Oliveira Torres.
Área Temática:
22. Teorias Políticas
1
Resumo: O historiador brasileiro João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973) é um dos mais
acabados representantes do conservadorismo nacional. Além de uma série de livros na área de
história do Brasil, especialmente do Império, sua obra é marcada por relevante análise política
entre dois compassos – a percepção de uma série de crises do mundo moderno e a proposta de
restauração da ordem nas dimensões correlatas às das crises. Nesse sentido, a pesquisa persegue
um propósito de qualificação do debate sobre os ideários políticos brasileiros – no caso, o
conservadorismo. A propósito, o momento é oportuno dado que atualmente a obra de João
Camilo e de outros próceres do conservadorismo brasileiro vem sendo republicada e relida. No
entanto, as leituras mais generalizadoras cometem erros crassos e de fundamento, que
descaracterizam os próprios autores. A saber, como pela comum ligação, feita no Brasil, entre
conservadores e liberais - por ambos serem postos no âmbito da "direita"; o cacoete em se
vincular todo pensamento "social" exclusivamente aos ideários progressistas, e
descaracterizando o próprio sentido amplo da palavra "socialismo" (como anti-individualismo);
etc.. Além de permitir a apresentação de uma dimensão importante do conservadorismo
brasileiro, há aspectos metodológicos importantes a serem tirados da obra do mencionado autor:
a valorização da atitude prudencial na política, os esforços de teorização do pensamento
brasileiro com base numa tradição de autores nacionais, e a crítica à alienação dos grupos
políticos.
Palavras-chaves: Conservadorismo; Pensamento Político Brasileiro; Socialismo.
Abstract: João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973) is a Brazilian historian and one of the
most accomplished representatives of national conservatism. He has many books about
Brazilian history, especially the Empire, and also his work is marked by relevant political
analysis between two bars - the perception of a series of crises in the modern world and the
proposal of restoration of the order. My research is trying to qualify the debate on Brazilian
political ideals - in this case, about conservatism. Nowadays, the more generalizing readings of
João Camilo and the new conservativism in Brazil make mistakes about the concept of this
ideology, as the common connection between conservatives and liberals - both labbed as
"right". In addition to allowing the presentation of an important dimension of Brazilian
conservatism, there are important methodological aspects to be drawn from the author's work:
the valorization of the prudential attitude in politics, the efforts of theorizing Brazilian political
thought and the critics against the alienation of political groups.
.
Keywords: Conservatism; Brazilian Political Thought; Socialism.
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I – João Camilo de Oliveira Torres e o Pensamento Político Brasileiro
João Camilo de Oliveira Torres, nasceu em Itabira, Minas Gerais, em 31 de julho
de 1915, e faleceu em sua mesa de trabalho no dia 31 de janeiro de 1973, quando
escrevia seu último artigo: “Os Mitos da Nossa Época”, já o penúltimo teve como título
“Morte e Ressureição”, publicado dias depois no Correio do Povo, de Porto Alegre.
Teve três profissões, jornalista, professor e servidor público de carreira. Homem
telúrico, apegado a sua terra e a sua linhagem familiar. Exceto por uma passagem pelo
Rio para estudos, jamais deixou Minas Gerais. A família era tida como seu eixo de
formação, em sua autobiografia publicada postumamente – O Homem Interino (1998) –
apresenta ao leitor os detalhes da vida do bisavô João Camillo de Oliveira, militante do
Partido Conservador e combatente em 1842 contra os luzias. Em seguida, narra a vida
da bisavó, do avô Luiz Camillo e da avó Maria Luiza, todos pelo lado paterno, e todos
politicamente saquaremas. Do lado materno é descendente da nobre família Drummond,
em que o bisavô também esteve na batalha de 1842, mas do lado luzia: era um
comerciante, abolicionista. Cumprindo a tradição, revela que a própria mãe era luzia e
até republicana. Desse ramo saíram dois primos famosos, o poeta Carlos Drummond de
Andrade e o escritor, monge beneditino Dom Marcos Barbosa, que pertenceu a
Academia Brasileira de Letras.
