H. P. BLAVATSKY
A DOUTRINA MÍSTICA
Narrações Ocultistas
Tradução de:
C. DE FIGUEIREDO BARTOLETTI
Prólogo 04
A Gruta dos Ecos 15
Um Matusalém Ártico 23
O Campo Luminoso 25
Uma Vida Encantada (Tal Como a Contou uma Pena)
Introdução 32
I - O Desconhecido 33
II - O Visitante Misterioso 38
III - Magia Psíquica 40
IV - Visão de Horrores 42
V - A Eterna Dúvida 45
VI - Parto, Porém Não Sozinho 48
VII - A Eternidade é um Sonho Fugaz! 50
VIII - Desgraças a Granel 53
A Façanha de um "Gosain" Hindu 57
Demonologia e Magia Eclesiástica 61
Assassinato à Distância 67
A Mão Misteriosa 73
A Alma de um Violino 77
Os Espíritos Vampiros 96
A Ressurreição dos Mortos 111
A Imaginação, A Magia e o Ocultismo 120
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PRÓLOGO
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“Conforme o homem avança
da vida no áspero caminho
leva sempre a seu lado a esperança
mas tem sempre à frente o seu destino...”
Porque a alma de todas estas páginas, que com tanto carinho nos permitimos
apresentar, é o dedo do Deus-Karma: a pegada do Destino; o Talião inexorável das
coisas, diante da suprema piedade dos que, vigorosos transcenderam as fronteiras do
Mistério, rompendo hercúleos o Véu de Maya ou de Ísis, para auxiliar, desde o mais
além das coisas, os seus filhos - os homens, esses homens que são maus porque são
egoístas, e que são egoístas porque têm, todavia, mais de animais que de homens,
por terem escalado muito poucos degraus na senda evolutiva.
Em um dos contos, a paixão amorosa, irmanada à cobiça, assassina, e seu
assassinato é descoberto por uma das mais repugnantes experiências da magia nativa
atlante e tântrica; além, em outro, o ceticismo materialista perde um pobre homem
que, em sua inconsciência europeia no que tange aos inauditos perigos do Ocultismo,
crê ser possível abrir a porta dantesca do mais além, ignorando que essa porta, uma
vez aberta, jamais pode fechar-se, e, sem compreender que vai chegar por isso à
borda mesmo da mais espantosa loucura; acolá, criaturas inocentes, à maneira das
recentes vítimas espanholas dos feiticeiros de Gador e da nefasta bruxa Enriqueta
Marti, sofrem todos as mortais depredações do vampirismo, enquanto que, em
outras páginas, o duplo astral de uma mulher do mesmo jaez, realiza uma histórica
vingança política. E vibram os intestinos de um bom homem transformados em
cordas de violino; ou dançam os espectros das tumbas, com música astral, que não é
a dirigida pela batuta de Offenbach, nem a evocada pela Dança Macabra de Saint
Saens; ou os faquires deixam-se enterrar vivos; ou realizam os jograis as tretas
hipnóticas mais inconcebíveis; ou verdadeiros e efetivos Matusaléns árticos guiam,
entre as neves, tristes caravanas polares; ou apresentam a seus clientes, tal qual os
dervixes mais asquerosos e os xamanistas mais santos, o espelho mágico de todas as
vidências do astral, onde se vê o que querem deixar ver os jinas e onde já não subsiste
nenhuma de nossas noções tridimensionais de espaço, tempo, quantidade, matéria ou
força, transmudadas todas com a facilidade do sonho, da febre ou da loucura...
E, aqui, assistimos às sessões mais tremendas de superespiritismo; mais além,
vemo-nos envolvidos entre sangue, nas trevas da magia negra; acolá, concluímos,
como Empêdocles, Jesus, Apolônio de Tiana e todos os Adeptos, enfim, podem
devolver à vida os mortos, realizando o milagre de tornar a ligar o corpo astral ao
corpo físico, ou o cadáver do assim ressuscitado, à maneira dos célebres clientes de
além-túmulo do médico-deus Esculápio, que voltaram a viver às centenas e milhares,
até que, por queixa do deus Plutão, Júpiter os fulminou com um de seus raios... A
teofonia, a telestesia, a teurgia, a astrologia, a alquimia e demais ramos da Magia,
irão intervir em umas e outras passagens narrativas, entre o destapar da mais temível
caixa de Pandora, que põe em liberdade os demônios da epilepsia, e do histerismo, as
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personalidades múltiplas, as deslocações e transtornos sensitivos; os terrores
apocalíptico do superliminar e toda a inabarcável patologia da psique, com o
consequente aditamento de que, ao fechar, espantados, a caixa fatídica, permaneça,
no interior, o último dos males, quiçá: a esperança de achar uma explicação verdadeira
para tamanho problema e um remédio para patologias tão absurdas quão
demoníacas.
Porque, entre as narrações da Mestra e os contos macabros de tantos outros
autores, medeia uma diferença essencialíssima: estes foram sonhados em seus
delírios de inspiração ou de neurose de que acaso foram vítimas, enquanto aquela,
embora pareça à primeira vista o contrário, glosou seus argumentos com pleno
domínio de si própria e com um fim perfeito e conscientemente ocultista. Quer dizer
que, enquanto os contos, por exemplo, de Poe, contos escritos sob o influxo do álcool,
são contos que parecem ditados por alguém do astral, esse vedado mundo que Poe
havia aberto com a gazua da bebida, os de Helena Petrovna não são senão pequenas
fábulas chistosas, sob cujo véu encobriu, para que achassem, depois, os espíritos
seletos, os ensinamentos mais fundamentais do Ocultismo com respeito à Lei do
Karma, ou de causa e efeito; da reencarnação, que é postulado lógico da justiça divina;
da dos elementais, ou criaturas invisíveis, que reinam soberanos no mundo emocional,
como os micro-organismos pululam, por legiões, nos caldos de cultura; a lei, enfim, da
latente divindade da alma humana, ainda no inferno de seus maiores extravios; a da
imaginação criadora, que é a desgraçada chave da magia, a da vida humana, em suma,
ao longo de sua peregrinação terrestre, que não é senão o panorama da eterna luta,
entre os gloriosos destinos do homem, em busca do Ideal, forçando o passo, como os
heróis de todas as lendas, com a retidão energética de seu coração nobilíssimo e a
espada irresistível do conhecimento, por entre a canalha diabólica, elementar e
invisível, que o combate sem trégua, para fazê-lo sossobrar em seu caminho, razão
pela qual se diz, na Bíblia, que é milícia a vida do homem sobre a Terra, e foi
acrescentando, consoladoramente, por Maeterlink: "É bom recordar aos homens que
o mais humilde dentre eles tem bastante poder, a modo e teor do modelo divino que
traça em sua imaginação, para constituir-se numa elevada personalidade moral,
integrada por partes iguais do Ideal que sustenta e de sua própria individualidade que,
deste modo eleva a estágios inconcebíveis".
Como se tivesse a Mestra tido presente, com efeito, esta frase de Magendie - "A
inteligência humana, por uma estranha lei, parece precisar exercitar-se longo tempo
no erro antes que ouse acercar-se da verdade" - teima em seguir, em todos os seus
contos, as pegadas dos necromantes medievais - aqueles das missas negras; os mitos
bruxos com crianças assassinadas, e as efusões sacrificiais de sangue de animais e de
homens - para levar-nos, com a sedução insensível da fábula, que é a Verdade com a
roupagem da Mentira, até as mais imponentes verdades do Ocultismo, em cuja altura,
bem de pronto, recebem-se novas luzes para o Direito Penal, para a Ciência Médica,
para a Sociologia, para as Religiões e para as doutrinas do magnetismo, mesmerismo,
hipnotismo, cabala, etc., amoldado ao tão lógico aforismo de Herbert Spencer, que
diz: "Quando se lança uma hipótese fecunda sobre um grande acúmulo de feitos
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desordenados, esse caso antigo começa, bem logo, a evoluir em uma ordem nova e
admirável que nos eleva na senda do conhecimento e da virtude".
Tal como das trevas cimerianas e patológicas, por exemplo, de Edgar Poe, surge
nestas narrações blavatskianas uma nova luz no caos dos feitos ocultos que todos
conhecemos desde o berço, onde nossas mães, nas noites horríveis de inverno, ao
calor da lareira, ou encolhidas entre os cobertores da cama, faziam-nos tremer de
emoção astral, quando nos contavam "Era uma vez um rei"... e que imortalizou o
poeta hindu Rabindranath Tagore, traduzido em castelhano por Jimenez.
Em um maravilhoso artigo que teve a bondade de dedicar-nos outro Edgar Poe,
não alcoólatra, que se chama Emílio Carrere, este grande escritor nos dizia, falando
daquele tão inquietante homem:
"Este taumaturgo literário cativou-me o espírito. O prólogo de Baudelaire, da
tradução francesa de "Estórias Extraordinárias", é um profundo estudo crítico e um
emocionante acervo de anedotas. Dá-nos, de corpo inteiro, o Poe passional,
trabalhador, analítico, matemático e até o tenebroso bêbado que faz "SS" pelas ruas
de Nova York, na mesma manhã em que "O Corvo" era publicado triunfalmente.
Oh! aquela trágica embriaguez que abre a porta de seu cérebro excepcional à visita
do Delirium Tremens! Sem embargo, Baudelaire omite um aspecto muito interessante
de Edgar Poe - o sopro de além-túmulo que gela as páginas mais profundas e
singulares deste artista do horror.
"As Memórias de Augusto Beldoe", "Revelação Magnética", "Morella", Ligéia" e
"A Verdade sobre o caso de Waldemar", atestam que Poe era um iniciado em
ocultismo.
"As Memórias", de Augusto Beldoe, são a alucinante história de um
hipnotizado. Na época de Poe, a ciência oficial rechaçava as práticas hipnóticas,
considerando-as patranhas próprias do vulgo. Mesmer havia sido anatematizado
pela ordoxia científica. O povo não compreendia bem as causas, mas se surpreendia
ante os efeitos. Como artes milagreiras, Poe, naturalmente, despreza todas as
superstições e se apodera do segredo do mesmerismo. E, como além de homem de
ciência, era poeta, a intuição estética o guia. Fala do magnetismo, com a
profundidade que poderia fazê-lo um bom médico moderno. Poe antecipou-se
oitenta anos no estudo racional e científico deste sutil aspecto semipatológico e
semi maravilhoso. Há motivos para crer que o próprio Edgar foi um magnetizador
estudioso.
