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H. P. BLAVATSKY

A DOUTRINA MÍSTICA
Narrações Ocultistas

Prólogo e Notas de:


MÁRIO ROSO DE LUNA

Tradução de:
C. DE FIGUEIREDO BARTOLETTI

HEMUS - LIVRARIA EDITORA LTDA.


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ÍNDICE

Prólogo 04
A Gruta dos Ecos 15
Um Matusalém Ártico 23
O Campo Luminoso 25
Uma Vida Encantada (Tal Como a Contou uma Pena)
Introdução 32
I - O Desconhecido 33
II - O Visitante Misterioso 38
III - Magia Psíquica 40
IV - Visão de Horrores 42
V - A Eterna Dúvida 45
VI - Parto, Porém Não Sozinho 48
VII - A Eternidade é um Sonho Fugaz! 50
VIII - Desgraças a Granel 53
A Façanha de um "Gosain" Hindu 57
Demonologia e Magia Eclesiástica 61
Assassinato à Distância 67
A Mão Misteriosa 73
A Alma de um Violino 77
Os Espíritos Vampiros 96
A Ressurreição dos Mortos 111
A Imaginação, A Magia e o Ocultismo 120

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PRÓLOGO

Prato forte é, leitor, o que te ofereço. Contos macabros, narrações ocultistas da


Mestra Blavatsky, ante os quais empalidecem as maiores concepções do fantástico
Hoffmann, as mais densas tenebrosidades de Edgar Poe, no delirium tremens de
suas embriaguezes astrais; os casos mais estranhos e inexplicáveis, enfim,
colecionados pela paciência beneditina de A. Dunken, em sua obra "Os vampiros na
literatura alemã"; pela arte de Léon Pineau, em seus "Velhos cantos populares
escandinavos"; por Gregorson Campbell, em suas "Superstições de Highlands e Ilhas
da Escócia", recolhidas inteiramente de fontes orais; por E. Cosquin, em seus
"Contos Populares da Lorena"; por Laisnel de Ia Salle, em suas "Recordações dos
velhos tempos" ; por Daniel Deenay, em sua "Erudição dos camponeses da Irlanda
Gaélica"; por Abbott, em seu "Folclore Macedônico"; por Kassof, em seus
"Costumes do nordeste da Rússia"; por Friedel, em seu "Folclore da Pomerãnía e do
Tirol ; por William Ridgeway, em seus "Primeiros tempos da Grécia"; ou, enfim, por
nossos escritores de terror, do estilo de José Espronceda e Gustavo Adolfo Becquer!
Em qualidade e quantidade, a todos eles supera a consciente arte macabra da
excepcional mulher que antes se nos mostrou maravilhosa ironista, em "Pelas
grutas e selvas do lndostão", ária mística, em sua pequena obra "A Voz do Silêncio"
e, em tomos sucessivos de "Comentários", mostrar-se-nos-á serena, sábia e
arquicientífica, com seus cinco livros imortais "Ísis sem Véu" e a "Doutrina Secreta".
Sim, este proteu inabarcável, a princesa Helena Petrovna mais parece um
personagem real de algumas de suas arrepiantes narrações, que mera contista de
algo que sonhar pudesse, nos delírios de uma imaginação transbordante. Sem ter
vivido certas coisas dessas ali narradas, não se concebe maior viveza de colorido...,
desse colorido cárdeno, lívido, clorótico, gris, astral, super-humano de Alberto
Durero, el Grego ou Goya, vibrando com a mesma sonoridade pavorosa com que
vibra o "Allegretto" da Sétima Sinfonia, ou o "Largo e Mesto" da Sétima Sonata de
Beethoven.
O crime, o prodígio, o absurdo real, o mistério desconcertante dão-se as mãos
nestas páginas, entre sérias doutrinas científicas e passatempos artísticos do mais
fino lavor. A ciência aqui é superciência; a arte - filigrana incomparável; a religião -
eco dessas verdades eternas, perdidas na exuberância tropical do mito; a imaginação
- escalpelo; a investigação - sonho... todo esse jogo de contrastes, em suma, que
formam sempre, por sua interpenetração, a integração da vida... desta vida que é um
eterno morrer entre as ondas angustiosas do Mar da Dúvida! desta vida que, sem tais
mistérios, sonhos, absurdos, realismos, virtudes e crimes, não vale a pena ser vivida
como se vive um poema, aquele poema de queda, de luta e de triunfo que já
adivinhou Campoamor, quando nos disse:

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“Conforme o homem avança
da vida no áspero caminho
leva sempre a seu lado a esperança
mas tem sempre à frente o seu destino...”

Porque a alma de todas estas páginas, que com tanto carinho nos permitimos
apresentar, é o dedo do Deus-Karma: a pegada do Destino; o Talião inexorável das
coisas, diante da suprema piedade dos que, vigorosos transcenderam as fronteiras do
Mistério, rompendo hercúleos o Véu de Maya ou de Ísis, para auxiliar, desde o mais
além das coisas, os seus filhos - os homens, esses homens que são maus porque são
egoístas, e que são egoístas porque têm, todavia, mais de animais que de homens,
por terem escalado muito poucos degraus na senda evolutiva.
Em um dos contos, a paixão amorosa, irmanada à cobiça, assassina, e seu
assassinato é descoberto por uma das mais repugnantes experiências da magia nativa
atlante e tântrica; além, em outro, o ceticismo materialista perde um pobre homem
que, em sua inconsciência europeia no que tange aos inauditos perigos do Ocultismo,
crê ser possível abrir a porta dantesca do mais além, ignorando que essa porta, uma
vez aberta, jamais pode fechar-se, e, sem compreender que vai chegar por isso à
borda mesmo da mais espantosa loucura; acolá, criaturas inocentes, à maneira das
recentes vítimas espanholas dos feiticeiros de Gador e da nefasta bruxa Enriqueta
Marti, sofrem todos as mortais depredações do vampirismo, enquanto que, em
outras páginas, o duplo astral de uma mulher do mesmo jaez, realiza uma histórica
vingança política. E vibram os intestinos de um bom homem transformados em
cordas de violino; ou dançam os espectros das tumbas, com música astral, que não é
a dirigida pela batuta de Offenbach, nem a evocada pela Dança Macabra de Saint
Saens; ou os faquires deixam-se enterrar vivos; ou realizam os jograis as tretas
hipnóticas mais inconcebíveis; ou verdadeiros e efetivos Matusaléns árticos guiam,
entre as neves, tristes caravanas polares; ou apresentam a seus clientes, tal qual os
dervixes mais asquerosos e os xamanistas mais santos, o espelho mágico de todas as
vidências do astral, onde se vê o que querem deixar ver os jinas e onde já não subsiste
nenhuma de nossas noções tridimensionais de espaço, tempo, quantidade, matéria ou
força, transmudadas todas com a facilidade do sonho, da febre ou da loucura...
E, aqui, assistimos às sessões mais tremendas de superespiritismo; mais além,
vemo-nos envolvidos entre sangue, nas trevas da magia negra; acolá, concluímos,
como Empêdocles, Jesus, Apolônio de Tiana e todos os Adeptos, enfim, podem
devolver à vida os mortos, realizando o milagre de tornar a ligar o corpo astral ao
corpo físico, ou o cadáver do assim ressuscitado, à maneira dos célebres clientes de
além-túmulo do médico-deus Esculápio, que voltaram a viver às centenas e milhares,
até que, por queixa do deus Plutão, Júpiter os fulminou com um de seus raios... A
teofonia, a telestesia, a teurgia, a astrologia, a alquimia e demais ramos da Magia,
irão intervir em umas e outras passagens narrativas, entre o destapar da mais temível
caixa de Pandora, que põe em liberdade os demônios da epilepsia, e do histerismo, as

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personalidades múltiplas, as deslocações e transtornos sensitivos; os terrores
apocalíptico do superliminar e toda a inabarcável patologia da psique, com o
consequente aditamento de que, ao fechar, espantados, a caixa fatídica, permaneça,
no interior, o último dos males, quiçá: a esperança de achar uma explicação verdadeira
para tamanho problema e um remédio para patologias tão absurdas quão
demoníacas.
Porque, entre as narrações da Mestra e os contos macabros de tantos outros
autores, medeia uma diferença essencialíssima: estes foram sonhados em seus
delírios de inspiração ou de neurose de que acaso foram vítimas, enquanto aquela,
embora pareça à primeira vista o contrário, glosou seus argumentos com pleno
domínio de si própria e com um fim perfeito e conscientemente ocultista. Quer dizer
que, enquanto os contos, por exemplo, de Poe, contos escritos sob o influxo do álcool,
são contos que parecem ditados por alguém do astral, esse vedado mundo que Poe
havia aberto com a gazua da bebida, os de Helena Petrovna não são senão pequenas
fábulas chistosas, sob cujo véu encobriu, para que achassem, depois, os espíritos
seletos, os ensinamentos mais fundamentais do Ocultismo com respeito à Lei do
Karma, ou de causa e efeito; da reencarnação, que é postulado lógico da justiça divina;
da dos elementais, ou criaturas invisíveis, que reinam soberanos no mundo emocional,
como os micro-organismos pululam, por legiões, nos caldos de cultura; a lei, enfim, da
latente divindade da alma humana, ainda no inferno de seus maiores extravios; a da
imaginação criadora, que é a desgraçada chave da magia, a da vida humana, em suma,
ao longo de sua peregrinação terrestre, que não é senão o panorama da eterna luta,
entre os gloriosos destinos do homem, em busca do Ideal, forçando o passo, como os
heróis de todas as lendas, com a retidão energética de seu coração nobilíssimo e a
espada irresistível do conhecimento, por entre a canalha diabólica, elementar e
invisível, que o combate sem trégua, para fazê-lo sossobrar em seu caminho, razão
pela qual se diz, na Bíblia, que é milícia a vida do homem sobre a Terra, e foi
acrescentando, consoladoramente, por Maeterlink: "É bom recordar aos homens que
o mais humilde dentre eles tem bastante poder, a modo e teor do modelo divino que
traça em sua imaginação, para constituir-se numa elevada personalidade moral,
integrada por partes iguais do Ideal que sustenta e de sua própria individualidade que,
deste modo eleva a estágios inconcebíveis".
Como se tivesse a Mestra tido presente, com efeito, esta frase de Magendie - "A
inteligência humana, por uma estranha lei, parece precisar exercitar-se longo tempo
no erro antes que ouse acercar-se da verdade" - teima em seguir, em todos os seus
contos, as pegadas dos necromantes medievais - aqueles das missas negras; os mitos
bruxos com crianças assassinadas, e as efusões sacrificiais de sangue de animais e de
homens - para levar-nos, com a sedução insensível da fábula, que é a Verdade com a
roupagem da Mentira, até as mais imponentes verdades do Ocultismo, em cuja altura,
bem de pronto, recebem-se novas luzes para o Direito Penal, para a Ciência Médica,
para a Sociologia, para as Religiões e para as doutrinas do magnetismo, mesmerismo,
hipnotismo, cabala, etc., amoldado ao tão lógico aforismo de Herbert Spencer, que
diz: "Quando se lança uma hipótese fecunda sobre um grande acúmulo de feitos
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desordenados, esse caso antigo começa, bem logo, a evoluir em uma ordem nova e
admirável que nos eleva na senda do conhecimento e da virtude".
Tal como das trevas cimerianas e patológicas, por exemplo, de Edgar Poe, surge
nestas narrações blavatskianas uma nova luz no caos dos feitos ocultos que todos
conhecemos desde o berço, onde nossas mães, nas noites horríveis de inverno, ao
calor da lareira, ou encolhidas entre os cobertores da cama, faziam-nos tremer de
emoção astral, quando nos contavam "Era uma vez um rei"... e que imortalizou o
poeta hindu Rabindranath Tagore, traduzido em castelhano por Jimenez.
Em um maravilhoso artigo que teve a bondade de dedicar-nos outro Edgar Poe,
não alcoólatra, que se chama Emílio Carrere, este grande escritor nos dizia, falando
daquele tão inquietante homem:
"Este taumaturgo literário cativou-me o espírito. O prólogo de Baudelaire, da
tradução francesa de "Estórias Extraordinárias", é um profundo estudo crítico e um
emocionante acervo de anedotas. Dá-nos, de corpo inteiro, o Poe passional,
trabalhador, analítico, matemático e até o tenebroso bêbado que faz "SS" pelas ruas
de Nova York, na mesma manhã em que "O Corvo" era publicado triunfalmente.
Oh! aquela trágica embriaguez que abre a porta de seu cérebro excepcional à visita
do Delirium Tremens! Sem embargo, Baudelaire omite um aspecto muito interessante
de Edgar Poe - o sopro de além-túmulo que gela as páginas mais profundas e
singulares deste artista do horror.
"As Memórias de Augusto Beldoe", "Revelação Magnética", "Morella", Ligéia" e
"A Verdade sobre o caso de Waldemar", atestam que Poe era um iniciado em
ocultismo.
"As Memórias", de Augusto Beldoe, são a alucinante história de um
hipnotizado. Na época de Poe, a ciência oficial rechaçava as práticas hipnóticas,
considerando-as patranhas próprias do vulgo. Mesmer havia sido anatematizado
pela ordoxia científica. O povo não compreendia bem as causas, mas se surpreendia
ante os efeitos. Como artes milagreiras, Poe, naturalmente, despreza todas as
superstições e se apodera do segredo do mesmerismo. E, como além de homem de
ciência, era poeta, a intuição estética o guia. Fala do magnetismo, com a
profundidade que poderia fazê-lo um bom médico moderno. Poe antecipou-se
oitenta anos no estudo racional e científico deste sutil aspecto semipatológico e
semi maravilhoso. Há motivos para crer que o próprio Edgar foi um magnetizador
estudioso.
Quando escrevia seus contos de arrepiar, ainda não se havia falado de
espiritismo, na Europa; em "Metzengerstein" e em "Guilherme Wilson", apresenta-
se um caso de metempsicose e de dupla personalidade. Para o leitor vulgar, Poe é
uma imaginação, unicamente. Sem embargo, o caso de "Ligéia" não se inventa, nem
o de "Morellas", tão pouco, sem possuir, além da imaginação, uma completa
identificação com o extraterreno, juntamente com uma profunda e difícil cultura
ocultista. Claro que é preciso gênio para compor a audaz hipótese d "A Verdade
sobre o caso de Waldemar", o conto mais belamente horrível e o mais original de
todas as literaturas.
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Poe devia ser médium; confessava que ouvia "vozes do Céu, da Terra e também
do inferno". Baudelaire afirma que, para o poeta americano, o álcool era uma ponte
entre o plano físico e a zona alucinante do astral, esse "fundo esverdeado", onde se
"sente a fosforescência da pesca e o odor da tempestade" e que repetida num
acesso de embriaguez, a narração recomeçava noutra tormenta de álcool, com
seres absurdos e incompreensíveis que habitam aquele ambiente de pesadelo.
Em "Revelação Magnética", a voz do indivíduo adormecido não é uma voz
humana. Pelos lábios do homem, que desperta do torpor hipnótico para morrer,
fala o espírito do mistério. "Aquele homem disse suas últimas palavras do fundo da
eterna sombra", exclama Edgar. Maravilhosa, sua voz cheia de ciência humana, ou
iluminada de resplendores celestes e aguçada pela intuição que, qual lamparina
misteriosa, arde no fundo, sem fundo, de nosso ser!
"Ligéia", a milagrosa, é uma incorporação espiritualista de prodigioso interesse
estético. "Ninguém morre completamente senão quando tenha perdido a vontade
de viver". "Pelo poder dessa vontade, o homem chega a igualar-se aos anjos", Assim
diz "Ligéia", quando se desespera ante a ideia horrível e espantosa da morte... E,
depois, no cadáver de Lady Rovena, ressurge "Ligéia" em uma tremenda, arrepiante
suplantação espírita.
Poe foi um sutil analista - vede "O Assassinato da Rua Morgue" e "A Carta
Roubada"; um engenhoso decifrador de enigmas - lede "O Escaravelho de Ouro".
Ademais teve o talento de encerrar numa lógica harmoniosa, o que poderíamos
chamar de a órbita do absurdo, em "O Gato Preto" - esse tremendo gato torto e
enforcado - "Coração Revelador", "O Tonel de vinho amontillado" (1) e outros
muitos de seus contos singulares, únicos.
(1). Espécie de vinho - N. T.
"Poe veio à Terra para fazer o doloroso aprendizado do gênio, entre as almas
inferiores". Realmente, se foi um gênio, foi um homem infinitamente desgraçado A
Natureza dotou-o de extraordinária inteligência, como compensação de um destino
cruel, implacável. A única mancha que se lhe pode imputar é a da embriaguez
contumaz; mas, teria sido ele o único poeta a se embriagar? Nos demais, e,
sobretudo perante nós, esse vício foi uma falta leve. Todos temos tido o decoro de
não olhar com demasiada curiosidade o horror da vida alheia. Com Poe, não. Foi
uma matilha hipócrita, "burguesa", cruel, a que se cevou em seu cadáver, como
possuída de um ataque de vampirismo. Foi o enfastiamento da zoocracia".
Até aqui, o intuitivo Carrere.
Porém, o caso de Edgar Poe e de tantos outros "inspirados" ou "iluminados", é
radicalmente oposto ao da prodigiosa H. P. B. Esta, se bem que eminentemente
mediúnica, ou neurótica em sua primeira idade, não abriu o Santuário Iniciático com
a gazua da anormalidade, da patologia ou do vício, ou do próprio martírio de seu
corpo, como muitos santos cristãos, mas com a chave-mestra de um Conhecimento
Transcendental ou Mágico recebido lá, nas misteriosas e inacessíveis solidões do
Tibete e de Gobi, das mãos de autênticos Hierofantes dos tempos modernos e, por
isso, ao voltar de semelhante expedição, qual novo Marco Polo de nossa época,
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pôde, de Tiflis, escrever à sua família, dizendo: "Os últimos restos de minha
debilidade psico-física - alude às faculdades mediúnicas de sua primeira idade -
desapareceram por completo, graças Àqueles - seus mestres tibetanos - a quem
bendirei, agradecida, o resto de meus dias".
E isto se conclui, desde o primeiro momento, com a simples leitura de qualquer
das presentes "Páginas". Nelas, com efeito, a autora não descreve algo de que haja
sido vítima, mas algo real ou fingido, daquilo que ela mesma sabe perfeitamente, por
dominá-lo às maravilhas, não como médium passiva, porém como ativa yoguina
triunfadora, que já conhece um dos grandes segredos da Natureza, a saber, a
contingência ou falibilidade de certas leis físicas, como a gravidade, a
impenetrabilidade da matéria, etc., que são para nós infalíveis... , infalíveis até certo
ponto, pois que também logramos contradizê-las, mediante essa pequena e
progressiva magia a que chamamos de Ciência.
Por isso, enquanto em Hoffmann, Poe, Verlaine, etc., o esboço ocultista, por
assim dizer, aparece algo confuso, quiçá esfumado e débil, embora sempre
encantador, nas "Páginas" da Mestra mostra-se ativo, vigoroso, vívido ou com luz
própria, dado que, naqueles, o conhecimento transcendente vinha projetado de
mais longe, pela via imaginativa ou da inspiração, ou pela imprudente entrada no
mundo astral, mediante o vício, enquanto que, nesta, a trama da fábula responde,
perfeitamente, a um claríssimo e deliberado ocultista, como o prova a mesma
facilidade com que permite o comentário e o confronto com feitos históricos
positivos, coisa infinitamente mais difícil de realizar com os trabalhos daqueles, sem
que isto seja negar que uns e outros pertençam à mesma família de almas nobres de
asas partidas, teares caídos das alturas, por seu titânico e valente satanismo rebelde,
mas que sabem retornar à altura perdida e ainda subir mais, conquistando, não
pedindo a nenhum poder extracósmico e mendaz a revelação pasmosa do Mistério...
Hoffmann, Poe, Beethoven, Becquer, Leopardi, Carducci, Blavatsky e tantos
outros, nas diferentes ordens de sua respectiva Arte, levaram, sim, sua redentora
rebeldia, até muito além dos umbrais do proibido... o proibido, por nossa vulgaridade
de animais encantados, como o Deus Brahma, da lenha hindu, transformado em
suíno - encantados, digo, com as mentidas delícias de uma Ordem estabelecida, essa
Ordem maldita, contra o que troa, galhardo, o Sigfrid de Wagner, dizendo: "Desde
que nasci, um velho se interpõe sempre em meu caminho ..." A falsa Ordem, com
efeito, de um incipiente e pobre estado de evolução em que nos empenhamos, sem
embargo, em ter por definitivo!
A mentalidade atual, disse Gustavo Le Bon, é uma criação artificiosa, que apenas
conta um século de existência". Novalis, de sua parte, reconheceu, como os místicos
de todos os tempos, que nossa alma jaz aprisionada, como os condenados ao cárcere
de Platão, em sua "República", acrescentando, titânico: "Quando chegará o dia em
que aquela possa mover-se livremente, e quando esse outro, gloriosíssimo, em que a
Humanidade, em massa, comece a ser consciente de seu ser e de seu destino?...
Somente, pois, importa uma coisa, e é a de poder encontrar, algum ditoso dia, nosso
EU transcendental".
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À espera, pois, de tão excelso dia, prometido por todas as religiões, as ciências, as
artes e o inconsciente testemunho interno de nosso ser íntimo, justo será que
procuremos antecipá-lo, buscando, como o Dr. Fausto, o ignorado, por não bastar, a
nossos anelos, e conhecido; e, que, ansiosamente rebeldes contra o que nos cerca,
perguntemos, teoricamente - já que não de um modo prático, pelos inauditos perigos
que ele encerra - acerca desse mundo superliminar, onde a Hada-Imaginação, que é o
nosso Corpo transcendente, sobressai livremente, sem entraves nem misoneísmos, e
sonhemos com quem sonha; sigamos de perto as loucuras dos loucos, para melhor
estudá-las em seu terrível mistério; convivamos, um momento, com todas as tristes
anormalidades que são patrimônio da tão perseguida Humanidade e desçamos, enfim,
como todos os Irmãos maiores desta: Osíris, Ra, Orfeu, Perseu, Hércules, Apolônio,
Jesus ou Dante, aos infernos ou "lugares inferiores" deste não muito elevado mundo,
para aprender, em suas dores sem medida e em sua queda sem esperança de
imediata redenção, a ansiada Verdade das Idades, que é a existência de um mundo
astral subjacente de todos os fenômenos físicos, porém, que obedece, por sua vez, a
outro mundo superior, que é o mundo mental, ou seja, o Mundo das Ideias, em que
vive o Homem Superior, constituído pela Mente.
Dominar o mundo astral com a mente!... Quem senão os super-homens, os
Homens representativos, ou Mestres, têm podido conseguir isto, de modo absoluto?
Mas, por outra parte, quem em sua respectiva esfera de atividade já não dominou,
pouco ou muito, a uma ínfima parte do dito mundo?
O pedreiro e o acrobata, do trapézio ou andaime, venceram, galhardos, essa
terrível astralidade que determina a vertigem das alturas; o mineiro venceu o negro
espectro da mina ou da cripta, como o toureiro e o domador dominam a fereza
animal, com uma arte difícil que, a seu modo, não pouco tem de mágica.
Pasma, com efeito, considerar quão ilimitados são os poderes mágicos latentes
no fundo de toda a alma humana, poderes que a educação especializada e o esforço
titânico de cada homem pode chegar a tornar ostensivos e vigorosos. Por isso, se
quiseres chegar à conclusão do que possa ser o super-homem real, a quem chamamos
Mestre, tens que imaginá-lo possuidor de uma ciência transcendente, chamada
Magia, ciência, em virtude da qual, tornam-se fatíveis e simples todos os nossos mais
aparentes impossíveis. Assim, Mestres conheceram a mesma história profana, de como
puderam caminhar serenos sobre as águas, como Apolônio e Jesus que gozaram o
dom da ubiquidade, ou seja, a faculdade de poder estar, ao mesmo tempo, em dois
lugares distintos, separados por centenas de léguas: em um, com seu corpo astral, e,
em outro, com seu corpo físico, como a Igreja romana ensina e crê à cerca de muitos
de seus Santos, os que tiveram, enfim, esse invejável dom de idiomas, que o
Evangelho nos mostra, descendo em Pentecostes (a divina descida da Mente ou dos
Cinco) sobre as cabeças dos discípulos que acabavam de ver o Mestre, ascendendo
glorioso aos céus, como em carros de fogo e em relâmpagos subiram, também, esses
outros mestres que se chamaram Enoch, Elias, Ben Jocai e Beethoven, porque tal é o
poder sobre-humano e incompreensível de um Adepto, que medeia, entre ele e os
mortais, um abismo evolutivo tão grande como o que separa, na Natureza, os quatro
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reinos: mineral, vegetal, animal e hominal.
Leitores - concebemos, acaso, um mineral de quartzo ou ferro, com o tronco,
folhas e raízes que são glória e triunfal ornato evolutivo da planta? Caberia, em
estritas leis vegetativas, o ver um vegetal caminhando e mudando de lugar, como o faz
a minhoca e a tartaruga? Seria, enfim, admissível um pobre mamífero inventando o
fogo, a roda, a radiotelefonia ou a aviação? Pois outro tanto cabe dizer do abismo que
separa o homem vulgar do Mestre do ocultismo, porque se a Natureza nunca se
desmente em suas eternas leis evolutivas, ao não ser perfeito, nenhum dos homens
que conhecemos, não obstante seu anelo de perfeição e até seu relativo
aperfeiçoamento, admiravelmente alcançado em dolorosas especializações, há acima
do homem um estado superliminar de perfeições jamais sonhadas, porém das quais,
mais e mais, nos aproximamos, com nossas progressivas e esforçadas rebeldias (até
chegarem elas a serem nossas em um remoto dia), com o curso dos cicios, como o
recém-nascido que chora no berço acaba transformando-se, com os anos, em um
desses gênios que são luz, senda, salvação e guia de seus irmãos menores - os homens
vulgares de sua respectiva época.
A ciência que nos serve para isto conseguir, de modo falso ou, pelo menos,
perigosíssimo, chama-se Ciência Oculta ou Magia, porque ela é grande e é ademais,
terrível arma de dois gumes que, sem preparação adequada, pode ferir e matar o
próprio manipulador - a Arte Suprema de colocar nosso ser, de uma, vez para sempre,
em condições de total aptidão mágica, acima deste nosso mundo, no que é soberana a
dita Ciência Mágica, chama-se Ocultismo e Yoga ou seja: "a reforma interior, a divina
transfiguração de nosso próprio ser pela virtude, quer dizer, pelo supremo
conhecimento do que é real e do que é meramente ilusório, ,o efetivo Gnoscete ipsum
socratico, a revelação do Cristo interior, no dizer de São Paulo o descenso da Dúada de
Atmâ-Buddhi sobre Manas, para a Hipóstase de nossa liberação, ensinados por
orientais e pitagóricos...
Por isso, dizíamos antes que, iniciada Helena Petrovna numa parte, pelo menos,
de tão augustos segredos, e testemunha ocular, ademais, dos mágicos feitos de
Mestres que estavam a mil braças acima dela foi bem mais personagem real de
algumas de suas arrepiantes narrações do que mera a inspirada novelista, como tantos
outros, No prólogo e em comentários da obra "Pelas grutas e selvas do Indostão", de
que a presente vem constituir um complemento, insistimos, por isso, também acerca
da origem e do alcance dos fenômenos mágicos de H. P. Blavatsky - poderes acerca dos
quais, todos os seus biógrafos, começando pelo nobilíssimo Olcott, dizem, depois de
atestá-los com apoio nas leis da mais estrita crítica judicial ou histórica, que nenhum
discípulo sério procurou; ou melhor, quantos fenômenos produziu, foram-lhe
contraproducentes e, neles, a desapiedada perseguição de missionários perversos e
cientistas enfatuados, achou a base para uma fácil presa de suas crueldades e sua
inveja contra ela... Quem não recorda, com efeito, a resistência que Jesus opôs às suas
curas e outros milagres e, a maior, ainda, que opôs a que se os divulgassem? Blavatsky,
em seus numerosos fenômenos mágicos, agiu sempre contra o parecer de não poucos
doutos orientais que, tendo análogos poderes, nunca se prestaram a realizá-los,
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considerando que o maior prodígio que se faça ante os olhos dos homens e das
crianças, no momento nos pasma e acaba por causar-nos repulsa e enfado. Só uma
coisa não cansa jamais, é a doçura da consciência serena, triunfadora das lutas e
paixões deste mundo baixo, como os heróis da lenda triunfaram da terrível serpente da
Luz Astral que ameaça sempre arrastar-nos ao abismo; os Hércules, Odins, Miguéis e
Sigfrids...
Decididos, como estamos há anos, a comentar, na medida de nossas débeis forças,
a obra inteira da Mestra Blavatsky, publicamos em 1918, "Por las grutas y selvas deI
Indostán", como ensaio aos mui maiores encargos que importam no abordar também a
publicação dos comentários à "Isis sem Véu" e à "Doutrina Secreta", há tempos
iniciados por nós.
Porém, a favorabilíssima acolhida dispensada àquela publicação, não só pelo
público teosófico, como pelo literário e científico, movem-nos a, de certo modo,
completá-lo com outras pequenas obras ou artigos esparsos da Mestra, os quais, não
por seu pequeno tamanho e seu propósito aparentemente literário, deixam de ter um
alto valor ocultista, como o leitor terá de convencer-se, no momento em que fixe seu
olhar sobre eles. Ademais, os artigos em questão representam uma faceta
importantíssima do caráter e da história mesmo da Mestra; primeiro, porque neles se
mostra ela, digna herdeira da sua mãe, aquela insigne escritora, a quem se denominou
com justiça a Georqe Sand russa, e a quem as empresas literárias (veja-se o prólogo de
"Pelas grutas e selvas do Indostão") pagavam nas mesmas condições que ao grande
Tourgeníeff; segundo porque os ditos artigos teosóficos mostram, em não poucos
trechos sua filiação espírita, ou melhor dizendo, seu caráter de transição entre esta
última doutrina filosófica e o conceito genuinamente teosófico com que a autora
produziu e interpretou sempre os fenômenos do Espiritismo como mais
pormenorizadamente pode ver-se, não só em "Ísis sem Véu", como na insubstituível
obra do Coronel Olcott - "História autêntica da Sociedade Teosófica"; terceiro, porque,
como sucede sempre, alguns dos artigos constituem o gérmen de não poucas
passagens magníficas das obras posteriores da Mestra, tantas vezes citadas quando
não, acontecimentos reais desta romanceados ou atribuídos a outrem, como é tão
frequente em todos os escritores, cuja literatura, aparentemente imaginada não é, em
mais de uma ocasião, senão a glosa de emocionantes passagens de suas próprias vidas.
Assim, "A Gruta dos Ecos", não é mais do que a história de um acontecimento real
que a Mestra conhecia por si ou pelas suas aristocráticas relações de família e a ideia
da Magia tântrica e seus derramamentos de sangue, tão comum em toda a Sibéria,
para não dizer no mundo, palpita, macabra, no terrorífico argumento; o de "Um
Matusalém Ártico" não é mais do que um gracioso pretexto para falar dos "Protetores
Invisíveis" ou Lohengrins, que nos salvam mais de uma vez nos transes mais difíceis de
nossa vida; protetores que do mesmo modo podem atuar, como o velho João do conto,
nos desertos polares, ou nos salões dourados, como o estranho Conde de Saint
Germain, do qual também nos ocupamos, recordando outras proteções, não menos
reais, como as ensejadas pela própria Mestra em "A Mão Misteriosa". Estes feitos de
Magia, mais comuns no mundo do que à primeira vista se pudera crer, têm também
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seus graus inferiores em façanhas, como as de "Um Gossain Hindu"; nas de "O Campo
Luminoso" e "Assassinato à Distância"; nas tão conhecidas dos faquires, sem contar,
ainda, as compreendidas na "Demonologia e Magia Eclesiástica", passagem que, com
outras duas ou três, temos, para completar, tomado de "Ísis sem Véu", pedreira
inesgotável de todas estas coisas, que nunca será explorada como merece, e da qual,
pode-se dizer que dela foram lavradas todas as obras teosóficas posteriores.
Vêm, enfim, entre estas "Narrações Ocultistas", essas duas memoráveis
novelazinhas à moda de Poe e Hoffmann, que levam, respectivamente, por título "Uma
Vida Encantada" e "A Alma de um Violino", onde a Magia reina soberana, já para
realizar, necromante, neste, o crime inspirado pela doentia paixão de um artista louco,
já para operar, salvadora, naquela, o prodígio de fazer viajar o duplo-etérico de um
infeliz materialista, do Japão a Hamburgo, através da crosta terrestre, nem mais nem
menos, como nas iniciações clássicas, em que o duplo-etérico do candidato era
separado e projetado à distância de seu corpo físico, enquanto este jazia como morto,
ora em câmara sepulcral da pirâmide egípcia, ora nas entranhas da cripta iniciática,
templo pós-atlante, que, com suas "pinturas rupestres, a moderna paleontologia
começa a descobrir". (2)
(2). Veja-se nosso estudo "Un nuevo triunfo de H. P. Blavatsky"; a obra do
Catedrático D. Eduardo Fernandez-Pacheco à cerca de: "Las pinturas rupestres
de la Cueva de Candamo (Astúrias)". a aparecer na revista barcelonesa "EL
LOTO BLANCO". A obra de Fernandez-Pacheco é publicada sob os auspícios e a
custa da Junta Espanhola para Ampliação de estudos e investigações
científicas e nos mostra esplêndidas reproduções das pinturas que em tal
gruta, como em tantas outras da Espanha e do mundo, são vivo testemunho,
dizemos nós, de iniciações operadas no tenebroso seio desses hipogeus,
primitivos templos da época pés-atlante, nos quais a necromancia e o
sacrifício humano ou animal desempenhou, por vezes, seu papel.
Estes dois verdadeiros modelos de novela ocultista nada têm que invejar de
Bulwer Litton "Os últimos dias de Pompeia", Rienzi, Zanoni e tantas outras.
As mil apaixonantes questões filosóficas e práticas assim propostas como por
descuido, sob estas múltiplas epígrafes, caem em cheio no domínio da História,
quando não no da Ciência mais positiva. Com efeito, é indiferente, por acaso, para o
Direito Penal, o debatido problema chamado "dos elementais" que figuram em tantas
passagens destas obras? Não chegariam a dever transformar-se em médicos de C0rpos
e almas, à maneira dos velhos hierofantes egípcios, nossos atuais carcereiros? Não
chegaria, enfim, a figurar sempre o pecado, quer dizer, o delito de pensamento, como
elemento primordial e essencialíssimo na complexa etiologia do crime? Semelhante
hipótese, digna de figurar à frente de tantas outras das diversas escolas penais, lança
vívido raio de luz em nossa atual inópia jurídica.
É, de outra parte, um assunto vão e tão admiravelmente tratado em "A
Ressurreição dos Mortos", ou no tremendo "Os espíritos vampiros", para que os
deixemos passar assim, levianamente, com nossa frivolidade costumeira, quando de
um depende toda a milagreira antiga e moderna, e, de outro, esses problemas das
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consunções mais inexplicáveis da juventude, que arrebatam mais vidas que a própria
guerra? É tolerável sequer, assim mesmo, o ambíguo e errôneo conceito que
formamos à cerca da imaginação-fantasia, quando dela depende nosso inteiro viver,
desde o dia em que, por imaginação ou enlevo de nossos pais, e não por "rigoroso
cálculo matemático", vimo-nos atraídos, sem querer, a este mundo desprezível e, por
imaginação ou paixão, por simpatias mais ou menos fantásticas, que não "por rigoroso
cálculo matemático", também, ou "por cerrada argumentação escolástico-silogística ",
movemo-nos continuamente?
Não vamos pretender, todavia, num mundo tão ignorante e egoísta, fazer passar
por fatos demonstrados, não poucas de nossas asserções ocultistas, embora dela
tenhamos a segurança íntima de quem as tenha estudado, meditado e até
experimentado. Homens de ciência somos, pelo que dizem nossos vários títulos
oficiais e acadêmicos e, como tais, exercemos a mais perfeita de nossa soberania
intelectual e moral, expondo, honradamente, ao público imparcial nosso sentir
científico, embora, como aquele gladiador romano, com tanta oportunidade citado ao
final da introdução de "Ísis sem Véu" - tenhamos que dizer, prevendo nossa derrota:
"Ave César, moriturus te salutat"... Quer dizer, tenhamos que saudar hoje como a
Césares em religião e Ciência, a dois colossos de ouro que, como o Nabucodonosor da
História, ou como o Hindenburgo de madeira do Jardim Zoológico de Berlim, tenham
apoiado seus míseros pés de barro, numa terra sempre deslizante.

MÁRIO ROSO DE LUNA

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A GRUTA DOS ECOS

Uma história estranha, porém verdadeira (1)

(1). Esta estória foi tirada do relato de uma testemunha presencial, um


senhor russo mui piedoso e digno de crédito. Além disso, os fatos foram
copiados do registro da Polícia de P... O testemunho, em questão, atribui-se,
por suposição, parte à intervenção divina e parte ao diabo. H.P.B.

Em uma das províncias mais distantes do Império Russo, numa pequena cidade da
fronteira da Sibéria, ocorreu há trinta anos uma tragédia misteriosa.
À cerca de seis verstás da cidade de P... , célebre pela beleza selvagem de suas
campinas e pela riqueza de seus habitantes, em geral proprietários de minas e
fundições de ferro, existia uma mansão aristocrática. A família que a habitava
compunha-se do dono, solteirão velho e rico e de seu irmão, viúvo, com dois filhos e
três filhas.
Sabia-se que o proprietário, Senhor Izvertzoff havia adotado os filhos de seu
irmão, e, tendo um carinho especial pelo sobrinho mais velho, chamado Nicolau,
instituiu-o único herdeiro de seu latifúndio.
Passou-se o tempo. O tio envelhecia e o sobrinho acercava-se da maioridade. Os
dias e os anos haviam transcorrido numa serenidade monótona, quando, no até então
claro horizonte familiar, formou-se uma nuvem. Num malfadado dia, ocorreu a uma
das sobrinhas aprender a tocar cítara. Como o instrumento é de origem puramente
teuta, e como não se podia encontrar um professor pelos arredores, o tio complacente
mandou procurar um e outro em São Petesburgo. Depois de uma investigação
minuciosa, apenas pôde-se encontrar um professor que não achou inconveniência em
aventurar-se a ir para tão perto da Sibéria. Era um artista alemão, idoso, que,
compartilhando seu carinho entre o instrumento e sua filha, ruiva e bonita, não
queria separar-se de nenhum dos dois.
E, assim, sucedeu que numa linda manhã chegou o professor à mansão, com a
sua caixa de música sob o braço e a linda Minchen apoiando-se ao outro.
Desde aquele dia, a pequena nuvem começou a crescer rapidamente, pois cada
vibração do melodioso instrumento encontrava eco no coração do velho solteirão.
Dizem que a música desperta o amor... e a obra iniciada pela cítara foi completada
pelos formosos olhos azuis de Minchen. Ao cabo de seis meses, a sobrinha se havia
tornado uma hábil tocadora de cítara e o tio estava loucamente enamorado.
Certa manhã, reuniu a sua família adotiva, abraçou a todos mui carinhosamente,
prometeu lembrá-los em seu testamento e, por último, desabafou-se, declarando sua
resolução inquebrantável de casar-se com a Minchen de olhos azuis. Depois se lhes
atirou ao pescoço e chorou em silencioso arroubo.
A família, compreendendo que a herança se lhes escapava, chorou também,
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embora por motivo diverso. Depois de terem chorado, consolaram-se e trataram de
alegrar-se, pois o ancião era amado sinceramente por todos.
Entretanto, nem todos se alegraram. Nicolau, que também se sentira ferido no
coração pela linda alemã e que, de um golpe, via-se privado dela e do dinheiro de seu
tio, não se consolou, nem se alegrou, tendo até desaparecido o dia todo.
Entretanto, o senhor Izvertzoff havia ordenado que lhe preparassem seu coche
de viagem, para o dia seguinte, sussurrando-se que ia à capital do distrito, um tanto
distante de sua casa, com a intenção de alterar o testamento. Se bem que muito rico,
não tinha nenhum administrador de suas propriedades, sendo ele próprio o portador
de seus livros de contabilidade.
Àquela mesma tarde, após o jantar, ouviram-no, em seu aposento, repreender
acremente um criado que, há mais de trinta anos, estava a seu serviço. Esse homem,
chamado Ivã, era natural da Ásia do Norte, de Kantchatka; havia sido educado pela
família na religião cristã, e, achavam-no muito dedicado a seu amo. Alguns dias após,
quando a primeira das trágicas circunstâncias que vou descrever havia trazido àquele
lugar todo o contingente policial, recordou-se que Ivã estava embriagado naquela
noite; que seu amo, que tinha horror a esse vício, o havia espancado de modo
paternal, expulsando-o de casa e até foi visto, cambaleando porta afora, proferir
ameaças.
No vasto domínio do Senhor Izvertzoff havia uma estranha caverna que excitava
a curiosidade de todos os que a visitavam. Ainda hoje existe e é muito conhecida dos
habitantes de P... Um bosque de pinheiros começa a curta distância da porta do
jardim e sobe em escarpadas ladeiras, ao largo de cerros rochosos, aos quais cinge
com amplo cinturão de vegetação impenetrável. A galeria que conduz ao interior da
caverna, conhecida por Gruta dos Ecos, está situada a meia milha da mansão, vista da
qual parece uma pequena escavação na encosta, oculta pelo cerrado, embora não
tão completamente que impedisse de ver-se, do terraço da casa, quem nela quisesse
penetrar.
Ao penetrar na gruta, o explorador vê no fundo uma estreita abertura,
transporta a qual, encontra-se numa caverna muito alta, debilmente iluminada por
fendas no teto abobadado, a cinquenta pés de altura. A caverna é imensa e poderia
conter folgadamente de duas a três mil pessoas. No tempo do Sr. Izvertzoff, uma
parte dela estava pavimentada e, no verão, usava-se amiúde como salão de baile nos
convescotes campestres. É de formato oval irregular e vai-se estreitando
gradualmente, até converter-se em um amplo corredor que se estende por várias
milhas, alargando-se de quando em quando, e formando outros recintos tão grandes
e altos como o primeiro, porém com a diferença de que não podem ser transpostos
senão em botes, por estarem sempre cheios d'água. Esses receptáculos naturais têm
a fama de serem insondáveis.
À margem do primeiro destes canais, existe uma pequena plataforma com
alguns assentos rústicos, cobertos de musgo, convenientemente colocados, e é nesse
sítio que se ouve em toda a sua intensidade o fenômeno dos ecos que dão nome à
gruta. Uma palavra sussurrada, e até um suspiro, é recolhido por infinidade de vozes
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sarcásticas, e, em lugar de diminuir de volume, como o fazem os ecos que se
"prezam", o som se faz cada vez mais intenso a cada repetição sucessiva até que
explode como a repercussão de um tiro de pistola e retrocede em forma de gemido
lastimoso, ao longo do corredor.
No dia em questão, o Sr. Izvertzoff havia anunciado sua intenção de dar um baile
nessa gruta, para celebrar suas bodas que havia fixado para uma data próxima.
No dia imediato, pela manhã, enquanto fazia seus preparativos para a viagem,
sua família o viu entrar na gruta acompanhado somente pelo criado siberiano. Meia
hora depois, Ivã regressou à mansão, à procura de uma tabaqueíra que seu amo havia
esquecido, e com ela voltou à gruta. Uma hora mais tarde a casa inteira entrou em
comoção com os seus grandes gritos. Pálido e escorrendo água, Ivã se precipitou,
casa adentro, como um louco, declarando que o Sr. Izvertzoff havia desaparecido,
pois não era possível encontrá-lo em parte alguma da caverna. Crendo que ele
poderia ter caído no lago, o empregado havia mergulhado no primeiro receptáculo, à
sua procura, com perigo iminente da própria vida.
O dia se passou sem que dessem resultado as buscas em torno do ancião. A
Polícia invadiu a casa, e o mais desesperado parecia ser Nicolau, o sobrinho, que ao
chegar se tinha deparado com a triste notícia.
Uma negra suspeita recaiu sobre Ivã, o siberiano.
Havia sido castigado por seu amo na noite anterior e tinham-no ouvido jurar que
tomaria vingança. Só ele o havia acompanhado à caverna e, quando revistaram seu
aposento, encontraram, debaixo da cama, uma caixa cheia de riquíssimas joias de
família. Foi em vão que o empregado tomou Deus por testemunho, dizendo que a
caixa fora-lhe confiada por seu amo, precisamente antes de se dirigirem à caverna;
que a intenção do patrão era de mandar remontar as joias que destinava à noiva
como presente, e que ele Ivã, daria de bom gosto sua vida, para devolvê-la ao dono,
caso este estivesse morto. Não se lhe deu nenhuma atenção, entretanto, e foi preso,
posto no cárcere, sob a acusação de assassinato. Ali ficou encerrado, pois, segundo a
legislação russa, pelo menos naquela época, não podia ser condenado à morte
criminoso algum que, por mais demonstrado que estivesse seu delito, não se tivesse
confessado culpado.
Depois de uma semana de investigações inúteis, a família se vestiu de rigoroso
luto e, como o testamento primitivo não havia sido modificado, toda a propriedade
passou às mãos do sobrinho. O velho professor e sua filha suportaram esse repentino
revés da fortuna com fleuma verdadeiramente germânica e se prepararam para
partir. O ancião apanhou sua cítara debaixo do braço e se dispôs a partir com
Minchen, quando o sobrinho o deteve, oferecendo-se, em lugar do tio, como esposo
da linda donzela. Acharam a troca muito agradável e, sem causar grande alarde,
casaram-se os dois jovens.
Transcorreram dez anos e vamos nos encontrar, novamente, com a feliz família,
em princípios de 1859.
A linda Minchen tornara-se gorda e vulgar. Desde o dia do desaparecimento do
velho tio, Nicolau se havia tornado áspero e retraído em seus costumes, causando
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admiração a muitos tal mudança, pois nunca fora visto sorrir. Parecia que o único
objetivo de sua vida era encontrar o assassino de seu tio, ou melhor, fazer com que
Ivã confessasse o crime. Porém esse homem persistia, todavia, em afirmar que era
inocente.
O jovem casal só havia tido um filho que, por sinal, era um menino esquisito.
Pequeno, delicado e sempre enfermo, parecia que sua frágil vida estava por um fio.
Quando suas feições estavam em repouso, era de tal modo parecido com o tio, que
as pessoas da família, amiúde, afastavam-se com terror. Tinha o rosto pálido e
enrugado de um velho de sessenta anos, sobre os ombros de um menino de nove.
Nunca foi visto rindo ou brincando. Encarapitado em sua cadeira alta, permanecia sentado
gravemente, cruzando os braços de maneira peculiar ao falecido Izvertzoff, e, assim,
passava horas e horas imóvel e adormecido. Viam-se suas amas, frequentemente,
persignar-se furtivamente ao acercar-se dele durante a noite, e nenhuma delas havia
concordado em dormir sozinha com ele em seu quarto. A conduta do pai para com o filho
era ainda mais estranha. Parecia amá-lo apaixonadamente e, ao mesmo tempo, odiá-lo em
extremo. Mui raramente beijava-o ou acariciava-o, embora com semblante lívido e olhos
espantados, passasse longas horas olhando-o, enquanto o menino estava sentado
tranquilamente em seu canto, com suas maneiras de velho, próprias de um duende. O
menino nunca tinha deixado a fazenda e poucos da família sabiam de sua existência.
Em meados de julho, um viajante húngaro, de elevada estatura, precedido de uma
grande reputação de excentricidade, fortuna e poderes misteriosos, chegou à cidade de P...
, procedente do Norte, onde havia residido muitos anos. Estabeleceu-se na pequena
cidade, em companhia de um "shamano" ou mago da Sibéria do Sul, com quem, dizia-se,
praticava experiências de magnetismo. Dava jantares, almoços e reuniões, exibindo,
invariavelmente, para diversão de seus hóspedes, o "shamano", de quem se achava muito
orgulhoso.
Um dia, as pessoas importantes de P .... invadiram, repentinamente, os domínios de
Nicolau Izvertzoff, solicitando que lhes emprestasse sua gruta para fazerem uma noitada.
Nicolau consentiu, com grande relutância e, somente depois de uma vacilação ainda maior,
deixou-se persuadir a acompanhar o grupo.
A primeira caverna e a plataforma ao lado do insondável lago estavam refulgentes de
luz. Centenas de velas e tochas de vacilantes chamas, colocadas nas fendas das rochas,
iluminavam o local e afugentavam as sombras dos cantos e locais onde tinham estado
escondidas, sem ser molestadas, durante muitos anos. As estalactites das paredes
despendiam chispas brilhantes e os adormecidos ecos foram, repentinamente, despertados
pela alegre confusão de risos e conversas. O "shamano", a quem seu amigo e patrão não
havia perdido de vista um momento, estava sentado a um canto e, como de costume,
hipnotizado, encarapitado numa rocha saliente, a meio caminho, entre a entrada e as
águas. Com seu rosto de cor amarelo-limão, cheio de rugas, seu nariz chato e barba rala,
parecia mais um horrível ídolo de pedra que um ser humano.
Muitos do grupo apertavam-se ao seu redor, recebendo acertadas respostas às
perguntas que lhe eram dirigidas, pois o húngaro submetia, de bom grado, seu "súdito"
magnetizado, aos interrogatórios.
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De repente, uma senhora fez a observação de que naquela mesma caverna havia
desaparecido o Sr. Izvertzoff, há dez anos.
O estrangeiro pareceu interessar-se pelo caso, mostrando desejo de saber o que
acontecera. Em consequência, procuraram Nicolau entre a multidão e o conduziram diante
do grupo de curiosos. Ele era o hóspede e foi-lhe impossível negar-se a fazer a desejada
narração. Repetiu, pois, o triste relato com voz trêmula, semblante pálido, vendo-se brilhar
lágrimas em seus olhos febris. Os assistentes sentiram-se muito afetados, murmurando
grandes elogios sobre a conduta daquele sobrinho amoroso, que tão bem honrava a
memória de seu tio e benfeitor. Quando, subitamente, a voz de Nicolau afogou-se na
garganta, seus olhos pareciam sair das órbitas e, com um gemido rouco, retrocedeu
cambaleando. Todos os olhos seguiram com curiosidade seu olhar aterrado que se fixou e
permaneceu cravado sobre uma diminuta cara de bruxa que assomava por trás do húngaro.
- De onde vens? Quem te trouxe aqui, menino? balbuciou Nicolau, pálido como a
morte.
- Eu estava deitado, papai; este homem veio até mim e me trouxe aqui em seus braços
- respondeu com naturalidade o rapazinho, indicando o "shamano", ao lado de quem se
achava na rocha e, o qual, continuava com os olhos cerrados, movendo-se, de um lado para
outro, como um pêndulo vivo.
- Isto é muito estranho - observou um dos hóspedes - pois, este homem não se moveu
de seu lugar.
- Oh! Deus! Que parecença tão extraordinária! murmurou um antigo vizinho da
cidade, amigo da pessoa desaparecida.
- Mentes, menino! exclamou ferozmente o pai. Vai para a cama, isto não é lugar
para ti.
- Vamos, vamos - disse o húngaro, interpondo-se com uma expressão estranha
no rosto, rodeando com seus braços a delicada figura do menino. Este viu o duplo do
meu "shamano" que amiúde vaga e grandes distâncias de seu corpo, e tomou o
fantasma pelo próprio homem. Deixe-o permanecer um pouco conosco.
A estas estranhas palavras, os assistentes entreolharam-se com muda surpresa,
enquanto alguns fizeram, piedosamente, o Sinal da Cruz, presumindo,
indubitavelmente, que se tratava do diabo e de suas obras.
-- E, por outro lado - prosseguiu o húngaro com um acento de firmeza peculiar -
por que não haveríamos de tratar, com o auxílio do meu "shamano", de descobrir o
mistério que encerra esta tragédia? Está, todavia, no cárcere a pessoa de quem se
suspeita. Como, entretanto, ainda não confessou seu delito? Isto é, seguramente,
muito estranho; porém, vamos saber a verdade dentro de alguns minutos. Que todo
o mundo guarde silêncio!
Aproximou-se, então, do "tehuktchene" e, imediatamente, deu início a suas
manipulações, sem sequer pedir permissão ao dono do recinto. Este último
permanecia em seu lugar como que petrificado de horror e sem poder articular
palavra. A ideia encontrou aprovação geral, à exceção dele, tendo, em especial
aprovado a sugestão, o inspetor de Polícia, coronel S...
- Senhoras e cavalheiros! disse o magnetizador com voz suave. Permiti-me que,
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nesta ocasião, proceda de maneira diferente da que geralmente costumo adotar.
Vou empregar o método da magia nativa. Como verão, é o mais apropriado a este
lugar agreste, e de muito mais efeito que nosso método europeu de magnetização.
Sem esperar contestação, tirou de um saco que trazia sempre consigo,
primeiramente, um pequeno tambor e depois dois recipientes pequenos, um cheio
de um líquido e outro vazio. Com o conteúdo do primeiro, aspergiu o "shamano", o
qual começou a tremer e a balançar-se mais violentamente que nunca. O ar encheu
se de um perfume de especiarias e a própria atmosfera pareceu fazer-se mais clara.
Logo, com horror dos presentes, acercou-se do tibetano e, tirando de um bolsinho
um punhal em miniatura, enfiou-lhe a afiada folha no antebraço, tirando sangue que
recolheu no recipiente vazio. Quando ficou cheio pela metade, apertou o orifício da
ferida com o dedo polegar e deteve a saída do sangue, com a mesma facilidade com
que se tivesse posto uma rolha numa garrafa, depois do que aspergiu o sangue sobre
a cabeça do menino. Em seguida, pendurou o tambor ao pescoço e com duas
baquetas de marfim cobertas de signos e letras mágicas, começou a tocar uma
espécie de rufo para atrair os espíritos, segundo dizia.
Os circunstantes, meio surpresos, meio aterrorizados por esse procedimento
extraordinário, juntavam-se, ansiosamente, ao seu redor e, durante alguns
momentos reinou um silêncio de morte em toda a imensa caverna. Nicolau, o
semblante lívido como o de um cadáver, permanecia sem articular palavra. O
magnetizador se havia colocado entre o "shamano" e a plataforma, quando
principiou a tocar lentamente o tambor. As primeiras notas eram como que surdas e
vibravam tão suavemente no ar, que não despertaram eco algum; porém, o
"shamano" apressou seus movimentos de vai-vem e o menino mostrou-se
intranquilo. Nesse momento, quem tocava o tambor iniciou um canto lento, baixo,
solene e impressionante.
À medida que aquelas palavras desconhecidas saíam de seus lábios, as chamas
das velas e das tochas ondulavam e flutuavam, até que principiaram a bailar ao
compasso do canto. Um vento frio veio silvando dos corredores, de além das águas,
deixando atrás de si um eco lamentoso. Logo uma espécie de neblina, que parecia
brotar do solo e paredes rochosas, condensou-se em torno do "shamano" e do
rapazola. Ao redor deste último, a aura era prateado e transparente, porém a nuvem
que envolvia o primeiro era vermelha e sinistra. Aproximando-se mais da
plataforma, o mago deu um redobre mais forte no tambor; redobre que dessa vez foi
recolhido pelo eco, com um efeito terrificante. Retumbava perto e longe, com
estrondo incessante; um clamor mais e mais ruidoso sucedia a outro, até que o
estrépito formidável pareceu o coro de mil vozes de demônios que se elevavam das
insondáveis profundezas do lago. A própria água, cuja superfície iluminada pelas
muitas luzes, tinha estado até aí tão calma como um cristal, tornou-se
repentinamente agitada, como se uma poderosa lufada de vento houvesse percorrido
sua superfície imóvel.
Outro canto, outra rufada do tambor, e a montanha inteira estremeceu até a
base, com estrondos que pareciam formidáveis canhonaços disparados nos
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intermináveis e escuros corredores. O corpo do "shamano" alçou-se duas jardas no ar
e, movendo a cabeça de um lado para outro e balançando-se, apareceu sentado e
suspenso como uma aparição. Porém, a transformação que se operou, então, no
rapazinho gelou de terror a quantos presenciavam a cena. A nuvem prateada que
rodeava o menino pareceu que, também, se alçava no ar; mas ao contrário do
"shamano", seus pés não abandonaram o solo. O rapazinho começou a crescer, como
se a obra dos anos se verificasse milagrosamente em alguns segundos. Tornou-se alto
e adulto e suas feições senis fizeram-se cada vez mais velhas, ao mesmo tempo que
seu corpo. Alguns segundos mais e o aspecto juvenil desapareceu completamente,
absorvido, na sua totalidade, por outra individualidade diferente e, para horror dos
circunstantes, que conheciam sua aparência, essa individualidade era a do velho
Senhor Izvertzoff que tinha na fonte uma grande ferida aberta, da qual caíam grossas
gotas de sangue.
O fantasma moveu-se na direção de Nicolau, até que se pôs bem em frente dele,
enquanto que este, com o cabelo eriçado e olhos de louco, olhava seu próprio filho
transformado, inesperadamente, em seu tio.
O silêncio sepulcral foi interrompido pelo húngaro que, dirigindo-se ao menino-
fantasma, perguntou-lhe solenemente:
- Em nome do Grão-Mestre, d' Aquele que tudo pode, responde-nos a verdade e
nada mais que a verdade. Espírito intranquilo, tu te perdeste por acidente ou foste
covardemente assassinado?
Os lábios do espectro moveram-se, porém foi o eco que respondeu em seu lugar,
dizendo com lúgubres ressonâncias:
- Assassinado! Assassinado! As-sas-si-na-do! ...
- Onde? Como? Por quem? - perguntou o conjurador.
A aparição apontou com o dedo para Nicolau e sem desviar o olhar, nem baixar o
braço, retirou-se, andando lentamente de costas até o lago. A cada passo que dava o
fantasma, o jovem Izvertzoff, como que obrigado por uma fascinação irresistível,
avançava um passo em sua direção, até que o espectro chegou ao lago e deslizou, em
seguida, pela superfície do mesmo. Era uma cena de fantasmagoria verdadeiramente
horrível.
Quando chegou a dois passos da borda do abismo d'água, uma violenta
convulsão agitou o corpo do culpado. Arrojando-se de joelhos, agarrou-se
desesperadamente a um dos assentos rústicos e, dilatando os olhos de maneira
selvagem, deu um grande e penetrante grito de agonia. O fantasma, então,
permaneceu imóvel sobre a água e, dobrando lentamente seu dedo estendido,
mandou que se aproximasse. Agachado, presa de um terror objeto, o miserável
gritava até que a caverna ressoou, uma e outra vez...

