados equivalentes a cidadãos
disseminados. com direitos, inclusive com mais direitos
Não é justo cobrar as mulheres por do que as mulheres. Imagens de fetos são
engravidar. Os métodos podem falhar e expostas publicamente como uma construção
os homens continuam resistindo a usar social de impacto simbólico que oculta e
preservativo. Além disso, há conflitos que se nega a realidade: a de vozes de mulheres
estabelecem consciente e inconscientemente. silenciadas ao perder suas vidas com abortos
Relações de poder, sentimentos e percepções inseguros. As mulheres são diminuídas como
muitas vezes contraditórios resultam numa sujeito de direitos que se autodeterminam
gravidez que, por fim, algumas mulheres não e ficam subordinadas aos direitos do
querem ou não podem levar adiante num embrião concebido, ao qual se quer atribuir
determinado momento. personalidade jurídica em uma manifestação
misógina de desapreço pela vida das mulheres.
SEXO, ABORTO O controle patriarcal se manifesta pelas
E RELIGIÃO instituições, pela Igreja e pelo Estado, mas
Em visões religiosas, o sexo tem sido tratado também por aqueles que estão mais próximos
a partir da finalidade de procriar. A sexualidade das mulheres, como pais, mães, maridos,
visando ao prazer é associada com o pecado ou namorados, conhecidas da vizinhança.
com a imoralidade. O prazer é visto como se Também se manifesta em uma preocupação
chocasse com o dever da reprodução, imposto com a “reputação” das mulheres por parte de
para as mulheres. O aborto demonstraria uma suas famílias, que as enquadra, recusando a
irresponsabilidade com esse papel, além de singularidade de suas vidas.
negar a função de procriar e afirmar o sexo A pressão para aceitar a gravidez se dá por
pelo prazer. Por isso o aborto é condenado na meio de argumentos de valorização das que
maioria das religiões. conseguiram vencer a luta para ter e criar

23
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

os filhos. Essa pressão se dá em qualquer “NOSSO CORPO,


situação, seja com mulheres jovens e solteiras, NOSSAS VIDAS”
que já tenham ou não filhos, dentro e fora As mulheres são sujeitos, pessoas plenas e
do casamento ou de relações estáveis, seja com autonomia. Essa é uma premissa da defesa
com mulheres mais maduras, que já têm feminista do direito ao aborto.
outros filhos. Os argumentos contra o aborto A palavra autonomia é de origem grega e
sempre afirmam a força das mulheres e sua quer dizer dar a si mesmo a norma. Ou seja,
capacidade de vencer adversidades. É comum a um indivíduo autônomo e livre é o que tem
naturalização, com expressões que as associam a o direito de decidir sobre seu próprio corpo,
leoas que defendem suas crias. algo que o caracteriza como pessoa. Do ponto
Uma manipulação simbólica acontece logo de vista ético, a autonomia é parte de tornar-se
que as mulheres engravidam e passam a ser pessoa.
chamadas de mães, enquanto o embrião já Para serem livres, as mulheres devem ter os
começa a ser chamado de filho. A gravidez é seus corpos livres e respeitados. A liberdade
vista de forma tão determinista e irreversível e a autonomia passam pela liberdade de ter
que nem sequer é dado tempo para as mulheres a posse de si: controlar o corpo é parte de
avaliarem e decidirem sobre o que pode ou toda a individualidade. Por isso, a questão da
não acontecer no seu corpo e em sua vida. autonomia das mulheres assumiu centralidade
As mulheres são parabenizadas pela gravidez na reflexão e prática feminista.
assim que a descobrem, como se esta fosse Em uma sociedade capitalista, racista e
sempre esperada, desejada e bem-vinda. Mas patriarcal as normas se impõem pela força
se sabe que não é sempre assim. Os médicos, ou pela ideologia. Angela Davis afirma que
os aparatos jurídicos legais e a polícia decidem a liberdade é uma luta constante: assim
pelas mulheres e as privam da soberania mais também é a autonomia. Como coletivo e
elementar, aquela sobre seu território mais como indivíduos, as mulheres batalham todos
íntimo: seu corpo (Sau, 1981). os dias para ter sua autonomia reconhecida e
garantida.
FEMINISTAS PELA VIDA O aborto deve ser garantido como um
DAS MULHERES, direito porque as mulheres têm o direito de
COM AUTONOMIA controlar suas próprias vidas, decidir sobre si
E IGUALDADE mesmas, adquirirem autonomia.
O feminismo como movimento social tem A voz das mulheres é a voz legítima
construído há muito tempo e em várias partes sobre o aborto, já que a gravidez acontece
do mundo, argumentos, visões, práticas e em seus corpos e afeta o conjunto de suas
lutas sobre o aborto. O pensamento feminista vidas. Mas essas são as vozes silenciadas
elaborado a partir dessas experiências projeta em sociedades que criminalizam o aborto.
valores para a sociedade que queremos Por isso, mesmo nas situações em que há a
construir. Ao reivindicar o direito ao aborto proibição do aborto, onde não é legal exercê-
legal, seguro e gratuito na perspectiva do lo, como no nosso país, precisamos afirmar
feminismo anticapitalista e antirracista, as que essa proibição não é legítima. O princípio
bases das relações de exploração, dominação e sobre o qual se assenta o aborto é o direito
opressão são questionadas. das mulheres de decidirem se desejam ser

24
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

mães e quando, pois ele remete à liberdade vivenciar livremente a orientação de seu desejo,
e à autonomia das mulheres como um ser é preciso escapar da heteronormatividade
humano integral. hegemônica, que se impõe a serviço da
A decisão de não levar adiante uma sexualidade viril masculina.
gravidez é fruto do exercício da capacidade A defesa da livre orientação sexual e dos
de julgamento. As mulheres pensam, sentem diferentes modos de relacionamento e de
e sabem que “um filho é algo para a vida realização dos desejos precisa enfatizar a
toda” e, justamente, por isso, entendem sexualidade de modo positivo, situando-a
a complexidade de se tornarem mães e os como fonte de prazer, comunicação,
impactos que essa decisão tem em suas vidas afetividade, satisfação e bem-estar e
em cada momento. posicionando as mulheres como sujeitos
Em que pese a clandestinidade, as de sua própria sexualidade. Em tempos de
mulheres decidem pelo aborto. Mas assegurar ofensiva neoliberal e consumismo exarcebado,
a autonomia é mais do que decidir por si: é a defesa feminista sobre a sexualidade livre
preciso ter garantidas as condições de colocar precisa disputar com valores disseminados pelo
em prática suas decisões. No caso do aborto, mercado, que apresenta muitas armadilhas
isso tem a ver com apoio e informação e com como, por exemplo, a glamourização do
o acesso a meios seguros de interrupção da mercado do sexo.
gravidez. Porém essa não é a realidade da As mulheres negam que sejam definidas
maioria das mulheres trabalhadoras, negras e como apenas um útero a serviço da reprodução
pobres, que têm que se submeter a situações de ou como um corpo disponível e a serviço dos
riscos para realizar sua decisão. homens. A sexualidade deve estar vinculada
Nossa defesa da autonomia, portanto, só ao prazer e a maternidade deve ser um ato
se viabiliza com igualdade e justiça social. Por consciente, livre e intencional, resultado do
isso, além de reivindicar que o aborto deixe desejo das mulheres.
de ser crime, exigimos que ele seja legalizado,
garantido pelo Estado como um direito, com ABORTO, DIREITO
INALIENÁVEL
atendimento no serviço público de saúde, sem
pressões. O direito à liberdade e à autonomia das
mulheres em decidir se querem ou não se
DIREITO AO SEXO tornar mães, e em que momento, se contrapõe
POR PRAZER
ELAINE CAMPOS

Separar sexualidade da reprodução é um


dos pilares sobre o qual se assenta a reflexão
feminista sobre o aborto. Reivindicar o
direito das mulheres de viverem a sexualidade
com prazer e sem medo, não subordinada
à sexualidade masculina fechada, genital e
dominante, foi e tem sido uma revolução e
subversão feminista.
Além disso, para que as mulheres tenham
direito pleno ao exercício da sexualidade e a

25
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
CAROL CALEF

quando os laços sociais não funcionem bem


ou distintas concepções de bem e de cuidados
possam se chocar. E, no caso brasileiro, é
imprescindível para que a autonomia seja
respeitada e garantida para todas as mulheres,
não apenas para as poucas que têm dinheiro
para pagar.
O corpo e a decisão sobre o que se passa na
vida das mulheres compõem parte importante
dos aspectos subjetivos e materiais de nosso
ao exercício obrigatório da maternidade. ser. Nesse sentido, todas as mulheres devem
O aborto, a sexualidade e a maternidade ser respeitadas em sua capacidade de decidir
são três direitos inalienáveis das mulheres. De sobre suas próprias vidas. Assim, ter liberdade
acordo com Rosa Cobo e Belén Nogueiras e autonomia para decidir sobre o aborto é
(2014, p. 44), “A conquista do direito ao vital para a individualização das mulheres. A
aborto é uma ferida no coração dos sistemas individualização ou individuação é o processo
patriarcais e a proibição desse direito é uma que faz com que cada pessoa seja única, um
mostra da hegemonia masculina”. ser em si, livre de imposições e determinações
Tratar o aborto como um direito nos sociais.
remete à reconquista de nosso corpo e de nossa Afirmar a individualização das mulheres é
capacidade de decidir se queremos ter filhos ou questionar o heteropatriarcado racista, que nos
não. Para a moral patriarcal, engravidar é algo trata como idênticas, descartáveis, substituíveis.
que não se deve recusar já que supostamente A individualização das mulheres é muito
possuímos o “instinto natural” para sermos diferente do individualismo egoísta que tentam
mães. Recusar o mandato da maternidade, atribuir às mulheres e nunca aos homens.
ou seja, a imposição da maternidade, é Tachar as mulheres como egoístas, aliás, é mais
condenado socialmente por meio de muitos uma forma ativa de ocultar e desconhecer
mecanismos de controle simbólicos e materiais todo o trabalho doméstico e de cuidado com
que colocam as mulheres na defensiva. Estes os outros feito pelas mulheres e que garante a
se impõem pelo medo, pelo silenciamento e, sustentabilidade da vida.
principalmente, por meio de normativas sociais A narrativa feminista deve insistir sobre
que criminalizam ou colocam muitos limites a importância da autonomia individual das
legais para as mulheres que recorrem ao aborto. mulheres no momento de decidir sobre
Assim, muitas são coagidas à maternidade. a maternidade. O corpo das mulheres é
A filósofa feminista Alicia Puleo demonstra desse modo um campo de disputa. Ou seja,
que as mulheres são sujeitos morais a sexualidade e o poder sobre os corpos
autônomos, por isso, com dignidade para fazer femininos sempre estarão em jogo no debate
escolhas. Ela defende a concretização de uma sobre o aborto, estabelecendo os conflitos
regulação desse entendimento pelo Direito, que serão produzidos na medida em que as
mesmo sabendo que a linguagem do direito mulheres reivindiquem o protagonismo da
não esgota a complexidade de uma situação decisão sobre o aborto.
de aborto. Porém, seria uma garantia para Historicamente, as mulheres foram