Quando escrevia seus contos de arrepiar, ainda não se havia falado de
espiritismo, na Europa; em "Metzengerstein" e em "Guilherme Wilson", apresenta-
se um caso de metempsicose e de dupla personalidade. Para o leitor vulgar, Poe é
uma imaginação, unicamente. Sem embargo, o caso de "Ligéia" não se inventa, nem
o de "Morellas", tão pouco, sem possuir, além da imaginação, uma completa
identificação com o extraterreno, juntamente com uma profunda e difícil cultura
ocultista. Claro que é preciso gênio para compor a audaz hipótese d "A Verdade
sobre o caso de Waldemar", o conto mais belamente horrível e o mais original de
todas as literaturas.
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Poe devia ser médium; confessava que ouvia "vozes do Céu, da Terra e também
do inferno". Baudelaire afirma que, para o poeta americano, o álcool era uma ponte
entre o plano físico e a zona alucinante do astral, esse "fundo esverdeado", onde se
"sente a fosforescência da pesca e o odor da tempestade" e que repetida num
acesso de embriaguez, a narração recomeçava noutra tormenta de álcool, com
seres absurdos e incompreensíveis que habitam aquele ambiente de pesadelo.
Em "Revelação Magnética", a voz do indivíduo adormecido não é uma voz
humana. Pelos lábios do homem, que desperta do torpor hipnótico para morrer,
fala o espírito do mistério. "Aquele homem disse suas últimas palavras do fundo da
eterna sombra", exclama Edgar. Maravilhosa, sua voz cheia de ciência humana, ou
iluminada de resplendores celestes e aguçada pela intuição que, qual lamparina
misteriosa, arde no fundo, sem fundo, de nosso ser!
"Ligéia", a milagrosa, é uma incorporação espiritualista de prodigioso interesse
estético. "Ninguém morre completamente senão quando tenha perdido a vontade
de viver". "Pelo poder dessa vontade, o homem chega a igualar-se aos anjos", Assim
diz "Ligéia", quando se desespera ante a ideia horrível e espantosa da morte... E,
depois, no cadáver de Lady Rovena, ressurge "Ligéia" em uma tremenda, arrepiante
suplantação espírita.
Poe foi um sutil analista - vede "O Assassinato da Rua Morgue" e "A Carta
Roubada"; um engenhoso decifrador de enigmas - lede "O Escaravelho de Ouro".
Ademais teve o talento de encerrar numa lógica harmoniosa, o que poderíamos
chamar de a órbita do absurdo, em "O Gato Preto" - esse tremendo gato torto e
enforcado - "Coração Revelador", "O Tonel de vinho amontillado" (1) e outros
muitos de seus contos singulares, únicos.
(1). Espécie de vinho - N. T.
"Poe veio à Terra para fazer o doloroso aprendizado do gênio, entre as almas
inferiores". Realmente, se foi um gênio, foi um homem infinitamente desgraçado A
Natureza dotou-o de extraordinária inteligência, como compensação de um destino
cruel, implacável. A única mancha que se lhe pode imputar é a da embriaguez
contumaz; mas, teria sido ele o único poeta a se embriagar? Nos demais, e,
sobretudo perante nós, esse vício foi uma falta leve. Todos temos tido o decoro de
não olhar com demasiada curiosidade o horror da vida alheia. Com Poe, não. Foi
uma matilha hipócrita, "burguesa", cruel, a que se cevou em seu cadáver, como
possuída de um ataque de vampirismo. Foi o enfastiamento da zoocracia".
Até aqui, o intuitivo Carrere.
Porém, o caso de Edgar Poe e de tantos outros "inspirados" ou "iluminados", é
radicalmente oposto ao da prodigiosa H. P. B. Esta, se bem que eminentemente
mediúnica, ou neurótica em sua primeira idade, não abriu o Santuário Iniciático com
a gazua da anormalidade, da patologia ou do vício, ou do próprio martírio de seu
corpo, como muitos santos cristãos, mas com a chave-mestra de um Conhecimento
Transcendental ou Mágico recebido lá, nas misteriosas e inacessíveis solidões do
Tibete e de Gobi, das mãos de autênticos Hierofantes dos tempos modernos e, por
isso, ao voltar de semelhante expedição, qual novo Marco Polo de nossa época,
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pôde, de Tiflis, escrever à sua família, dizendo: "Os últimos restos de minha
debilidade psico-física - alude às faculdades mediúnicas de sua primeira idade -
desapareceram por completo, graças Àqueles - seus mestres tibetanos - a quem
bendirei, agradecida, o resto de meus dias".
E isto se conclui, desde o primeiro momento, com a simples leitura de qualquer
das presentes "Páginas". Nelas, com efeito, a autora não descreve algo de que haja
sido vítima, mas algo real ou fingido, daquilo que ela mesma sabe perfeitamente, por
dominá-lo às maravilhas, não como médium passiva, porém como ativa yoguina
triunfadora, que já conhece um dos grandes segredos da Natureza, a saber, a
contingência ou falibilidade de certas leis físicas, como a gravidade, a
impenetrabilidade da matéria, etc., que são para nós infalíveis... , infalíveis até certo
ponto, pois que também logramos contradizê-las, mediante essa pequena e
progressiva magia a que chamamos de Ciência.
Por isso, enquanto em Hoffmann, Poe, Verlaine, etc., o esboço ocultista, por
assim dizer, aparece algo confuso, quiçá esfumado e débil, embora sempre
encantador, nas "Páginas" da Mestra mostra-se ativo, vigoroso, vívido ou com luz
própria, dado que, naqueles, o conhecimento transcendente vinha projetado de
mais longe, pela via imaginativa ou da inspiração, ou pela imprudente entrada no
mundo astral, mediante o vício, enquanto que, nesta, a trama da fábula responde,
perfeitamente, a um claríssimo e deliberado ocultista, como o prova a mesma
facilidade com que permite o comentário e o confronto com feitos históricos
positivos, coisa infinitamente mais difícil de realizar com os trabalhos daqueles, sem
que isto seja negar que uns e outros pertençam à mesma família de almas nobres de
asas partidas, teares caídos das alturas, por seu titânico e valente satanismo rebelde,
mas que sabem retornar à altura perdida e ainda subir mais, conquistando, não
pedindo a nenhum poder extracósmico e mendaz a revelação pasmosa do Mistério...
Hoffmann, Poe, Beethoven, Becquer, Leopardi, Carducci, Blavatsky e tantos
outros, nas diferentes ordens de sua respectiva Arte, levaram, sim, sua redentora
rebeldia, até muito além dos umbrais do proibido... o proibido, por nossa vulgaridade
de animais encantados, como o Deus Brahma, da lenha hindu, transformado em
suíno - encantados, digo, com as mentidas delícias de uma Ordem estabelecida, essa
Ordem maldita, contra o que troa, galhardo, o Sigfrid de Wagner, dizendo: "Desde
que nasci, um velho se interpõe sempre em meu caminho ..." A falsa Ordem, com
efeito, de um incipiente e pobre estado de evolução em que nos empenhamos, sem
embargo, em ter por definitivo!
A mentalidade atual, disse Gustavo Le Bon, é uma criação artificiosa, que apenas
conta um século de existência". Novalis, de sua parte, reconheceu, como os místicos
de todos os tempos, que nossa alma jaz aprisionada, como os condenados ao cárcere
de Platão, em sua "República", acrescentando, titânico: "Quando chegará o dia em
que aquela possa mover-se livremente, e quando esse outro, gloriosíssimo, em que a
Humanidade, em massa, comece a ser consciente de seu ser e de seu destino?...
Somente, pois, importa uma coisa, e é a de poder encontrar, algum ditoso dia, nosso
EU transcendental".
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À espera, pois, de tão excelso dia, prometido por todas as religiões, as ciências, as
artes e o inconsciente testemunho interno de nosso ser íntimo, justo será que
procuremos antecipá-lo, buscando, como o Dr. Fausto, o ignorado, por não bastar, a
nossos anelos, e conhecido; e, que, ansiosamente rebeldes contra o que nos cerca,
perguntemos, teoricamente - já que não de um modo prático, pelos inauditos perigos
que ele encerra - acerca desse mundo superliminar, onde a Hada-Imaginação, que é o
nosso Corpo transcendente, sobressai livremente, sem entraves nem misoneísmos, e
sonhemos com quem sonha; sigamos de perto as loucuras dos loucos, para melhor
estudá-las em seu terrível mistério; convivamos, um momento, com todas as tristes
anormalidades que são patrimônio da tão perseguida Humanidade e desçamos, enfim,
como todos os Irmãos maiores desta: Osíris, Ra, Orfeu, Perseu, Hércules, Apolônio,
Jesus ou Dante, aos infernos ou "lugares inferiores" deste não muito elevado mundo,
para aprender, em suas dores sem medida e em sua queda sem esperança de
imediata redenção, a ansiada Verdade das Idades, que é a existência de um mundo
astral subjacente de todos os fenômenos físicos, porém, que obedece, por sua vez, a
outro mundo superior, que é o mundo mental, ou seja, o Mundo das Ideias, em que
vive o Homem Superior, constituído pela Mente.
Dominar o mundo astral com a mente!... Quem senão os super-homens, os
Homens representativos, ou Mestres, têm podido conseguir isto, de modo absoluto?
Mas, por outra parte, quem em sua respectiva esfera de atividade já não dominou,
pouco ou muito, a uma ínfima parte do dito mundo?
O pedreiro e o acrobata, do trapézio ou andaime, venceram, galhardos, essa
terrível astralidade que determina a vertigem das alturas; o mineiro venceu o negro
espectro da mina ou da cripta, como o toureiro e o domador dominam a fereza
animal, com uma arte difícil que, a seu modo, não pouco tem de mágica.