- Não fui eu... , não; eu não o assassinei! Ouviu-se, então, uma queda; era o
rapazinho que apareceu sobre as escuras águas, lutando por sua vida, no meio do
lago, vendo-se a imóvel e terrível aparição inclinada sobre ele.
- Papai, papai, salva-me... estou me afogando! exclamou uma débil voz
21
lastimosa, em meio ao ruído dos ecos sarcásticos.
- Meu filho! gritou Nicolau com a entonação de um louco, pondo-se em pé de
um salto. Meu filho! Salvai-o! Oh! Salvai-o!... Sim, confesso!... Eu sou o assassino! Fui
eu quem o matou!
Outra queda n'água e o fantasma desapareceu. Com um grito de horror, os
circunstantes precipitaram-se até a plataforma; porém, seus pés cravaram-se,
repentinamente, no solo ao ver, em meio aos redemoinhos, uma massa
esbranquiçada e informe, enlaçando o assassino e o menino em um estreito abraço,
fundindo-se no lago insondável.
Na manhã seguinte, quando, depois de uma noite de insônia, alguns do grupo
visitaram a residência do húngaro, encontraram-na fechada e deserta. Ele e o
"shamano" haviam desaparecido.
Muitos são os habitantes de P... que todavia recordam o caso. O Inspetor de
Polícia, Coronel S, morreu alguns anos depois, na inteira certeza de que o nobre
viajante era o diabo. A consternação geral cresceu mais ao se converter em chamas
a mansão Izvertzoff, naquela mesma noite. O arcebispo executou a cerimônia de
exorcismo; porém aquele lugar é considerado maldito até o tempo presente.
Quanto ao Governo, investigou os fatos... e ordenou silêncio.

22
UM MATUSALÉM ÁRTICO
Historieta de Natal

O antigo castelo de um rico proprietário da Finlândia encontrava-se repleto de


gente, naquela fria noite de Natal, gente reunida ao aconchego do fogo da clássica
lareira, plena das recordações da santa tradição hospitaleira de seus nobres
antepassados, pela qual conservam-se ainda vivas as práticas e superstições da
Idade Média, em parte russas, levadas das margens do Neva por seus últimos
senhores.
Não faltavam, naquela augusta noite, consagrada pelos séculos, nem a Árvore
de Natal, nem os demais preparativos da festa que são de rigor ali, como em todo o
pais.
O castelo estava cheio de tesouros arcaicos: os carrancudos retratos dos
antepassados, em velhas e carcomidas molduras; toda a espécie de armas de
cavaleiros nas panóplias e de antigos vestuários senhoris nos armários. No extenso
e misterioso castelo, como em todos os edifícios de sua espécie, não faltavam, tão
pouco, os antigos torreões desertos e sem portas; baluartes ameiados; janelões
góticos; seus sótãos mofados, escuros e intermináveis, não visitados quiçá há
dezenas de gerações e ligados com calabouços e veredas subterrâneas, onde mais
de um preso havia, talvez, padecido às torturas de alguma antiga vingança, para
voltar seu espectro, depois de ter morrido de angústia, a pedir justiça contra os
vivos. Havia, enfim, em tal castelo-palácio o resto imponente de um passado feudal,
não menos imponente que o mesmo e o mais apto, portanto, para a reprodução de
toda a espécie de horrores românticos. Tranquilize-se, entretanto, leitor, que
semelhante marco de antigos horrores não vai desempenha papel algum, como se
podia esperar, nesta minha verídica narração.
O herói principal dela é, ao contrário, um homem vulgaríssimo, a quem
chamaremos Erkler, ou melhor Dr. Erkler, professor de medicina, alemão pela linha
paterna e completamente russo pela educação e por sua mãe. (1)
(1). Estas mesmas condições de ascendência prussiana e russa. nobres
reunia, como é sabido, H.P.B., o que nos faz suspeitar de que se, sob o véu
da ficção, não se oculta algum dos tantos casos sucedidos com a autora.
O Dr. Erkler era um consumado viajante, por haver acompanhado em todos os
seus empreendimentos, um dos mais famosos exploradores, em suas viagens ao redor
do mundo. Um e outro, o médico e o explorador, haviam tido ocasião de se ver cara a
cara com a morte e desafiá-la, intrépidos, ora sob a neve dos polos, ora sob o calor
tórrido dos trópicos.
Entre o conjunto de suas tão numerosas, como emocionantes, recordações, o
médico parecia mostrar não dissimulada e entusiástica preferência para com os "seus
invernos" passados na Groenlândia e na Nova Zembla, mais do que para com outros,

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por exemplo, da Austrália, onde, entre outras peripécias graves, estiveram a ponto de
morrer de sede, ele e os demais, durante uma travessia de catorze horas, sem sombras
nem água.
- Sim, costumava dizer o médico, em meio a suas narrações pitorescas e vivas.
Experimentei de tudo... Tudo, exceto isso que, em sua ignorância, as pessoas
supersticiosas chamam de sobrenatural!... Entretanto, acrescentou, em voz baixa e
trêmula - há em minha longa vida um acontecimento sumamente extraordinário.
Tropecei, uma vez, com um estranho homem, rodeado de circunstâncias
completamente inexplicáveis, capazes de confundir ao mais cético...
Todos os circunstantes sentiram, ao ouvir aquilo, a chispa da curiosidade, uma
curiosidade terrorífica, bem adequada ao momento em que o vento sibilava com
estrépito e a neve caía em abundância, tornando mais valioso o benefício das
comodidades de quantos ouviam o médico, em torno da lareira. O sábio continuou
desta maneira:
- No ano de 1878, fomos forçados a invernar na costa noroeste de Spitzberg, em
nossa exploração do fugaz verão anterior, em direção ao polo. Como de costume, o
objetivo de abrirmos um caminho para o polo ártico fracassou, por causa dos
"icebergs" e, após esforços vãos, tivemos que nos render à dura fatalidade.
Daí a poucos dias, a terrível noite polar estendeu sobre nós seu manto cruel, e
nossos navios ficaram aprisionados pelos gelos, no golfo de Mussel, (2) onde teríamos
de passar ociosos e separados de todo o trato humano, durante os oito longos meses
de inverno polar.
(2). Curiosa coincidência onomástica com o célebre porto asturiano do
mesmo nome; uma prova a mais do caráter protossemita de todo o
Ocidente europeu em suas épocas pré-históricas.
Senti que minha força de vontade fraquejava ante tão negra perspectiva e mais
ainda em certa noite de tempestade em que torvelinhos de nevasca destruíram nossos
depósitos de provisões, dentre eles catorze cervos, com cuja carne contávamos como
arma contra a vida ártica que exige, como ninguém ignora, um aumento considerável
na qualidade e quantidade dos alimentos, Resignamo-nos, entretanto, o mais que
pudemos com nossa perda cruel e até chegamos a nos acostumar com o mais nutritivo
alimento do país, que consiste em carne gordurosa de foca.
Para prevenirmo-nos contra os rigores da invernia, os homens de nossa tripulação
haviam construído, com os remanescentes do desastre anterior, uma casinha bastante
aceitável, dividida em dois cômodos, um para mim e os outros três chefes e o segundo
para eles. Esgotando-se, além disso, todas as nossas previsões metrológicas e
magnéticas, acrescentamos ao edifício um terceiro corpo, ou estábulo protetor, para os
poucos cervos que se haviam salvado da catástrofe.
Iniciou-se, logo, a interminável série de dias e noites monótonos, que eram uma
eterna noite, sem aurora nem crepúsculo. Como, além disso, havíamos traçado o plano
de que dois de nossos barcos regressassem em setembro antes de que o gelo lhes
cortasse a retirada, e este plano havia falhado por ter-se antecipado a estação, a
tripulação era o triplo ou o quádruplo da calculada para a estação hibernal e para os
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elementos com que contávamos para afrontá-la; assim, não só tínhamos que
economizar as provisões, como também o combustível e a luz. As lâmpadas só eram
acesas por motivos de urgência ou científicos.
Tínhamos que nos contentar, pois, apenas com a luz que a Providência nos
quisesse dar naquela noite sem dia: a saber, a luz da lua e das auroras boreais ; porém,
como descrever a glória daqueles incomparáveis fenômenos celestes? Como descrever
as luzes e cores cambiantes de suas irradiações de variedade infinita, tão fantásticas
quanto gigantescas? Quanto às noites de luar de novembro, eram simplesmente
maravilhosas, com os sempre cambiantes espetáculos de seus raios, entre gelos e
neve. O encanto de tais momentos não se afastará jamais de minha imaginação.
Uma dessas últimas noites, ou melhor dizendo, um dia igual a este, por acaso - pois
que, desde os fins de novembro até meados de fevereiro, não tivemos crepúsculo
algum que nos permitisse estabelecer diferença entre a noite e o dia - conseguimos
divisar entre as irisações da lua, como uma mancha escura que se movia em nossa
direção, assemelhando-se mais do que a um rebanho (que por força tinha que ser
branco, naquela latitude) a um grupo compacto de homens, trotando para o lugar onde
nos encontrávamos, sobre a planície coberta de neve. Que seres humanos podiam,
entretanto, ser aqueles?
Sim, era já fora de dúvida, ainda que resistíssemos a dar crédito a nossos olhos,
um pelotão duns cinquenta homens que se aproximava, rapidamente de nossa
vivenda. Eram cinquenta caçadores de focas guiados por Matílin, o mais famoso
veterano de tais empresas perigosas e que, como nós, haviam sido cortados em sua
retirada, pelo gelo.
Fizemos com que entrassem, atendendo-os e obsequiando-os da melhor maneira
que pudemos. Depois interrogamos Matilin:
- Como soubestes que estávamos aqui?
- Disse-nos o velho João, ensinando-nos o caminho até o vosso albergue -
responderam vários deles, indicando um dos seus companheiros: um venerável ancião,
com os cabelos mais brancos que a própria neve.
- É verdadeiramente assombroso que um ancião como este se dedique ainda a
caçar focas em companhia de homens jovens como vós, em lugar de aguardar, em um
rincão de sua morada, no aconchego do lume, a chegada de seu fim. Ademais, como
conseguiu saber de nossa presença na região solitária do urso branco? dissemos em
uníssono.
Tanto o bom Matílin, como os demais de seu grupo, sorriram compassivos ante
nossa ignorância. Segundo nos asseguraram "o velho João" sabia tudo, acrescentando:
- Bem novatos deveis ser nestas terras polares, porquanto ignorais a existência
deste prodigioso João e vos assombrais tanto com sua presença - disse outro.
- Venho caçando focas nestes mares há quarenta e cinco anos, dia após dia -
acrescentou o primeiro - e sempre conheci o bom João, a quem todos nos veneramos,
com sua cabeleira branca e seu aspecto majestoso. E mais: recordo, perfeitamente,
que quando era criança e costumava sair para o mar com meu pai, este e meu avô
contavam-me o mesmo, tim-tim por tim-tim, a respeito de João, acrescentando que o
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mesmo contaram a meu avô, seu pai e o pai de seu pai... Todos o haviam conhecido
igualmente velho e Imponente em sua grandeza, com seus olhos de fogo e sua
cabeleira alva como a neve!
- Segundo contam, o bom velho tem já mais de duzentos anos! contestei alegre e
incrédulo.
Para tirar-me de meu ceticismo, vários marinheiros rodearam o patriarca de barba
e cabeleira brancas, importunando-o:
- Vovô querido, quer ter a bondade de dizer-nos tua verdadeira idade?
- Realmente, meus filhos, eu mesmo não o sei - replicou com o mais seráfico dos
sorrisos. Nunca contei meus anos e vivo, assim, o tempo que Deus me determinou em
sua inescrutável sabedoria.
- Mas, como soubeste que invernávamos aqui? interroguei-o por minha vez.
- Ele me guiou - respondeu simplesmente. Era somente o que sabia...
- Não me atrevi a indagar mais, finalizou o médico - coroando sua narração com
estas palavras ditas em voz mais baixa e como já falando consigo mesmo:
- Inexplicável! Absolutamente inexplicável!

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O CAMPO LUMINOSO

Procedentes da Grécia, havíamos chegado a Constantinopla; um alegre e


escolhido grupo de turistas. Doze ou mais horas, durante o dia, foram dedicados a
subir e descer pelas escarpadas alturas de Pera, visitando lugares, encarapitando-nos
no alto dos minaretes e abrindo caminho entre matilhas famintas: os cães
vagabundos, tradicionais donos das ruas de Istambul. Diz-se que a vida de boemia é
contagiosa e que nenhuma civilização conseguiu destruir o encanto da liberdade
omnímoda, uma vez que se tenha provado suas doçuras. O cigano não pode viver sem
sua tenda portátil, que é seu carro e, às vezes, a viagem a pé é para ele uma segunda
natureza, uma fascinação irresistível de sua nômade e precária existência. Meu
principal cuidado, portanto, desde que cheguei a Constantinopla, foi de evitar que
meu perdigueiro Ralph fosse também vítima de tamanho contágio, tendo ganas de
unir-se alegremente aos beduínos de sua raça canina que infestavam as ruas da
cidade.
Aquele formoso cão, meu camarada, era meu mais fiel e constante amigo, e,
temerosa de perdê-lo, vigiava-o em seus menores impulsos; porém o pobre animal
portou-se, durante os três primeiros dias, como um quadrúpede medianamente
educado. Às imprudentes acometidas de seus congêneres maometanos, sua única
resposta era a de meter o rabo entre as pernas, baixar humildemente as orelhas e
buscar, acovardado, a proteção de qualquer um de nós. Vendo-o, portanto, tão
refratário às más companhias, comecei a confiar em sua discrição, diminuindo a
vigilância; porém, daí a pouco, tive que lamentar por haver depositado uma confiança
excessiva em má ocasião. Num momento de descuido, umas sereias de quatro patas o
seduziram, traiçoeiras, e a única coisa que dele vi foi a ponta de seu galhardo rabo,
desaparecendo em suja e tortuosa viela.
Inúteis resultaram, depois, as buscas empreendidas para dar com o paradeiro
final de meu mudo companheiro. Ofereci vinte, trinta, quarenta francos a quem o
achasse e mo trouxesse. Em um instante pusera-se à sua procura uma legião mais
vagabunda do que os próprios cães que assaltaram nosso hotel, trazendo, cada um,
seu cão sarnento nos braços, pretendendo fazê-los passar por meu fiel amigo.
Quanto mais resistia a semelhante embuste, mais porfiavam eles, e, um daqueles
miseráveis, caindo de joelhos, tirou do peito uma antiga e corroída medalha da
Virgem, chegando a ponto de jurar-me que a própria Rainha do Céu havia lhe
aparecido para indicar-lhe qual era o verdadeiro animal. Houve até um momento em
que teria o súbito desaparecimento de Ralph determinado um curioso motim, que
por certo teria ocorrido, se nosso guia não fizesse vir um par de "kavasses" (policiais)
que se encarregou de expulsar, cortesmente aquela turba de bípedes e quadrúpedes.
Suspeitei, então, que já não mais voltaria a ver o meu cãozinho e, ainda, acabei
por perder toda a esperança, quando o porteiro do hotel - um honorável ex-
salteador de estradas, homem que não teria passado menos de meia dezena de anos
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como condenado à prisão - assegurou-me solenemente que todas as minhas
pesquisas seriam inúteis, pois o meu perdigueiro teria sido morto e devorado por
seus congêneres, porque os cães turcos, vagabundos, encontram muito gosto na
carne de seus saborosos irmãos - os cãezinhos da Inglaterra.
A cena anterior tinha ocorrido em plena rua à porta do hotel, e já ia voltar aos
meus aposentos, quando uma velha grega, que me havia estado ouvindo do umbral
de uma casa fechada, disse à minha acompanhante Miss H... que, se quiséssemos,
poder-se-ia interrogar os "dervixes" sobre o caso.
- E que pode saber essa gente sobre o paradeiro de meu cão? respondi-lhe com
ironia.
- Os homens santos sabem tudo; para eles não há segredos - objetou a anciã,
misteriosamente. A semana passada roubaram-me um abrigo novo, trazido por meu
filho, de Brusa e, como vedes, recuperei-o e estou usando-o.
- Mas, então, os santos homens o transformaram também de novo em velho -
acrescentou um do grupo, indicando um grande remendo preso com alfinetes que
aparecia no ombro do agasalho.
- Esta é, precisamente, a parte mais grave de minha estória - retrucou a velha
com aprumo; porque, ficai sabendo que eles me mostraram, no espelho mágico, o
bairro, a casa e até o cômodo onde o judeu que mo roubou estava, naquele instante,
fazendo-o em pedaços. Meu filho e eu voamos, imediatamente, para o bairro de
Kalindijkulosek onde o mesmo ladrão que tínhamos visto no espelho e que, convicto
e confesso, foi prontamente metido no cárcere.
Embora ninguém do grupo soubesse o que poderia ser o espelho mágico dos
dervixes, resolvemos ir ver um deles, no dia seguinte. Com efeito, apenas os
muezins, com um monótono vozear, haviam cantado nos altos minaretes a hora do
meio-dia, descemos da Colina de Pera até o Porto de Gálata, abrindo caminho a
cotoveladas, por entre os heterogêneos concorrentes ao mercado. Aquela Babel de
cem léguas, aquela ensurdecedora algaravia dava-nos dor de cabeça. De outro lado,
ali não havia meio da pessoa orientar-se, nem de achar as ruas por seus nomes, nem
as casas por seus números, tendo que se confiar em Alá e em seu profeta, quando
não em vagas indicações da proximidade, de tal edifício ou mesquita, do ponto que
se procura.
À custa, pois, de mil rodeios e pesquisas, acabamos por encontrar o bairro onde
se vendiam artigos ingleses, atrás do qual achava-se o lugar a que nos dirigíamos.
Até o guia de nosso hotel não conhecia o retiro dos "santos homens". Um garoto
grego, em toda a singela nudez nativa, consentiu, mediante uma pequena moeda de
cobre, em levar-nos à presença de um daqueles adivinhos.
Penetramos num sombrio salão, que mais parecia um estábulo abandonado. O
piso, comprido e estreito, estava coberto de areia e só recebia luz de pequenas
janelas, bem no alto. Os dervixes, terminados seus ritos matinais, descansavam, sem
dúvida, uns estendidos em todo o seu comprimento, outros recostados, em pé, com
olhar vago, meditando, falaram-nos acerca da Deidade invisível. Todos eles pareciam
de mármore, inertes, sem responder às nossas perguntas. Nossa perplexidade acabou
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logo, entretanto, quando um deles, seco e alto, com um gorro pontiagudo, que o
fazia parecer muito mais alto ainda, surgiu não sei de onde, dizendo-nos que era o
superior daquela comunidade de santos, acrescentando que não nos haviam
respondido porque quando, mediante a oração, põem-se em contato com Alá, não se
pode interrompê-los por motivo algum.
Nosso intérprete explicou ao velho que nossa visita somente a ele se dirigia, pois
que ele era o depositário da varinha adivinhatória. Imediatamente estendeu-nos a
mão, em demanda da esmola prévia. Logo que a guardou, negou-se a praticar
cerimônia alguma, para a averiguação do paradeiro do cão, senão perante dois
membros somente de nossa comitiva, que foram Miss H... e eu.
Penetramos ambas, seguindo atrás do dervixe, por um corredor semi-
subterrâneo; subimos por uma escada portátil até um cômodo enfeitado, e deste até
um miserável desvão cheio de pó e teias de aranha. A um canto, vimos um vulto que
acreditei ser um montão de trapos velhos, o qual se moveu, pondo-se em pé. Era a
criatura mais disforme e desprezível que tinha visto em minha vida. Uma mulher-
menina; uma anã hidrocéfala e imponente, com ombros de granadeiro, tendo por
pernas duas patinhas de aranha; pernas arqueadas que podiam, apenas, suportar a
desproporção de seu corpo. Seu semblante, burlesco e agressivo como de um sátiro,
mostrava uma meia-lua vermelha pintada na testa; sua cabeça escondia-se sob um
ensebado turbante; suas pernas ostentavam grandes bombachas turcas; uma
musselina suja envolvia seu corpo, conseguindo apenas cobrir as deformidades de
suas carnes cheias de tatuagens, signos e letras árabes.
A espantosa criatura caiu, mais do que se sentou, no meio da peça, levantando
uma incomoda nuvem de pó - era a famosa Talmos, o oráculo de Damasco, no dizer
do povo!
Imediatamente, o dervixe traçou com giz, em torno da mulher, um círculo de uns
três pés de raio; tirou, não sei de onde, doze lamparinas de cobre, que encheu com o
conteúdo escuro de uma garrafa que ocultava em seu peito, colocando-as sem
simetria, em torno da vítima da almofada da desmantelada porta, arrancou uma lasca
e pegando-a entre o polegar e o indicador, começou a soprá-la a intervalos regulares,
resmungando, ao mesmo tempo, orações, fórmulas de encantamento, até que, de
repente, e sem causa aparente, brotou uma chispa da lasca a qual começou a arder
como se fosse uma palhinha seca. Com aquele fogo, tão estranhamente obtido,
começou a acender as doze lamparinas do círculo.
Talmos, a adivinha, que até então jazia inerte, tirou rapidamente as bombachas,
jogando-as ao canto, deixando a descoberto, com seus monstruosos pés, a beleza
adicional de um sexto dedo. O dervixe, por sua vez, entrou no círculo e colhendo-a
pelos tornozelos, alçou-a, qual um saco de batatas, pondo-a com elegância de cabeça
para baixo, balançando-a nessa posição, como se fosse um pêndulo e acabando por
fazê-la girar no ar, do mais estranho modo.
Minha companheira, Miss H... , aterrada ante o estupendo espetáculo que tinha
à vista, correu a refugiar-se no ângulo mais distante, enquanto a anã, sob o impulso
do dervixe, acabou por adquirir um movimento rotatório, como o de um pião,
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durante dois minutos, até que foi diminuindo e cessou por completo.
A infeliz anã, assim mesmerizada, parecia como imersa num estado de
catalepsia, com sua barba sobre o peito, espantosa, acima de toda a ponderação. O
dervixe logo fechou cuidadosamente a única janela do recinto e teríamos ficado às
escuras não fosse um buraco da mesma, por onde penetrava um raio de sol que vinha
cair exatamente sobre a moça. Impondo-nos silêncio, com gesto solene, cruzou os
braços no peito e, fixando seu olhar no ponto brilhante que caía sobre a cabeça de
Talmos, permaneceu tão imóvel quanto ela, enquanto eu me desfazia em cabalas,
pretendendo verificar que relação poderiam ter tamanhas extravagâncias com a
averiguação do paradeiro de meu Ralph.
O disco brilhante que o raio de sol demarcava foi se convertendo, não sei como,
em uma estrela brilhante. Por inexplicável fenômeno de ótica, o quarto que antes tinha
estado sobremente iluminado por aquele raiozinho de luz, foi escurecendo cada vez
mais, à medida que aumentava em brilho a estrela, até que nos vimos envoltos numa
obscuridade verdadeiramente cimeriana, enquanto a estrela tremia e girava
lentamente, a princípio, logo com vertiginosa rapidez, cresceu até envolver a anã,
como num oceano luminoso. Finalmente, a estrela tornou-se menor em seu giro,
enquanto se ia apagando, como os suaves esplendores da lua na água, iluminando o
círculo e deixando o resto em absoluta escuridão.
Chegado, assim, o momento supremo, o dervixe, sem pronunciar palavra,
estendeu a mão, com a qual pegou a minha, indicando-me o círculo luminoso: por todo
o ambiente, vimos formarem-se e condensarem-se manchas esbranquiçadas de
prateado brilho lunar, as quais constituíram de pronto figuras cambiantes, informes,
como reflexos astrais num espelho. De repente, com assombro meu, e consternação de
minha amiga, apresentou-se-nos, no panorama assim formado, a ponte principal que
une a nova à antiga cidade, atravessando o "Corno de Ouro", de Gálata a Istambul.
Vimos deslizar pelo Bósforo os alegres calques, o formigar da cidade, as quintas, os
palácios e demais edifícios encarnados, refletindo-se fantásticos nas águas iluminadas
pelo sol do meio-dia, desfilando magicamente, a ponto de não podermos discernir se
era tudo aquilo que se movia ou se nós é que nos movíamos. O mais estranho de tudo
era que, não obstante toda aquela vida agitada que se mostrava à nossa vista, não se
ouvia o menor ruído, apenas se desenrolava no silêncio angustioso de um sonho
singular...
As ruas iam se sucedendo, umas às outras, em rápido desfilar, nosso ou seu. Ora
passava uma loja de estreita viela; ora um café turco cheio de fumadores de ópio, no
momento em que algum deles derramava, inadvertidamente café e o narguile sobre
seu vizinho, recebendo deste uma porção de injúrias. De visão em visão, chegamos,
assim, ante um grande edifício que reconheci como sendo o Ministério da Fazenda e
ali, oh! tristeza!, nos fossos traseiros do mesmo, moribundo com o pelo sedoso cheio
de lama, jazia meu pobre cão Ralph, rodeado de outros cães de péssima catadura, que
se entretinham em caçar moscas, na sombra...
Já sabia pois, quanto desejava; embora não houvesse dito nenhuma palavra
acerca do cão ao dervixe , e impaciente por comprovar o paradeiro daquele, tratei de
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sair porém uma vez desaparecida a cena, Miss H... colocou-se por seu turno ao lado do
dervixe, murmurando em seu ouvido não sei que palavras, com esse tom ardente e
apaixonado com que soem falar, do adorado "ele", as jovens enamoradas!
- Pensarei nele, disse.
Apenas formulado, quase mentalmente, o desejo que tais palavras encerravam,
quando se nos apresentou uma grande planície de areia, em cujo fundo se via o mar
azulado, sob os raios de sol, e um grande vapor sulcando as águas, ao largo da costa,
seguido de branca esteira. A coberta formigava de passageiros, destacando-se entre
eles, apoiado contra a amurada da popa, um jovem bem posto. Era ele!
Miss H... suspirou, sorriu e ruborizou-se, alternadamente, com natural emoção.
Depois, concentrou de novo seu pensamento e, já então, o barco se afasta e
desaparece. O espelho mágico permanece uns momentos sem panorama. Porém,
prontamente, outras manchas luminosas aparecem em sua superfície, as quais, por fim
compõem o recinto de uma biblioteca com tapetes e cortinas verdes. À frente de uma
pilha de livros e sentado a uma poltrona, acha-se um ancião escrevendo à luz de uma
lâmpada. Seu cabelo é grisalho e está penteado para trás; o rosto barbeado e
transpirando benevolência...
O dervixe fez então, um pequeno movimento com a mão, impondo silencio. A luz
do campo mágico empalideceu e de novo ficamos sem ver imagem alguma.
Dali a pouco, tornou a aparecer Constantinopla e, com ela, nossas acomodações
do hotel, com seus livros e periódicos sobre a mesa; o chapéu de viagem de minha
amiga colocado no cabide e, sobre a cama, o vestido que havia trocado aquela
manhã para sair. Os pormenores mais reais completavam o quadro e, para maior
maravilha vimos sobre a mesa duas cartas fechadas, recém-trazidas pelo correio e
cuja letra, nos envelopes, foi logo reconhecida por minha amiga. Eram ambas de um
parente seu, muito querido, por cujo silêncio sentia-se inquieta há dias.
Nova mudança da cena mágica e eis-nos já no quarto ocupado pelo irmão de
Miss H... , o qual jazia deitado de costas em um sofá, enquanto um criado colocava-
lhe panos na cabeça, da qual, com horror, vimos que saía sangue. Não conseguíamos
explicar aquilo, tendo-o deixado há uma hora, gozando perfeita saúde. Miss H...
lançou um grito e, pegando-me, pressurosa, pela mão, lançou-se em direção à porta.
Chegamos apressadamente em casa, podendo comprovar, com efeito, que o
jovem irmão de Miss H... acabava de cair da escada, o que lhe produzira um
ferimento de pouca importância; que sobre a mesa de nosso gabinete esperavam,
recém-trazidas de Atenas por um parente, duas cartas dirigidas a Miss H...
Não me faltou mais, para de todo comprovar nossas visões do campo luminoso
do espelho mágico do dervixe, senão tomar um carro, dirigir-nos até o Ministério da
Fazenda em cujo fosso, tal como tivera a desdita de vê-lo naquele espelho,
estropiado, famélico, porém ainda com vida, jazia meu irmão perdigueiro, rodeado
de outros cãos de mau aspecto, que caçavam moscas...

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UMA VIDA ENCANTADA
(TAL COMO A CONTOU UMA PENA)

INTRODUÇÃO

As tortuosas ruas de A... , pequena cidade renana, achavam-se sepultadas sob


um manto de densíssima névoa, numa noite do outono de 1884. Os moradores já se
haviam retirado, horas antes, buscando no sono o descanso de suas laboriosas
tarefas do dia. Tudo era repouso, silêncio, solidão e tristeza naqueles espaços
vazios...
Também eu me achava ao leito; porém, ai!, de bem diferente maneira, pela dor
e enfermidade que nele me retinham há vários dias. O silêncio, em meu redor
naquela noite de mistério, era tal que, parodiando a frase de Longfellow, ouvia-se o
próprio silêncio. Percebia, claramente, até o latejar de meu próprio sangue, ao
circular violento por meus membros doloridos, e minha superexcitada imaginação
me levava, como a escutar o sussurro de uma voz humana, murmurando não sei que
estranhas coisas a meu ouvido. Não parecia senão um eco transmitido de longas
distâncias, numa dessas gargantas de montanha, tão solitárias como
maravilhosamente ressonantes e que podem transmitir uma palavra, por meia
milha, como por um tubo acústico. Era, sim, a voz tão familiar para mim há tantos
anos: a voz de um desses grandes seres a quem não se pode conhecer sem, no ato,
sentir-se presa da mais viva veneração e a quem, nos transes mais cruéis do
paroxismo de minhas dores mentais e físicas, sempre devi a luz de um raio de
consolo e esperança...
- Esquece tuas próprias dores - dizia-me aquela suavíssima e inefável voz -
apartando delas tua imaginação. Pensa em dias felizes e passados; nas lições que
tantas vezes tens recebido acerca dos grandes mistérios da Natureza, verdades que
os homens cegos a toda luz espiritual, tanto se obstinam em não querer ver. Quero,
hoje, acrescentar a tais ensinamentos, outro relativo a uma vida estranha desse ser
que tens aí adiante, precisamente atrás das vidraças dessa casa tristonha, em frente.
E, dizendo isto, a voz parecia querer revelar-me algo mui raro: o mistério de
uma alma, atrás das paredes da casa fronteira. As densas porções de neblina que
lambiam a fachada, como fantasmas, foram desaparecendo, e uma claridade
brilhante e suave como a da lua, parecia estender, por assim dizer, uma ponte
encantada entre meus olhos e aquela casa, cujas paredes acabaram por fazer-se
transparentes a meus olhos deixando-me ver, com toda a limpidez, o interior de uma
pequena habitação, como um chalé suíço, com enegrecidas paredes cheias de
estantes com livros, manuscritos e decorações arcaicas. Debruçado sobre uma
escura mesa de nogueira, via-se um velho mal encarado, quase um espectro,
amarelo e extenuado que se achava, com seus olhinhos penetrantes e suas mãos de
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marfim escrevendo à luz da fúnebre lâmpada, que apenas servia para fazer mais
densas as tristezas e obscuridades daquele pobre recinto.
Um instante após, ao fazer um movimento involuntário para melhor ver aquele
quadro, diria que todo ele, isto é, a habitação, livros, espectro, etc., atravessando a
ponte de argêntea luz astral que cruzava a rua, havia se trasladado para a minha
frente, até os pés de minha cama.
- Presta ouvido atento ao rumor dessa pena ao raspar o papel - continuou
dizendo a voz misteriosa, tão distante e, contudo, tão próxima. Assim conseguirás
saber pela própria pena a mais arrepiante e real das histórias de dor que imaginar
podes, esquecendo-te de teus próprios sofrimentos e encurtando as terríveis horas
desta noite de insônia. Ensaia, pois! - acrescentou, repetindo a tão conhecida
fórmula de cabalístas e rosa-cruzes.
Ensaiei, imediatamente, como me era ordenado concentrando toda minha
atenção na imponente figura do ancião, que não parecia nem se dar conta de minha
presença. A princípio, o raspar da pena de ave parecia quase imperceptível, porém,
pouco a pouco, foi tornando-se mais claro e compreensível para mim, como se
aquele personagem de mistério estivesse relatando em voz alta aquilo mesmo que
escrevia. Mas não: os lábios daquele espectro vivente não se despregavam, nem um
instante, para pronunciar a mais ínfima palavra. A voz, além disso, era vaga, vazia,
qual entonações de seres do outro mundo, e, a cada letra e palavra, um fulgor lívido
e fosfórico parecia brotar sob os bicos da pena, à maneira de um fogo fátuo, não
obstante achar-se, quiçá, a muitas milhas de distância da Alemanha, o ser que diante
de mim se encontrava - coisa aliás frequente no mistério encantado da noite,
quando, nas asas de nossa mágica imaginação "aprendemos sob os clarões de
sidérea sombra, a sublime linguagem do outro mundo", como diria Lord Byron. Os
clichês astrais de meus olhos e ouvidos internos impressionaram-se de modo
indelével com aquelas frases, assim é que, hoje, não tenho senão que copiá-las para
transmiti-las, como as recebi, com o risco de que as tomeis por uma novela forjada
de propósito, acerca de um personagem fantástico, cujo verdadeiro nome não pude
averiguar.

Ora aceitá-la-eis como realidade, ora considerá-la-eis como conto; sem


embargo, espero que há de resultar do mais vivo interesse.
Começo.

I – O DESCONHECIDO
Nasci numa aldeia suíça: Um grupo de míseras cabanas encravado entre dois
imponentes glaciares, sob um cume de neves perpétuas, e a ela, velho de corpo e
enfermo de espírito, retirei-me, há trinta anos, para esperar tranquilo, com a morte,
o dia de minha libertação... Mas ainda vivo, apenas somente para dar testemunho de
fatos pasmosos, sepultados no fundo do meu coração: todo um mundo de horrores
que mais quisera calar do que revelar!
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Sou um perfeito abúlico, porque devido à minha prematura instrução, adquiri
falsas ideias que, fatos posteriores, encarregaram-se de provar completamente
contrário. Muitos, ao ouvir o relato de minhas desventuras, considera-las-ão como
absolutamente providenciais e eu mesmo, que não creio em Providência alguma, tão
pouco posso atribuí-las à mera casualidade, mas ao eterno jogo de causas e efeitos
que constituem a vida do mundo. Embora enfermo e decrépito, minha mente
conservou toda a frescura dos primeiros dias, e recordo até os mínimos detalhes
daquela terrível causa de todos os meus males ulteriores. Demonstra-me isso, bem a
meu pesar, a existência de uma entidade excelsa, causa de todos os meus males,
entidade real, que eu desejaria fosse tão somente criação de minha louca fantasia...
Oh! ser maldito, tão terrível quanto bondoso! Oh! santo e respeitado senhor, todo
perdão: tu, modelo de todas as virtudes, foste, não obstante, quem amargurou para
sempre toda a minha existência, arrojando-me violentamente fora da égide
monótona, porém segura e tranquila, do que chamamos vida vulgar; tu, o poderoso
que, tão a meu pesar, evidenciaste-me a realidade de uma vida futura e de mundos
acima do que vemos, acrescentando, assim, horrores a meu mísero viver!...
Para mostrar bem meu estado atual, tenho que interromper e deter a voragem
destas recordações falando de minha pessoa. Quanto não daria, todavia, para apagar
de minha consciência esse odioso e maldito Eu, causa de todos os nossos males
terrenos!
Nasci na Suíça, de pais franceses, para quem toda a sabedoria do mundo
encerrava-se na tríade literária: Barão de Holbach, Rousseau e Voltaire. Educado em
escolas alemãs, fui ateu da cabeça aos pés, empedernido materialista, para quem não
podia existir nada fora do mundo visível que nos rodeia e, muito menos, um ser que
pudesse estar acima deste mundo e fora dele. E, quanto à alma, acrescentava, ainda
na suposição de que exista - tem que ser material. Para o próprio Orígenes, o epíteto
de incorpóreo dado a Deus significa uma causa mais sutil, porém sempre física, da
qual nenhuma ideia clara podemos formar em definitivo. Como, pois, vai ela produzir
efeitos tangíveis? Assim, não há por que acrescentar que encarei sempre o nascente
espiritualismo com desdém e asco, e, também quase com ira, as insinuações religiosas
de certos sacerdotes, sentimentos que, apesar de todas as minhas tristes experiências,
conservo ainda.
Pascal, na oitava parte de seus "Pensamentos", mostra-se indeciso à cerca da
própria existência de Deus. "Examinando, com efeito, por qualquer lado, se
semelhante Ser Supremo deixou pelo mundo algum vestígio de si mesmo, não vejo em
qualquer lugar senão obscuridade, inquietude e dúvida completa... " Porém, se bem
que em semelhante Deus extracósmico jamais tivesse acreditado, também não posso
rir-me das potencialidades maravilhosas de certos homens do Oriente, que os
convertem virtualmente em deuses. Creio firmemente em seus fenômenos, porque os
vi. E mais, detesto-os e os maldigo, quaisquer que sejam os que os produzam, e,
minha vida inteira, despedaçada e estéril, é um protesto contra tal negação.
Em consequência de demandas infelizes, ao morrerem meus pais, perdi quase
toda minha fortuna, motivo pelo qual resolvi, mais pelos que amava do que por mim
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mesmo, constituir nova fortuna, e, aceitando a proposta de ricos comerciantes
hamburgueses, embarquei para o Japão, na qualidade de representante de sua Casa.
Minha irmã, a quem idolatrava, havia se casado com um rapaz de modesta condição.
O mais franco êxito secundou minhas empresas. Mercê da confiança em mim
depositada por amigos ricos do país, pude negociar facilmente em regiões pouco, ou
nada, abertas, então, aos estrangeiros. Embora igualmente indiferente a todas as
religiões, o budismo interessou-me de modo especial, por sua elevada filosofia, e, em
meus instantes de lazer, visitei os mais curiosos templos japoneses, entre eles parte
dos trinta e seis templos budistas de Kioto; Day-Bootzoo, com seu gigantesco sino;
Enarino-Iassero, Tzonene, Higadzi-Vonsi, Kie-Misoo e muitos outros. Nunca,
entretanto, curei-me do ceticismo, rindo-me dos bonzos e ascetas do Japão, não
menos do que antes o fizera com os sacerdotes cristãos e com os espíritas, sem
admitir a mínima possibilidade de que aqueles pudessem possuir poderes estranhos,
não estudados por nossa ciência positiva. Ridículos, afiguravam-se-me, no mais alto
grau, os supersticiosos budistas, procurando fazer-se tão indiferente à dor como ao
prazer, pelo domínio das paixões.
Um dia fatal e memorável, entabulei amizade com um bonzo idoso, chamado
Tamoora Hideyeri. Com ele visitei o dourado Kwo-On e, de seu grande saber, aprendi
não pouco. Não obstante a devoção e afeto que por ele sentia, nunca perdoava a
ocasião própria de caçoar de seus sentimentos religiosos; porém, era de tão boa
índole como culto, e, sendo bom budista, jamais se me mostrou, no mínimo, ofendido
por meus sarcasmos, limitando-se a responder imperturbável: "Esperai e vereis algum
dia". Sua mentalidade privilegiada não podia crer que meu cético ateísmo fosse
sincero, tão acima da crença ridícula num mundo invisível rechaçado pela Ciência e
cheio de deidades e de espíritos maus e bons. O tranquilo sacerdote dizia-me,
unicamente: "O homem é um ser espiritual, recompensado e castigado,
alternadamente, por seus méritos e por suas culpas, tendo, por isso, que voltar,
reencarnado, inúmeras vezes à Terra". Contra aquelas célebres frases de Jeremy
Cellier de que somos meras máquinas ambulantes, simples cabeças falantes, sem
alma nem leis que as da miséria, perguntava, se nossas ações estivessem de antemão
previstas e decretadas, sem que tivéssemos mais liberdade nelas do que a que têm as
águas de um rio de se deterem, a sábia doutrina do Karma - ou de que cada um
recolhe aquilo que semeou - seria absurda. Assim, pois, toda a metafísica de meu
amigo baseava-se nesta lei imaginária, juntamente com a da metempsicose e outros
delírios desse jaez.
- Depois desta vida material, não podemos disse absurdamente meu amigo,
certo dia - viver no completo uso de nossa consciência sem termos construído, por
assim dizer, um veículo, uma sólida base de espiritualidade. Quem, durante esta vida
física, consciente e responsável, não aprendeu a viver em espírito, não pode aspirar a
uma plena consciência espiritual quando, privado de seu corpo, tenha que viver como
mero espírito.
- Que entendes, pois, por vida como espírito? perguntei.
- A vida é um plano puramente espiritual, o " Jushitz Devaloka" ou paraíso
35
budista, porquanto o homem, mediante seu cérebro animal e todas as faculdades
que desenvolve aqui na Terra, constrói esse elevadíssimo estado celeste entre duas
existências sucessivas, transportando a esse plano de felicidade superior, quanto aqui
embaixo construiu, mediante estudo e contemplação.
- Que sucede ao homem que recusa a contemplação, quer dizer, que se nega a
fixar a vista na ponta de seu nariz, depois da morte de seu corpo? Perguntei-lhe
brincalhão.
- Que será tratado como detentor daquele estado mental que em sua
consciência prevaleceu. No melhor dos casos, terá um renascimento imediato e no
pior, um "Avitchi", ou inferno mental. Não é preciso, no entanto, fazer-se um
completo asceta: basta esforçar-se por aproximar-se do Espírito, vivendo uma vida
espiritual; abrindo, embora por um momento, a porta de nosso Templo Interior.
- És sempre poético, mesmo em teus paradoxos! amigo meu, respondi-lhe.
Queres explicar-me, um pouco, semelhante mistério?
- Não é nenhum mistério, replicou - porém de bom grado responder-te-ei. Supõe
que o "plano espiritual", de que te falo, seja como um templo no qual jamais pisaste e
cuja existência credes ter fundamento para negar, porém que alguém compassivo te
toma pela mão e, conduzindo-te até a entrada, te faz olhar para dentro somente um
instante. Por este simples fato, terás estabelecido com o templo um laço imperecível.
Não poderás, desde aquele dia, negar sua existência, nem o fato de haver entrado
nele e, segundo haja sido teu trabalho, breve ou longo, assim viverás nele depois da
morte.
- Pois, que tem que ver minha consciência post-mortem com semelhante templo,
ainda que no falso caso de que a outra vida exista?
- Muito! Depois da morte - terminou dizendo o sábio ancião - não pode haver
consciência alguma fora do Templo do Espírito. O que se executa em seu âmbito é a
única coisa que à nossa morte sobreviverá, porque todo o demais, como vão e
ilusório, está fadado a dissolver-se no Oceano de Maya ou da ilusão.
Como me chocava, sendo simples curioso, a peregrina e absurda ideia de viver
fora de meu corpo, disfarcei meu ceticismo e, fingindo interessar-me por tudo
aquilo, obriguei meu amigo a que continuasse, enganado por completo a respeito de
minhas intenções.
Tamoora Hideyeri servia em Tri-Onene, templo budista famoso não só no Japão,
mas em toda a China e no Tibete; não há em Kioto outro tão venerado e seus
monges, sequazes de Dzeno-doo, são tidos pelos melhores e mais sábios entre
aquelas meritíssimas fraternidades relacionadas, por sua vez, com os ascetas ou
remitas chamados Jamabooshi, discípulos de Lao-Tsé, Assim se explicam os altos voos
metafísicos que, com intenção de curar minha cegueira mental, sempre deu meu
amigo à nossa conversação, levando-me até suas emaranhadas doutrinas, com suas
perorações (disparatadas a meu ver) e suas ideias de espiritualidade, cuja prática
parecia verdadeira ginástica no plano espiritual.
Tamoora havia dedicado mais de dois terços de sua vida à Yoga, ou
contemplação prática, a qual lhe tinha dado as provas de que com a morte, uma vez
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despojados de seu corpo material, viviam os homens em plena consciência no
mundo espiritual, recolhendo o fruto centuplicado de suas ações nobres e altos
sentimentos - salário proporcional, dizia o asceta, ao trabalho que se esforçava em
realizar cá embaixo.
- Porém, se alguém não fizer mais que assomar ao templo da espiritualidade e
retroceder, que lhe acontecerá, depois? objetei com meu eterno ceticismo.
- Pois então, na outra vida nada terias de bom para recordar, salvo aquele feliz
instante, porque em tal vida espiritual somente se registram e vivem as impressões
espirituais - respondeu o monge.
-Assim, antes de reencarnar aqui embaixo, que lhe aconteceria? acrescentei
jocosamente. Então, disse lento e solene o sacerdote, com uma atitude severa de
dar frio: durante um período, que pareceria uma eternidade à tua angústia, não farias
senão repetir uma e mil vezes a ação de abrir e fechar o templo, com essa desesperante
repetição dos temas de acalanto.
Semelhante tarefa que o bom homem me assinalava post-mortem, fez-me soltar
uma gargalhada. Aquilo era o cúmulo do absurdo! Porém, meu amigo limitou-se a
suspirar, compassivo, acrescentando, assim que lhe pedi perdão por minha
sinceridade:
- Não. Tal estado espiritual depois da morte não consiste em uma repetição
mímica e automática do realizado na vida, mas em encher e completar os vazios
dela. Eu me limitei a apresentar um exemplo dos mistérios relativos à Visão da Alma,
incompreensível para ti, pelo que vejo. Sendo, então, nosso estado de consciência o
gozo final de quantos atos espirituais tenhamos executado em vida, quando um
destes haja falhado não podemos esperar outra coisa que a repetição do mesmo ato.
E, saudando-me cortesmente como bom japonês, o nobre sacerdote despediu-
se de mim.
Ah! se me tivesse sido possível, então, saber o que depois aprendi por dolorosa
experiência... quão pouco haveria zombado daquele sapientíssimo ensinamento!...
Mas não, eu não podia crer de olhos fechados em tamanhos absurdos e, muito
especialmente, em que certos homens arrebatados conseguissem adquirir poderes
sobrenaturais. Experimentava uma repulsa instintiva em relação àqueles eremitas ou
yamabooshi, protetores de todas as seitas budistas do Japão, porque suas pretensões
milagreiras pareciam o cúmulo da nesciência. Quem poderão ser esses magos
presumidos, de olhos baixos e mão cruzadas, esses "santos" mendigos, estranhos
moradores de montanhas afastadas e escabrosas, inacessíveis a ponto de, aos
simples curiosos, ser impossível chegar até elas?... Não podiam ser eles senão uns
adivinhos desprovidos de vergonha, uns ciganos vendedores de feitiços, talismãs e
bruxarias.
Como se vê, meus insultos e ódios alcançavam, por igual, mestres e discípulos,
porque convém não esquecer que os yamabooshi, embora não aceitem os profanos
perto de si, a alguns, através de duras provas, recebem como discípulos, os quais dão
perfeita prova de sabedoria e pureza de vida.
Meu menosprezo não se deteve nem nos próprios sintos, quer dizer, naqueles
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outros religiosos de Sin-Syu, o xintoísmo, cuja divisa é a de "fé nos deuses e no
caminho dos deuses", porque praticam um culto absurdo - o dos chamados
"Espíritos da Natureza". Assim captei não poucos inimigos, porque os Sinto-Kanusi, os
mestres espirituais desse culto, pertencem à aristocracia japonesa, com o próprio
Mikado à frente, constituindo os sequazes do mesmo o elemento mais sábio do
Japão. Não nos esqueçamos de que os Kanusi, ou mestres do Xintoísmo, não
procedem de ordenação regular alguma conhecida, nem formam casta à parte.
Como jamais alardeiem possuir poderes nem privilégios que os elevam acima dos
demais, vestem-se como os seculares, passando como simples estudantes das
ciências ocultas do espírito. Mais de uma vez tive contato com eles, sem suspeitar
sequer de sua elevada categoria.

II - O VISITANTE MISTERIOSO

Com o decorrer dos anos, em lugar de melhorar, agravou-se meu lamentável


ceticismo. Minha irmã, que era toda minha família no mundo, havia se casado, vivia
em Nuremberg e seus filhos eram-me queridos como se fossem meus. Oh! como
amava aquela irmã mártir que outrora se sacrificara a si e ao homem que se prestou
a ajudar a meu pai, em sua velhice, e a dar-me a devida educação... ! Os que
sustentam que nenhum ateu pode ser nem súdito leal, nem parente fiel, ou amigo
carinhoso, proferem a maior das calúnias. Sim, é falso que o materialista, incapaz de
amar, se endureça de coração, com os anos - no sentido do amar dos crentes. Pode
ser que seja verdade, em alguns casos, e que o positivista propenda para a
vulgaridade e para egoísmo, porém o homem bondoso que é o que sói chamar-se
ateu, não por motivos egoístas, mas por amor à verdade, não faz senão fortalecer
seus afetos para com todos os homens. Quantas aspirações deixam de sentir para
com o desconhecido; quantas esperanças rechaçam a respeito de um céu com seu
Deus correspondente, e concentram-se, sem dúvida, centuplicadas, nos seres
amados e ainda estendem-se a toda a humanidade...
Um amor assim foi o que me impeliu a sacrificar a sorte, a fim de assegurar a
daquela santa irmã que tinha sido uma mãe para mim. Quase criança, parti para
Hamburgo, onde lutei com ardor de quem trata de ajudar a seus entes queridos.
Meu primeiro real prazer foi ver minha irmã casada com o homem a quem por mim
se sacrificara, e ajudá-los. Tão desinteressado era meu carinho para com eles, e, em
seguida para com seus filhos, que jamais quis constituir um novo lar, pois o de minha
irmã, composto logo de onze pessoas, era minha única igreja e o objeto de minha
idolatria. Por duas vezes, em nove anos, cruzei o mar com o único fim de estreitar
contra meu coração seres tão caros ao meu amor, voltando ao Extremo Oriente e
continuando a trabalhar para eles.
Do Japão, sempre mantive correspondência com minha família, até que um dia
ela foi interrompida por esta, sem que pudesse adivinhar a causa. Durante um ano
todo estive sem notícia alguma, esperando em vão, dia após dia, e temendo alguma
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desgraça. Foram inúteis todos os esforços que fiz para saber deles.
- Meu bom amigo - disse-me um dia meu único confidente, Tamoora, por que
não buscas o remédio para tua ansiedade, consultando a um santo yamabooshi?
Não há como dizer com que desprezo rechacei a proposta. Porém, à medida
que, em vão, sucediam-se os correios da Europa, minha ansiedade se ia
transformando em irresistível desespero que degenerou numa espécie de loucura. Já
era inútil toda luta e eu, pessimista a modo de Holbach, crente no aforismo de que a
necessidade era o acicate para a felicidade filosófica e o fator que mais vigor dá à
fraqueza humana, sentia-me vencido.
Esquecendo, pois, meu fatalismo para com os cegos desígnios do destino, não
me podia resignar. Minha conduta, meu temperamento já eram mui diversos dos do
passado e, qual jovem histérico, mil vezes meu olhar tratava de sondar, através dos
mares, a verdadeira causa daquele enigma que me punha à beira da loucura. Sim, um
desprezível e supersticioso anelo movia-me, bem a meu pesar, a desejar conhecer o
passado e o futuro...
Certo dia, ao declinar do sol, meu amigo, o venerável bonzo, apresentou-se em
minha vivenda. Como fazia dias que não nos víamos, vinha para informar-se de minha
saúde.
- Por que te molestas com isso? disse-lhe, sarcástico, embora logo me
arrependendo de minha imprudência. Terás apenas que consultar um yamabooshi
que, à distância, pode ver e saber tudo.
Ante tamanho ex-abrupto, o bonzo pareceu um tanto ofendido; porém, ao
contemplar meu aspecto abatido, replicou bondoso que eu deveria seguir seu
conselho de sempre, consultando um membro daquela santa Ordem, acerca de
minhas torturas mentais.
- Desafio a quantos se jactam de possuir poderes mágicos - repliquei-lhe, tomado
de desafiador desprezo - que adivinhem em que estava eu pensando agora e o que é
que essa pessoa está fazendo neste momento.
A que o imperturbável bonzo respondeu:
- Nada mais fácil; duas portas além de minha casa, acha-se um santo yamabooshi
visitando a um sinto que está enfermo. Basta que pronuncies apenas uma palavra
afirmativa e poderei conduzir-te à sua presença augusta...
E a palavra foi pronunciada, com a qual ficou ditada a sentença cruel para toda a
minha vida. Como descrever, com efeito, a cena que veio depois? Basta dizer que não
havia transcorrido quinze minutos desde que aceitei a proposta do bonzo, quando me
vi frente a frente com um ancião alto, nobre e extraordinariamente majestoso, para
ser de raça japonesa, tão delgada, macilenta e minúscula. Ali, onde pensei achar uma
obsequiosidade servil, tropecei com esse tranquilo e digno porte, característico do
homem que conhece sua superioridade moral e olha com benevolência o equívoco
daqueles que não chegam a reconhecê-lo devidamente. Às perguntas irreverentes e
brincalhonas que, néscio lhe fiz, guardou silêncio, olhando-me fixamente como
olharia um médico para um enfermo em delírio, e eu, desde o instante em que ele
fixou seu perscrutador olhar em meus olhos, senti, ou melhor, vi como um delgado e
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argênteo fio de luz que, brotando de seus intensos olhos, penetrava agudo no mais
recôndito do meu ser, tirando do meu coração e do meu cérebro, bem a meu pesar, o
segredo de meus sentimentos e pensamentos mais íntimos. Não cabia dúvida: aquele
homem imponente apoderava-se de todo o meu ser, a ponto daquilo tornar-se-me
angustiosamente intolerável.
Esforçando-me, quanto pude, para romper aquela fascinação, incitei-o a que me
dissesse que é que tinha podido ler em meu pensamento.
- Uma extrema ansiedade em saber o que pode ter ocorrido à sua irmã distante,
ao esposo e filhos - foi a resposta exata que me deu com toda a tranquilidade aquele
homem, acrescentando pormenores completos sobre a morada deles.
Cético incurável, dirigi um olhar acusador ao bonzo, suspeitando de sua
indiscrição, mas logo envergonhei-me de minha suspeita, sabendo por um lado que
os japoneses são essencialmente verazes e cavalheiros e, por outro lado, que
Tamoora não podia saber nada acerca da disposição interior da casa de minha irmã,
cuja descrição exata, entretanto, acabava de dar-me o yamabooshi.
- O estrangeiro - respondeu este, ao interrogá-lo novamente sobre o atual
estado de minha inolvidável irmã - não se fia nas palavras de ninguém, nem em nada
que não possa perceber por si mesmo. A impressão que nele pudessem causar as
palavras do yamabooshi, acerca daquela, apenas duraria breves horas, deixando-o
logo tanto, ou mais infeliz que antes, pelo que só cabe um remédio e é de que o
estrangeiro veja e conheça a verdade por si mesmo. Está, pois, disposto a deixar-se
pôr no estado exigido a todo yamabooshi, estado para ele desconhecido?
Ao ouvir aquilo, minha primeira manifestação foi, como sempre, a de um sorriso
cético. Embora sem ter jamais fé neles, eu tinha ouvido, na Europa, falar de pretensos
clarividentes, de sonâmbulos magnetizados e outras coisas análogas, pelo que,
desconfiado, prestei, não obstante, meu silencioso consentimento.

