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Débats | 2014
Latinoamerica y los enfoques globales – Coord. Sergio Serulnikov et Andrea Lluch
ALEXANDRE FORTES
Os impactos da Segunda
Guerra Mundial e a regulação
das relações de trabalho no
Brasil
World War II impacts and the regulation of labor relations in Brazil
[27/01/2014]
Résumés
PortuguêsEnglish
Esse artigo parte do princípio de que a Segunda Guerra Mundial foi um processo global
com impactos profundamente transformadores nas relações econômicas, sociais e políticas
mesmo de áreas distantes das principais frentes de combate. Integrando elementos da
história do trabalho e da história das relações internacionais, buscamos demonstrar como o
exame do impacto da Guerra sobre o Brasil leva a novas interpretações sobre a
consolidação da engenharia institucional de regulação estatal das relações de trabalho
caraterístico da chamada “Era Vargas”. Essa abordagem permite compreender a
reinvenção do Estado brasileiro naquela conjuntura crítica, sob a pressão de profundas e
aceleradas transformações “por cima” e “por baixo”, resultando em inovações políticos-
institucionais cujos legados se revelaram persistentes. No primeiro plano, destaca-se a
emergência de nova ordem internacional na qual a industrialização estabelecia-se como
condição sine qua non de soberania nacional. No segundo, o projeto de incorporação
“controlada” das maiorias subalternas à cidadania e à participação política, num contexto
de popularidade inédita do comunismo e no qual a derrota ideológica do “racismo
científico” abalava os alicerces das hierarquias sociais pós-abolição.
This article departs from the assumption that World War II was a global process with
profoundly transforming impacts on economic, social and political relations even in areas
removed from the main battle zones. Integrating elements from labor history and foreign
relations history, we search to demonstrate how the exam of the war impact on Brazil
brings new interpretations on the consolidation of the institutional engineering for state-
controlled regulation of labor relations characteristic of the so-called “Vargas Age”. This
approach allows us to understand the reinvention of the Brazilian state at that critical
juncture, under the pressure of profound and accelerated transformations, both “top-
down” and “bottom-up”, resulting in political-institutional innovations, with lasting effects.
In one hand, there is the emergence of a new international order in which industrialization
was established as a sine qua non condition for national sovereignty. On the other hand,
the project of a “controlled” incorporation of the subaltern majorities to citizenship and
political participation, in a context marked by the novel popularity of communism, also one
in which the ideological defeat of “scientific racism” shook the foundations of post-
abolition social hierarchies.
Entrées d’index
Keywords : World War II; Labor law; Industrialization; Nationalism
Palavras Chaves : Segunda Guerra Mundial, Legislação Trabalhista, Industrialização,
Nacionalismo
Texte intégral
1 A Segunda Guerra Mundial é um marco inconteste na historiografia
internacional sobre as relações entre Estado e classe trabalhadora; políticas
sociais e cidadania. A “guerra total” e a luta antifascista criaram as condições
políticas e culturais para a generalização de um novo padrão de regulação no
capitalismo, vinculando “desenvolvimento nacional”, “democracia” e “bem-estar
social”.
2 No Brasil, é crescente o destaque dado na bibliografia especializada às
transformações ocorridas no período de envolvimento direto com a conflagração
global (1941-1945). Entretanto, fatores “domésticos” continuam a preponderar
nas explicações sobre os processos inovadores ocorridos naquela primeira metade
dos anos 1940. Isso se explica, em grande medida, pelo fato de que a análise dos
efeitos da Guerra sobre as relações de trabalho no país tende a ficar diluída num
debate mais geral sobre o legado de Getúlio Vargas, que permaneceu no poder de
1930 a 1945 a títulos vários (chefe do Governo Provisório, presidente eleito pelo
Congresso Constituinte e Ditador), retornando como presidente eleito por via
direta entre 1950 e 1954 (além de ter seu principal herdeiro político como
presidente da República em 1961-1964).