Pasma, com efeito, considerar quão ilimitados são os poderes mágicos latentes
no fundo de toda a alma humana, poderes que a educação especializada e o esforço
titânico de cada homem pode chegar a tornar ostensivos e vigorosos. Por isso, se
quiseres chegar à conclusão do que possa ser o super-homem real, a quem chamamos
Mestre, tens que imaginá-lo possuidor de uma ciência transcendente, chamada
Magia, ciência, em virtude da qual, tornam-se fatíveis e simples todos os nossos mais
aparentes impossíveis. Assim, Mestres conheceram a mesma história profana, de como
puderam caminhar serenos sobre as águas, como Apolônio e Jesus que gozaram o
dom da ubiquidade, ou seja, a faculdade de poder estar, ao mesmo tempo, em dois
lugares distintos, separados por centenas de léguas: em um, com seu corpo astral, e,
em outro, com seu corpo físico, como a Igreja romana ensina e crê à cerca de muitos
de seus Santos, os que tiveram, enfim, esse invejável dom de idiomas, que o
Evangelho nos mostra, descendo em Pentecostes (a divina descida da Mente ou dos
Cinco) sobre as cabeças dos discípulos que acabavam de ver o Mestre, ascendendo
glorioso aos céus, como em carros de fogo e em relâmpagos subiram, também, esses
outros mestres que se chamaram Enoch, Elias, Ben Jocai e Beethoven, porque tal é o
poder sobre-humano e incompreensível de um Adepto, que medeia, entre ele e os
mortais, um abismo evolutivo tão grande como o que separa, na Natureza, os quatro
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reinos: mineral, vegetal, animal e hominal.
Leitores - concebemos, acaso, um mineral de quartzo ou ferro, com o tronco,
folhas e raízes que são glória e triunfal ornato evolutivo da planta? Caberia, em
estritas leis vegetativas, o ver um vegetal caminhando e mudando de lugar, como o faz
a minhoca e a tartaruga? Seria, enfim, admissível um pobre mamífero inventando o
fogo, a roda, a radiotelefonia ou a aviação? Pois outro tanto cabe dizer do abismo que
separa o homem vulgar do Mestre do ocultismo, porque se a Natureza nunca se
desmente em suas eternas leis evolutivas, ao não ser perfeito, nenhum dos homens
que conhecemos, não obstante seu anelo de perfeição e até seu relativo
aperfeiçoamento, admiravelmente alcançado em dolorosas especializações, há acima
do homem um estado superliminar de perfeições jamais sonhadas, porém das quais,
mais e mais, nos aproximamos, com nossas progressivas e esforçadas rebeldias (até
chegarem elas a serem nossas em um remoto dia), com o curso dos cicios, como o
recém-nascido que chora no berço acaba transformando-se, com os anos, em um
desses gênios que são luz, senda, salvação e guia de seus irmãos menores - os homens
vulgares de sua respectiva época.
A ciência que nos serve para isto conseguir, de modo falso ou, pelo menos,
perigosíssimo, chama-se Ciência Oculta ou Magia, porque ela é grande e é ademais,
terrível arma de dois gumes que, sem preparação adequada, pode ferir e matar o
próprio manipulador - a Arte Suprema de colocar nosso ser, de uma, vez para sempre,
em condições de total aptidão mágica, acima deste nosso mundo, no que é soberana a
dita Ciência Mágica, chama-se Ocultismo e Yoga ou seja: "a reforma interior, a divina
transfiguração de nosso próprio ser pela virtude, quer dizer, pelo supremo
conhecimento do que é real e do que é meramente ilusório, ,o efetivo Gnoscete ipsum
socratico, a revelação do Cristo interior, no dizer de São Paulo o descenso da Dúada de
Atmâ-Buddhi sobre Manas, para a Hipóstase de nossa liberação, ensinados por
orientais e pitagóricos...
Por isso, dizíamos antes que, iniciada Helena Petrovna numa parte, pelo menos,
de tão augustos segredos, e testemunha ocular, ademais, dos mágicos feitos de
Mestres que estavam a mil braças acima dela foi bem mais personagem real de
algumas de suas arrepiantes narrações do que mera a inspirada novelista, como tantos
outros, No prólogo e em comentários da obra "Pelas grutas e selvas do Indostão", de
que a presente vem constituir um complemento, insistimos, por isso, também acerca
da origem e do alcance dos fenômenos mágicos de H. P. Blavatsky - poderes acerca dos
quais, todos os seus biógrafos, começando pelo nobilíssimo Olcott, dizem, depois de
atestá-los com apoio nas leis da mais estrita crítica judicial ou histórica, que nenhum
discípulo sério procurou; ou melhor, quantos fenômenos produziu, foram-lhe
contraproducentes e, neles, a desapiedada perseguição de missionários perversos e
cientistas enfatuados, achou a base para uma fácil presa de suas crueldades e sua
inveja contra ela... Quem não recorda, com efeito, a resistência que Jesus opôs às suas
curas e outros milagres e, a maior, ainda, que opôs a que se os divulgassem? Blavatsky,
em seus numerosos fenômenos mágicos, agiu sempre contra o parecer de não poucos
doutos orientais que, tendo análogos poderes, nunca se prestaram a realizá-los,
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considerando que o maior prodígio que se faça ante os olhos dos homens e das
crianças, no momento nos pasma e acaba por causar-nos repulsa e enfado. Só uma
coisa não cansa jamais, é a doçura da consciência serena, triunfadora das lutas e
paixões deste mundo baixo, como os heróis da lenda triunfaram da terrível serpente da
Luz Astral que ameaça sempre arrastar-nos ao abismo; os Hércules, Odins, Miguéis e
Sigfrids...
Decididos, como estamos há anos, a comentar, na medida de nossas débeis forças,
a obra inteira da Mestra Blavatsky, publicamos em 1918, "Por las grutas y selvas deI
Indostán", como ensaio aos mui maiores encargos que importam no abordar também a
publicação dos comentários à "Isis sem Véu" e à "Doutrina Secreta", há tempos
iniciados por nós.
Porém, a favorabilíssima acolhida dispensada àquela publicação, não só pelo
público teosófico, como pelo literário e científico, movem-nos a, de certo modo,
completá-lo com outras pequenas obras ou artigos esparsos da Mestra, os quais, não
por seu pequeno tamanho e seu propósito aparentemente literário, deixam de ter um
alto valor ocultista, como o leitor terá de convencer-se, no momento em que fixe seu
olhar sobre eles. Ademais, os artigos em questão representam uma faceta
importantíssima do caráter e da história mesmo da Mestra; primeiro, porque neles se
mostra ela, digna herdeira da sua mãe, aquela insigne escritora, a quem se denominou
com justiça a Georqe Sand russa, e a quem as empresas literárias (veja-se o prólogo de
"Pelas grutas e selvas do Indostão") pagavam nas mesmas condições que ao grande
Tourgeníeff; segundo porque os ditos artigos teosóficos mostram, em não poucos
trechos sua filiação espírita, ou melhor dizendo, seu caráter de transição entre esta
última doutrina filosófica e o conceito genuinamente teosófico com que a autora
produziu e interpretou sempre os fenômenos do Espiritismo como mais
pormenorizadamente pode ver-se, não só em "Ísis sem Véu", como na insubstituível
obra do Coronel Olcott - "História autêntica da Sociedade Teosófica"; terceiro, porque,
como sucede sempre, alguns dos artigos constituem o gérmen de não poucas
passagens magníficas das obras posteriores da Mestra, tantas vezes citadas quando
não, acontecimentos reais desta romanceados ou atribuídos a outrem, como é tão
frequente em todos os escritores, cuja literatura, aparentemente imaginada não é, em
mais de uma ocasião, senão a glosa de emocionantes passagens de suas próprias vidas.
Assim, "A Gruta dos Ecos", não é mais do que a história de um acontecimento real
que a Mestra conhecia por si ou pelas suas aristocráticas relações de família e a ideia
da Magia tântrica e seus derramamentos de sangue, tão comum em toda a Sibéria,
para não dizer no mundo, palpita, macabra, no terrorífico argumento; o de "Um
Matusalém Ártico" não é mais do que um gracioso pretexto para falar dos "Protetores
Invisíveis" ou Lohengrins, que nos salvam mais de uma vez nos transes mais difíceis de
nossa vida; protetores que do mesmo modo podem atuar, como o velho João do conto,
nos desertos polares, ou nos salões dourados, como o estranho Conde de Saint
Germain, do qual também nos ocupamos, recordando outras proteções, não menos
reais, como as ensejadas pela própria Mestra em "A Mão Misteriosa". Estes feitos de
Magia, mais comuns no mundo do que à primeira vista se pudera crer, têm também
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seus graus inferiores em façanhas, como as de "Um Gossain Hindu"; nas de "O Campo
Luminoso" e "Assassinato à Distância"; nas tão conhecidas dos faquires, sem contar,
ainda, as compreendidas na "Demonologia e Magia Eclesiástica", passagem que, com
outras duas ou três, temos, para completar, tomado de "Ísis sem Véu", pedreira
inesgotável de todas estas coisas, que nunca será explorada como merece, e da qual,
pode-se dizer que dela foram lavradas todas as obras teosóficas posteriores.
Vêm, enfim, entre estas "Narrações Ocultistas", essas duas memoráveis
novelazinhas à moda de Poe e Hoffmann, que levam, respectivamente, por título "Uma
Vida Encantada" e "A Alma de um Violino", onde a Magia reina soberana, já para
realizar, necromante, neste, o crime inspirado pela doentia paixão de um artista louco,
já para operar, salvadora, naquela, o prodígio de fazer viajar o duplo-etérico de um
infeliz materialista, do Japão a Hamburgo, através da crosta terrestre, nem mais nem
menos, como nas iniciações clássicas, em que o duplo-etérico do candidato era
separado e projetado à distância de seu corpo físico, enquanto este jazia como morto,
ora em câmara sepulcral da pirâmide egípcia, ora nas entranhas da cripta iniciática,
templo pós-atlante, que, com suas "pinturas rupestres, a moderna paleontologia
começa a descobrir". (2)
(2). Veja-se nosso estudo "Un nuevo triunfo de H. P. Blavatsky"; a obra do
Catedrático D. Eduardo Fernandez-Pacheco à cerca de: "Las pinturas rupestres
de la Cueva de Candamo (Astúrias)". a aparecer na revista barcelonesa "EL
LOTO BLANCO". A obra de Fernandez-Pacheco é publicada sob os auspícios e a
custa da Junta Espanhola para Ampliação de estudos e investigações
científicas e nos mostra esplêndidas reproduções das pinturas que em tal
gruta, como em tantas outras da Espanha e do mundo, são vivo testemunho,
dizemos nós, de iniciações operadas no tenebroso seio desses hipogeus,
primitivos templos da época pés-atlante, nos quais a necromancia e o
sacrifício humano ou animal desempenhou, por vezes, seu papel.