III - MAGIA PSÍQUICA

Desde aquele instante principiou a agir o velho yamabooshi. Alçou a vista ao sol e
ao Excelso Espírito de Ten-Dzio-Dai-Dzio que preside ao sol e, achando-o propício, tirou
de sob seu manto uma caixinha de laca com um papel de casca de amoreira e uma
pena de ave, com a qual desenhou sobre o papiro uns quantos Manirams em caracteres
naiden, escrita sagrada que só a entendem certos místicos iniciados. Logo tirou também
um espelhinho redondo de aço polido, cujo brilho era extraordinário, e, colocando-o
ante os olhos, ordenou-me que olhasse nele.
Eu tinha ouvido falar de semelhantes espelhos dos templos e até os tinha visto
várias vezes, sendo opinião correta no país que, sob a direção de sacerdotes iniciados,
neles podem ver-se aparecer os grandes espíritos reveladores de nosso destino, ou
sejam, os daij-dzins. Por isso supus que o ancião ia evocar, com o espelho, a aparição de
uma de tais entidades para que respondesse às minhas perguntas, porém o que me
aconteceu foi muito diferente.
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Com efeito, tão pronto tomei em minhas mãos o espelho, incomodado pela
angústia de minha absurda posição, notei que meus braços e até minha mente estavam
como que paralisados, quiçá por aquele temor que tantos outros sentem perante o
invisível roçar de asa da intrusa. O que era aquela sensação tão nova e tão contrária ao
meu eterno ceticismo, aquele gelo que paralisava de horror todos os meus nervos e até
a consciência e a razão, em meu próprio cérebro? Corno se uma serpente venenosa me
tivesse picado o coração, deixei cair o... - envergonho-me de usar o adjetivo!... - o
espelho mágico, sem me atrever a recolhê-lo do sofá em que me havia reclinado.
Estabeleceu-se, um momento, em meu ser uma luta terrível entre meu orgulho, meu
ceticismo congênito e a ânsia inexplicável que me impulsionava, a meu pesar, a
mergulhar o olhar no fundo do espelho... Venci minha fraqueza um instante e meus
olhos puderam ler esta estranha frase em um livrinho aberto, ao acaso, sobre o sofá:
"O véu do futuro descerra-o, às vezes, a mão da misericórdia". Então, como quem
repta o Destino, recolhi o fatídico e brilhante disco metálico e dispus-me a olhar nele. O
ancião trocou breves palavras com meu amigo, o benze, e este, aplacando minhas
constantes suspeitas, disse-me:
- Este santo ancião te adverte, previamente, de que se tu decidires a ver
magicamente, por fim, no espelho, terás que submeter-te logo a um processo
adequado de purificação, sem o qual - acrescentou frisando solenemente as palavras -
o que vai ver o verás uma, mil, cem mil vezes, contra toda a tua vontade e desejo.
- Como? disse-lhe com insolência.
- Sim, uma purificação muito necessária para tua futura tranquilidade; uma
purificação indispensável, se não quiseres sofrer constantemente a maior das torturas;
uma purificação, enfim, sem a qual transformar-te-ás para sempre em um vidente
irresponsável e desgraçado; tamanha responsabilidade gravitaria sobre minha
consciência de modo categórico, Se não te advertisse.
- Logo haverá tempo para pensar! respondi imprudentemente.
- Já estás, pelo menos, advertido - exclamou o bonzo com desconsolo - e toda a
responsabilidade do que te ocorre cairá unicamente sobre ti mesmo, pela tua
tranquilidade absurda!
Não pude reprimir minha impaciência e olhei para o relógio, com gesto que não
passou despercebido ao yamabooshi: eram precisamente cinco horas e sete minutos!
- Concentra quanto puderes em tua mente tudo quanto desejares ver ou saber -
disse o "exorcista", pondo-me nas mãos o espelho mágico, com mais impaciência e
incredulidade que gratidão de minha parte. Após um último momento de vacilação,
exclamei, já olhando no espelho:
- Só desejo saber porque minha irmã deixou de escrever-me tão repentinamente
desde...

Pronunciei eu, em realidade, tais palavras, ou as pensei apenas? Nunca pude


sabê-lo... somente tenho bem presente que, enquanto mergulhava meu olhar no
espelho misterioso, o yamabooshi tinha estranhamente fixo em mim seu olhar de aço,
sem que jamais me haja sido possível esclarecer se aquela cena durou três horas, ou
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apenas três segundos. Recordo, sim, os mínimos detalhes da cena, desde que peguei o
espelho com minha mão esquerda, enquanto mantinha, entre o polegar e o índice de
minha mão direita, um papiro coalhado de caracteres rúnicos. Recordo que, naquele
mesmo ponto, perdi a noção total de quanto me rodeava e foi tão grande a transição
de meu estado de vigília para aquele novo e indefinível estado que, embora tendo
desaparecido de minha vista o bonzo, o yamabooshi e todo o recinto, eu me via
claramente desdobrado, como se fossem de outro, e não meus, minha cabeça e
ombros reclinados sobre o divã e com o espelho e o papiro entre as mãos...
Súbito, experimentei uma necessidade invencível de andar para diante, lançado
como disparado por um projétil, para fora de meu lugar, ia dizendo, néscio, para fora
de meu corpo! Ao mesmo tempo que meus outros sentidos se paralisavam, meus
olhos, ao que acreditei, adquiriram uma clarividência tal como jamais poderia crer...
Vi-me, ao que me pareceu, na casa nova, de Nuremberg, habitada por minha irmã,
casa que só conhecia por desenho, à frente de panoramas familiares da grande cidade
e, ao mesmo tempo, qual luz que se apaga ou centelha vital que se extingue enfim,
como algo daquilo que devem experimentar os moribundos. Meu pensamento parecia
apoucar-se na noção de "um ridículo muito ridículo" - sentimento que foi
interrompido, em seguida, pela clara visão mental de mim mesmo, do que eu
considerava meu corpo, meu todo (não posso expressá-lo de outra maneira)
recostado no sofá, inerte, frio, os olhos vidrados, com a palidez da morte, toda no
semblante, enquanto que, inclinado amorosamente sobre aquele meu cadáver e
cortando o ar em todas as direções com suas ossudas mãos amareladas, achava-se a
bizarra silhueta do yama-booshi, em direção de quem, naquele momento, sentia o
mais raivoso e insaciável ódio... Assim, quando ia, em pensamento, saltar sobre o
infame charlatão, meu cadáver, os dois anciães, o recinto inteiro, pareceram vibrar e
vacilar, flutuando, distanciando-se de mim rapidamente; em meio de um resplendor
avermelhado. Logo rodearam-me umas formas grotescas, vagas, repugnantes. Ao
fazer, enfim, um supremo esforço para dar-me conta de quem era eu realmente
naquele instante, pois que assim via-me separado brutalmente de meu cadáver, um
denso véu de obscuridade informe caiu sobre o meu ser, extinguindo minha mente
sob um negro pano funerário...

IV - VISÃO DE HORRORES

Onde estou? Que me acontece? perguntei a mim mesmo, ansiosamente, tão logo
tornei a achar-me na posse de meus sentidos (a cabo de um tempo cuja duração ser-
me-ia impossível precisar), conscientizando-me, com surpresa, de que me movia
rapidamente para a frente, ao mesmo tempo que experimentava uma rara e estranha
sensação de nadar numa água tranquila, sem esforço nem dificuldade alguma,
rodeado de todos os lados pela mais completa obscuridade. Dir-se-ia que vogava ao
longo de uma interminável galeria submarina, cheia de água; de um terreno
compacto, ao mesmo tempo que perfeitamente penetrável, ou de um ar não menos
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sufocante e denso que a própria terra, embora nenhum daqueles elementos me
molestasse, ao mínimo, em minha desesperada marcha de projétil humano lançado
para o desconhecido... enquanto ainda sonhava com o eco daquela última frase:
"desejo saber as razões pelas quais minha querida irmã guarda tão prolongado
silêncio para comigo que... " Porém, de tantas palavras que compunham aquela frase,
somente a de "SABER" perdurava angustiosa em meu ouvido, vindo a mim qual
criatura vivente que com isso me obcecasse.
Outro movimento mais rápido e involuntário, outro novo mergulho, naquele tão
informe quanto angustioso elemento, e eis-me aqui, em pé, realmente em pé, dentro
do solo, comprimido por todos os lados, numa terra compacta e que, todavia, se
mostrava aos meus sentidos de perfeita transparência. Quão absurda, quão
inexplicável situação! um novo instante de suprema angústia e eis-me agora - horror
dos horrores! - com um negro ataúde estendido sob meus pés, um modesto caixão de
pinho, derradeiro leito de um infeliz, que não era homem de carne, mas um
repugnante esqueleto, deslocado e mutilado, qual vítima de uma nova Inquisição,
enquanto aquela voz, minha e ao mesmo tempo não minha, repetia a eterna lenga-
lenga de "...saber as razões pelas quais..." soando junto a mim, porém como provinda,
não obstante, da mais longínqua distância e, despertando, em minha mente, a ideia
de que em todas aquelas intoleráveis angústias não tinham levado tempo algum, pois
estava pronunciando, entretanto, as mesmas palavras com as quais, em Kioto ao lado
do yamabooshi, principiava a formular meu desejo de saber o que acontecia, naquela
oportunidade, à minha pobre irmã.
Súbito, aqueles informes e repugnantes restos principiaram a revestir-se de carne
e a recompor-se no mais estranho dos retornos retrospectivos, até reintegrar o
aspecto normal de um homem cuja fisionomia, ai!, era-me por demais conhecida, pois
que representava, nada menos, que o marido de minha pobre irmã, a quem tinha
tanto amado, porém a quem, em meio da maior indiferença, via agora destroçado,
como se acabasse de ser vítima de um acidente cruel.
- Que ocorreu contigo, infeliz? tratei de perguntar-lhe.
No inexplicável estado em que me achava, nem bem formulava mentalmente
uma pergunta qualquer, a resposta se me apresentava instantaneamente como em
um panorama retrospectivo. Vi, pois, assim, no ato, detalhe por detalhe, todas as
circunstâncias que rodearam a morte de meu desditoso Karl, a saber: que o chefe da
fábrica na qual, cheio de robustez e de vida, ele trabalhava, tinha trazido da América,
e montado, uma monstruosa máquina de serrar madeiras; que este para apertar uma
porca, ou examinar o motor, tinha tido um momento de descuido e fora colhido pelo
jogo do volante, atirado, feito em pedaços antes que os companheiros pudessem
correr em seu auxílio... Morto, triturado, transformado em horrível amontoado de
carne e sangue o que, entretanto, não me causava a mais ínfima emoção, como se eu
fosse de mármore!
Em meu macabro, embora indiferente pesadelo, acompanhei o cortejo fúnebre.
Detivemo-nos na casa da família, e como se se tratasse de outro que não eu,
presenciei impassível a cena da chegada da espantosa notícia em seus menores
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detalhes; ouvi o grito de agonia de minha irmã enlouquecida, percebi o golpe surdo de
seu corpo, caindo pesadamente sobre os restos de seu esposo e até ouvi pronunciar
meu nome. Porém não creiam que o compreendia, como de costume, mas muito mais
intensamente, pois que podia acompanhar com a mais impassível das curiosidades
indiscretas o estertor e a perturbação instantânea daquele cérebro, ao ocorrer a cena;
o movimento vermiforme e agigantado das fibras tubulares; a mudança fulgurante de
coloração do encéfalo e a mutação de toda a matéria nervosa, desde o branco ao
escarlate, ao vermelho-escuro e ao azul: um relâmpago lívido e fosfórico seguido de
completa obscuridade, no âmbito da memória, como se aquela fulguração, surgida da
tampa do crânio, se alargasse, desenhando um contorno humano duplicado,
desprendido do corpo inerte de minha irmã, o qual se ia distendendo o esfumando,
enquanto eu dizia a mim mesmo:
"Isto é a loucura; a incurável loucura em vida, pois que o princípio inteligente, não
só está extinto, temporariamente, como acaba de abandonar, para sempre, o
tabernáculo craniano, dele arrojado pela força terrível da repentina emoção" ... "O
laço entre a essência animal e divina acaba de romper-se", disse a mim mesmo,
enquanto que, ao ouvir o termo "divino" tão pouco familiar em mim, "meu
Pensamento" pôs-se a rir... ao mesmo tempo que continuavam ressoando, como no
primeiro momento, o final de minha frase inacabada... "saber as razões pelas quais
minha querida irmã guarda tão..."
Ao conjurar minha inacabada pergunta, a cena reveladora continuou. Vi a mãe,
minha própria irmã, convertida numa infeliz idiota no manicômio da cidade, e seus
sete filhos menores em um asilo, enquanto os meus prediletos, o rapaz de quinze
anos e a mocinha de quatorze, punham-se a serviço como criados. O capitão de um
navio mercante levara meu sobrinho e uma velha hebréia adotara a pobre menina.
Eu prosseguia, anotando em minha mente todos aqueles horripilantes detalhes,
com uma indiferença e sangue frio pasmosos. A mesma ideia de "horrores", deve-se
entender como algo ulterior, pois que eu não sentia, em verdade, horror algum, nem
experimentei, durante toda aquela visão, a mais leve noção de amor ou de piedade,
porque meus sentimentos pareciam paralisados, abolidos, como os sentimentos
externos... Somente ao voltar a mim foi que pude dar-me conta, em toda a sua
enormidade, daquelas perdas irreparáveis, e por isso confesso que não pouco do que
sempre negam obstinadamente, via-me admitindo em vista de tão grandes
experiências. Se alguém me houvesse dito antes que o homem podia atuar fora de
seu corpo, pensar fora de seu cérebro e ser transportado mentalmente a milhares de
léguas de distância de sua carne, por meio de um poder incompreensível e
misterioso, imediatamente eu o houvera considerado um louco - e, sem embargo,
este louco sou eu! Dez, cem, mil vezes durante o resto de minha miserável existência,
passei por semelhante vida, fora de meu corpo. Hora funesta foi aquela em que, pela
primeira vez, foi despertada em mim tão horrível poder, pois já nem me resta o
consolo de poder atribuir à delírio de loucura, tais visões de acontecimentos
distantes!... Se um louco vê o que não existe, minhas visões, ai! resultaram, pelo
contrário, infalivelmente exatas, para desgraça minha.
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Mas, prossigamos com minha narração.
Apenas havia visto minha infeliz sobrinha em seu albergue israelita, quando
recebi um segundo choque da mesma natureza que o primeiro que me tinha impelido
e feito vogar através das entranhas da Terra. Abri novamente os olhos e encontrei-
me no mesmo ponto de partida, fixando casualmente o olhar nos ponteiros do
relógio que marcavam, mistério absurdo!, cinco e sete minutos e meio... Todas as
minhas espantosas experiências se tinham desenrolado pois, em somente meio
minuto!
Todavia, esta mesma noção do brevíssimo instante transcorrido entre o
momento em que olhei o relógio, ao tomar o espelho das mãos do yamabooshi, e
aquele outro momento de meio minuto depois, é também um pensamento posterior.
Ia eu entreabrir os lábios para continuar rindo-me do yamabooshi e de sua
experiência, quando a lembrança completa de quanto acabava de ver fulgurou, qual
vívido relâmpago, em meu cérebro. Um grito de desespero supremo escapou-se de
meu peito e senti como se o mundo inteiro desabasse sobre minha cabeça, num caos
de ruína e desolação. Meu coração já pressentia o destino que me aguardava, e um
fúnebre manto de tristeza caiu fatal sobre mim para todo o resto de minha vida...

V - A ETERNA DÚVIDA

Momentos depois do que acabo de contar, experimentei uma reação tão


repentina, como repentino foi meu pesar. Uma formidável dúvida, um furioso desejo
de negar o que tinha visto, assaltou-me, tratando de considerar o assunto como
simples sonho, insubstancial e vão, filho de meu nervosismo e de meu excesso de
trabalho. Sim, aquilo não era mais que um falaz reflexo, uma estúpida ilusão
sensitiva, uma anomalia de minha debilidade mental, então surgida.
- De outro modo, pensava, como pude passar em revista os horríveis e distante
panoramas, em apenas meio minuto? Só num sonho podem dar-se por
completamente abolidas as noções básicas do tempo e do espaço. O yamabooshi
nada tem que ver com semelhante pesadelo de horrores. Não fez, por acaso, senão
recolher os próprios clichês de meu cérebro perturbado, usando, casualmente, uma
bebida infernal, segredo dos da seita; privou-me do conhecimento durante alguns
segundos, para sugerir esta visão monstruosa. A teoria moderna relativa ao sonho e
à rápida excitação dos gânglios cerebrais, dão explicação suficiente a quantas
anormalidades acabava de experimentar. Fora, pois, néscios temores! Amanhã
mesmo partirei para a Europa!
Este insensato monólogo, eu o formulei em voz alta, sem o mínimo olhar de
respeito para o bonzo, nem sequer para o yamabooshi que hierático em sua notável
atitude, parecia ler tranquilamente em meu íntimo, com um silêncio cheio de
dignidade. O bonzo, de sua parte, irradiando a mais compassiva simpatia,
aproximou-se de mim, como teria feito com uma criança enferma, e com lágrimas
nos olhos, disse-me, estreitando as minhas mãos:
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- Pelo que mais amas, amigo meu, não deixes o povoado sem antes ser
purificado do impuro contato com os daij-dzins, ou espíritos inferiores, cuja
intervenção foi necessária para conduzir tua alma inexperiente até a remota região
que ansiavas ver. Não percas, pois, tempo, filho meu; fecha a entrada de tão
perigosos intrusos ao teu EU INTERIOR e faça que para isso, em seguida, te purifique
o santo Mestre.
Nada há tão surdo à razão como a cólera uma vez desatada. A "seiva do
raciocínio" não podia, naquele transe, "apagar o fogo da paixão" - bem ao contrário,
esta última aquecida ao rubro-branco, já sentia verdadeiro ódio contra o venerável
ancião e não podia perdoar-lhe a ingerência no que acontecera.
Assim, pois, aquele doce amigo, cujo nome não posso pronunciar hoje sem
emoção, recebeu a mais acre e dura repulsa por suas frases, como protesto contra a
ideia de que eu nunca pudesse considerar a visão que havia tido senão como simples
sonho e, portanto, o yamabooshi como um grande impostor.
- Partirei amanhã, mesmo que seja para perder, com isso, minha vida! insisti
furiosamente.
- ... Mas te arrependerás por toda a vida se antes não fizeres com que o santo
asceta feche, uma por uma, todas as entradas, hoje abertas aos intrusos daij-djins,
os quais, ao contrário, não tardarão a dominar-te por completo - prosseguiu,
insistindo o bonzo.
Não o deixei continuar, bem ao inverso brutal e desrespeitoso, pronunciei não
sei que frase; relativas ao pagamento que devia dar ao yamabooshi, por sua
experiência comigo, ao que o bonzo replicou com dignidade régia:
- O santo despreza toda a recompensa. Sua Ordem é a mais rica do mundo, pois
que seus membros, por se acharem acima de todos os desejos terrenos, nada
necessitam!... E acrescentou: - Não insultes, assim, o homem compassivo que, por
mera piedade para com tuas dores, prestou-se de bom grado a te livrar de tua
tortura mental.
Tudo em vão. O espírito de rebeldia se havia apoderado de mim, em termos tais
que já era impossível dar ouvidos a palavras tão cheias de sabedoria. Por sorte, ao
volver a cabeça para prosseguir em meus ataques raivosos, o yamabooshi havia
desaparecido.
Oh! quão estúpido eu era! Cego à evidência, porque não reconheci o sublime
poder do santo asceta? Por que não vi que, ao ele desaparecer, fugia para sempre a
paz de minha vida?... O fero demônio do ceticismo, a incrédula negação sistemática
de tudo quanto por meus próprios olhos havia visto obstinando-me, sem embargo,
em crê-la néscia fantasia, já eram mais poderosos que qualquer outra força de meu
ser.
- Devo, acaso, crer com a caterva dos supersticiosos e dos débeis que, acima
deste mero composto de fósforo e outras matérias, haja algo que possa fazer-me ver
independentemente de meus sentidos físicos? Dizia-me, acrescentando: - Nunca!
Crer nos daij-djins de meu importuno amigo equivaleria a admitir, também, as
chamadas inteligências planetárias pelos astrólogos, e o que os deuses do Sol, de
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Júpiter, de Saturno ou de Mercúrio, e demais espíritos que guiam as esferas de seus
mundos, preocupam-se também com. os mortais.
Tamanho absurdo! criaturas invisíveis, arrastando-me pelo âmbito de seus elementos,
é um insulto à razão humana: uma inadmissível miscelânea de loucas superstições.
Assim, desvairava eu, ante o bonzo, porém sua paciência inalterável superava, todavia,
meus furores e, uma vez mais, insistiu para que me submetesse à cerimônia da purificação
a fim de evitar horríveis acontecimentos futuros.
- Jamais! gritei exasperado e parafraseando Richter, acrescentei: - Prefiro morar na
atmosfera rarefeita de uma sã incredulidade do que nas nebulosidades da néscia
superstição. Porém, como não posso prolongar minha dúvidas, partirei para a Europa no
primeiro correio,
Semelhante determinação acabou de desconcertar meu bonzo.
- Amigo de terra estranha! exclamou. Oxalá não tenhas que te arrepender tardiamente
de tua cega obstinação. Que Kwan-Ou, ou o Santo Uno e a Deusa da Misericórdia te
protejam contra os djins! pois desde o momento em que rechaças a purificação do yama-
booshi, ele é impotente para proteger-te contra as más influências evocadas por tua
incredulidade. Permita, ao menos nesta hora solene, a um ancião que te quer bem, ensinar-
te algo que todavia, ignoras! Saiba que, a menos que aquele venerável mestre (o qual para
aliviar-te de tuas dores, abriu as portas do santuário de tua alma) possa, com a purificação,
completar sua obra, tua vida será tão espantosa que não merecerá a pena de ser vivida.
Abandonado, assim à mercê de forças poderosas, sentir-te-ás perseguido por elas e
acossado até a loucura. O perigoso dom da clarividência realiza-se bem, pela própria
vontade, por aqueles para os quais a Mãe da Misericórdia já não tem segredos; tratando-
se, ao contrário, de principiantes como tu, não se pode alcançar senão por mediação dos
djins aéreos, espíritos da Natureza que, embora inteligentes, carecem do divino dom da
compaixão, porque não têm alma como nós. Nada tens que temer deles, em verdade, o
arahat ou adepto que já tenha se submetido a semelhantes criaturas, fazendo-as seus
submissos servidores, porém que necessita de tamanho poder não é senão um escravo das
mesmas. Reprime teu ignorante orgulho e tuas ironias e saibas que durante visões como as
tuas, o daij-djin tem o vidente completamente sob seu poder, e este vidente, durante todo
o tempo da visão astral não é o mesmo - já não é seu próprio e imanente ser, apenas
participa, por assim dizer, da natureza de seu guia, o qual, nos momentos em que dirige sua
visão interna, guarda sua alma em vil prisão, convertendo-a em um ser como ele, isto é, em
um ser sem alma, despojado de sua divina luz espiritual e, portanto, crescendo da
maturidade de toda a emoção humana, tal como o temor, a piedade e o amor.
- Já basta! interrompi exasperado, ao recordar com estas últimas palavras a
indiferença estranha com que, "em minha alucinação", havia presenciado a catástrofe de
meu cunhado, o desespero de minha irmã e sua repentina loucura. Se sabias isto, por que
me aconselhaste experiências tão perigosas?
- Ela ia durar tão somente alguns segundos e, dela, mal algum adviria se houvesses
cumprido a promessa de submeter-te depois à purificação. Eu desejava unicamente teu
bem, porque meu coração despedaçava-se ao ver-te sofrer, dia após dia; e não ignorava
que a experiência, dirigida por alguém que sabe, é inofensiva, somente sendo perigosa
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quando se desobedece àquela precaução. O "Mestre de Visão", aquele que abriu uma
entrada em tua alma, é quem tem que fechá-la logo, com o selo da Purificação, contra
intrusões ulteriores.
- O "Mestre de Visão"! Dirias melhor, Mestre da Impostura!...
Tão dolorosamente intensa foi a expressão de pesar que se refletiu no semblante do
bonzo, ao ouvir este último insulto ao seu guia que, levantando-se e saudando-me
cerimoniosamente, afastou-se de mim com estas simples palavras:
- Pois bem, adeus!

VI - PARTO, PORÉM NÃO SOZINHO

Poucos dias após a cena, embarquei para a Europa, sem voltar a ver o bondoso
bonzo. Sem dúvida estava ofendido por minhas impertinências e insultos. Que
estranha fúria, com efeito, apoderava-se de mim e obrigava-me, quase sem poder
remediar, a insultar o santo asceta?... Indubitavelmente, mais que uma força exterior
e insensível. que me dominasse, era meu cético amor próprio que assim me
impulsionava; e tão seguro achava-me, realmente, acerca das imposturas do
yamabooshi, que de antemão já saboreava meu triunfo sobre ele ao voltar para os
meus semanas depois e achá-los sãos e felizes.
Mas, ai! não fazia uma semana que me encontrava a bordo, quando a venda da
incredulidade começou a cair tardiamente, de meus olhos.
Desde o memorável dia da experiência do espelho, provava em todo o meu ser
inexplicável mudança que, a principio, atribuí as preocupações acerca dos meus
parentes, e com as quais estava lutando há vários meses. Durante o dia, encontrava-
me abstrato, como abobado; perdendo de vista, por alguns minutos, toda a realidade
do que me rodeava. Minhas noites eram intranquilas meus sonhos tristíssimos e até
com os horrores de pesadelos angustiosos. Embora bom navegador, com tempo
extraordinariamente belo, sentia vago enjoo e, de quando em quando, observava que
as fisionomias familiares dos passageiros adquiriam, em tais momentos, as mais
grotescas formas de caricaturas. Assim, certa vez Max Guinner, um jovem alemão, a
quem conhecia há tempo, pareceu transformado, de repente, em seu velho pai, a
quem havíamos enterrado três anos no cemitério de nossa colônia. Conversávamos
na coberta, acerca do finado e de seus negócios, quando a cabeça de Max se me
deparou rodeada de uma nebulosidade estranha e cinzenta que, condensando-se
gradualmente em torno de seu rosto saudável e corado, deu a ele, logo, toda a
rugosa aparência daquele a quem outrora eu mesmo sepultara.
Outra vez, enquanto o capitão falava de um ladrão malaio, para cuja captura
havia contribuído, vi a seu lado a repugnante e amarelada cara do homem que
correspondia à descrição do marujo; naturalmente, guardei silêncio a respeito de
tamanhas alucinações, crendo-as devidas a causas visíveis de que fala a Medicina, eis
por que se iam fazendo mais frequentes dia a dia.
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Certa noite, senti-me despertar bruscamente por um penetrante grito de
angústia... Era a voz de uma mulher no paroxismo de seu desespero impotente.
Despertando, saltei num aposento que me era completamente desconhecido, onde
uma adolescente, quase uma menina, lutava desesperadamente contra um homem
de meia idade e de força hercúlea, que a tinha surpreendido enquanto dormia, ao
mesmo tempo que, atrás da porta, fechada à chave, observei uma velha de sentinela,
em cuja expressão infernal reconheci imediatamente a judia que tinha adotado
minha sobrinha, como vira no sonho de Kioto, pelas artes do yamabooshi. Ao voltar
ao meu estado normal e dar-me conta de minha situação, percebi, oh! cruel
desespero!, que a vítima da brutal afronta não era senão minha própria sobrinha.
Nem mais nem menos que em minha primeira visão em Kioto, eu não sentia em
mim essa compaixão que nasce da simpatia com a desgraça de um ser amado, mas
apenas uma indignação varonil ante a afronta infligida a uma criatura desvalida.
Assim, precipitei-me ferozmente em seu socorro, saltando ao pescoço daquele ser
lascivo e bestial; porém, não obstante meu esforço raivoso, o homem continuou
como se eu não existisse. O rufião covarde, exasperado com a resistência da donzela,
levantou irritado seu vigoroso braço e com um terrível soco sobre os dourados cachos
de sua cabecinha, jogou-a ao chão. Saltei, então, sobre a lúbrica besta, prorrompendo
num rugido de tigre que defende seus filhotes, tratando de segurá-lo entre minhas
garras; porém, horror dos horrores!, notei, então, pela primeira vez, que aquele meu
EU não era senão uma sombra vã!
Minhas imprecações e gritos despertaram todos os passageiros, que os
atribuíram a um pesadelo, de modo que não tentei confiar a ninguém o que me
acontecia. Mas, desde aquele infausto dia, minha vida não foi senão uma
interminável série de torturas porque, apenas cerrava os olhos, representava-se-me
com singular viveza o espantoso quadro de dores, desastres e crimes passados,
presentes e futuros, como se um demônio obsessor se comprazesse em oferecer-me
o macabro panorama de tudo quanto de horripilante, bestial ou maligno existe neste
desprezível mundo. Nunca um raio de felicidade, beleza ou virtude desceu, em troca,
até o lôbrego cárcere de meu infortúnio mental, senão lascívias, traições e crueldades
sem fim, em interminável caleidoscópio, como consequência das paixões humanas
desencadeadas algures.
Será tudo isto - disse a mim mesmo, por fim - o cumprimento fatal do vaticínio
de meu amigo bonzo? Estará minha alma real e efetivamente sob o ímpio domínio
dos cruéis daij-djins?... Mas não - respondi a mim mesmo logo, tratando em vão de
recobrar a tranquilidade perdida. Isto não é senão uma anormalidade passageira que
cessará tão logo me veja em Nuremberg e me convença do infundado de meus
absurdos temores. O próprio fato de que minha imaginação não me oferece senão
cenas macabras, demonstra que isso carece de toda a realidade. Mas, então,
acreditei estar ouvindo as palavras do bonzo, quando me dizia:
- O homem tem dois planos únicos de visão: o augusto plano do amor
transcendental e as aspirações espirituais em direção de uma eterna luz e o
tempestuoso mar de paixões humanas, em cuja luz inferior se banham os transviados
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dajj-djins.

VII - A ETERNIDADE É UM SONHO FUGAZ!

Outrora, as absurdas crenças de certas pessoas, com respeito aos espíritos bons
e maus, pareciam-me incompreensíveis, porém, a partir, ai!, das dolorosas
experiências daqueles momentos, passei a compreendê-las.
Para robustecer, não obstante, minha incredulidade nata, procurava evocar em
minha mente o quanto me era dado: as lembranças de minhas leituras anti-
supersticiosas; o judicioso raciocinar de Hume; as áticas mordacidades sarcásticas de
Voltaire e aquelas passagens de Rousseau, onde chamava a superstição de "a eterna
perturbação da sociedade". - Para que afetarmo-nos com as fantasmagorias do sonho
- dizia com eles - quando logo comprovamos sua completa falsidade, em vigília? por
que, como diz o clássico, hão de assustar-nos com coisas que não existem? conceitos
cujo sentido vemos?
Um dia em que o velho capitão relatava-nos histórias supersticiosas de
marinheiros, um enfatuado e pedante missionário inglês recordou-nos aquela frase
de Fielding: "a superstição dá ao homem a estupidez de um animal", porém, no
mesmo instante em que dizia isso, eu o vi vacilar de modo estranho e deter-se
bruscamente, enquanto eu, que permanecia afastado da conversação geral, acreditei
ler claramente na auréola de vibrantes radiações, que há muitos dias percebia sobre
todas as cabeças, as palavras com que Fielding concluía sua proposição: "e o ceticismo
o torna louco"...
Tinha já ouvido falar muitas vezes, sem admiti-la, a afirmação de que, aqueles
que pretendem gozar do duvidoso privilégio da clarividência, veem os pensamentos
das pessoas presentes "como retratados em seu próprio aura". Eu já, paradoxo
absurdo!, via-me dotado, com efeito, da faculdade desagradabilíssima de poder
comprovar, por mim, a exatidão do odioso fato, acrescentando um novo conjunto de
horrores à minha ridícula vida, vendo-me forçado a ter que ocultar, aos demais, tão
funestos dons, como se se tratasse de um caso de lepra. Meu ódio, então, contra o
yamabooshi e o bonzo não tinha limites, pois aquele, sem dúvida alguma, havia
tocado com suas nefastas manipulações alguma secreta mola de meu cérebro
fisiológico e posto em ação alguma faculdade das comumente ocultas na constituição
humana. .. E o maldito farsante japonês havia injetado tal praga em mim mesmo!
Praticamente de nada servia minha impotente cólera. Ademais, vogávamos já
em águas europeias e, dali a poucos dias, ancoraríamos em Hamburgo, onde
cessariam minhas dúvidas e temores. Ainda quando a clarividência pudesse existir
em algum caso, tal como na leitura dos pensamentos, no ver as coisas à distância, do
modo pelo qual eu o havia sonhado sob a sugestão do yamabooshi, era demasiado
admitir, dentro das possibilidades humanas... Sopesei todos estes tristes raciocínios
(meu coração parecia dizer que me enganava com eles), sentindo como se minha
definitiva condenação estivesse próxima, com sofrimentos tão torturantes que
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intensificavam perigosamente minha prostração física e mental.
Na mesma noite de nossa entrada em Hamburgo, assaltou-me um sonho cruel.
Parecia que eu mesmo me via morto; meu corpo jazia rígido e inerte e, ao mesmo
tempo que minha consciência dava conta disso, parecia preparar-se também para a
sua extinção. Mas como tinha aprendido que o cérebro conservava o calor vital
durante uns minutos mais que os órgãos periféricos, aquilo que não me podia causar
estranheza. Assim, no crepúsculo do grande mistério, já sem dúvida à borda da
tenebrosa cova "da qual nenhum mortal pode regressar, uma vez franqueada", meu
pensamento, envolto nos restos de uma vitalidade que escapava de instante a
instante ia extinguindo-se como uma chama, assistindo ao mesmo tempo a seu
aniquilamento, porém tomando o meu EU nota daquelas minhas últimas impressões,
com o apressuramento de quem sabe que lhe vai cair o negro manto do nada sobre
a consciência, para ter o gozo de sentir todo o grande triunfo de minhas convicções
relativas à completa e absoluta cessação de ser. Por momentos, tudo se ia
escurecendo ao meu redor. Enormes sombras, fantásticas e informes, desfilavam
ante meu desvanecido olhar: primeiro lentas, logo aceleradas e, finalmente, girando
vertiginosamente em torno de mim, qual em terrível dança macabra e, uma vez
alcançado seu objetivo de intensificar as trevas, abrindo um como indefinido espaço
de vazios e impalpáveis negrumes, um insondável oceano de eternidade, pelo qual,
ilimitado, deslizava o tempo, essa fantástica progênie do homem, sem que jamais
consiga acabar de cruzá-lo...
Não foi em vão que Catão disse que os sonhos não são mais do que o reflexo de
todos os nossos temores e esperanças. Como em estado de vigília jamais temi a
morte, ante a evidência de meu afã, senti-me tranquilo, até consolado de que o
término de minhas torturas mentais se avizinhasse. A angústia, aquela angústia, já se
havia tornado intolerável, e se, como disse Sêneca, a morte não e senão a cessação
de tudo quanto fomos antes - valia mais morrer do que suportar durante tantos
meses tamanha agonia.
- Meu corpo já está morto - dizia de mim para mim - e meu EU, minha
consciência, que é o que de mim permanece por alguns momentos mais, prepare-se
já para segui-lo; minhas percepções mentais, enfraquecendo-se, ir-se-ão apagando,
segundo por segundo, até que o anelado esquecimento envolva-me por completo
em seu sudário. Vem, pois, doce e consoladora morte; teu sonho sem sonhos é um
porto de paz e de refúgio, em meio das borrascas da vida... ! Ali, em seu regaço
eterno, descançarei para sempre, e tu, pobre corpo, adeus! Gostosamente te
abandono, já que me tens dado mais dores do que prazeres na vida!
Enquanto eu entoava este hino à morte libertadora, examinava-a,
concomitantemente, com estranha curiesidade, não me podendo maravilhar menos,
sem embargo, de que minha ação cerebral continuasse sendo tão vigorosa. Meu
corpo, desaparecido de minha vista por alguns segundos, reaparecia uma e várias
vezes com sua face cadavérica... De improviso, experimentei um violentíssimo desejo
de saber quanto duraria o complicado processo de minha dissolução, antes que o
cérebro, estampando seu último sinete, deixasse-me inerte. Através das, para mim
51
transparentes paredes de meu crânio, podia contemplar e até tocar minha massa
cerebral. Com que mãos? é-me impossível precisá-lo; porém o contato de sua fria e
viscosa matéria, produzia-me profundíssima impressão. Com um terror indizível,
compreendi que meu sangue se havia congelado por completo e que, alterada a íntima
constituição de minhas células cerebrais, já se impossibilitava, de modo absoluto, todo
o seu funcionamento... Ao mesmo tempo, a mesma, ou maior obscuridade, rodeava-
me, impenetrável, em todas as direções; além disso, porém, à minha frente, e fosse
qual fosse a direção de meu olhar, via um gigantesco relógio circular, cuja caraça
enorme e branca destacava-se de um modo sinistro sobre aquela escura moldura que o
rodeava. Seu pêndulo oscilava com a costumeira regularidade, de um lado para outro,
como se pretendesse divisar a eternidade, assinalando os ponteiros (coisa bem
extraordinária!) as cinco e sete minutos, quer dizer, a hora precisa em que começara, em
Kioto, a minha tortura!
Mal notei essa terrível coincidência, quando horrorizado, do modo mais pavoroso,
senti-me arrastado de maneira idêntica a outrora: nadando, vogando veloz por baixo
do solo, no mesmo meio viscoso e paradoxal. Assim, vi-me outra vez ante a tumba,
onde os despedaçados restos de meu cunhado jaziam; presenciei logo,
retrospectivamente, sua infeliz morte; a cena da recepção da notícia fatal por minha
irmã, com o aditamento de sua loucura - tudo sem perder o mínimo detalhe.
Para maior espanto, desta vez, ai!, já não estava escudado por aquela tranquila
indiferença de pedra com que vi pela primeira vez a cena, a não ser que minhas
torturas mentais, minha ansiedade, meu desespero, em meio daquele ciclone de
morte, já não tinham limites... Oh! e como sofria com aquele acúmulo de horrores
infernais acrescido do pior de tudo, que era a desesperada realidade de que meu corpo
já estava morto!...
Nem bem se fez uma leve pausa de alívio, tornei a ver, de igual modo a enorme
esfera com seus ponteiros colossais, marcando cinco e sete minutos! porém, antes que
houvesse tido tempo de dar-me conta exata de tal mudança, o ponteiro começou a
mover-se lentamente para trás, detendo-se no sétimo minuto, para sentir-me outra e
outra vez forçado a padecer, interminavelmente, a repetição exata e implacável das
mesmíssimas cenas espantosas que pareciam não terminar jamais.
Ao mesmo tempo, minha consciência parecia triplicar-se, quintuplicar-se,
decuplicar-se, podendo viver e sentir, no mesmo lapso de tempo e em meia dezena de
lugares, ao mesmo tempo, desfilando ante mim múltiplos acontecimentos de sua vida,
em diferentes épocas de minha vida, porém, predominando sobre todas, minha
experiência espiritual de Kioto. À maneira da famosa fuga de D. Juan de Mozart,
destacam-se dilacerantes as notas de desesperação de Elvira, sem que por isso se
entrecruzem ou confundam-se com a melodia do minueto, com o canto de sedução ou
com o coro; da mesma maneira, passei, uma e mil vezes, mesclada com as aflições das
demais cenas, por aquela indescritível agonia de Kioto, ouvindo as inúteis exortações
do bonzo, ao mesmo tempo que se apresentavam (sem com isso confundirem-se)
múltiplas recordações: ora de minha meninice, ora de minha adolescência, ora de
meus pais, ora, enfim, daquele dia memorável em que salvara um amigo que se estava
52
afogando e ria-me de seu pai que me agradecia por haver salvo "sua alma" não
preparada ainda, sem dúvida, para dar contas a "seu Criador". Tudo isso,
supostamente, na consciência mais complicada e multiforme!
- Falai, falai de personalidades múltiplas, vós, professores de psicofisiologia! dizia-
me, em meio daquela tortura que haveria bastado para matar meia dezena de homens.
Falai, vós, orgulhosos e enfatuados com a leitura de milhares de livros!... Jamais
poderíeis explicar-me, não obstante a sucessão daquela horrorosa cadeia real, ao
mesmo tempo que sonhada, cujo desfilar parecia não ter fim. Não, embora minha
consciência se rebelasse contra certas afirmações teológicas, já não podia negar a
realidade do meu EU imortal... Qual é, pois, oh! Mistério!, tua insondável Realidade que
de tal modo conduz meu pensamento e minha imaginação, sem término conhecido e
com o corpo já morto? Poderá, acaso, ser certa essa doutrina da reencarnação, na qual
tanto porfiava o bonzo para que cresse? Por que não, se cada ano nasce, de uma
mesma e permanente raiz, uma nova folha e uma nova flor?
Nesse ponto, o fatídico relógio desapareceu enquanto a voz carinhosa do bonzo,
uma vez mais, parecia repetir: "No caso de terdes aberto somente uma vez a porta do
augusto Santuário de tua alma, terás que abri-la e cerrá-la uma e mil vezes durante um
período que, por mais curto que seja, parecer-te-á uma eternidade"...
Um instante depois, a voz do bonzo era afogada pela multidão de outras vozes na
coberta. Alagado em um suor frio, despertei. Estávamos em Hamburgo!

VIII - DESGRAÇAS A GRANEL

Meus sócios de Hamburgo apenas puderam reconhecer-me, tão enfermo e


mudado estava. Imediatamente parti para Nuremberg.
Meia hora depois de minha chegada, toda a dúvida relativa à verdade de minha
visão de Kioto havia desaparecido. A realidade era, se possível, pior do que aquela e,
daí por diante, estava condenado à vida mais infeliz. Podia estar seguro de que, com
efeito, havia visto um por um todos os detalhes da tragédia desalentadora: meu
cunhado despedaçado pelas engrenagens da máquina; minha irmã, louca e prestes a
morrer; minha sobrinha, a flor mais perfeita da Natureza, desonrada e num antro de
infâmia; os meninos pequenos, mortos num asilo, de uma enfermidade contagiosa e o
único sobrinho sobrevivente, ausente, em paradeiro ignorado. Todo um lar feliz,
aniquilado, restando somente eu, como triste testemunha disso, neste miserável
mundo de desolação, desonra e morte. A brutalidade do choque, o peso horrendo do
enorme desastre, fez-me cair desacordado, porém não sem antes ouvir estas cruéis
palavras do burgomestre:
- Se antes de partir de Kioto houvesses telegrafado às autoridades da cidade,
dando tua residência e intenção de regressar ao país para te encarregares da família,
teríamos podido colocá-la provisoriamente em outra parte, salvando-os, assim, de seu
destino; porém, como ignorássemos que as crianças tinham algum parente, somente
pudemos interná-los no asilo onde, por desgraça, sucumbiram...
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Este era o golpe de graça dado ao meu desespero. Sim, minha negligência matara
os meus pequenos sobrinhos! Se eu, em vez de aferrar-me a meu ridículo ceticismo,
tivesse seguido os conselhos do bonzo Tamoora e dado crédito à desgraça que, por
clarividência e clariaudiência, me tinha feito ver e ouvir o yamabooshi, aquilo se teria
podido evitar, telegrafando às autoridades antes de meu regresso. Talvez a censura de
meus semelhantes não me pudesse alcançar, porém, jamais, poderia escapar às
recriminações de minha própria consciência, nem a tortura de meu coração, em todos
os dias de minha vida. Foi aí, então, que maldisse minha pertinaz tranquilidade; a
negação sistemática dos fatos que eu mesmo havia visto e até minha destorcida
educação. O mundo inteiro não havia sabido dar-me outra...
Sobrepus-me à minha dor, num supremo esforço a fim de cumprir um último
dever para com os mortos e os vivos. Porém, uma vez tirada minha irmã do hospital,
trouxe para seu lado a filha para assisti-la em seus últimos dias (não sem obrigar a
infame judia a confessar seu crime), depois todas as forças abandonaram-me e, uma
semana apenas após minha chegada converti-me num louco delirante, sob a garra de
uma febre cerebral. Durante algum tempo flutuei entre a morte e a vida, desafiando a
perícia dos melhores médicos. Por fim, venceu minha robusta constituição e, com
grande pesar meu, declararam-me salvo. Salvo, sim, mas condenado a levar
eternamente, sobre meus ombros, a carga enfadonha da vida, sem esperança de
remédio na Terra e recusando crer em outra coisa mais senão na curta sobrevivência
da consciência, além-túmulo e com o aditamento insuportável da volta imediata
durante os primeiros dias de convalescença, daquelas inevitáveis visões, cuja realidade
já não podia negar, nem considerá-las, dali em diante, como "as filhas de um cérebro
ocioso, concebidas por louca fantasia" senão a fotografia das desgraças de meus
melhores' amigos! Minha fortuna era, pois, a de Prometeu acorrentado, e, durante a
noite, uma desapiedada e férrea mão conduzia-me à cabeceira da cama de minha
irmã, forçado a observar, hora por hora, o silencioso desmoronar do seu desgastado
organismo e a presenciar, como se dentro dele estivesse, os sofrimentos de um
cérebro desabitado por seu dono, e impossibilitado de refletir ou transmitir suas
percepções. Ainda havia algo pior para mim: era ter que olhar, durante o dia, o rosto
inocente e infantil de minha sobrinhazinha, tão sublimemente pura em sua própria
profanação, e presenciar, durante a noite (com a volta de minhas visões) a cena
sempre renovada de sua desonra. Sonhos de perfeita forma objetiva, idênticos aos
sofridos no vapor, e noite após noite repetidos ...
Algo, sem embargo, se havia transformado em mim, como a lagarta que,
metamorfoseando-se em crisálida, acaba por converter-se em mariposa - o símbolo
da alma; algo novo e transcendental havia brotado em meu ser (de seu antes
fechado casulo); já via, não só como origem e consequência da identificação de
minha natureza interna com a do daij-djin obsessor, mas pelo espontâneo
desdobramento de um novo poder pessoal e psíquico que aquelas criaturas infernais
tratavam de impedir, pensando que não pudesse ver nada elevado nem agradável.
Meu lacerado coração já era fonte de amor e simpatia para com todas as dores de
meus semelhantes, como se um coração novo pulsasse fora do coração físico,
54
repercutindo fortemente em minha alma separada do corpo. Assim, infeliz de mim!,
tive que esgotar o fel do sofrimento por haver rechaçado, em Kioto, a purificação
oferecida, purificação em que, tardiamente, já acreditava sob o jugo insuportável do
daij-djin.
Pouco falta de minha triste história. Minha pobre irmã, louca, pobre mártir,
faleceu por fim vítima de tuberculose; sua terna filha não tardou em segui-la.
Quanto a mim, já era um ancião prematuro de sessenta anos, em vez de trinta.
Incapaz de sacudir o jugo que me mantinha às bordas da loucura, tomei a resolução
heroica de voltar a Kioto, prostrar-me aos pés do yamabooshi, pedir-lhe perdão por
minha nescidade e não afastar-me de seu lado até que aquele espírito infernal, que
eu mesmo havia evocado e do qual minha incredulidade impediu de me separar,
fosse afugentado para sempre.
Três meses depois vi-me, novamente, em minha casa japonesa, ao lado do
venerável bonzo Tamoora Hideyeri, para que me conduzisse, sem perder um
momento, à presença do santo asceta... A resposta do bonzo encheu-se de estupor:
o yamabooshi havia abandonado o país sem que se soubesse seu paradeiro e,
segundo seu costume, não voltaria senão dentro de sete anos!
Ante tamanho contratempo, fui pedir ajuda e proteção a outros santos
yamabooshis, e, embora soubesse de sobra que em meu caso era inútil buscar outro
Adepto eficaz que me curasse, meu venerável amigo Tamoora fez quanto pôde para
remediar minha desgraçada situação. Tudo em vão! aquele verme roedor ameaçava
sempre acabar com minha razão e vida. O bonzo e outros santos varões de sua
comunidade convidaram-me a que me incorporasse a seu instituto, dizendo-me:
- Só aquele que invocou sobre ti o daij-djin é que tem o poder de afugentá-lo.
Nesse ínterim, a vontade e a fé firme nos nativos poderes inerentes à nossa alma é o
que te pode servir de lenitivo. Um "espírito" de tal perversão pode ser desalojado
facilmente de uma alma no início, porém se se deixar apoderar dela, como em teu
caso, torna-se logo quase impossível desarraigar tamanho ente infernal, sem pôr em
grande perigo a vida da vítima.
Agradecido, aceitei o que aqueles piedosos varões me propunham. Não
obstante, o demônio de minha incredulidade, tão arraigada em minha alma como o
próprio daij-djin, esforcei-me em não perder aquela última probabilidade de
salvação. Arranjei, pois, meus negócios comerciais. Apesar de minhas perdas, vi-me
surpreendido pois possuía uma fortuna regular, embora a riqueza, sem ninguém com
quem compartilhar já não tivesse atrativo algum para mim, porque, com o grande
Lao-Tsé, já tinha aprendido que o conhecimento, a distinção entre o que é real e o
que é ilusório, é a âncora de salvação contra os embates da vida. Assegurada uma
pequena renda, abandonei o mundo e incorporei-me ao corpo discente de "Os Mestres
da Grande Visão", num retiro tranquilo e misterioso onde, na solidão e no silêncio,
trago examinados mil profundos problemas da ciência e da vida, e lidos numerosos
volumes secretos da biblioteca oculta de Tzionene, mediante o que logrei o domínio
sobre certos seres do mundo inferior. Porém, não pude conseguir o grande segredo de
assenhoreamento sobre os funestos daij-djins. A chave sobre tão perigoso elementar
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só é possuída pelos mais altos iniciados daquela Escola de Ocultismo, pois é necessário
chegar antes à suprema categoria dos santos yamabooshis. Meu eterno e inato
ceticismo era sempre um obstáculo a grandes progressos, e, assim, em minha nova
situação serenamente ascética, os já conhecidos quadros se reproduziam, de quando
em quando, sem que eu o pudesse evitar, pelo que, convencido de minha inaptidão
para a condição sublime de um Adepto ou de um Vidente, desisti de continuar. Já sem
esperanças de perder por completo meu dom fatal, regressei à Europa, confinando-me
neste chalé suíço, onde minha infeliz irmã e eu tínhamos nascido, e de onde escrevo.
- Meu filho - tinha-me dito o nobre bonzo - não te desesperes. Considere como
uma simples consequência de teu Karma o que te sucedeu. Nenhum homem que se
tenha entregue ao assenhoreamento de um daij-djin pode jamais esperar alcançar o
estado de yamabooshi, Arahat ou Adepto, a menos que seja purificado
imediatamente. Como a cicatriz que toda a ferida deixa, a marca fatídica de um daij-
djin não pode apagar-se jamais de uma alma, até que esta seja purificada por um
novo nascimento. Não te desalentes, ao contrário, resigna-te com a desgraça que te
conduziu, mais ou menos tortuosamente, a adquirir certos conhecimentos
transcendentais, que de outro modo sempre haverias de desprezar. De tamanho
conhecimento não te poderá despojar nunca o mais poderoso daij-djin. Adeus, pois, e
que a Grande Mãe da Misericórdia te conceda sua proteção augusta e seu consolo...
Desde então, minha vida de estudioso anacoreta tornou muito mais espaçadas as
minhas visões; bendigo ao yamabooshi que me tirou do abismo de meu materialismo
primitivo. Mantive a mais fraternal das correspondências com o bonzo Tamoora
Hindeyeri, cuja santa morte, graças a meu funesto dom, tive o privilégio de presenciar,
a milhares de léguas, no mesmo instante em que ocorria.