26
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

expropriadas do conhecimento que detinham devem interferir: “Nós que parimos, nós
sobre os processos vitais para criar ou que decidimos” e os irônicos slogans: “Se
não vida nova, o que lhes conferia poder o Papa fosse mulher, o aborto seria legal e
enorme como sujeitos que decidem. Com seguro” ou “Cadê o homem que engravidou?
isso, de sujeitos autônomos nesse aspecto, Por que o crime é da mulher que abortou?”.
no capitalismo racista e heteropatriarcal, as Enfim, firmou-se o entendimento de que
mulheres foram transformadas em sujeitos sexualidade não é sinônimo de reprodução
dependentes, a quem se concedem direitos ou e que a decisão sobre a maternidade diz
não. Essa expropriação é visível, por exemplo, respeito somente às mulheres.
na perseguição às parteiras e doulas e na O feminismo recusa a tutela das instituições
consolidação do poder médico sobre o parto. capitalistas, patriarcais e racistas, afirmando
Também aparece nas restrições à aplicação que os discursos dos médicos, dos legisladores e
dos conhecimentos tradicionais sobre as dos juízes não deve se impor sobre a liberdade
propriedades de plantas medicinais. e a autonomia das mulheres.
Em oposição à maternidade como um
MOVIMENTO E imperativo divino que marcaria a natureza ou
AUTO-ORGANIZAÇÃO a condição das mulheres, as lutas feministas
PARA MUDAR pelo direito ao aborto, pela sexualidade livre
A VIDA DAS MULHERES e pela superação da divisão sexual do trabalho
Diante de todas essas questões, a participação contribuem para que a maternidade ganhe
em grupos e nos movimentos cria solidariedade outro sentido: a de uma decisão que é parte dos
entre as mulheres e permite viabilizar espaços projetos de vida das mulheres. Isso se articula
coletivos de liberdade e de construção de com as reivindicações de apoio à reprodução,
autonomia das mulheres para decidir sem culpa de compartilhamento dos cuidados, do direito
sobre ter ou não ter filhos. Principalmente, à creche, à redução da jornada de trabalho com
possibilita compreender que o aborto precisa ser salários dignos e com a participação dos homens
visto como um direito, livre das imposições das em todas as tarefas domésticas e de cuidados que
religiões e das pressões de todos os tipos para envolvem a criação dos filhos em uma relação
que efetivamente a decisão seja autônoma. heterossexual, assim como com a legitimidade
Um espaço coletivo de discussão e reflexão da maternidade fora desse tipo de relação.
sobre o aborto entre as mulheres é crucial
para que nos tornemos sujeito coletivo dessa
ELAINE CAMPOS

luta. Adquirir voz própria é um aprendizado


que leva à construção de uma força capaz
de confrontar as instituições, o Estado e a
dominação masculina neles reproduzidos. No
entanto, na sociedade capitalista, patriarcal
e racista, as instituições proíbem o aborto e
condenam as mulheres.
Por isso, os movimentos feministas foram
aprimorando seus lemas: “as mulheres
decidem e o Estado garante”. As Igrejas não

27
ELAINE CAMPOS

ELAINE CAMPOS

28
AUTONOMIA E IGUALDADE
DIREITO AO ABORTO

ANDERSON BARBOSA
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

PARTE 3 |

ELAINE CAMPOS
OS CAMINHOS DA
LUTA PELO DIREITO
AO ABORTO NO
BRASIL

N as próximas páginas, recuperamos


processos, fatos e marcos da luta pelo
direito ao aborto no Brasil. A discussão que
apresentamos aqui está situada no campo do
movimento feminista no qual a SOF se insere,
que é o do feminismo construído a partir da
organização de mulheres dos movimentos
populares, posicionadas junto à luta das
trabalhadoras e trabalhadores. A discussão sobre
os caminhos da luta pelo direito ao aborto
combina o olhar sobre ações e estratégias no
âmbito do feminismo com os contornos do
debate do aborto na sociedade e os caminhos
dessa questão no âmbito institucional, ou seja,
dos poderes legislativos, executivos e judiciário.
A luta pelo direito ao aborto é parte da luta
feminista desde o início da chamada segunda
onda do feminismo, a partir dos anos 1960.
Por isso olhar para a história dessa luta passa
por localiza-la nas dinâmicas do feminismo e
na forma como esse movimento se organizou
em cada período histórico. E, especialmente,
como se posicionou e se relacionou com as
mudanças da sociedade brasileira, por exemplo,
com o período da redemocratização, nos anos
1980, de ascenso do neoliberalismo nos 1990,
de governos progressistas nos anos 2000. Em
tempos de retrocessos – como é o período no
qual elaboramos esta publicação – olhar para
essa história é importante porque nos traz
aprendizados e desafios, mas também porque
reforça nossa certeza de que só a luta muda a vida.

29
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

PASSEATA DE TRABALHADORAS RURAIS - GUARABIRA, 1986.


JOSÉ GOMES DE FREITAS / ACERVO CNDM

ANOS 1960 E 1970:


RETOMADA DA ORGANIZAÇÃO
DAS MULHERES
A autonomia sobre o corpo e as questões da
família e da sexualidade tiveram centralidade
no debate político colocado pelo feminismo
na chamada segunda onda do movimento.
Isso contribuiu para que o debate sobre o
aborto aflorasse, e a legalização do aborto fosse
conquistada em muitos países do norte.
Mas em muitos países da América
Latina, assim como no Brasil, os tempos e
as dinâmicas do feminismo foram muito
diferentes do que aconteceu nos Estados situação das mulheres pobres, foram centrais
Unidos ou nos países europeus. Nesta época, no argumento das ações feministas em defesa
o movimento de mulheres no Brasil se forjava do direito ao aborto nesse período. Leila
a partir da luta contra a ditadura militar. Barsted (1992), em um texto que recupera
Parte importante do feminismo era composta ações do movimento feminista dos anos 1980,
por grupos e organizações de mulheres que especialmente no Rio de Janeiro, avalia que
lutavam juntas e em aliança com os setores de esse foi um período de ofensiva do feminismo
esquerda, incluindo setores progressistas da na luta pelo direito ao aborto. Entre diversas
igreja católica – como a teologia da libertação iniciativas, destaca a organização de uma
e as comunidades eclesiais de base. O fim da manifestação pública contra a prisão de
ditadura e a redemocratização do país eram as mulheres e profissionais de uma clínica que
bandeiras de unidade desse campo de esquerda realizava abortos em Jacarepaguá.
e progressista. Ainda que as questões da Em 1980, as feministas realizavam
sexualidade, autonomia e aborto aparecessem panfletagens todas as semanas em feiras livres
em alguns círculos feministas, o direito ao para dialogar com a população sobre esse
aborto não aparecia como um tema forte na assunto, com panfletos que convocavam:
agenda pública e era difícil de ser encampado. “Mulheres! Chegou a hora de lutar pelo
aborto livre!”. Em frente a igrejas e terminais
ANOS 1980: AMPLIAÇÃO DO de ônibus, convidavam as pessoas a opinar
DEBATE FEMINISTA sobre o aborto, a partir de duas perguntas
NA SOCIEDADE cujas respostas eram colocadas em uma urna:
Entre fins dos anos 1970 e início dos anos Você é contra ou a favor do aborto? E você
1980, o debate sobre o aborto emergia. Mesmo acha que uma mulher que faz aborto deve ser
em tempos de ditadura, a questão se colocava presa? O balanço foi de que, embora as pessoas
tanto a partir das articulações e ações do se manifestassem contra o aborto na primeira
movimento feminista quanto na sociedade de questão, a maioria considerava que as mulheres
forma geral. não deveriam ser presas.
A defesa da autonomia e da proteção à Em 1983, o Rio de Janeiro também foi o
saúde das mulheres, colocando ênfase na lugar de um Encontro sobre saúde da mulher,

30
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ATO PÚBLICO DE TRABALHADORES E TRABALHADORAS PELA


GARANTIA DE DIREITOS NA CONSTITUINTE, SÃO PAULO, 1988.
JANUARIO F. DA SILVA / TRIBUNA METALÚRGICA / ACERVO CNDM
menos as mulheres decidirem sobre os filhos.
Também em um episódio do programa
Malu Mulher, da TV Globo, em que uma
das personagens se vê diante de uma gravidez
indesejada e faz aborto em uma clínica (1979),
ou a capa da revista Isto É (1983), na qual
figuras famosas como Betty Faria, Dina Sfat e
Hebe Camargo assumem ter feito aborto.

DINÂMICAS DO MOVIMENTO
FEMINISTA E O ABORTO
NA CONSTITUINTE DE 1988
Ao olhar para as dinâmicas do feminismo
sexualidade, contracepção e aborto, organizado brasileiro nos anos 1980, percebe-se uma
pela Casa da Mulher do Rio de Janeiro, pelo fragmentação temática e organizativa. Uma
Ceres, coletivo de mulheres do Rio de Janeiro, parte do movimento - com pouca relação
projeto mulher IDAC e Mulherando. Cerca com as organizações de esquerda - apostou
de 300 militantes de 57 grupos de mulheres de na estruturação de grupos de prestação
quase todo o país participaram desse encontro, de serviços (posteriormente identificados
que definiu o dia 28 de setembro como Dia como ONGs), que se articularam em redes
Nacional pelo Direito ao Aborto. temáticas. Por outro lado, também haviam
A questão do aborto aparecia também organizações amplas de mulheres nos bairros e
em espaços da esquerda, como no jornal na construção das lutas da classe trabalhadora.
Em tempo, que publicou diversas notícias e Essa fragmentação do movimento foi maior
artigos sobre o aborto, denunciando os efeitos a partir de 1983, com a entrada do PMDB –
da proibição na vida das mulheres pobres, Partido do Movimento Democrático Brasileiro
questionando propostas de planejamento - em vários governos estaduais. A partir daí
familiar que feriam a autonomia das mulheres, se deu a criação dos Conselhos da Condição
repercutindo campanhas internacionais e Feminina ou dos Direitos das Mulheres como
nacionais e defendendo o direito ao aborto, estruturas políticas para atuação nos governos,
como recupera Maria Fernanda Marcelino sendo o primeiro criado em São Paulo,
(2013) em uma análise sobre as publicações em 1983. A criação dos conselhos marcou
deste jornal entre 1975 e 1988. uma divisão de estratégias, um campo de
Também é possível verificar que o tema do disputa e polêmica no movimento feminista.
aborto ganhava mais espaço na sociedade com Alguns setores passaram a atuar a partir da
a repercussão do debate em grandes meios articulação com os governos e a estruturação
de comunicação. São algumas referências a dos Conselhos. No contexto de fragilidade
entrevista de Elis Regina para a RBS, em 1981, organizativa, o CNDM - Conselho Nacional
na qual defende o direito das mulheres ao dos Direitos da Mulher - criado em 1986,
aborto questionando a hipocrisia e o cinismo se colocou como o articulador da agenda do
da sociedade, que não deixava a população movimento para o processo da Assembleia
participar nem opinar sobre nada, muito Constituinte. As formas de participação neste

31
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Conselho não eram por representação ou