3 O sistema corporativista de relações de trabalho estabelecido no Brasil após
1930, um dos principais e mais persistentes legados da “Era Vargas”, foi e
continua a ser objeto de acalorados debates acadêmicos e políticos. Desde a sua
criação, os defensores do sistema se vangloriam do fato do Brasil possuir “a
legislação trabalhista mais avançada do mundo”, enquanto seus críticos apontam
para o fato de que isso não impediu o país de se tornar campeão mundial de
desigualdade social.
4 Durante as greves dos metalúrgicos do ABC paulista no final da década de 1970,
o então líder metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva declarou que a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), promulgada por Getúlio Vargas em 1943, era o “AI-5
dos trabalhadores”, numa comparação entre os mecanismos de controle sobre as
organizações sindicais previstos na primeira e o decreto que, em 1968, fechou o
Congresso Nacional e suspendeu diversas garantias constitucionais, inaugurando
o período mais repressivo da Ditadura Militar. Porém, na década de 1990,
enquanto o presidente Fernando Henrique Cardoso definia como missão do seu
governo por fim à “Era Vargas”, os remanescentes do novo sindicalismo,
organizados na Central Única dos Trabalhadores, viriam a se tornar ardorosos
defensores da CLT, já que esta, ao prever uma minuciosa e ambiciosa
regulamentação das condições de trabalho no país, tornou-se um poderoso escudo
na luta de resistência contra a “flexibilização” promovida pelo neoliberalismo. No
momento em que escrevemos estas linhas, a passagem dos setenta anos de
proclamação da CLT reacende estes debates.
5 Desde os primórdios dos estudos acadêmicos sobre o tema, os críticos do
sistema denunciavam que ele teria promovido a heteronomia do movimento
operário, cerceando a livre negociação. O atrelamento ao Estado foi apontado
também como responsável pela multiplicação de sindicatos “cartoriais”
(organizações criadas para exercer a suposta representação de determinadas
categorias de trabalhadores que, de fato, não possuem nenhum grau de
organização) e sustentar “pelegos” (sindicalistas burocráticos sem compromisso
efetivo com a defesa dos interesses dos trabalhadores)1.
6 Enquanto vários autores apontam para indícios de influência fascista já nos
primeiros decretos emitidos após a Revolução de 19302, um estudo pioneiro
levado a cabo por um dos seus principais formuladores considera que esta
influência autoritária se estabeleceu apenas após o golpe do Estado Novo, em
1937, que teria deturpado uma legislação até então pautada pela experiência de
advogados vinculados à defesa dos direitos dos trabalhadores desde a Primeira
República.3
7 A linha predominante dos estudos atuais sobre o tema tenda a reforçar o caráter
autóctone das fontes intelectuais da legislação, apontando para conexões no
campo da prática jurídica que remontam à defesa dos direitos dos escravos
durante a luta abolicionista4 e destacando a profunda diferença entre o sistema
institucional do Brasil varguista em relação ao da Itália fascista5. Alguns autores,
entretanto, apontam que, embora a CLT e a Carta del Lavoro sejam documentos
de teor e caráter bastante distintos, não se deve esquecer que traduções de trechos
da segunda foram integralmente inseridos na constituição outorgada pelo regime
estado-novista em 19376. Outros destacam a imensa distância entre o “paraíso
operário” prometido pela CLT e a realidade do mundo do trabalho no Brasil,
considerando que, ao invés de expressar a defesa ativa dos direitos dos
trabalhadores pelo Estado, a legislação varguista de fato se constitui num novo
terreno de luta, à medida que a efetivação dos direitos nela vislumbrados
dependeu sempre da capacidade organizativa dos trabalhadores e das alianças
políticas por eles estabelecidas7.
