CONFRONTO1
INTRODUÇÃO
Do espaço não se pode dizer que seja um produto com qualquer outro, um
objeto ou soma de objetos, uma coisa ou uma coleção de coisas, uma
mercadoria ou um conjunto de mercadorias. Não se pode dizer que seja
simplesmente um instrumento, o mais importante de todos os instrumentos, o
pressuposto de toda a produção e de todo o intercâmbio. Estaria
essencialmente vinculado com a reprodução das relações (sociais) de
produção (LEFÉBVRE apud RIOS, 2010, p. 222).
Estudar esse evento requereu visitas ao local para colher informações e discutir a
memória coletiva ali empregada aplicando o método de coleta da história oral
(THOMPSON,1992). Além disso, foi necessária uma análise documental, como
avaliação sistemática dos jornais da época do rompimento, para que fosse possível
comparar as diferentes nuanças de memória construídas.
Poderíamos dizer, também: é preciso que desde esse momento não tenhamos
perdido o hábito nem o poder de pensar e de nos lembrar como membro do
grupo do qual (...) nós mesmo fazíamos parte, isto é, colocando-se no seu
ponto de vista, e usando todas as noções que são comuns a seus membros.
(...) De uma maneira ou de outra, cada grupo social empenha-se em manter
semelhante persuasão junto a seus membros (HALBWACHS, 1990, p. 28 -
47).
Portanto, existe uma relação inseparável entre os dois tipos de memória porque
não será possível o indivíduo lembrar vivências de um grupo com a qual suas
lembranças não se identificam, pois as memórias de um indivíduo nunca serão somente
suas e nenhuma lembrança pode existir apartada da sociedade.
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos
tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de
concordar com suas memórias e que haja bastante pontos de contato entre
uma e outras para que a lembrança que nos recordam possa ser reconstruída
sobre um fundamento comum. (...) É necessário que esta reconstrução se
opere a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto no
nosso espírito como nos dos outros, porque elas passam incessantemente
desses para aquele e reciprocamente, o que só é possível se fizeram e
continuam a fazer parte de uma mesma sociedade (HALBWACHS, 1990, p.
34).
Segundo a autora Leal (2012, p. 4 - 6), cada memória individual seria um ponto de
vista sobre a memória coletiva e esta percepção muda segundo o lugar que o individuo
ocupa na sociedade. E esse mesmo lugar, dependendo das relações mantidas com outros
ambientes, poderá sofrer influências diversas.
A memória coletiva tira suas forças e sua duração do fato de ter por suporte
um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram,
enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns, e que se
apoiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais
intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de
vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com os meios. Não é de admirar que, do
instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia
quando tentamos explicar a diversidade, voltamos sempre a uma combinação
de influências que são, todas de natureza social (HALBWACHS, 1990, p.
51).
Os que tiveram suas casas e suas vidas modificadas por esse acidente possuem
recordações coletivas, e elas são lembradas pelos outros não afetados mesmo que se
trate de acontecimentos vividos somente pelos moradores daquela região, e com objetos
que só eles viram. O sentimento e a construção da memória coletiva deles faz com que
os mesmos possam “lembrar à vontade, diremos voluntariamente que eles não
pertencem aos outros, mas a nós, porque ninguém além de nós pode conhecê-los”
(HALBWACHS, 1990, p. 49).
A oralidade dentro das narrativas dos atingidos evidencia que a memória guardada
pelos atores sociais que participaram ativamente do processo é diferença daquela que foi
captada enquanto o acontecimento se desenrolava pela mídia impressa. Neste estudo, o
processo de apreensão da história oral do povo da região se deu gradativamente por
meio de visitas de campo. Para Thompson (1992, p.44) a história oral é uma narrativa
construída em torno de pessoas:
Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de
ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria
desconhecida do povo. Estimula professores e alunos a se tornarem
companheiros de trabalho. Traz a história para dentro da comunidade e extrai
a história de dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados, e
especialmente os idosos, a conquistar dignidade e autoconfiança. Propicia o
contato – e,pois, a compreensão – entre classes sociais e entre gerações. E
para cada um dos historiadores e outros que partilhem das mesmas intenções,
ela pode dar um sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada
época. Em suma, contribui para formar seres humanos mais completos.
Paralelamente, a história oral propõe um desafio aos mitos consagrados da
história, ao juízo autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para
uma transformação radical no sentido social da história (THOMPSON, 1992,
p.44).