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A FAÇANHA DE UM GOSAIN HINDU

Na Índia, como na China, no Japão e em outras partes do Oriente, é inegável que


existam jograis ou prestidigitadores, alguns dos quais superam com suas habilidades
tudo quanto conhecemos aqui no Ocidente. Porém estes jograis estão longe de
conseguir realizar os prodígios que executam os faquires, tais como o do crescimento
extraordinário da mangueira discutido pelo Dr. Carpenter, nestes termos: (1)
(1). Este caso é frequente. Aqui vai um outro relato semelhante tirado de
uma revista espiritualista: "O falecido Dr. B... , membro do Real Colégio de
Cirurgiões, de Londres, a quem me uniam os mais íntimos laços de amizade -
conta o Dr. F. Malibran em "Asclepios" - era um homem de dotes
excepcionais. Além de ocupar lugar muito destacado em sua profissão, havia
viajado longamente, em particular pela Índia, e conhecia vários idiomas
orientais. Era de trato agradável e caráter jovial, e se se lhe podia imputar
algum defeito eram os seus gostos raros e estrambóticos. Para ele, todo o
fantástico e misterioso tinha um encanto especial. Das paredes de seu
gabinete pendiam os quadros enigmáticos de Wiertz, os desenhos grotescos
de Blake e as incoerentes composições de Fusell. Quanto aos volumes que
formavam sua copiosa biblioteca, ali se podiam consultar tratados sobre
ciências cabalísticas, teosofia e espiritismo: Jacobo Bohme, Blavastsky,
Flammarion, Myers, etc. Entre as obras curiosas figuravam as narrações
inverossímeis de Poe, os contos humorísticos de Balzac e as novelas
fantásticas de Hoffmann.
Falando uma tarde sobre a Índia e as coisas extraordinárias que se
podem ver nesse país, relatou-me assim a façanha de um faquir:
Passeando uma tarde por um dos bairros mais pobres de Madras,
observei um desses faquires rodeado por um grupo de trinta ou quarenta
pessoas. O faquir percorreu com a vista o círculo de espectadores e,
calculando que eram suficientes, disse: "Meus irmãos, quero que me
obsequieis com uns tantos parahs (centavos) e terei, então muito prazer em
mostrar-vos a "Sorte da Mangueira". A maior parte das pessoas presentes
contribuiu com sua quota, e o faquir, muito contente com a coleta, colocou-
se, em seguida, no centro do grupo e iniciou seus preparativos. Tirou do
cinturão um caroço de manga e começou a cavar, com facão, um buraco no
solo. Enterrou logo o caroço em questão e tornou a tapar o buraco com terra.
Feita esta manobra, cobriu o lugar com um lenço e dando uns passos para
trás, cruzou os braços e levantou os olhos aos céus, murmurando uns tantos
encantamentos. Terminada a ladainha, levantou o lenço e apareceu uma
mudinha de manga, a qual foi tomando maiores dimensões até alcançar a
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altura de quase vinte pés. "Olhai, disse o faquir com um sorriso de satisfação.
Quão alta está a planta e quão formosa fruta pende dela! Vou trepar por seus
ramos e atirar-vos-ei umas saborosas mangas". Efetivamente, começou a subir
pela árvore até chegar aos ramos mais elevados, desaparecendo entre elas,
por completo. Todos nós, cheios de surpresa, esperávamos que o faquir
mostrasse a cara; porém, em lugar disso, a visão da folhagem se foi tornando
cada vez mais tênue e, como o faquir, terminou por desvanecer-se no espaço.
Como explicar esse fenômeno? Não posso absolutamente: ou fomos todos
vítimas de uma ilusão de ótica, ou o faquir nos hipnotizou e se escapou antes
que pudéssemos voltar de nosso estupor."
Já não falemos de outra arrepiante experiência dos "enterrados vivos",
ato de faquirismo que os europeus já trataram de imitar, ora com atos, como
o recente do "Palace Hotel", de Madri, ou como os do hindu Kapparu que, em
Sandouski (Estado de Ohio), hipnotizou uma jovem americana, Miss Florence
Gibson, enterrando-a viva a dois metros de profundidade, deixando-a oito
dias sepultada. A sensacional experiência foi levada a cabo perante três mil
pessoas. Miss Florence Gibson submeteu-se a ela desejando assegurar, com a
soma combinada, seu futuro e a velhice de sua mãe, a quem devia ser
entregue o tanto convencionado, se se desse o caso de ela não voltar à vida.
Conduzida a Cida Point Opera House, foi ali hipnotizada, posta em um
caixão e enterrada.
No oitavo dia, desenterraram o caixão e Miss Florence apareceu aos
médicos e espectadores num estado horroroso. Seu corpo estava rígido e frio,
seus lábios sem cor e suas roupas impregnadas de umidade. O hindu
empregou uma hora em suas lidas para devolver a vida àquele corpo inerte.
Por fim Miss Florence exalou um profundo suspiro; agitaram-se
convulsamente seus membros e os olhos abriram-se espantados. Salvo um
cansaço marcante, os médicos não acharam nenhuma outra irregularidade
nos movimentos respiratórios.
Miss Florence não experimentou sensação alguma, dentro do ataúde, e
narra sua ressurreição do seguinte modo:
"Tive a impressão de que caía de uma altura imensa e que era arrebatada
por uma catarata. Meus membros estavam rígidos e acreditava que se iam
quebrar. Parecia haver crescido algumas polegadas. Não voltaria a submeter-
me a esta experiência nem por um milhão".
"A maioria dos que visitaram a Índia asseguram que é, verdadeiramente, a
maior maravilha até então vista. Que uma robusta mangueira cresça, de pronto, até
seis polegadas de altura num pedaço de terra cheio de erva, não manipulado nem
visitado antes pelo faquir, depois de coberto com um cestinho emborcado e que a
mesma árvore de seis polegadas até seis pés, debaixo de cestos cada vez maiores e
no intervalo de apenas meia hora, é coisa prodigiosa que deixa bem para trás as mais
vistosas prestidigitações da própria médium feminista Miss Nidul".
A propósito do caso que antecede, seja-me permitido narrar outro, de minha
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experiência pessoal quando das viagens que fiz pelo Oriente misterioso.
Achava-me em Carapuz, caminho de Benares - a cidade santa dos hindus -
quando roubaram de uma senhora minha amiga todo o conteúdo de sua maleta:
joias, roupas e até um livro de anotações, com o diário que, esmeradamente, há três
meses fazia. Tudo havia desaparecido misteriosamente do fundo de sua maleta, sem
que a fechadura fechada, bem como os lados da maleta, apresentassem o menor
vestígio de violação.
Havia decorrido, pelo menos, várias horas desde o desaparecimento dos
objetos, um dia e uma noite quiçá, pois foi o que havíamos empregado em visitar as
ruínas vizinhas ocasionadas pelas hostes de Nana Sahib, em represália aos ingleses
invasores.
A primeira ideia que ocorreu, naturalmente, à minha amiga, foi a de recorrer à
Polícia, e o primeiro pensamento meu, pelo contrário, foi o de pedir ajuda a algum
santo homem, ou gosain, verdadeiros sabe-tudo, ou em sua ausência a um jogral.
Porém os prejuízos de nossa civilização prevaleceram, como sempre, na decisão de
minha companheira, que perdeu mais de uma semana em pesquisas inúteis e em
idas e vindas à chabutara, ou chefatura de polícia hindu. Já cansada, concordou, por
fim, com meus desejos e procurou-se, então, um gosain que chegou logo a nosso
bangalô, situado à margem direita do rio, dominando todo o panorama do Ganges.
A experiência realizou-se ali mesmo no terraço da casinha, perante a família
toda de nosso hospedeiro, português mestiço, muito amável, dois franceses recém-
chegados que, ímpios riam-se de nossa estúpida superstição, a interessada e eu.
Eram três horas da tarde. O calor nos sufocava não obstante o que, o santo gosain,
verdadeiro esqueleto vivente, de cor acaju, pediu para desligar o gigantesco ventilador que,
para refrescar um pouco aquele ambiente de forno, estava suspenso sobre nossas cabeças.
Sem dúvida, embora não o dissesse, assim o exigia porque é sabido que as correntes de ar
contrariam a produção de todos os fenômenos magnéticos de caráter delicado.
Recordei, então, o famoso processo adivinhatório chamado de "marmita ou gamela
viva", que é o instrumento ordinariamente empregado pelos hindus para descobrir o
paradeiro dos objetos perdidos; pois, sob o influxo do magnetizador que o manipula, o
utensílio em questão gira e roda pelo solo até chegar ao lugar onde jaz o objeto que se
busca, pensando, então, que o gosatn o empregaria também. Porém, equivoquei-me em
minhas deduções.
O gosain, com efeito, procedeu de um modo muito diverso. Pediu que lhe dessem um
objeto qualquer de uso pessoal da dona e que houvesse estado em contato com os
perdidos, na maleta. A senhora entregou, então, um par de luvas, que ele comprimiu entre
as mãos dando-lhes muitas voltas, como se fizesse delas pelota. tirou-as ao chão e em
seguida estendeu seus braços em cruz, com os dedos abertos, dando uma volta completa
sobre si mesmo como para orientar-se na direção em que estivessem os objetos roubados.
Deteve-se, de repente, com uma viva sacudidela elétrica e, espichando-se em todo o seu
comprimento, permaneceu imóvel. Sentou-se, por fim, com as pernas cruzadas e com os
braços sempre estendidos na mesma direção, como sob um forte estado catalético.
A operação durou uma longa hora, tempo que, naquela atmosfera, constituía para nós
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uma verdadeira tortura, até que, instantaneamente nosso hóspede deu um salto até a
balaustrada e começou a olhar na direção do rio, como extasiado por um encanto
misterioso. Todos nós olhamos também ansiosos na mesma direção, vendo vir, com efeito,
não se sabe como nem de onde, um escuro volume, cuja verdadeira natureza nos era
impossível discernir.
A mole em questão, dir-se-ia vir impelida por uma força misteriosa, dando voltas,
primeiro com lentidão e depois com grande rapidez, como a conhecida "marmita giratória",
antes referida. Flutuava o volume como sustentado por invisível barquinha de aerostato e
vinha em direção a nós, como uma ave que viesse voando.
Logo aquilo chegou até à margem do rio e desapareceu entre a vegetação de sua
margem, para reaparecer em pouco, batendo ao saltar a paredinha do jardim, para cair
pesadamente, por fim, sobre as mãos estendidas do santo asceta, ou gosain, que o
recolheu com um movimento automático.
Ao abrir, então, o ancião seus olhos fechados deu um profundo suspiro, apoderando-
se dele violentíssimo tremor convulso, enquanto nós tínhamos ficado paralisados de
assombro e os dois franceses, antes tão céticos, pareciam como que idiotizados. O gosain
levantou-se logo retirou o invólucro de lona com breu, dentro do qual: oh! surpresa!,
achavam-se os objetos roubados e em bom estado, sem faltar nenhum; finalmente, sem
dizer palavra e sem esperar receber, por seu prodígio, nem os agradecimentos sequer da
inibida dona dos objetos fez uma profunda reverência e desapareceu rua abaixo, custando-
nos grande trabalho para alcançá-lo e fazê-lo aceitar, à viva força, meia dezena de rúpias
que o ancião recebeu em sua tigela de madeira.
Bem seguro estou de que este meu verídico relato que os demais testemunhos
presenciais do feito podem atestar por si, parecerá um conto de fadas a não poucos
europeus e americanos que jamais visitaram a Índia. Porem sempre teremos em nosso
abono contra as suspeitas e malévolas análises telescópicas e microscópicas insolentes, de
nossos cientistas em moda, o testemunho do não menos inexplicável "jogo da árvore"
antes transcrito do trabalho de nosso sábio físico Dr. Carpenter... (2)
(2). Este relato é transcrito de "The Religio-Philosophical Journal", de 22 de
dezembro de 1877, pela revista "A Modern Panarion".

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DEMONOLOGIA E MAGIA ECLESIÁSTICA

Na famosa obra de Bodin "La Demonomanie, ou Traité des Sorciers" (Paris 1587),
relata-se uma arrepiante história acerca de Catarina de Médicis. O autor era um
ilustre escritor que durante vinte e cinco anos esteve colecionando documentos
autênticos, tirados dos arquivos das mais importantes cidades da França, para
escrever uma obra completa sobre feitiçaria e poder "dos demônios". Semelhante
livro apresenta segundo a expressão gráfica de Eliphas Lévi, a mais notável coleção
que se possa apresentar sobre "os fatos mais sangrentos e espantosos, os mais
repugnantes atos de superstição, os encarceramentos e execuções capitais da mais
estúpida ferocidade" .
- Queimemos todo o mundo! parecia dizer a Inquisição. Facilmente Deus
distinguirá os seus.
Loucos infelizes, mulheres histéricas e idiotas eram queimados vivos, sem
compaixão alguma, pelo crime de "magia". Porém, ao mesmo tempo, quantos e quão
grandes criminosos não escaparam a esta injusta e sanguinária justiça! Isto é o que
nos faz apreciar perfeitamente Bodin.
Catarina de Médicis, a piedosíssima cristã que tão meritória se tinha feito aos
olhos da Igreja de Cristo, pela horrenda e inolvidável carnificina de São Bartolomeu -
a rainha Catarina, dizemos, tinha a seu serviço um sacerdote apóstata jacobino.
Sumamente versado na "arte negra" sempre tão patrocinada pela família dos
Médicis, tinha-se feito credor da gratidão e proteção de sua piedosa senhora, mercê
de sua destreza, sem igual, em matar pessoas à distância - e sem responsabilidade,
torturando por meio de feitiços suas figuras de cera. O processo tem sido descrito
repetidas vezes e apenas vamos repeti-lo.
Carlos estava de cama, atacado de incurável moléstia. A rainha-mãe que com a morte
do doente ia perder tudo, recorreu à necromancia e quis consultar o oráculo da "cabeça
sangrenta. Esta operação infernal requeria a decapitação de um menino, que devia ser de
grande formosura e pureza. Tal menino havia sido preparado para a sua primeira
comunhão pelo capelão do Palácio. o qual estava inteirado do infame projeto. Chegado o
dia determinado para a execução deste, à meia-noite, no aposento do enfermo, em
presença unicamente de Catarina e de uns tantos de seus congregados, celebrou-se a
"missa do diabo". Seja-nos permitido citar o resto da história, tal como a encontramos em
uma das obras de Lévi: "Nesta missa, celebrada ante a imagem do demônio, tendo sob seus
pés uma cruz invertida, o feiticeiro-sacerdote consagrava duas hóstias: negra e grande, uma
e branca e pequena a outra. Esta foi dada ao menino, que estava vestido de branco, como
para o batismo, e a quem mataram nos próprios degraus do altar, imediatamente após sua
comunhão. A cabeça de um só golpe separada do tronco, foi colocada, ainda palpitante,
sobre a grande hóstia negra, que cobria a pátena, e logo foi deixada em cima de uma mesa,
na qual ardiam algumas lâmpadas funéreas. Começou, então, o exorcismo. O demônio
tinha que pronunciar um oráculo e responder, por intermédio da cabeça cortada, uma
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pergunta secreta que o rei não se atrevia a formular em voz alta e que a ninguém havia sido
comunicada... Naquele momento, uma voz débil, uma estranha voz que já nada tinha de
humana, fez-se ouvir da cabeça do infeliz e pequeno mártir..." Porém de nada serviu
semelhante crime de feitiçaria, porque o rei morreu e, Catarina de Médicis continuou
sendo a fiel filha de Roma! E notável é que o escritor católico Des Mousseaux que, em sua
"Demonologia", usa com tão excessiva liberdade o material da obra de Bodin para formular
sua formidável acusação contra "os espíritas e outros feiticeiros", haja cuidadosamente
passado por alto de tão interessante episódio.
É também um fato bem provado que o Papa Silvestre II foi acusado publicamente,
pelo cardeal Benno, de encantador e feiticeiro. A "cabeça oracular" de bronze fabricada por
Sua Santidade era da mesma espécie da criada por Alberto Magno e que foi feita em
pedaços por Tomás de Aquino, não porque fosse obra do demônio ou que por ele estivesse
habitada, mas, sim, porque o espírito que nela estava encerrado, pela força magnética,
falava sem parar, como uma matraca e sua arenga contínua impedia o eloquente santo de
trabalhar em sem, problemas filosóficos. Tais cabeças e até completas estátuas falantes,
solenes troféus da ciência mágica de monges e bispos, eram meros "fac-similes" dos deuses
"animados" dos templos antigos. A acusação contra o Papa era certa, naquela época,
provando-se também a ele que estava acompanhado constantemente de "demônios" ou
"espíritos". Benedito IX, João XX e os Gregórios VI e VII, eram todos conhecidos como
magos. Este último Papa era, além disso, o famoso Hildebrando, do qual se disse ser tão
destro "em fazer sair raios da boca da manga de suas vestes" que isso deu motivo ao
respeitável escritor espírita Howitt em crer que tal era a origem do célebre "raio do
Vaticano".
Quanto às façanhas mágicas do bispo de Ratisbona e do "angélico" Dr. Tomás de
Aquino são demasiado conhecidas, para serem relatadas novamente. Se o prelado católico
era tão hábil em fazer as pessoas crerem que, durante uma crua noite de inverno, estavam
gozando as delícias de um esplêndido dia de verão, e que as bolas de neve pendentes dos
ramos das árvores do jardim eram outros tantos frutos tropicais, também os magos da
Índia, ainda hoje mesmo e sem necessidade de deuses ou diabo algum fora de seu
conhecimento de leis da Natureza, não conhecidas, podem pôr em jogo, ante seu
assombrado público, tais poderes biológicos, pois que todos esses pretendidos "milagres"
são produzidos por um mesmo e adormecido poder humano, que nos é inerente a todos,
resumindo-se o problema somente em saber desenvolvê-los.
Durante a época da Reforma, o estudo da magia e da alquimia havia adquirido uma
preponderância tal entre o clero que deu lugar aos maiores escândalos. O cardeal Wolsey
foi acusado publicamente, ante o Tribunal e o Conselho Privado, de cumplicidade com um
homem chamado Wood, conhecidíssimo como feiticeiro, o qual declarou: "Meu
senhor, o cardeal, possui um anel de tal virtude que qualquer coisa que deseja da graça
dos reis lhe é concedido...", acrescentando: "Maese Cromwell, quando servia como
criado em casa de meu senhor, o cardeal... , lia muitos de seus livros, especialmente o
chamado Livro de Salomão e estudava as virtudes que, segundo o cânone do rei,
possuem todos os metais. Este caso, juntamente com outros igualmente curiosos,
podem ver-se entre os papéis de Cromwell, na Repartição dos Arquivos da Casa de
62
Documentos Públicos.
Em tal arquivo conserva-se, do mesmo modo, uma relação das aventuras de certo
sacerdote chamado William Stapleton, que foi preso como conjurado durante o
reinado de Henrique VIII. O sacerdote siciliano, a quem Benevenuto Cellini chama de
necromante, fez-se famoso por suas afortunadas conjurações, nas quais jamais foi
molestado. A notável aventura que com ele teve no Coliseu de Roma, onde o sacerdote
conjurou uma legião inteira de diabos, é fartamente conhecida do público ilustrado.
Naturalmente que o subsequente encontro de Cellini com sua amiga, predito e
anunciado com todos os detalhes pelo conjurador, no tempo preciso, fixado por ele,
será sempre considerado pelos frívolos e pelos céticos como "uma curiosa e mera
coincidência".
Nos finais do século XVI, dificilmente se podia encontrar uma paróquia, por mais
inferior, na qual os vigários não se entregassem ao estudo da magia e da alquimia. A
prática do exorcismo para expulsar os diabos, como o fez Cristo - que, diga-se de
passagem, jamais empregou tal modo de proceder - conduziu o clero à "sagrada
magia", em oposição à "arte negra", de cujo crime eram acusados todos quantos não
eram monges ou sacerdotes. Os conhecimentos ocultos coligidos pela Igreja Romana
nos, em outros tempos, férteis campos da Teurgia, ela os reservava cuidadosamente
para seu próprio uso, enviando unicamente ao patíbulo, mediante a Inquisição,
quantos praticantes caçava, furtivamente, nos campos daquela Ciência das ciências.
Os anais da História assim o comprovam. "Somente no transcurso de quinze anos
(1580 a 1595) - disse Thomas Wright em sua obra "Magia e Feitiçaria" - no
limitadíssimo território da Lorena, o inquisidor Remigius queimou implacavelmente uns
novecentos bruxos de ambos os sexos". Em tais tempos, publicava Bodin sua célebre
obra mencionada.
Assim, enquanto o clero ortodoxo evocava legiões inteiras de "demônios" por
meio de encantos mágicos, sem ser molestado pelas autoridades, contanto que não
ensinasse heresia alguma e se mantivesse fiel aos dogmas estabelecidos, perpetravam-
se, por outro lado, atos de inaudita crueldade contra as pessoas de pobres loucos. Por
exemplo, Gabriel Malagrida, ancião de oitenta anos, foi queimado por esses verdugos
(estilo Jack Ketches) em 1761. Existe na biblioteca de Amsterdã uma cópia de seu
famoso processo, traduzido da edição de Lisboa. Malagrida, com efeito, foi acusado de
feitiçaria e de manter pacto com o diabo, o qual lhe havia revelado o futuro!... A
profecia, comunicada ao pobre jesuíta visionário pelo "inimigo do gênero humano",
está concebida nestes termos: "O réu confessou que o demônio, sob a forma da bem-
aventurada Virgem Maria, ordenou-lhe que escrevesse a vida do Anticristo; que
deveriam existir, a bem dizer, três Anticristos sucessivos, e que o último nasceria em
Milão do comércio de um frade com uma monja, em 1920..." e outras enormidades
desse teor.
Sob este estandarte (1) cristão, e no breve espaço de catorze anos, Tomás de
Torquemada, confessor da rainha Isabel "a Católica", queimou mais de dez mil pessoas
e sentenciou à tortura outras oitenta mil. Oróbio, o famoso escritor que pelo espaço de
tanto tempo permaneceu encarcerado, escapando com dificuldade à fogueira,
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imortalizou essa instituição em suas obras, quando se viu libertado na Holanda, não
encontrando melhor argumento contra a Santa Igreja do que abraçar a fé judaica e,
até, submeter-se à circuncisão.
(1). Referência ao estandarte da Santa Inquisição, tirado de um original que
existe na biblioteca do EscoriaI, onde, aos pés do imaculado trono do Todo
Poderoso, figura uma cruz carmesim, com um ramo de oliveira de um lado e
do outro uma espada tinta de sangue até o punho, estando escrito o tema
dos Salmos em letras de ouro: Enxurge, Domine, et judíca causam mean.
... Granger, por seu lado, conta-nos a história daquele famoso cavalo ao qual,
por artes mágicas, dizia-as que lhe fora ensinado a indicar os lugares em um mapa e
a hora nos relógios. O cavalo e seu dono foram acusados pelo Santo Ofício de ter
pacto com o demônio e ambos foram queimados, em grande cerimônia, como
feiticeiros, num Auto de Fé celebrado em Lisboa, no ano de 1601. Tão notável
instituição de Cristianismo chegou a ter até o seu correspondente Dante para
imortalizá-la: "Macedo, jesuíta português - disse o autor da "Demonologia" -
descobriu a origem da Santa Inquisição, nada menos que no paraíso terreno,
pretendendo que o próprio Deus tivesse sido o primeiro que começou a
desempenhar o ofício de inquisidor, tanto com Caim como com os ímpios
construtores da Torre de Babel".
Certamente, acrescentamos, que em nenhuma parte foram mais praticadas
pelo clero as artes da feitiçaria e da magia do que na Espanha e Portugal, porque os,
mouros sempre foram versadíssimos nas ciências ocultas, já que em Toledo,
Salamanca, Sevilha, etc., existiram grandes escolas de magia. Os cabalistas
salamanquinos têm fama de haverem sido grandes peritos em todas as ciências
ocultas; conheciam as virtudes das pedras preciosas e tinham arrancado à Inquisição
seus mais preciosos segredos.
O cura de Barjota, da diocese espanhola de Calahorra, por seus mágicos
poderes, veio a ser a maravilha do século XVI. O mais extraordinário de seus feitos.
era o de poder trasladar-se aos países mais distantes, presenciar neles os mais
interessantes acontecimentos, e profetizá-los logo ao voltar ao seu vicariato.
Acrescenta a "Crônica" que o cura efetivamente contava com um demônio familiar
que, entretanto, foi ingrato para com este, usando de artifícios para enganá-lo.
Informado, por tal demônio, acerca de uma conspiração, que se tramava contra o
Papa, por seus excessivos galanteios a certa formosa dama, o bom cura transportou-
se em seu duplo astral para Roma, salvando assim a vida de Sua Santidade. Depois
disso, arrependeu-se: confessou seus pecados ao Papa galanteador e foi absolvido.
"Ao regressar de Roma foi posto, pró-forma, sob a custória dos inquisidores, porém
foi perdoado e recobrou a liberdade em pouco tempo".
Frei Pedro, monge dominicano do século XVI - o próprio mago que, dizem,
presenteou o famoso licenciado Eugênio Torralba, médico do almirante de Castela
com o "demônio" chamado Ezequiel - deveu sua grande fama ao subsequente
processo que por isso teve de descarregar sobre o mencionado Torralba. O
extraordinário processo está descrito nos documentos que Sé! conservam nos
64
Arquivos da Inquisição. Os cardeais de Volterra e de Santa Cruz testemunham que
viram Ezequiel e tiveram íntimos contatos com o mesmo, o qual no futuro tornou-se,
durante o resto da vida de Torralba, um homem puro e bondoso, que levou a cabo
mil ações benéficas e se manteve fiel ao mencionado médico até o último momento
de sua vida. A própria Inquisição, tendo isso em conta, absolveu Torralba e, embora
a sátira de Cervantes lhe haja assegurado uma fama imortal, nem Torralba, nem o
monge Pedro são heróis fictícios, mas sim personagens históricos, citados em
documentos eclesiásticos que existem em Roma e em Cuenca, onde ventilou-se o
processo, no dia 29 de janeiro de 1530.
O livro do Dr. W. G. Soldan, "Geschiche der Hexen procese, aus den Quellen
dargestellt", de Stutgart, chegou a ser tão famoso na Alemanha como o fora, na
França, a "Demonologia", de Bodin. É o tratado alemão mais completo sobre a
feitiçaria no século XVI e quantos sintam interesse em conhecer as maquinações
secretas que motivaram os assassinatos perpetrados, aos milhares, por um clero que
pretendia crer no diabo, encontrá-las-ão divulgadas na mencionada obra. A
verdadeira origem das acusações diárias e sentenças de morte por feitiçaria é
habilmente atribuída a inimizades políticas e pessoais, em especial ao ódio dos
católicos contra os protestantes. O astuto trabalho dos jesuítas manifesta-se em
cada uma das páginas daquelas sangrentas tragédias e em Bamberg e Wurzbourg
(onde esses dignos filhos de Loyolla eram mais poderosos por aquele tempo) era
onde com mais frequência se apresentavam os casos de feitiçaria.
Os falsificadores eclesiásticos que acusam a magia, o espiritismo e até o
magnetismo de serem produzidos pelo demônio, esqueceram, ou jamais leram, os
clássicos. Nenhum de nossos hipócritas olharam com maior desprezo os abusos da
magia, como o verdadeiro iniciado da antiguidade. Nenhuma lei medieval, ou
moderna, pode ser tão severa como a do hierofante, porque se bem que expulsasse
o bruxo "inconsciente", a pessoa perturbada por um demônio, do interior do templo,
os sacerdotes, em lugar de queimá-los desapiedadamente cuidavam com terna
solicitude do infeliz "possesso" em hospitais, onde se lhes devolvia a saúde. Porém,
com relação àquele que, por meio de feitiçaria consciente, havia adquirido poderes
perigosos para os seus semelhantes, os sacerdotes da antiguidade eram
severíssimos. "Qualquer pessoa acidentalmente culpável de homicídio, ou convicta de
bruxaria era excluída dos mistérios de Eleusis", disse Taylor em sua obra "Os
Mistérios bâquicos e eleusinos". A preterição de Agostinho de que todas as
explicações dadas sobre isso, pelos neoplatônicos eram invencionices destes, é
absurda, porquanto quase todas elas são relatadas, mais ou menos explicitamente,
pelo próprio Platão. Os Mistério são tão antigos quanto o mundo, e qualquer um
bem versado no esoterismo das mitologias das diversas nações pode seguir sua
pegadas até os dias do período antivédico, na Índia. Nesta, exige-se do candidato à
iniciação a virtude e pureza mais estritas, tanto se se pretender ser um "Sannyasi",
um santo, como se se desejar ser um "Purohita", ou sacerdote público, ou enfim se
se contentar em ser um mero faquir... Indubitavelmente, o exercício de tais virtudes
exigidas ainda que para este último caso, é incompatível com a ideia que aqui, no
65
Ocidente, temos do culto diabólico e de seus fins lascivos!...
Estes faquires, se bem que nunca possam passar do primeiro grau da iniciação,
são, não obstante, os únicos agentes, entre o mundo dos vivos e os "silenciosos
irmãos" ou "sannayasis", os quais jamais cruzam os umbrais de suas sagradas
vivendas. Os "fukarayoguis" estão eternamente adstritos aos seus templos e, quem
sabe se estes cenobitas, assim ilhados do mundo profano, tenham muito mais que
ver, do que comumente se crê, com os fenômenos psicológicos operados sempre
sob sua oculta direção pelos faquires? Fenômenos tão rigorosamente descritos por
Louis Jacolliott... , esse "cético e emperdenido racionalista" (como ele próprio se
jacta de ser) em sua obra "O Espiritismo no Mundo"... Não obstante seu incorrigível
racionalismo, este autor francês se viu obrigado a admitir as maiores maravilhas com
relação aos faquires, vistas por seus próprios olhos em sua longa permanência na
Índia.
Em regra geral, os brâmanes - diz J acolliot - raramente passam da classe de
"grihastas", ou sacerdotes das castas vulgares e "purohitas", exorcistas, adivinhos,
profetas e evocadores de espíritos. E não obstante vemos que estes iniciados do
grau inferior se atribuem e parecem possuir, com efeito, faculdades desenvolvidas
em tal grau, que jamais foram igualados na Europa. Quanto aos iniciados,
pertencentes à segunda e em especial à terceira categoria, têm a preterição de não
conhecer o tempo nem o espaço e de ser donos até da morte e da vida. Iniciados
desta classe, confessa Jacolliot, que nunca os encontrou, porque - acrescenta - "não
se os vê jamais, nem nas imediações ou no interior dos templos, exceto na festa
lustral do fogo sagrado. Nessa ocasião, aparecem à meia-noite, numa plataforma
erigida ao centro do lago sagrado, qual outros tantos espectros, iluminando o espaço
com seus conjures. Uma brilhante coluna de luz eleva-se em torno deles, desde o
solo até os céus; sulcam os ares os mais estranhos ruídos e os cinco ou seis mil fiéis,
chegados de todos os pontos da Índia para contemplar um instante aqueles
semideuses, prostam-se, invocando as almas de seus queridos antepassados".

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ASSASSINATO À DISTÂNCIA (1)
(1). Este relato foi tirado da Revista "A Modern Panarion", a qual insere a
carta dirigida ao editor de "The Sun" por H.P.B., sobre tal narração.
Certa manhã de 1867, uma espantosa notícia comoveu todo o Oriente europeu.
Miguel Obrenovitch, rei da Sérvia, sua tia Katinka, ou Catarina, e a filha desta haviam
sido assassinados em pleno dia, no próprio jardim de seu palácio, sem se saber quem
eram os assassinos. O príncipe estava, materialmente, crivado de punhaladas e tiros;
a princesa Catarina tinha a cabeça desfeita por golpes e sua jovem filha agonizava
em consequência dos ferimentos. Todas as circunstâncias do terrível crime
causaram, como é natural, uma excitação e uma ansiedade gerais, tocando às raias
da loucura
Desde aquele instante cruel, de Bucareste a Trieste, tanto no Império austríaco,
como em todos os países dependentes do duvidoso protetorado da Turquia,
nenhum aristocrata de sangue, ou príncipe, se acreditou seguro, estendendo-se por
toda a parte o rumor de que aquele crime político havia sido executado por "Tzerno-
Guorgey" ou seja pelo príncipe Kara Georgevitch. Numerosos inocentes foram
encarcerados, enquanto que, como sempre acontece, os verdadeiros regicidas
lograram escapar. Um menino, muito amado na Sérvia, parente próximo das vítimas,
foi tirado de um colégio parisiense, conduzido com toda a pompa a Belgrado e
coroado rei da Sérvia, com o nome de Hospodar.
Como o são, em todos os povos, as paixões políticas, a tragédia de Belgrado foi
esquecida, apagando-se com isso as rivalidades e ódios que ela despertara. Porém,
havia uma idosa matrona sérvia, ligada pelos mais íntimos laços de afeto à família dos
Obrenovitch e que como Raquel, não conseguira facilmente consolar-se com a morte dos
seus. Proclamado o jovem Obrenovitch sobrinho do príncipe assassinado, a matrona
misteriosa vendeu seus bens e desapareceu da vista de todos, não sem jurar antes, sobre o
túmulo das vítimas, que as vingaria.
Quem escreve esta história verídica havia passado uns dias em Belgrado, três meses
antes de se cometer o crime, e conhecia a princesa Catarina - criatura branda, abúlica,
porém cheia de bondade e uma perfeita parisiense por seu excelente trato e educação.
Quanto aos personagens que figuram nesta narração, como ainda vivem, ocultarei seus
sobrenomes sob iniciais.
A idosa sérvia de nosso relato, que de tal maneira jurara vingança, saía muito pouco de
casa só mesmo para visitar, uma ou outra tarde, sua amiga: a princesa Katinka.
Languidaments reclinada sobre tapetes e almofadoes orientais, ataviada com o típico traje
nacional, parecia a própria Sibila de Cumas em seus dias de tranquilo repouso e
alheiamento.
É certo que se contavam estranhas histórias acerca dos conhecimentos ocultos
daquela solitária mulher circulando, entre os hóspedes reunidos ao redor da lareira de
nossa modesta pousada, relatos aterradores, capazes de por em pé os cabelos dos mais
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valentes. O primo de uma tia solteirona de nosso obeso hospedeiro havia caído, certo dia,
sob a garra de um vampiro cruel que esteve a ponto de sangrá-lo e matá-lo com suas
contínuas visitas noturnas. Vãos foram os esforços do pobre cura da paróquia que o
exorcizara e todos já se desesperavam por causa da vítima, quando Gospoja P. - assim
chamarei desde agora a famosa sibila - curou o jovem, afugentando o espírito obsessor,
ameaçando-o apenas com o punho e repreendendo-o em Sua própria língua. Ali, em
Belgrado, foi pois onde aprendi o curioso pormenor de que todos os fantasmas têm sua
linguagem peculiar.
Acrescentamos, também, que Gospoja P., ou seja a anciã em questão, tinha como
serva uma jovem cigana de uns catorze anos, procedente da Romênia chamada a
desempenhar um grande papel neste espantoso relato. Quem foram os pais da moça e qual
o lugar de seu nascimento, todos o ignoravam, inclusive ela mesma. Contaram-me que um
bando de vagabundos a tinha abandonado um dia, no pátio de Gospoja P., a que ela
respondia pelo nome de Frosya, ou "a menina sonâmbula", por sua anormalidade,
raramente encontrada, de à menor insinuação dormir sonambulicamente, falando, nesse
estado, qual médium autômata.
Por aquele tempo, eu viajava muito. Dezoito meses depois do assassinato do príncipe
sérvio, percorria a pitoresca comarca italiana de Banat em um coche de minha propriedade,
para o qual ia alugando cavalos, sucessivamente, nas localidades que visitava.
Certo dia de minha peregrinação, extasiada na contemplação das belezas da paisagem,
estive a ponto de atropelar, distraída que estava, um velho sábio francês que, como eu,
embora a pé, percorria aqueles lugares. Simpatizamo-nos e sem cerimônias enfadonhas,
aceitou o lugar que lhe ofereci, de boa vontade, a meu lado, um modesto assento de feno
em meu carro, constantemente estalando.
O nome do cientista francês era célebre nas Sociedades consagradas ao estudo do
magnetismo e seus similares, como um dos melhores discípulos de Dupotet.
- Quanto me alegro com o nosso encontro! Disse-me o sábio companheiro, no curso
de nossa conversação científica. Nesta solitária e deliciosa Tebaida, encontrei um ente
sensível, uma moça, a coisa mais notável que se podia esperar. É uma maravilha e por seu
intermédio, tratamos esta noite, com sua família, de descobrir, mediante seus dotes de
clarividência, o mistério que rodeia certo assassinato.
- De quem se trata? perguntei curiosa.
- De uma ciganinha romena, que parece ter sido criada na família do príncipe da
Sérvia, aquele que já não existe porque logo fará dois anos que foi assassinado do modo
mais miste ... Eh! "diable", tende cuidado, pois vamos nos despencar por esse precipício!
interrompeu-se o francês, arrebatando-me as rédeas do cavalo.
- Por acaso o príncipe Obrenovitch? exclamei alarmadíssima.
- Ele mesmo! e, como te digo - continuou o francês - penso chegar à aldeia hoje
à noite para altimar, ali, uma série de sessões de magnetismo, desenvolvendo com o
mesmo fim uma das mais admiráveis manifestações que jazem ocultas no fundo de
nosso espírito. Se quiseres acompanhar-me, poderás servir de intérprete, posto que
aquela família não fala francês.
Para mim, diante disto, não cabia a menor dúvida de que se tratava de Frosya e
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de que Gospoja P. acompanhá-la-ia, como de fato aconteceu.
Caía a tarde e chegávamos à falda de uma montanha: o "vieux château", como o
bom francês deu de chamá-la. Detivemo-nos num daqueles sombrios albergues da
poética falda, sentando-nos num banco rústico da entrada. Enquanto meu
companheiro de viagem cuidava, galantemente, de meu cavalo, vi sobre um inseguro
pontilhão da torrente vizinha a figura espectral, pálida e alta de minha velha amiga
Gospoja P., que por isso não pareceu demonstrar surpresa alguma. Ao chegar a mim,
saudou-me com o tríplice beijo em ambas as faces característico da Sérvia, e
conduziu-me carinhosamente à sua choça de hera onde, reclinada num tapetinho
sobre a relva e com os ombros contra a parede, reconheci a jovem Frosya...
Frosya vestia o clássico traje válaco, uma espécie de turbante de gaze, com fitas
e medalhinhas douradas; blusa de mangas abertas e saia colorida. Seu rosto
apresentava uma palidez extrema, seus olhos cerrados davam ao seu todo esse
aspecto de estátua, peculiar a todos os sonâmbulos clarividentes, a ponto de
acreditar-se que estivesse morta, não fosse o ritmo respiratório de seu peito
adornado de medalhas e fios de colares de contas. O francês disse-me que já a fizera
dormir de igual modo a noite anterior e sem reparar mais em nossa presença, deu-lhe
uns tantos passes e levou-a ao estado cataléptico. Dobrou-lhe, depois, um por um os
dedos da mão direita, salvo o indicador, com o qual fê-la indicar a estrela da tarde,
que luzia esplendorosa no imenso azul do céu. Seguiu, assim, regulando os passes
magnéticos e manejando os invisíveis, mas poderosos, fluidos de Frosya, como um
hábil pintor que dá os últimos toques em seu quadro. Naquele momento, a anciã se
deteve e disse-lhe em voz baixa:
- Espera as nove horas, quando se oculta o belo luzeiro. Os "vurdalakis" vagam
em redor e podem anular nossa influência.
- Que dizes? retrucou, contrariado, o magnetizador.
Eu, então, expliquei-lhe o que eram no Oriente os "vurdalakis" e sua perniciosa
intervenção, tão temida pela anciã.
- "Vurdalakis"! Bah! Já temos de sobra a ver com os espíritos cristãos que acaso
nos honrem com sua visita, esta noite!
Gospoja tinha se tornado pálida como uma morta; seu cenho apresentava um
enrugamento pavoroso e seus olhos acesos chispavam, fatídicos.
- Diga-lhe que não graceje em momentos como os destas horas noturnas -
exclamou. Este senhor não conhece o país e não sabe que, até a própria Santa Igreja,
daí por diante seria impotente para proteger-nos contra a irritação dos "vurdalakis".
E, apanhando com desagrado um punhado de hervas que o botânico francês
havia deixado no chão, acrescentou:
- Que invólucro é esse? São pés de verbena, a herva de São João, que não devem
ser deixadas aqui, sob pena de atrair os vampiros vagabundos.
A noite já havia estendido seu manto por completo, e a lua, com sua luz prateada
de fantasmagóricos tons, realçava o misterioso âmbito da paisagem, numa daquelas
placidezes do Banat, que se tornam quase tão formosas, como as do Oriente.
Achavamo-nos operando o fenômeno magnético, no meio daquele campo, porque o
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pobre pároco da aldeia havia dito ao magnetizador:
- Afasta-te do lugar; pode ser que teus demônios estrangeiros invadam teu
recinto e o da igreja, contra os quais, como forasteiros, não terão valor meus
exorcismos.
O francês tirara seu guarda-pó de viagem e enrolara as mangas da camisa,
tomando a atitude teatral tão comum em semelhantes operações magnetizadoras.
Sob seus dedos nervosos, o fluido parecia resplandecer como luzes forfóricas.
Frosya, encarando a Lua, permitia-nos ver todos os seus movimentos convulsos,
como se fosse de dia. Grandes gotas de suor surgiam em sua testa, resvalando por
suas faces abatidas. Em seguida, a moça iniciou um lento vaivem de inquietação e
começou a entoar uma ladainha estranha, cujas notas e palavras Gospoja recolhia
ávida, transformada na estátua da atenção, com seu dedo ossudo aos lábios, os
olhos saltando das órbitas, seu corpo inerte e uma atitude de ansiedade
indescritível, formando com a jovem Frosya, um contraste digno de ser imortalizado
num quadro. Ademais, a cena toda que, a seguir, começou a desenrolar-se, era
merecedora de qualquer das más tragédias de Macbeth: a infeliz moça, retorcendo-
se, atormentada, sob os tão invisíveis como poderosos fluidos que sobre ela
descarregava seu tirânico magnetizador e, de outro lado, a velha matrona, obsecada
por sua sede ardente de vingança e esperando ouvir, por fim, de um momento para
outro, o nome do assassino de seu amado príncipe sérvio. Até o onipotente
magnetizador francês parecia transfigurado: eriçada eletricamente sua nívea e
ondeada cabeleira e agigantada, de modo incrível, sua tosca e pequena estatura.
Não havia pois, ali, mistificação nem teatralidade, porém uma das mais estupendas e
aterradoras experiências de magnetismo nativo, bem acima dos mais altos
conhecimentos ocultistas de quem as tinha provocado inconscientemente.
Súbito, como acionada por uma mola e um poder sobrenaturais. Frosya pôs-se
em pé; não aguardava mais para lançar-se em direção ao desconhecido, qual.
autômata que vai receber as ordens de quem, naquele instante, era seu onímodo
senhor. Este, então, tomou solenemente a mãe de Gospoja e, colocando-a sobre a
da sonâmbula ordenou a esta última que obedecesse àquela.
- Que vês, minha filha? murmurou ansiosamente a senhora sérvia. Pode, acaso,
teu espírito encontrar-se com os assassinos de nosso príncipe e dizer-nos seus
nomes?
- Procura, pois, solícita, o que a senhora te manda! ordenou, por sua vez, com
firmeza, o magnetizador.
- Já estou a caminho - exclamou debilmente a menina, com uma vozinha que,
mais do que de seus lábios, parecia sair de "seu duplo" e à curta distância.
Impossível descrever com acerto o que neste momento aconteceu. Algo assim
como uma nuvem esbranquiçada e informe se foi condensando ao lado de Frosya,
envolvendo-a primeiro com sua azulada e metálica luz e destacando-se claramente,
depois, a seu lado com cárdenas, clorinas centelhas de relâmpago, qual um novo
corpo brilhante, junto ao corpo material, para separar-se deste, enfim, coerente,
semi-sólido e, depois de flutuar uns segundos no espaço, lançar-se rápido e
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silencioso em direção ao riachinho, desaparecendo, finalmente, corrente abaixo, à
distância, confundido com os raios do luar, qual porção de névoa desfeita em noite
otonal.
Não é preciso acrescentar que a cena tinha absorvido todas as minhas forças,
sob um torpor de sonho misterioso. Via, com efeito, desenvolver-se ante meus olhos
espantados nada menos que a evocação dos "Scin-Leca" do Oriente! Dupotet tinha
razão em afirmar, como o fez, que o magnetismo ocidental não é senão a magia
consciente dos antigos, e o espiritismo é o efeito inconsciente da mesma magia
sobre certos organismos neurastênicos.
Convém acrescentar que, nem bem o vaporoso duplo astral da jovem se havia
desprendido de seu corpo físico, a pérfida Gospoja, com um rápido movimento da
mão que estava livre, tinha tirado de sob seu abrigo e colocado no seio da
magnetizada um pequeno estilete ou punhal, tudo com rapidez tal, que nem o
próprio magnetizador deu conta disso, como logo me disse. Seguiu-se, então, um
silêncio sepucral, no qual podia-se quase ouvir o emocionado bater de nossos
corações, enquanto que nossos corpos pareciam se ter petrificado de surpresa,
como o da mulher de Lot. Mas, logo, a sonâmbula lançou um grito estridente que
despertou os ecos da montanha, ao mesmo tempo que se inclinava para a frente.
Empunhando o afiado estilete, começou a esgrimi-lo com sanha, para a direta e para
a esquerda, em seu redor, com o mais selvagem sorriso de vingança satisfeita,
naqueles seus inimigos imaginários, lançando espuma pela boca, ao mesmo tempo
que pronunciava, várias vezes, entre incoerentes exclamações guturais, dois
conhecidos nomes cristãos masculinos. O magnetizador, ao ver aquilo, tinha se
aterrorizado de tal forma Que, em vez de descarregar os fluidos da sonâmbula,
naquela cena angustiosa, carregava-a mais e mais, fortalecendo-a.
- Desgraçado, detende-a! gritei-lhe exasperada. Vai matá-la... se é que ela não
chegue a matar-te!
O imprudente magnetizador, sem se dar conta, havia despertado, sem dúvida,
sutis forças ou entidades da Natureza Oculta, sobre as quais carecia de todo o poder.
A própria sonâmbula, em seu paroxismo homicida, assestou-lhe, com sanha, uma
tremenda punhalada que ele pôde evitar, dando, obliquamente, um grande salto, não
sem antes receber um corte considerável no braço direito. Aterrado, o infeliz francês
trepou no muro vizinho, com a agilidade de um gato perseguido, pondo-se a cavalgar
montado nele, ao mesmo tempo que, tremendo ainda de medo, conseguiu reunir os
restos de sua desfeita vontade para obter que, por fim, a moça soltasse a arma e
permanecesse paralisada.
- Que fizeste, desgraçada? o magnetizador gritou, então, para Frosya em sua
nativa língua francesa. Responda-me, clara e imediatamente.
Ao que esta respondeu, no mais correto parisiense, com grande estupefação
minha, pois sabia que, em seu estado normal, a mocinha ignorava aquele idioma:
- Não fiz outra coisa senão... o que ela me ordenou que fizesse e isso porque tu
mesmo me havias exigido que a obedecesse em tudo...
- Que é, pois, que a velha bruxa mandou-te fazer? acrescentou o francês
71
desrespeitosamente.
- Que encontrasse os assassinos do príncipe de..., e que, assim que os visse,
matasse-os, como acabo de fazer... Oh! que felicidade; vingados, vingados por fim!
acrescentou já em sua própria língua.
Uma estrondosa exclamação triunfal de Gospoja acolheu estas últimas frases da
inconsciente sonâmbula. Uma gargalhada que fez ladrar lugubremente todos os cães
das redondezas.
- Vingada, sim, vingada! Eu o sabia! Meu coração não me engana ao dizer-me
que aqueles infames criminosos já deixaram de existir - exclamou - caindo ao solo,
esgotada dos nervos e arrastando consigo a sonâmbula.
- Oh! que boa pessoa para experiências é esta moça! disse o pobre francês,
completamente alheio ao verdadeiro desenlace daquela "inocente" prática de magia
de má lei. Perigosa sim, mas admirável! terminou, esfregando as mãos contentíssimo,
Dali a poucas horas, separei-me do pobre francês, de Gospoja e de Frosya.
Três dias mais tarde, achava-me no refeitório de um bom hotel, em T... ,
esperando que me servissem o desjejum. Minha vista fixou-se, distraidamente, em
um periódico, onde com surpresa inaudita li:
"Duas mortes misteriosas
Viena .....

Ontem à noite, às nove e quarenta e cinco, quando o Príncipe se retirava para


seus aposentos, dois senhores de seu séquito deram as vivas mostras de angustioso
terror, cambaleando como ébrios pelo recinto, como se pretendesse esquivar-se dos
golpes de invisível assassino. Incapacitados de prestar atenção às perguntas do
Príncipe e dos demais circunstantes, caíram imediatamente ao solo, em meio de uma
estranha agonia. Seus corpos não mostravam sinal algum de ferimentos, nem ele
apoplexia, e sim, somente na pele, umas manchas grandes e enegrecidas, como de
absurdas punhaladas que houvessem cortado a carne, sem afetar a epiderme. A
autópsia mostrou, naqueles ferimentos cheios de sangue coagulado, a marca de um
instrumento perfurante, um punhal ou a ponta de uma espada. A Faculdade de
Medicina vê-se obrigada a confessar-se incapaz de decifrar tão grande enigma
científico. Nas altas esferas reina grande excitação por esse motivo..."

72
A MÃO MISTERIOSA (1)
(1). Referindo-se esta pequena história, como se vê, a H. P. Blavatsky,
inserimo-la aqui, tomando-a das Revistas que a traduziram, tanto da
"Theosophist" de Madras, como da "Listok" e da "Rebus", de S. Petersburgo,
revistas russas nas quais apareceu pela primeira vez, e, logo em seguida, nas
publicações de diversos países. O artigo em questão acrescenta que o caso
sucedeu em 1886 e as pessoas que nele figuram eram todas conhecidíssimas
na alta sociedade russa.
Por outro lado, segundo relatos de Olcott, Sinnett, Hartmann e outros,
H. P. Blavatsky costumava realizar semelhantes atos de verdadeira "proteção
invisível", como quando deteve, na estepe, um trem de passageiros já
próximo a uma perigosa interrupção da via férrea.
Conversando várias vezes com D. José Xifré, o veterano e querido
teósofo da primeira hora, homem que tantos sacrifícios fez pela Causa,
ouvimo-lo contar tiradas semelhantes, com as quais a Mestra salvou-lhe a
vida em duas ou três ocasiões memoráveis, uma delas quando ia tomar um
trem que foi vítima, com muitos de seus passageiros, de um choque
tremendo. A cena em que, em "O tesouro dos lagos de Somiedo", figuramos
como o alquimista Cudillero (no final da segunda parte) está calcada na
primeira entrevista que ''le petit espagnol", como aquela paternalmente o
chamava, teve com a mesma, na Ilha Wight... E quantas destas invisíveis
proteções não se veem acumuladas ou impedidas pela oposição (a elas) do
karma de nossos vícios!
A não ser por estes últimos, seriam frequentíssimos os casos, como o
que abaixo segue, o qual retiramos de uma Revista inglesa:
"Mr. S. Wllmount, tendo embarcado no vapor "City of Limerik" para
atravessar o Atlântico, conta que, durante a viagem, arrostaram uma
tempestade horrorosa que durou nove dias, nos quais não lhes foi possível
conciliar o sono, até que na madrugada do nono dia, havendo se apaziguado
um pouco o vento, dormiu profundamente. Sonhou que via sua esposa (a
quem tinha deixado bem de saúde, na ocasião de sua partida) abrir a porta
do camarote e, depois de titubear por um instante ao ver não estava só,
entrar resolutamente, pendurar-se ao seu pescoço, abraçá-lo e desaparecer.
Despertando, ficou surpreendido ao ver que seu companheiro de
camarote, Mr. William J. Tait, com a cabeça apoiada à mão, olhava-o
fixamente e, ainda mais quando lhe disse: "Muito bem! Que folga a sua
receber aqui a visita de uma dama!" Wilmount insistiu para obter uma
explicação dessas palavras, sendo-lhe recusada até que, mais tarde, Mr. Tait
acedeu em contar-lhe o que tinha visto, achando-se em seu leito,
completamente desperto - o que foi exatamente o sonhado por Mr.
73
Wilmount. No dia seguinte, ao desembarcar, Mr. Wilmount foi buscar a
esposa que tinha ido visitar seus pais e, ao encontrarem-se a sós, a primeira
coisa que ela lhe perguntou foi: "Recebeste minha visita na quarta-feira?"
Contou-lhe, então, que se achava muito intranquila por ele, por causa da
tempestade, não podendo conciliar o sono, pensando no risco que podia
correr e que, às quatro e trinta da madrugada, pareceu-lhe que ia ao seu
encontro. Atravessando o mar, viu, a cabo de certo tempo, um navio no qual
subiu, descendo, em seguida, ao camarote onde ele se achava. Prosseguiu,
descrevendo a cena, e os objetos, tal e qual foram descritos anteriormente.

Acabávamos de almoçar e, nessas horas de modorra da sesta, achávamo-nos,


vários amigos, repousando em cadeiras de balanço, na galeria de nossa residência
de verão, próximo a S. Petersburgo. A atmosfera cálida pressagiava tempestade, o
sol queimava, reinando em nosso redor a imobilidade e o silêncio mais completos.
A dona da casa, Maria Nicolaevne, lia em voz alta um dos mais curiosos relatos
publicados em diferentes diários e revistas russas, por H. P. Blavatsky, sob o
pseudônimo de "Radha-Bai". O relato referia-se a "As Montanhas Azuis de Nilgiri", na
Índia, escutando todos, embevecidos, Maria que lia com entusiasmo aquelas
preciosidades, gesticulando e detendo-se, de quando em quando, para fazer
observações, ou responder às que lhe faziam. Necessitada, por fim, de um descanso
na leitura, abandonou o livro, por um momento, exclamando:
- Quão maravilhoso é tudo isto!
- Certamente! replicou, cético, um cavalheiro do grupo. Tudo quanto nos narra
Radha-Bai, acerca das feitiçarias aterradoras dos "Mula-Kurumba" daquelas
montanhas, é muito belo, porém para invenção, meros contos de fadas para crianças.
Aquela dura frase desagradou-nos a todos, mas quem mais se exasperou foi
Maria Nicolaevne que, com brusco movimento deixou cair os óculos. A zombeteira
observação procedia do eloquente e infatigável orador russo Pietre Petrovitch.
- Antes de expressar-se assim, retrucou a dama, necessitará, querido Petrovitch,
ler, por inteiro, a obra com todas as mil citações eruditas que a valorizam, citações
que...
- Eu me permitiria, sem embargo, perguntar uma coisa - interrompeu
obstinadamente o notável orador. Como sabe, senhora, que tais referências não são
fantasmagorias de algum pobre pseudo-hindu? Como admite, tão facilmente, as
citações dos autores ingleses e de outros países, feitas no livro, sem saber se eles têm,
afinal de contas, a devida autoridade?
- Perdoe-me, querido amigo. Radha-Bai não escreveu estas páginas só para o Sr.
ou para mim, mas para públicos agressivos e de diferentes opiniões. Eu a conheço
bem e sei que não pensou, jamais, em enganar o seu amado público russo, nem os
demais públicos sérios, para os quais, com tanta frequência, escreve. Pode citar, além
disso, acerca desses mesmos assuntos, um testemunho veraz e que está bem vivo...
- A opinião é livre, Senhora. Pode muito bem acreditar, de olhos fechados, em
todas essas coisas, porém, de minha parte, também me é lícito analisá-las como uma
74
completa série de embustes e...
Aconteceu, então, uma coisa singularíssima e inexplicável. Ao pronunciar, o Sr.
Pietre Petrovitch, aquela última palavra - "embuste" - deu um repentino salto de sua
cadeira, como se o tivesse mordido uma víbora. Em seguida, pôs-se a correr escada
abaixo, como um louco, revistou todos os objetos debaixo da galeria, examinou um
por um, com minucioso cuidado, todos os canteiros do jardim e, pálido como um
morto, voltou ao nosso lado, no terraço.
- O que lhe acontece, amigo? exclamou alarmada e tentando socorrê-lo, Maria
Nicolaevne.
Petrovitch não respondeu, mas revistou pela segunda vez os degraus da escada,
os tetos, tudo, enfim, percorrendo com olhar perscrutador até os confins do bosque.
- Mas, o que está o Sr. procurando, enfim? exclamamos todos exasperados.
- Não, nada... , disse vacilante o Dr. Pietre, com voz imperceptível, enxugando as
grossas gotas de suor frio que brotavam de sua fronte. Por acaso, trata-se de uma
brincadeira que...
Uma brincadeira?! insistimos, cheios de estranheza.
Falando seriamente: Os senhores não viram, realmente, ninguém? acabou por
perguntar ansioso nosso homem.
Uns e outros, entreolhamo-nos, como duvidando do que ouvíamos, temendo até
pela razão do cético amigo. Depois respondemos em uníssono:
- Não; não vimos ninguém, fora dos aqui presentes, há tempo!
- Pois eu sim! Vi alguém! balbuciou o Dr... Vi e toquei uma mão! Uma mão que...
- Que está dizendo?
- Sim, que vi uma mão, indubitavelmente de mulher; uma mão branca,
aristocrática, cruzada por veias azuis. Juraria que era alguém que tivesse vindo, não
sei como, do jardim fronteiro e me houvesse colhido familiarmente pelo braço,
apertando-o três vezes, como se tentasse arrastar-me para fora da galeria... Dizia tal,
respirando com dificuldade, pálido como cera, o bom Pietre Petrovitch.
- Sem dúvida sonhou isso - dissemo-lhe a fim de tranquiliza-lo.
- Não sei se foi visão ou sonho - acrescentou - o que sei é que tive tempo
suficiente para examinar a mão por completo, uma vez que permaneceu alguns
segundos agarrada em meu braço, como uma tenaz, acabando por introduzir-se no
meu braço, como um eflúvio nervoso ou elétrico.
- Esta é uma boa lição, sem dúvida - retrucou a Senhora Nicolaevne,
solenemente. Saber que é a própria forma astral de Radha-Baí, que se lhe mostrou e o
colheu pelo braço para fazer a carinhosa advertência de que se abstenha de caluniá-
la ante os outros, daqui por diante.
O aspecto de Pietre Petrovitch era o de um homem estonteado, aterrorizado,
como ante a realidade de uma ordem superior, que de boa vontade nunca teria
imaginado. Distraído, absorto, como se ainda durasse o contato astral da mão,
examinava uma e outra vez a manga de seu fraque. Logo voltou à sua busca pelo
jardim, como um homem maníaco que trata de perseguir a sombra do que já não
existe... Todos o seguimos...
75
Entretanto, a tensão elétrica se tinha tornado insuportável. Fulgurou um
relâmpago, instantâneo, horrível, um trovão e vimos cair, ao mesmo tempo, um raio
quase sobre nossas cabeças... Um momento mais e todo o beiral da casa, que
acabávamos de abandonar, despencou-se com estrépito sobre aquela galeria, onde
um momento antes estávamos lendo a obra mágica de Radha-Bai...
Em meio ao terror que nos imobilizou a todos no jardim, ouvia-se a voz
entrecortada de angústia de Pietre Petrovitch que dizia, com patéticos acentos de
convicção:
- A mão! Sim, sua mão aristocrática e inconfundível que me queria arrastar para
fora da galeria, a fim de salvar-me e salvá-los do perigo!...
Todos assentimos de coração, aterrados, sem dizer palavra. Com efeito, era
demasiado eloquente tudo aquilo para ser frivolamente considerado!