O elogio à família parece revelar uma nostalgia. Cedo perdeu cinco dos sete
membros mais próximos. Entre 1930 e 1933 sofre o que descreveu como os maiores
impactos da sua vida (TORRES, 1998:91), morreram: o pai, o avô, a mãe e dois irmãos.
Nessa sucessão de falecimentos incluía-se Moacyr, tido como o mais inteligente dos
quatro irmãos, aquele que seu pai queria que fosse “como Rui Barbosa” - modelo de
“homem inteligente” para as famílias da classe média brasileira da época. Outra mente
brilhante que partiria duas décadas depois era o irmão mais velho, Luís Camilo de
Oliveira Netto (1904-1953) – também historiador, professor na Universidade do Distrito
Federal, diretor da Casa de Rui Barbosa e diretor da biblioteca do Itamaraty. Na
política, Luís Camilo foi opositor do Estado Novo, e fez parte do grupo que elaborou o
“Manifesto dos Mineiros” de 1943 e fundou a UDN.
A geração de João Camilo foi dominada pela influência dos grandes convertidos,
como Maritain, Chesterton, Claudel, Jackson de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, e
conta que muitos chegaram, “de tanto lerem narrativas de conversões, a lamentar não
terem perdido a fé, para terem a alegria da redescoberta do Deus vivo e verdadeiro”
3
(TORRES, 1998:118). Mas João Camilo nunca saíra de casa, nasceu e morreu católico.
Descreve-se como sempre piedoso, desde menino, mas nem por isso foi um ex-
seminarista. Envolveu-se no movimento de redescoberta dos valores do catolicismo,
que traçava um encontro entre a cultura ocidental e a religião. Uniu, o fervor religioso
dos dois ramos familiares, com o clima intelectual que envolvia os católicos: fosse na
conturbada relação com a Action Française e seus próceres, Maritain, Bernanos,
Maurras, Massis, etc., fosse em meio ao movimento espiritualista do início do século. A
moldura geral de seu catolicismo era de fundo tomista, porém não guardava
preconceitos com outras análises e procurava as integrar. Tanto assim que lhe foi
marcante: Jung na psicanálise, Bergson, os alemães – Max Scheler e Jasper, a
revalorização do medieval através de Berdiaeff, a leitura de Duns Scott, e os teólogos
Teillard de Chardin, Scheeben, Guardini, Journet, Danielou, Congar, etc., alguns que
seriam fundamentais para a virada eclesiástica promovida pela Igreja católica, com o
Concílio Vaticano II (1962-1965), do qual João Camilo foi um entusiasta e otimista.
Desde a estada no Rio, esteve vinculado à fina flor do laicato católico, onde
conheceu a revista A Ordem e frequentou o Centro Dom Vital. De Minas, manteve
correspondência com Alceu Amoroso Lima, e publicava constantemente na própria
revista A Ordem, assim como em outras revistas católicas. As longas cartas do amigo
José Carlos Barbosa Moreira, seu intermediário junto a revista e no Centro Dom Vital,
lhe davam o balanço do que se passava na intelectualidade católica carioca nos anos
1960, como no relato da briga entre Antônio Carlos Villaça e Gustavo Corção.
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cartas, documentos, e outros textos e dados do autor que se encontram no Centro de
Memória da PUC-Minas.