ELAINE CAMPOS
delegação, e sim por relações de proximidade e
convites.
Portanto, não se gestou um processo de
organização e coordenação autônomo do
movimento. Particularmente sobre o aborto,
a decisão inicial do CNDM foi de que não
colocaria o tema em debate, argumentando
que isso levaria a uma forte reação dos
conservadores e da direita. Porém, isso não
impediu que deputados tentassem incluir na
carta a proteção à vida “desde sua concepção”
– o que criminalizaria o aborto em todas as
situações, mesmo nas exceções já existentes Foi um período de crescimento do debate
no Código Penal. A aprovação desse texto na em particular no campo dos movimentos
subcomissão da Família acendeu um alerta no populares e sindicais. Entre os exemplos
movimento feminista, que buscou se contrapor relevantes está o processo organizado pelas
apresentando uma emenda popular – possível mulheres da Central Única dos Trabalhadores
com o recolhimento de pelo menos 30 mil (CUT), que organizou um amplo debate
assinaturas – para que o direito à vida fosse culminando com a aprovação da bandeira de
assegurado a partir do nascimento. Esse foi um descriminalização e legalização do aborto no 4º
momento de ir às ruas, definir ações para essa Congresso, realizado em setembro de 1991. Já
coleta, que envolveu centenas de mulheres. as mulheres do Partido dos Trabalhadores (PT)
O resultado foi que as mulheres conseguiram priorizam esse tema nos anos 1992 e 1993,
reverter essa proposta e aprovar o direito à na preparação para o debate de programa
vida desde o nascimento, que figura até hoje de governo para as eleições presidenciais em
na Constituição Federal – embora os setores 1994. No campo das ONGs, em 1991, foi
contrários ao aborto continuem tentando criada a Rede Nacional Feminista de Saúde
emplacar a figura do direito do nascituro. e Direitos Reprodutivos e Sexuais. Ainda
para citar exemplos dessa ampliação, em
AMPLIAÇÃO DO DEBATE 1993 a recém-criada Central de Movimentos
PELA LEGALIZAÇÃO Populares também incorpora o direito
DO ABORTO ao aborto como parte de sua plataforma.
Em 1988, a Rede Mundial de Direitos Estes exemplos mostram como o tema do
Reprodutivos e pela Saúde da Mulher lança a aborto foi ampliando para além dos grupos
campanha pela redução da morbi-mortalidade estritamente considerados feministas, em uma
materna criando o dia 28 de maio como um demonstração de que, no Brasil, o feminismo
dia internacional de luta, contribuindo para se constroi também nos movimentos
a disseminação do debate sobre as causas da populares.
mortalidade materna no mundo. No Brasil, isso Um marco para o debate sobre o aborto
favoreceu a discussão ampla do aborto como aconteceu durante o governo de Luiza
uma das principais causas de morte materna. Erundina, eleita prefeita da cidade de São

32
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Paulo pelo PT entre 1989 e 1993. Nessa época, públicos os casos de aborto já previstos em lei
foi criado o primeiro serviço de aborto legal (Rocha, 2008). O texto, incorporado às outras
no país, precedido de debates e mobilização proposições em análise e com um substitutivo
popular para dar sustentação a essa proposta. da deputada Jandira Feghali (PCdoB), gerou
Direcionado à mulheres com gestação de risco um intenso debate na Câmara dos Deputados
ou vítimas de estupro, casos de aborto previstos e uma forte reação da bancada religiosa, que
em lei, o programa Aborto Legal dispensava a acabou travando a sua tramitação.
necessidade de autorização judicial – ainda que No movimento feminista, a discussão
exigisse apresentação de Boletim de Ocorrência colocada era em torno ao debate sobre
e laudo do Instituto Médico Legal (IML). descriminalizar ou legalizar o aborto. O
boletim Mulher e Saúde, da SOF, edição
ANOS 1990: MOVIMENTAÇÕES de maio 1993, nº 1, apresentou a seguinte
EM TORNO DO DIREITO AO argumentação: “nos espaços mais amplos do
ABORTO EM TEMPOS DE movimento, descriminalização e legalização
NEOLIBERALISMO têm sido entendidas como dois aspectos
Apesar do amplo processo desenvolvido nos complementares. Isso acontece porque o
anos 80, não se gestou um espaço comum, uma movimento não discute a partir do aspecto
campanha, onde todas essas vozes pudessem jurídico, mas sim a partir do direito ao aborto
tomar as decisões sobre as estratégias da luta e da garantia do acesso ao aborto gratuito e
pelo direito ao aborto. No Congresso Nacional, seguro.” Nesse sentido, setores principalmente
a Rede Saúde e o CFEMEA – Centro Feminista ligados à CUT e aos movimentos populares
de Estudos e Assessoria - eram as principais defendiam que o importante era a
interlocutoras para acompanhar os projetos de obrigatoriedade de que o Estado garantisse
lei relacionados ao aborto. Foram vários anos de o aborto na rede pública, entendendo que
debate sobre qual deveria ser o encaminhamento poderia fazer parte de uma legislação como da
em torno dos projetos. saúde, por exemplo, e não necessariamente do
No campo dos partidos, as mulheres do PT Código Penal.
atuaram para que, em 1989, o então deputado Já em meados de 1990, alguns
federal Jose Genoino Neto apresentasse ao grupos feministas fortaleceram outra
Congresso Nacional um Projeto de Lei com posição, defendendo que propor apenas a
seis artigos declarando a livre opção da mulher descriminalização facilitaria a aprovação de
de ter ou não filhos; o direito de interromper um projeto de lei. E, finalmente, depois da
a gravidez nos primeiros 90 dias de gestação; Conferência do Cairo (1994), a Rede Saúde
o direito a que esta interrupção fosse realizada e outros setores propuseram um projeto que
na rede pública hospitalar em seus diversos apenas regulamentava os casos previstos em lei.
níveis (federal, estadual e municipal). No E foi esse o projeto que tramitou na Câmara.
início da década de 90, havia 23 projetos A definição dessa estratégia não incorporou
de lei sobre o aborto, sendo que a maioria o conjunto do movimento de mulheres na
tratava da ampliação do direito e o projeto análise política e na tomada de decisão. Se
20/91 apresentado por Eduardo Jorge e isso tivesse ocorrido teriam a possibilidade
Sandra Starling, deputado e deputada federal de analisar qual o melhor caminho para
pelo PT, tratava de regulamentar nos serviços regulamentar o aborto nos serviços de saúde,

33
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

algo já previsto no Código Penal e com um descartado. Ao mesmo tempo, outros setores
histórico de implementação de serviço de do movimento que não foram considerados
aborto legal desde 1989 no hospital Jabaquara, para a tomada de decisões também não tiveram
em São Paulo, respaldado pela Portaria capacidade de impor outra dinâmica.
Municipal nº 692/89 de 24/04/89. Aos É talvez nesse tema do aborto que tenha
poucos, outros hospitais, em outras cidades, ficado mais visível a hierarquia não explicitada
foram implantando o serviço de aborto no campo do feminismo entre as chamadas
nos casos previstos em lei, demonstrando “feministas” e o “movimento de mulheres”.
a necessidade de vontade política do poder Está subjacente e subliminar nessa visão
executivo. um modo de tratar o feminismo como se
Em 1995, o então deputado Severino uma parte fosse mais feminista que a outra,
Cavalcante apresentou uma Proposta de composta por mulheres em geral do campo
Emenda Constitucional (PEC) que propunha popular (Faria, 2005). No fim das contas, essa
alterar a Constituição para defesa da vida hierarquia legitimou um setor do movimento
desde a concepção, buscando assim inviabilizar para definir questões cruciais sem a necessidade
qualquer proposta de descriminalização do de processos amplos que congregassem todas as
aborto. Essa proposta foi um dos primeiros envolvidas nessa luta pelo direito ao aborto.
sinais de uma forma mais ativa de atuação de O foco no projeto que regulamentava o
grupos religiosos contrários ao aborto, que se aborto legal no serviço público tinha como
deu de forma semelhante em diversos países argumento construir a descriminalização
da América Latina. Após a derrota dessa PEC, por etapas. No entanto, a regulamentação
em 1996, setores do movimento voltam a se poderia ter percorrido outros caminhos. E
articular em torno do que foi chamado aborto de fato o que ocorreu foi que o Conselho
legal. Essa posição foi tão hegemônica que, Nacional de Saúde aprovou a resolução nº258
naquele momento, era quase impossível se de 06/11/1997 que “Solicita ao Ministério
posicionar pela descriminalização do aborto. da Saúde que proceda à normatização da
É preciso lembrar que, nos anos 1990 regulamentação do atendimento nos casos de
o neoliberalismo se tornou hegemônico, aborto legal pelo SUS”. Assim, em novembro
e a aplicação das receitas do Consenso de 1998, o Ministério da Saúde, então sob o
de Washington indicavam a redução dos comando de José Serra, implantou a Norma
investimentos sociais e mais presença do Técnica Prevenção e tratamento aos agravos
mercado em áreas fundamentais para a vida. resultantes da violência sexual contra mulheres
e adolescentes1.
LOBBY OU Há portanto um balanço crítico sobre a
LUTA DE MASSAS? tática que prevaleceu no feminismo, ou seja,
Ainda é necessário realizar um balanço de reduzir o projeto de lei da legalização para
sobre as posições tomadas pelo feminismo que a regulamentação, que não necessitava de uma
influíram no rumo do debate da questão do legislação específica, bastando regulamentação
aborto no Brasil. Na prática, o que prevaleceu
1. Em 2005, o Ministério da Saúde elaborou uma nova norma técnica de
nos anos 1990 foi priorizar o lobby no atenção humanizada ao abortamento que, para além do aborto previsto
em lei, orienta profissionais de saúde para o atendimento humanizado
Congresso e nos meios de comunicação. Com nos casos de entrada nos hospitais com auto aborto incompleto. Esta
norma técnica também dispensa a obrigatoriedade do boletim de
essa estratégia, o potencial de mobilização foi ocorrência para o atendimento da mulher vítima de violência.