76
A ALMA DE UM VIOLINO

I
Um velho alemão, professor de música, chegou a Paris certo dia do ano de 1828,
estabelecendo-se, mui modestamente, num dos bairros mais tranquilos da grande
urbe, com um de seus discípulos. O nome do ancião era Samuel Klaus e o do jovem
respondia ao muito mais poético de Franz Stênio.
Este era um novel violinista dotado, segundo a fama, de um talento musical
extraordinário, quase milagroso; mas como era pobre e sem fama na Europa,
permaneceu vários anos desconhecido e não apreciado no seio da capital da França,
metrópole da sempre caprichosa moda ocidental.
Franz Stênio havia nascido em Styer e não contava ainda trinta anos, nos dias a
que nos vamos referir. Sonhador e filósofo, por natureza, com todas essas raridades
místicas do verdadeiro homem de gênio, não parecia senão um desses heróis
inquietantes dos "Contos Fantásticos" de Hoffmann. Seus primeiros anos estavam
cheios de coisas extraordinárias, excêntricas, incríveis, a ponto de hoje nos vermos
levados a contar sua história com brevidade, para melhor compreensão desta
narrativa.
Nasceu, Stênio, no seio de uma família de piedosos camponeses, moradores de
uma tão afastada quanto pacífica aldeiazinha, no coração dos Alpes de Steyer; foi
criado, segundo se disse, pelos próprios gnomos e demais gênios da região, que
velaram solícitos em torno de seu berço. Cresceu, assim, a criança nesse ambiente
mágico de fantasmas, fadas e vampiros que tão essencial papel desempenham em
todos os lares de Steyer, da Eslavônia e também da Áustria meridional.
Educado, mais tarde como estudante, à sombra dos antigos castelos renanos, dir-
se-ia que o jovem Franz tinha vivido toda a sua vida, até então, nesse emocionante
plano chamado de "sobrenatural". Ademais, durante alguns anos, estudou algo sobre
ciências ocultas com um grande discípulo de Kunrath e de Paracelso motivo pelo qual
era tão destro em feitiçarias de todo o gênero, inclusive em "cerimônias mágicas" e
segredos teóricos da Alquimia, como o mais esperto dos ciganos húngaros.
Não obstante tudo isto, o jovem Franz amava com delírio a música e, por tudo e
acima de tudo seu violino. Foi assim que, aos vinte e dois anos de idade, pôs de lado,
por completo, seus estudos ocultos, e se consagrou desde então, por completo à sua
arte, embora permanecendo fiel adorador dos deuses gregos, em especial das Musas
de Euterpe, em cujo altar, e no de Pan e de Orfeu, rendia o mais nobre culto de
admiração ao seu instrumento, ansiando por vê-lo igualado à flauta e à lira destes
últimos deuses. As notas de seu stradivarius afastavam-no, sublimes, de tudo quanto
neste mundo inferior não fossem seus sonhos musicais com ninfas, sereais e demais
deusas pagãs da melodia e da poesia. Como nuvem de perfumado incenso, os acentos
celestiais de seu violino querido subiam às alturas, enquanto o jovem "virtuose"
77
sonhava sempre desperto vivendo a vida real como através de um ambiente
encantado: Assim, ainda em sua própria aldeia, onde só se respirava magia e bruxedo,
passou sempre por criança singularíssima e chegou a homem adulto, sem quase haver
tido juventude.
Nunca uma linda cara de moça cativara o artista, nem fora capaz de arrancá-lo de
seus solitários estudos. Todos os seus amores eram o seu violino; em sua única
companhia havia sempre vivido, sem contar com outro auditório para seus concertos
musicais, os deuses e deusas da Grécia clássica daquelas serras. Um ininterrupto sonho
de harmonia e de luz!
Quão vívidos, quão gloriosos, mas quão inúteis eram estes sonhos duradouros do
maravilhoso Franz! Ele era um herói da música, como o deus egípcio com sua lira, ou o
deus grego com seu caramilho, e até as deusas do amor e da beleza deixavam suas
excelsas moradas, sugestionadas pela arte suprema das escalas de seu violino!...
- Oh! dizia a si próprio, mais de uma vez, o jovem em suas nostalgias de uma arte
nunca ouvida. Poderia eu atrair e encerrar uma ninfa do Parnaso na alma de meu
querido violino? Conseguiria eu roubar, algum dia, esse mistério, que se conta, dos
grandes deuses da música, domesticando com meu canto as feras e encantando os
homens, até obrigá-los também a render-me culto?
Tais vinham sendo os sonhos de Franz, ansioso sempre dessas tão efêmeras
glórias entre os homens. Para desgraça dele, sua mãe, ao enviuvar, chamou-o para seu
lado, na aldeia, arrancando-o da Universidade alemã, onde estava há quase dois anos.
Esta chamada deitou por terra todos os projetos do jovem, pelo menos em relação ao
seu futuro imediato, pois que, fora de sua aldeia e do calor de sua casa, não contava
com os meios necessários para satisfazer seus desígnios, por limitados que fossem.
Para cúmulo, sua mãe, que constituía seu único amor na Terra, faleceu pouco
depois de ter estreitado em seus braços o seu amado filho caçula. Ainda aconteceu
que, não se sabe porque, as comadres da aldeiola desataram cruelmente suas línguas a
respeito das verdadeiras causas determinantes da morte da aldeã, relacionando-a,
eventualmente, com a estada de seu filho em casa.
A viúva, Senhora Stênio, com efeito, antes do regresso de seu Franz, era uma
mulher alegre, forte e ainda jovem; alma piedosa e por demais temente a Deus, que
jamais faltou à missa e nem deixou de orar diariamente. Sem embargo, apesar disso, o
primeiro domingo que se seguiu à chegada do jovem estudante, quando a pobre aldeã
limpava o pó, de vários anos, do livrinho de orações que Franz havia usado em sua
infância, quando se sentava a seu lado na igreja, e no momento enfim em que o alegre
repique dos sinos ressoava, chamando a todos para a Santa missa, a amorosa mãe
ouvira, com calafrio mortal, aqueles sonoros repiques serem abafados pelas notas
macabras do violino, respondendo, sarcástico, à chamada, com as selvagens melodias
de "A Dança das Bruxas"(1). Faltou muito pouco para a aldeã desmaiar, quando seu
filho querido negou-se depois, peremptoriamente, a ir à missa, acrescentando, ímpio,
que todo tempo passado na igreja era tempo perdido, e que, ademais, os ruidosos
sons do vetusto órgão crispavam seus nervos de artista. Para completar aquele
acúmulo de enormidades blásfemas e melhor calar as desesperadas súplicas
78
maternas, convidou-a, o grande perverso, a ouvir o belíssimo "Hino ao Sol" que
acabava de compor.
(1). Aquelarre (Witches Sabbath - ou Sábado das Bruxas) - A suposta dança
e assembleia das bruxas, em algumas paragem solitária, onde se acusava as
bruxas de comunicar-se diretamente com o diabo. Todas as raças e todos os
povos acreditaram nisto, e alguns ainda hoje o creem. Assim, o principal
ponto de reunião de todas as bruxas da Rússia, dizem ser a Montanha Pelada
(Lissaya Goru), situada perto de Kiev e, na Alemanha, Brocken, nos Montes
Harz. No velho Boston (E.E.U.U. da América) congregavam-se perto do
"Tanque do Diabo", em uma vasta selva, ora desaparecida. Em Salem,
deram-lhes morte com aquiescência dos dignitários da Igreja e, na Carolina
do Sul, foi queimada uma feiticeira em época recente - ano de 1865. Na
Alemanha e Inglaterra foram assassinadas aos milhares, pela Igreja e pelo
Estado, depois de verem-se obrigadas a mentir e confessar, pela violência da
tortura, sua participação no "Sábado das Bruxas". A noite de Santa Walpurgis
ou Walpurga, cuja festa a Igreja celebra a 1º de maio (noite em que ainda
hoje as pessoas sensíveis veem chegar com certo temor supersticioso) fez-se
famosa na Idade Média pelo aquelarre que bruxos e bruxas celebram na
agreste montanha Brocken, ou Broksberg, o mais elevado pico do Hartz. Esta
cena está magistralmente descrita na primeira parte do Fausto, de Goethe.
(Do Glossário Teosófico de H.P.B.)
A boa Senhora Stênio perdeu, desde aquele triste domingo, a costumeira
placidez de seu espírito e foi desafogar suas angústias e remorsos aos pés do
confessor. A resposta do sacerdote, às suas dúvidas, levou sua alma simples e lógica
às raias do desespero, pois da severidade daquele não recebeu a respeito de seu filho
senão os mais funestos augúrios. Um contínuo sobressalto, um terror sem limites
dominou, então, a anciã, que não deixava de rezar noite e dia pela quase impossível
salvação de seu filho e, não contente em fazer, em vão, os votos mais temerários
para lográ-la, vendo que nem os salmos em latim, nem as humildes súplicas em
alemão, que dirigiu a toda a Corte celestial, davam resultado algum, para com aquele
réprobo, fez várias peregrinações a santuários distantes, numa das quais, pelos
nevados campos do Tirol, atacou-a um forte resfriado que a levou rapidamente ao
túmulo. Via-se, pois, que de certo modo o voto da Senhora Stênio se havia cumprido,
dado que a boa senhora já podia, em seu novo estado de após vida, realizar
pessoalmente sua visita aos Santos e advogar, junto deles, por aquele perverso que
renegava a Igreja, nossa Santa Madre, tinha invencível horror ao órgão e zombava
dos sacerdotes e de seus confessionários.
Bem alheio estava Franz à ideia de haver sido o verdadeiro causador, embora
inconsciente, da morte de sua mãe; lamentou-a de todo o coração e dali a poucas
semanas vendeu todos os trastes de sua casa e as modestas benfeitorias de sua
fazenda e, leve de bolsa, como de preocupações, resolveu percorrer o mundo como
um bom boêmio, sem se estabelecer, nem trabalhar em nada.
Visitou, assim, o jovem Franz Stênio, as principais cidades europeias. Depositada
79
sua modesta fortuna em um Banco, percorreu a pé a Alemanha e a Áustria, pagando
com as notas de seu violino as hospedagens, em quantos albergues e estâncias
visitava, passando não poucos dias da boa estação, entre o verdor dos campos e o
augusto silêncio dos bosques umbrosos, frente a frente com a Natureza, sonhando
sempre de olhos abertos, reduzindo tudo a harmonias, à moda de Hesíodo ou de
Anacreonte, nem mais nem menos - como o alquimista transforma tudo em ouro. Até
em seus concertos noturnos, nas hospedarias e nos prados das aldeias, nos dias de
festa, os participantes eram, para a sua imaginação artística, pastores e pastoras da
feliz Arcádia que o coroavam, como ao próprio deus Pan, em seus triunfos. O solo dos
salões eram, para ele, prados das mais sugestivas criações mitológicas; sacerdotes e
sacerdotisas de Terpsícore, aqueles rudes labregos e aquelas sadias filhas da
Alemanha rural, de faces semelhantes a maçãs frescas, lábios de cerejas e olhos de
céu, bailando uma dança sagrada, sob as cadências de uma valsa...
Seu violino, nos momentos solitários passados por seu dono no mais espesso da
selva de pinheiros, parecia animar com forças de sagrada magia as próprias árvores,
pedras, musgos, tudo quanto, como novo Orfeu, rodeava-o, embelezando; afigurava-
se, ao jovem, ver, no delírio de seus sonhos musicais, que até as águas do riachinho
detinham, também, seu curso para continuar ouvindo-o, enquanto a cegonha, a
águia ou o mocho pareciam perguntar-lhe em seu linguajar desconhecido:
"És tu, Franz Stênio, ou o próprio Orfeu redivivo?"
Aquele tempo foi a época mais feliz de sua existência de contínua exaltação
artística, de divinos delíquios, de sonhos inenarráveis. Nunca, em nada afetaram o
jovem as últimas palavras de sua mãe agonizante, que murmurara em seus ouvidos
todos os horrores de uma tão próxima, como definitiva, condenação.
Aquilo não se podia comparar mais que a seu conceito musical do domínio
pagão de Plutão, senhor do tétrico reino das sombras, quem, ao ouvir seu
instrumento, dava-lhe as boas-vindas a seus estados, como a um novo libertador de
outra Eurídice de Orfeu. Uma vez mais, a roda de Ísion havia parado ante as
cadências mágicas, dando, assim, um descanso ao triste sedutor de Juno e um
mentismo a quantos cressem eternos os suplícios dos condenados daquela mansão
inabordável, pois o próprio Franz via Tântalo esquecer-se de sua inextinguível sede
ao beber naquela torrente de harmonias; Sísifo permaneceu imóvel, sem já sentir o
peso de seu opressivo rochedo, sorridente das próprias Fúrias infernais. Vemos, pois,
que a mitologia clássica era para Franz, como para tantos outros eleitos, o mais
seguro antídoto contra os terrores e ameaças teológicas, sobre a velha e alta
Mitologia, fortalecida e espiritualizada pela Música. Euterpe, pela mão de seu fiel
discípulo Franz, triunfava, enfim, até do próprio inferno.
Porém, tudo acaba logo, oh! dor !, neste mundo infame, e os sonhos do jovem
Franz não se puderam subtrair a tão grande lei. Chegou afinal, certo dia, à cidade em
cuja universidade ensinava Samuel Klaus, seu velho professor de violino. Quando
este santo ancião viu, pobre, órfão e sozinho, seu discípulo favorito, sentiu
centuplicar o carinho que nutria pelo rapaz e, estreitando-o contra seu nobre
coração, generoso, adotou-o como filho.
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O violinista Klaus parecia evocar, com sua grotesca e rotunda pessoa, os
românticos entalhes medievais, porém, desmentindo a sua aparência de trasgo ou
duende fantástico, possuía um dos maiores corações, uma alma de ternuras
femininas e uma abnegação não inferior à de quaisquer dos mártires do
Cristianismo. Ao contar-lhe, o jovem discípulo, a história dos últimos anos de sua
ausência, o velho mestre tomou-o pela mão e levando-o a seu estúdio, disse-lhe
apenas:
- Abandona a vida errante e fica comigo. Poderás alcançar glória e dinheiro. Eu,
ancião e sem família, não serei mais que um pai para ti. Vivamos, pois, juntos,
olvidando tudo o que é deste mundo, salvo a glória que em breve conquistaremos.
Mestre e discípulo concordaram em ir a Paris, tocando em várias cidades alemãs
por onde passassem. Com isto, o jovem Franz esqueceu-se, em breve, de sua vida
errante; renunciou às nostalgias de sua independência artística, despertando, em
troca, sua antiga e adormecida ambição de glória e ouro. Contente, desde a morte
de sua mãe, com o aplauso dos deuses moradores de sua vulcânica fantasia, queria,
além do mais, também o aplauso dos homens mortais. Sob os severos ensinamentos
de Klaus, seu talento musical inato ganhava, cada dia, em vigor e magia, estendendo-
se, rapidamente, a fama de seus méritos por cidades e vilas. As mais geniais
capacidades de vários centros proclamaram-no, de pronto, violinista sem rival, o
violinista único, com o que, não é preciso acrescentar, perderam a cabeça por fim
tanto o mestre como o discípulo.
Mas a capital da França não concedeu, de início, facilmente, ao jovem tamanha
fama, porque é sabido que Paris costuma fixar por si mesma as reputações, sem
aceitá-las sob opinião alheia. Assim é que o violinista Franz já ali estava há três anos
e subia ainda a áspera encosta de seu calvário, como artista, quando lhe aconteceu
um fato que chegou a fazer murchar todos os seus sonhos de glória. O primeiro
concerto de Paganini pôs a cidade-luz em intensa comoção. O maestro italiano
apareceu e Lutécia inteira caiu a seus pés.

II
Chegados a este ponto de nosso relato, convém recordar uma superstição
medieval que subsistiu até meados do presente século e que atribui todas as
grandezas do gênio ao fato deste manter estreito "pacto com o diabo".
Todos os artistas, Paganini inclusive, foram acusados de semelhante pacto.
Do grande violinista Tartini, assombro do século XVII, chegou-se a dizer que os
mágico efeitos, sobre seus auditórios enfeitiçados, deviam-se nada mais do que a
seus pactos com os "malignos". Assim, sua célebre "Sonata do Diabo" foi causa das
mais terríveis lendas. Conhecida também por "O Sonho de Tartini", a ele atribuiu-se
a direta inspiração do próprio Satanás, que a executou perante Tartini, enquanto
este dormia, sendo o próprio músico o primeiro culpado de semelhante fama por
suas frases imprudentes. (2)
2. À famosa "Sonata do Diabo", de Tartini, atribui-se a seguinte origem:

81
"Depois de haver lutado em vão, a fim de achar inspiração para a sonata que
estava compondo, o maestro adormeceu profundamente.
Preocupado, como estava com seu tema, Tartini sonhou que continuava
seu trabalho de vigília, tão esterilmente, que, desesperado, invocou o diabo,
o qual, aparecendo-lhe, propôs a mais abundante inspiração em troca de
sua alma.
Feito o trato, o maestro ouviu, no mesmo instante, um violino
maravilhoso que executava a sonata mais assombrosa que se poderia ouvir,
sobretudo nas fases finais que não pareciam, com efeito, coisas deste
mundo...
Tartini despertou sobressaltado, mas com a inexplicável inspiração
recebida no sonho, cheio de ardor, pegou seu instrumento e,
Imediatamente, ficou pronta a obra que, desde então, chamou-se a "A
Sonata do Diabo".
De tamanhas acusações bruxas não escaparam tão pouco os mais célebres
cantores, pelos efeitos maravilhosos logrados com suas vozes sobre os auditórios
embevecidos. A voz sublime de Pasta atribui-se a que sua mãe, nos três últimos
meses de gestação, teria sido arrebatada ao Céu e, durante seu êxtase, havia
tomado parte em um coro de excelsos serafins. Malibran devia sua voz, segundo
uns, a Santa Cecília, patrona dos músicos e, segundo outros, ao próprio diabo que já
lhe cantava ao ouvido, à beira de seu berço, para que adormecesse. Por último,
Jubal de Dryden alcançou a suprema arte de tocar, à guisa de violino, numa simples
concha marinha com cordas, arrastando, entretanto, a multidão enlouquecida e
fazendo-a dizer que era um anjo do céu, e não as cordas da concha, quem produzia
aqueles sons.
O avaro violinista italiano, Paganini, não podia deixar de ter outra lenda análoga,
porque sem ela eram inexplicáveis seus prodígios. Eram tais, com efeito, as emoções
que, com o instrumento despertava em seus auditórios que, dizem, ter Rossini
chorado, como uma sentimental mocinha alemã, ao escutá-lo pela primeira vez. A
princesa Elisa de Lucca, irmã de Napoleão I, a cujo serviço esteve Paganini algum
tempo, como diretor de sua orquestra particular, não podia ouvir as primeiras notas
do músico sem desmaiar imediatamente. A magia de seu arco permitia ao grande
artista determinar, à vontade, os mais aparatosos ataques histéricos nas mulheres e
despertar entre os homens fortes o mais louco frenesi, fazendo de qualquer covarde
um herói e do soldado mais aguerrido uma nervosa meninota. Daí é que as lendas
macabras, acerca do artista, tanto se alimentaram (e isto não se dizia, de modo
algum, sem terror e de ouvido a ouvido), afirmando-se, especialmente, que tudo
aquilo se devia apenas às cordas de seu violino que não eram como as dos demais
instrumentos, mas que estavam torcidas com intestinos humanos, verdadeiros, extraídos
por feitiçaria, de acordo com os cânones mais horríveis da necromancia.
Isto, por muito que choque aos sábios ouvidos ocidentais, nada tem de
impossível, com efeito. Talvez a tradição da própria necromancia da Idade-Média
pôde dar lugar a tamanha lenda, porque é um fato provado em Ocultismo, que
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muitos magos negros orientais, em especial os tântricos bengaleses recitadores de
tantras ou conjuros para atrair espíritos maléficos, usam, para suas perversas obras,
dos próprios órgãos internos dos cadáveres. Agora, por outro lado, que nos são mais
conhecidos os poderes perigosos do magnetismo, mesmerismo e hipnotismo,
manejados tecnicamente pelos próprios médicos, poder-se-ia supor que, com menos
perigo que antes de ser escarnecido, os efeitos mágicos que Paganini produzia com
seu violino, não eram devidos somente a seu gênio musical, mas aqueles fenômenos
de admiração, patologia e sugestão experimentados por seus auditórios (admirações
que tinham algo de sobrenatural e diabólico, segundo muitos de seus biógrafos)
deviam-se a uma origem mais misteriosa que a da impecável execução e técnica do
mestre. E, por isso também até podia mudar de timbre o instrumento, fazendo com
que, com suas melodias na corda G somente, o violino se assemelhasse a uma flauta.
Rumores tais podiam tomar corpo muito mais antigamente do que agora que as
pessoas são muito mais céticas, chegando-se a murmurar, assim, em sua cidade
natal e também em toda a Itália que Paganini havia assassinado sua esposa e mais
tarde uma amante, a qual, não obstante sua paixão, não achou inconveniente em
sacrificar com suas próprias mãos para lograr suas diabólicas ambições. Com o
conhecimento prévio que efetivamente tinha, acerca de diferentes artes
necromântícas, tinha conseguido logo aprisionar na alma de seu violino de Cremona
as almas amantes de suas duas vítimas.
Os íntimos de Ernesto T. W. Hoffmann, o admirável autor de "O Mestre Martin",
"O Tanoeiro de Nuremberg ", "O Elixir Diabólico" e outras narrações místicas e
arrepiantes, asseguram que o Conselheiro Crespel de "O Violino de Cremona" fora
baseado no lendário caso de Paganini, pois, segundo todos sabem, o conto
fantástico narra como Crespel, o violinista, havia encerrado em seu violino a alma de
uma diva famosa, a quem tinha amado com delírio, incorporando ainda a seu
instrumento a alma pura de Antônia, sua própria filha.
Uma nação, enfim, como a Itália que tinha tido entre seus antepassados as
famosas famílias necromânticas dos Bórgias e Médicis, podia bem fomentar lendas
como aquela, máxime quando certo período da juventude de Paganiní aparece, com
efeito, envolto em mistério impenetrável, o que, juntamente com aquela
extraordinária facilidade com a qual tirava os mais extraterrenos sons de seu
instrumento, inclusive o da voz humana, bem puderam dar pábulo a tamanha lenda
terrorífica.

III

Até os dias de nosso conto, Franz Stênio não havia ouvido falar de Paganini. Em
tais tempos, precursores do vapor e da eletricidade, a Imprensa quase não existia e
era mais curto o voo da fama.
O rapaz, devorado pela inveja, jurou competir com o mago genovês e até
superá-lo se pudesse. Sim, ou conseguiria o atrevido jovem ser o mais famoso de

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todos os violinistas de sua época, ou faria em pedaços seu indócil instrumento! O
velho Klaus aplaudia com toda a sua alma tão heroica determinação.
Esfregando as mãos, com mostras do mais louco contentamento, Samuel Klaus
saltava alegremente sobre sua perna coxa, como um sátiro estropiado, lisonjeando e
adulando seu discípulo predileto, como se cumprisse o sagrado dever de consagrar
um herói.
Franz era capaz de sofrer tudo, menos o fracasso.
Era indiscutível que já tocava como um mestre; porém, os críticos severos
tinham lhe afirmado que necessitava uns tantos anos mais de trabalho esforçado,
antes que pudesse aspirar ao dom de arrebatar seu auditório. Isto ocorreu depois de
três anos da chegada a Paris do discípulo e do mestre. Por fim, depois de um estudo
desesperado, durante mais de dois anos, nos quais pode-se dizer que Franz não fez
outra coisa, o artista Sleyer já lhe tinha preparado a primeira audição no Teatro da
Ópera, ante o público mais exigente do mundo. Mas, golpe fatal assestado contra as
floridas ilusões do artista! A apresentação de Paganini então encarregou de dar por
findos tão dourados sonhos! Tinha que esperar, e não pouco, ante a refulgente
aparição daquele astro único!...
A princípio, o invejoso Franz contentou-se em sorrir ante o cego entusiasmo, os
hinos de elogio cantados em louvor do italiano e o assombro, quase supersticioso,
com que, em qualquer lugar, ouvia pronunciar o odioso nome, porém bem cedo este
chegou a ser, para os corações de ambos, um ferro candente que os abrasava.
Ultimamente, só o nome de seu rival, cujos êxitos eram, cada dia, mais estupendos,
quase lhes produzia acessos de loucura.
Concluiu a primeira série de concertos sem que nem o velho, nem o jovem
houvessem podido ouvir Paganini e julgá-lo por si próprios. Eram tão exorbitantes os
preços, mesmo os dos lugares mais inferiores e tão pequena a esperança de que
aquele grandissíssimo avaro se mostrasse generoso para com um humilde e
desconhecido irmão da Arte, que tiveram de resignar-se a esperar que a sorte lhes
proporcionasse um meio, como tantos outros que já lhes havia dado. Mas, chegou
um dia em que lhes foi impossível aguentar mais e, empenhando seus relógios,
compraram dois modestos lugares para o concerto.
Como descrever as emoções daquela noite, ao mesmo tempo feliz e fatal? O
auditório estava mais enlouquecido que nunca: os homens rugiam e choravam, as
senhoras guinchavam histéricas, desmaiando, enquanto KIaus e Stênio, mais pálidos
que espectros, mordiam os lábios em silêncio. Ao brotar a primeira nota do arco
mágico de Paganini, ambos sentiram um calafrio sobrenatural, como se a gelada mão
da morte os houvesse tocado o coração. Sua tortura era violenta, sobre-humana, ao
mesmo tempo que indescritível sua emoção artística... Acabada a função, à meia-
noite, e, enquanto os delegados selecionados, das Sociedades Filarmônicas e do
Conservatório, desatrelavam os cavalos do coche do colosso e o arrastavam em
triunfo até sua casa, os dois infelizes alemães, cambaleando, como ébrios, e sem dizer
palavra, tristes e desesperados, retornavam a seu tugúrio, ocupando seus
costumeiros lugares, junto ao fogo, até que Franz, pálido como a própria morte,
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rompeu o triste silêncio e disse:
- Samuel, Samuel, já não nos resta mais salvação senão morrer! Estás me
ouvindo? Nada somos, nada valemos; éramos dois infelizes iludidos ao crer que
alguém pudesse chegar a rivalizar com ele, com...
O nome odioso e impronunciável do mago atravessava-se-lhe na garganta. Cheio
de raiva, impotente, espojou-se pelo chão, desesperado.
O apergaminhado semblante de Mestre Samuel tornou-se primeiro lívido,
congestionando-se depois; seus pequenos olhos cinzentos despendiam uma singular
fosforescência. Inclinando-se ao ouvido de seu discípulo, disse-lhe com voz
entrecortada e cavernosa:
- "Nein, nein"! Tu te enganas, meu amado Franz, tu te enganas! Ensinei-te da
divina arte quanto um simples mortal, cristão, velho, pode ensinar a outro mortal.
Tenho eu culpa de que estes condenados italianos apelem aos recursos diabólicos da
Magia Negra, ensinados por Satanás em pessoa, para poder triunfar sem réplica no
mundo da arte?
Franz, ao ouvir aquilo, olhou seu mestre de um modo sinistro, deitando fogo
pelos olhos febris. Aquele olhar era todo um poema de desespero, que parecia dizer:
- Se assim fosse, eu não teria, tampouco, inconveniente algum em vender-me de
corpo e alma ao mesmíssimo diabo!
Mas nada disseram seus lábios contraídos. Pelo contrário, desviando o olhar de
seu mestre, o jovem pôs-se a contemplar, como um idiota, o fogo mortiço e começou
a sonhar... Sonhava, sim, que voltavam, como antes, seus incoerentes anelos; suas
ânsias, tornadas como realidade em seus anos de juventude, quando falava com os
gnomos, bruxas e fadas da selva, inspirando a seu instrumento as mais extra-
humanas melodias. As sinistras sombras de Tântalo e Sísifo, ressuscitando como
antigamente nas peregrinações boêmias do jovem, pareciam dizer-lhe com inaudita
perversidade:
- Que te podem importar, tonto os horrores de um inferno, do qual não crês? E,
ainda, na suposição de que existisse, que outro lugar pode ser senão o grandioso
lugar descrito com cores épicas, pelos clássicos gregos, não o dos imbecis fanáticos
modernos - quer dizer, uma vasta região cheia de sombras conscientes entre as quais
poderias, acaso, ser premiado como um segundo Orfeu?
Franz, indubitavelmente, enlouquecia por momentos.
Seus olhos injetados de sangue, olhavam seu mestre de um modo
excessivamente singular. Ao ver-se surpreendido, logo iludia o bondoso olhar do
velho. Samuel compreendia, com efeito, o estado mental de seu discípulo, e fez
quanto podia para tirá-lo desse estado, porém foi em vão.
- Franz, filho meu - dizia-lhe - asseguro-te, sim, que a funesta arte desse italiano
não é natural não nem devido ao estudo, nem ao gênio, nem adquirido, repito, pelas
vias ordinárias que os demais mortais seguem. Deixa de olhar-me assim, desse modo
tão inquietante, porque o que te digo já não é segredo para ninguém. Escuta e
compreenderás...
E, fazendo um esforço como para afastar uma sombra de medo, continuou:
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- Sabes bem o que se murmurava acerca da morte de Tartini e da "Dança das
Bruxas"? que morreu num sábado, a altas horas da noite, estrangulado por seu
próprio demônio familiar que antes lhe dera o segredo de dotar seu violino da voz
humana, encerrando na alma do Instrumento a alma de uma infeliz donzela a quem,
com efeito, assassinara. Pois saiba mais: Paganini fez outra coisa, pior entretanto;
para conseguir o mesmo para seu instrumento e fazer com que pudesse rir, chorar,
gritar, blasfemar ou orar - tudo ao mesmo tempo. - com as mais patéticas entonações
humanas, assassinou não só sua mulher e sua amante, mas também o amigo mais
íntimo que o estimava com delírio fazendo com os intestinos deste (retorcidos por ele
próprio) as cordas para seu violino. Daí o segredo de seu gênio mágico e dessas
sucessões de melodias inauditas, com as quais, diariamente, enlouquece seu público.
Estas coisas, tu não podes consegui-las nunca, a menos que...
O ancião não pôde concluir a frase. Viu algo, então, no olhar diabólico do
enlouquecido discípulo, que o deixou petrificado de espanto e o fez cobrir o rosto
com as mãos, para não tornar a vê-lo, Franz tinha um ricto imponente, satânico! Seus
olhos de hiena, sua palidez cadavérica, diziam tudo...
Com voz cavernosa, exclamou com dificuldade, por fim:
- Mas, falas seriamente?
- Que dúvida há, desde o momento em que empenho minha palavra de ajudar-te
custe o que custar? respondeu Samuel.
- Quer dizer que - continuou o terrível jovem - crês firmemente que, se eu
conseguisse contar com os meios de arranjar também intestinos humanos, poderia
igualar Paganini e ainda superá-lo?...
O ancião descobriu o rosto e, como quem já tomou uma resolução heroica,
acrescentou de modo sinistro:
- Os simples intestinos humanos não bastam por si só para conseguir nosso
intento, mas têm que haver sido arrancados de alguém a quem se haja querido com
afeto desinteressado e santo. Tartini dotou seu violino com a alma de uma virgem
que o amava e que morreu por sua causa, ao ver que seu amor pelo grande músico
não era correspondido. Aquele verdadeiro diabo humano recolheu em uma redoma o
derradeiro alento da donzela, e logo o transferiu ao seu violino. No que tange a
Paganini, convém acrescentar que o amigo, por ele assassinado, o havia sido com seu
consentimento, em meio da mais assombrosa das renúncias.
- Oh! divino poder da voz humana, não igualado por nenhum outro poder do
mundo! continuou o velho. Que magia há na Terra que se possa igualar à sua? Eu
haveria te ensinado também este magno e último segredo, se não fosse porque isso
equivale a arrojar-se para sempre nas garras daquele cujo nome não se pode
pronunciar de noite... - acrescentou o ancião, voltando às superstições de sua
juventude.
Franz, em lugar de responder, levantou-se de seu assento, com uma
tranquilidade que dava frio; apanhou seu violino e, com um repuxão selvagem,
arrancou-lhe as cordas e atirou-as ao fogo. Elas, ao queimarem-se, pareciam silvar e
retorcer-se, como serpentes, nas brasas. Samuel deu um grito horrorizado.
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- Por todas as bruxas da Tessália e pelas negras artes de Circe, a perversa maga!
Por Plutão e todas as suas infernais fúrias! Juro-te, oh! meu santo mestre Samuel!
que não tornarei a pegar esse violino nas mãos até que lhe coloque cordas humanas!
E, espumando de raiva, caiu ao solo sem sentidos O pobre mestre levantou-o
com ternuras de mãe; depositou-o suavemente no leito e saiu em busca de um
médico, alarmadíssimo ...

IV

Franz Stênio lutou varies dias entre a vida e a morte. O médico diagnosticou uma
febre cerebral da qual tudo se podia temer. Jazia o jovem em um quase contínuo
delírio e Klaus, que cuidava dele noite e dia com verdadeira solicitude paternal,
estava horrorizado de sua própria obra. O velho professor, não obstante os anos que
carregava, tratando seu discípulo, não havia compreendido até então toda a natural
brutalidade daquela alma selvagem, supersticiosa e impassível, cuja vida inteira havia
se refugiado tão somente na paixão pela música, alma que unicamente podia se
alimentar do aplauso, alma terrena, inumana; alma genuína de artista, porém com a
parte divina absolutamente ausente daquele filho das musas, todo imaginação e
poesia cerebral, mas sem coração, nem piedade.
Mais de uma vez, ao acompanhar o fio, difícil de seguir, daquela delirante
fantasia, o bom ancião acreditava-se transportado, por vez primeira, a uma região
inexplorada, absurda, de loucura, como se aquela natureza psíquica, encerrada no
débil corpo do enfermo, não fosse desta Terra, mas de algum outro planeta informe
ou incompleto. O terror ante tudo isso também o fizera enfermo e até perguntou se
valeria a pena salvar a vida daquela criatura infernal, ou deixá-la morrer
piedosamente antes de recobrar o uso dos sentidos.
Não obstante, amava demasiado "seu filho" para fazê-lo, pelo que, no mesmo
instante, sua mente afastou esta última ideia. Franz tinha enfeitiçado a alma
essencialmente musical do mestre e não parecia senão que a vida dos dois achava-se
ligada por um vínculo indestrutível ao mesmo Fado. Semelhante convicção, adquirida
num vivo raio de luz espiritual, à cabeceira do enfermo, decidiu-o por fim, como se
fosse uma revelação, a salvar o rapaz, ainda que fosse à custa de sua gasta e inútil
vida.
Era aquele o sétimo dia da enfermidade. A crise da manhã foi a mais terrível de
quantas haviam acometido o jovem até então. Este estava há vinte e quatro horas
sem cessar de delirar, com os olhos fechados, descrevendo com macabra
minuciosidade, em seus mínimos detalhes, espectros espantosos; sombras sinistras
de crimes flutuavam em fila interminável naquele recinto, fila cujos personagens
eram especificamente nomeados e designados pelo enfermo, como se se tratasse de
antigos conhecidos. Acreditava ser um novo Sísifo, amarrado ao penhasco do Cáucaso
com os quatro fragmentos de intestino, transformados em outras tantas cordas de
violino... Um rio Stix, não de negras águas, mas de sangue vermelho, corria a seus pés
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de condenado eterno e acrescentava enlouquecido:
- Desejas, oh! infeliz ancião!, saber como se chama a. rocha de meu Cáucaso?
Pois chama-se Samuel Klaus, aquele pobre velho que me ensinou a tocar violino!
- Oh! sim, sou eu, somente eu, a causa de tua desgraça meu filho! - respondia ele
chorando e pegando-lhe as mãos com desespero. Eu mesmo, ao tratar de consolar-te,
matei-te imprudentemente, pois feri de morte a tua imaginação, ao informar-te
acerca das negras artes de Paganini!
- Ha! Ha! Ha ! replicava o enfermo com horrível gargalhada satânica. Pobre velho
caduco, que é que me dizes? Tua carne é inconsistente! Eu a cortaria assim!... Tu não
vales nada e teu intestino só pareceria bem se estendido sobre um bom violino de
Cremona, e, posta nele, a tua própria alma!
Klaus sentiu um calafrio mortal, porém guardou silêncio e, inclinando-se sobre a testa
do jovem, abrasada pela febre, nela depositou um grande beijo... saindo por uns instantes
do quarto, porque sentia que o desespero afogava-o. Ao voltar dali a pouco, o delírio havia
tomado outro curso. Franz cantava, tratando de imitar as notas de seu violino, com a
mesma satisfação selvagem que teria, se já estivessem estendidas neste, à guisa de cordas,
os intestinos do mestre.
À tarde, o delírio revestiu-se de uma forma impossível de descrever, ígneos espíritos
punham na fogueira seu queridíssimo instrumento. Mãos esqueléticas, mãos que eram as
do jovem, brotando chispas e chamas por todos os dedos, faziam sinais ao velho para que
se aproximasse, como se fosse abrir-lhe um corte com absoluta rapidez, para dissecá-lo
ferozmente, a ele, a Samuel Klaus, o mestre, "o único homem que, por querer-lhe terna e
desinteressadamente, era o único também cujos intestinos podiam ser-lhe de alguma
utilidade no mundo!"
No outro dia, como por encanto, a febre cessou e dois dias depois, Stênio pôde deixar
o leito, sem conservar recordações de sua enfermidade e sem suspeitar que, em seus
delírios, havia deixado Klaus ler no fundo de seus mais secretos pensamentos... O único
resultado fatal da enfermidade foi que, firme o jovem em sua promessa ao arrancar as
cordas antigas de seu violino e necessitando sua indomável paixão de semelhante válvula,
enterrou-se no estudo da Alquimia, da Quiromancia e demais artes ocultas, com tanta ou
maior paixão do que a que antes sentira pela música.
Passaram-se semanas, meses e nem o mestre, nem o discípulo mencionaram sequer
Paganini. O violino, sem cordas e coberto de pó e teias de aranha, oscilava em seu lugar,
esquecido e mudo, em meio da profunda melancolia que se havia apoderado de ambos que
apenas trocavam palavras. Dir-se-ia que o violino não era senão um cadáver que a
fatalidade havia interposto entre os dois. Sarcástico e sombrio, o jovem evitava cuidadosa-
mente toda a conversação sobre música.
Para sondar um tanto a alma do jovem e saber o que se passava nela, certo dia, o
ancião tirou da caixa seu esquecido violino e se pôs a tocar não sei que tarantela. Às
primeiras notas, Franz experimentou um estremeção nervoso, semelhante a uma
chicotada, mas nada disse. Os olhos se lhe saltaram das órbitas e ele fugiu, por fim, como
um louco, vagando sem rumo pelas ruas de Paris, durante muitas horas, enquanto o bom
Klaus arrojou seu instrumento para um lado e encerrou-se em sua alcova até o dia seguinte.
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Como se vê, aquilo não podia continuar assim. Uma noite em que o jovem Stênio
estava, quiçá, mais sombrio e imponente que nunca, o velho mestre levantou-se
repentinamente de sua cadeira e, dirigindo-se com resolução ao seu discípulo amado, deu
um grande beijo em sua testa, dizendo-lhe afetuosamente:
- Franz querido! isto, assim, não pode continuar.
Não crês que é chegado o tempo de pôr fim à nossa violenta situação?
Franz despertou sobressaltado de seu letargo habitual respondendo como em sonho:
- Certo! já é mais que tempo de pôr-lhe fim.
Ambos foram dormir sem mais dizer palavra.
No dia seguinte, Franz não viu o ancião no seu lugar de costume. Vestiu-se e passou à
sala de jantar que separava as alcovas. Nem o fogo havia sido aceso, aquele dia, como era
hábito de Samuel; não se via sinal algum das ocupações usuais do mestre. Franz,
estranhando tudo aquilo, sentou-se em seu lugar de sempre ao lado da lareira apagada,
caindo em sua eterna obsessão, da qual saiu ao estender as mãos para cruzá-las atrás da
cabeça; chocaram-se elas com algo estranho que estava na estante, por detrás dele e caiu
ao solo com estrépito... Era a caixa do violino do pobre Klaus que caiu e rodou até os pés de
seu discípulo esvaziando de seu conteúdo o próprio violino, cujas cordas ao esbarrarem
contra a lareira produziram algo parecido com um gemido lastimoso. O efeito que aquilo
produziu, no jovem, foi mágico.
- Samuel, Samuel! gritou, sem ter resposta. Que acontece? acrescentou,
dirigindo-se ansiosamente até a alcova deste.
Mas, nesse momento, retrocedeu espantado ante o eco de sua própria voz, que
não recebia resposta alguma. O aposento estava às escuras e, ao abri-lo, viu que
Samuel Klaus estava sobre o leito, rígido e frio... Jazia morto!
O choque foi terrível. A louca ambição do artista fanático quase não deu lugar ao
primeiro impulso de afeto para com aquele amado morto, a quem tanto devia... ia,
pois, imediatamente, trabalhar, como era de temer-se, quando sua vista, perturbada,
fixou-se em um escrito a ele dirigido e que dizia:

"Franz, filho querido


Quando leres esta, teu velho mestre, teu amigo, já terá feito o maior sacrifício
que podia, para o sucesso de teu ideal de fama e riqueza. Ele que tanto te quis, aqui
jaz frio e inerte. Já sabes o que te cabe fazer... Para longe, as preocupações néscias!
Eu, livre e espontaneamente, te ofereci meu corpo em holocausto à tua fama futura,
e cometerias a mais negra das ingratidões se, por timidez ou covardia, tornasses inútil
este meu sacrifício. Quando teu amado violino se vir com suas novas cordas e estas
sendo uma parte de meu próprio ser, aquele estará investido do mesmo segredo
mágico do célebre Paganini. Nelas, em minhas cordas, encontrarás, sempre que
quiseres, os ecos de minha voz, meus gemidos, meus cantos de amor e de boas-
vindas - enfim, todas as entonações mais patéticas de meu imenso amor por ti...
Assim, pois, meu Franz idolatrado, nada temas: não vaciles! Pega, triunfalmente, teu
instrumento e lança-te ao mundo, seguindo os passos daquele que semeou o
desespero e a desgraça na senda de nossas ilusões... Apresenta-te altaneiro em todos
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os lugares em que ele se apresentar ao público: zomba dele, reptando-o ao mais
galhardo dos desafios. Então, conseguirás compreender e ouvir, oh!
Franz querido, quão potentes são sempre as notas de todo amor desinteressado
e, na última carícia daquelas cordas, lembrar-te-ás que são o corpo e a alma de teu
abnegado mestre que, pela derradeira vez, te abraça e te bendiz,
Samuel"

Duas ardentes lágrimas lutaram por brotar dos olhos do enlouquecido Stênio,
mas evaporaram-se quase antes de surgir, enquanto que os olhos, com fulgores
demoníacos, nascidos de seu orgulho e de uma ambição sem limites, fixaram-se com
prazer no rígido cadáver. A pena resiste a escrever o que ali se passou mais tarde,
uma vez que se cumpriram os trâmites da lei com o suicida, porque convém advertir
que o abnegado Samuel Klaus havia previsto tudo, para assegurar a impunidade de
seu discípulo, escrevendo uma carta à Justiça para que ninguém fosse culpado de sua
morte.
Depois de um quase simulacro de autópsia, por parte das autoridades judiciárias,
ali ficou o cadáver do pobre Klaus, à completa disposição de seu herdeiro...
Nem bem haviam transcorrido quinze dias, após a desgraça, e já estava o violino
de Franz tirado de seu lugar, limpo e com suas quatro flamantes cordas novas. Seu
dono, o impassível Franz Stênio não se atrevia nem a olhá-las. Quis tocar, porém o
próprio arco parecia tremer em suas mãos, como o punhal nas de um assassino
novato. Resolveu, então não tocar até o memorável dia em que houvesse de
competir com o odiado Paganiní e até superá-lo, sem dúvida. Por aquele tempo, o
estupendo artista já não se encontrava em Paris, mas percorria em triunfo as cidades
flamengas da Bélgica.

V
Poucos dias depois do acima narrado, achava-se o maestro Paganini no refeitório
do seu hotel, de regresso de um concerto noturno, rodeado de seus constantes
admiradores, quando se acercou dele um estranho jovem, de olhar erradio e selvático,
que lhe entregou um cartão, com umas tantas linhas a lápis.
Paganini lançou sobre o intruso um daqueles seus olhares mágicos que poucos
homens podiam suportar cara a cara; porém, encontrou-se, como vulgarmente se diz
com a forma de seu sapato, posto que o jovem, sem baixar o olhar, sustentou-o como
de potência a potência. Saudou-o, então, friamente e disse-lhe com toda a secura:
- Estou à tua completa disposição, cavalheiro.
Fixa a noite e far-se-á como desejares.
No dia seguinte, a cidade inteira soube estupefata que se preparava, para a noite
imediata, um desafio singular. O estranho era o seguinte cartaz, fixado em todas as
esquinas:
"Na noite de..., no Grande Teatro da Ópera, estreará perante o respeitável
público o jovem artista alemão Franz Stênio que veio "ex-professo" a esta cidade, com
90
o único objetivo de medir seus dotes musicais, como violinista, com o maravilhoso
maestro Paganini, competindo, com o artista famoso, na interpretação de suas mais
difíceis composições. Nobremente aceito o repto pelo mestre sem rival, Franz Stênio
executará, competindo com ele, o capricho fantástico que leva o título de "Dança das
Bruxas".
O efeito daquela notícia não pôde ser mais delirante, coisa bem prevista pelo
avaro Paganini que, nunca perdendo de vista seus negócios, encarava-os tanto, ou
mais, que a sua própria arte. Havia, assim, dobrado o preço dos lugares, naquela
memorável noite, não obstante o que, o grande teatro encheu-se completamente.
Chegado o dia do certame, não se falava de outra coisa na cidade e nas
vizinhanças. O sono havia fugido dos olhos de Stênio, que tinha passado toda a noite
anterior em seu aposento, mais inquieto que a fera em seu covil caindo em sua cama,
ao amanhecer, esgotado física e moralmente, num estado comatoso, que não parecia
senão o prólogo de sua morte.
Então teve este macabro pesadelo, que mais parecia realidade do que sonho:
O violino estava sobre a mesa próxima, encerrado em sua caixa, à chave, a qual o
jovem nunca abandonava, desde o dia em que lhe pôs, impávido, as consabidas
cordas, as quais não havia roçado, uma só vez, com seu arco. Desde aquele famoso dia
havia se exercitado em outro instrumento.
Súbito, o jovem adormecido acreditou ver, completamente desperto, a tampa da
caixa levantar-se por si, deixando aparecer o cadáver do velho Klaus, com seus
fosforescentes olhos abertos, olhando-o súplices, enquanto que a voz do próprio
Klaus, cavernosa, ao mesmo tempo que difusa, dizia-lhe:
- Franz, filho querido, sou muito desgraçado nesta nova vida de além-túmulo,
porque não posso separar-me de ... elas, das cordas!
Estas, como respondendo telepaticamente à angustia de seu velho dono,
pareceram soar, debilmente, como um gemido...
Aquilo deixou Franz transido de espanto: seus cabelos eriçavam-se e seu sangue
se lhe gelou nas veias.
Isto não é mais que um sonho, um simples sonho! repetia maquinalmente, para,
em vão, criar ânimo.
- Sim, fiz todo o possível, filhinho, todo o possível para desprender-me destas
malditas cordas; mas, tudo inútil. Poderias ajudar-me, tu que ainda estás vivo?
Os sons foram se tornando mais e mais agudos, até tornarem-se fortes e
estridentes, enquanto que, dentro da caixa, um arranhar estranho, como de ratos, um
zumbir como de um enxame de abelhas, vagava angustioso e horrível.
Aqueles ruídos eram bem familiares ao mísero Franz, pois que os ouvira, amiúde,
desde a tarde em que havia operado os macabros despojos, para colocá-los como
pedestal de sua louca ambição, porém até então tinha logrado persuadir-se, mais ou
menos, de que se tratava de uma alucinação.
Aquilo era, sem embargo, bem real, dolorosamente real. Quis falar, pedir socorro,
fugir, porém, como sucede sempre, em tais casos de pesadelo, os pés permaneceram
cravados no solo e a voz expirou em sua garganta. Aqueles saltos e sacudiduras eram
91
cada vez mais angustiosos, até que chegou um momento em que soaram uns
estalidos, como algo que se rompe dentro de uma caixa. A visão de seu violino, já sem
cordas, consumia-o de desespero.
Fez então, o jovem, um supremo esforço para libertar-se do íncubo que o
obsecava, enquanto que a vozinha de sempre, suplicante, repetia:
- Faze, faze, pelo que mais amas; se não, faze por ti mesmo e ajuda-me a
desprender-me de mim...!
Franz saltou para a caixa entreaberta, como o avaro a quem tentam roubar o
tesouro, ou como a fera que disputa sua presa, no paraxismo do desespero, e rugiu
furioso, crispando as mãos:
- Diabo, monstro, ou o que sejas! Deixa em paz meu violino!
E, enquanto dizia isso, prendeu a caixa com a mão esquerda, segurando a tampa,
ao mesmo tempo que, com a direita, desenhava sobre ela, com um pedaço da
colofônia do arco, a famosa pentalfa, o signo de Salomão, com o qual, nos Contos das
"Mil e Uma Noites", o rei aprisionava, em suas redomas, hostes inteiras de jinas
rebeldes.
Um uivo de protesto ressoou no interior da caixa fechada.
- És um perverso, ingrato, meu amado Franz!
Entretanto, pelo muito que te estimo, perdoo tua insolência! Sabes bem, no
entanto, que não podes aprisionar-me. Olha!...
E, ao dizer isto, uma névoa escura surgiu de dentro da caixa fechada, estendendo-
se por todo o aposento e envolvendo em suas frias e viscosas volutas o corpo do
aterrorizado Franz, qual anéis de uma serpente, antes de estrangular sua vítima. Ao
seu contato, de insuportável angústia, o desventurado deu um grito agudo e
despertou...
- Não foi senão um sonho mau! exclamou acabrunhado o jovem, apertando
contra o coração a caixa do seu stradivarius.
Seu violino, com efeito, estava ali e, intactas, sobre seu cavalete, as preciosas
cordas mágicas, com o que recobrou logo o sangue frio de sempre. Limpou,
seguidamente com esmero o instrumento, passou resina nas cordas do arco, ajustou a
tensão das cordas, retesando-as e chegando até a ensaiar as primeiras notas de "As
Bruxas" - primeiro com medo e, logo a seguir, com corajosa resolução.
Aquelas primeiras notas da peça, ultrajantes e altivas, qual hino de combate, ao
mesmo tempo que doces e majestosas como arpejos de serafins, revelaram ao hábil
Franz uma nova e gigantesca potência de seu arco. Nos ligamentos das notas, que se
seguiam, viam-se surgir arco-íris maravilhosos, cataratas de luzes, tíbias, perfuradas,
extraterrestres... como em um supremo hino de amor, de juventude e de eterna
primavera. Aquelas harmonias, nunca ouvidas, pareciam poder fazer com que os rios
detivessem seu curso, as montanhas se trasladassem de lugar e até os poderes do
inferno inexorável se enternecessem de piedade...
Os "legati" converteram-se em singulares arpejos e terminaram por uns
desabridos "staccati", semelhantes à gargalhada de uma harpia infernal... De novo,
então, assaltaram a Franz os terrores astrais do pesadelo; reconheceu, naquela
92
gargalhada, a própria voz de seu velho mestre Samuel, arrojando, acovardado, o arco.
Não se atrevendo a continuar aquela evocação musical bruxa, fechou,
cuidadosamente em sua caixa o terrível instrumento; levou-o à sala de jantar e,
vestindo-se com o maior esmero, pôs-se a esperar, o mais tranquilamente que pôde, a
hora solene de ir ao encontro marcado.