Estes dois verdadeiros modelos de novela ocultista nada têm que invejar de
Bulwer Litton "Os últimos dias de Pompeia", Rienzi, Zanoni e tantas outras.
As mil apaixonantes questões filosóficas e práticas assim propostas como por
descuido, sob estas múltiplas epígrafes, caem em cheio no domínio da História,
quando não no da Ciência mais positiva. Com efeito, é indiferente, por acaso, para o
Direito Penal, o debatido problema chamado "dos elementais" que figuram em tantas
passagens destas obras? Não chegariam a dever transformar-se em médicos de C0rpos
e almas, à maneira dos velhos hierofantes egípcios, nossos atuais carcereiros? Não
chegaria, enfim, a figurar sempre o pecado, quer dizer, o delito de pensamento, como
elemento primordial e essencialíssimo na complexa etiologia do crime? Semelhante
hipótese, digna de figurar à frente de tantas outras das diversas escolas penais, lança
vívido raio de luz em nossa atual inópia jurídica.
É, de outra parte, um assunto vão e tão admiravelmente tratado em "A
Ressurreição dos Mortos", ou no tremendo "Os espíritos vampiros", para que os
deixemos passar assim, levianamente, com nossa frivolidade costumeira, quando de
um depende toda a milagreira antiga e moderna, e, de outro, esses problemas das
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consunções mais inexplicáveis da juventude, que arrebatam mais vidas que a própria
guerra? É tolerável sequer, assim mesmo, o ambíguo e errôneo conceito que
formamos à cerca da imaginação-fantasia, quando dela depende nosso inteiro viver,
desde o dia em que, por imaginação ou enlevo de nossos pais, e não por "rigoroso
cálculo matemático", vimo-nos atraídos, sem querer, a este mundo desprezível e, por
imaginação ou paixão, por simpatias mais ou menos fantásticas, que não "por rigoroso
cálculo matemático", também, ou "por cerrada argumentação escolástico-silogística ",
movemo-nos continuamente?
Não vamos pretender, todavia, num mundo tão ignorante e egoísta, fazer passar
por fatos demonstrados, não poucas de nossas asserções ocultistas, embora dela
tenhamos a segurança íntima de quem as tenha estudado, meditado e até
experimentado. Homens de ciência somos, pelo que dizem nossos vários títulos
oficiais e acadêmicos e, como tais, exercemos a mais perfeita de nossa soberania
intelectual e moral, expondo, honradamente, ao público imparcial nosso sentir
científico, embora, como aquele gladiador romano, com tanta oportunidade citado ao
final da introdução de "Ísis sem Véu" - tenhamos que dizer, prevendo nossa derrota:
"Ave César, moriturus te salutat"... Quer dizer, tenhamos que saudar hoje como a
Césares em religião e Ciência, a dois colossos de ouro que, como o Nabucodonosor da
História, ou como o Hindenburgo de madeira do Jardim Zoológico de Berlim, tenham
apoiado seus míseros pés de barro, numa terra sempre deslizante.
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A GRUTA DOS ECOS
Em uma das províncias mais distantes do Império Russo, numa pequena cidade da
fronteira da Sibéria, ocorreu há trinta anos uma tragédia misteriosa.
À cerca de seis verstás da cidade de P... , célebre pela beleza selvagem de suas
campinas e pela riqueza de seus habitantes, em geral proprietários de minas e
fundições de ferro, existia uma mansão aristocrática. A família que a habitava
compunha-se do dono, solteirão velho e rico e de seu irmão, viúvo, com dois filhos e
três filhas.
Sabia-se que o proprietário, Senhor Izvertzoff havia adotado os filhos de seu
irmão, e, tendo um carinho especial pelo sobrinho mais velho, chamado Nicolau,
instituiu-o único herdeiro de seu latifúndio.
Passou-se o tempo. O tio envelhecia e o sobrinho acercava-se da maioridade. Os
dias e os anos haviam transcorrido numa serenidade monótona, quando, no até então
claro horizonte familiar, formou-se uma nuvem. Num malfadado dia, ocorreu a uma
das sobrinhas aprender a tocar cítara. Como o instrumento é de origem puramente
teuta, e como não se podia encontrar um professor pelos arredores, o tio complacente
mandou procurar um e outro em São Petesburgo. Depois de uma investigação
minuciosa, apenas pôde-se encontrar um professor que não achou inconveniência em
aventurar-se a ir para tão perto da Sibéria. Era um artista alemão, idoso, que,
compartilhando seu carinho entre o instrumento e sua filha, ruiva e bonita, não
queria separar-se de nenhum dos dois.
E, assim, sucedeu que numa linda manhã chegou o professor à mansão, com a
sua caixa de música sob o braço e a linda Minchen apoiando-se ao outro.
Desde aquele dia, a pequena nuvem começou a crescer rapidamente, pois cada
vibração do melodioso instrumento encontrava eco no coração do velho solteirão.
Dizem que a música desperta o amor... e a obra iniciada pela cítara foi completada
pelos formosos olhos azuis de Minchen. Ao cabo de seis meses, a sobrinha se havia
tornado uma hábil tocadora de cítara e o tio estava loucamente enamorado.
Certa manhã, reuniu a sua família adotiva, abraçou a todos mui carinhosamente,
prometeu lembrá-los em seu testamento e, por último, desabafou-se, declarando sua
resolução inquebrantável de casar-se com a Minchen de olhos azuis. Depois se lhes
atirou ao pescoço e chorou em silencioso arroubo.
A família, compreendendo que a herança se lhes escapava, chorou também,
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embora por motivo diverso. Depois de terem chorado, consolaram-se e trataram de
alegrar-se, pois o ancião era amado sinceramente por todos.
Entretanto, nem todos se alegraram. Nicolau, que também se sentira ferido no
coração pela linda alemã e que, de um golpe, via-se privado dela e do dinheiro de seu
tio, não se consolou, nem se alegrou, tendo até desaparecido o dia todo.
Entretanto, o senhor Izvertzoff havia ordenado que lhe preparassem seu coche
de viagem, para o dia seguinte, sussurrando-se que ia à capital do distrito, um tanto
distante de sua casa, com a intenção de alterar o testamento. Se bem que muito rico,
não tinha nenhum administrador de suas propriedades, sendo ele próprio o portador
de seus livros de contabilidade.
Àquela mesma tarde, após o jantar, ouviram-no, em seu aposento, repreender
acremente um criado que, há mais de trinta anos, estava a seu serviço. Esse homem,
chamado Ivã, era natural da Ásia do Norte, de Kantchatka; havia sido educado pela
família na religião cristã, e, achavam-no muito dedicado a seu amo. Alguns dias após,
quando a primeira das trágicas circunstâncias que vou descrever havia trazido àquele
lugar todo o contingente policial, recordou-se que Ivã estava embriagado naquela
noite; que seu amo, que tinha horror a esse vício, o havia espancado de modo
paternal, expulsando-o de casa e até foi visto, cambaleando porta afora, proferir
ameaças.
No vasto domínio do Senhor Izvertzoff havia uma estranha caverna que excitava
a curiosidade de todos os que a visitavam. Ainda hoje existe e é muito conhecida dos
habitantes de P... Um bosque de pinheiros começa a curta distância da porta do
jardim e sobe em escarpadas ladeiras, ao largo de cerros rochosos, aos quais cinge
com amplo cinturão de vegetação impenetrável. A galeria que conduz ao interior da
caverna, conhecida por Gruta dos Ecos, está situada a meia milha da mansão, vista da
qual parece uma pequena escavação na encosta, oculta pelo cerrado, embora não
tão completamente que impedisse de ver-se, do terraço da casa, quem nela quisesse
penetrar.
Ao penetrar na gruta, o explorador vê no fundo uma estreita abertura,
transporta a qual, encontra-se numa caverna muito alta, debilmente iluminada por
fendas no teto abobadado, a cinquenta pés de altura. A caverna é imensa e poderia
conter folgadamente de duas a três mil pessoas. No tempo do Sr. Izvertzoff, uma
parte dela estava pavimentada e, no verão, usava-se amiúde como salão de baile nos
convescotes campestres. É de formato oval irregular e vai-se estreitando
gradualmente, até converter-se em um amplo corredor que se estende por várias
milhas, alargando-se de quando em quando, e formando outros recintos tão grandes
e altos como o primeiro, porém com a diferença de que não podem ser transpostos
senão em botes, por estarem sempre cheios d'água. Esses receptáculos naturais têm
a fama de serem insondáveis.
À margem do primeiro destes canais, existe uma pequena plataforma com
alguns assentos rústicos, cobertos de musgo, convenientemente colocados, e é nesse
sítio que se ouve em toda a sua intensidade o fenômeno dos ecos que dão nome à
gruta. Uma palavra sussurrada, e até um suspiro, é recolhido por infinidade de vozes
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sarcásticas, e, em lugar de diminuir de volume, como o fazem os ecos que se
"prezam", o som se faz cada vez mais intenso a cada repetição sucessiva até que
explode como a repercussão de um tiro de pistola e retrocede em forma de gemido
lastimoso, ao longo do corredor.
No dia em questão, o Sr. Izvertzoff havia anunciado sua intenção de dar um baile
nessa gruta, para celebrar suas bodas que havia fixado para uma data próxima.