34
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

O CORPO DAS MULHERES, No período de transição para o regime


EUGENIA, RACISMO democrático, a articulação de grupos
E CONTROLE SOCIAL feministas e dos movimentos de mulheres
DA POBREZA negras e em defesa dos direitos das mulheres
O direito ao aborto é uma questão política resultou em mudanças na abordagem da
central para a autonomia das mulheres sobre saúde reprodutiva, com destaque para o
seu corpo e sua vida. Nesse sentido, é parte Programa de Assistência Integral à Saúde da
de uma disputa mais ampla e que se articula Mulher (PAISM), criado em 1983.
a outras políticas que interferem diretamente
no corpo das mulheres e em sua capacidade CORPO APROPRIADO
reprodutiva. PELO ESTADO E
Estado e mercado já andaram juntos PELAS CORPORAÇÕES
no passado no controle da reprodução Casos alarmantes de cooptação do
das mulheres das camadas mais pobres, Estado pelos interesses do mercado não
principalmente das mulheres negras. Na são raros e precisamos estar atentas. Hoje as
ausência de medidas de promoção da saúde políticas controlistas retornam com outras
e da autonomia sobre a sexualidade, o abordagens, com públicos-alvo específicos,
controle da natalidade disfarçado de política como adolescentes pobres e mulheres
de saúde foi imposto para a população pobre em situação de rua ou encarceradas. Um
e negra durante todo século 20. exemplo recente foi o caso de adolescentes
Em 1965, sob a ditadura militar, surge que viviam em abrigos de Porto Alegre
no Brasil a Sociedade Brasileira de Bem- (RS) sendo testadas pela farmacêutica
Estar Familiar, a BEMFAM, que atuou Bayer. Os testes consistiam na aplicação
principalmente nas regiões Nordeste e de dispositivos que liberam um hormônio
Centro-Oeste. No Brasil, pelo menos desde diretamente no útero das meninas para
os anos 1980, acumulam-se denúncias impedir a gravidez.
de esterilização em massa de mulheres Em 2018, um termo de cooperação
das regiões mais pobres do país, levando entre o Ministério Público Estadual, a Bayer,
inclusive à abertura de uma Comissão a Prefeitura de Porto Alegre e hospitais da
Parlamentar de Inquérito no Congresso cidade foi firmado, autorizando essa prática.
Nacional, em 1992. Os abrigos se comprometeram a selecionar
A partir do trabalho da BEMFAM, as adolescentes para receber os dispositivos,
clínicas privadas e médicos que cobravam enquanto, segundo o acordo, a única
laqueadura por fora do SUS levaram a responsabilidade da empresa seria “doar” 100
esterilização às mulheres brasileiras em unidades do SIU-LNG (Sistema Intra-Uterino).
massa e, em muitos casos, com a conivência As meninas foram utilizadas como cobaias
expressa de governantes que compactuavam para que a empresa pudesse testar esse
de uma visão eugênica, de “melhoria do medicamento, que já havia sido rejeitado
patrimônio genético”. pela Anvisa em 2016.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

do Ministério da Saúde. O mais grave nesse Jandira Feghali (PCdoB).


processo é que as posições que prevaleceram Mas levar adiante a tramitação desse projeto
colocaram o conjunto do movimento na não foi prioridade do primeiro governo Lula,
defensiva pois, enquanto a direita e os setores nem dos governos posteriores do PT, apesar
conservadores atacavam qualquer direito ao de que nas duas Conferências Nacionais
aborto, a resposta do movimento se restringia de Política para as Mulheres seguintes, em
à aprovação do projeto de regulamentação 2007 e 2011, o direito ao aborto tenha sido
dos casos de aborto previstos em Lei, novamente apresentado e aprovado com
secundarizando a luta pela descriminalização ampla votação favorável em defesa da sua
do aborto e ocultando a luta pela legalização. descriminalização e legalização. No entanto,
desde o governo foram estabelecidas outras
OS ANOS 2000: prioridades, como as ações de combate à
CONTRADIÇÕES E REAÇÃO violência sexista, articulação para a ampliação
CONSERVADORA da autonomia econômica e da atenção à saúde
Mais do que um balanço estruturado sobre das mulheres.
os caminhos das lutas pelo direito ao aborto
a partir dos anos 2000, apresentamos aqui OS ANTI-DIREITOS
alguns elementos que nos ajudam a olhar SE ORGANIZAM
para esse período, que tem como referência os Em 2003, foi criada a Frente Parlamentar
governos do PT na Presidência da República, Evangélica, resultante da articulação liderada
de maneira a contribuir para identificar os por um deputado do PMDB da Assembleia
desafios que enfrentamos hoje. de Deus. Essa Frente tem sido, desde então,
Na relação do movimento feminista com base importante para a articulação contrária ao
o Estado, a Conferência Nacional de Políticas direito ao aborto na Câmara dos Deputados.
para as Mulheres (CNPM) foi um espaço Frente a posições mais progressistas no poder
importante para as mulheres de forma geral executivo, mais aberto à construção de políticas
e, particularmente, na questão do aborto. públicas a partir do diálogo com o movimento
A primeira edição aconteceu em 2004 e social, os setores conservadores contrários
aprovou uma resolução para revisar a legislação ao aborto se organizaram, nesse período, no
punitiva sobre o aborto no Brasil. A partir Congresso Nacional.
dessa resolução, a Secretaria de Política para A disseminação de notícias falsas, como a
as Mulheres (SPM) encaminhou a instalação alegação de que o projeto apresentado pela
de uma comissão tripartite – reunindo comissão tripartite propunha o aborto até
representantes da sociedade civil, do poder 9 meses, deram o tom daquele momento
executivo e do legislativo. O resultado do político em que foi registrada, no Congresso,
trabalho dessa comissão, em 2005, foi um a Frente Parlamentar Contra o Aborto
projeto de lei para a descriminalização e em Defesa da Vida (2005). Esses grupos
legalização do aborto. Em 27 de setembro constituíram comitês chamados Brasil Sem
daquele ano, a Ministra Nilcéia Freire (SPM) Aborto e realizaram atos públicos. Desde
apresentou o projeto à Comissão de Seguridade então, a cada legislatura se formam novas
Social e Família (CSSF), da Câmara dos frentes pluripartidárias focadas no “direito à
Deputados, que foi recebido pela deputada vida”, presididas por parlamentares espíritas,

36
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

católicos e evangélicos das igrejas Assembleia

ARQUIVO SOF
de Deus e Sara nossa Terra. A análise da
composição e movimentação dessas Frentes e
da proposição de projetos nas comissões e por
meio de discursos em plenário demonstra que
a liderança dos anti-direitos não se restringe
aos parlamentares evangélicos, nem a partidos
específicos (Biroli et al, 2017).
Exemplos dessa reorganização e ofensiva
contra os direitos das mulheres são as
proposições como o Estatuto do Nascituro
(PL 478/2007), que conferia proteção
jurídica aos não-nascidos, e o projeto que
ficou conhecido como Bolsa Estupro (PL
1763/2007), que previa ajuda financeira sofreram intervenção policial nas cidades
para mulheres que não desistissem de uma de Porto Alegre, Belém, Rio de Janeiro,
gravidez fruto da violação. Anos mais tarde os Fortaleza, entre outras.
dois projetos foram fundidos. Tentativas de criminalizar as ativistas
Mas essa ofensiva se deu para além dos também acompanharam essa ofensiva.
muros do Congresso Nacional e dos cultos. Manifestações da defesa do direito ao aborto
A propaganda antiaborto é intensificada em lambe-lambes espalhados pelas cidades
em outdoors espalhados em várias capitais foram consideradas “apologia ao crime” no
brasileiras. A ofensiva de criminalização Mato Grosso do Sul. Felizmente os inquéritos
começou a ganhar forma, com fechamentos de não foram adiante. O direito de questionar
a criminalização do aborto faz parte da
clínicas que praticavam aborto, em operações
possibilidade de crítica do dispositivo que
policiais sempre acompanhadas de câmeras
controla o direito fundamental à autonomia e
de jornais dos grandes conglomerados de
à dignidade das mulheres. Categorizar esse tipo
comunicação, como a Rede Globo.
de manifestação como crime fere a liberdade de
Foi assim em abril de 2007, quando o
expressão e o direito à informação, necessários
Ministério Público do Mato Grosso do Sul
para o funcionamento da democracia.
fechou um estabelecimento clandestino e
tornou pública uma lista com 10 mil nomes
COMBINAÇÃO DE
de pacientes que abortaram. Dessas, mais de ESTRATÉGIAS FEMINISTAS
1.000 mulheres foram indiciadas e algumas Ao longo dos anos 2000, foram muitas
foram condenadas, tendo que cumprir penas iniciativas e estratégias do movimento
como prestação de serviços comunitários feminista para intensificar o debate sobre a
em creches e escolas2. As profissionais que legalização do aborto.
trabalhavam naquela clínica foram condenadas Na Marcha Mundial das Mulheres, desde
pelo júri popular. Esse tipo de ação tornou- 2004, os dizeres “Eu aborto, tu abortas,
se cada vez mais comum e várias clínicas somos todas clandestinas” e “Essa hipocrisia
2. https://apublica.org/2013/09/milhares-de-mulheres-expostas/ dá hemorragia! Legalizar o aborto, direito

37
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ao nosso corpo” estampam lambe-lambes e

HELENAZELIC
intervenções urbanas em diferentes lugares
no Brasil. A batucada acompanha com as
músicas e palavras de ordem “Legalize! O
corpo é nosso! É nossa escolha! É pela vida das
mulheres”.
O objetivo desse tipo de ação é colocar
o debate sobre o aborto diretamente
na sociedade. O diálogo acontece em
ações nas redes e nas ruas, panfletagens e
manifestações a cada 28 de setembro – Dia

ARQUIVO SOF
de Luta pela Descriminalização do Aborto.
Em muitos estados, já em 2005 a MMM
impulsionou a criação de comitês pela
legalização do aborto com a participação
do movimento feminista, do movimento
estudantil, de mulheres da CUT, de
partidos políticos de esquerda e conselhos
de profissionais como o de Serviço Social
(CRESS) e o de Medicina (CRM-SP).
ARQUIVO SOF

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

FRENTE NACIONAL NO BRASIL, O ESTADO


Em resposta à ofensiva de criminalização SÓ É LAICO NO PAPEL
do aborto, escancarada no fechamento de uma Não é à toa que as feministas e setores
clínica no Mato Grosso do Sul em 2007, o democráticos da sociedade defendemos
movimento de mulheres criou no mesmo ano que o Estado deve ser laico, assim como
a Frente Nacional Contra a Criminalização é garantido pela nossa Constituição.
das Mulheres e pela Legalização do Aborto. A expressão da fé é um tema de
Esse espaço de articulação reúne organizações foro pessoal e não pode interferir na
feministas, movimentos sociais, entidades promoção de direitos para a população. O
profissionais e partidos políticos com o Estado deve garantir a liberdade religiosa
objetivo de realizar ações coordenadas
sem se tornar refém de dogmas cristãos.
com foco no combate à criminalização das
Mas não é essa a situação do Brasil.
mulheres e em defesa do direito ao aborto.
O poder da influência religiosa na
Com altos e baixos em termos de
política cresceu com o controle de rádios
capacidade de convocatória e de articulação
de estratégias unificadas, a Frente realizou e TVs pelas Igrejas: A pesquisa sobre a
Assembleias Nacionais, produziu materiais de propriedade dos meios de comunicação
divulgação, posicionamentos contundentes no Brasil (Media Ownership Monitor
em momentos chave da conjuntura política Brasil), desenvolvida pelo coletivo
em torno do direito ao aborto e elaborou Intervozes, em parceria com a ONG
um importante dossiê sobre a criminalização Repórteres Sem Fronteiras, identificou
das mulheres entre 2007 e 20143. Desde que, dos 50 veículos com maior audiência
2016, no dia 28 de setembro, a Frente tem ou capacidade de influência sobre
articulado ações virtuais, como a virada online o público, nove são controlados por
e a hashtag #precisamosfalarsobreoaborto, lideranças religiosas, sejam católicas,
pautando o aborto, a autonomia e a cristãs ou evangélicas. ( https://brazil.
sexualidade das mulheres, com 24 horas de mom-rsf.org/)
transmissões ao vivo pelo Facebook e outras
Entre 2015 e 2018, a bancada religiosa
redes sociais.
está composta por 182 integrantes,
O movimento feminista também atuou
sendo 77 evangélicos e os demais de
para apoiar os avanços do poder executivo
outras religiões. Na bancada eleita para
tanto no sentido de ampliação do aborto legal
e de seu oferecimento em toda a rede SUS, 2019-2022, subiu para 80 o número de
não apenas nos hospitais de referência, como deputados federais evangélicos, eleitos
para a efetivação da portaria do Ministério afirmando a pauta contrária ao estado
da Saúde MS 415/2014, que, dentre outras laico.
determinações, aumentaria a remuneração dos Esse cenário se complica ainda mais
procedimentos de curetagem. A justificativa em 2018, quando o presidente eleito
dessa portaria, mais tarde revogada pela aparece em toda a mídia fazendo
portaria 437/2014, se ancorava na discussão uma oração ao vivo junto com seu
pronunciamento após a divulgação dos
3.https://frentelegalizacaoaborto.files.wordpress.com/2016/09/dossiecc82-
frente-contra-a-criminaizaccca7acc83o-das-mulheres.pdf resultados do segundo turno do pleito.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