VI
O momento supremo chegou: Franz Stênio achava-se em seu posto, tranquilo e
sorridente. O teatro estava completamente cheio, tendo muita gente ficado fora,
pretendendo entrar por dinheiro ou por favor. Um rio de ouro desaguava, pois, no
bolso do avaro Paganini, já seguro de seu triunfo artístico.
Cabia ao famoso maestro começar. Quando, dono completo do público, entrou
em cena com seu stradivarius, estalou uma frenética tempestade de aplausos, que
durou largo tempo, fazendo vibrar as paredes do salão. No meio do mais religioso
silêncio, preludiou suas célebres variações de "A Bruxa", interrompidas por mal
contidos bravos! Ao acabar, de um modo prodigioso. 'houve um delírio de
entusiasmo, fazendo crer ao jovem 'Stênio que, durante muito tempo, sua vez não
chegaria 'nunca, ou que o público, acreditando ser insuperável a execução que
acabava de ouvir, não se prestaria a escutá-lo sequer. Por fim, o mestre, aborrecido
por tantos aplausos, pôde retirar-se do palco, porém não sem cruzar seu
desdenhoso olhar triunfal com o do sereno reptador, que se aprontava para o seu
trabalho.
A frieza mais glacial acolheu as primeiras notas de Stênio, sem que o presságio
de tão mal começo o desconsertasse de modo algum. Pálido, altaneiro, sereno, com
o sorriso mais desdenhoso, em seus delgados lábios, continuou, contudo, impassível
e seguro de si mesmo.
Ao avançar as notas do prelúdio, uma estranha reação operou-se no público.
Sim, a execução musical era a mesma de Paganini, disseram todos imediatamente,
porém sem dúvida era também algo mais. Não poucos chegaram a pensar que o
artista italiano jamais havia mostrado tão extraordinária originalidade, nem mesmo
em seus momentos mais sublimes. Aquelas cordas tocadas pelos grandes e
enérgicos dedos do jovem Stênio, vibravam, estremeciam sobre-humanas, como os
intestinos ainda palpitantes da vítima, sob o escalpelo de dissecador, gemendo em
estranha melodia, como o lamento angélico de uma criança moribunda. Aquelas não
eram as ressonâncias comuns de cordas, mas notas da lira de Orfeu, evocadas pelo
olhar satânico daqueles enormes olhos azuis sempre fixos nelas. Em torno daquele
novíssimo mago da arte, os sons pareciam colorir-se e tomar formas tangíveis, como
criaturas brotadas das cordas, ao conjuro do jovem artista, criaturas infernais,
informes brincalhonas, proteicas, na mais bruxa das danças macabras, enquanto que
além, no sombrio interior do palco, parecia estar representando-se, a par das
maiores lubricidades, os mais sabáticos himeneus...
O público viu-se, assim, presa, de pronto, da mais inevitável alucinação coletiva.

93
Paralisados todos, impotentes para romper o perigoso encanto, permaneciam
pálidos e arquejantes, encolhidos em seus assentos, com O frio suor da morte. Todas
as delícias do ópio, todos sonhos mórbidos dos paraísos artificiais, sonhados em seus
cachimbos pelos mais perturbados fantasistas alcoranistas, com huris sedutoras, em
cujos lábios de fogo bebiam, a um tempo, a vida e a morte, estavam ali, e o público
inteiro vivia, horrorizado e agônico, o veneno daquele enlouquecedor delírio... As
senhoras guinchavam e desmaiavam, os homens rilhavam os dentes e crispavam as
mãos, com ardores de febre...
Chegou, assim, ao "finale", ao mesmo tempo anexado e temido, depois de um
verdadeiro terremoto de entusiasmo e frenesi. Uma última e radiante saudação do
jovem Stênio e ei-lo já alcançando o arco, para atacar, triunfante o "allegro" famoso.
Então, seus olhos cruzaram-se, um momento, com os de Paganini que, sentado
tranquilo no camarote do empresário, não tinha ficado atrás em aplausos, embora
seus olhinhos, negros e penetrantes como punhais, mostrassem a mais impassível
indiferença, fixos, não em Franz, mas nas misteriosas cordas do strtuliuariue. Aquilo
esteve a ponto de perturbar o jovem, mas este se refez e, deixando cair
galhardamente, o arco, deu, imediatamente as primeiras notas.
O entusiasmo do público chegou, então, a seu paroxismo, porque era já
indubitável que as mágicas vozes de mil bruxas soavam ali mesmo no recinto da
cena. Aqui, ladravam com elas cães raivosos e ululavam lobos, e tigres famélicos
urravam; lá, silvava a serpente venenosa, grasnava a gralha, rugia o leão, gemia o
vento, troava o trovão, cantava, ao mesmo tempo, por fim o rouxinol e o grilo
cricrilava... Logo o cromatismo das últimas escalas não parecia senão as
desenfreadas carreiras e voos das "malditas", em uma saturnal sem precedentes nas
noites de Walpurgís...
Porém, no mesmo momento daquela satânica apoteose de delírio, no meio de
uma das escalas cromáticas derradeiras, aconteceu uma coisa estranha, além de
toda a ponderação. Os sons haviam se feito desconexos, contraditórios, desarmônicos,
absurdos, enquanto que, do fundo da caixa sonora, surgia a voz alquebrada e
estridente do velho Samuel Klaus que, arrepiante e mortal, dizia-lhe:
- Cumpri, ou não cumpri minha promessa, Franz, filho querido? Estás, pois,
contente de mim e de meu sacrifício?
Ao diabólico aparecimento daquela voz, o encanto funesto quebrou-se,
imediatamente, e, com ele, o público, já livre da fascinação que o havia dominado até
então, prorrompeu em gargalhadas estrondosas, em vaias e assobios. Os músicos da
orquestra, pálidos ainda pelas emoções macabras anteriormente sofridas,
arrebentavam-se de rir, diante de suas estantes de música .e, levantando-se o
auditório em massa, procurou a porta, rindo-se ruidosamente, embora sem acertar
com a chave do enigma. Mas, bem pronto, teve que ficar petrificado todo aquele mar
de poltronas e camarotes, porque todos os circunstantes perceberam algo que os
gelou de espanto. As belas e juvenis feições de Stênio mudaram, envelhecendo em um
segundo; seu galhardo corpo curvou-se, no mesmo instante, como sob o peso dos
anos... Os mais sensíveis foram mais além ainda em sua vidência, uma vez que,
94
surgindo do corpo de Franz algo como um vapor giratório e opalino, logo viram
formar-se uma branca nuvem que evoluiu, ao redor desta outra forma mais ampla e
ameaçadora: a do velho mestre Samuel Klaus, resmungona e grotesca, com ventre
sangrando e com os intestinos estendidos sobre a caixa do violino; enquanto que, com
frenético movimento, de um condenado eterno, Franz raspava e raspava seu arco
sobre aquelas cordas humanas, como essas figuras malditas talhadas nos capitéis
românicos da Idade Média...
O pânico foi geral; cada qual ganhou, enlouquecido, a porta externa do melhor
modo possível, aterrados com os estalos consecutivos das cordas fatídicas que se
arrancavam, com violência, do suporte do violino maldito como quatro grandes
trovões .
Os poucos que acudiram ao palco, para socorrer o desditoso artista, acharam-no
com o violino feito em pedaços e com as cordas enroladas ao pescoço, como
serpentes vingadoras que o acabavam de estrangular.
Quanto às pessoas de fora foram informadas do desgraçado fim de Franz Stênio,
sem nada deixar, nem para pagar seu enterro ou a conta do hotel; Nicolau Paganini,
embora sempre avaro, apressou-se em satisfazer a ambas e a recolher, também, até
as últimas estilhas do destroçado violino.
Por que o teria feito?

95
OS "ESPÍRITOS" VAMPIROS (1)

(1). Estas páginas, e as seguintes, foram tiradas de "Ísis sem Véu", tradução
do malogrado teósofo da primeira hora, D. Francisco de Montolin y de
Togores, um dos ilustres fundadores da Sociedade Teosófica da Espanha.

Cada uma das coisas organizadas deste mundo, tanto visível, como invisível, tem
um elemento peculiar a si próprio. O peixe vive n'água; a planta consome o acido
carbônico que, ao contrário, é mortal para o animal e o homem. Alguns seres estão
organizados para viver nas camadas mais rarefeitas do ar; outros nas mais densas. A
vida, para uns, depende da luz do sol, enquanto que para outros precisa da
escuridão. Deste modo, a sábia economia da Natureza adapta sempre alguma forma
viva a cada uma das condições existentes. Estas analogias permitem inferir que, em
toda a Natureza, não existe ponto algum desabitado e que, ademais, cada coisa
vivente conta com quantas condições sejam necessárias para a sua vida.
Bem: admitindo que no universo exista uma parte invisível, a disposição
imutável da Natureza autoriza a conclusão de que semelhante parte está ocupada,
nem mais, nem menos, do que a parte visível e, desde o momento em que existem
espíritos, forçoso é aceitar a existência de uma grande diversidade dos mesmos,
dentro de seu respectivo mundo.
Dizer que todos os espíritos são iguais entre si, ou que estão adaptados a um
mesmo meio ambiente, ou, enfim, que possuem poderes idênticos, ou que
obedecem às mesmas afinidades e atrações - seria tão absurdo como pensar que
todos os animais são anfíbios, ou que todos os homens podem nutrir-se com a
mesma espécie de alimentos. Razoável é, pois, supor que os espíritos mais grosseiros
estão submersos nos mais profundos abismos da atmosfera espiritual, quer dizer, o mais
próximo de nossa Terra, enquanto que as naturezas mais puras estão muitíssimo mais
distantes do ambiente terreno... Supor o contrário e pensar que qualquer destes graus de
espíritos podem ocupar o lugar e as condições dos outros, equivaleria a esperar que, em lei
de hidráulica, dois líquidos de diferentes densidades possam mudar o grau que lhes
corresponde no aerômetro de Baumé.
Görres relata ("Mystiques" III, 63) uma conversa que teve com alguns hindus da costa
de Malabar. Tendo lhes perguntado se entre eles apresentavam-se espíritos ou aparições,
responderam: "Sim; porém, são maus espíritos. Os bons aparecem pouquíssimas vezes. Os
maus espíritos são geralmente dos suicidas e pessoas assassinadas, quer dizer, das que
morreram de modo violento, os quais revoluteiam em torno de nós e aparecem-nos, como
fantasmas, enganando às pessoas de curto alcance e tentando aos demais, de mil maneiras
diferentes, sendo a noite especialmente favorável a isso ".
Porfírio ("De Sacrificiis" capo de "O Verdadeiro Culto") apresenta-nos, sobre isto,
alguns fatos repugnantes, cuja verdade está comprovada pela experiência de todos os
96
estudantes de magia. "A alma de gente perversa - disse - tem, ainda depois da morte, certo
apego a seu corpo e afinidade para com ele, proporcionada pela violência com que sua
união se rompeu. Por isso, quando desenvolvemos certas faculdades, podemos ver muitos
espíritos adejar, possuídos de desespero, em torno de seus restos terrenos, e até procurar,
desejosos, os pútridos despojos de outros corpos e, sobretudo, o sangue recentemente
derramado, o que, por um momento, parece comunicar-lhes algumas das faculdades da
vida". Se algum espírita põe em dúvida as palavras do grande teurgo, não tem mais que
ensaiar em suas sessões de materialização os efeitos de um pouco de sangue fresco. "Os
deuses e os anjos aparecem-nos - diz Jámblico - no meio de paz e Harmonia, e os demônios
maus, agitando tudo, sem ordem, nem propósito...
Quanto às almas comuns, é muito raro podermos percebê-las" .
A alma com efeito, nasce neste mundo, abandonando o outro mundo, no qual existiu
antes de encarnar-se na Terra... Ela parece morrer, quando se separa de seu corpo no qual,
como uma frágil barca, cruzou por esta vida... Mas, esta morte não aniquila a alma,
transforma-a tão somente, ora em um ser protetor, desses que os romanos conheciam e
reverenciavam com tal nome e com o de mames, penates e lares; ora, se foi perverso, em
uma larva, um lêmur, um espírito errante, terror dos malvados... Quando, em razão de
vícios, crimes e paixões animais, um espírito desencarnado caiu na oitava esfera - o Hades
alegórico pagão ou o geena da Bíblia que é a região mais próxima de nossa Terra - pode
arrepender-se com o vislumbre de razão e de consciência que ainda conserva... Um ardente
desejo de ressarcir-se de seus sofrimentos, um fervoroso anelo de retorno, podem conduzi-
lo, novamente, para a atmosfera terrestre, onde permanecera errante e sofrendo mais ou
menos em sua triste solidão. Seus instintos induzi-lo-ão a buscar, com avidez, o contato dos
vivos...
Tais espíritos são os invisíveis, mas demasiado palpáveis vampiros magnéticos; os
demônios subjetivos tão bem conhecidos das monjas e frades contemplativos da Idade
Média e dos "bruxos", a quem tanta celebridade deu o "Martelo de Feiticeiros",
verdadeiros clarividentes sensitivos segundo suas próprias confissões. São os demônios
sanguinários de Porfirio; as larvas e emures dos antigos os abomináveis instrumentos de
sugestão que conduziram tantas desgraçadas e débeis vítimas à tortura e ao patíbulo.
Orígenes sustenta que, muitos demônios obsessores dos energúmenos do Novo
Testamento eram "espíritos" humanos... Moisés sabia, perfeitamente, quem eram esses
desgraçados e não ignorava as tremendas consequências a que estavam expostas as
pessoas que cediam a tais influências demoníacas, motivo pelo qual promulgou seus
terríveis decretos contra tais "bruxos". Jesus, em troca, cheio de justiça e de divino amor à
Humanidade, limitava-se a curá-los, em lugar de matá-los. Mais tarde, correndo os tempos,
nosso clero, o pretendido modelo de virtudes cristãs, seguiu a lei de Moisés,
prescindindo de "Aquele" a quem chamam "seu Deus Vivo" e queimou aos milhares,
os pretensos "feiticeiros"... Feiticeiros! Fatídico nome que levava emparelhada,
antigamente, a morte mais ignominiosa e que, hoje em dia, levanta, em troca, uma
tempestade de sarcasmos e de ridículo!...
A história dos sortilégios de Salem, tal como os encontramos registrados nas
obras de Cotton, Mather, Calef, Upham e outros, são um trágico capítulo da História
97
da América do Norte, que jamais foi descrito de acordo com a verdade dos fatos.
No povoado de Salem, quatro ou cinco moças sentiram-se convertidas em
médiuns espontâneas, como hoje diríamos, por haverem convivido com uma índia
negra do Oeste norte-americano, que era muito hábil nas operações de magia negra,
conhecidas como Ritual de Obeah. As mencionadas moças começaram a se sentir
maltratadas por alfinetadas, beliscões e mordidas, em diferentes partes de seu
corpo, provocadas por invisíveis espectros que não as deixavam, um momento, em
repouso. A célebre "Narração de Deodat Lawson" (Londres, 1704) consigna que
aqueles espíritos obsessores das moças, maltratavam-nas, pelo conhecido método
feiticeiro do "envoutement", ou seja, das figurinhas de cera, trapos, etc.,
representando as vítimas, e sobre as quais cravavam alfinetes, davam beliscões, etc.,
o que, logo, por telepatia, sentiam as infelizes jovens". Mr. Upham conta-nos que
Abigail Hobles, uma dessas moças, reconheceu que havia feito pacto com o diabo "o
qual lhe aparecia sob a forma de um mancebo e o mandava atormentar as donzelas,
a quem conhecia, levando-lhe imagens de madeira, que mais ou menos, pareciam-se
com elas, bem como, espinhos para cravá-los em tais imagens, o que fazia ela ao pé
da letra com estas, recebendo então, as moças, dor idêntica à que experimentariam
se os próprios espinhos se lhes cravassem nas carnes".
Todos esses casos lamentáveis, fatos históricos cuja validez foi comprovada pelo
irrecusável testemunho dos Tribunais que conheceram da causa, confirmam a
doutrina de Paracelso, sendo por demais surpreendente que um sábio, tão sisudo
como Upham, haja podido acumular, nas páginas de seus livros, semelhante volume
de evidência legal, para demonstrar a intervenção, naqueles fatos, de almas ainda
ligadas à Terra e dos espíritos da Natureza, sem suspeitar a verdade ocultista que se
encontra por detrás dessas tragédias, já que, há alguns séculos, Lucrécio punha na
boca do velho Ennius estas frases de perfeito ocultismo:
“Bis duo sunt hominis: mane, caro, spiritus, umbra;
Quator ísta loci bis duo suscipiunt:
Terra tegit carnem, tumulum circumvolat umbra,
Orcus habet manés".
A respeito desta espécie de fatos, por incríveis que hoje pareçam a nosso
ceticismo, não devemos nos perguntar, imparciais, qual dos autores antigos
menciona fatos de índole tão aparentemente sobrenatural, ou melhor, qual deles não
o menciona?! Na" Odisseia" de Homero (V. 82) achamos Ulisses evocando o espírito
de seu amigo, o adivinho Tirésias, mediante a cerimônia da "festa do sangue". O
herói de Tróia desembainha sua espada, afugentando com ela os milhares de
sedentos fantasmas atraídos pelo cruento sacrifício '(não se atrevendo seu próprio
amigo Tirésias a acercar-se do fojo sangrento), enquanto Ulisses brande a arma
homicida... Ao troiano Enéas, na "Eneida" de Virgílio (Livro IV - v. 260), ao tratar de
descer ao reino das sombras, a Sibila que o guia aos seus umbrais, ordena-lhe que
desembainhe a espada e abra caminho através da compacta multidão de fugazes
sombras que, sedentas, lhe obstruem a passagem:
"Tuque invade viam, vaginaque eripe ferrum".
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Glanvil, em seu "Sadducismus Triumphatus" faz uma resenha maravilhosa da
aparição do "Tamborileiro de Tedworth" ocorrida em 1661, e na qual o scin-lecca, ou
duplo do bruxo tamborileiro, assustava-se grandemente à vista de uma espada.
Psellus, em sua obra "De Daemon", faz uma vasta narração do terrível estado em
que se viu mergulhada sua cunhada, ao ser possuída de um "daemon" elemental, e
como foi curada pelo conjurador Anaphalagis que começou ameaçando, com a
espada desembainhada, o invisível obsessor daquele corpo, até lograr desalojá-lo. Psellus
expõe logo o catecismo da demologia nestes termos (ou termos semelhantes):
"Desejais saber se os corpos invisíveis dos espíritos podem ser feridos com uma
espada ou outra arma qualquer? Pois sabei que sim, que podem ser. Um objeto duro,
arrojado contra eles, causar-lhes-á a dor correspondente, como se ainda vivessem aqui
embaixo; porque, embora seus corpos já não estejam formados das substâncias resistentes
dos nossos, nem por isso deixam de ser sensíveis, porque, nos seres dotados de
sensibilidade, não são unicamente seus nervos que têm a faculdade de sentir, mas também
a tem o espírito que reside neles... Sem auxílio de organismo físico algum, o espírito vê,
ouve e sente qualquer contato... Se o dividirdes em dois, sentireis a mesma dor que
experimentaria qualquer homem vivo, porque seu corpo atual não deixa de ser matéria,
embora de natureza tão sutil que geralmente, é invisível aos nossos olhos".
...Sem embargo, há uma coisa que distingue o corpo do vivo, do corpo do morto:
quando se secciona os membros de uma pessoa viva, não se pode reunir, novamente, as
duas partes facilmente, enquanto que, o tênue corpo etéreo de um demônio reintegra-se
imediatamente depois de seccionado por completo, da mesma maneira que a água ou o ar
se unem depois que foram atravessados por um corpo sólido qualquer. Mas, apesar disso,
cada lanho, ou ferida produzida, é causa de dores para aquele demônio, razão pela qual
todos eles temem a ponta da espada ou os demais instrumentos de defesa.
Bodin, o mais sábio demonólogo de seu século, sustenta a mesma opinião, não
repetida, de igual modo por Porfício e Jâmblico, imitando Platão e Plutarco como muito
bem o sabem todos os teurgistas, Na "Demonologia", aquele sábio conta-nos: Recordo-me
que em 1557, um demônio elemental, dos chamados relampagueantes, caiu como um raio
em casa do sapateiro Pondot e logo começou a chover pedras em toda a casa, com as quais
pude encher uma grande arca fechando em seguida, hermeticamente as janelas, o que não
impediu, sem embargo, que as pedras continuassem caindo, embora sem causar dano a
nenhum dos presentes. O magistrado Latomi veio informar-se; porém, nem bem entrou, o
espírito arrebatou-lhe o chapéu. Seis dias haviam transcorrido, quando o Conselheiro M. J.
Morgues também foi buscar-me para esclarecer tal mistério. Quando entramos na casa, já
alguém havia aconselhado ao dono da mesma que se encomendasse a Deus de todo o
coração e brandisse, com energia, por todo o recinto do aposento, sua espada
desembainhada. Desde aquele momento cessaram, como por encanto, aqueles fenômenos
que, durante uma semana, tanto os havia molestado".
Os livros de feitiçaria da Idade Média estão cheios de narrações análogas, porém, os
mais antigos filósofos não só mencionam relatos semelhantes, mas os descrevem
minuciosamente e analisam-nos.
Proclo figura em primeira linha, no caso de semelhantes maravilhas. É de
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verdadeiramente pasmar a coleção de fatos que apresenta, corroborados por testemunhas,
entre elas alguns famosos filósofos. Ao recordar muitos casos de seu tempo, nos quais
relata que a não poucos cadáveres encontrou em suas tumbas em diferentes posições,
atribui isso a serem larvas ou vampires, "como os casos - acrescenta - referidos pelos
antigos, a respeito de Aristeu, Epimênides e Hermodoro, ou como os outros cinco da
"História de Clearco" o discípulo de Aristóteles. Para acabar cita o caso de Filones. Esta filha
de Demontrator - acrescenta - casada contra a vontade com um tal Krotero morreu pouco
depois, porém, passados seis meses de sua morte voltou à vida, como disse Proclo, por
causa de seu antigo amor pelo jovem Macates, a quem visitou durante muitas noites
sucessivas, até que ela, ou melhor, o vampiro que fazia suas vezes, morreu de raiva. Seu
corpo morto, depois do segundo falecimento, foi visto por toda a cidade, na casa de seu
pai, enquanto que sua sepultura estava vazia. Semelhante caso está confirmado pelas
"epístolas de Hiparco" e pelas de Arriedo e Filipo, segundo relata Catarina Crowe, em sua
"Night-Side of Nature", pág. 335. Demócrito, em seus frequentes escritos referentes a
Hades, disserta, enfim, amplamente, sobre as possibilidades de que alguns mortos
retornem à vida.
Para fazer acentuar a timidez, frivolidade e prejuízos com que soem julgar estes
e outros mil fatos do passado, bastará folhear a obra do Dr. Figuier "História do
maravilhoso nos tempos modernos". A obra apoiada em testemunhos tão valiosos
como o do célebre Dr. Calmeil, diretor do hospital de lunáticos de Charenton, ocupa-
se, documentadamente, dos profetas de Cevennes; os camisardos, os jansenistas, o
diácono Paris e cem outras epidemias de neuroses consignadas na História dos
últimos séculos e que só, ligeiramente, podemos mencionar, máxime, tendo sido
descritos por quantos autores modernos que se ocuparam destes problemas.
Os assombrosos fenômenos dos convulsionários de Cevennes apresentaram-se
como uma verdadeira epidemia, em fins de 1700. As medidas desumanas, adotadas
pelos católicos franceses, para extirpar aquele espírito de profecia que havia
assaltado uma povoação inteira, são acontecimentos históricos sobre os quais não
temos porque insistir. O mero fato de que um punhado de homens, mulheres e
crianças, somando apenas duas mil pessoas, resistissem durante anos inteiros aos
sessenta mil soldados do rei, já é, por si só, um prodígio. Todas as maravilhas,
acontecidas àqueles, estão registrados nos processos que hoje se conservam nos
Arquivos da França. Existe entre estes o informe oficial que o feroz abade Chayla,
prior de Laval, levou a Roma, no qual se lamenta que o espírito maligno fosse tão
poderoso que não bastasse exorcismo, nem tortura inquisitorial alguma, que
conseguisse desalojá-lo dos cevenenses. Acrescenta o abade que o mesmo pôs as
mãos dessa gente sobre carvões acesos; que envolveu a vários outros em algodão
impregnado de azeite e pôs-lhes fogo, sem conseguir, em um e outro caso, que se
chamuscassem, nem que se formasse uma só bolha em sua epiderme; que foram
disparados tiros contra eles, à queima-roupa, encontrando-se, logo, achatadas as
balas entre a roupa e a pele, sem produzir-lhes o menor arranhão, etc....
"Em fins do século XVII - diz o Dr. Figuier, depois de relatar tudo isto - uma anciã
importou de Cevennes aquele espírito de profecia, que bem pronto se comunicou a
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diversos jovens de ambos os sexos, acabando o contágio por se tornar geral.
Homens, mulheres, crianças de tenra idade haviam se constituído em torrentes da
mais estranha inspiração, expressando-se, não no "patois" vulgar, mas no mais
correto francês, língua tão pouco conhecida na região, naquele tempo. Até as
crianças de peito profetizavam. Oito mil profetas - continua - espalharam-se pela
região e a metade das Faculdades de Medicina da França, entre elas a de
Montpellier, apressaram-se em estabelecer-se em Cevennes, declarando-se
maravilhadas e confundidas ao ouvir as pessoas sem cultura literária alguma,
dissertar eruditamente sobre coisas das quais jamais souberam uma palavra, e até
crianças de peito! expressavam-se com igual lucidez, durando horas e horas tais
discursos... Aquilo - acrescenta o comentador - não foi senão uma exaltação
momentânea das faculdades intelectuais, fenômenos que se podem observar em
muitas afecções do cérebro". "Exaltação momentânea, que dura muitas horas, em
cérebros de crianças de peito, falando em correto francês, antes de haverem podido
aprender uma só palavra de seu "patois"! Oh! milagre da fisiologia! Prodígio devia
ser teu nome, exclama o católico Des Mousseaux, ao comentar a obra de Figuier, na
sua "Os Costumes e Práticas dos Demônios".
Chegamos, agora, aos não menos célebres prodígios dos jansenistas, segundo o
Dr. Figuier conta-nos com grande cópia de dados históricos.
O diácono Paris era um jansenista que morreu em 1727. Imediatamente depois
de sua morte, começaram a ocorrer junto à sua tumba os mais surpreendentes
fenômenos. O cemitério regorgitava de gente desde a madrugada até a noite, e os
jesuítas (exasperados ao ver que os herejes constatavam as curas mais maravilhosas
e todo o gênero de prodígios) recorreram às autoridades, delas obtendo ordem de
que se fechasse a entrada da tumba do célebre diácono. Porém, apesar de todos os
obstáculos, as maravilhas continuaram durante uns vinte anos. O bispo Douglas, que
foi a Paris, com este exclusivo objetivo, visitou o sepulcro e pôde comprovar que os
milagres continuavam, como no primeiro dia, entre os convulsionários, coisa que,
forçosamente atribuiu-se, como sempre, ao diabo. O próprio Hume, em seus "Ensaios
Filosóficos" acrescenta: " Jamais, por certo, ter-se-ão atribuído a uma só pessoa tantos
milagres, como os que ultimamente se dão como ocorridos junto à tumba do diácono
Paris. Por qualquer coisa semelhante, viam-se enfermos que haviam sarado, surdos
que haviam ouvido e cegos que tinham recobrado a visão, pela virtude do Santo
sepulcro. Porém, o mais extraordinário do caso é que muitos dos ditos milagres
aconteceram no próprio lugar da tumba, ante juízes de indiscutível seriedade e
retidão, numa época ilustrada, fatos que nem os próprios jesuítas (apesar de serem
pessoas de ordinário instruídas, de contar com o apoio das autoridades civis e de
serem decididos inimigos das opiniões a cujo favor foram obrados os milagres) foram
capazes de negá-los, nem de refutá-los, nem de descobrir sua verdadeira causa. Tal é a
verdade que arrasta o testemunho histórico acerca de semelhantes acontecimentos ".
O Dr. Middleton, em sua "Investigação Livre", obra que escreveu acerca de tais
fenômenos, dezenove anos após haverem eles começado e quando estavam em
franca decadência, declara que a evidência de tais milagres é tão plena e indiscutível,
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pelo menos, como as das maravilhas a que se referem os apóstolos. Com efeito, os
ditos fenômenos, cuja autenticidade está provada por tantos milhares de
testemunhos, perante magistrados e a despeito do clero, então onipotente, devem ser
colocados entre os mais surpreendentes que a História registra. Carré de Montgeron,
membro do Parlamento, que se fez famoso por suas relações com os jansenistas,
enumera-os cuidadosamente nos quatro grossos volumes, dedicados ao rei, sob o
título de "La Verité des miracles operés par l'intercession de M. de Paris, demonstrée
contra l’Archevêque de Sens". Por suas irreverências para com o clero foi encerrado
na Bastilha; porém, era tal o acúmulo de testemunhos pessoais e oficiais aduzidos para
provar cada um dos casos, que a obra foi aceita.
"Uma das convulsionárias - diz Figuier - apoiada por seu dorso na ponta de uma
aguda estaca, mantinha-se dobrada em forma de arco, na maior impassibilidade. O
prazer maior que se podia dar a essa criatura era o de receber, em tal posição e sobre
o estômago, o golpe de um pedrouço de cinquenta libras, suspenso de uma roldana.
Montgeron e muitas outras testemunhas acrescentam que a moça não só não
mostrava equimoses, como pedia, gritando, que lhe golpeassem ainda com mais força.
Jeanne Maulet, outra jovem de vinte anos, apoiadas suas costas contra a parede,
recebia sobre o epigastro, centenas de golpes dados por um forçudo lavrador, com um
martelo de trinta libras, sobre um trado de ferro apoiado sobre a boca do estômago
da débil paciente. Poder-se-ia crer - acrescenta Montgeron ao relatá-lo - que o trado
deveria aprofundar-se nas entranhas desta, mas, ao contrário, ela gritava, com as
feições radiantes de felicidade: Oh! que delícia! Quanto prazer causa-me este
espancamento! Ânimo, irmão! golpeie com dupla força, se puder!...
A relação oficial de tais maravilhas, que é muito mais completa que a de Figuier,
acrescenta outros detalhes, tais como o daqueles que, serenamente, punham-se a
descrever acontecimentos distantes, logo infalivelmente comprovados; o manter-se
no ar, destes convulsionarios, mercê de uma força invisível e sem que todos os esforços
reunidos dos membros da Comissão fossem capazes de obrigá-los a baixar. Viram-se
anciãs subindo, com agilidade de gatos monteses, por muros verticais de até trinta pés
de altura.
O Dr. Calmeil, diretor do Hospital de Loucos de Charenton, deu, acerca destes e
de outros fenômenos análogos, a costumeira explicação que deles dão os médicos: "o
meteorismo ou plenitude de gases no tubo digestivo; o estado espasmódico do útero
das mulheres; o entumecimento das envolturas adiposas das capas musculares que
protegem e cobrem o abdome, etc; acrescentando que a assombrosa resistência
oferecida pelo corpo dos convulsionários era devida ao histerismo ou à epilepsia, força
que tem alguns pontos de contato com as mudanças de sensibilidade que se produzem por
medo cólera, em uma palavra: por qualquer paixão de ânimo levada ao paroxismo. Porém,
o terrível crítico católico Des Mousseaux, em sua obra citada, replica, cheio de indignação
ante esta e outras opiniões semelhantes de nossa ciência médica:
"Estaria completamente desperto, o ilustre médico quando formulou tais teorias? "Se
ele e o Dr. Figuie; quisessem manter, seriamente, suas categóricas afirmações, poderíamos
dizer-lhes: "Permitir-nos-íeis uma vez, por experiência, insultar-vos tão duramente que
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explodísseis de justa indignação contra nós, ao ouvir de nossos lábios, por exemplo, que
falseastes a ciência e ludibriastes vosso público e, aproveitando tal momento, repetíssemos
convosco as experiências de Cevennes dando-vos uma saudável massagem com estacas ou
garrotes, seguros de que outra coisa não resultariam destes terríveis golpes, dado o estado
de insensibilidade a que seguramente, vos levaria a vossa cólera?"
Inútil é acrescentar que o repto de Des Mousseaux permaneceu, para sempre, sem
resposta.
Voltemos aos feitos de vampirismo.
Verdadeiras, ou falsas, existem entre os orientais "superstições" de natureza tal como
jamais puderam sonhar um Edgar Poe ou um Hoffmann e estas crenças acham-se infiltradas
no próprio sangue das nações que lhes deram vida. Cuidadosamente expurgadas de todo o
exagero, ver-se-á que encerram uma crença universal naquelas almas astrais, inquietas e
errantes, conhecidas com os nomes de gulas ou vampiros. Um bispo armênio do século V,
chamado Yesnik, cita alguns exemplos desta espécie, no livro I, parágrafo 20 e 30, de uma
obra manuscrita que se conservava há uns trinta anos na biblioteca do mosteiro de
Etchmeadzine, na Armênia russa. Entre outras, existe uma tradição que data dos tempos do
paganismo e, segundo a qual, sempre que um herói, cuja vida seja necessária na Terra, cai
no campo de batalha, os aralez, ou sejam, os antigos deuses populares do país, os quais
possuem a faculdade de poder devolver à vida os que morreram no combate, lambem as
sangrentas feridas da vítima e sopram sobre elas até que lhes tenham comunicado uma
vida nova e vigorosa, depois do que o guerreiro se levanta; desaparecem todos os seus
ferimentos e volta a ocupar seu posto na batalha. Porém, o espírito imortal do herói voa
para muito longe, entretanto, e vive o resto de seus dias num templo abandonado e
longínquo.
Tão logo, por outro lado, como adepto, era iniciado no último e mais solene mistério
da transmissão da vida, o sétimo e temível ritual da grande operação sacerdotal, que
constitui a mais elevada teurgia, já não pertencia mais a este mundo. Sua alma já estava
livre, desde aquele momento, e os sete pecados mortais, até então sempre à espreita para
devorar seu coração, ao mesmo tempo que sua alma, libertada pela morte, cruzasse as sete
escadas e os sete portais, já não podiam molestá-lo em morte, ou em vida, porquanto havia
passado as sete provas e os doze trabalhos da hora final. O Sumo Hierofante era,
unicamente, quem sabia como levar a cabo esta solene operação de infundir seu próprio
alento vital e sua própria alma astral a um adepto escolhido por ele para sucedê-lo, e quem,
desta sorte, ficava assim dotado de uma vida dupla. (1)
(1). O cruel costume, introduzido posteriormente entre o povo, de sacrificar
vítimas humanas é uma simples cópia, pervertida, dos Mistérios Teúrgicos.
Os sacerdotes pagãos, que não pertenciam à classe dos hierofantes,
continuaram praticando, algum tempo, este horrível ritual, o qual servia
para ocultar seus verdadeiros propósitos. Porém, o Héracles grego está
representado como o adversário dos sacrifícios humanos e como o
destruidor dos homens ou monstros que os ofereciam. Bunsen demonstra
(apoiando-se no fato de que, nos mais antigos monumentos, não se nota
figura ou sinal algum que indiquem que, então, se verificassem sacrifícios
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humanos) que este costume havia sido abolido no antigo Império, no fim
do sétimo século, depois de Menés. Ademais, três mil anos antes de Jesus
Cristo, Hipócrates havia proibido, severamente os sacrifícios humanos entre
os cartagineses. Défilus ordenou que as vitimas humanas fossem
substituídas por touros. Amoris obrigou os sacerdotes a substituírem, por
figuras de cera, aquelas vítimas.
A Epístola V aos Hebreus trata dos sacrifícios de sangue. "Onde existe um testamento -
diz - necessariamente deve medir a morte do testador... Sem derramamento de sangue
não há remissão alguma..." O sangue produz fantasmas e suas emanações
proporcionam, a certos espíritos, o material necessário para formar suas aparições
transitórias. "O sangue - diz Eliphas Lévi - é a primeira encarnação do fluido
universal, a luz vital materializada. Sua produção, a mais maravilhosa de todas as
maravilhas da Natureza; vive, porque se transforma, perpetuamente, sendo o real
Proteu universal. O sangue procede de princípios nos quais. antes, não existia nada
análogo e que se converte em carne, ossos, cabelos, suor, lágrimas... A substância
universal, com seu duplo movimento, é o grande arcano do SER, o sangue é, por sua
vez, o grande arcano da vida".
"O sangue - diz o hindu Ramatsariar - contém todos os segredos da existência;
nenhum ser vivente pode existir sem ele. Beber sangue é profanar a obra do
Criador". Por isso Moisés, seguindo a tradição universal, proíbe fazê-lo.
Paracelso escreve que com os vapores do sangue, pode-se evocar qualquer
espírito que se deseje ver, posto que, como suas emanações, formar-se-á uma
aparição, um corpo visível - mas isto é perfeita feitiçaria e necromancia. Os
hierofantes de Baal produziam profundas incisões em seus corpos e, com seu
próprio sangue, produziam aparições objetivas e tangíveis. Os sequazes de
determinada seita persa, muitos dos quais encontram-se nas imediações das
instituições russas de Temerchan-Shoura e Derbent, têm seus mistérios religiosos,
durante os quais formam um grande círculo e giram em frenética dança. Estando
seus templos arruinados, os rituais têm lugar em edifícios retirados e fechados à.
vista do exterior, edifícios esses com uma grossa camada de areia por pavimento.
Todos se vestem com esvoaçantes roupas brancas e têm as cabeças descobertas e
raspadas. Armados de facas e excitados pela dança macabra, chegam logo a um grau
de excitação furiosa, começando a ferir-se, a si e aos outros ficando o pavimento
empapado de sangue. Antes que semelhante "Mistério" termine, cada homem tem
um companheiro com quem dança. Algumas vezes, os espectrais bailarinos têm
cabelos em seus crânios, os quais se diferenciam dos cabelos naturais das suas
inconscientes cabeças. Como prometemos solenemente, não divulgar os detalhes
desta terrível cerimônia, que só uma vez presenciamos, devemos abandonar este
ponto, acrescentando que, durante o tempo em que estivemos em Petrovsk do
Cáucaso, presenciamos outro mistério semelhante.
Antigamente as feitiçarias da Tessália, acrescentavam, algumas vezes, ao sangue
do célebre cordeiro negro o de um menino, para melhor evocar as sombras. Aos
sacerdotes ensinava-se a arte de evocar os espíritos dos mortos assim como os dos
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elementos, porém, sua maneira de proceder não era certamente a daquelas terríveis
feiticeiras.
Entre os yakuts da Sibéria, nos próprios confins do Lago Baikal e junto ao Rio
Vitema, existe outra tribo que pratica feitiçaria, tal como a exerciam as famosas
bruxas da Tessália. Suas crenças religiosas são uma mescla estranha de superstições
e de filosofia... Segundo elas, as almas dos mortos convertem-se em sombras
condenadas a vagar sobre a Terra, até que se verifique certa mutação, ora favorável,
ora adversa, que explicam por suposição. As sombras luminosas, ou sejam, as dos
bons, convertem-se em guardiães ou protetores daqueles a quem hajam amado na
Terra. As sombras escuras sempre procuram, ao contrário, causar danos a quantos
em vida conheceram, incitando-os ao crime e a outras más ações, assim
prejudicando, por todos os meios, os mortais... Durante os sacrifícios de sangue, que
sempre se verificam à noite, os yakuts evocam as sombras escuras, ou malvadas, para
delas saberem como hão de conter sua malignidade. O sangue lhes é necessário para
isto, porque sem seus vapores, não poderiam aquelas se fazerem visíveis e também
seriam, acreditam, mais perigosas, pois, o sangue, extrairiam das pessoas vivas, por
meio da transpiração. Quando às sombras boas ou luminosas, estas não precisam ser
evocadas assim, porque isso desagrada-lhes e porque, quando querem, podem fazer
sentir sua presença, sem necessidade de nada.
A evocação, por meio de sangue, também se pratica, embora com objetivo
diferente, em distintos pontos da Bulgária e da Moldávia, especialmente nos distritos
vizinhos dos muçulmanos. A tirania e escravidão horríveis a que têm estado sujeitos
estes desgraçados cristãos, durante séculos, fê-los mil vezes mais impressionáveis e
supersticiosos. No dia sete de maio de cada ano, os habitantes da Bulgária e Moldávía
Válaca celebram “a festa dos mortos". Com efeito, depois do sol posto, uma multidão
de homens e mulheres, cada qual levando um círio na mão, acodem aos cemitérios e
oram sobre as tumbas de seus defuntos. Esta antiga e solene cerimônia. chamada
Trizna, é uma reminiscência geral dos primitivos ritos cristãos, todavia era mais solene
enquanto durou a escravidão muçulmana... Entre os habitantes das cidades, a
cerimônia já é meramente ritual; porém, entre alguns camponeses, o rito toma
proporções de toda uma evocação teúrgica. À véspera do dia da Ascenção, as
mulheres búlgaras acendem uma porção de lâmpadas e círios; junto às tumbas,
colocam crisóis sobre tripeças e o incenso perfuma, ao redor, a atmosfera, num
grande raio. Desde que anoitece, até um pouco antes da meia-noite, e em memória
do morto, convida-se os amigos, e um certo número de mendigos, para comer,
obsequiando-os com vinho e raki, ou aguardente, distribuindo-se dinheiro aos
pobres. E, quando termina a festa, acercam-se da tumba os convidados, chamando o
defunto por seu nome, dando graças pelas bondades de que têm sido objeto. Quando
já todos, inclusive os parentes mais próximos, vão se retirando a pé, uma mulher,
geralmente a de mais idade, deixa-se ficar só com o morto, e, asseguram que
procede, então, à cerimônia de evocação. Prosternada de joelhos e depois de
ferventes súplicas ao morto, uma e mil vezes repetida, para que apareça, a mulher
extrai de si um número maior ou menor de gotas de sangue, do lado esquerdo do
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peito, e as deixa cair lentamente sobre a tumba. Isto dá forças ao invisível espírito do
morto que vaga ao redor do sepulcro, permitindo-lhe, por alguns instantes, assumir
forma visível e dar instruções adequadas à crista teurgista, ou então, abençoando-a
simplesmente e desaparecendo até o ano seguinte. Tão firmemente está arraigada
esta crença que, por motivo de uma dificuldade de família, ouvimos a uma mulher
moldávia propor a seu irmão para retardar toda a decisão acerca do assunto
debatido, até que, na noite da Ascensão, pudesse o pai resolver a dificuldade - coisa a
que o irmão acedeu, como se o pai estivesse na casa vizinha.
Que na Natureza existem segredos terríveis, pode crer quem, como nós, foi
testemunha do caso do zuachar russo, caso no qual não pôde o feiticeiro morrer, até
que conseguisse comunicar, a outro, a palavra - o que raras vezes deixam de fazê-lo,
de sua parte, os hierofantes da Magia Branca.
Os hindus acreditam, firmemente, como os sérvios e húngaros, nos vampiros. "O
fato de um espectro que reaparece para chupar o sangue humano - diz o Dr. Pierart,
famoso mesmerizador, em um sábio artigo da "Révue Spiritualiste", vol IV - não é tão
inexplicável quanto parece, e menos ainda para os espiritualistas que admitem os
fenômenos chamados de bi-corporificação ou duplicação da alma. Essas mãos
espectrais que temos apertado, esses membros materializados, que tão
palpavelmente temos visto nas sessões mediúnicas, são uma prova evidente acerca
de quantas e quantas coisas são possíveis, sob condições favoráveis, para esses
espectros do astral, evocados por elas".
Ao assim expressar-se o respeitável médico, não faz senão reproduzir a teoria
cabalística sobre os shandins, ou seja a categoria mais inferior de todos os seres
espirituais. Maiomônides conta-nos em sua obra "Abodah Sarah" que as gentes de
seu tempo viam-se obrigadas a manter íntimas relações com os seus defuntos e
descreve as festas de sangue que, em tais casos, se celebravam. Cavavam, com efeito,
no solo um buraco, no qual vertiam sangue fresco e, colocando em cima uma mesa,
evocavam os espíritos que, pressurosos, acudiam, respondendo a todas as perguntas.
Não obstante isso, Pierart, com toda a sua doutrina teurgista acerca do vampirismo,
mostra-se indignadíssimo contra a superstição do clero, ao ordenar que se
atravessasse com um espeto de pau o coração de todo o cadáver sobre o qual
houvesse recaído suspeita de vampirismo.
Enquanto a forma astral do morto não esteja completamente desprendida do
corpo, existe, com efeito, certa interligação, em virtude da qual, mediante a atração
magnética, pode-se obrigar àquela forma retornar e apossar-se novamente do corpo.
Acontece, em certas ocasiões, que a forma astral não se desprendeu deste, senão
pela metade, por assim dizer, quando o corpo é enterrado, por apresentar todas as
aparências de morte verdadeira. Em semelhantes horríveis casos, a alma astral,
aterrada, retorna violentamente ao seu invólucro de carne; então, a desditosa vítima,
ou bem acaba de morrer realmente, sob o paroxismo das atrozes angústias da
sufocação, ou bem se converte num vampiro, se durante a existência terrestre foi
grosseiramente material...
Neste segundo caso, começa para o mísero cataléptico, assim enterrado em vida,
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uma existência verdadeiramente bicorpórea, na qual o corpo que jaz aprisionado na
tumba é sustentado com o sangue ou fluidos vitais que seus corpos astrais,
fantasmagóricos, roubam, aqui e ali, aos vivos; porque é sabido que esta última forma
etérea pode ir onde queira, enquanto o laço que a mantém unida ao corpo não se
rompa, e vagar, em forma visível ou invisível, alimentando-se astuciosamente de suas
humanas vítimas. A julgar por todas as aparências, semelhante espírito logra,
seguidamente, transmitir, mediante uma disposição misteriosa e invisível (que acaso
chegue a ser explicada um dia) o produto de suas sucções fluídicas, ao corpo material
que jaz inerte no fundo da tumba, contribuindo, assim, para perpetuar, de certo
modo, aquele seu estado de catalepsia.
Bríêrre de Boismont cita alguns casos, pelo teor, completamente autênticos e
que houve por bem qualificar de "alucinações". "Uma recente investigação
demonstrou - diz um periódico francês - que, em 1871, dois cadáveres foram
submetidos ao infame tratamento da superstição popular, por instigação do clero...
Oh! que cega preocupação! Porém o Dr. Pierart, citado pelo escritor católico Des
Mousseaux, que resolutamente admite o vampirismo, exclama: - Cega superstição,
dizeis? Sim, tão cega quanto preferirdes, porém - de onde provêm tais preocupações?
Por que perpetuaram-se elas através de todas as épocas e em tantos países? Depois
da infinidade de casos de vampirismo, como se viu, devemos dizer que hoje já não
sucede tal coisa e que os casos que deles se relatam jamais tiveram sólido
fundamento? Do nada, nada se faz. Cada crença, cada costume, procede dos fatos e
causas que lhe deram origem. Só se nunca se houvesse visto aparecer, no seio das
famílias de certos países, seres revestidos da aparência comum dos mortos, indo
chupar o sangue de uma ou de várias pessoas; e se disto não tivesse resultado a
morte, por extenuação, da vitima; se ninguém jamais tivesse ido desenterrar
cadáveres no cemitério, nem jamais tivéssemos nós presenciado o fato incrível de
encontrarem-se pessoas enterradas, vários anos antes, com o corpo mole e flexível,
olhos abertos, tez rosada, com a boca e nariz cheios de sangue e vertendo sangue,
em torrentes, no ato de serem decapitadas".
Um dos mais importantes exemplos de vampirismo figura nas cartas
confidenciais do filósofo Marquês d'Argens e, na "Révue Britanique" de março de
1837, o viajante inglês Pashley descreve alguns casos de que teve notícia na Ilha de
Cândia. O Dr. Jobart, sábio belga, anticatólico e antiespírita, dá testemunho de outros
casos análogos em sua obra acerca de "Les Hauts Phenomênes de la Magie", pág. 199.
"Não quero examinar - diz o bispo de Avrauches Huel ("Huetiana" pág. 81) - se os
casos de vampirismo que se relatam diariamente são verdadeiros ou meros frutos de
um erro popular, mas o certo é que foram testemunhados por tantos autores
competentes e fidedignos, por um número tão considerável de testemunhas de vista, que
ninguém deve pronunciar-se, nesta questão, sem contar com uma grande dose de
prudência."
O bom senhor Des Mousseaux, que tanto se empenhou, recolhendo materiais
para a sua teoria demonológica, sai-nos com alguns exemplos sensacionais, para
demonstrar que todos esses casos se devem à intervenção do diabo, o qual toma as
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formas fantásticas dos mortos, para revestir-se delas e vagar pelas noites, chupando o
sangue das pessoas - explicação que a nós pareceria excelente, se não nos pudéssemos
conformar com outras melhores, sem trazer à cena tão sinistro personagem. Se, de
uma vez para sempre, queremos crer no retorno dos espíritos, temos uma multidão de
perversos sensualistas, miseráveis e criminosos de toda a espécie, principalmente
suicidas, capazes de rivalizar, em malícia, com o próprio diabo nos seus melhores dias,
já sendo bastante por si só o vermo-nos obrigados a crer no que vemos e que sabemos
ser um fato, ou seja nos espíritos, sem necessidade de acrescentar ao nosso panteon de
espectros um diabo que ninguém nunca viu.
Sem embargo, naquilo a que o vampirismo se refere, há particularidades
interessantíssimas a colher, desde o momento em que a crença em tal fenômeno
existiu desde a mais remota época, em todos os países. As nações eslavas, os gregos, os
válacos e os sérvios duvidaram mais da existência de seus inimigos - os turcos - que do
fato relativo à existência dos vampiros. Os brucolak ou vardalak, como são
denominados estes últimos, são hóspedes por demais familiares nos lares eslavos, para
que deles se duvide. Escritores do maior talento, tão íntegros quanto cheios de
perspicácia, têm se ocupado do assunto, nele crendo, como se supõe... Donde provém
esta crença máxima através dos tempos, esta identidade de detalhes e analogias nas
descrições daquele singular fenômeno que encontramos no testemunho juramentado
de povos estranhos uns aos outros (e que discrepam, sem embargo, por completo a
respeito de várias outras superstições)?
"Há - diz Dom Calmet, monge beneditino, cético, do século XIX, em seu artigo
"Apparition" (vol. 11, pág. 47 da obra citada) - dois procedimentos distintos para
destruir a crença destes pretensos espectros... O primeiro consiste em explicar os
prodígios do vampirismo por meio de meras causas físicas; o segundo em negar
completamente a verdade de tais relatos, o que consideramos a coisa mais segura e
mais prudente.
O primeiro procedimento de explicar, com efeito, o vampirismo por meio de
causas físicas, se bem que ocultas, é o adotado pela Escola de Mesmerismo de Pierart e
não são certamente os espíritas que possam ter mais direito de rechaçar o plausível
desta explicação. O segundo plano, todavia, é o adotado pelos homens de ciência e
pelos céticos. Segundo adverte Des Mousseaux, não há caminho que menos filosofia
requeira que este procedimento expedito - a negação completa daquilo que se ignora.
"Certo dia - continua Dom Calmet - começou a aparecer inopinadamente aos
habitantes de uma aldeia. perto de Kodom, o espectro de um pastor e, em
consequência do susto, ou por outra causa qualquer, todos os que o viram morreram
em menos de uma semana. Exasperados diante disso, os demais camponeses foram
em busca do cadáver do pastor e o desenterraram, cravando-o com uma grande estaca
no solo. Novamente, naquela mesma noite, apareceu seu espectro, abismando a
população num terror quase apocalíptico e matando por sufocação vários habitantes,
em vista do que as autoridades locais entregaram o corpo do pastor ao verdugo que o
queimou num campo vizinho. O cadáver - continua Des Mousseaux ao comentar o fato
- uivava como um louco, esperneando e resistindo como se estivesse vivo, arrojando
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rubras golfadas de sangue pelo ferimento da estaca, e as aparições de seu espectro não
cessaram enquanto todo o corpo não foi reduzido a cinzas.
"Em mais de uma ocasião - continua ainda Calmet - vários representantes da
justiça visitaram os lugares que, segundo rumores públicos, eram frequentados por
espectros. Os cadáveres destes foram logo exumados e sempre se observou estarem
sãos e rosados os corpos de todos os suspeitos de vampirismo. Observava-se também
que os objetos familiares das casas outrora habitadas por eles, em vida, moviam-se
estranhamente, sem que ninguém os tocasse. Por um zelo muito natural, as
autoridades negavam-se, geralmente, à cremação ou decapitação sem antes cumprir
os procedimentos legais: citavam-se, pois, testemunhas e suas declarações eram
ouvidas e atentamente meditadas. Logo passava-se ao exame dos cadáveres
desenterrados e, se apresentassem inequívocos sinais, ditos de vampirismo. eram
entregues ao verdugo.
"Porém, a dificuldade de tudo isso - termina Dom Calmet consiste em saber como
e quando esses vampiros podem abandonar suas tumbas e, logo após realizarem
proezas, tornar a entrar nelas, sem que pareça que a terra tenha sido removida na mais
ínfima porção, tendo sido vistos por testemunhas com suas vestes habituais, comendo
e vagando, enfim, de um lado para outro corno se estivessem vivos... E, se tudo isto
não é senão pura fantasia, por parte daqueles que se viram favorecidos por
semelhantes visitas - porque, indefectivelmente, encontram-se logo, em suas
respectivas sepulturas, os cadáveres de tais espectros, frescos e flexíveis, cheios de
sangue e sem oferecer em seus corpos sinais de decomposição alguma? Como
explicar que, no dia seguinte à noite em que repetidos espectros aterrorizavam, com suas
aparições, os vizinhos, seus pés encontravam-se sujos e cobertos de barro, coisa que não se
observava, de modo algum, nos demais cadáveres do mesmo cemitério? Por que, uma vez
queimados os corpos dos vampiros, nunca tornam a aparecer seus espectros e por
que, enfim, ocorreram casos semelhantes com tanta frequência nesse país, tornando
impossível extirpar dele tamanhas superstições?"
Existe, não há dúvida, em estado de semimorte, fenômeno de natureza
desconhecida e, portanto desprezado como superstição, pela Fisiologia e Psicologia
de nossa época. Em semelhante estado, o corpo está virtualmente morto e o caso
daquelas pessoas em que a matéria haja predominado sobre o espírito, sem que,
entretanto, uma perversão absoluta haja destruído "o fio de ouro" que une a alma
humana ao seu Supremo Espírito, uma vez que o corpo físico jaz abandonado a si
mesmo, a alma astral ir-se-á dele desprendendo, por meio de esforços gradativos,
separando-se completamente daquele, ao romper-se o elo derradeiro dos vínculos
corpóreos. A partir deste momento, uma polarização magnética repelirá
violentamente o homem etéreo da massa orgânica de seu corpo, já em franca
decomposição e toda a dificuldade consiste: primeiro - em que nós imaginamos que o
momento de tal separação é aquele em que o homem é declarado morto, pela
ciência, e não depois; e o segundo, na incredulidade dominante acerca da existência,
seja da alma, seja do espírito, mantida injustamente por essa mesma ciência.
Pierart trata de demonstrar, em sua obra, que são sempre perigosos os
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enterramentos prematuros, mesmo quando ofereçam sinais indubitáveis de putrefação.
"Os infelizes mortos catalépticos - diz - enterrados (por terem sido considerados
mortos) em lugares frescos e secos, onde o corpo não pode ser destruído por causas
locais seu espírito (quer dizer, seu corpo astral), revestindo-se de um corpo fluídico ou
etéreo, vê-se impelido a abandonar sua tumba e executar, a expensas dos seres
viventes, os atos peculiares de sua vida física, mui especialmente os da nutrição e
cujos elementos - graças ao misterioso laço existente entre o corpo e a alma (laço que
a ciência espiritualista um dia explicará) são transmitidos ao corpo material que jaz na
sepultura, ajudando-o, desse modo, a conservar sua mísera existência. Semelhantes
espíritos, vagando em seus corpos efêmeros têm sido vistos com frequência
afastando-se ou retornando aos cemitérios, e tem-se conhecimento de que, caindo
sobre os vivos, têm-lhes chupado o sangue, vampirizando-os. Ulteriores investigações
judiciais vieram logo demonstrar que, em consequência de tamanha monstruosidade,
sobrevinha às vítimas uma extraordinária sangria e, por causa disso, mais de uma
tinha sucumbido."
Assim, pois, segundo o teor do piedoso conselho de Dom Calmet, ou devemos
persistir em negar os fatos, ou bem se é que temos de admitir os testemunhos
humanos e legais, mui dignos de respeito, aceitar a única explicação possível dada
por Glanvil, ao dizer, no volume II, pág. 70 de seu "Sadducimus Triumphatus" que "as
almas dos defuntos encarnam-se em veículos aéreos ou etéreos, como está
plenamente comprovado por homens tão eminentes, como o Dr. More, ao evidenciar
que semelhante doutrina foi sempre a dos Santos Padres e dos mais antigos
filósofos..."
Antes de abandonar o repulsivo tema do vampirismo, e sem outra garantia que a
de havermos comunicado vários testemunhos fidedignos, queremos citar um caso a
mais, para que possa servir de exemplo.
Em princípios deste século, aconteceu, na Rússia, um dos mais horríveis casos de
vampirismo que a História registra. O governador da província de Tch... era um
homem de uns sessenta anos, de caráter ciumento, malicioso e cruel. Investido de
uma autoridade despótica, exerci-a sem contemplação alguma, levado sempre pelo
primeiro impulso de seus brutais instintos. Havia se enamorado, o governador, de
uma linda moça, filha de um oficial seu subordinado e, apesar da donzela estar
prometida a um jovem que a amava muitíssimo, o tirano obrigou o pai da moça a que
a casasse com ele e não com o jovem. Presa do maior desespero, a pobre vítima
chegou a ser a esposa do velho que, bem pronto, mostrou-se cheio de ciúmes,
chegando até a bater-lhe e encerrá-la semanas inteiras em seu domicílio, sem deixá-
la falar com ninguém, a não ser em sua presença. Por fim, o odioso governador, certo
dia, caiu doente e morreu; porém, ao sentir já próximo seu inevitável fim, fez sua
esposa jurar que não se tornaria a casar, ameaçando-a, com as mais horríveis
imprecações de que no caso de faltar a seu juramento, chegaria até a sair do sepulcro
e a mataria.
O tirano foi enterrado no cemitério da cidade, situado do outro lado do rio. Dali a
pouco, sua liberta viúva, vencendo seus escrúpulos pelo juramento que fez, deu novo
110
ouvidos às instâncias de seu antigo noivo e ficaram comprometidos para casarem-se
em breve prazo.
Na própria noite da costumeira festa esponsalícia, quando todo o mundo já se
tinha retirado, alvoroçou-se toda a antiga mansão com lamentos e gritos angustiosos
de horror, que saíam do quarto da noiva. Forçaram logo as portas e viu-se, com
surpresa, que a infeliz mulher jazia desmaiada em seu leito, ao mesmo tempo que se
ouvia o ruído de uma carruagem saindo do pátio. O corpo da jovem estava cheio de
equimoses produzidas, ao que parece, por fortes beliscões e no seu pescoço via-se
como se fosse uma ligeiríssima punção, da qual brotavam gotinhas de sangue. Todos
ficaram, de pronto, pasmados de horror, quando a viúva, ao voltar a si, narrou
aterrorizada que seu falecido esposo, o governador, havia entrado, subitamente, em
seu quarto fechado, exatamente como em vida, com a diferença de apresentar em
seu semblante uma horrível palidez cadavérica e lhe havia batido e beliscado
cruelmente, depois de lhe ter lançado em rosto a sua infidelidade.
Inútil é acrescentar que ninguém deu crédito a semelhante relato, porém, na
manhã seguinte a sentinela, postada no outro extremo da ponte que cruza o rio,
contou que, momentos antes da meia-noite, uma carruagem puxada por seis cavalos
passou em grande velocidade pela ponte, em direção à cidade e sem fazer o menor
caso das vozes de "Alto!" que lhe deram.
O novo governador, que não acreditara na estória de semelhante aparição,
tomou, entretanto, a precaução de dobrar as sentinelas da outra parte da ponte,
apesar do que, o caso repetia-se, noite após noite, com desesperante regularidade.
Os soldados de guarda na barreira de portagem, declaravam unânimes que, apesar
de todos os seus cuidados e dos esforços feitos para detê-la, a carruagem fantástica
passava velozmente adiante, sem que fossem eles capazes de impedi-la. Todas as
noites também ouvia-se, no pátio da casa, o mesmo ruído prolongado e surdo do
referido coche; os vigias, juntamente com os criados e a família da viúva, ficavam
imersos, logo, num profundo sono, e todas as manhãs aparecia, enfim, a pobre
vítima, machucada, ensanguentada e desfalecida.
Não há como dizer da consternação que tal acontecimento produzia em toda a
cidade. Os médicos não conseguiam explicar aquele caso; os sacerdotes
estabeleciam-se no palácio da viúva, para nele passar a noite em oração mas, ao
avizinhar-se a hora da meia-noite, todos caíam presa de um letargo invencível. O
próprio arcebispo chegou da Capital e praticou, em pessoa, a cerimônia do
exorcismo, porém, na manhã seguinte acharam a viúva em estado mais deplorável e
prestes a morrer.
Para acalmar, enfim, a horrorizada vizinhança, o governador se viu obrigado a
adotar as mais severas medidas. Situou cinquenta cossacos em toda a extensão da
ponte, com ordem terminante de deter, a todo o transe a carruagem fantasma.
Soaram, entretanto, as doze badaladas da meia-noite e viu-se vir veloz o coche pelo
caminho do cemitério. O oficial de guarda e um sacerdote, crucifixo em punho,
plantaram-se diante da barreira de portagem, gritando ao mesmo tempo:
- Em nome de Deus e do Czar, quem vem aí?
111
Ao que uma cabeça, muito conhecida de todos, apareceu à janelinha do coche e
uma voz não menos conhecida, respondeu, com energia:
- O Conselheiro Secreto do Estado e Governador C...! - e, no mesmo instante, o
sacerdote, o oficial e os cinquenta soldados foram lançados violentamente para um
lado, como sacudidos por um impulso elétrico, ao mesmo tempo que o fantástico e
luxuoso carro cruzava veloz, sem que ninguém pudesse detê-lo.
O arcebispo, então, e como último recurso, apelou para o processo sancionado
naquele tempo, ou seja de desenterrar o corpo e cravá-lo à terra, por meio de aguda
estaca de roble, que lhe atravessasse o coração - o que foi exatamente feito, com
grande pompa religiosa, na presença de todo o povo. Os narradores do maravilhoso
fato asseguraram-me que o corpo do governador achava-se, com efeito, repleto de
sangue e com as faces e os lábios vermelhos. No momento de cravar-lhe a estaca,
exalou um gemido, enquanto que um grande jorro de sangue brotou e, com ímpeto,
subiu a grande altura. O arcebispo pronunciou, logo, o exorcismo costumeiro e, desde
então, não se ouviu mais falar do vampiro, nem da carruagem fantástica.
Até que ponto as circunstâncias do caso tenham sido exageradas pela tradição,
não podemos dizer, porém nós o sabemos por uma testemunha ocular e, ainda hoje,
existem famílias na Rússia, cujos membros idosos recordam fielmente o espantoso
acontecimento.