No dia imediato, pela manhã, enquanto fazia seus preparativos para a viagem,
sua família o viu entrar na gruta acompanhado somente pelo criado siberiano. Meia
hora depois, Ivã regressou à mansão, à procura de uma tabaqueíra que seu amo havia
esquecido, e com ela voltou à gruta. Uma hora mais tarde a casa inteira entrou em
comoção com os seus grandes gritos. Pálido e escorrendo água, Ivã se precipitou,
casa adentro, como um louco, declarando que o Sr. Izvertzoff havia desaparecido,
pois não era possível encontrá-lo em parte alguma da caverna. Crendo que ele
poderia ter caído no lago, o empregado havia mergulhado no primeiro receptáculo, à
sua procura, com perigo iminente da própria vida.
O dia se passou sem que dessem resultado as buscas em torno do ancião. A
Polícia invadiu a casa, e o mais desesperado parecia ser Nicolau, o sobrinho, que ao
chegar se tinha deparado com a triste notícia.
Uma negra suspeita recaiu sobre Ivã, o siberiano.
Havia sido castigado por seu amo na noite anterior e tinham-no ouvido jurar que
tomaria vingança. Só ele o havia acompanhado à caverna e, quando revistaram seu
aposento, encontraram, debaixo da cama, uma caixa cheia de riquíssimas joias de
família. Foi em vão que o empregado tomou Deus por testemunho, dizendo que a
caixa fora-lhe confiada por seu amo, precisamente antes de se dirigirem à caverna;
que a intenção do patrão era de mandar remontar as joias que destinava à noiva
como presente, e que ele Ivã, daria de bom gosto sua vida, para devolvê-la ao dono,
caso este estivesse morto. Não se lhe deu nenhuma atenção, entretanto, e foi preso,
posto no cárcere, sob a acusação de assassinato. Ali ficou encerrado, pois, segundo a
legislação russa, pelo menos naquela época, não podia ser condenado à morte
criminoso algum que, por mais demonstrado que estivesse seu delito, não se tivesse
confessado culpado.
Depois de uma semana de investigações inúteis, a família se vestiu de rigoroso
luto e, como o testamento primitivo não havia sido modificado, toda a propriedade
passou às mãos do sobrinho. O velho professor e sua filha suportaram esse repentino
revés da fortuna com fleuma verdadeiramente germânica e se prepararam para
partir. O ancião apanhou sua cítara debaixo do braço e se dispôs a partir com
Minchen, quando o sobrinho o deteve, oferecendo-se, em lugar do tio, como esposo
da linda donzela. Acharam a troca muito agradável e, sem causar grande alarde,
casaram-se os dois jovens.
Transcorreram dez anos e vamos nos encontrar, novamente, com a feliz família,
em princípios de 1859.
A linda Minchen tornara-se gorda e vulgar. Desde o dia do desaparecimento do
velho tio, Nicolau se havia tornado áspero e retraído em seus costumes, causando
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admiração a muitos tal mudança, pois nunca fora visto sorrir. Parecia que o único
objetivo de sua vida era encontrar o assassino de seu tio, ou melhor, fazer com que
Ivã confessasse o crime. Porém esse homem persistia, todavia, em afirmar que era
inocente.
O jovem casal só havia tido um filho que, por sinal, era um menino esquisito.
Pequeno, delicado e sempre enfermo, parecia que sua frágil vida estava por um fio.
Quando suas feições estavam em repouso, era de tal modo parecido com o tio, que
as pessoas da família, amiúde, afastavam-se com terror. Tinha o rosto pálido e
enrugado de um velho de sessenta anos, sobre os ombros de um menino de nove.
Nunca foi visto rindo ou brincando. Encarapitado em sua cadeira alta, permanecia sentado
gravemente, cruzando os braços de maneira peculiar ao falecido Izvertzoff, e, assim,
passava horas e horas imóvel e adormecido. Viam-se suas amas, frequentemente,
persignar-se furtivamente ao acercar-se dele durante a noite, e nenhuma delas havia
concordado em dormir sozinha com ele em seu quarto. A conduta do pai para com o filho
era ainda mais estranha. Parecia amá-lo apaixonadamente e, ao mesmo tempo, odiá-lo em
extremo. Mui raramente beijava-o ou acariciava-o, embora com semblante lívido e olhos
espantados, passasse longas horas olhando-o, enquanto o menino estava sentado
tranquilamente em seu canto, com suas maneiras de velho, próprias de um duende. O
menino nunca tinha deixado a fazenda e poucos da família sabiam de sua existência.
Em meados de julho, um viajante húngaro, de elevada estatura, precedido de uma
grande reputação de excentricidade, fortuna e poderes misteriosos, chegou à cidade de P...
, procedente do Norte, onde havia residido muitos anos. Estabeleceu-se na pequena
cidade, em companhia de um "shamano" ou mago da Sibéria do Sul, com quem, dizia-se,
praticava experiências de magnetismo. Dava jantares, almoços e reuniões, exibindo,
invariavelmente, para diversão de seus hóspedes, o "shamano", de quem se achava muito
orgulhoso.
Um dia, as pessoas importantes de P .... invadiram, repentinamente, os domínios de
Nicolau Izvertzoff, solicitando que lhes emprestasse sua gruta para fazerem uma noitada.
Nicolau consentiu, com grande relutância e, somente depois de uma vacilação ainda maior,
deixou-se persuadir a acompanhar o grupo.
A primeira caverna e a plataforma ao lado do insondável lago estavam refulgentes de
luz. Centenas de velas e tochas de vacilantes chamas, colocadas nas fendas das rochas,
iluminavam o local e afugentavam as sombras dos cantos e locais onde tinham estado
escondidas, sem ser molestadas, durante muitos anos. As estalactites das paredes
despendiam chispas brilhantes e os adormecidos ecos foram, repentinamente, despertados
pela alegre confusão de risos e conversas. O "shamano", a quem seu amigo e patrão não
havia perdido de vista um momento, estava sentado a um canto e, como de costume,
hipnotizado, encarapitado numa rocha saliente, a meio caminho, entre a entrada e as
águas. Com seu rosto de cor amarelo-limão, cheio de rugas, seu nariz chato e barba rala,
parecia mais um horrível ídolo de pedra que um ser humano.
Muitos do grupo apertavam-se ao seu redor, recebendo acertadas respostas às
perguntas que lhe eram dirigidas, pois o húngaro submetia, de bom grado, seu "súdito"
magnetizado, aos interrogatórios.
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De repente, uma senhora fez a observação de que naquela mesma caverna havia
desaparecido o Sr. Izvertzoff, há dez anos.
O estrangeiro pareceu interessar-se pelo caso, mostrando desejo de saber o que
acontecera. Em consequência, procuraram Nicolau entre a multidão e o conduziram diante
do grupo de curiosos. Ele era o hóspede e foi-lhe impossível negar-se a fazer a desejada
narração. Repetiu, pois, o triste relato com voz trêmula, semblante pálido, vendo-se brilhar
lágrimas em seus olhos febris. Os assistentes sentiram-se muito afetados, murmurando
grandes elogios sobre a conduta daquele sobrinho amoroso, que tão bem honrava a
memória de seu tio e benfeitor. Quando, subitamente, a voz de Nicolau afogou-se na
garganta, seus olhos pareciam sair das órbitas e, com um gemido rouco, retrocedeu
cambaleando. Todos os olhos seguiram com curiosidade seu olhar aterrado que se fixou e
permaneceu cravado sobre uma diminuta cara de bruxa que assomava por trás do húngaro.
- De onde vens? Quem te trouxe aqui, menino? balbuciou Nicolau, pálido como a
morte.
- Eu estava deitado, papai; este homem veio até mim e me trouxe aqui em seus braços
- respondeu com naturalidade o rapazinho, indicando o "shamano", ao lado de quem se
achava na rocha e, o qual, continuava com os olhos cerrados, movendo-se, de um lado para
outro, como um pêndulo vivo.
- Isto é muito estranho - observou um dos hóspedes - pois, este homem não se moveu
de seu lugar.
- Oh! Deus! Que parecença tão extraordinária! murmurou um antigo vizinho da
cidade, amigo da pessoa desaparecida.
- Mentes, menino! exclamou ferozmente o pai. Vai para a cama, isto não é lugar
para ti.
- Vamos, vamos - disse o húngaro, interpondo-se com uma expressão estranha
no rosto, rodeando com seus braços a delicada figura do menino. Este viu o duplo do
meu "shamano" que amiúde vaga e grandes distâncias de seu corpo, e tomou o
fantasma pelo próprio homem. Deixe-o permanecer um pouco conosco.
A estas estranhas palavras, os assistentes entreolharam-se com muda surpresa,
enquanto alguns fizeram, piedosamente, o Sinal da Cruz, presumindo,
indubitavelmente, que se tratava do diabo e de suas obras.
-- E, por outro lado - prosseguiu o húngaro com um acento de firmeza peculiar -
por que não haveríamos de tratar, com o auxílio do meu "shamano", de descobrir o
mistério que encerra esta tragédia? Está, todavia, no cárcere a pessoa de quem se
suspeita. Como, entretanto, ainda não confessou seu delito? Isto é, seguramente,
muito estranho; porém, vamos saber a verdade dentro de alguns minutos. Que todo
o mundo guarde silêncio!
Aproximou-se, então, do "tehuktchene" e, imediatamente, deu início a suas
manipulações, sem sequer pedir permissão ao dono do recinto. Este último
permanecia em seu lugar como que petrificado de horror e sem poder articular
palavra. A ideia encontrou aprovação geral, à exceção dele, tendo, em especial
aprovado a sugestão, o inspetor de Polícia, coronel S...
- Senhoras e cavalheiros! disse o magnetizador com voz suave. Permiti-me que,
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nesta ocasião, proceda de maneira diferente da que geralmente costumo adotar.
Vou empregar o método da magia nativa. Como verão, é o mais apropriado a este
lugar agreste, e de muito mais efeito que nosso método europeu de magnetização.