Qual o lugar que João Camilo ocupa ou ocuparia nos mapeamentos da área do
Pensamento Político Brasileiro, Social e inclusive na Historiografia nacional? Por
exemplo, embora não esteja no rol dos autores apresentados por Luís Washington Vita
em sua “Antologia do Pensamento Social e Político no Brasil”, João Camilo estaria bem
posicionado naquilo que Vita chamou de “correntes cruzadas”, “que se complicam pela
multiplicidade das formas, de sugestões e de perspectivas, se não novas ao menos
renovadas, surgindo daí, quase como um caos, as mais diversas posições filosóficas”
(1968:392-393), em que constam Hermes Lima, Caio Prado Junior, Hélio Jaguaribe,
Miguel Reale, Amoroso Lima, e outros. A proximidade de João Camilo com Amoroso
Lima, aliás, foi por muito tempo de fundo intelectual, o líder inconteste do catolicismo
brasileiro, depois de Jackson de Figueiredo, figurou como um ícone de equilíbrio,
cultura e atitude intelectual para João Camilo. Ainda assim essa classificação é incapaz
de dar conta da visão política camiliana. Uma tentativa mais aproximada, e tendo
mencionado expressamente o autor em questão foi feita por Ubiratan Borges de Macedo
em “O tradicionalismo no Brasil”, capítulo da coletânea “As ideias políticas no Brasil”
(1979). O tradicionalismo, conforme explicado por Macedo (1979:227), refere-se à
defesa da tradição ou conservação de uma determinada ordem que se encontra
ameaçada, e que teria em Edmund Burke o principal formulador, assim como um apelo
emocional ao tomismo. João Camilo se afastaria da grei tradicionalista porque aplicou
visões liberais ao expor a teoria política do Império (MACEDO, 1979:236). Mesmo
considerando pertinente tal observação, a conclusão é a de que o tradicionalismo não
explica o pensamento político de João Camilo – ainda que não o tenha classificado
como um “puro” tradicionalista. Em primeiro lugar, o próprio tradicionalismo está mal
explicado – já que vincula um ideário intelectual a um autor que escapa da própria
tradição ibérica, Edmund Burke. E antes desse escritor irlandês viera Francisco Suarez,
os neotomistas e o próprio Santo Tomás. Segundo, porque justamente se o elemento
fundante desse tradicionalismo é o tomismo, então essa vinculação não pode ser de
ordem meramente “emocional”, como descreve Macedo.
5
miscelânea que Hélgio Trindade faz ao associar Integralismo com Monarquismo (pelo
movimento Ação Imperial Patrianovista) (1979:103), isso a partir do próprio João
Camilo em “História das Ideias Religiosas no Brasil” (1968a) em que demonstra como
os integralistas fizeram o que os patrianovistas deixaram de fazer, isto é, apresentar a
pauta corporativista. Contudo, em momento algum o historiador mineiro faz uma
associação ideológica entre esses dois movimentos, ao contrário da imputação de
Trindade. Nesse ritmo incorrer-se-ia num outro equívoco: o de associar os católicos,
como Alceu Amoroso Lima e João Camilo, a Plínio Salgado, pois se consideraria todos
autoritários, logo “fascistas”.
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Na historiografia, é conhecida a interpretação feita por José Honório Rodrigues de
que João Camilo, pelo fato de ser monarquista, está entre os que produziram uma
“concepção conservadora da História” (RODRIGUES, 1988:1). Contudo, corroborar
com essa classificação significa resumir o autor a um rótulo, o qual se desfaz por dois
motivos. Primeiro, pelo argumento do próprio José Honório, ao descreve o colega
mineiro como um heterodoxo em seu “conservadorismo”. Parece paradoxal, o mesmo
que enquadra João Camilo como “conservador”, no decorrer do livro invalida o próprio
argumento. Resta dessa descrição a própria impossibilidade de se encerrar um pensador
dentro de um quadro ideológico fechado, ou mesmo pensar um conceito ideológico de
modo tão estanque. Sem contar um segundo motivo que descaracteriza esse
“etiquetamento” sobre o historiador: pelo fato de não fazer jus ao próprio ofício
profissional. Se é historiador, logo não é ideólogo, portanto dizer que é conservador ou
liberal ou socialista, restringe o reconhecimento da qualidade acadêmica do intelectual.
Inclusive porque o próprio José Honório reconhece em João Camilo os méritos de
historiador, e não de ideólogo.
7
Camilo o caráter moderno e original do jesuíta, em posição antitética aos passadistas
(“imobilistas”) e aos futuristas (“estrangeirados” – denominação fiel aos que queriam
que Portugal fosse como os outros países estrangeiros, homens que negavam o seu país
para aplaudir e louvar o estrangeiro). Vieira seria “o nacionalista autêntico, que queria o
progresso com a conservação do ser próprio de Portugal, não o negando. Daí o caráter
espantosamente original e moderno de sua ideologia política. Principalmente de suas
ideias econômicas (...)” (TORRES, 1969:127).