112
A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS

As pretensões dos amigos da ciência esotérica de que Paracelso produziu


quimicamente homúnculos, por meio de certas combinações alquímicas
desconhecidas, ainda são, como é natural, qualificadas de patranhas. Mas se Paracelso
não fez homúnculos, outros adeptos da Magia, desenvolveram-nos, sim, não faz um
milênio e pela mesma lei, por meio da qual o biólogo chama à vida os seus animálculos,
do mesmo modo que o famoso cavalheiro inglês Andrew Cross, de Somersetshire,
produziu colônias inteiras de ácaros... o que lhe valeu a consequente perseguição
como ímpio... Quem - disse Bain - é capaz de pôr limites às possibilidades ocultas da
vida?
Numerosíssimos são os mistérios das regiões inexploradas da Natureza e, mesmo
aqueles fenômenos que se têm por conhecidos oferecem sempre uma "oculta facies"
que se desconhece todavia, porque não há um só mineral, uma só planta que haja
revelado a última de suas propriedades aos sábios. Que é, com efeito, o que sabem os
naturalistas acerca da constituição íntima dos reinos da Natureza? Como podem estar
seguros de que, para cada uma das propriedades descobertas, não existam cem outras
ocultas na natureza interna, e inexplorada da planta ou da pedra? Sempre que Plínio, o
naturalista, Eliano e até Diodoro Sículo, atribuíam a alguma planta ou mineral uma
virtude oculta, desconhecida de nossos botânicos e físicos, procurando com louvável
perseverança desembaraçar a verdade histórica dos exageros e fábulas que a
ocultavam, suas afirmações foram repelidas de plano, como absurdas.
Desde tempos imemoriais, a averiguação da verdadeira natureza do chamado
princípio vital foi objeto das especulações científicas. A ciência exata conhece somente
cinco poderes da natureza; o cabalista conhece sete e, nestes dois adicionais e não
conhecidos encerra-se todo o mistério da vida. Um destes é o espírito imortal, cujo reflexo
está unido à matéria inorgânica, de modo invisível, Quanto ao outro, deixaremos que cada
qual o descubra por si mesmo. O professor José De Compte, em sua "Correlação da força
vital com as forças físicas e químicas", pergunta qual será o ponto diferencial, entre o
organismo vivo e o morto, respondendo ele próprio: Nenhuma! Todas as forças químicas e
físicas, extraídas do acervo comum da Natureza e encerradas no organismo vivente,
parecem existir, todavia, no morto, embora elas vão desaparecendo à medida que avança a
decomposição. E, sem embargo qual é a índole dessa diferença, expressa em fórmulas de
ciência positiva? Que é aquilo que se foi e para onde foi? Aqui ha algo, com efeito, que a
ciência não pôde, todavia, compreender e a perda deste algo é precisamente o que
acontece no momento da morte e o que constitui, em seu mais elevado sentido, a força
vital".
Por impossível que pareça à ciência encontrar e explicar a vida, tal mistério é um
mistério pela metade, não somente para os grandes adeptos e videntes mas para, os
crentes sinceros em um mundo espiritual... , infalível instituição com a qual nada tem que
ver a razão fria. Por mais que se contradigam entre si os dogmas errôneos inventados pelo
113
homem, a verdade permanece, e não existe religião alguma, seja crista ou pagã, que não
esteja firmemente assentada sobre a rocha dos séculos: Deus e o Espírito imortal do
homem.
Todo o animal é mais ou menos dotado da faculdade de perceber, senão os espíritos,
pelo menos algo que por enquanto, é invisível para a generalidade dos homens e que,
unicamente, pode ser visto por um clarividente. Fizemos centenas de experiências com
gatos, cães, macacos e, uma vez, com um tigre domesticado. O espelho redondo, conhecido
por "O cristal mágico" foi fortemente mesmerizado por um senhor hindu que antigamente
habitava Dindigul e que hoje reside afastado, em seu retiro, nos Gates Ocidentais. O dito
senhor, à maneira dos antigos marsos e psilas, encantadores de serpentes, tinha
domesticado um tigre Malabar. O animal achava-se como que afundado numa modorra
crônica. Inofensivo e manso como um cão, as crianças faziam com ele todas as espécies de
travessuras, porém, cada vez que se obrigava a olhar no "espelho mágico", o pobre bicho
entrava em estado de extraordinária excitação. Seus olhos expressavam, então, o mais vivo
terror humano. Incapaz de poder desviar a vista do espelho, fascinado, tremia ante a vista
de algo desconhecido para nós. E, quando se retirava o espelho, ficava aturdido e prostrado
durante horas. Que imagem fantástica de seu próprio mundo animal e invisível podia ver
no espelho, para sentir tamanho terror? Ninguém pode dizê-lo. Salvo aquele ser que
produzia a imagem.
O mesmo efeito observei também com um sírio, meio cristão e semipagão, de
Kumankulan, tido como feiticeiro. Estávamos reunidos, sete homens e duas mulheres, uma
destas natural da região. Perto de nós estava um filhote de tigre, entretido com um osso e
um wanderoo ou macaco-leão, personificação da malícia, com sua pelagem negra, suas
patinhas e barbicha brancas como a neve e seus olhinhos chispeantes e ladinos. Havia, por
último, um formoso e dourado verdilhão, junto à janela, alisando sua cauda com o bico em
forma de percha. Na Índia, tais sessões, que poderíamos chamar de "espíritas", não se
precisa realizar às escuras, como entre os europeus, mas sem outra coisa mais que um
silêncio perfeito e boa harmonia entre os circunstantes. A luz penetrava, em torrentes,
pelas portas e janelas abertas, enquanto que um longínquo murmúrio de vida, procedente
da selva vizinha, enviava-nos os ecos de miríades de insetos, pássaros e quadrúpedes.
Rodeados todos os lados por formoso jardim, víamos, lá fora, vermelhos cachos de eritrina
ou árvore de coral. Respirávamos a fragrância de árvores e arbustos, e das flores de
begônias, cujas brancas pétalas vibravam, acariciadas por uma brisa suave. Em uma
palavra: estávamos rodeados de luz, harmonia e perfumes. Aquela ampla habitação estava
cheia de diversas flores e arbustos, dos consagrados aos deuses do País, sem nem faltar
a suave alfavaca, a flor de Vishnu, sem a qual não se pode celebrar, em Bengala,
nenhuma cerimônia de culto; e as ramagens do "Ficus religiosa", árvore dedicada à
mesma resplandecente deidade e, entre cujas folhas, viam-se, mescladas, as rosadas
flores do Loto e da tuberosa.
Enquanto um faquir, verdadeiramente santo, porém muito sujo, permanecia
imerso em suas contemplações, viam-se diversas maravilhas ao seu redor, sob a
direção de sua vontade, permanecendo o macaco e o pássaro tranquilos. Só o tigre
tremia visivelmente e olhava, com receio, em torno da mansão como se seus olhos
114
verdes fosfóricos seguissem algum ser invisível que caminhasse por esta. Logo o
macaco também ficou encolhido e imóvel, perdendo sua habitual vivacidade e ao cair
junto a ele uma flor azulada, das várias que se balançavam no ar como movidas por
mãos invisíveis, experimentou tal sobressalto nervoso que foi refugiar-se sob as vestes
de seu dono. Ouvia-se, aqui e ali, como um ruído de asas invisíveis, caindo, em torno
de nós, flores atiradas por alguém a quem não víamos. Finalmente, como alguém se
queixasse de calor, fomos também obsequiados com um finíssimo e perfumado rocio
refrescante que, ao cair sobre nós, produziu uma sensação de felicidade inexplicável.
Quando o faquir terminou sua exibição de Magia Branca, o bruxo ou conjurador,
por sua vez, preparou-se para operar uma dessas séries de maravilhas muito
familiares ao público, pelos relatos dos viajantes, mostrando, entre outras coisas, o
fato de que os animais possuem naturalmente clarividência e até a faculdade de
distinguir os bons espíritos, dos maus. Todos os atos do feiticeiro foram precedidos de
fumigações de substâncias resinosas, enquanto o tigre, o macaco e o pássaro davam
mostras de um terror indescritível...
Fatos como este não são nada em comparação com os que os jograis de profissão
executam. Ibn Batuta, o grande viajante árabe, conta o seguinte: "Assistindo a uma
grande festa, dada na corte do Vice-Rei de Khansa, este fez vir um jogral que,
convidado a realizar algumas de suas maravilhas, pegou uma bola de madeira
ouriçada de agulhas, da qual pendiam compridas correias, a qual fui por ele lançada ao
espaço, subindo a tal altura que a perdemos de vista, do mesmo modo que as
correias, salvo a ponta de uma delas que ficou nas mãos do encantador. Em seguida,
este ordenou a um dos meninos, seu ajudante, que trepasse correia acima, o que ele
realizou, até que o perdemos de vista também. Momentos depois, o feiticeiro,
chamando o rapaz por três vezes e como não recebesse resposta, mostrou-se irado:
empenhou sua faca e desapareceu do mesmo modo, trepando pela correia. Em pouco
tempo, começamos, aterrorizados, a ver cair, despedaçados, um a um os membros do
rapaz e, por fim, sua cabeça ensanguentada. O jogral desceu atrás, excitado e
arquejante, com suas roupas ensanguentadas, e prosternou-se ante o emir. Este
pareceu dar-lhe ordens, em consequência das quais, sem dúvida, o feiticeiro começou
a recolher e ajustar uns e outros membros. Então bateu forte com o pé no chão e,
imediatamente, o rapazinho, são e salvo, recompôs-se... "Wallah" disse-lhe o xeque
que estava ao meu lado. "Aqui nada se passou, realmente: tudo isso foi uma farsa!"
E quem duvida de que aquilo tudo tenha sido uma verdadeira farsa, uma ilusão
ou maya, como dizem os hindus? Porém, quando se pode obrigar que um
ajuntamento de dez mil pessoas sofra, a um tempo, semelhante ilusão coletiva,
durante o espetáculo público, bem merecem chamar a atenção da Ciência os meios
pelos quais pôde determinar-se aquela assombrosa ilusão. Quando, por meio de tal
magia, um homem que está em vossa presença, em uma casa (cujas portas houverdes
fechado e cujas chaves tendes em mãos), desaparece subitamente, qual relâmpago e,
sem vê-lo em parte alguma, ouvis sua voz provindo de diversos lugares do aposento, e
se ele se ri de vossa perplexidade - seguramente uma arte tal não é digna do estudo de
físicos tão céticos como Carpenter ou Huxley.
115
O que o mouro Ibn Batuta viu na China, pelo ano de 1348, viu, igualmente, na
Batávia, em 1670, o viajante anglo-holandês Edward Meíton, segundo relata em
"Engelsh Edelmans Zeldzaame en Geden Kwaardige Zee en Land Reízen, etc." (Amsterdam,
1702). Também consignam-se fatos análogos nas célebres "Memórias do Imperador
Jahangire, pgs. 99 a 102...
O encantador Chibh Chondor, de quem antes falamos, depois de uma famosa sessão
na qual sugestionou várias cobras venenosas, terminou a sua atuação fazendo pasmosas
experiências com objetos inanimados. Com simples passes feitos com as mãos, em direção
ao objeto sobre o qual queria agir e, sem mover-se de seu lugar, apagava ou diminuía o
brilho das luzes mais afastadas da casa; fazia com que os móveis bailassem, inclusive os
próprios divãs em que estávamos sentados; abria e fechava as portas à distância. Vendo, de
repente, que um hindu estava tirando água do poço do jardim, deu um passe naquela
direção e a corda deteve-se, subitamente, em sua descida, resistindo a quantos esforços
realizava em contrário o assombrado jardineiro. Logo deu o encantador outro passe e a
corda tornou a baixar. Então perguntei a Chibh Chondor:
- Empregas os mesmos meios com os objetos inanimados e com os seres viventes?
- Eu não tenho senão um meio, que é a vontade - respondeu-me. O homem é uma
síntese suprema de todas as forças materiais e intelectuais e deve dominar todas elas. Um
brâmane não te poderia dizer mais que isto...
Que objeção lógica pode se aduzir contra a pretensão de que muitos taumaturgos
lograram até a reanimação dos mortos? Os faquires chegam, com efeito, até a dizer que tão
extraordinariamente poderosa é a força de vontade do homem, que pode reanimar um
corpo aparentemente morto, obrigando a retroceder em seu caminho a alma fugitiva que
ainda não tenha rompido, por completo, o fio que, durante a vida, a manteve unida a seu
corpo. Dezenas de tais faquires permitiram ser enterrados vivos, ante milhares de
testemunhas, ressuscitando algumas semanas depois. E, se os faquires possuem o segredo
de semelhante processo artificial, idêntico ou análogo ao da hibernação de certos animais,
por que não admitir que seus antecessores, os gimnosofistas e o próprio Apolônio de Tiana
que com eles havia estudado na Índia, e, igualmente, Jesus e outros profetas e iluminados -
os quais conheciam os mistérios da vida e da morte, muito mais do que qualquer de nossos
homens de ciência - não pudessem, como se conta, ter ressuscitado pessoas recentemente
mortas? Completamente familiarizados com semelhante poder, com aquele algo misterioso
que o professor Le Conte confessa que a Ciência ainda não pôde compreender, Eliseo,
Jesus, Paulo e Apolônio, ascetas entusiastas e sábios iniciados, bem puderam, como se diz,
fazer voltar à vida, e sem milagre, a qualquer homem que "não estivesse morto, mas
dormindo" no dizer da própria frase de Jesus, consignada no Evangelho.
Se as moléculas de um cadáver estão impregnadas das forcas físico-químicas do
organismo vivente como diz o "Manual de Fisiologia" de J. Hughes Bennet, nada impede
que possam ser postas de novo em movimento desde o instante em que logremos
conhecer a natureza da força vital e a maneira de dominá-la. Para o materialista não haverá
senão que falar da reinfusão da alma, pelo fato de que esta não existe e que o corpo é
como uma máquina vital, uma locomotiva, que se porá em movimento quando se lhe
aplique energia e que se deterá quando este falte. Para o teólogo, o caso apresenta
116
maiores dificuldades, porque, em sua opinião, a morte rompe o laço que unia o corpo com
a alma e esta não pode ser devolvida àquele, senão mediante um milagre, do mesmo modo
que o recém-nascido não pode ser obrigado a renovar a vida fetal depois do parto e uma
vez cortado o cordão umbilical que o ligava à mãe. Mas, o filósofo hermético, mantendo-se
entre estes dois inimigos irreconciliáveis, faz-se dono da situação, porque admita que a
alma é uma forma composta de fluido nervoso e de éter cósmico e sabe como a força vital
pode, pela vontade, fazer-se ativa, ou latente, contanto que não interfira a destruição
irreparável de algum órgão necessário à vida...
No momento da morte - disse o filósofo Oetinger em seus "Pensamentos acerca do
nascimento e geração dos seres" - um corpo, o físico, expele o outro, o duplo astral, por
uma espécie de fenômeno de osmose, através do cérebro. Logo, este último duplo fica
perto de seu antigo revestimento carnal, ainda ligado a ele por uma dupla atração
física e espiritual e, até que esse laço se rompa, pode, em condições adequadas,
retornar a seu corpo físico, reatando a vida interrompida. Isto, e não outra coisa, é que
realizamos diariamente, durante o sono; mais completamente durante o êxtase e, de
modo surpreendente e admirável, sob as ordens e com o auxílio de um Adepto
hermético. Jámblico declara que a pessoa dotada destes poderes "está plena do
espírito de Deus", porque semelhante ser, ao dominar todos os poderes ou espíritos
das mais altas esferas, já não é mais um mortal, mas um deus. Por isso São Paulo, em
sua "Epístola aos Coríntios" disse que os espíritos dos profetas estão sujeitos aos
profetas.
Algumas pessoas têm a faculdade natural, e outros a adquirida, de dissociar o
corpo interno do externo à vontade fazendo-o empreender longas viagens,
permitindo-lhes aparecer ante aqueles aos quais, assim, visita. Numerosos são
certamente os casos, contados por testemunhas irreprocháveis, de duplos de pessoas
a quem viram e com quem falaram a centenas de léguas do ponto em que se achavam
os corpos físicos das mesmas. Se havemos de crer em Plínio (História Natural, XII, c.
52) e em Plutarco ("Sobre o daemon. de Sócrates", 22) Hermotimus podia, à vontade,
cair em êxtase e, então, seu segundo corpo encaminhava-se a qualquer lugar por
distante que fosse. Do mesmo modo, o abade Fretheim, o famoso autor de
"Steganographie", no século XVII, podia conversar à distância com seus amigos pelo
poder único de sua vontade... Cordanus podia realizar outro tanto. "Quando o fazia -
disse ele mesmo ("De Res, Var", V) - sentia como se se abrisse uma porta e como se eu
mesmo passasse por ela, imediatamente, deixando meu corpo atrás de mim". Outro
tanto contra Nasse ("Zeitschrift für Psychische Aerte", 1820) a respeito de
Wasermann.
Napier, Osborne, o major Lawes, Quennouillet, Nikiforovitch e muitas outras
testemunhas modernas, acreditam que os faquires são capazes, mediante preparação
de longa dieta e repouso, de pôr o corpo em condições de ser enterrado a seis pés
abaixo da terra, durante um período de tempo pouco menos que indefinido. Sir
Claude Wade (Osborne, "O Campo e a Corte de Rundjit Singh" e Braid, "On France")
estava presente na Corte de Rundjit Singh, quando um faquir ficou enterrado vivo
durante seis semanas, num ataúde, a três pés sob o solo da casa, vigiada por quatro
117
sentinelas, noite e dia. "Ao reabrir o ataúde, ao cabo daquele tempo - diz Sir Claude -
vimos dentro dele uma figura metida num saco de linho branco, atado com um cordão
à altura da cabeça. Despojado do envoltório, o falso cadáver foi espargido com água
quente. As pernas e os braços estavam encolhidos e rígidos, e a cabeça caída sobre o
ombro, qual um verdadeiro morto. O médico verificou que não se percebia pulsação
alguma, nem o coração batia, sequer, de leve; porém, conservava, todavia, algum calor
na região cerebral, o que faltava nas restantes partes do corpo. Friccionando este,
energicamente, tiraram-se-lhe os tampões de cera e algodão, colocados no nariz e
ouvidos, esfregando-se-lhe as pálpebras com manteiga refinada e, o que parecia mais
estranho, aplicaram-lhe uma cataplasma quente, de uma polegada de espessura, no
alto da cabeça. Na terceira vez que lhe aplicaram a cataplasma ou emplastro, o corpo
experimentou violentas convulsões, dilataram-se-lhe as narinas, restabeleceu-se-lhe a
respiração, adquiriram sua flexibilidade usual as articulações, porém, o pulso estava
muito fraco. A língua, untada com óleo, começou a mover-se e o paciente falou,
reconhecendo os presentes. Convém advertir que, além dos tampões do nariz e
ouvidos, a língua havia sido envolta até o fim, de modo a obstruir a garganta,
fechando, assim, todos os orifícios de entrada do ar atmosférico, para evitar não só a
ação deste sobre os tecidos orgânicos, como também que germens de putrefação
pudessem depositar-se neles, os quais, ao suspender-se a vitalidade no organismo,
poderiam determinar sua decomposição, como acontece a qualquer outra carne
exposta à intempérie".
Existem, mesmo assim, localidades em que os faquires resistem a ser enterrados
vivos, tais como as da Índia Meridional, que são infestadas de voracíssimas formigas
brancas, e não há certamente faquir, por muito santo que seja, capaz de prestar-se a
ser devorado antes de operar-se a sua ressurreição.
Casos como os anteriores, que poderiam multiplicar-se até o infinito, colocam a
Ciência ante este embaraçoso dilema: ou declarar farsantes tantas testemunhas
irrecusáveis, ou admitir que isso caia dentro das leis naturais, ainda desconhecidas. E,
se isto sucede com os faquires, por que não admitir os casos evangélicos de Lázaro, do
filho da Shunamita ou da filha de Jairo?
Isto, por outro lado, relaciona-se com o problema da evidência externa, a respeito
da verdadeira morte. As melhores autoridades médicas estão de acordo em que não
há certeza alguma. O Dr. Todd Thomson, em seu "Apêndice à Ciência Oculta", vol. I,
diz que nem a imobilidade do corpo, nem o afundamento dos olhos, nem a rigidez
cadavérica, nem a ausência de respiração ou de pulso, podem tomar-se como sinais
inequívocos da completa extinção da vida. Unicamente a decomposição total pode
constituir prova incontestáveis. Já em seu tempo Demócrito assegurava que não existe
sinal algum certo acerca da morte real ("Cornélio Celso", livro III, c. VI), Plínio ("Hist.
Nat." 1, VII, c. LII) sustentava o mesmo. Asclepíades, ilustre médico, acrescentava que
a segurança era ainda menor tratando-se de mulheres, que de homens.
O Dr. Thomson apresenta vários casos notáveis, tais como o de Francisco Neville,
cavalheiro normando que morreu, aparentemente, duas vezes, com grave risco de ser
enterrado vivo. Lady Russell esteve, assim, a ponto de ser sepultada em vida mas,
118
quando por ela dobravam os sinos, levantou-se dizendo: "Já é hora de ir para a
missa!". Diemerbroese menciona o caso de um camponês que não deu o menor sinal
de vida durante três dias mas que ressuscitou com espanto de todos ao ser desdido à
cova. Em 1836, a um respeitável cidadão de Bruxelas aconteceu o mesmo: levantou-se
pedindo café e os jornais, na hora de se fechar a tampa do ataúde.
Na Imprensa diária não é raro também tropeçar-se com fatos dessa espécie. Na
época em que escrevemos sobre isto (abril de 1877), numa carta de Londres,
endereçada a "The Times" de Nova York, lemos: "Miss Annei Goodale, atriz, faleceu há
três semanas, porém não tinha sido ainda enterrada, por estar seu corpo quente e
suas feições não estarem crispadas, nem rígidas!"
Os cabalistas dizem que o homem não está morto ainda depois de enterrado seu
corpo, porque se em nada a Natureza dá saltos, segundo a sentença hermética, a
morte jamais é repentina, mas sempre gradual, porque, assim como é gradual o
nascimento, a morte também o é. Os cristãos ilustrados, ao passo que acreditam,
implicitamente, na ressurreição da filha de Jairo e em outros milagres bíblicos e que,
por outro lado, indignar-se-iam de serem chamados de supersticiosos, refutam, com
menosprezo, casos como os de Apolônio ou de Empédocles que são idênticos. Nossos
sábios, ao menos, são mais lógicos ao medir uns e outros mesma rasoura, desde que
não têm a existência da alma; como fato cientificamente demonstrado, pelos seus
dois únicos meios de conhecimento seguro, a saber: a observação e a experiência, como
se, entre,tanto, além destes não existissem muitos outros conhecidos ou por
conhecer.
Porém uma vez que a alma e o espírito separam-se, por completo, do corpo,
rompendo-se o último fio que os une, qualquer ressurreição é impossível. "Uma folha
depois que se desprende do galho, jamais voltará a se unir a ele", disse Eliphas Lévi; ou
como diz "La Science des Esprits": "A lagarta converte-se em mariposa, mas a
mariposa não volta a ser lagarta".
A Natureza com efeito, fecha sempre as portas atrás de si, para tudo o que evolui
para adiante: As formas passam - o pensamento permanece; o acidental muda - mas o
essencial perdura e reencarna em novas formas, cada dia mais perfeitas...

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A IMAGINAÇÃO, A MAGIA E O OCULTISMO