do aborto como grave questão de saúde foi a visão de campanha que prevaleceu. No
pública e na necessidade de humanização do segundo turno, no acirramento da disputa,
atendimento ao aborto. a campanha do PT se deixou encurralar
pelas chantagens dos setores religiosos,
A FORÇA DA particularmente de setores das igrejas
REAÇÃO CONSERVADORA: católicas e evangélicas (Biroli et al, 2017).
O ABORTO NAS ELEIÇÕES Caindo na armadilha de tentar dar garantias
PRESIDENCIAIS
a esses setores, apresentou um documento
Um forte sinal da força dos setores
considerado inaceitável pelas feministas e por
conservadores se verifica na forma como
vários setores progressistas. A confusão entre
a questão do aborto apareceu nas eleições
religião e política foi reforçada nessas eleições
presidenciais, especialmente nos anos em
e significou cada vez mais uma afronta à
que Dilma Rousseff foi candidata e eleita
laicidade do Estado (Faria, 2011).
(em 2010 e 2014). A chantagem foi uma
das marcas da atuação dos movimentos anti-
CONSOLIDAÇÃO DA
direitos e reforçou a misoginia que marcou
BANCADA CONSERVADORA
essas eleições.
Fortalecida com as chantagens eleitorais
Em 2010, a candidata Dilma Rousseff
e para a composição da coalizão para formar
sofreu diversos ataques em relação ao seu
posicionamento pró-legalização do aborto. a base “aliada” do governo, a ofensiva
A grande mídia, que já vinha atuando da direita conservadora patriarcal no
na criminalização das mulheres e das Congresso ampliou sua ação, ainda mais
clínicas, reforçou mais uma vez a agenda agressiva à autonomia das mulheres. O
do conservadorismo, buscando enfraquecer PL 5069/13, de Eduardo Cunha, visava
essa candidatura. A rejeição à legalização obstruir o atendimento às vítimas de
do aborto era a maior em quase 20 anos: estupro e dificultar o acesso à contracepção
segundo a pesquisa Datafolha, 71% da de emergência. Já a PEC 181/2015,
população acreditava que a legislação sobre conhecida como PEC Cavalo de Troia, ao
aborto deveria ficar como estava e apenas 7% propor a ampliação dos direitos de licença-
defendiam a descriminalização. Em 1994 esse maternidade para as mães de nascidos
número era 34%, sendo que 19% defendiam prematuros, também inseria o direito à vida
a descriminalização em qualquer caso. Já em desde a concepção no texto constitucional –
2006, o índice relativo à conservação da lei o que os setores conservadores tentam fazer
era de 63%, sendo que 11% defendiam a desde a constituinte.
descriminalização.4
Esse momento poderia ter sido usado para ESTRATÉGIAS JUDICIAIS
fazer uma disputa de valores e denunciar o OU JUDICIALIZAÇÃO
conservadorismo na sociedade, mas essa não DA POLÍTICA?
Enquanto isso, em 2012, o Supremo
4. Fontes: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/8/28/cotidiano/2.html Tribunal Federal (STF) autorizou a
http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/1226779-posicao-
politica-opiniao-sobre-o-aborto-pena-de-morte-descriminalizacao- interrupção da gestação no caso de fetos
da-maconha-e-maioridade-penal-47-dos-eleitores-brasileiros-se-
posicionam-a-direita.shtml

40
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

anencéfalos (ADPF 54)5. A ação havia sido

ARQUIVO MMM
apresentada em 2004, pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Saúde. A
decisão ocorreu em meio a muito debate e
muita pressão de grupos religiosos. O voto
do relator, Marco Aurélio Mello, destacou
que o direito à vida de um feto sem chances
de sobreviver não poderia se sobrepor à
dignidade e à autonomia da mulher.
Em 2016, o Habeas Corpus 124.306 do
STF entendeu que a consideração do aborto
como um crime (conforme estabelecido
nos artigos 124 a 126 do Código Penal)
é incompatível com os direitos sexuais e
reprodutivos, a autonomia e a integridade
física e psíquica da mulher.
Com base nessa decisão, em 2017, o
PSOL, em parceria com a Anis - Instituto
de Bioética, Direitos Humanos e Gênero,
propôs a ADPF 442, que requer a
descriminalização do aborto até a 12ª
semana.
A ADPF 442 argumenta que o fato
de o aborto ser um crime viola direitos
fundamentais previstos na Constituição,
como o direito à dignidade, à cidadania e
à vida. Assim, demanda que o Supremo
a essa proposição. Não existe um prazo para
Tribunal Federal analise o caso levando
a tramitação dessa Ação, pois a pauta do
em conta que o Código Penal é anterior à
STF depende diretamente da vontade de seu
Constituição de 1988. Uma das funções da
presidente. Em um contexto de avanço do
suprema corte é fazer a revisão constitucional
conservadorismo patriarcal, que atinge todas
de práticas legislativas que ferem os direitos
as estruturas do poder, inclusive o judiciário,
fundamentais. Assim, o Tribunal criaria um
é improvável que a descriminalização do
precedente para impedir a aplicação dos
aborto seja pautada. Além disso, ainda que
artigos 124 e 126 do Código Penal, relativos
a aprovação da ADPF seja um importante
ao autoaborto e ao aborto em terceiros,
passo para a descriminalização do aborto no
respectivamente. Em agosto de 2018, o
Brasil, a sua aprovação por si só seria incapaz
STF realizou uma audiência pública para
de garantir que o conjunto das mulheres –
ouvir os argumentos contrários e favoráveis
especialmente as mulheres pobres e negras,
5. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental defendeu que são as que mais recorrem ao aborto
que a gestação de feto anencefálo é perigosa à saúde da gestante e,
portanto,o aborto nesse caso se enquadra nas hipóteses legais clandestino – pudessem acessar esse direito.

41
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

MAIS FEMINISMO NA LUTA

ELAINE CAMPOS
PELA LEGALIZAÇÃO DO
ABORTO
É fato que a reação conservadora patriarcal
tem crescido e atinge proporções não
conhecidas anteriormente. Ao mesmo tempo,
o feminismo se amplia a partir de dinâmicas
já existentes e com muita força de mulheres
jovens e estudantes, conectadas e ativas na
internet.
Desde 2013, o feminismo tem ocupado as
ruas para barrar propostas conservadoras em
relação ao aborto. Convocada nas redes sociais
e construída junto com os movimentos sociais
organizados, uma mobilização contrária
ao Estatuto do Nascituro juntou mais de 3
mil mulheres na Praça da Sé em junho de
2013, inaugurando um novo momento de
convergência de movimentos para a luta pelo
direito à autonomia de nossos corpos.
Em novembro de 2015, milhares de
mulheres protestaram contra o PL 5069 de
Eduardo Cunha, que restringe o acesso ao
aborto mesmo nos casos previstos em lei. Com
cartazes e palavras de ordem que não apenas
rejeitavam o projeto de lei, mas reivindicavam
a legalização do aborto e a saída de Cunha da
presidência do Congresso, as feministas foram
protagonistas no desgaste do parlamentar e na
ANDERSON BARBOSA

luta contra o golpe no ano seguinte. Fotos do


Fora Cunha e da Marcha das Margaridas
As mulheres não saíram das ruas após a
efetivação do golpe em 2016. Denunciaram
a Proposta de Emenda Constitucional (PEC)
do “teto de gastos”, que congelou por 20 anos
os investimentos sociais em saúde, educação e
assistência social, entre outras áreas, e resistiram
bravamente com o conjunto dos movimentos
sociais e sindicais contra a reforma trabalhista
e a reforma da previdência. Um ambiente de
destituição de direitos e de constantes ameaças
conservadoras, como as expressas nos projetos

42
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

da “escola sem partido”, que se constitui, na populares é limitada. Além de não garantir
verdade, como uma lei da mordaça contra o a correlação de forças necessária para sua
livre debate e o pensamento crítico, criam um legalização, essa estratégia não garante que o
caldo de cultura desfavorável à ampliação de direito ao aborto – uma vez legalizado – seja
direitos, especialmente os das mulheres. de fato implementado no serviço público de
A luta pelo direito ao aborto legal, seguro e saúde e que se alterem as representações sociais
gratuito se torna mais desafiadora, mas não por misóginas sobre ele.
isso menos urgente. A maré verde que tomou A questão do aborto precisa ser mais
conta da Argentina, com a aprovação da politizada e não pode ser reduzida a uma
legalização do aborto pelo Congresso argentino experiência individual, como se fosse
no primeiro semestre de 2018, nos influencia. desvinculada de processos coletivos e sociais.
Mesmo que a votação do senado argentino Mais do que a afirmação de discursos
tenha barrado o projeto, a mobilização feministas como “meu corpo, eu que decido”,
massiva, forte e intensa de milhares de compreendemos a necessidade de se reforçar
mulheres colocou essa reivindicação em outro processos amplos de formação e educação
patamar, e esta não é uma luta que acaba na popular. Estes devem se pautar a partir do
votação de um projeto de lei, muito menos feminismo, da afirmação da justiça e da
com uma eleição. autonomia das mulheres, do reconhecimento
das relações de poder e do enfrentamento às
MOBILIZAÇÃO DE MASSA: contradições vivenciadas pelas mulheres no
MUITO ALÉM DO LOBBY cotidiano das batalhas para que o corpo/vida
Olhar para a história e construir um sejam de fato seus.
balanço crítico significa reconhecer os acertos A luta pelo direito ao aborto em tempos
e também os limites e/ou equívocos das de golpe e de autoritarismo legitimado pelas
estratégias utilizadas na luta pelo direito ao eleições mais uma vez coloca o desafio de
aborto. articular o direito ao aborto com a disputa
Ao contrário da visão que foi hegemônica mais geral em curso na sociedade, sobretudo
no feminismo em um período, especialmente em defesa da democracia. Em alguma medida,
na atuação no Congresso Nacional, afirmamos as conexões entre a agenda feminista e o
que não é possível aprovar o direito ao aborto conjunto da luta social são mais evidentes hoje,
com estratégias que prescindem da força das já que o acirramento dos discursos e práticas
mulheres trabalhadoras e dos setores populares. reacionárias têm bases explicitamente racistas
No campo do feminismo construído pela e patriarcais. A solidariedade dos movimentos
Marcha Mundial das Mulheres, o desafio sociais e organizações de esquerda com as lutas
é manter uma estratégia permanente feministas e antirracistas precisa se traduzir em
que combina a centralidade da defesa da compromisso e ações concretas.
autonomia das mulheres com a ampla O desafio é manter um patamar de
mobilização da sociedade. lutas permanente, que transpasse as ondas
A busca por ampliar o direito ao aborto e mobilizadoras, que se popularize e se amplie
alcançar sua legalização por meio de recursos para mais setores e que, assim, consiga garantir
legislativos e jurídicos sem que haja um debate às mulheres a autonomia em relação a seus
intenso desde as mulheres dos movimentos corpos e suas vidas.

