mudar de assunto em uma conversa: evocar o nome de seus interlocutores uma segunda vez. Fazia assim como um método para organizar os pensamentos e torná-los mais claros quando precisava lembrá-los. — Sim. — Você tem tido notícias do Phili? Não consigo falar com ele há três semanas. Parece que trocou o celular, não sei? ― Não. Na verdade, não o vejo desde do último encontro e isso faz já um bom tempo. O que? Uns dois meses? — queixou-se Herman por tanto tempo sem os encontros. ― Estou preocupado. — admitiu Gustav. ― Também. Antes nos reuníamos todos os meses, duas vezes. Agora parece que será um encontro a cada dois meses. — Desta vez Herman encarou o amigo a fim de tentar convencê-lo da necessidade de retomar os encontros.
Os dois desciam apressadamente as
escadarias do prédio central da faculdade. Gustav cuidou para que nada das muitas coisas que carregava não se esparramassem pelo caminho. Sempre correndo. Impressionava o seu senso de urgência. Parecia querer ganhar o tempo em uma corrida de cem metros. Carregava duas mochilas penduradas em cada ombro e uma sacola de papel com seu lanche-almoço, que quase sempre se esquecia de comer, e cadernos que disputavam lugar em uma das mãos. Os óculos se equilibravam sobre o nariz delgado, guardando os olhos castanho-claros. A cena se repetia quase todas as sextas-feiras, quando as aulas terminavam mais cedo e, observada de longe, sempre furtava um sorriso de quem passasse por ali.
Gustav e Herman haviam se conhecido no
curso de filosofia havia dois anos e, desde então, tornaram-se bons amigos. Não bebiam nem fumavam como os futuros filósofos de sua classe. Não tinham grandes amigos. Os dois se bastavam. Tinham bom relacionamento com quase todos no campus, mas “não nos misturamos”, diziam. Mesmo assim, eles não tinham inimigos declarados ou algo do tipo. Não eram considerados nerds. Eram estudiosos, mas nada excepcional. Nada de namoradas. Não porque não desejavam. Não havia ninguém por quem valesse a pena. Gustav, no alto dos seus experientes vinte e dois anos, declarava a quem desejasse ouvir que eram todas as mesmas.
O encontro a que Herman se referira,
restringia-se a quatro ou cinco pessoas que comiam pizza e bebiam refrigerantes debatendo as aulas de filosofia e ouviam música ou discutiam sobre filmes, sempre na casa de Gustav. Era quase um grupo fechado. “Só os que realmente se interessam”. Cada vez os encontros estavam se tornando mais raros e ninguém tinha coragem de perguntar o porquê de Gustav não estar mais convocando as reuniões. Nem mesmo Herman, ainda que julgava ser culpa de Phili. Não era verdade que o novo amigo de Gustav tenha gerado em Herman um certo ciúme. A palavra correta talvez não fosse essa. Seria desconfiança. O carinha tinha chegado a faculdade, assim, sem mais sem menos, arrazoava Herman. Nos finais de semanas em que não tinha reunião, os dois podiam ser encontrados sempre na companhia um do outro. Seja onde fosse: no clube, na casa de Gustav ou na tia Bel, comendo bolo de cenouras e tomando banho na piscina. Phili aparecera no curso havia pouco menos de dois meses. E, mesmo caladão, meio deslocado, chamara a atenção de Gustav. Em seguida começou a frequentar os encontros. E, aos poucos, as atenções de Gustav se voltaram para o amigo misterioso. Vestia roupas baratas, sem cores extravagantes; tênis pretos, sempre os mesmos. E livros de filósofos como Kant, Hegel e Hume debaixo dos braços ou nas mãos. Phili era negro e isso provocava mentalmente em Gustav questionamentos preconceituosos.