Que é imaginação? Os psicólogos nos dizem que é o poder plástico ou modelador


da alma, porém os materialistas a confundem com a fantasia. A diferença radical que
medeia, com efeito, entre a fantasia e a imaginação, está admiravelmente indicada
por Wordsworth, no prefácio de suas "Baladas", não sendo desculpável, de maneira
alguma, a atual confusão entre estas duas palavras que soem dar-se, quase sempre,
como equivalentes.
Pitágoras sustenta que a imaginação não é outra coisa senão a recordação de
precedentes estados espirituais, mentais e físicos, ao passo que a fantasia é o mero e
desordenado automatismo do cérebro material e, segundo o ensinamento máximo
da filosofia antiga, a ideia Eterna, isto é, a Imaginação da Anima Mundi, que vivificou
e moldou o Caos primordial. Por isto, do mesmo modo que o Logos Demiúrgico
moldou e deu forma à Matéria Cósmica, assim o homem, quando alcança plena
consciência de seus excelsos poderes, pode fazer, até certo ponto, o mesmo. Se
Fídias, amassando as partículas de argila, pôde dar forma plástica à sublime ideia
evocadora, pela magia de sua faculdade criadora ou imaginativa, a mãe, que conhece
seu poder, pode modelar, na forma que deseje, o filho que traz em seu seio. O
escultor, ignorando seus verdadeiros poderes divinos, produz somente uma figura
inanimada, embora admirável, enquanto que a alma da mãe, violentamente afetada
por sua própria imaginação, projeta cegamente na luz astral a imagem do objeto que
a impressionou, e esta imagem aparece logo estampada por repercussão no feto.
Fournié, em sua "Physiologie du systême nerveux cerebro-spinal", acrescenta que, se
sabemos pela ciência que um passo dado por nós na Terra afeta numa parte ínfima o
próprio equilíbrio do Universo, podemos imaginar que o mesmo acontecerá com os
movimentos vibratório que acompanham o pensamento. Assim, o éter cósmico, ou luz
astral dos cabalistas, deve estar cheio de semelhantes fotografias contínuas de tudo
quanto ocorre, podendo se dizer que uma não pequena parte da energia do universo
deve estar empregada na produção e conservação de tais imagens.
O Dr. Magendie, em seu "Précis élementaira de Physiologie", admite a influência
da imaginação na produção de deformidades ou teratologias entre os animais. O
nascimento, por exemplo, de pintos com cabeça de falcão, é explicado pela teoria de
que a aparição do inimigo hereditário da raça galinácea, trabalhou a imaginação da
galinha e comunicou, assim, à matéria do germe certos movimentos determinantes do
fenômeno... Tal é a experiência de quantos se dedicam à criação de animais e isso está
comprovado por ColumeIa, Jonatt e tantos outros...
Catarina Crowe, em sua célebre obra "Night-side of Nature", disserta longamente,
com demonstrações adequadas, acerca do poder da mente sobre a matéria e com este
assunto relaciona o fenômeno dos estigmas, ou sinais concordantes, que aparecem no
corpo de pessoas de imaginação exaltada. No caso da tirolesa contemplativa, Catarina
Emmerich, e em outros muitos, as chagas da crucificação, produzidas por seus êxtases,
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segundo dizem, eram perfeitamente reais... O mesmo se conta de duas senhoritas
polonesas que contemplavam, de Sua janela, uma tempestade. Um raio caiu perto
delas, fundindo o colar de ouro que uma trazia, ficando estereotipada em seu pescoço
a reprodução exata da forma do mesmo. A outra jovem, aterrorizada pelo acidente
acontecido à sua amiga, ficou paralisada de susto e, em pouco, o mesmo sinal do colar
impresso na garganta da companheira apareceu também na sua e nela perdurou por
longo tempo. O médico alemão Justinos Kerner conta este caso ainda mais
extraordinário: Nos dias da invasão francesa, um cossaco encurralou um francês,
travando-se entre ambos uma luta de morte, da qual o francês saiu meio ferido. Uma
pessoa que se havia refugiado naquele lugar, aterrorizada, impressionou-se de tal
maneira que, quando chegou à sua casa, apresentava ferimentos análogos em seu
próprio corpo.
Nestes casos, como em todos aqueles em que sobrevêm transtornos orgânicos e
até a morte, mercê da súbita ação da mente sobre o corpo - não poderia Magendie
achar outra razão explicativa diferente da imaginação? E, se ele fosse ocultista, da
espécie de Paracelso ou Van Helmont, este problema não seria problema, porque
compreenderia que o poder da vontade e da imaginação humanas - consciente aquela,
inconsciente esta - atuando sobre o Éter universal, pode determinar transtornos, tanto
mentais como físicos, não somente sobre as vítimas selecionadas de propósito, mas
também e por ação reflexa, sobre a própria pessoa, sem se dar conta disso. Um dos
princípios fundamentais da Magia é o de que, quando uma corrente deste fluido sutil
não é impelida com a força suficiente para alcançar seu objetivo, ou nele encontra
forte obstáculo, reagirá sobre o indivíduo que o lançou, do mesmo modo que a bola
volta para a mão que contra o muro a lançou. Apoiando esta teoria, citam-se muito
casos de pessoas que, ao pretender se fazerem passar por feiticeiros, com suas más
ações, foram vítimas, elas mesmas, de seus próprios intentos.
Deleuze colecionou em sua "Bibliothêque du magnetisme animal" certo número
de fatos notáveis, tirados de Van Helmont: "Dizem que há homens que podem causar a
morte de um pássaro, olhando-o durante um quarto de hora, com a imaginação
voltada para o desejo de que morra, confirmado por Rousseau, em suas próprias
experiências do Egito e Oriente, posto que, assim, pôde conseguir dar morte a vários
sapos, até que uma vez quis repetir a experiência em Lyn e o sapo, vendo que não
podia subtrair-se a seu olhar, deu uma volta em roda, inchou-se e permaneceu, por sua
vez, olhando fixamente aquele que o pretendia prejudicar, com o que Rousseau
experimentou uma fraqueza tão grande que, por pouco, não desmaia. Durante algum
tempo temeu-se até por sua vida... "
Mas, voltemos à questão da teratologia. Wierus, em sua obra "De prestigiis
demonum", conta que certa mulher, em estado de gestação, foi ameaçada pelo
marido que disse estar ela com o diabo no corpo. O terror da mãe foi tal, que o
menino nasceu disforme. Na obra demonológica de Peramatus contam-se
monstruosidades semelhantes, a respeito de certa criatura nascida em São Lourenço
(Índias Ocidentais), em 1573, monstruosidades confirmadas pelo testemunho do
então Duque de Medina Sidônia e consignadas na célebre obra de Henry More,
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acerca de "A Imortalidade de Alma", onde se diz que o menino em questão, além de
suas horríveis deformidades na boca, nariz e orelhas, ostentava duas adiposidades
em forma de chifres sobre a cabeça, longos pelos como cerdas, um duplo cinto, uma
espécie de bolsa de carne na cintura e uma espécie de campainha adiposa na mão
esquerda, todo o conteúdo do conjunto absurdo e diabólico de certo feiticeiro índio,
a quem a gestante contemplara, horrorizada, dançando em uma das clássicas festas
de bruxaria dessa espécie de gente.
Não queremos fatigar mais o leitor com o relato de novos caso teratológicos,
tirados das obras dos clássicos antigos, para confirmar nossa asserção de que
tamanhas aberrações devem-se às ações recíprocas entre a imaginação da mãe e o
akasha ou éter cósmico, como diriam os orientais e Van Helmont.
O archeus, ou Princípio Vital cósmico deste último, não é outra coisa senão a luz
astral dos cabalistas e o éter universal da moderna ciência e certamente, se as
marcas mais insignificantes do feto nos casos referidos e em mil outros, não são
devidas à imaginação da mãe, a que outra coisa poderia atribuir o Professor
Magendie a formação das escamas córneas, chifres de cabra e pelame próprio dos
animais, que temos visto, caracterizando tão monstruosa progênie?... É verdade que
a relação em que se acham entre si, o feto e a mãe, é bem pouco diferente da do
inquilino a respeito da casa, de cujas condições depende seu calor, bem estar, saúde
e também sua vida...
Demócrito de Abdera ensina-nos que o espaço inteiro está cheio de átomos e
nossos astrônomos mostram-nos estes átomos juntando-se para formar mundos e,
depois, as próprias raças dos seres que hão de povoá-los. Se, pois, na verdade e na
imaginação humanas existe uma potência que, concentrando correntes destes
átomos sobre um ponto objetivo, podem moldar uma criança à maneira das
impressões sentidas pela imaginação da mãe, porque não há de ser crível também
que estas mesmas potências, por uma espécie de inversão, ou mudança de destino,
de tais correntes, possam dissipar e destruir qualquer parte, e até o corpo todo, do
ser que ainda não nasceu de seu seio?...
Vem aqui, pois, o problema das falsas gestações que têm preocupado tanto os
próprios médicos como as suas pacientes. Se a cabeça, o braço e a mão dos três
célebres casos teratológicos relatados por Van Helmont puderam desaparecer pelo
efeito de uma emoção de terror da gestante, por que não há de poder a mesma, ou
outra emoção, ser causa de uma total dissociação e extinção do feto, na chamada
falsa gravidez? Tais casos, embora muito raros, ocorrem realmente, deixando, de
passagem, burlada a ciência. Embora no sangue da mãe não circule, realmente,
nenhum dissolvente químico capaz de dissociar os elementos do feto sem destruí-la,
é um fato que, como diz o cético Dr. Fournié ao relatar com desconfiança aqueles
casos, "ante esta estranha série de fenômenos, nosso papel é o de meros
historiadores, pois que, ao tratar de achar razões científicas para eles, tropeçamos,
como de costume, com os inescrutáveis mistérios da vida, e à medida que
avançamos em nossas investigações, observamos mais e mais que aquilo é para nós
um terreno vedado..."
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Desde a aparição do espiritismo, os médicos e os pesquisadores encontram-se
mais dispostos que nunca a tratar os grandes filósofos, como Paracelso e Vau
Helmont, como uns mistificadores supersticiosos e charlatães, ridicularizando
frivolamente suas noções acerca do archeus cósmico ou da anima mundi, com todos os
seus conhecimentos cosmológicos e antropológicos. E, sem embargo, que
progressos positivos tem logrado a Medicina desde o dia em que Lord Bacon
classificou-a entre o grupo das Ciências Conjecturais * em contraposição às Ciências
Exatas?... A Psicologia é um ramo científico, quase desconhecido até agora, no dizer
das maiores autoridades na matéria, e a Fisiologia, segundo a grande autoridade de
Fournié, no prefácio de sua erudita obra "Physiologie du systême nerveux", o pouco
que nos aprofundemos, leva-nos a um terreno no qual notamos que não só está por
se desenvolver a fisiologia do cérebro, como do próprio sistema, nervoso não existe
fisiologia alguma.
* Sciences Conjecturales - no original francês.
Certo dia, ouvimos um sábio acadêmico francês dizer que faria com gosto o
sacrifício de sua própria reputação, em troca de apagar da memória das pessoas a
recordação de inúmeros erros e equívocos ridículos de seus colegas; tempo virá, com
efeito, em que os filhos dos homens de ciência se envergonharão e renegarão o
degradante materialismo mesquinho e mau critério científico-passional de seus pais.
A simples ilustração intelectual não pode reconhecer o espiritual. Assim como o raio
de sol apaga o brilho do fogo, do mesmo modo o espírito ofusca os olhos da mera
inteligência. Quão fielmente o próprio racionalista Lecky pintou a inconsciente
propensão dos homens de ciência para zombar de tudo que é novo, recebendo-o
sempre com a mais cética incredulidade! Saturados da frivolidade corrente, assim
que conquistam um posto nas Academias, fazem uma conversão de um quarto e
transformam-se em perseguidores dos que lhes vêm atrás. "É uma circunstância bem
curiosa na ciência - diz Howitt: o próprio Benjamin Franklin, que experimentou o
ridículo das Academias por causa das tentativas que fez para identificar a
eletricidade com o raio, no comitê de sábios que, em 1784, examinou os princípios
do nascente mesmerismo, foi um dos primeiros a refutá-lo, de plano, como uma
ridícula farsa".
Nossos filósofos, em conjunto, são os herdeiros do fracassado método de
indução aristotélica, com o qual o Estagirita chegou à conclusão de que a Terra
estava no centro do Universo, enquanto que seu mestre Platão "perdido no labirinto
das vaguezas pitagóricas" estava perfeitamente inteirado do sistema heliocêntrico.
Julgando-os, pois, àqueles, pelo modo como tratavam o saber antigo, vemo-nos
obrigados a suspeitar de que nossa tão elevada e respeitável sociedade abriga
sentimentos sumamente mesquinhos, para com aqueles seus irmãos maiores da
antiguidade, como se tivessem sempre em suas mentes e corações aquele refrão
famoso que reza: "Suprima o Sol e logo verás reluzir as menores estrelas!"...
Constantemente fala-se da "magia da imaginação". Ao falar, pois, da
imaginação, deve-se antes falar da Magia.
Mago, Mágico, provêm de Mag ou Maha. Esta palavra é também a raiz da
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palavra magia. O Maha-atma (o da grande alma ou espírito), na Índia, tinha um
sacerdote nos tempos pré-védicos. Os magos eram os sacerdotes do deus-fogo (o
Éter transcendental ou Akasha, a Luz Astral). Encontramo-los entre os assírios e
babilônios, do mesmo modo que entre os persas adoradores do fogo. Os três magos,
também chamados reis, os que, dizem, ofereceram ao Menino Jesus presentes em
ouro, incenso e mirra, eram adoradores do fogo, como os demais, e também
astrólogos, pois viram "sua estrela". O grande sacerdote dos parsis, em Surat, é
chamado de Mobeâ; alguns derivam esta palavra de Megh, Meh-ab, algo nobre e
grande. Os discípulos de Zoroastro eram chamados, segundo Kleuber, Megh-estom. A
palavra mágico, antigo título honorífico, tem hoje em dia significado oposto ao
verdadeiro. Antigamente era sinônimo de tudo o que havia de mais honroso e
respeitável; daquele que possuía os maiores conhecimentos e sabedoria. Hoje
tornou-se um epíteto degradante, para designar todo o embusteiro e charlatão.
Aquele "que vendeu sua alma ao diabo", aquele que faz mau uso de suas faculdades
e emprega seus conhecimentos para os usos mais perversos, tudo isto de acordo
com os ensinamentos do clero e segundo uma legião de estúpidos supersticiosos, os
quais acreditam que o mágico é um bruxo, um encantador, um feiticeiro. Mas os
cristãos esquecem que Moisés era um mago e Daniel "o Mestre dos magos
astrólogos, dos caldeus e dos adivinhos" (Daniel VII). A palavra, enfim, deriva-se do
Magh ou Mahhindu, ou seja do sânscrito Maha grande; um homem bem versado na
ciência secreta ou esotérica - ou, propriamente falando, um sacerdote.
Maimônides, o grande teólogo e historiador judeu, demonstrou que a Magia
caldaica, a ciência de Moisés e de outros grandes taumaturgos, era baseada em seu
profundo conhecimento das leis naturais. Enteirados, completamente, de todos os
recursos dos reinos mineral, vegetal e animal, peritos em química e física ocultas,
tanto psicólogos como fisiólogos - que há de extraordinário que Adeptos instruídos
nos misteriosos santuários dos templos pudessem levar a cabo maravilhas que ainda
hoje ter-se-iam por sobrenaturais? É um insulto à natureza humana infamar, com o
nome de impostura, a Magia e a Ciência Oculta. Crer que durante tantos milhares de
anos uma metade do gênero humano praticava a mistificação e a fraude a expensas
da outra metade, equivale a dizer que a raça humana compõe-se somente de
velhacos e de idiotas incorrigíveis. Onde está o país em que não se haja praticado a
magia? Em que época foi ela esquecida por completo?
Nos mais antigos documentos, ora em nosso poder, os Vedas e as primeiras
leis de Manu, encontramos muitos rituais mágicos praticados e permitidos pelos
brâmanes(1). No Tibete, no Japão e na China ensina-se, hoje em dia, o que os
antigos caldeus ensinavam. O clero destes países prova que a prática da moral e da
pureza física, juntamente com certas austeridades, desenvolvem o poder vital da
própria iluminação. Concedendo ao homem o domínio sobre seu próprio espírito
vital, dá-lhe um verdadeiro poder sobre os espíritos elementais, inferiores a ele
próprio. Vemos que a Magia é tão antiga no Ocidente, como no Oriente. Os druidas
da Grã-Bretanha praticavam-na nas silenciosas criptas de suas cavernas profundas e
Plínio discorre, longamente, em um capítulo acerca da "sabedoria" dos chefes
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celtas(2). Os semoteus, os druidas das Gálias, explicavam as ciências tanto físicas
como espirituais. Ensinavam os segredos do Universo, o harmonioso progresso dos
corpos celestes, a formação da Terra e, sobretudo, a imortalidade da alma(3). Em
suas grutas sagradas, academias naturais, construídas pela mão do Arquiteto
Invisível, reuniam-se os iniciados, à hora precisa da meia-noite, para instruir-se sobre
o que o homem era e o que será(4). Não necessitavam de iluminação artificial, nem
de gás, destruidor da vida, para iluminar seus templos, porque a deusa da noite
difundia seus raios argênteos sobre suas cabeças coroadas de roble e seus sagrados
bardos, vestidos de branco, conheciam a maneira de falar com a rainha solitária da
abóbada estrelada(5).
(1). Veja-se o Código publicado por Sir William Jones. Cap. IX. pág. 11.
(2). Plínio ("Hist. Nat.”, XXX, 1, Id. XVI. 14. XXV, 9.
(3). Pompônio lhes atribui o conhecimento das ciências mais elevadas.
(4). Cesar, III, 14.
(5). Plínio, XXX.
No cemitério do passado remoto permanecem seus robles sagrados, agora
secos e despojados de seu simbolismo espiritual pelo venenoso sopro do
materialismo. Para o estudante das ciências ocultas, sua vegetação é, todavia,
exuberante, louçã e tão cheia de verdades profundas e sagradas como quando o
arquidruida realizava suas criações mágicas, e agitando a rama de muerdago,
arrancava com sua dourada foice o ramo verde de sua mãe, o roble. A Magia é tão
antiga quanto o Homem. É tão impossível citar a época em que, pela primeira vez
apareceu, como indicar o dia em que nasceu o primeiro homem. Sempre que algum
escritor tentou relacionar sua origem em um país, em harmonia com tais ou tais
documentos históricos, investigações ulteriores demonstraram que suas opiniões
eram infundadas. Odin, o sacerdote e monarca escandinavo, acreditam alguns, foi o
primeiro que introduziu as práticas mágicas, cerca de setenta anos antes de Jesus
Cristo, porém é fácil demonstrar que os misteriosos ritos das sacerdotisas, chamadas
Voilers Valas, são muito anteriores àquela época(6). Alguns autores modernos
esforçam-se para provar que Zoroastro foi o fundador da Magia, unicamente porque
foi o fundador da religião dos magos. Ammiano Marcelino, Arnóbio, Plínio e outros
historiadores antigos demonstram que ele foi apenas um reformador da Magia, tal
como era praticada por caldeus e egípcios 7 ("Ísis, I, 79).
(6). Munter, "Sobre as mais antigas religiões nórdicas anteriores a Odin",
Memórias da Sociedade de Antiquários da França, t. II, pág. 230.
A Magia era considerada como uma ciência divina que leva a participar dos atributos
da própria Divindade. "Descobre as operações da Natureza - diz Philo Judaeus - e conduz
à contemplação dos poderes colestiais”(8). Nos últimos períodos, o abuso da mesma e
sua degeneração em feitiçaria fizeram com que, em geral, fosse odiada. Nós,
entretanto, devemos nos ocupar dela, somente tal como era no passado remoto,
durante o qual cada uma das religiões verdadeiras baseava-se no estudo e
conhecimento dos poderes ocultos da Natureza. Não foi a classe sacerdotal que, na
Pérsia, estabeleceu a Magia, como vulgarmente se crê, mas os Magos, cujo nome é
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derivado da mesma. Os Mobeds, sacerdotes dos parsis, os antigos Ghebers ou Geberin,
são chamados até hoje em dia de Magoi, no dialeto pehlvi(9). A Magia aparece no
mundo com as primeiras raças humanas. Cassiano menciona um tratado bem conhecido
nos séculos IV e V, que se atribuía a Cam, filho de Noé, o qual, acreditava-se, o havia
recebido de Jared, a quarta geração de Seth, filho de Adão(10). Moisés devia seus
conhecimentos à mãe da princesa egípcia Thermuthis que o salvou das águas do Nilo.
A esposa do Faraó, (11) Matria, era uma Iniciada e os judeus deviam a ela seu profeta
"instruído em toda a sabedoria dos egípcios e famoso em palavras e obras" (12) Justino
Mártir, apoiando-se na autoridade de Trogo Pompeyo, mostra-nos José, como havendo
adquirido grandes conhecimentos das artes mágicas dos sumos sacerdotes do Egito
(13). Os livros de Numa, descritos por Lívio, consistiam em tratados mágicos da
filosofia natural e foram encontrados em sua tumba, porém não era permitido dá-los a
conhecer, para que não fossem revelados os mais secretos mistérios da religião
estabelecida. O Senado e os tribunos do povo resolveram queimar publicamente tais
livros (14).
(7). Ammiano Marcelino, XXVI, 6.
(8). Philo ind.: "De Specialibus".
(9). "Zend-Avesta", voI. I, pág. 506.
(10).Cassiano: "Conferência", I, 21.
(11)."De Vita et Morte Moises", pág 199.
(12)."Feitos dos Apóstolos", VII, 22.
(13).Justino, XXXVI, 2.
(14)."História da magia", vol. I, pág. 9. "Legibus".
Entre os hindus, tinha a Magia um caráter mais esotérico se possível, que entre os
egípcios. Era considerada tão sagrada que sua existência era admitida pela metade e
somente praticada nos casos das mais imperiosas necessidades públicas. Os
hierofantes egípcios apesar de praticarem uma moral pura e austera, não podem ser
comparados aos ascetas gimnofistas, seja pela santidade de suas vidas, seja pelos
milagrosos poderes neles desenvolvidos pela sobrenatural renúncia de tudo o que é
terreno. Os que os conhecem bem guardam para com eles maior veneração que para
com os magos caldeus. Desdenhando as mais simples comodidades da vida, vivem em
bosques, afastados, levando a vida dos mais solitários ermitães, enquanto que seus
irmãos egípcios, pelo menos, vivem em comunidades. Apesar da nota infamante
lançada pela História sobre todos aqueles que praticaram a magia e a adivinhação, são
considerados como possuidores dos maiores segredos da ciência médica e com
conhecimentos jamais sobrepujados na prática da mesma. Numerosos são os volumes
conservados nos conventos hindus, onde constam as provas de seus conhecimentos.
Tentar dizer se estes gimnofistas eram os fundadores da Magia, na Índia, ou se eles
punham em prática o que lhes havia sido transmitido, como herança dos mais antigos
Rishis, ou Patriarcas prevédicos (dos quais pretendiam descender diretamente os
brâmanes) será considerado como mera especulação pelos sábios do positivismo. "O
cuidado que demonstravam na educação da juventude e em familiariza-la com os
sentimentos generosos e com a virtude mais sincera, honra-os em grau supremo e
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suas máximas e discursos, conservados pelos historiadores, provam o muito que eram
entendidos em filosofia, metafísica astronomia, religião e moral". Os gimnofistas
conservaram sua dignidade sob a dominação dos mais poderosos príncipes; jamais
condescenderam em humilhar-se a visitá-los, nem a molestá-los pelo menor favor.
Quando eles desejavam os conselhos ou orações destes santos homens estavam
obrigados a ir, eles mesmos, em sua busca, ou a enviar-lhes mensageiros. Para estes
homens não havia segredo encerrado em plantas, ou minerais, que não fosse
conhecido. Haviam penetrado nas profundidades da Natureza, e a Fisiologia e a
Psicologia eram, para eles, livros abertos. O resultado de todos os seus estudos
condensa-se naquela ciência ou Macha-giotia, que agora se designa,
supersticiosamente com o nome de Magia...
Giordano Bruno, como os platônicos alexandrinos e os mais antigos cabalistas,
sustentam que Jesus foi um mago, no sentido que Cícero Porfírio dá a esta palavra,
como sinônimo de sabedoria divina. Idêntico sentido é o de Philo Judaeus, para quem
são os magos os mais maravilhosos investigadores dos secretos mistérios naturais, não
no sentido degradante que nosso século dá à palavra magia. No conceito daquele, os
magos são aqueles homens santos que, apartando-se, por si mesmos, de todas as coisas
deste mundo, contemplam as virtudes divinas e compreendem com nítida clareza a excelsa
natureza dos deuses e espíritos, iniciando a outros nos mesmos Mistérios, ou seja, no
segredo de manter, em vida, a continuidade de relações com os seres invisíveis (Ísis I, 165).
Não há explicações, sejam quais forem, capazes de afetar de modo vital a
estabilidade de uma crença - como a da Magia - que a Humanidade haja herdado das
primeiras raças de homens, aquelas raças que, se admitimos a evolução espiritual do
Homem, como admitimos sua evolução física, possuíam a grande verdade dos lábios
de seus antecessores, os deuses de seus pais, que permaneciam do outro lado das
águas. "A identidade da Bíblia, com as lendas dos livros sagrados hindus e as
cosmogonias de outras nações, será demonstrada algum dia. As fábulas das idades
mitopéicas, como logo há de se ver, não fizeram mais do que alegorizar as grandes
verdades da Geologia e da Antropologia; A estas fábulas, tão ridiculamente expressas,
terá que recorrer a Ciência para encontrar os "elos perdidos". De outro lado, por que
medeiam tão estranhas "coincidências" entre as míticas histórias sobre povos
localizados tão afastados uns dos outros? De onde procede a identidade das primitivas
concepções, as que, não obstante serem hoje chamadas de lendas ou fábulas, contêm
em si o núcleo de fatos históricos e um fundo de verdade, profundamente enterrada
sob a capa de poéticas ficções populares que, nem por isso, deixam de ser certas?...
A crença no supernaturalismo seria, de outra maneira, inexplicável. Dizer que o
mito brotado, crescido e evoluído, através de épocas inumeráveis, sem um motivo
senão uma base firme em que se apoiar, qual produto único da mais frívola fantasia,
seria professar um absurdo tão grande, como o que admite a Tecnologia, ao dizer que
o Universo foi criado do Nada.
Os taumaturgos de todos os tempos, escolas e países, produziam suas maravilhas
porque estavam perfeitamente familiarizados com as imponderáveis, porém
perfeitamente reais, ondulações da luz astral (o archeue dos gregos). Tais prodígios
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tinham um duplo caráter físico e psíquico; o primeiro compreendia o conjunto de
efeitos produzidos sobre os objetos materiais; o segundo, os fenômenos mentais de
Mesmer e de seus continuadores. Estes foram representados, em nossos tempos, por
dois nomes muito ilustres, Du Potet e Regazzoni, cujos maravilhosos poderes foram
bem testemunhados na França, e em outros países. O mesmerismo é o ramo mais
importante da Magia e seus fenômenos são os efeitos do agente universal (archeus,
akasha) que medeia em toda a operação mágica e que deu lugar, em todas as épocas,
aos chamados milagres. Os antigos chamavam-no de Gaos; Platão e os pitagóricos, a
Alma do Mundo; e, segundo os hindus, a deidade, sob a forma do Éter transcendente
(Pater omnipotens aeiher) que penetra todas as coisas. Entre outros nomes, este Proteu
universal ou onipotente nebuloso, como Mirville o denomina em tom jocoso, era
chamado pelos teurgistas de "o fogo vivente", "o Espírito de Luz" e Magnes. Este último
nome indica suas propriedades magnéticas e mostra sua natureza mágica, porque
magsʃ magnhʃ são dois ramos procedentes do mesmo tronco.
Para encontrar a origem da palavra magnetismo, é mister remontar a uma época
inconcebível por ser tão remota. Muitos acreditam que a pedra chamada ímã (magmhʃ)
deve seu nome a Magnésia, cidade, ou comarca, da Tessália, onde tais pedras
encontram-se em abundância. Cremos, entretanto, que a opinião dos filósofos
herméticos é a única correta. A palavra Magh, magus deriva-se da sânscrita Mahaji, o
grande, o sábio, o ungido pela sabedoria divina. "Eumolpus é o fundador mítico dos
eumólpidas, sacerdotes que atribuíam sua própria sabedoria, não a eles próprios, mas
à Divina Inteligência refletida neles", como diz Dunlap em "Musah e seus Mistérios"
(pág. III). Hércules era conhecido como o rei dos Musianos, e a chamada festa musiana
era o símbolo da união do Espírito e a Matéria: Adônis e Vênus ou Baco e Céres. As
cosmogonias distintas mostram-nos que cada nação considerava a Alma-Arquetipal
Universal como a "mente" do Criador Demiúrgico, a Sophia dos Gnósticos ou o Espírito
Santo considerado como priincípio feminino. Como os magos derivam seu nome dela, a
pedra magnesiana, ou ímã, era assim chamada em sua honra, pois eles foram os
primeiros a descobrir suas propriedades maravilhosas. O país estava cheio de templos
e, entre eles, havia alguns de Hércules musiano e, por isto, quando foi conhecida a
pedra que os sacerdotes usavam em suas curas e desígnios mágicos, recebeu o nome
de pedra magnesiana ou heráclita. Sócrates, ocupando-se dela, disse: "Eurípedes
chama-a de pedra magnesiana, porém o vulgo chama-a de heráclita (Platão, Ion
(burgess) , vol. VI, pág. 294). Os magos eram os que davam nome ao país e à pedra, e
não esta e aquele aos magos. Plínio nos ensina que o anel nupcial. entre os romanos,
era magnetizado pelos sacerdotes, antes da cerimônia. Os antigos historiadores
pagãos, cuidadosamente, guardavam silêncio e respeito por certos Mistérios dos
"sábios" (magos) e Pausanias diz que foi avisado, em sonho, para não revelar aos
profanos os santos rituais do templo de Demétrio e Persefonéia de Atenas... (15).
(15). Attic, I, XIV.
Duas coisas são necessárias para adquirir o poder mágico: libertar a vontade de
toda servidão e exercitar-se em seu domínio. A vontade soberana está representada
pelo anjo resplandescente que retém o dragão sob seus pés e o mata. Enquanto que o
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grande agente mágico, a dupla corrente de luz, o fogo vivificador e astral da Terra tem
sido representado pela serpente com cabeça de monstro: a serpente do caduceu de
Mercúrio; a do Gênese; a bronzeada de Moisés; o bode dos aquelarres; o Baphomet dos
templários; o Hyle dos gnósticos e, por fim, o diabo de Mirville e demais católicos.
Porém, na realidade, tal agente mágico não é mais do que a força cega que as almas
têm que vencer para se livrar, por si mesmas, das cadeias terrenas, porque se sua
vontade não as liberta desta fatal atração, serão absorvidas pela própria corrente da
força que as produziu.
Eliphas Levy diz em seu "Dogma e Ritual da Alta Magia":
"Todas as operações mágicas consistem em libertar-se por si mesmo dos anéis da
Antiga Serpente e. depois, em colocar o pé sobre sua cabeça e conduzi-la segundo a
vontade do operador. "Eu te darei - disse a serpente no mito evangélico - todos os
reinos da Terra se, prostrando-te ao pé de mim, me adorares". E o Iniciado responde-
lhe: "Não me humilharei diante de ti; nada podes dar-me, pelo contrário, tu me
obedecerás, porque eu sou teu Senhor e Mestre!" Assim, pois, o Diabo não é uma
Entidade. É uma força errante, como seu próprio nome indica. Uma corrente magnética
ou odienta, formada por uma cadeia ou acumulação de vontades perversas, dando
origem a esse espírito maligno que o Evangelho chama de Legião e que precipita no
mar um rebanho de porcos - outra alegoria que demonstra como as naturezas
inferiores são arrastadas pelas forças cegas do erro e do pecado.
Em sua extensa obra acerca das manifestações místicas da natureza humana, o
naturalista e filósofo alemão Maximiliano Perty diz: "As manifestações mágicas baseiam-se,
em parte, em outra ordem de coisas, completamente distintas daquilo cuja natureza
conhecemos por tempo, espaço e causalidade. Suas manifestações podem levar muito
poucas vezes ao terreno da experiência; porém, podem ser cuidadosamente observadas,
quando aconteçam em nossa presença". O faquir Kovin-dastmi, descrito por Jacolliot, havia
alcançado tal pureza, que seu espírito, já quase livre, podia, pela vontade que é uma força
criadora, dominar os elementos e os poderes da Natureza: "ordem de espírito a espírito e
de vida a vida"; podia desenvolver, em breves horas, uma semente que, em condições
vulgares, teria necessidade de muitos dias para germinar. Isto não é um milagre, a menos
que definamos o milagre "como algo que está em contradição com a constituição
estabelecida e com as leis conhecidas da Natureza"; porém, nossos naturalistas acaso
podem sustentar a pretensão de que o que eles estabeleceram pela observação é infalível -
ou que conhecem todas as leis da Natureza?... Se a vegetação pode ser estimulada por luz
violeta, o fluido magnético que emanava das mãos do faquir, concentrando no germe o
akasha, ou princípio de vida, produzia mudanças ainda mais rápidas e intensas, porque o
princípio de vida é uma força cega, obediente à influência que a domine e capaz de seguir a
norma da imaginação criadora do faquir. A vontade cria, porque a vontade posta em
movimento é força e a força produz matéria... Para isto, Kovindastmi não necessitou senão
de seu espírito divino e de sua alma astral, com o auxílio de seres puros ou pitris, enquanto
que o desprestigiado jogral ou necromante, levado por sua impureza, sedento de riquezas
ou egoísmo, não pode atrair a simpatia senão de espíritos impuros: os klippoth, afrites ou
devs do astral mais abjeto...
129
Embora as ciências ocultas sejam vítimas da malícia de uma classe, elas têm seus
defensores em todas as épocas. Na primeira linha está Isaac Newton que acreditava no
magnetismo tal como o ensinavam Paracelso, Van-Helmont e todos os filósofos do fogo, em
geral. Ninguém poderá negar que sua doutrina do espaço universal e da atração seja uma
verdadeira teoria sobre o magnetismo. Se algum valor têm suas palavras, estas nos indicam
que em seus "Princípios fundamentais de Filosofia" ele baseava todas as suas especulações
na "alma do mundo", o grande agente universal e magnético, ao qual dominava "sensorium
divinum". Trata-se, diz ele, de um espírito sutilíssimo que penetra todas as coisas, até os
corpos mais duros e que se acha oculto em sua substância. Em virtude da força e atividade
deste espírito, os corpos se atraem, uns aos outros, e aderem-se ao se pôr em contacto. Por
seu intermédio, os corpos elétricos agem tanto a grandes como a pequenas distâncias,
atraindo-se ou repelindo-se. Por ele, a luz se difunde, reflete-se, refrata-se e esquenta os
corpos. Todos os sentidos são excitados por este espírito e, por ele, os animais movem seus
membros. Tais problemas não se pode explicar em poucas palavras, porque carecemos
ainda da experiência necessária para determinar completamente as leis, mediante as quais,
este espírito universal opera.
Se a visão de alguém é habilmente dirigida por um mago ou por seu próprio Espírito, a
luz astral transferirá suas mais secretas informações a nosso exame, porque se bem que
seja um livro sempre fechado a todos aqueles "que veem mas que não percebem", é
sempre acessível a todo aquele que queira abri-lo. Contém um registro completo e intacto
de tudo quanto foi, é e será. Os atos mais insignificantes de nossa vida estão impressos
nele, e, assim também, ficam fotografados, em suas folhas eternas, nossos pensamentos. É
o livro que vemos aberto pelo anjo, no Apocalipse, "que é o Livro da Vida, segundo o qual
os mortos são julgados de acordo com suas obras". É, em resumo, a MEMÓRIA DE DEUS.
"Os oráculos caldaicos, diz Cory, asseguram que a impressão dos pensamentos, caracteres
dos homens e outras visões divinas aparecem no Éter... Nele, todas as coisas sem imagem
estão configuradas, segundo um antigo fragmento dos Oráculos caldaicos, de Zoroastro... A
memória, desespero do materialista, enigma do psicólogo, esfinge da ciência é, para o
estudante das antigas filosofias, um mero nome para expressar aquele poder que o homem
exerce inconscientemente e que compartilha com muitos animais, graças a que, seu olhar
interno contempla, na luz astral, as imagens de incidentes e sensações passadas. Em lugar
de buscar, nos gânglios cerebrais, micrografias do que vive e do que morreu, "de cenas que
tenhamos presenciado e incidentes em que tenhamos intervindo" tudo vai para o vasto
receptáculo, onde as recordações de cada vida humana, assim como cada pulsação do
Cosmos visível, acham-se armazenadas por toda a Eternidade. Esse lampejo de memória
que, segundo também supõe a tradição, mostra às pessoas, que se estão afogando, cada
uma das cenas já esquecidas de sua vida mortal, é simplesmente o brilho da alma que, para
livrar-se do perigo (com uma evocação suprema às divinas forças secretas do inconsciente,
diríamos nós) arroja-se às galerias silenciosas, nas quais jaz pintada sua estória toda, com
suas mais indeléveis cores. O fato de, com frequência, reconhecermos cenas, paisagens e
conversas, que vemos ou ouvimos pela primeira vez, tem sido citado como uma prova de
reencarnação; porém, os sábios da antiguidade e os filósofos medievais afirmam que,
todavia, tal fenômeno é uma prova da imanência e da imortalidade da alma, mas que,
130
quando o sono repousa nosso corpo elementário, a forma astral fica livre e, deslizando para
fora de sua prisão terrena, convive com o mundo exterior e viaja através dos mundos
visíveis e invisíveis...
Descartes, embora cultuando a matéria, era um dos mais decididos partidários da
doutrina do magnetismo universal. Seu sistema de física era muito parecido com o dos
grandes filósofos. O espaço, para ele, está cheio de uma matéria fluida e elementária, fonte
única da vida, envolvendo e fazendo mover todos os corpos celestes. As correntes
magnéticas de Mesmer são os torvelinhos cartesianos disfarçados, assim o afirmando
Ennemoser, em sua "História da Magia"... As obras de Pierre Poret Naudé, em 1679,
vindicam as doutrinas do magnetismo oculto em sua "Apologia dos grandes homens
falsamente acusados de necromancia".
O Dr. Hufeland escreveu, em 1817, uma obra sobre Magia, na qual baseia a teoria da
simpatia magnética universal; o mesmo faz Zenzel Wirdig em sua "Nova Medicina
Espiritual" e o grande Henry More, da Universidade de Cambridge, segue as doutrinas de
Cardan, Van-Helmont e outros místicos... Kepler participava da crença cabalística de que os
espíritos dos astros são "outras tantas inteligências; acreditava que cada planeta confirma
um princípio inteligente e que todos os planetas estão habitados por todos os seres
espirituais, os quais exercem sua influência sobre os outros seres que moram em outras
esferas mais materiais que as suas. especialmente em nossa Terra... Batista Porta, em sua
"Magia Natural", atribui, em última análise, todos os fenômenos possíveis à anima mundi
que une todas as coisas. Esta luz astral atua em harmonia e simpatia com toda a Natureza;
é a primeira essência de que nossos espíritos estão formados e, agindo em uníssono com a
fonte de onde procede, faz com que nossos corpos siderais cheguem a ser capazes de
produzir maravilhas mágicas. Todo o segredo fundamenta-se em nosso conhecimento.
Acreditava ele na pedra filosofaI "da qual o mundo tem em tão grande opinião e que deu
motivo a tantas jactâncias, mas que foi encontrada, felizmente, por alguns", estendendo-se
em insinuações acerca de sua "significação espiritual"...
Em 1643, o Padre Kircher ensinava uma completa filosofia de magnetismo universal
(Magnes sive de arte magnetici opus tripartitum). Suas numerosas obras abrangem
muitas questões indicadas somente por Paracelso. Contradisse Gilbert (que a Terra fosse
um grande ímã) - pois, que somente existe um verdadeiro ímã no Universo e dele procede a
magnetização de tudo quanto existe: o Sol espiritual dos cabalistas, ou Logos; e se o Sol, a
Lua e as estrelas eram altamente magnéticas, deviam-no ao fluido universal e magnético
em que se banham, ou seja, a Luz espiritual. Prova a simpatia misteriosa que existe entre os
corpos dos três reinos e muitos de seus exemplos já têm sido comprovados pelos
naturalistas... O magnetismo de amor puro é a causa original de todas as coisas criadas...
Para exercitar o poder mágico em prol do bem, precisa-se: nobreza de alma, vontade
poderosa e intensa, faculdade imaginativa. Um homem livre das tentações mundanas e da
sensualidade pode curar, deste modo, até enfermidades incuráveis...
Cada ser criado nesta esfera sublunar procede do magnale magnum (anima-mundi)
e com ele se relaciona. O homem possui um poder celestial duplo e está associado à vida
dos céus. Este poder existe, como disse Van Helmont em sua "Opera Omnia" (1682, pág.
720): "não só no homem, mas em todas as coisas... porém é necessário que a força mágica
131
seja despertada tanto no homem exterior, quanto no interior. Nós chamamos a isto um
poder mágico; porém o ignorante não fará mais do que assustar-se com a expressão;
podeis, pois, chamar-lhe poder espiritual (spiritualis robur vocitaveris). Tal poder mágico
existe no homem interior e tem que ser despertado". La Loubère, em suas "Notas para uma
relação histórica do Reino do Sião", diz que os talaipones ou homens santos (budistas)
siameses são sempre respeitados pelos animais ferozes, graças ao emprego da magia
"porque todos eles creem que a Natureza está animada e que existem gênios tutelares".
- "Que é o sono sonambúlico, diz Du Potet, senão um efeito da magia? O que
chamamos fluido nervoso ou magnetismo, os homens da antiguidade chamavam de
potência oculta da alma ou magia. A magia baseou-se na existência de um mundo
heterogêneo, situado fora de nós, e é com ele que podemos entrar em comunicação por
meio de certas artes práticas. É tão grande o poder do fluido mágico que nenhuma força
físico-química é capaz de destruí-lo".
"A alma humana, diz Cornélio Agripa, possui, pelo mero fato de fazer parte da essência
universal, um poder maravilhoso. Quem dela se apossa pode remontar em conhecimentos
a uma altura tão grande quanto possa imaginar, com a condição somente de permanecer
intimamente unido a tal força... A Verdade e o futuro podem mostrar-se continuamente
aos olhos da alma; seu poder não conhece limites; o tempo e o espaço desaparecem ante o
olhar de águia da alma imortal"...
A Magia teúrgica é a última expressão da ciência psicológica oculta. Os acadêmicos a
desprezam como alucinação ou charlatanismo. Nós, entretanto, negamos inteiramente a
estes o direito de emitir sua opinião sobre um assunto a respeito do qual jamais
investigaram. Não têm eles mais direito de julgar a Magia, no estado atual de seus
conhecimentos, do que o que tem um habitante das Ilhas Fidgi de aventurar sua opinião
acerca de Faraday ou de Agassiz. Tudo o que eles podem fazer é, algum dia, retificar-se de
seus presentes erros...
Os prodígios levados a cabo pelos sacerdotes da Magia teúrgica têm uma
autenticidade tão completa e sua evidência é tão esmagadora que, antes de confessar que
eles haviam sobrepujado os cristãos em matéria de milagres, Sir David Brevoster, admite
neles grandes conhecimento de física e filosofia natural. A ciência acha-se em um
desagradável dilema; ou revelar os conhecimentos superiores dos antigos, ou admitir que o
espírito possui poderes jamais imaginados pelos filósofos modernos.
Onde está o segredo real da Magia, acerca de que tanto falam os herméticos? Que
existia e que existe um grande segredo, nenhum estudante sincero de literatura esotérica
jamais o porá em dúvida. Diferentes homens de gênio, como sem dúvida o eram muitos dos
filósofos herméticos, não se fizeram passar por loucos, procurando eles mesmos
enlouquecer a outros, durante vários milhares de anos consecutivos. Que este grande
segredo, comumente chamado "a pedra filosofia", envolvia uma significação tanto física
como espiritual é o que se suspeitou, em todas as épocas. O autor de "Observações da
Alquimia e dos Alquimistas" (E. A. Hitchcock: Swedenborg, um filósofo hermético) faz
observar, com grande acerto, que o sujeito da Arte hermética é o Homem e que o objeto
de tal Arte é a perfeição humana. O homem é espiritualmente a pedra filosofal, ou seja,
uma "triunidade", porém, fisicamente é também tal pedra...
132
Muito mais numerosos do que supõem os materialistas modernos, são os homens
instruídos e os pensadores que acreditam na existência do Ocultismo e da Magia, duas
coisas extremamente diferentes e que têm sido confundidas pela maior parte dos
crentes e até por aqueles que, sendo teosofistas, chegaram ao ponto de pensar que a
Magia Negra faz parte do Ocultismo.
Os poderes que são conferidos ao Homem, pelo Ocultismo, e os meios que deve
empregar em sua aquisição, deram lugar a noções tão variadas, quanto fantásticas.
Uns imaginam que, para converter-se num Zanoni, é suficiente a direção de um
mestre na arte; outros, que somente tratava-se de atravessar o canal de Suez e dar
uma volta pela Índia, para converter-se em rival de Roger Bacon e do Conde de S.
Germano; Margrave, com sua juventude sempre renascente, é o ideal de muitos
outros, que consideram que a mudança feita em sua alma, obtendo este favor, não foi
preço demasiado grande. Bom número dentre eles identificam a feitiçaria pura e
simples com o Ocultismo e fazem retroceder em direção à luz "os espectros
desencarnados, errantes nas trevas, que gravitam sobre as margens da Estígia", além
de outros altos feitos deste calibre e já se creem Adeptos completos. Para outros, a
filosofia dos antigos Arhats não é senão a Magia cerimonial, cujas regras traçara, rindo-
se, Eliphas Levy. Em uma palavra, estes filósofos ingênuos consideram o Ocultismo
através de todas as espécies de prismas que sua fantasia pode imaginar.
Estes candidatos à Sabedoria e ao Poder não se indignarão se se os fizer conhecer
a Verdade pura e simples? Em todo o caso, vem a ser não só útil, mas necessário
desenganar a maior parte deles, antes que chegue a ser demasiado tarde. Entre as
centenas de bravos que, no Ocidente, qualificam-se de "Ocultistas", é possível que não
se encontre nem meia dezena que tenha uma ideia aproximadamente correta da
natureza da ciência da qual pretendem chegar a ser mestres. Com raras exceções
encontram-se quase todos no caminho da feitiçaria. Antes de protestar contra esta
alegação, seria conveniente que pusessem um pouco de ordem em seu cérebro e,
uma vez conhecida a verdadeira relação entre as artes ocultas e o Ocultismo,
poderiam se indignar se todavia achassem ter esse direito. Eles, então, firmando-se
saberiam que o Ocultismo difere da Magia e de outras ciências secretas, tanto como o
glorioso Sol difere de uma vulgar vela; tanto como o Espírito imutável e imortal do
Homem - reflexo do Todo Absoluto, sem causa e Incognoscível - difere da argila mortal
que forma o corpo humano.
Em todas as nossas, tão deficientes, línguas ocidentais, as palavras têm sido
desfiguradas sempre com o propósito de velar as ideias que continham em si, e
quanto mais materiais vinham a ser estas, mais condensavam-se na fria atmosfera
desse egoísmo que somente se ocupa dos bens deste mundo; mas, sentia-se a
necessidade de encontrar termos novos para expressar o que se considerava
tacitamente como superstição verificada. Tais palavras não puderam servir de
expressão senão a ideias para as quais nenhum homem instruído encontraria
cabimento, em sua compreensão: "Magia", sinônimo de prestidigitação; "feitiçaria",
como equivalência de ignorância crassa e "Ocultismo", como o resultado das tristes
elucubrações daqueles cérebros gelados que, que, segundo tal sentir, tiveram os
133
Filósofos do fogo, os Jacob Boehme e os Satint Martin, parecendo termos mais que
suficientes para especificar as diversas voltas do jogo de mãos de que se tratou. Tais
são os termos depreciativos aplicados à escória deixada no mundo pelas épocas de
trevas, chamadas Idade Média e Antiguidade pagã. Esta é a razão de não existirem
termos em nossas línguas ocidentais que permitam indicar a diferença existente entre
os poderes ocultos e as ciências que conduzem à sua aquisição, com o mesmo
propósito que o fazem as línguas orientais e particularmente o sânscrito. As palavras
milagre e encantamento têm no fundo o mesmo sentido, embora ambas expressem a
ideia de resultados produzidos, violando as leis da Natureza! Mas, que se entende
precisamente por estes conceitos? Um cristão crê, firmemente, nos milagres que Deus
fez Moisés produzir, enquanto rechaça, com indignação os dos magos dos Faraós, ou
os atribui ao diabo. Meus piedosos inimigos fazer vir, deste último personagem, todo
o Ocultismo, enquanto que seus adversários, os semi-incrédulos, riem-se por sua vez de
Moisés, dos magos e do Ocultismo e ruborizar-se-iam de ira se os supusessem capazes de
ocupar-se de semelhantes superstições. Tudo isto porque não existe termo algum que
possa designar convenientemente estas coisas; porque faltam-nos palavras que tenham a
necessária precisão de sentido e que nos permitam distinguir o sublime e o verdadeiro, do
absurdo e do ridículo.
O absurdo e o ridículo encontram-se nas interpretações teológicas que dizem que os
milagres são uma violação das leis da Natureza, feita pelo Homem, pelo diabo ou por Deus.
O sublime e o verdadeiro é que os milagres de Moisés e dos magos foram produzidos pela
ação das leis naturais, leis que, tanto os Magos, como Moisés, haviam aprendido a
conhecer nos santuários que eram as Academias de Ciências de seu tempo, onde se
ensinava o verdadeiro Ocultismo. Esta última palavra, tradução do conceito composto,
Gupta Vidya (ciência secreta), não tem um sentido muito claro. De que ciência se trata?
Quatro nomes servem, especialmente, entre muitos outros, no sânscrito, para
designar os diferentes ramos do saber esotérico e, ainda, o mesmo dos Puranas exotéricos:
1º - a Yajna Vidya, que é conhecimento dos poderes ocultos que podem ser
despertados na Natureza, por certas cerimônias e certos rituais religiosos;
2º - a Maha Vidya - a "Grande Ciência" - a respeito da qual é, às vezes, a magia dos
cabalistas e a dos tantrikas - feitiçaria da pior espécie;
3º - Gupta Vidya, a ciência dos poderes místicos contidos no som (Éter) e que são
despertados pelos Mantrans (pregárias, cantos ou encantamentos) cujo efeito depende
do ritmo e da melodia; uma operação mágica, enfim, baseada no conhecimento das forças
da Natureza;
4º - o Atmã-Vidya que equivale às palavras Ciência da Alma, ou Sabedoria Verdadeira,
cujo sentido, entre os Orientais, alcança uma extensão muito mais considerável que entre
nós, os Europeus.
Esta última ciência - Atmã-Vidya - é a única espécie de ocultismo a que deve aspirar
todo o teosofista admirador da "Luz sobre o Caminho", ou quem deseja chegar a ser sábio,
despojando-se do egoísmo. As outras são somente ramos das "Ciências Ocultas", quer
dizer, partes baseadas sobre o conhecimento da essência das coisas, nos diferentes reinos
da Natureza – minerais, plantas, animais, ciências materiais, em suma, por mais que a
134
essência das coisas seja invisível, a ponto de haver escapado até aqui às investigações da
Ciência. A Alquimia, a Astrologia, a Fisiologia oculta, a Quiromancia existem na Natureza, e
as ciências exatas, talvez assim nomeadas por paradoxo, já tenham descoberto um bom
número de seus segredos. Porém, a clarividência, que tem sido designada, na Índia, com o
nome simbólico de "O olho de Siva" e no Japão, com o de "Visão Infinita ", não é o
hipnotismo, filho bastardo do mesmerismo, e não poderia ser adquirida por artes deste
gênero. Poder-se-ão obter, com eles e por eles, resultados bons, maus ou indiferentes;
porém, o Atmã Vidya tem-nos em pouca estima. Ademais, ela os contém a todos e, em
certas ocasiões pode empregá-los com o fim de fazer o bem, depois de havê-los
desembaraçado de suas baixezas e da mais insignificante partícula de tendência egoísta.
Expliquemo-nos. Não importa que alguns se atrevam a estudar as artes ocultas que
acabamos de mencionar, sem o auxílio de uma preparação difícil e sem que lhes seja
necessário adotar um gênero de vida demasiado especial. Até se lhes poderia dispensar um
alto desenvolvimento moral, porém, nesse caso, nove em dez estudantes tornar-se-iam
feiticeiros muito aceitáveis, não tardando muito em cair em cheio na magia negra. Que
grande mal haveria nisso? Os vudus e os dugpas comem, bebem e regozijam-se sobre as
vítimas de suas artes infernais, do mesmo modo que os elegantes vivisseccionistas e os
hipnotizadores titulados, da faculdade de medicina; a única diferença entre estas duas
classes de gente, está em que os vudus e os dugpas são feiticeiros com conhecimento de
causa, enquanto que determinadas celebridades médicas são feiticeiros inconscientes.
Porém, o modo pelo qual uns e outros devam colher os frutos de suas façanhas não
importa - as pessoas do Ocidente são muito simples quando não se atrevem a tomar da
feitiçaria mais do que a condenação e castigo, deixando de lado os proveitos e os gozos
que poderiam procurar. Repetimos: o hipnotismo e a vivissecção são feitiçaria pura e
simples de que desfrutam os vudus e dugpas, embora sem o saber - conhecimento que
não é capaz de adquirir nenhum Charcot-Richet, durante cinquenta encarnações de
estudos obstinados e de experiências contínuas. Portanto, aqueles que, com plena
ignorância de sua natureza, querem se ocupar de magia, encontram-se com as duras
regras impostas para alcançar o Atmã-Vidya e se desviam do verdadeiro Ocultismo,
tornando-se mágicos, não importa por quais meios, com o risco de permanecerem
vudus ou dugpas, por dez encarnações consecutivas.
Com isto, é muito provável que nossos leitores deem todo o seu apoio aos que,
sentindo-se invencivelmente atraídos pelo Ocultismo, não compreendam a verdadeira
natureza do objeto de suas aspirações, nem se encontrem, todavia, escudados contra
as paixões e, menos ainda, desembaraçados de todo o egoísmo.
Que deverão fazer estes infelizes, no campo fechado em que lutam as mais
contrárias forças? Uma vez que o desejo pelo Ocultismo desperte no coração de um
homem, já não existe lugar no mundo inteiro em que possa encontrar a paz; torturado
por uma inquietação incessante, ele vaga pelos desertos da vida, buscando em vão a
senda que o conduzirá ao repouso. Como de um perfumador fumegante, sai de seu
coração o húmus de suas paixões e desejos egoístas, ocultando a seus olhos a Porta de
Ouro. Deverá rolar ele, então, pelos abismos da feitiçaria e da magia negra e, através
de numerosas encarnações, curtir um Karma mais e mais terrível? Não haverá para ele
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outro caminho melhor?"
Um só caminho existe: não aspirar a mais do que o que se pode alcançar; não
sobrecarregar os ombros, com peso maior que suas forças. Sem pretender ver-se
convertido num Mahatma, num Buda ou num grande Santo, estude a "Ciência da
Alma" e venha a ser, assim, um dos modestos benfeitores que não têm poderes sobre-
humanos. Os Siddhis (poderes dos Arhats) são unicamente para aqueles que podem
"viver a vida" cumprindo a risca os terríveis sacrifícios exigidos para a aquisição destes
poderes. Que saibam eles, se todavia não o sabem, que o verdadeiro Ocultismo é a
"Grande renúncia do Eu", renúncia incondicional e absoluta, do pensamento e da ação.
É o altruísmo que, para sempre, jamais separa o que o pratica do número dos vivos.
Quando alguém dedica-se à obra "já não vive para si, mas para o mundo". Muito se lhe
perdoa durante os primeiros anos de provas. Porém, desde que ele é "aceito" sua
personalidade deve desaparecer: é preciso que se converta em uma simples força
benfeitora da Natureza.
O candidato a ocultista já não tem senão dois polos para onde dirigir-se, porque
abrem-se a seus passos dois caminhos sem que fora deles lhe seja possível encontrar
um lugar de repouso; é preciso que se suba laboriosamente, passo a passo, seguindo,
através de numerosas encarnações que se sucederão rapidamente e sem nenhum
intervalo de repouso devakânico, pela escada de ouro que conduz ao estado de
Mahatma (condição de Arhat, de Bodhisatva) de onde, ao primeiro passo em falso,
rodará para cair nos abismos em que se acham os dugpas...
Tudo isso se ignora, ou se perdeu de vista. Quando se pode seguir a evolução
silenciosa das primeiras aspirações dos candidatos, soem notar-se quão estranhas são
as ideias que se apoderam de seu espírito. Entre eles a faculdade de raciocinar
deforma-se de tal maneira que chegam até a imaginar que lhes é possível purificar suas
paixões de modo que, voltando sua chama para dentro e encerrando-a no coração,
converta-se em uma energia capaz de fazê-los chegar às regiões superiores e introduzi-
los até no verdadeiro santuário da Alma, onde eles comparecerão ante o EU superior,
ou ante o Mestre. Assim, por um vigoroso esforço de vontade, dominando suas
paixões, em lugar de imolá-las, eles deixam-nas continuar ardendo em sua alma, sob
uma delgada camada de cinzas. Pobres cegos visionários!
Encerrai um bando de limpadores de chaminé, completamente sujos e suarentos, num
santuário alfombrado de panos brancos e imaginai que, em lugar de mudar esses panos em
farrapos repugnantes, os faxineiros atraíram a brancura sobre suas faces e roupas,
logrando, assim, sair dali imaculados, como estava o santuário, antes deles entrarem. Tal é
a absurda pretensão de muitos candidatos a Ocultistas.
Estranha aberração do espírito humano! Durante seu cativeiro na vida terrena, não
tem ele outra consciência que a de seu intelecto, que nós denominamos de "a alma
humana", enquanto que "a alma espiritual" é o veículo do Espírito. A alma humana ou
passional compõe-se, em sua natureza superior, de aspirações, volições espirituais e de
amor divino. Sua natureza inferior está formada de desejos terrenos, de paixões animais,
resultantes de sua união com o veículo permanente destas paixões. A alma é, então, a
intermediária entre a natureza animal do Homem, que ela trata de subjugar pela razão, e
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sua natureza espiritual, ou divina, à qual vai se reunir, quando o animal interior é domado.
Este último é a "alma animal" instintiva, na qual vivem as paixões que, imprudentes e
entusiastas, encerram em seu peito, tratando de adormecê-las, em lugar de destruí-las.
Esperam eles que as águas lamacentas do sumidouro animal poderão transformar-se nas
ondas cristalinas da vida? Sobre que terreno neutro podem elas conter, aprisionadas, as
paixões para que o Homem não possa ser afetado por elas? O amor e a luxúria, bestas
fogosas, permanecem vivas no lugar em que nasceram - na alma animal - porque nem a
porção superior, nem a inferior da alma humana permite-lhes entrar, não obstante não
podem elas evitar as máculas de seu contato. Enquanto a Alma transcendente - o EU, o
Espírito - é tão incapaz de assimilar tais sentimentos, como é a água de mesclar-se com o
azeite ou gordura líquida. É, pois, o Mental o único laço que une o Homem da Terra com a
Alma transcendente, vítima deste estado de coisas, encontrando-se constantemente em
perigo de ser arrastada a perder-se nos abismos da matéria, por causa das paixões que
possam despertar a cada instante. E, como poderia ela pôr-se de acordo com a divina
harmonia do princípio superior, se esta harmonia é destruída somente pela presença das
paixões animais, no santuário em preparação? Imaginai uma matilha de cães introduzida
numa igreja, fazendo coro, com seus latidos, ao som do órgão.
Este "astral", este duplo etéreo, que existe no animal, do mesmo modo que no
homem, não é o companheiro do Ego divino, mas do corpo físico. É o laço entre o EU
pessoal, ou consciência inferior de Manas, e o corpo, servindo de veículo à vida transitória,
não à imortal. Como a nós segue a sombra, assim segue ele, mecanicamente, todos os
movimentos, todos os impulsos do corpo. Fica sempre unida à matéria e jamais sobe ao
Espírito. Quando a vontade implacável destilou as paixões em sua retorta e evaporou-as;
quando todos os desejos da carne morreram, ao mesmo tempo que o sentimento do EU
pessoal foi reduzido a zero, é então que a união com o EU pode efetuar-se. No instante em
que o astral não faz mais que refletir o homem domado à personalidade todavia vivente,
mas desprovida de desejos e de egoísmo - é, então, que o brilhante Augoeides, o Ego
Divino, pode vibrar em harmonia consciente com os dois polos da entidade humana, o
homem cuja matéria já se acha purificada e a eternamente pura Alma. Espiritual,
permanecendo indissoluvelmente unida ao EU, que é o Mestre, o Cristo místico dos
gnósticos, já fundido com Ela para sempre.
Como pode o homem vulgar, continuamente preocupado com as coisas mundanas e
as ambições da riqueza e poderio, pretender entrar, assim, pela estreita porta do
Ocultismo?
Não só a satisfação dos sentidos, mas até os gozos mentais, implicam, por si mesmos,
na perda imediata dos poderes do discernimento espiritual. Jamais pode a voz do Mestre
fazer-se ouvir pelos ouvidos daquele que não pode ainda distinguir com clareza a voz
d'Ele e a de um perverso e enganador dugpa.
O terrível "fruto da maldição", fruto do Mar Morto, assume, constantemente, a
mais sedutora e mística aparência; porém, ao tocar nossos lábios, transmuda-se em
cinzas e em fel o coração, com "seus abismos mais e mais profundos, suas trevas
pavorosas, que produzem a loucura, em lugar da Sabedoria; a culpa, em vez da
inocência; o despeito, em vez de esperança e a aflição infernal, em lugar dos
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delíquios do êxtase" - sem que tais vítimas do mais cruel dos erros cheguem em sua
cegueira, a reconhecê-lo...
Qualquer que seja a intenção com que o principiante se lance pela Senda da
Direita ou da Esquerda, toda a feitiçaria realizada, seja consciente ou inconsciente,
traz emparelhado seu respectivo Karma. Semelhante Karma terá o feitio das ondas
que o cair de uma pedra forma num lago. Quão essencial não será, pois, para nós,
abstermo-nos de nos precipitar em práticas cujo terrível alcance desconhecemos!
Mas a ninguém se impõe maior carga do que a que seus ombros podem
suportar. Existem certamente verdadeiros "magos de nascença", quer dizer, místicos
e ocultistas a quem múltiplas e frutíferas encarnações já puseram à prova de toda
paixão, isto é, que nenhum fogo terreno pode inflamá-los, nem têm, suas almas, eco
para tudo aquilo que não seja o grito de dor da desgraçada Humanidade.
Tais seres são os únicos que podem estar seguros do triunfo final: despojaram-
se do sentimento de baixa personalidade e, paralisando, assim, por completo, os
impulsos de seu "astral" animal, forçaram, valorosos, as Portas de Ouro, estreitas e
difíceis. Não é assim para quantos têm que suportar, todavia, o lastro de seus
pecados desta e de existência anteriores, pois, para eles, a Porta de Ouro da
Sabedoria pode transformar-se no amplo caminho que conduz ao aniquilamento
final. Tal Porta de Perdição é a das Artes Ocultas praticadas com fins egoístas, Artes
diametralmente opostas às sublimidades da Atmã Vidya.
Ademais, não devemos esquecer que nos achamos ainda na Kali-Yuga, ou Idade
Negra, e que a fatal influência desta é mil vezes mais poderosa no Ocidente do que
no Oriente. Daí as infinitas vítimas que causam os poderes reinantes nesta tenebrosa
idade, ciclo de lutas e império das mais enganosas ilusões - uma delas, a de crer que
é fácil ultrapassar os umbrais do Ocultismo sem um imenso sacrifício.
Semelhante erro é o sonho de não poucos teosofistas, animados pelo funesto
desejo de egoísmo e poderes. “A porta é estreita e de difícil acesso", sempre se tem
dito. Tanto que, só de serem mencionadas algumas das dificuldades preliminares, os
aspirantes ocidentais retrocederam espantados. Que se detenham aqui, sim, pois se
depois de retroceder diante da estreita Porta seu funesto anelo para com o Oculto
leva-os para o dourado mistério que brilha à luz da ilusão, podem estar seguros de
que acabarão sendo dugpas, por aquela sinistra Via Fatale do Inferno de Dante,
sobre cujo frontispício lê-se em estilo épico:
"Per me si va nell citta dolente,
per me si va nell'eterno doIore,
per me si va tra la perduta gente..."
Por isto convém, finalmente, dizer algo acerca dos primeiros passos no caminho
do Ocultismo, estabelecendo de uma vez para sempre:
a) A diferença essencial entre o Ocultismo teórico e o Ocultismo prático, ou seja,
entre o que, de um lado, geralmente se conhece com o nome de Teosofia e de outro
lado com o nome de Ciência Oculta.
b) A natureza das dificuldades inerentes ao estudo desta última.
É relativamente fácil ser teósofo. Toda a pessoa que possua capacidade
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intelectual mediana e tendência para a metafísica; que leve vida pura e
desinteressada, com maior prazer de ajudar aos seus semelhantes do que de ser
ajudado; que se encontre disposto a sacrificar sua própria satisfação nas aras do
próximo e ame a Verdade, a Bondade e a Sabedoria por si mesmas e não pelo benefício
que lhe possam advir - é teósofo.
Porém, tudo isto é muito diferente de entrar no Caminho que conduz ao
conhecimento do que convém fazer, assim como à verdadeira distinção entre o Bem e
o Mal; de entrar no Caminho que conduz o Homem até o Poder, com cuja ajuda pode
fazer o bem que deseje sem que, frequentemente, pareça realizar o menor esforço
para isto.
Há, além disso, um ponto importante que o estudante deve conhecer. A enorme
responsabilidade que assume o Instrutor por amor ao discípulo.
Desde os Gurus do Oriente que ensinam aberta ou secretamente, até um reduzido
número de cabalistas que, nos países ocidentais tratam de ensinar os rudimentos da
ciência sagrada a seus discípulos (os hierofantes ocidentais ignoram, frequentemente o
perigo a que se expõem) - todos os Instrutores estão sujeitos à mesma lei inviolável.
Desde o momento em que realmente começam a ensinar, desde que conferem um
poder qualquer (psíquico, mental ou físico) a seus discípulos, tomam sobre si todas as
faltas que estes possam cometer, com relação às ciências ocultas, já por ação, já por
omissão, até o momento em que, pela Iniciação, convertido o discípulo em mestre, seja
ele o único responsável.
Há uma lei religiosa, fatal e mística, muito reverenciada e respeitada pelos gregos,
meio esquecida pelos católicos-romanos e olvidade por completo pela Igreja
protestante. Data dos primeiros dias do cristianismo e está baseada na Lei a que
acabamos de nos referir, da qual é símbolo e expressão. É o dogma da santidade do
laço entre padrinho e madrinha de uma criança (16). Aqueles tomam tacitamente a
responsabilidade do batizado (ungida, como em verdadeira iniciação ou mistério) até o
dia em que a criança chega a ser entidade responsável, conhecedora do bem e do mal.
Isto esclarece porque os instrutores tomam suas precauções e pedem aos chelas,
discípulos em estado probatório, uma prova de sete anos, a fim de comprovar sua
aptidão e desenvolver as qualidades necessárias à segurança do Mestre e do discípulo.
(16). O laço estabelecido por estas relações reveste-se de tal caráter de
santidade, na Igreja grega, que o matrimônio entre padrinho e madrinha da
mesma criança é considerado incestuoso, ilegal e dissolvido por lei. Esta
absoluta proibição estende-se até os filhos dos padrinhos e madrinhas.
O Ocultismo não é magia. É relativamente fácil aprender o uso dos encantos ou o
meio de servir-se das forças sutis, embora materiais, de natureza psíquica. Os poderes
da alma animal, no homem, despertam-se muito rapidamente. Forças tais como o
amor, o ódio ou a paixão, desenvolvem-se facilmente. Porém, isto é magia negra e
bruxaria porque do motivo, e somente do motivo, depende que o exercício de qualquer
poder seja magia negra - malfazeja - ou magia branca - benfazeja. É impossível
empregar forças espirituais se no operador permanece o mais leve resquício de
egoísmo pois, a menos que a intenção seja inteiramente pura, a vontade espiritual
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transformar-se-á em vontade psíquica atuante no plano astral e poderia produzir
terríveis resultados.
Os poderes e as forças da natureza animal podem ser empregados pelos egoístas e
vingativos, do mesmo modo que pelos desinteressados e dispostos a perdoar; porém
os poderes e forças do Espírito somente são manejados pelos de perfeita pureza de
coração. Esta é a Divina Magia.
Quais são, portanto, as condições requeridas para ser estudante da Divina
Sabedoria?
Porque é preciso compreender que tal instrução não se pode dar, a menos que se
possua certas condições e que se as pratique, rigorosamente, durante os anos de
estudo. Esta é condição sine qua nono Ninguém pode nadar se não imerge em água
suficientemente profundas. Não pode voar o pássaro, antes que suas asas se hajam
desenvolvido suficientemente, sendo necessário ter, diante de si, espaço suficiente e a
coragem para lançar-se nele.
O homem que quer manejar uma espada de dois gumes deve ser um mui destro
mestre de esgrima, se não quiser ferir-se a si próprio e, o que seria mais grave, ferir aos
demais, na primeira tentativa.
Para dar uma ideia aproximada das condições em que somente com segurança se
pode prosseguir o estudo da Sabedoria Divina, quer dizer, sem o perigo de que a
Magia Divina converta-se em magia negra, extrairei uma página das regras privadas
que todo o instrutor oriental possui. As seguintes passagens foram escolhidas entre
um grande número delas e sua explicação vai em continuação às mesmas:
I - O lugar reservado para dar instrução deve ser de tal maneira escolhido que,
nele, a mente não se possa distrair, devendo estar cheio de objetos que tenham
influência evolucionista (magnética). Devem aparecer ali as cinco cores sagradas,
reunidas em círculo, em meio de outros objetos.
(O lugar deve ser reservado e não deve servir para nenhum outro propósito. As
cinco cores sagradas são as dos prisma, arranjadas de certa maneira, porque essas
cores têm muita influência magnética. Por influências maléficas designam-se todas as
desordens que se podem produzir por contendas, querelas, maus sentimentos, etc. -
do que se deduz que se imprimem, imediatamente, na luz astral da atmosfera de uma
casa e flutuam em seu redor, no ar. Esta primeira condição parece bastante fácil de
cumprir, entretanto, deve-se reconhecer que é uma das mais difíceis.)
II - Antes de autorizar o discípulo a estudar cara a cara, deve ele adquirir os
conhecimentos preliminares, num grande e selecionado grupo de outros upâsakas
(discípulos) cujo número deve ser ímpar.
(Cara a cara significa, neste caso, um estudo independente, ou separado de
outros, quando o discípulo recebe a instrução cara a cara, seja consigo mesmo (seu EU
superior, ou EU divino), seja com seu Guru. Somente, então, recebe cada qual a devida
instrução, segundo o uso que fez de seus conhecimentos. Isto só deve ocorrer até o
final do ciclo de instrução).
III - Antes que tu (o instrutor) possas dar a conhecer a teu discípulo as santas
palavras de Lemrin, ou que possas permitir-lhe preparar-se para Dubjeb, deves velar
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para que sua mente esteja inteiramente purificada e em paz com todos,
especialmente com as outras partes dele mesmo. De outra maneira, as palavras da
Sabedoria e da Boa Lei dispersar-se-ão e o vento arrastá-las-ão.
(Lamrim. é um trabalho de instrução prática de Tson-Kapa, em duas partes: uma
com fim eclesiástico e exotérico, e a outra de uso esotérico. Preparar-se para Dubjeb
refere-se à preparação dos objetos empregados para a clarividência, tais como
espelhos e cristais. As "outras partes do mesmo" designam os estudantes de seu
grupo. A menos que reine a maior harmonia entre eles, não é possível haver êxito. O
instrutor compõe os grupos, de acordo com as naturezas magnéticas e elétricas dos
estudantes, reunindo e agrupando, com o maior cuidado os elementos positivos e
negativos.)
IV - Enquanto estudam, os upâsakas devem ter o cuidado de estar unidos como se
fossem os dedos da mão. Tu gravarás em suas mentes que o que a um fere, deve ferir
aos outros e se a alegria de um não encontra eco no coração dos demais, não existem
as condições requeridas e é inútil prosseguir.
(Isto não sucederá se a eleição preliminar tiver sido feita de acordo com as
qualidades magnéticas requeridas. Está reconhecido que chelas cheios de promessas e
preparados para receber a verdade tiveram que esperar muito tempo (anos), em
consequência de seu temperamento e da impossibilidade em que se encontravam de
pôr-se em uníssono com seus companheiros.)
V - Os condiscípulos devem ser afinados pelo Guru, como as cordas de um alaúde,
em que cada uma é diferente das outras e, sem embargo, emite sons em harmonia
com as demais. Coletivamente, devem formar como um teclado que em todas as
partes responda ao mais ligeiro toque do Mestre. Deste modo seus espíritos abrir-se-
ão às harmonias da Sabedoria que vibrarão através de todos e de cada um,
produzindo efeitos agradáveis aos deuses (tutelares ou anjos-guardiães) e úteis ao
discípulo. Assim, a Sabedoria gravará um sinal em seus corações e jamais se alterará a
harmonia da Lei.
VI - Os que desejem adquirir o conhecimento que conduz aos Siddhis (poderes
ocultos) devem renunciar a todas as vaidades da vida e do mundo. (Segue-se a
enumeração dos Siddhis).
VII - Ninguém pode sentir diferença entre si e os demais estudantes, nem pensar:
"eu sou mais sábio", ou "mais santo", ou "mais agradável ao Instrutor que meu
irmão”, etc., sem deixar de ser upâsaka. Devem seus pensamentos, antes de tudo,
estar fixos em seu coração, para destruir nele todo o sentimento hostil a qualquer ser
vivente. O coração deve estar cheio de sentimento da inseparabilidade, tanto a
respeito dos seres, como de tudo o que existe na Natureza; de outro modo, não se
pode obter êxito algum.
VIII - Um lanu não deve temer mais que a influência da vida exterior (emanações
magnéticas das criaturas vivas). Por esta razão, ainda quando se sinta uno com todos,
em sua natureza interior, deve ter muito cuidado em separar seu ser físico (exterior)
de toda a influência estranha. Somente ele deve comer em seus pratos e beber em
seus copos. Deve evitar todo o contato corporal (tocar ou ser tocado) com os seres
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humanos, o mesmo acontecendo com os animais.
(Não lhe é permitido ter nenhum animal favorito. sendo vedado a ele até tocar
em certas árvores e plantas. Um discípulo deve viver, por assim dizer em sua própria
atmosfera, a fim de individualizá-la em vista dos desígnios ocultos).
IX - Deve manter a mente fechada a tudo o que não sejam as verdades eternas da
Natureza, a fim de que a Doutrina do coração não se reduza à doutrina da vista
(formalismo vazio e exotérico).
X - Nenhuma carne, nada que tenha em si vida o discípulo deve comer. Não deve
beber vinhos ou licores; nem fumar ópio, porque eles são como maus espíritos que se
aferram aos imprevidentes e destroem-lhe a mente.
(Supõe-se que o vinho e os licores conservam o sinistro magnetismo de quantos
contribuíram para a sua elaboração e que a carne de todo o animal conserva os
impulsos psíquicos característicos de sua espécie.)
XI - A meditação, a abstinência em tudo, a observância dos deveres morais, os
elevados pensamentos, as boas ações e as palavras benévolas, assim como uma boa
vontade para com todos e um completo esquecimento de si mesmo, são os mais
eficazes meios para obter o conhecimento e preparar-se para receber a superior
Sabedoria.
XII - Somente pela estrita observância destas regras, pode o discípulo adquirir,
em determinado tempo, os poderes dos Arahats, o desenvolvimento que, pouco a
pouco, o fará UNO com o Todo Universal.
Estas doze passagens foram escolhidas entre setenta e três regras, cuja
enunciação seria inútil, porque não teriam sentido para os europeus. Mas, as
expostas bastam para mostrar as graves dificuldades de que está semeado o
Caminho, para quem, nascido e educado, nos países ocidentais, queira ser
upâsaka(17).
(17). É preciso recordar que todos os chelas, até os próprios discípulos laicos,
chamam-se upâsakas até depois da primeira iniciação, em que se convertem
em lanus-upâsakas. Até então, mesmo os que pertencem às Lamaserias são
postos de parte e consideram-se como laicos.
Toda a educação e especialmente a educação inglesa,·está baseada no princípio
da emulação e da luta. Todo o educando se vê impelido a aprender mais rapidamente
e a se adiantar a seus companheiros, sobrepujando-os por todos os meios possíveis.
O que, tão sem razão, chamam de "rivalidade amigável", cultiva-se assiduamente e
fortifica-se em cada pormenor da vida,
Como pode um ocidental, com semelhantes ideias, inculcadas desde a infância,
chegar a sentir-se par a par com seus condiscípulos como os dedos de sua própria mão?
O instrutor não escolhe seus condiscípulos de acordo com a sua própria apreciação,
ou sua simpatia pessoal, mas escolhe-os por outra espécie de considerações, e,
aquele que queira ser estudante, deve ter, antes de tudo, bastante fortaleza para
destruir em seu coração todo sentimento de antipatia ou desagrado a respeito dos
outros. Quantos ocidentais estão preparados seriamente, sequer, para tentar isto?
E logo vêm os pormenores da vida diária. A ordem de não tocar, nem ao menos,
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na mão do próximo e do mais querido! Quão contrário é isto às noções ocidentais
sobre os afetos e bons sentimentos! Quão frio e duro parece! Dir-se-á: é egoísmo
abster-se de proporcionar prazer aos demais, tão somente pelo desejo do próprio
aperfeiçoamento. Que os que assim pensam defiram para outra vida o propósito de
entrar com ardor no Caminho. Porém que não se vangloriem com seu chamado
desinteresse, porque, na realidade, deixam-se enganar pelas falsas aparências, por
ideias convencionais, baseadas no sentimentalismo ou na cortesia, coisas todas de
uma vida artificial e que não são regras da Verdade.
Porém, deixando ainda estas dificuldades, que podem ser consideradas de
ordem exterior, ainda que, por isto, minore-se sua importância - como poderão os
estudantes do Ocidente pôr-se, harmoniosamente, em uníssono como se ordena? O
personalismo desenvolveu-se com tal força na Europa e na América, que não há
escola, nem mesmo entre os artistas, cujos membros não se odeiem ou não sintam
ciúmes uns dos outros. O ódio e a inveja profissionais chegaram a ser proverbiais -
cada qual busca sua vantagem a todo o custo, e a chamada cortesia não é mais que
enganosa máscara que oculta os demônios do ciúme e do ódio.
No Oriente, a ideia da inseparabilidade inculca-se persistentemente, desde a
infância, como o é no Ocidente a ideia da rivalidade. A ambição pessoal, os
sentimentos e desejos pessoais não se estimulam ali, para que cheguem a ser
imperiosos. Quando o terreno é bom, por natureza, e se cultiva no bom sentido, ao
converter-se a criança em homem, terá contraído o hábito da subordinação de seu
EU superior, e este é forte e poderoso.
No Ocidente, pensam os homens que sua simpatia, ou antipatia, para com os
demais homens, ou para com as coisas, são os princípios diretores, segundo os quais
devem agir, tratando, frequentemente de impor tal regra de vida aos demais.
Aqueles que lamentam haver aprendido pouco na Sociedade Teosófica devem
gravar em seu coração as palavras que aparecem num artigo publicado em "The
Path"; "A chave de cada grau é o próprio aspirante".
Não é "o temor de Deus" o princípio da Sabedoria, mas "o conhecimento do EU"
é a própria Sabedoria.
Quão grande e verdadeira parece, então, ao estudante ocultista que começou a
comprovar algumas Verdades, a resposta do Oráculo de Delfos a quantos vão em
busca da Sabedoria Ocultista - palavras confirmadas e repetidas milhares de vezes
pelo sábio Sócrates:
"HOMEM, CONHECE-TE A TI MESMO"

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