43
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
HELENAZELIC

AÇÃO DE 2015 “Enquanto a criminalização do aborto


PRIMAVERA PELO DIREITO AO nos empurra para a clandestinidade, a
CORPO E À VIDA DAS MULHERES solidariedade entre as mulheres salva vidas
Entre os dias 26 e 28 de setembro de e garante nossa autonomia. Inspiradas
2015, 500 mulheres argentinas, brasileiras pelas companheiras argentinas nos
e uruguaias se encontraram em Santana comprometemos a disputar os sentidos
do Livramento (fronteira Brasil/Uruguai) do aborto, como uma experiência de
na “Primavera pelo direito ao corpo e à autonomia e autodeterminação.
vida das mulheres”, parte da Quarta Ação Com as companheiras uruguaias
Internacional da Marcha Mundial das reconhecemos os avanços mas também
Mulheres. conhecemos os limites da lei que legalizou
A ação aconteceu na fronteira Brasil- parcialmente o aborto em 2012. As
Uruguai, em Santana do Livramento- mulheres uruguaias se deparam com uma
Rivera, para colocar em prática o sentido série de obstáculos e limites para ter acesso
da palavra fronteira como espaço a esse direito. Nossa defesa da legalização
comum e compartilhado, na perspectiva do aborto é para que sejam as mulheres
da integração dos povos. As mulheres que decidam os rumos da sua vida, e não
afirmaram compartilhar uma realidade de os médicos, o Estado ou as igrejas.
controle sobre os corpos, sexualidade e Sentimos em nosso cotidiano os
vidas, mas também a força, a teimosia e a efeitos do poder médico e da indústria
irreverência feminista que muda o mundo. farmacêutica que nos vendem pílulas para
Na declaração, as mulheres afirmaram: todos os tipos de dor, mas que nos afastam

44
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

da possibilidade de praticar a decisão toda a sociedade.


sobre a maternidade de forma autônoma. O encontro de mais de 500 mulheres
Recuperamos os saberes das mulheres e em movimento pela legalização do aborto
intercambiamos experiências de promoção é em si uma resposta ao conservadorismo
da saúde.. Recuperamos os saberes e a que se apresenta hoje nas diferentes
ancestralidade das mulheres negras e esferas da nossa sociedade. (…) Afirmamos
fortalecemos na prática a construção que a defesa e a conquista de nossa
de um feminismo antirracista que ainda autonomia é um assunto tão urgente
tem muitos caminhos por percorrer. (…) como o enfrentamento a crise econômica
Construímos nestes 3 dias resistência e política. Não deixaremos esta luta para
e solidariedade com a nossa auto- depois!”
organização como mulheres. Conhecendo A realização dessa ação contribuiu
as experiências das mulheres e revelando para impulsionar a organização das
nossas vozes e nossa diversidade, estamos mulheres da região Sul do país na luta pela
convencidas de que o direito ao aborto legalização do aborto. Desde então, as
é fundamental para nossa autonomia. O mulheres da MMM se articulam com outros
aborto é uma experiência que faz parte setores, incluindo profissionais da saúde,
das nossas vidas, e estamos em luta para acadêmicos e juristas em um processo de
que seja uma experiência vivida de forma ampliação do debate sobre aborto e da
autônoma, segura e que seja respeitada por garantia dos direitos das mulheres.
HELENAZELIC

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ELAINE CAMPOS

ELAINE CAMPOS

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

PARTE 4 |
O ABORTO HOJE:
CRIMINALIZAÇÃO,
CLANDESTINIDADE
E LUTA

P ermitido apenas em algumas situações, o


aborto ilegal no Brasil joga as mulheres
na clandestinidade e é responsável pela morte
de milhares delas todos os anos, sobretudo
das pobres e negras. Assim, a criminalização
do aborto sustenta uma hipocrisia, que é a
possibilidade de sua prática em condições
perfeitamente seguras para quem tem recursos
para realizá-lo em clínicas que integram um
mercado clandestino e desregulado. Frente
a essa hipocrisia, o movimento de mulheres
resiste com mobilização, redes de apoio e, para
além da descriminalização, reivindica que o
aborto seja legalizado e garantido no serviço
público de saúde: “Legalize, o corpo é nosso! É
nossa escolha! É pela vida das mulheres!”

A CRIMINALIZAÇÃO DO
ABORTO NO BRASIL
No Brasil, a prática do aborto só é permitida
quando a gravidez coloca riscos para a vida da
mulher, quando é fruto de violência sexual e
quando há formação de fetos anencéfalos. A
pena para a mulher que aborta em situações
diferentes dessas é de um a três anos de reclusão.
Para quem pratica um aborto em outra pessoa
com o seu consentimento, essa pena pode variar
de um a quatro anos de reclusão.
Durante muito tempo, apesar de estar
disposto no Código Penal, era muito raro que
uma mulher fosse de fato criminalizada por
fazer um aborto. As consequências do aborto

47
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

ser um crime estavam mais ligadas à falta de O mecanismo jurídico denominado


acesso das mulheres aos serviços públicos de suspensão condicional do processo tem sido
abortamento e aos riscos dos procedimentos utilizado nesses casos. A suspensão condicional
clandestinos e inseguros que afetavam de do processo é um método alternativo de
maneira desigual as mulheres negras e pobres. resolução de conflitos. É um acordo alternativo
Mas essa realidade mudou. Além dos à pena de prisão, realizado entre a acusada e
projetos de lei que visam restringir ainda mais o Estado, nos crimes cuja pena mínima não
o direito ao aborto, a criminalização se dá ultrapassa um ano. Ela pode ser utilizada caso a
pela via do judiciário. Mulheres estão sendo acusada não seja reincidente em crime doloso,
condenadas pela prática do aborto. ou seja, crime praticado com consciência de
O dossiê da Frente Nacional contra sua ilegalidade, e nem esteja sendo processada
a Criminalização das Mulheres e pela por outro crime.
Legalização do Aborto, em 2015, analisou os Assim, a mulher criminalizada por aborto
casos representativos de criminalização entre pode assinar um documento indicando
2007 (data do fechamento de uma clínica que cumprirá determinados requisitos em
no Mato Grosso do Sul) e 2014. Esse dossiê liberdade durante um período mínimo de 24
indica que os profissionais de saúde são um meses. Dentre as obrigações impostas pela
dos principais canais pelos quais chegam as suspensão condicional estão: comparecer
denúncias. Outros dois importantes canais mensalmente em juízo para justificar suas
são a denúncia anônima, feita por vizinhos e atividades; a proibição de frequentar certos
familiares e o jornalismo “investigativo”, que lugares como bares ou casas noturnas e de se
expõe as mulheres por meio de reportagens ausentar da cidade onde reside por mais de
sensacionalistas. 15 dias, entre outros. Se, ao final do período
Um levantamento realizado pela SOF em determinado, a mulher tiver cumprido todas
2017 por meio de requerimentos aos tribunais as obrigações regularmente, o processo é
estaduais e secretarias de segurança pública de suspenso.
10 estados mostrou que as maiores taxas de Ainda que esse seja um mecanismo de
criminalização são relativas a abortos realizados praxe na defesa jurídica, utilizado para
por terceiros em clínicas clandestinas, mas evitar prisões, não significa que as mulheres
que há um crescimento da criminalização sejam inocentadas. Por isso, continua sendo
das mulheres pelo autoaborto. A leitura dos uma forma de criminalizar, estigmatizar e
inquéritos enviados pelos órgãos públicos culpabilizar as mulheres pela prática do aborto.
revelou que, na maioria dos casos, as mulheres As obrigações que as acusadas têm de reportar
foram denunciadas por profissionais de saúde ao judiciário para não serem encarceradas
após procurar ajuda médica em decorrência de representam controle, vigilância e tutela sobre
um aborto. as suas vidas.
As mulheres são mais denunciadas quando
o debate conservador tem mais peso na QUEM É CRIMINALIZADA
sociedade. Durante 2014, por exemplo, ano NO BRASIL?
eleitoral, chama a atenção o aumento de O perfil das mulheres criminalizadas pelo
indiciamentos nos estados do Rio de Janeiro e aborto é justamente o mesmo das que são alvo
Minas Gerais. da justiça seletiva: mulheres pobres e negras.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

DIFERENÇAS ENTRE A defesa da legalização do aborto está


DESCRIMINALIZAR E totalmente entrelaçada à defesa da saúde
LEGALIZAR O ABORTO pública como direito. Descriminalizar
A primeira diferença está na sem garantir o direito integrado à política
necessidade de promover leis e políticas pública de saúde mantém restrito o
que garantam o exercício desse direito. acesso, ao mesmo tempo em que libera
Ou seja, a legalização do aborto implica e organiza um mercado significativo para
que o Estado reconheça o aborto como as empresas farmacêuticas transnacionais
um direito e não apenas assegure que que produzem os medicamentos
as mulheres não sejam criminalizadas, abortivos, como o misoprostol. Na
mas garanta que elas tenham acesso Argentina, por exemplo, um debate
à informação e a procedimentos colocado é sobre a produção desse
seguros, que possam fazer abortos medicamento por um laboratório público,
no serviço público de saúde, com na província de Santa Fé.
acompanhamento adequado. Apenas descriminalizar, sem legalizar,
A descriminalização pode significar o mantém a estrutura de acesso desigual
fim da perseguição jurídica às mulheres, ao exercício desse direito, ao qual muitas
mas não resolve automaticamente e mulheres que têm dinheiro, informações e
nem se propõe a superar as barreiras recursos de forma geral têm mais facilidade
morais ou econômicas que as mulheres de acesso. Já os riscos são distribuídos
enfrentam ao buscar interromper uma desigualmente conforme a raça, a classe e,
gravidez. marcadamente no Brasil, pela região.