8
Uma hipótese desta exposição é que embora o catolicismo seja o elemento
responsável pela síntese da reflexão política, e da união das crenças de João Camilo, ao
tratar especificamente do “político”, no sentido que aponta Rosanvallon (1995), o autor
recai no binarismo. E neste sentido encontrava-se com os saquaremas, era visto e se via
como tal. Ao mesmo tempo isso não significa a inexistência de um pensamento político
católico, como outros ideários que não formam propriamente uma linhagem partidária,
mas que há planos de atuação diferentes, que inserem-se socialmente e indiretamente na
política. No plano estritamente político, João Camilo retorna ao significado do debate
entre Liberais e Conservadores que marcou o Brasil Império.
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atua nesse processo, ao enfatizar um apostolado que, evitando competir com os Estados,
procura participar e colaborar para um ideal cristão de justiça social. É a partir da
motivação católica que João Camilo dedica parte de seus trabalhos a fim de orientar a
política para formar um Estado solidarista.
A aposta de João Camilo para lidar com a questão da segurança social passava
pelo exemplo das monarquias democráticas. Quem informava o autor da confiabilidade
desse processo era Lipset, ao desenhar a íntima ligação entre monarquia e democracia,
exemplificados pelos êxitos sociais dos reinos escandinavos, do trabalhismo do tipo
britânico na Grã-Bretanha, na Austrália e na Nova Zelândia (TORRES, 1970:58).
Nesses países se consegui, a) promoção de melhorias nas condições de existência,
assistência, previdência; b) salários reais e pleno emprego; e, c) luta contra
desigualdades, através do Imposto de Renda e da elevação de tributos. Esse seria o
caminho para um socialismo sem totalitarismo.
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(re)surgir da dimensão humana, não afeita a técnicas abstratas, que incorporasse o
homem do campo. Eis a utopia idílica de João Camilo. Contudo, nada disso era
idealismo inconsequente, tratava-se de algo mapeado a partir do que a Igreja anunciava
como “situação nova”, segundo as três encíclicas analisadas: Mater et Magistra, Pacem
in Terris, e Populorum Progressio (TORRES, 1970:226). É que o mais relevante dessa
possibilidade solidarista é que ela resgataria o papel da Igreja no mundo, o papel da
Igreja para o homem: o de libertar o ser para a dimensão sobrenatural.
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havia chegado: em que o solidarismo teria ofuscado o socialismo marxista, e a questão
social se espraiado a tal ponto pelo tecido social, que acabava amainando os conflitos –
ao invés de provoca-los, diferente do que previa Karl Marx. Já O mundo em busca de
segurança, de 1961 o autor já encarava o “securitismo”, a “segurança social”, como
uma demanda por solidariedade, cujos traços eram fortemente cristãos. Se as reformas
eram funções estatais - pelo modo como este é capaz de ligar-se ao povo; as diretrizes,
ou melhor, as doutrinas para se chegar a esse ideal solidarista podiam ser encontrados
nos ensinamentos da Igreja, como João Camilo analisou também em Desenvolvimento e
Justiça (1962), escrito a partir da compreensão da encíclica “Mater et Magistra” (pelo
Papa João XXIII, 15 de maio de 1961).
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Gilberto Freyre, a identidade católica e o legado saquarema. A parte final do (seção e)
trata da questão da consciência histórica, marca do conservadorismo camiliano, a qual
abarca a noção de mudanças e uma necessidade de as orientar segundo uma bula de
circunstâncias política. Nessa parte fica ainda mais evidente a índole desse
conservadorismo enquanto reformismo, em oposição a um revolucionarismo, tal qual
esboçou-se no parágrafo anterior a respeito da frase de Lampeduza.
a) O desafio de um tema
De modo geral o conservadorismo pode ser tido como um olhar político e social
cujo desejo é conservar, a partir de algum apreço a tradições, religião, família, nação -
por segurança, afeição, ou até por medo. Scruton (2007) apresenta três aspectos do
conservadorismo: (i) atitude diante da sociedade, preferir como está do que o caos e a
barbárie, daí a comum reivindicação da legitimidade de seus valores, religião e ideia de
justiça; (ii) idéia de governo e instituições, governo por instituições e com base
constitucional, regime discricionário e não arbitrário; e, (iii) prática política:
pragmatismo político e ideológico, localismo, defesa da propriedade privada, crítica à
ideia de luta de classes.