Sem esperar contestação, tirou de um saco que trazia sempre consigo,
primeiramente, um pequeno tambor e depois dois recipientes pequenos, um cheio
de um líquido e outro vazio. Com o conteúdo do primeiro, aspergiu o "shamano", o
qual começou a tremer e a balançar-se mais violentamente que nunca. O ar encheu
se de um perfume de especiarias e a própria atmosfera pareceu fazer-se mais clara.
Logo, com horror dos presentes, acercou-se do tibetano e, tirando de um bolsinho
um punhal em miniatura, enfiou-lhe a afiada folha no antebraço, tirando sangue que
recolheu no recipiente vazio. Quando ficou cheio pela metade, apertou o orifício da
ferida com o dedo polegar e deteve a saída do sangue, com a mesma facilidade com
que se tivesse posto uma rolha numa garrafa, depois do que aspergiu o sangue sobre
a cabeça do menino. Em seguida, pendurou o tambor ao pescoço e com duas
baquetas de marfim cobertas de signos e letras mágicas, começou a tocar uma
espécie de rufo para atrair os espíritos, segundo dizia.
Os circunstantes, meio surpresos, meio aterrorizados por esse procedimento
extraordinário, juntavam-se, ansiosamente, ao seu redor e, durante alguns
momentos reinou um silêncio de morte em toda a imensa caverna. Nicolau, o
semblante lívido como o de um cadáver, permanecia sem articular palavra. O
magnetizador se havia colocado entre o "shamano" e a plataforma, quando
principiou a tocar lentamente o tambor. As primeiras notas eram como que surdas e
vibravam tão suavemente no ar, que não despertaram eco algum; porém, o
"shamano" apressou seus movimentos de vai-vem e o menino mostrou-se
intranquilo. Nesse momento, quem tocava o tambor iniciou um canto lento, baixo,
solene e impressionante.
À medida que aquelas palavras desconhecidas saíam de seus lábios, as chamas
das velas e das tochas ondulavam e flutuavam, até que principiaram a bailar ao
compasso do canto. Um vento frio veio silvando dos corredores, de além das águas,
deixando atrás de si um eco lamentoso. Logo uma espécie de neblina, que parecia
brotar do solo e paredes rochosas, condensou-se em torno do "shamano" e do
rapazola. Ao redor deste último, a aura era prateado e transparente, porém a nuvem
que envolvia o primeiro era vermelha e sinistra. Aproximando-se mais da
plataforma, o mago deu um redobre mais forte no tambor; redobre que dessa vez foi
recolhido pelo eco, com um efeito terrificante. Retumbava perto e longe, com
estrondo incessante; um clamor mais e mais ruidoso sucedia a outro, até que o
estrépito formidável pareceu o coro de mil vozes de demônios que se elevavam das
insondáveis profundezas do lago. A própria água, cuja superfície iluminada pelas
muitas luzes, tinha estado até aí tão calma como um cristal, tornou-se
repentinamente agitada, como se uma poderosa lufada de vento houvesse percorrido
sua superfície imóvel.
Outro canto, outra rufada do tambor, e a montanha inteira estremeceu até a
base, com estrondos que pareciam formidáveis canhonaços disparados nos
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intermináveis e escuros corredores. O corpo do "shamano" alçou-se duas jardas no ar
e, movendo a cabeça de um lado para outro e balançando-se, apareceu sentado e
suspenso como uma aparição. Porém, a transformação que se operou, então, no
rapazinho gelou de terror a quantos presenciavam a cena. A nuvem prateada que
rodeava o menino pareceu que, também, se alçava no ar; mas ao contrário do
"shamano", seus pés não abandonaram o solo. O rapazinho começou a crescer, como
se a obra dos anos se verificasse milagrosamente em alguns segundos. Tornou-se alto
e adulto e suas feições senis fizeram-se cada vez mais velhas, ao mesmo tempo que
seu corpo. Alguns segundos mais e o aspecto juvenil desapareceu completamente,
absorvido, na sua totalidade, por outra individualidade diferente e, para horror dos
circunstantes, que conheciam sua aparência, essa individualidade era a do velho
Senhor Izvertzoff que tinha na fonte uma grande ferida aberta, da qual caíam grossas
gotas de sangue.
O fantasma moveu-se na direção de Nicolau, até que se pôs bem em frente dele,
enquanto que este, com o cabelo eriçado e olhos de louco, olhava seu próprio filho
transformado, inesperadamente, em seu tio.
O silêncio sepulcral foi interrompido pelo húngaro que, dirigindo-se ao menino-
fantasma, perguntou-lhe solenemente:
- Em nome do Grão-Mestre, d' Aquele que tudo pode, responde-nos a verdade e
nada mais que a verdade. Espírito intranquilo, tu te perdeste por acidente ou foste
covardemente assassinado?
Os lábios do espectro moveram-se, porém foi o eco que respondeu em seu lugar,
dizendo com lúgubres ressonâncias:
- Assassinado! Assassinado! As-sas-si-na-do! ...
- Onde? Como? Por quem? - perguntou o conjurador.
A aparição apontou com o dedo para Nicolau e sem desviar o olhar, nem baixar o
braço, retirou-se, andando lentamente de costas até o lago. A cada passo que dava o
fantasma, o jovem Izvertzoff, como que obrigado por uma fascinação irresistível,
avançava um passo em sua direção, até que o espectro chegou ao lago e deslizou, em
seguida, pela superfície do mesmo. Era uma cena de fantasmagoria verdadeiramente
horrível.
Quando chegou a dois passos da borda do abismo d'água, uma violenta
convulsão agitou o corpo do culpado. Arrojando-se de joelhos, agarrou-se
desesperadamente a um dos assentos rústicos e, dilatando os olhos de maneira
selvagem, deu um grande e penetrante grito de agonia. O fantasma, então,
permaneceu imóvel sobre a água e, dobrando lentamente seu dedo estendido,
mandou que se aproximasse. Agachado, presa de um terror objeto, o miserável
gritava até que a caverna ressoou, uma e outra vez...
- Não fui eu... , não; eu não o assassinei! Ouviu-se, então, uma queda; era o
rapazinho que apareceu sobre as escuras águas, lutando por sua vida, no meio do
lago, vendo-se a imóvel e terrível aparição inclinada sobre ele.
- Papai, papai, salva-me... estou me afogando! exclamou uma débil voz
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lastimosa, em meio ao ruído dos ecos sarcásticos.
- Meu filho! gritou Nicolau com a entonação de um louco, pondo-se em pé de
um salto. Meu filho! Salvai-o! Oh! Salvai-o!... Sim, confesso!... Eu sou o assassino! Fui
eu quem o matou!
Outra queda n'água e o fantasma desapareceu. Com um grito de horror, os
circunstantes precipitaram-se até a plataforma; porém, seus pés cravaram-se,
repentinamente, no solo ao ver, em meio aos redemoinhos, uma massa
esbranquiçada e informe, enlaçando o assassino e o menino em um estreito abraço,
fundindo-se no lago insondável.
Na manhã seguinte, quando, depois de uma noite de insônia, alguns do grupo
visitaram a residência do húngaro, encontraram-na fechada e deserta. Ele e o
"shamano" haviam desaparecido.
Muitos são os habitantes de P... que todavia recordam o caso. O Inspetor de
Polícia, Coronel S, morreu alguns anos depois, na inteira certeza de que o nobre
viajante era o diabo. A consternação geral cresceu mais ao se converter em chamas
a mansão Izvertzoff, naquela mesma noite. O arcebispo executou a cerimônia de
exorcismo; porém aquele lugar é considerado maldito até o tempo presente.
Quanto ao Governo, investigou os fatos... e ordenou silêncio.
22
UM MATUSALÉM ÁRTICO
Historieta de Natal
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por exemplo, da Austrália, onde, entre outras peripécias graves, estiveram a ponto de
morrer de sede, ele e os demais, durante uma travessia de catorze horas, sem sombras
nem água.
- Sim, costumava dizer o médico, em meio a suas narrações pitorescas e vivas.
Experimentei de tudo... Tudo, exceto isso que, em sua ignorância, as pessoas
supersticiosas chamam de sobrenatural!... Entretanto, acrescentou, em voz baixa e
trêmula - há em minha longa vida um acontecimento sumamente extraordinário.
Tropecei, uma vez, com um estranho homem, rodeado de circunstâncias
completamente inexplicáveis, capazes de confundir ao mais cético...
Todos os circunstantes sentiram, ao ouvir aquilo, a chispa da curiosidade, uma
curiosidade terrorífica, bem adequada ao momento em que o vento sibilava com
estrépito e a neve caía em abundância, tornando mais valioso o benefício das
comodidades de quantos ouviam o médico, em torno da lareira. O sábio continuou
desta maneira:
- No ano de 1878, fomos forçados a invernar na costa noroeste de Spitzberg, em
nossa exploração do fugaz verão anterior, em direção ao polo. Como de costume, o
objetivo de abrirmos um caminho para o polo ártico fracassou, por causa dos
"icebergs" e, após esforços vãos, tivemos que nos render à dura fatalidade.
Daí a poucos dias, a terrível noite polar estendeu sobre nós seu manto cruel, e
nossos navios ficaram aprisionados pelos gelos, no golfo de Mussel, (2) onde teríamos
de passar ociosos e separados de todo o trato humano, durante os oito longos meses
de inverno polar.
(2). Curiosa coincidência onomástica com o célebre porto asturiano do
mesmo nome; uma prova a mais do caráter protossemita de todo o
Ocidente europeu em suas épocas pré-históricas.
Senti que minha força de vontade fraquejava ante tão negra perspectiva e mais
ainda em certa noite de tempestade em que torvelinhos de nevasca destruíram nossos
depósitos de provisões, dentre eles catorze cervos, com cuja carne contávamos como
arma contra a vida ártica que exige, como ninguém ignora, um aumento considerável
na qualidade e quantidade dos alimentos, Resignamo-nos, entretanto, o mais que
pudemos com nossa perda cruel e até chegamos a nos acostumar com o mais nutritivo
alimento do país, que consiste em carne gordurosa de foca.