No Brasil, a população carcerária violência sexista. Por isso é preciso refletir


feminina é a que mais cresce. Como o sobre as estratégias de atuação e disputa
Infopen Mulheres indica, entre 2000 e nessas vias institucionais e até mesmo nas
2014, o aumento foi de 567,4% sendo próprias estratégias de litigância em defesa das
que duas em cada três mulheres presas são mulheres, que muitas vezes são operadas na
negras (67%). Metade delas não concluiu o chave da culpa, castigo ou punição.
ensino fundamental, e apenas 1% concluiu É necessário saber balancear a defesa
o ensino superior. Por isso, primeiramente da liberdade concreta das mulheres com
é fundamental que a luta contra a a afirmação da autonomia sobre seus
criminalização do aborto esteja atrelada à corpos e vidas como direito constitucional
luta contra o encarceramento em massa e o fundamental da democracia. Se o direito
extermínio da população negra. é uma forma de intervir no sistema desde
A estrutura do judiciário à frente da dentro, o processo jurídico trabalhado a
criminalização das mulheres que abortam partir de uma perspectiva feminista deve
é a mesma que reforça criminalização da catalisar as inquietudes com as leis injustas,
pobreza e do povo negro e a impunidade contribuindo para a tomada de consciência
dos perpetradores e coniventes com a daqueles que operam e aplicam a lei.

49
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

AUTONOMIA EM QUESTÃO:
Nos Estados Unidos o aborto foi
A GEOPOLÍTICA DO ABORTO
descriminalizado em 1973 pela Corte
Uma pesquisa realizada pelo
Constitucional sob o argumento de se
Instituto Guttmacher, organização tratar de uma questão individual, de
norte-americana parceira da direito à privacidade. Isso não garantiu
Universidade de Columbia e da que as mulheres pudessem acessar o direito
IPPF (Federação Internacional de à autonomia sobre seus corpos. Dois
Planejamento Familiar) indicou que anos depois, em 1975, a mesma Corte
a taxa anual de aborto nos países norte-americana, pela pressão da reação
do norte (ditos desenvolvidos), conservadora, determinou que, por se tratar
de um direito individual, o Estado não tinha
onde a prática é legalizada, caiu
nenhuma responsabilidade sobre o assunto.
significativamente em 20 anos – de 46
Portanto, recursos públicos não poderiam
para 27 abortos em cada mil mulheres ser utilizados para realizar procedimentos de
na idade reprodutiva. Já em países do aborto. Assim, apesar de o aborto não ser um
sul global (ditos subdesenvolvidos) crime há mais de 45 anos, no país onde a
a taxa, mesmo que tenha diminuído, saúde é uma mercadoria as mulheres de baixa
apresentou certa estabilidade, renda ainda encontram muitas barreiras ao
passando de 39 para 36 mulheres a tentar interromper uma gravidez indesejada.
cada mil. Na França, o processo de
O estudo comparou os dados de descriminalização do aborto contou com
muitas frentes de atuação, em uma ampla
1990 a 1994 e de 2010 a 2014. A maior
mobilização conduzida pelas feministas.
taxa de declínio ocorreu na Europa
Em 1971, circulou um manifesto em
Oriental, devido à intensificação do que 343 mulheres conhecidas, dentre elas
uso efetivo de contraceptivos. O Simone de Beauvoir e Catherine Deneuve,
centro asiático foi outro local onde as declararam já ter feito aborto. Em 1973,
taxas caíram significativamente. um processo jurídico na cidade de Bobigny
Segundo a Organização Mundial envolvendo uma jovem de 16 anos
da Saúde, a África é o continente violentada sexualmente ganhou visibilidade
onde as mulheres menos abortam nacional. Em 1975, a Assembleia Nacional
descriminalizou o aborto. Desde 1982,
proporcionalmente e onde elas
o sistema de saúde francês reembolsa as
mais morrem com a prática. O
cidadãs do país que desejam interromper a
continente africano representa 27% gravidez.
dos nascimentos anuais e 14% das Em Moçambique o aborto não é crime,
mulheres em idade fértil (15 a 49 anos) mas especialmente nas áreas rurais as
no mundo são africanas. Porém, 62% mulheres continuam a recorrer ao aborto
das mortes em decorrência de aborto inseguro, porque não há uma política de
inseguro acontecem nessa região. saúde que assegure esse direito.
Na África do Sul, desde 1996, o
aborto é legalizado e pode ser realizado em

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

COMO O ABORTO É TRATADO NO MUNDO

Permitido apenas para salvar a vida


Permitido para preservar a saúde
Não há restrições
Permitido com base em fatores econômico-sociais
Não disponível

Fonte da informação: Word Abortion Laws – Center for Reproductive Rights (2018).
Mapa recriado a partir de sistematização da Revista Época.

Na maioria dos países do sul mulheres mais fazem abortos inseguros,


político (países empobrecidos), o aborto proporcionalmente à população de
é crime. mulheres na faixa etária entre 15 e 49
Já na maioria dos países do norte político anos. Já a África é o lugar onde as mulheres
(países ricos), o aborto é legalizado. mais morrem em decorrência de abortos
A América Latina é o lugar onde as inseguros. (OMS, 2013)

51
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

hospitais públicos e clínicas médicas privadas, construídas pela revolução. Atualmente,


regulamentadas. A rede pública, porém, não é é permitido até a 8ª semana de gravidez e
capaz de acolher o conjunto da população. provido pelo sistema público de saúde, pela
Em Botsuana, Namíbia e Zimbábue, a decisão exclusiva da mulher.
legislação indica explicitamente que é possível Na Cidade do México, o aborto foi
fazer um aborto em caso de risco de saúde da legalizado em 2007 e é permitido até a 12ª
mulher. semana de gestação por decisão da mulher.
Na Zâmbia, é possível fazer um aborto A maioria dos países criminaliza o aborto na
por motivos socioeconômicos. Contudo, América Latina. Na República Dominicana,
a falta de conhecimento da lei e de onde El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua
encontrar os serviços (incluindo pessoal e Suriname o aborto não é admitido em
treinado, fornecimento de equipamentos nenhuma circunstância.
e medicamentos) faz com que as mulheres No Brasil, o aborto é permitido em três
façam o aborto majoritariamente de forma situações: risco de vida da mãe, gravidez
clandestina. Ainda, os valores e crenças pessoais decorrente de estupro e se o feto for
dos profissionais provedores do serviço ajudam anencéfalo. Este é o caso de vários outros países
a dificultar o acesso. da América Latina. Na Colômbia, Jamaica,
A América Latina possui proporcionalmente Santa Lúcia, Trinidad e Tobago soma-se
as maiores taxas de aborto clandestino do também a preservação da saúde mental. O
mundo. Com 9% das mulheres em idade fértil aborto é legalizado em quatro países e uma
do mundo, é responsável por um em cada cinco cidade da América Latina: Uruguai, Guiana,
abortos clandestinos (OMS, 2013). Em nossa Cuba, Porto Rico e na Cidade do México.
região, as mulheres ainda encontram muitos
obstáculos para acessar o serviço, mesmo nos AS MUDANÇAS NA FORMA
lugares onde o aborto é lei. DE FAZER ABORTO
No Uruguai, o aborto realizado até a 12a As formas de fazer aborto têm se
semana foi legalizado em 2012. Mas a objeção de alterado nas últimas décadas devido ao uso
consciência - quando os médicos alegam crenças de medicamentos. Antes, predominavam
pessoais para não realizar um procedimento - as sondas, substâncias cáusticas e objetos
tem se mostrado um verdadeiro empecilho para perfurantes e agora tais ações vêm sendo
a realização do aborto, especialmente no interior substituídas pelo misoprostol (Diniz e
do país. O caso do Uruguai mostra que, quando Madeiro, 2012). Há diferenças geracionais e
o aborto é legalizado, a mortalidade materna de classe na escolha do método. As mulheres
cai: segundo estatísticas do Ministério da Saúde com maior recurso financeiro aparecem como
Pública, a taxa de mortalidade por abortos é de as que mais recorrem às clínicas. Mulheres de
zero ou apenas uma mulher por ano. Em caso baixa renda estão entre as que mais utilizam o
de estupro, o aborto pode ser feito até a 14ª medicamento.
semana. Já quando há risco de morte da mãe ou A Organização Mundial da Saúde (OMS)
má formação fetal, pode ser feito em qualquer reconhece dois métodos seguros para a
período da gestação. realização do aborto:
Em Cuba, o aborto foi legalizado em 1965, aborto cirúrgico, feito através da
no bojo das transformações progressistas Aspiração Manual Intrauterina (AMIU). No

52
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

Brasil, há clínicas de aborto bem equipadas, A curetagem pós aborto tem sido
com procedimentos higiênicos e cuidados o procedimento mais realizado em
pós-abortamento. Mas também há clínicas hospitais públicos (Menezes e Aquino,
precárias e aplicação de sondas com pouca 2009). O Ministério da Saúde procurou
higiene. O acesso aos tipos de clínica é melhorar o atendimento às mulheres
marcado pela renda e pela raça. em processo de abortamento em
aborto medicamentoso, feito com o 2005, com a Norma Técnica de
uso de comprimidos pode ser realizado com Atenção Humanizada ao Abortamento,
o Misoprostol ou com a combinação das
enfatizando a capacidade de escuta
substâncias Misoprostol e Mifepristona.
das mulheres sem pré-julgamentos,
Mas esses não são os únicos métodos.
com procedimentos básicos
Entre as mulheres rurais circulam receitas de
chás e muitos conhecimentos acumulados de acolhimento. Tal medida foi
sobre o aborto. importante diante de casos de falta
O misoprostol é popularmente conhecido de privacidade, pressões para que
como Cytotec, nome de mercado do mulheres admitissem ter induzido
medicamento vendido pela companhia o aborto e maus tratos e denúncias
farmacêutica Pfizer. Esse medicamento foi dos profissionais de saúde, levando
produzido e comercializado inicialmente para as mulheres a serem processadas. As
tratar úlceras no estômago, e como efeito
mulheres que precisam fazer aborto
colateral, provoca contrações uterinas. A
clandestino correm três riscos no
descoberta do efeito abortivo desse remédio
foi feita pelas mulheres e por farmacêuticos Brasil: o risco de ser processada e
dos bairros durante os anos 80. A difusão considerada criminosa, o risco de
de seu uso, substituindo as sondas, chás ou perder a vida e o risco de ficar com
objetos pontiagudos, resultou na redução sequelas, como o de ficar estéril.
do número de internações por complicações
de abortamento (DINIZ, 2008) . O Brasil
foi o primeiro país do mundo a restringir a
circulação de misoprostol, em 1998, e proibiu dilatação do colo do útero. A mifepristona não
totalmente a sua comercialização em 2005. é fabricada no Brasil.
Atualmente, apenas o laboratório Ebron, Para conseguir esses medicamentos no
localizado em Caruaru (Pernambuco), produz Brasil, as mulheres enfrentam as dinâmicas
e comercializa essa substância para o Sistema de um mercado clandestino, o que impõe
Público de Saúde, para a realização do aborto vulnerabilidades, como o risco da adulteração
legal e indução de partos. do produto, além de preços muitas vezes
A mifepristona é um bloqueador de inacessíveis para a maioria.
progesterona, hormônio produzido durante Pesquisas indicam que o uso do misoprostol
a gravidez que impede a expulsão do tem levado a uma maior frequência de
endométrio. Ela é utilizada para facilitar o abortos completos e menores índices de
procedimento abortivo com medicamentos, hemorragias e infecções, embora ainda haja
auxiliando, entre outras propriedades, na incidência significativa de internações por