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“conservadorismo”, pois tal qual o liberalismo e o socialismo, são conceitos
polissêmicos e carregados de transformações conforme tempo e lugar. Mas dentro do
contexto desta pesquisa pode-se explicar o conceito de conservadorismo a partir de um
dos maiores apólogos modernos desse ideário político, o qual é mobilizado por João
Camilo (1968c), trata-se de Russell Kirk, que herdou de Edmund Burke o sentido da
“conservative mind” e o explicou em 6 sentenças: i) crença numa ordem divina para a
sociedade e para a consciência; ii) valorização da variedade e colorido na vida
tradicional; iii) reconhecimento da legitimidade da existência de classes e hierarquias
sociais; iv) convicção de que propriedade e liberdade estão intimamente ligadas; v)
tradicionalismo; vi) distinção entre “mudança” e “reforma”, ou, talvez, para ficarmos
mais de acordo com o vocabulário brasileiro, entre “revolução” e “reforma’.
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O “conservadorismo culturalista” refere-se a uma forma de defender um
patrimônio cultural, contra movimentos modernistas e vanguardistas, e outras modas
estrangeiras, que tenham por objetivo contestar e/ou negar uma determinada formação
civilizacional brasileira. Trata-se de uma proposta positiva de reconhecer o passado
nacional, pelo viés da cultura. O maior responsável por essa concepção, que gera uma
forma de conservadorismo a partir da cultura, foi o sociólogo Gilberto Freyre. Desde
sua magna opera, Casa Grande & Senzala, publicada em 1933, e duma série de outros
trabalhos, Freyre apresenta a centralidade da assimilação racial na formação cultural do
Brasil. Quando o argumento foi lançado, havia uma acirrada disputa contra tendências
racialistas-biologicistas-deterministas, que viam na raça um caráter biológico e menos
culturalista. A antropologia freyriana, ao contrário, orientada por Franz Boas, buscava
fugir da “psicologia racial”, afeita a autores como Lapouge, Gobineau e, no Brasil, por
Euclides da Cunha, e personalidades proeminentes dos anos 1930 e 1940, como Jorge
de Lima e Oliveira Vianna. Tratava-se de uma leitura otimista da relação entre brancos,
pretos, pardos e amarelos no Brasil, a ponto de ter formado uma “democracia racial”,
devido a matriz portuguesa ter permitido esse caráter assimilativo, integrador de povos.
Essa composição, que formara a verdadeira forma de ser do brasileiro - a de um povo
mestiço - compunha um elogio à diferença, e que tal deveria ser preservada – contra
ameaças arianistas, soviéticas e americanistas (FREYRE, 2010b).
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fosse lido à moda de Sorel. Nestes termos “a democracia racial, pode terminar criando a
consciência de uma posição de fato existente, mas obscura – a valorização da
mestiçagem” (1969:97). É justamente isso o que João Camilo procura, e que tornava
meritória a pesquisa de Gilberto Freyre: realçar no brasileiro a hostilidade ao purismo
racial.
Tudo aquilo que é considerado como fundador de um povo pode ser tomado como
eixo do conservadorismo, por isso em toda parte a religião pode assumir esse caráter, e
de diferentes maneiras. Pela cultura, o próprio Gilberto Freyre tratava da “grande
cultura ameaçada: a cristã” (2010b). Pelo moralismo, no sentido de ter na religião o
principal norteamento moral do indivíduo e da sociedade, escritores conservadores nos
países de língua inglesa já defenderam sua importância social, e sua posição contra o
racionalismo iluminista ainda presente no século XX - como em Moral Man and
Immoral Society: A Study in Ethics and Politics (1932) de Reinhold Niebuhr. Pela
identidade nacional de uma igreja, Roger Scruton – ícone do conservadorismo
contemporâneo – escreveu Our Church – a Personal History of the Church of England
(2012) para demonstrar a presença visível da instituição religiosa na formação do
caráter britânico.