Para prevenirmo-nos contra os rigores da invernia, os homens de nossa tripulação
haviam construído, com os remanescentes do desastre anterior, uma casinha bastante
aceitável, dividida em dois cômodos, um para mim e os outros três chefes e o segundo
para eles. Esgotando-se, além disso, todas as nossas previsões metrológicas e
magnéticas, acrescentamos ao edifício um terceiro corpo, ou estábulo protetor, para os
poucos cervos que se haviam salvado da catástrofe.
Iniciou-se, logo, a interminável série de dias e noites monótonos, que eram uma
eterna noite, sem aurora nem crepúsculo. Como, além disso, havíamos traçado o plano
de que dois de nossos barcos regressassem em setembro antes de que o gelo lhes
cortasse a retirada, e este plano havia falhado por ter-se antecipado a estação, a
tripulação era o triplo ou o quádruplo da calculada para a estação hibernal e para os
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elementos com que contávamos para afrontá-la; assim, não só tínhamos que
economizar as provisões, como também o combustível e a luz. As lâmpadas só eram
acesas por motivos de urgência ou científicos.
Tínhamos que nos contentar, pois, apenas com a luz que a Providência nos
quisesse dar naquela noite sem dia: a saber, a luz da lua e das auroras boreais ; porém,
como descrever a glória daqueles incomparáveis fenômenos celestes? Como descrever
as luzes e cores cambiantes de suas irradiações de variedade infinita, tão fantásticas
quanto gigantescas? Quanto às noites de luar de novembro, eram simplesmente
maravilhosas, com os sempre cambiantes espetáculos de seus raios, entre gelos e
neve. O encanto de tais momentos não se afastará jamais de minha imaginação.
Uma dessas últimas noites, ou melhor dizendo, um dia igual a este, por acaso - pois
que, desde os fins de novembro até meados de fevereiro, não tivemos crepúsculo
algum que nos permitisse estabelecer diferença entre a noite e o dia - conseguimos
divisar entre as irisações da lua, como uma mancha escura que se movia em nossa
direção, assemelhando-se mais do que a um rebanho (que por força tinha que ser
branco, naquela latitude) a um grupo compacto de homens, trotando para o lugar onde
nos encontrávamos, sobre a planície coberta de neve. Que seres humanos podiam,
entretanto, ser aqueles?
Sim, era já fora de dúvida, ainda que resistíssemos a dar crédito a nossos olhos,
um pelotão duns cinquenta homens que se aproximava, rapidamente de nossa
vivenda. Eram cinquenta caçadores de focas guiados por Matílin, o mais famoso
veterano de tais empresas perigosas e que, como nós, haviam sido cortados em sua
retirada, pelo gelo.
Fizemos com que entrassem, atendendo-os e obsequiando-os da melhor maneira
que pudemos. Depois interrogamos Matilin:
- Como soubestes que estávamos aqui?
- Disse-nos o velho João, ensinando-nos o caminho até o vosso albergue -
responderam vários deles, indicando um dos seus companheiros: um venerável ancião,
com os cabelos mais brancos que a própria neve.
- É verdadeiramente assombroso que um ancião como este se dedique ainda a
caçar focas em companhia de homens jovens como vós, em lugar de aguardar, em um
rincão de sua morada, no aconchego do lume, a chegada de seu fim. Ademais, como
conseguiu saber de nossa presença na região solitária do urso branco? dissemos em
uníssono.
Tanto o bom Matílin, como os demais de seu grupo, sorriram compassivos ante
nossa ignorância. Segundo nos asseguraram "o velho João" sabia tudo, acrescentando:
- Bem novatos deveis ser nestas terras polares, porquanto ignorais a existência
deste prodigioso João e vos assombrais tanto com sua presença - disse outro.
- Venho caçando focas nestes mares há quarenta e cinco anos, dia após dia -
acrescentou o primeiro - e sempre conheci o bom João, a quem todos nos veneramos,
com sua cabeleira branca e seu aspecto majestoso. E mais: recordo, perfeitamente,
que quando era criança e costumava sair para o mar com meu pai, este e meu avô
contavam-me o mesmo, tim-tim por tim-tim, a respeito de João, acrescentando que o
25
mesmo contaram a meu avô, seu pai e o pai de seu pai... Todos o haviam conhecido
igualmente velho e Imponente em sua grandeza, com seus olhos de fogo e sua
cabeleira alva como a neve!
- Segundo contam, o bom velho tem já mais de duzentos anos! contestei alegre e
incrédulo.
Para tirar-me de meu ceticismo, vários marinheiros rodearam o patriarca de barba
e cabeleira brancas, importunando-o:
- Vovô querido, quer ter a bondade de dizer-nos tua verdadeira idade?
- Realmente, meus filhos, eu mesmo não o sei - replicou com o mais seráfico dos
sorrisos. Nunca contei meus anos e vivo, assim, o tempo que Deus me determinou em
sua inescrutável sabedoria.
- Mas, como soubeste que invernávamos aqui? interroguei-o por minha vez.
- Ele me guiou - respondeu simplesmente. Era somente o que sabia...
- Não me atrevi a indagar mais, finalizou o médico - coroando sua narração com
estas palavras ditas em voz mais baixa e como já falando consigo mesmo:
- Inexplicável! Absolutamente inexplicável!
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O CAMPO LUMINOSO
31
UMA VIDA ENCANTADA
(TAL COMO A CONTOU UMA PENA)
INTRODUÇÃO
I – O DESCONHECIDO
Nasci numa aldeia suíça: Um grupo de míseras cabanas encravado entre dois
imponentes glaciares, sob um cume de neves perpétuas, e a ela, velho de corpo e
enfermo de espírito, retirei-me, há trinta anos, para esperar tranquilo, com a morte,
o dia de minha libertação... Mas ainda vivo, apenas somente para dar testemunho de
fatos pasmosos, sepultados no fundo do meu coração: todo um mundo de horrores
que mais quisera calar do que revelar!
33
Sou um perfeito abúlico, porque devido à minha prematura instrução, adquiri
falsas ideias que, fatos posteriores, encarregaram-se de provar completamente
contrário. Muitos, ao ouvir o relato de minhas desventuras, considera-las-ão como
absolutamente providenciais e eu mesmo, que não creio em Providência alguma, tão
pouco posso atribuí-las à mera casualidade, mas ao eterno jogo de causas e efeitos
que constituem a vida do mundo. Embora enfermo e decrépito, minha mente
conservou toda a frescura dos primeiros dias, e recordo até os mínimos detalhes
daquela terrível causa de todos os meus males ulteriores. Demonstra-me isso, bem a
meu pesar, a existência de uma entidade excelsa, causa de todos os meus males,
entidade real, que eu desejaria fosse tão somente criação de minha louca fantasia...
Oh! ser maldito, tão terrível quanto bondoso! Oh! santo e respeitado senhor, todo
perdão: tu, modelo de todas as virtudes, foste, não obstante, quem amargurou para
sempre toda a minha existência, arrojando-me violentamente fora da égide
monótona, porém segura e tranquila, do que chamamos vida vulgar; tu, o poderoso
que, tão a meu pesar, evidenciaste-me a realidade de uma vida futura e de mundos
acima do que vemos, acrescentando, assim, horrores a meu mísero viver!...
Para mostrar bem meu estado atual, tenho que interromper e deter a voragem
destas recordações falando de minha pessoa. Quanto não daria, todavia, para apagar
de minha consciência esse odioso e maldito Eu, causa de todos os nossos males
terrenos!
Nasci na Suíça, de pais franceses, para quem toda a sabedoria do mundo
encerrava-se na tríade literária: Barão de Holbach, Rousseau e Voltaire. Educado em
escolas alemãs, fui ateu da cabeça aos pés, empedernido materialista, para quem não
podia existir nada fora do mundo visível que nos rodeia e, muito menos, um ser que
pudesse estar acima deste mundo e fora dele. E, quanto à alma, acrescentava, ainda
na suposição de que exista - tem que ser material. Para o próprio Orígenes, o epíteto
de incorpóreo dado a Deus significa uma causa mais sutil, porém sempre física, da
qual nenhuma ideia clara podemos formar em definitivo. Como, pois, vai ela produzir
efeitos tangíveis? Assim, não há por que acrescentar que encarei sempre o nascente
espiritualismo com desdém e asco, e, também quase com ira, as insinuações religiosas
de certos sacerdotes, sentimentos que, apesar de todas as minhas tristes experiências,
conservo ainda.
Pascal, na oitava parte de seus "Pensamentos", mostra-se indeciso à cerca da
própria existência de Deus. "Examinando, com efeito, por qualquer lado, se
semelhante Ser Supremo deixou pelo mundo algum vestígio de si mesmo, não vejo em
qualquer lugar senão obscuridade, inquietude e dúvida completa... " Porém, se bem
que em semelhante Deus extracósmico jamais tivesse acreditado, também não posso
rir-me das potencialidades maravilhosas de certos homens do Oriente, que os
convertem virtualmente em deuses. Creio firmemente em seus fenômenos, porque os
vi. E mais, detesto-os e os maldigo, quaisquer que sejam os que os produzam, e,
minha vida inteira, despedaçada e estéril, é um protesto contra tal negação.
Em consequência de demandas infelizes, ao morrerem meus pais, perdi quase
toda minha fortuna, motivo pelo qual resolvi, mais pelos que amava do que por mim
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mesmo, constituir nova fortuna, e, aceitando a proposta de ricos comerciantes
hamburgueses, embarquei para o Japão, na qualidade de representante de sua Casa.
Minha irmã, a quem idolatrava, havia se casado com um rapaz de modesta condição.
O mais franco êxito secundou minhas empresas. Mercê da confiança em mim
depositada por amigos ricos do país, pude negociar facilmente em regiões pouco, ou
nada, abertas, então, aos estrangeiros. Embora igualmente indiferente a todas as
religiões, o budismo interessou-me de modo especial, por sua elevada filosofia, e, em
meus instantes de lazer, visitei os mais curiosos templos japoneses, entre eles parte
dos trinta e seis templos budistas de Kioto; Day-Bootzoo, com seu gigantesco sino;
Enarino-Iassero, Tzonene, Higadzi-Vonsi, Kie-Misoo e muitos outros. Nunca,
entretanto, curei-me do ceticismo, rindo-me dos bonzos e ascetas do Japão, não
menos do que antes o fizera com os sacerdotes cristãos e com os espíritas, sem
admitir a mínima possibilidade de que aqueles pudessem possuir poderes estranhos,
não estudados por nossa ciência positiva. Ridículos, afiguravam-se-me, no mais alto
grau, os supersticiosos budistas, procurando fazer-se tão indiferente à dor como ao
prazer, pelo domínio das paixões.