53
DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

abortamentos incompletos. Isso porque quanto desigualdade é enorme, é importante que essas
menos recursos, mais as mulheres podem redes não sejam um fim em si mesmo, mas
ser vítimas de aquisição de medicamentos que reforcem à luta pelo direito ao aborto,
falsos e usar o medicamento de forma como acontece na Argentina. Isso porque o
incorreta por não ter acesso a informações. alcance e a diversidade de mulheres que esses
Muitas mulheres desconhecem como devem grupos conseguem atingir está muito aquém da
proceder após complicações do aborto pelo realidade concreta das mulheres. Além disso,
uso de medicamentos, postergando a busca de para que a autonomia das mulheres se realize
atendimento e se expondo a um risco maior. com justiça social é preciso que o direito ao
aborto nos marcos da saúde pública e universal
REDES DE seja garantido.
ACOMPANHAMENTO
As redes de acompanhamento às ABORTO COMO DIREITO,
mulheres que abortam são uma estratégia de NÃO MERCADORIA
solidariedade por meio de ações concretas, Em âmbito internacional, em articulações
que vão desde o acolhimento de mulheres que atuam em torno do aborto, verificamos
em situação de gravidez indesejada, uma mudança do discurso em direção à
encaminhamento para atendimento nos reivindicação do aborto seguro, feito em
casos previstos em lei e disponibilização casa, com comprimidos. Em 2017, o 28 de
de informações sobre os métodos seguros setembro, que na América Latina é o dia de
de se realizar um aborto. As redes de luta pela descriminalização do aborto, foi
acompanhamento estão espalhadas pelo internacionalizado como um dia pelo “aborto
mundo e funcionam pela internet, por linhas seguro”. A exigência do direito e do suporte
telefônicas ou presencialmente. Na América do Estado têm desaparecido do discurso e das
Latina, existem experiências desse tipo na reivindicações.
Argentina, no Chile, no Peru, no Equador e no Fazemos essa discussão desde um lugar
Uruguai. bem situado e crítico à forma como grupos
O acompanhamento feminista das mulheres ligados ao mercado – e mesmo grandes
que abortam propõe que estas sejam sujeito das empresas transnacionais – têm tentado
intervenções que decidem fazer em seus corpos incorporar slogans e discursos feministas.
e, nesse sentido, questiona o poder médico. Mas isso não altera sua lógica de exploração,
Essas redes têm sido muito importante para já que o mercado tenta fazer do feminismo
garantir o direito das mulheres à informação um componente do “novo espírito” do
e para a construção do conhecimento e da capitalismo global.
autonomia das mulheres sobre o corpo. É por isso que estamos atentas às
As redes feministas rompem a barreira movimentações da indústria farmacêutica
do silêncio e do obscurantismo em torno ao em torno do aborto. O lobby desse setor
aborto. Nesse sentido, podem contribuir muito para liberar o misoprostol existe porque
na ampliação e no fortalecimento das lutas pelo há interesse em vender esse medicamento.
direito ao aborto. Especialmente nos países Não temos dúvida que, para as empresas, o
marcados historicamente pela colonização, objetivo é a livre circulação de medicamentos
onde o racismo estrutura a sociedade e a e o aumento de suas vendas. Mas, para as

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE
MARIAJULIA-MMM-SP

mulheres, o que importa é ter autonomia e marcos das lutas por democracia e contra o
liberdade. Isso significa ter direito ao aborto, neoliberalismo.
mas também construir novas relações e
práticas sociais baseadas na igualdade e na PARA SEGUIR EM LUTA
liberdade de fato, para que diminuam as A luta pela legalização do aborto
gestações indesejadas. demanda do feminismo a construção de
Por isso a luta pela autonomia e pelo uma agenda de luta permanente, capaz de
direito ao aborto está ligada à nossa crítica mobilizar e organizar mulheres e setores mais
feminista da mercantilização da vida. A amplos, com capacidade de convocar ações
expansão do capital sobre todas as esferas conjuntas. Isso envolve jurídico, , serviço
da vida não pode definir os rumos nem social, mas também os movimentos sociais
as fronteiras da nossa sexualidade e da populares.
nossa liberdade. A mera disponibilização Mobilizações massivas são resultado
de medicamentos não garante o acesso de trabalho consistente, de médio e de
universal das mulheres, muito menos avança longo prazo. É preciso ampliar o diálogo e
na construção de autonomia. O aborto desenvolver um trabalho com profissionais
seguro não pode ser limitado pelos preços de saúde, médicas e médicos progressistas,
inacessíveis do mercado ou pela falta de uma enfermeiras, assistentes sociais e psicólogas da
orientação que considere as necessidades de área da saúde para o atendimento das mulheres
cada mulher. em situação de abortamento.
O feminismo, que afirma a igualdade É urgente construir estratégias coletivas
como princípio organizador da sociedade, do movimento para incidir tanto na resistência
coloca a necessidade de construir outras como na proposição de ações em espaços
práticas sociais. Essa perspectiva exige saber institucionais.
como lidar com o aborto, e como reivindicar Afirmamos o direito ao aborto no
a garantia de direitos pelo Estado junto com serviço público de saúde, porque esse deve ser
a desmercantilização e desprivatização da um direito garantido para todas as mulheres
vida. O direito ao aborto e o direito universal que decidam interromper a gravidez. Mas
à saúde pública precisam andar juntos, nos nosso argumento vai além da questão do

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

aborto como problema de saúde. A visão O NEOLIBERALISMO


que defende a massificação dos métodos É AUTORITÁRIO:
contraceptivos responde ao tema do aborto AS MULHERES ESTÃO
sem garantir a autonomia das mulheres. EM LUTA POR DEMOCRACIA
Por isso, ela é insuficiente já que todos os E SOBERANIA POPULAR
métodos contraceptivos podem falhar ou Em aliança com os setores democráticos de
porque as contradições pessoais, as relações toda sociedade, é preciso construir estratégias
de poder e o modelo atual de sexualidade de resistência, vislumbrando a saída da
impedem que as mulheres a exerçam com defensiva e a articulação de ações capazes de
autonomia. provocar fissuras na hegemonia conservadora
atual sobre o aborto. Isso só pode ser feito com
NÃO QUEREMOS a voz coletiva do movimento de mulheres em
SER CONDENADAS sua diversidade, com as mulheres negras, as
PELO ESTADO NEM mulheres lésbicas, bissexuais e as transexuais e
SER REFÉNS o conjunto dos movimentos que hoje são alvo
DO MERCADO de ataques conservadores.
Combatemos a mercantilização e o Neste momento de intenso debate
controle da indústria farmacêutica sobre os sobre os rumos da esquerda, o feminismo,
corpos e a sexualidade das mulheres através a autonomia e a liberdade precisam ser
de pílulas abortivas ou chips com implantes para todas as mulheres. Esse pressuposto
hormonais. Autonomia não se compra em é central para as alianças pela legalização
um pacote de remédio. A autonomia é uma do aborto, mas também para qualquer
conquista, tem a ver com a mudança das projeto democrático e popular que afirme
relações sociais e anda junto com a justiça um horizonte de justiça e igualdade e para
social. quem luta por ele. Se isso demanda um forte
É preciso chamar os homens à processo de mobilização e luta das mulheres,
responsabilidade na contracepção e na também exige a coerência de dirigentes
prevenção da gravidez, mas também ao políticos de esquerda na defesa desse direito
compartilhamento dos cuidados e à defesa do fundamental para as mulheres.
aborto como um direito das mulheres em luta Frente ao neoliberalismo autoritário, não
por sua autonomia. abrimos mão da democracia e do Estado como
No contexto de acirramento do garantidor dos direitos. Sem democracia,
conservadorismo, é evidente que projetos cresce o conservadorismo e sua influência
como o “Escola sem Partido” atacam na política e na economia, cresce a violência
diretamente as possibilidades de colocar em racista do Estado, que controla a população
sala de aula a discussão sobre a sexualidade nas periferias e crescem os ataques aos
na perspectiva de respeito à diversidade, territórios indígenas e quilombolas. Em geral,
de liberdade e autonomia. Conhecer o os que se empenham em reduzir os recursos
corpo e discutir essas questões sem tabus é dos serviços públicos e da Previdência Social
fundamental para aumentar a prevenção e são os mesmos que cortam os equipamentos
diminuir os números de gravidez indesejada de enfrentamento à violência e querem
entre as meninas e as mulheres. restringir o acesso ao aborto legal.

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

No enfrentamento ao capitalismo para restabelecer uma agenda de mudanças. A


heteropatriarcal e racista, o feminismo democracia não se efetiva quando a economia
se amplia e se enraíza. Muitos grupos, tem o lucro como objetivo, com espoliação e
diversos em termos de composição e exploração desenfreadas. A luta democrática
agenda, se mobilizam. Os sentidos comuns não está separada da luta pela ampliação dos
e convergentes da auto-organização das nossos direitos por autonomia e igualdade.
mulheres possibilitam avançar na luta contra A defesa dos nossos corpos como mulheres
o controle de nossos corpos, pela centralidade não está separada da defesa dos territórios
do cuidado, contra o racismo e as violências indígenas, quilombolas e camponeses.
que marcam a vida das maiorias, em defesa Sabemos que essa aposta não é simples,
dos valores democráticos e das formas mas certamente é a mais coerente com nossa
horizontais de construção da política e do defesa de uma sociedade com novas relações,
poder, pela diversidade sexual e pela garantia com outra forma de organizar o trabalho e de
da terra, da moradia, da educação e saúde garantir a sustentabilidade da vida, e onde haja
públicas. Nossa luta é inteira; a diversidade espaço para novas subjetividades baseadas na
não significa fragmentação. autonomia, reciprocidade e igualdade.
O horizonte de transformação e as formas A luta pelo direito ao aborto se insere aí e é
de luta se constroem em cada momento e têm aí que faz sentido: em nossa luta por igualdade,
a ver com o contexto vivido. O momento autonomia e justiça social, pela vida de todas as
que vivemos é de resistência ao fascismo, à mulheres.
violência, à criminalização da luta social. A luta Seguiremos em marcha até que todas
pela democracia é essencial para criar condições sejamos livres!
HELENAZELIC

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DIREITO AO ABORTO
AUTONOMIA E IGUALDADE

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Direito ao aborto, autonomia Direito ao aborto, autonomia e igualdade
Publicação da SOF – Sempreviva Organização Feminista
e igualdade
Redação
Maria Lucia da Silveira Maria Lúcia da Silveira, Nalu Faria, Renata Moreno,
Carla Vitória, Sonia Coelho
Nalu Faria
Renata Moreno Revisão
Carla Vitória Aventura da Narração / Alessandra Ceregatti

Sonia Coelho Projeto gráfico e diagramação


Caco Bisol
São Paulo, dezembro de 2018 Fotos
Anderson Barbosa, Carol Calef, Cintia Barenho,
Clarisse Wolff, Elaine Campos, Gabriela Biló, Helena Zelic,
Isis Utsch, Joaquim Duarte, Maria Julia Monteiro,
Sonia Maria dos Santos. Acervos SOF e MMM e
SOF Sempreviva Organização Feminista Acervo CNDM/www.memoriaemovimentossociais.com.br
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São Paulo/SP – CEP 05417-080 Impressão
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Direito ao aborto, autonomia e igualdade
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