Dentro deste contexto, o autor inclui que a produção jornalística firma uma
memória estritamente popular possibilitando que um conjunto maior da população viva
algo específico de um grupo. É também nesta linha de raciocínio, que Le Goff (1992, p.
53) assegura que a memória oral repassada ao contexto escrito permite a expansão de
informações para além do grupo que vivia determinado fato.
Nesta primeira matéria não há nenhuma preocupação em tomar parte das pessoas
que já sofriam com o rompimento. Os personagens principais do momento são
silenciados pela preocupação de explicar o que aconteceu tecnicamente. A empresa
governamental responsável é mais questionada no momento.
5
Grifo dos autores
Desse fato, os moradores apreendem em suas memórias conflitos significativos e
que são parte de uma narrativa inscrita no cotidiano deles depois daquele dia. Não há
nenhuma preocupação marcadamente de como tudo aconteceu, mas desespero em suas
falas. Como é o caso de Socorro Santos, que em seu relato descreve emocionalmente o
que foi o acidente.
27 de maio. Esse dia nunca vai sair da minha cabeça. Quando a gente
escutou a água, nós tentamos sair, mas a água já pegou a gente. É muito
difícil. Muito difícil. Perdi minha família. [...] Se eu encontrasse minha filha,
viva ou morta, talvez eu vivesse uma vida normal, mas sem ela num tem
condição. (Comunicação oral, Socorro Santos, moradora do povoado Angico
Branco)6
A fala de Socorro coloca de antemão a preocupação com a data, da qual ela tenta
esquecer, mas reafirma nunca sair de sua cabeça.
6
Entrevista realizada pelo coautor deste trabalho, Francicleiton de Pinho Cardoso. Grifos do autor.
escolhia a comunidade Franco, na Zona Rural de Cocal, para passar o
domingo com a esposa [...] (O DIA, 29/05/2009, p. 05).
Outro personagem, morador do local é citado na matéria, mas sem tanta ênfase.
Em confronto, a matéria não fala novamente da hora do acidente, nem de como isso
modificou o modo de vida das pessoas da região, como fica claro na fala de Valdir:
E é uma perda muito grande, por que perder memórias é uma das perdas
piores que existe não é, memória é uma coisa que a gente constrói com tanto
trabalho né e ai a água vem e leva a memória. Olha, às vezes a gente fica, a
gente fica pensando assim não é , quando eu era criança depois de adulto
depois de meus filhos, tá entendendo, entrava na casa do meu avó pela porta
da frente, pela porta da cozinha, ninguém tomava banho e voltava
novamente, tá entendendo, imaginava assim, a casa de farinha imaginava a
cozinha da minha avó, imaginava o caixão de farinha do meu avô, com
alguma coisa encima que agente pegava pra comer, tá entendendo, e se hoje
existisse, certo, a gente, sei lá, pelo menos seria diferente, que hoje não existe
mais, a gente só lembra, na verdade não existe. (Comunicação oral Antônio
Enfermeiro, moradora do povoado Boíba)9
7
‘Pneus’ são os utensílios usados para o alojamento da goma, nas casas de farinha. (Grifos dos autores)
8
Idem.
9
Idem.
Na fala de Antônio, bem como na fala de muitos entrevistados, é evidenciado
mais uma vez o silêncio em torno da situação social em que se encontraram os
atingidos, provocado pelos meios de comunicação.
CONCLUSÃO
Entender o processo de construção da memória coletiva dos moradores dos
povoados atingidos pelo rompimento da Barragem Algodões I está para além de
interpretar as matérias publicadas em torno do acidente, considerando que o fato em si
não foi representado de forma mais abrangente nas páginas do jornal analisado.
Durante a análise foi observado que as matérias não incluem uma participação direta
dos moradores da região, o que dificulta uma melhor compreensão de como a tragédia
afetou a vida das pessoas.
A pesquisa em torno dos jornais, como delimitado, demonstrou ainda que houve
uma preocupação maior com respeito à política em torno do caso e em encontrar o
culpado pelo acidente, e esqueceu o acidente como transformação social e cultural na
vida dos moradores da região. Além disso, não há uma preocupação em dar voz aos
sujeitos afetados, uma vez que nas matérias foram identificadas poucas falas dos
moradores. Os depoimentos técnicos e de especialistas foram os mais evidentes. Dessa
forma, mostrou-se que as falas das autoridades governamentais e pareceres técnicos
eram mais importantes do que o cotidiano interrompido de forma inesperada.
BIBLIOGRAFIA
THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: história oral. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1992.