Mas nenhum desses modos de tomar a religião para uma atitude conservadora se
iguala à proposta católica. Pois o catolicismo forma uma atitude política particular: a
começar por ser propulsora de uma reação, condenação ou diferenciação com relação
ao mundo moderno. Os pensadores que reagiram a vaga revolucionária nos séculos
XVIII e XIX foram, de alguma maneira, tocados pelo catolicismo. Sob o manto do
Syllabus Errorum de 1864 a Santa Sé compilou os dogmas contra a filosofia moderna e
16
suas ideologias – naturalismo, socialismo, racionalismo, liberalismo, etc.; reforçando
essa condenação e numa postura de defesa religiosa veio o Concílio Vaticano I (1870), e
outras publicações eclesiásticas até a metade do século XX. Só com o Concílio Vaticano
II (1962-1965) que a Igreja apresenta uma mudança de rumo: não a negação do mundo
moderno, mas uma proposta de harmonização, por meio de uma alternativa católica de
vida comum.
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tratava-se de Charles Maurras. A tese de João Camilo é a de que Maurras segue as
marcas de Comte, mas a transpõe para a monarquia e para o catolicismo, Maurras
“descobre o rei, em Comte” e “é possível que a sua religiosidade, sempre em luta contra
as opiniões conscientes, contra a lei dos três estados, tenha se aproveitado da ocasião
favorável e vestido a roupa que Comte talhara para o mundo – a dita lei dos três
estados” (TORRES, 1943:218). João Camilo demonstra como uma série de
fundamentos do positivismo são no fundo doutrinas e dogmas católicos secularizados, e
que no caso Maurras teria promovido um retorno ao âmbito católico.
Sobre o século XX, analisa que do mesmo modo que a Igreja se atualizava,
através de suas renovações teológicas e alterando sua atuação no mundo, João Camilo
percebia o paralelo dessa evolução no plano político. A Igreja ultramontana, que através
de Vaticano II passa a ser conciliar, democratiza-se; a Monarquia constitucional que se
torna Monarquia parlamentar, democratiza-se. De forma legítima em todos esses
movimentos há um início e um fim democrático. A Igreja é para o povo de Deus, e é o
lugar de integração do povo com a Unidade. A Monarquia é popular por seu
fundamento, e em sua evolução voltada a formas de participação mais plural,
parlamentarizando-se.
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brasileira, historiográfica, política. Empreendeu uma batalha pela história do Brasil,
pelo modo como a religião é fundadora: base de nossa realidade política - de nosso
senso de universalidade - de integração com o mundo - de uma democracia, monárquica
e cristã. Ao se medir essa “participação” do catolicismo na história, na política, na
solução dos problemas sociais, na vida particular do “homem comum”, percebe-se
como o autor tornou inteligível uma corrente de ideias amarradas pelo fio da religião.
O principal livro sobre a história e a teoria política do Brasil Império, escrito por
João Camilo, é A Democracia Coroada (1964a). Neste o autor assume que o texto foi
gestado a partir de uma inclinação liberal, porém, a resultante acabou sendo
conservadora. “O livro terminou sendo de cunho nitidamente ’saquarema’”, dissera o
amigo Afonso Arinos de Melo Franco (TORRES, 1968c:XIII). Esse movimento de
abandono das ideias liberais teria começado por convencimento intelectual: rendera-se
aos porta-vozes do conservadorismo ao ler as obras de Uruguai, Pimenta Bueno, Brás
Florentino, Bernardo Pereira de Vasconcelos, etc. Todos da grei saquarema, todos
autênticos estadistas.
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O mérito do Partido Conservador do Império, é, portanto, o de ter consolidado a
obra da Independência, a unidade territorial, o edifício constitucional, a formação e
consolidação das instituições, e o fornecimento de um sentido político a longo prazo.
Esse realismo político não apenas criou, mas evitou que a própria realidade nacional
fosse objeto de dúvida: “os conservadores admitiam que o sistema político, vigente no
Brasil, soube ser legítimo, era útil e vantajoso para o fim supremo: a unidade nacional
fundada sobre a democracia liberal” (TORRES, 1968c:9). O elogio do
conservadorismo, era justamente o elogio ao senso de realismo prudencial na política
(TORRES, 2016:47).