— Te vejo amanhã, então? — gritou Gustav a
Herman de longe, depois de praticamente ter jogado as coisas no banco de trás do carro e ajustado os óculos ao rosto para que não corressem o risco de cair. Levantou os olhos em direção a Herman e notou que ele não estava mais lá. Todo o campus era composto de vários prédios ladeados por pequenos lagos, jardins e gramados que sempre estavam cheios de alunos conversando ou estudando. Alguns casais flertavam e combinavam encontros furtivos entre os ipês e as amendoeiras espalhados por todo o complexo. O prédio central era onde ficavam os cursos de humanas, a reitoria e os restaurantes. Um pouco mais distantes estavam distribuídos os prédios das Exatas, a biblioteca, a prefeitura do campus, o ginásio de esportes e anfiteatro. Este servia mesmo para os skatistas e maconheiros que se encontravam sempre no fim da tarde, mesmo sob observação dos guardas do campus.
Logo que entrou no carro, Gustav lembrou-se
que deveria abastecer o carro, passar no mercado para levar os pães que sua mãe pedira e algumas cavacas com cobertura de goiabada. Isso o fez não se preocupar com Phili por algumas horas. — Mãe?
— Estou aqui, filho, na cozinha.
Gustav foi até ela e beijou-lhe a testa como de
costume. Fez duas ou três perguntas sobre o dia dela. Era à sua maneira de mostrar que se importava. Colocou cuidadosamente os pães e as cavacas sobre a mesa e uma das mochilas sobre a cadeira. A outra estava jogada sobre o sofá da sala, junto as chaves do carro e do apartamento.
— Abasteceu o carro, filho? — Ela perguntou
enquanto retirava o avental e se dirigiu a pia a fim de lavar as mãos.
— Sim. Vou subir para tomar um banho e já
desço para o café. Que horas são, mãe?
Ela olhou para o relógio sobre o umbral da
porta entre a sala e cozinha:
— Cinco horas! São exatamente cinco horas,
Gustav. Antes de dizer “são exatamente...”, ele já havia subido as escadas e ela ficou ali, maneando a cabeça negativamente, inconformada com tanta pressa.
A mãe de Gustav tinha quarenta anos e
cuidara dele deste bem cedo. Quando Gustav nasceu ela tinha apenas dezoito anos. Seu marido havia sumido quando Gustav ainda era uma criança. Deixou um bilhete de despedida para ela. E ela nunca revelou o conteúdo do bilhete e o rapaz não demonstrou interesse algum de perguntar. Ela trabalhava como professora de História. Dava aulas em duas escolas particulares a fim de aumentar a renda. Nunca reclamava da vida. Tinha prazer no que fazia. Sempre positiva. Queria de Gustav estudasse para ser professor de História, como ela. Nunca entendeu porque filosofia. Mas, o apoiava. Os dois moravam em apartamento que era dos avós maternos de Gustav, no Centro da cidade. XZXXXXZXX.
Depois de meia hora de banho, os dois já
estavam na cozinha tomando o café da tarde. Gustav tomava o café enquanto examinava algumas correspondências, na maioria contas, e se engasgou com um pedaço de cavaca quando ouviu de sua mãe:
— Aquele seu amigo, Phili, ligou enquanto
você estava no banho. Disse que vai ligar depois e que precisa de sua ajuda. 2|A REVELAÇÃO
— Gustav, Phili ligou.
— Eu sei. Ele ligou aqui para casa também. Para o residencial. Isso não é estranho? — ponderou. — Sim. Sim. Ele ligou para o residencial daqui também. — O tom da voz de Herman era de êxtase. — Por que ele não ligou para o meu celular? Ele tem o número do meu celular. — Isso não é o mais esquisito de tudo, Gustav. Ele disse que ligou para você e sua mãe tinha atendido. Phili quer mesmo é falar com você. Ele disse que ligar para o seu celular seria muito perigoso. — Desta vez, a voz era quase um sussurro. — Esquisito! — Mas, não é isso o que torna toda estória esquisita, Gustav. O inexplicável — fez uma pequena pausa — ... é que eu nunca passei meu número de telefone residencial para o Phili.
Um grande silêncio tomou conta da conversa
por alguns segundos até que Gustav pediu para Herman ir a sua casa.
— Gustav, você sabe que horas são?
Ele olhou para o despertador ao lado de sua
cama e constatou ser quase 23h. Seu senso de urgência não tinha medida. Então marcaram na biblioteca duas horas antes da aula, no dia seguinte.