8 Enquanto boa parte dos estudos sobre as origens do sistema varguista de
regulação das relações de trabalho enfatiza, portanto, o debate sobre as opções
políticas e afiliações ideológicas dos governantes e legisladores, questionamentos
sobre o fato de ela ter sobrevivido ao regime levaram as ciências sociais brasileiras
ao estudo de outros fatores. Apontada como expressão de um processo de
modernização conservadora, similar ao verificado em outros populismos latino-
americanos8, as raízes estruturais do fenômeno foram localizados pela Escola
Sociológica de São Paulo na substituição gradual de um operariado estrangeiro,
politizado e militante por migrantes rurais recentes, carentes de experiência
política prévia. Os novos operários, portanto, estariam satisfeitos pela mobilidade
social ascendente representada pelo seu ingresso no mundo urbano-industrial9, e
por isso teriam se constituído em “massas disponíveis” para a manipulação
populista10. Estudos no campo da ciência política nos anos 1970, por outro lado,
enfatizaram a análise de conjunturas críticas e o papel das escolhas realizadas
pelos atores políticos, especialmente o Partido Comunista, cuja aproximação ao
varguismo no imediato pós-guerra passou a ser vista como determinante para a
sobrevivência do sistema.11.
9 Em meados dos anos 1980, o tema começa a ser revisitado por autores que,
influenciados pelo historiador britânico E.P. Thompson12, enfatizam a experiência
dos trabalhadores como sujeitos históricos conscientes. Proliferaram estudos
sobre categorias, empresas e comunidades específicas, buscando compreender
processo de apropriação e ressignificação da legislação trabalhista como novo
terreno de luta de classes no pós-193013. As relações entre estes grupos de
trabalhadores e as empresas nas quais eram empregados passaram a ser vistas
como microcosmos do “sistema político populista”, nas quais se verificavam
lógicas próprias de concessão de benefícios paternalistas, combinados com graus
variáveis de respeito aos direitos legais dos trabalhadores14. Em muitos desses
casos, verificava-se um forte “patriotismo de fábrica”: o orgulho e a segurança
gerados pelo pertencimento a uma empresa poderosa, que entretanto não impedia
a ocorrência de uma luta velada ou aberta por condições de vida e de trabalho,
dignidade humana e profissional.15
10 A relevância do período no qual a guerra ocorreu (particularmente dos anos
1941 a 1945) no que diz respeito à reconfiguração das relações de trabalho no
Brasil está bem estabelecida na literatura. Aquele foi o momento da “invenção do
trabalhismo”16, da “aposta populista” de Vargas17, e da emergência de uma “crença
simbólica nos direitos” entre os trabalhadores urbanos brasileiros18. A ditadura do
Estado Novo passou por uma inflexão rumo a uma “cidadania regulada”19,
expressa na titularidade dos trabalhadores incluídos no mercado formal de
trabalho a direitos definidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
11 Diversos dos trabalhos citados acima mencionam aspectos da Guerra e suas
consequências no país como parte do contexto de consolidação do projeto
varguista de incorporação dos trabalhadores a uma nova forma de cidadania.
Nenhum deles, entretanto, atribui ao envolvimento do Brasil na confrontação
global um papel decisivo nas mudanças ocorridas tanto na configuração da classe
trabalhadora quanto na política trabalhista do regime justamente naquele
momento. É essa hipótese que exploramos aqui, tomando como ponto de partida
o próprio impacto da Guerra sobre a economia brasileira.
Economia e defesa: A aliança Brasil-
EUA na Segunda Guerra Mundial
12 A importância da Segunda Guerra Mundial para o Brasil não pode ser medida
pelos cerca de 25.000 soldados da Força Expedicionária Brasileira enviados para
combater na Itália, dos quais 471 tombaram em combate.20 Nem mesmo pelos
1.074 mortos resultantes do torpedeamento de navios por submarinos alemães na
costa brasileira. São números pálidos no contexto de um conflito que causou a
morte de algo entre 30 e 50 milhões de pessoas.
13 O longo e complexo processo de envolvimento do país na conflagração global,
entretanto, produziu transformações econômicas, sociais e políticas (tanto na
esfera doméstica quanto no âmbito das relações internacionais) que moldariam de
forma decisiva o curso da história brasileira na segunda metade do século XX.