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do cânon liberal como Montesquieu, Constant, Guizot. Liberais todos eram, com
moderação e a seus modos, mesmo no caso de Brás Florentino, discípulo dos
tradicionalistas, ainda assim era liberal em muitos pontos (TORRES, 1968:190). Ou
seja, não era um problema renovar o liberalismo – era até algo bem vindo, contanto que
se mantivesse o “pacto originário” que formou o Brasil. Tanto que o diferencial desses
políticos saquaremas era como se importavam com as instituições, como no caso da
contrariedade de Brás Florentino ao Parlamentarismo, em que o jurista pernambucano
estava tentando evitar uma oligarquização do governo monárquico pelos ministérios-
parlamentares. Ou, como antes, Uruguai condenara a aplicação no Brasil da fórmula “o
rei reina, mas não governa”, e Itaboraí a reforçara dizendo enfaticamente que “Sua
Majestade o Imperador reina, governa e administra” (TORRES, 1968:191-192). Ambos
analisavam que era preciso consolidar a discricionariedade imperial para não deixar o
próprio país fragilizado.
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A consciência histórica forneceria ainda um antídoto aos conservadores: o
desapego de fórmulas prontas, de formalismos, de idealismos utópicos; e, do
imobilismo. A compreensão do Brasil real, para João Camilo, era um dado que se
mostrava mais claro na cabeça dos conservadores do que dos liberais. O descompasso
entre o formal e o real era um drama sentido no Brasil Império, mas realisticamente
aceito entre os conservadores, e, por outro lado, instrumento de crítica dos liberais. A
diferença entre ambos estava marcada por essa noção a respeito do tempo para as
mudanças: “Podemos dizer que os conservadores partiam do princípio de que o Brasil
era aquilo que estava ali e, portanto, não interessava sair correndo atrás de teorias
para o modificar. Com o tempo, por si, as coisas mudariam. Os liberais queriam que as
práticas inglesas se adaptassem ao Brasil” (TORRES, 1968c:33). Ademais, essa
consciência histórica evita que o conservadorismo recaísse num imobilismo. “A posição
autenticamente conservadora é integralmente histórica”, em oposição ao reacionarismo
(que nega o tempo, e a irreversibilidade da História) e ao revolucionarismo (que postula
um futuro construído do vazio). O conservadorismo é irmão do progressismo, pois
admite que a História é continuidade e persistência (TORRES, 2016:51).
22
Considerações finais
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especialmente, pelo modo como a política católica, a qual pretendia dar direção, fora
contrabandeada por "direitistas" e "esquerdistas". Melhor do que nostálgico seria dizer,
frustrante. A própria geração de católicos intelectuais da qual fez parte desandou,
perdeu-se a unidade e o facciosismo de ambos os lados se perpetuou. A utopia
monarquista e solidarista encontrava-se com um olhar cristão, tomista, tradicional, de
bem comum, de amor ao próximo. Em boa medida o historiador mineiro foi bem
sucedido ao ter deixado uma vasta obra, como prova de boa vontade para com a história
do país e dos que iriam estudar posteriormente os temas que trabalhou.
1
Em 2016 foi lançada uma coletânea de artigos de João Camilo de Oliveira Torres, intitulada “O Elogio
do Conservadorismo e outros escritos”. Em 2017 é prevista a reedição de “Os Construtores do Império”
(1968). Antes, em 2011, foi republicada “O homem e a montanha: introdução ao estudo das influências da
situação geográfica para a formação do espírito mineiro” (TORRES, 2011 [1944]).
24
como no pós-Concílio Vaticano II com o progressismo social2, a ponto de ter sido
prócere do que mais tarde se chamou “esquerda católica” (ANDRADE, 2011:24).
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2
A interpretação de João Camilo apresenta uma correspondência entre a pregação política e social da
Igreja Católica, antes e depois do Concílio Vaticano II (1962-1965), o que diferia de outros próceres do
pensamento católico brasileiro, como Gustavo Corção (1973). João Camilo, coerente com a Igreja pós-
conciliar, defende um modelo próximo do socialismo sueco (TORRES, 1965; 1968b; 1961e; 1962a).
25
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