1. O que é o mal?
1) O mal, longe de ser uma entidade positiva é um não-ser; não constitui uma
afirmação, mas uma negação.
Com efeito, não há, nem pode haver, substância cuja natureza seja por si
essencialmente má; esta seria algo de estranho ou absurdo no mundo: não
poderia agir, porquanto nenhum ser age senão em virtude de uma perfeição
que ele possui e atua. A serpente, o escorpião, a bomba atômica… só
produzem sua ação nociva ou má porque neles há uma entidade positiva que o
naturalista ou o físico-químico admiram profundamente. O mal, portanto, é uma
negação ou ausência de ser.
Resumindo esquematicamente:
O NÃO SER é:
A experiência comprova que o mal nunca pode ser isolado. Não se encontra o
mal como tal (a cegueira ou a surdez subsistentes em si mesmas), mas alguém
ou alguma coisa boa em que existe a lacuna, o mal (o olho privado de visão, o
aparelho auditivo carente de audição). Não há quem veja as trevas ou ouça o
silêncio; estes só são apreendidos se se apreenderam previamente os
respectivos contrários (luz e ruído).
Disto se segue que o mal nunca poderá, nem no indivíduo nem na sociedade,
ser tão vasto que absorva e destrua todo o bem, pois em tal caso o mal
extinguiria o suporte da sua existência e aniquilaria a si mesmo. O mal só pode
existir respeitando em certo grau o bem; jamais conseguirá triunfar totalmente
sobre o bem; para ter realidade, ele há de ser uma negação menor dentro de
uma afirmação maior (concretamente, isto quer dizer que os autênticos motivos
de tristeza, como são as calamidades físicas para o homem, nunca são tão
ponderosos que sobrepujem os autênticos motivos de alegria; no plano moral,
nunca o pecado marcará decisivamente o curso da história…).
1) Deus, em seu desígnio eterno, quis difundir o seu Ser, a sua Bondade, pois,
segundo um axioma já formulado pelos neoplatônicos (séc. III d.C.), o Bem é
essencialmente difusivo de si. Para isto, decretou tirar do nada criaturas que
em grau finito exprimissem, cada qual do seu modo, a infinita Perfeição Divina.
O Senhor deu ao primeiro pai os meios suficientes para não pecar; não quis,
porém, intervir na vontade do homem, forçando-a a escolher o Bem Real, pois
isto equivaleria a retirar ou mutilar um dom outorgado em vista de maior
dignidade e glória do gênero humano.
Deus é Pai, não ditador, e quer ser considerado como Pai. Ora, na parábola que
Jesus narra em Lucas 15,11-32, o pai deixa partir o filho que lhe pede a
herança para ir gozar da vida; embora anteveja os desmandos que o jovem
está para cometer, deixa-o ir, justamente porque é pai, não tirano, e quer usar
de confiança ao tratar o seu filho; espera ao menos que este, fazendo as suas
experiências livremente empreendidas, reconheça mais livre e conscientemente
a felicidade que há em aderir ao Pai. Assim, Deus deixou (e deixa) o homem
partir pela via do pecado, segundo a sua livre opção, pois o que Deus quer é o
amor filial do homem, não a adesão inconsciente de uma máquina.
5) E porque Deus, sabedor dos pecados de Adão e dos seus descendentes, não
fez, nem faz, somente indivíduos fiéis ao Fim Supremo?
6) Mas então Deus não será de algum modo culpado do pecado que o homem
comete?
Não; a culpa do pecado não recai sobre Deus. Vejamos bem: em todo ato mau
(pecaminoso) há sempre uma entidade positiva, boa, pois todo ato é afirmação
de perfeições (só o ser imperfeito não age ou age pouco); esse valor positivo se
deve, sem dúvida, ao Criador, pois não há entidade que não se derive de Deus.
O mal sobrevém a essa entidade ou a esse bem, como sabemos, pois o pecado
nada mais é do que um ato (um valor) que carece de algo… que carece de
conformidade com o seu Exemplar, com o Sumo Bem (=Deus). Ora essa
carência ou lacuna não se deriva, nem pode derivar, de Deus (porque é um
vazio); deve-se unicamente à criatura que, oriunda do não-ser, traz a tendência
ao não-ser, a tornar o ser lacunoso. A título de ilustração, admitamos que um
músico se ponha a tocar com uma flauta desafinada; empregará toda a sua
arte para produzir a mais bela das melodias com tal instrumento; o resultado
porém, não poderá deixar de ser desarmonioso, não por defeito musical do
artista, mas em virtude da “má disposição” do instrumento. Assim Deus, tendo
criado o homem livre e aplicando-lhe a moção suficiente para o bem, não o fará
produzir um ato bom, se o homem não estiver bem disposto (o que depende de
sua vontade livre) a receber a boa dádiva do Senhor.
E Deus sabia que esse bem maior jamais seria frustrado, mesmo que a
liberdade humana falhasse. Nesta hipótese, o pecador se tornaria, sem dúvida,
infeliz por causa do seu próprio pecado, mas Deus ainda assim seria
proclamado e glorificado por ele, pois em última análise, se o pecador sofre
pelo pecado, sofre porque a sua natureza feita para Deus protesta contra a
violentação, a detorsão que a livre vontade do indivíduo lhe impôs. Esse
sofrimento vem a ser a afirmação solene de que Deus é o Sumo Bem; ora,
desde que a criatura o afirme, mesmo que esteja infeliz, ela tem pleno sentido
no conjunto dos seres criados, pois o centro em vista do qual tudo foi feito e ao
qual tudo se destina, recebendo dele seu significado autêntico, é Deus, não o
homem.
Sim; Deus não quis ficar indiferente à desgraça do homem. Voltaire dizia a
Júpiter que, ao criar-nos, tinha feito “une froide plaisanterie”, um frio gracejo.
Quanto isto é errado!
Para o homem fiel só há uma desgraça autêntica: a perda da união com Cristo
ou o pecado, pois, enquanto está unido a Deus, o cristão vence com proveito
ou mérito os maiores sofrimentos (doença, pobreza, perseguições e morte).
Ó homem, não queiras sofrer a tal ponto! Lembra-te de Deus,… de Deus que se
revelou em Cristo, e…
Alegra-te!