14 Conforme aponta Frank McCann, a análise da situação internacional preparada
pelo ministro de Relações Exteriores Oswaldo Aranha para subsidiar Getúlio
Vargas em seu encontro secreto com o presidente norte-americano Franklin
Roosevelt em Natal, em 28 de janeiro de 1943, pode ser considerada “um resumo
das políticas externas e domésticas do Brasil nas décadas seguintes”. Elas
situavam o estabelecimento de uma “cooperação segura e íntima com os Estados
Unidos” como condição para o desenvolvimento de poder marítimo e aéreo
visando assegurar a “consolidação da superioridade” brasileira na América do Sul
e uma “melhor posição na política mundial”, destacando-se uma maior influência
sobre Portugal e suas possessões. As condições econômicas para tanto passavam
pelo desenvolvimento da indústria pesada e pela criação da indústria de guerra,
assim como pelo fomento a outras indústrias complementares às dos EUA e
essenciais para a reconstrução mundial, pela expansão do sistema de ferrovias e
rodovias e pela exploração de combustíveis essenciais.21
15 Nas décadas anteriores, diversos gestores da política econômica brasileira
cumpriram a rotina de peregrinar em vão a Washington imediatamente após
assumirem seus cargos, solicitando acordos comerciais visando ampliar as
exportações para os EUA e assegurar o ingresso de dólares necessários às
importações do país e à realização de investimentos capazes de alavancar o seu
desenvolvimento industrial. A súbita disposição dos Estados Unidos, verificada
entre 1940 e 1942, em finalmente conceder ao Brasil o status de aliado estratégico,
realizando as concessões e investimentos daí decorrentes, produziu-se em um
contexto histórico muito específico, no qual a costa nordeste do Brasil foi
identificada como área chave para a “defesa do hemisfério ocidental”. Das cerca
de cem reuniões realizadas pelo comitê de planejamento conjunto do Exército,
Marinha e Departamento de Estado dos EUA entre 1939 e 1940, apenas 6 não
tinham a América Latina no topo de agenda.
16 Em 1940, a inteligência britânica convenceu as autoridades norte-americanas
de que os alemães, que consolidavam se controle sobre o norte da África, estavam
a um passo de cruzar a linha Dacar-Natal, estabelecendo bases no nordeste
brasileiros enquanto fomentariam uma onda de golpes pró-Eixo na América do
Sul, região na qual já possuíam forte influência sobre setores das forças armadas e
controle sobre as principais empresas de aviação comercial. A resposta norte-
americana seguiu ao longo de dois eixos: a intensificação da política de Boa
Vizinhança (em todas as suas frentes: cooperação interestatal, cultural,
econômica, etc.) de um lado e preparação para necessidade de uma “invasão
preventiva”, com um efetivo estimado de cerca de 100.000 soldados, batizada
“Operation Pot of Gold” [Operação Pote de Ouro]22.
17 A disposição norte-americana para investir no Brasil precisa também ser
entendida num contexto de enfrentamento à influência econômica alemã, já
tradicional nas áreas de densa colonização germânica do sul do país, mas que
tinha se ampliado significativamente também no país como um todo (e no
Nordeste em particular), em função dos acordos comerciais estabelecidos a partir
de 1934 entre Brasil e Alemanha. O engenhoso sistema dos chamados “marcos de
compensação”, asseguravam cotas do mercado alemão às commodities brasileiras,
sendo o pagamento depositado em marcos numa conta da agência de Berlim do
Banco do Brasil e utilizado para a compra de bens manufaturados (incluindo-se aí
armamentos para a modernização das obsoletas Forças Armadas brasileiras que
os norte-americanos relutavam em disponibilizar). Os efeitos políticos dessa
política ainda se faziam sentir mesmo quando a Guerra a interrompeu, como
destacava o cônsul norte-americano em Recife em 1941:
Auteur
Alexandre Fortes
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiroalexfortes@globo.com
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