Um dia fatal e memorável, entabulei amizade com um bonzo idoso, chamado
Tamoora Hideyeri. Com ele visitei o dourado Kwo-On e, de seu grande saber, aprendi
não pouco. Não obstante a devoção e afeto que por ele sentia, nunca perdoava a
ocasião própria de caçoar de seus sentimentos religiosos; porém, era de tão boa
índole como culto, e, sendo bom budista, jamais se me mostrou, no mínimo, ofendido
por meus sarcasmos, limitando-se a responder imperturbável: "Esperai e vereis algum
dia". Sua mentalidade privilegiada não podia crer que meu cético ateísmo fosse
sincero, tão acima da crença ridícula num mundo invisível rechaçado pela Ciência e
cheio de deidades e de espíritos maus e bons. O tranquilo sacerdote dizia-me,
unicamente: "O homem é um ser espiritual, recompensado e castigado,
alternadamente, por seus méritos e por suas culpas, tendo, por isso, que voltar,
reencarnado, inúmeras vezes à Terra". Contra aquelas célebres frases de Jeremy
Cellier de que somos meras máquinas ambulantes, simples cabeças falantes, sem
alma nem leis que as da miséria, perguntava, se nossas ações estivessem de antemão
previstas e decretadas, sem que tivéssemos mais liberdade nelas do que a que têm as
águas de um rio de se deterem, a sábia doutrina do Karma - ou de que cada um
recolhe aquilo que semeou - seria absurda. Assim, pois, toda a metafísica de meu
amigo baseava-se nesta lei imaginária, juntamente com a da metempsicose e outros
delírios desse jaez.
- Depois desta vida material, não podemos disse absurdamente meu amigo,
certo dia - viver no completo uso de nossa consciência sem termos construído, por
assim dizer, um veículo, uma sólida base de espiritualidade. Quem, durante esta vida
física, consciente e responsável, não aprendeu a viver em espírito, não pode aspirar a
uma plena consciência espiritual quando, privado de seu corpo, tenha que viver como
mero espírito.
- Que entendes, pois, por vida como espírito? perguntei.
- A vida é um plano puramente espiritual, o " Jushitz Devaloka" ou paraíso
35
budista, porquanto o homem, mediante seu cérebro animal e todas as faculdades
que desenvolve aqui na Terra, constrói esse elevadíssimo estado celeste entre duas
existências sucessivas, transportando a esse plano de felicidade superior, quanto aqui
embaixo construiu, mediante estudo e contemplação.
- Que sucede ao homem que recusa a contemplação, quer dizer, que se nega a
fixar a vista na ponta de seu nariz, depois da morte de seu corpo? Perguntei-lhe
brincalhão.
- Que será tratado como detentor daquele estado mental que em sua
consciência prevaleceu. No melhor dos casos, terá um renascimento imediato e no
pior, um "Avitchi", ou inferno mental. Não é preciso, no entanto, fazer-se um
completo asceta: basta esforçar-se por aproximar-se do Espírito, vivendo uma vida
espiritual; abrindo, embora por um momento, a porta de nosso Templo Interior.
- És sempre poético, mesmo em teus paradoxos! amigo meu, respondi-lhe.
Queres explicar-me, um pouco, semelhante mistério?
- Não é nenhum mistério, replicou - porém de bom grado responder-te-ei. Supõe
que o "plano espiritual", de que te falo, seja como um templo no qual jamais pisaste e
cuja existência credes ter fundamento para negar, porém que alguém compassivo te
toma pela mão e, conduzindo-te até a entrada, te faz olhar para dentro somente um
instante. Por este simples fato, terás estabelecido com o templo um laço imperecível.
Não poderás, desde aquele dia, negar sua existência, nem o fato de haver entrado
nele e, segundo haja sido teu trabalho, breve ou longo, assim viverás nele depois da
morte.
- Pois, que tem que ver minha consciência post-mortem com semelhante templo,
ainda que no falso caso de que a outra vida exista?
- Muito! Depois da morte - terminou dizendo o sábio ancião - não pode haver
consciência alguma fora do Templo do Espírito. O que se executa em seu âmbito é a
única coisa que à nossa morte sobreviverá, porque todo o demais, como vão e
ilusório, está fadado a dissolver-se no Oceano de Maya ou da ilusão.
Como me chocava, sendo simples curioso, a peregrina e absurda ideia de viver
fora de meu corpo, disfarcei meu ceticismo e, fingindo interessar-me por tudo
aquilo, obriguei meu amigo a que continuasse, enganado por completo a respeito de
minhas intenções.
Tamoora Hideyeri servia em Tri-Onene, templo budista famoso não só no Japão,
mas em toda a China e no Tibete; não há em Kioto outro tão venerado e seus
monges, sequazes de Dzeno-doo, são tidos pelos melhores e mais sábios entre
aquelas meritíssimas fraternidades relacionadas, por sua vez, com os ascetas ou
remitas chamados Jamabooshi, discípulos de Lao-Tsé, Assim se explicam os altos voos
metafísicos que, com intenção de curar minha cegueira mental, sempre deu meu
amigo à nossa conversação, levando-me até suas emaranhadas doutrinas, com suas
perorações (disparatadas a meu ver) e suas ideias de espiritualidade, cuja prática
parecia verdadeira ginástica no plano espiritual.
Tamoora havia dedicado mais de dois terços de sua vida à Yoga, ou
contemplação prática, a qual lhe tinha dado as provas de que com a morte, uma vez
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despojados de seu corpo material, viviam os homens em plena consciência no
mundo espiritual, recolhendo o fruto centuplicado de suas ações nobres e altos
sentimentos - salário proporcional, dizia o asceta, ao trabalho que se esforçava em
realizar cá embaixo.
- Porém, se alguém não fizer mais que assomar ao templo da espiritualidade e
retroceder, que lhe acontecerá, depois? objetei com meu eterno ceticismo.
- Pois então, na outra vida nada terias de bom para recordar, salvo aquele feliz
instante, porque em tal vida espiritual somente se registram e vivem as impressões
espirituais - respondeu o monge.
-Assim, antes de reencarnar aqui embaixo, que lhe aconteceria? acrescentei
jocosamente. Então, disse lento e solene o sacerdote, com uma atitude severa de
dar frio: durante um período, que pareceria uma eternidade à tua angústia, não farias
senão repetir uma e mil vezes a ação de abrir e fechar o templo, com essa desesperante
repetição dos temas de acalanto.
Semelhante tarefa que o bom homem me assinalava post-mortem, fez-me soltar
uma gargalhada. Aquilo era o cúmulo do absurdo! Porém, meu amigo limitou-se a
suspirar, compassivo, acrescentando, assim que lhe pedi perdão por minha
sinceridade:
- Não. Tal estado espiritual depois da morte não consiste em uma repetição
mímica e automática do realizado na vida, mas em encher e completar os vazios
dela. Eu me limitei a apresentar um exemplo dos mistérios relativos à Visão da Alma,
incompreensível para ti, pelo que vejo. Sendo, então, nosso estado de consciência o
gozo final de quantos atos espirituais tenhamos executado em vida, quando um
destes haja falhado não podemos esperar outra coisa que a repetição do mesmo ato.
E, saudando-me cortesmente como bom japonês, o nobre sacerdote despediu-
se de mim.
Ah! se me tivesse sido possível, então, saber o que depois aprendi por dolorosa
experiência... quão pouco haveria zombado daquele sapientíssimo ensinamento!...
Mas não, eu não podia crer de olhos fechados em tamanhos absurdos e, muito
especialmente, em que certos homens arrebatados conseguissem adquirir poderes
sobrenaturais. Experimentava uma repulsa instintiva em relação àqueles eremitas ou
yamabooshi, protetores de todas as seitas budistas do Japão, porque suas pretensões
milagreiras pareciam o cúmulo da nesciência. Quem poderão ser esses magos
presumidos, de olhos baixos e mão cruzadas, esses "santos" mendigos, estranhos
moradores de montanhas afastadas e escabrosas, inacessíveis a ponto de, aos
simples curiosos, ser impossível chegar até elas?... Não podiam ser eles senão uns
adivinhos desprovidos de vergonha, uns ciganos vendedores de feitiços, talismãs e
bruxarias.
Como se vê, meus insultos e ódios alcançavam, por igual, mestres e discípulos,
porque convém não esquecer que os yamabooshi, embora não aceitem os profanos
perto de si, a alguns, através de duras provas, recebem como discípulos, os quais dão
perfeita prova de sabedoria e pureza de vida.
Meu menosprezo não se deteve nem nos próprios sintos, quer dizer, naqueles
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outros religiosos de Sin-Syu, o xintoísmo, cuja divisa é a de "fé nos deuses e no
caminho dos deuses", porque praticam um culto absurdo - o dos chamados
"Espíritos da Natureza". Assim captei não poucos inimigos, porque os Sinto-Kanusi, os
mestres espirituais desse culto, pertencem à aristocracia japonesa, com o próprio
Mikado à frente, constituindo os sequazes do mesmo o elemento mais sábio do
Japão. Não nos esqueçamos de que os Kanusi, ou mestres do Xintoísmo, não
procedem de ordenação regular alguma conhecida, nem formam casta à parte.
Como jamais alardeiem possuir poderes nem privilégios que os elevam acima dos
demais, vestem-se como os seculares, passando como simples estudantes das
ciências ocultas do espírito. Mais de uma vez tive contato com eles, sem suspeitar
sequer de sua elevada categoria.
II - O VISITANTE MISTERIOSO
Desde aquele instante principiou a agir o velho yamabooshi. Alçou a vista ao sol e
ao Excelso Espírito de Ten-Dzio-Dai-Dzio que preside ao sol e, achando-o propício, tirou
de sob seu manto uma caixinha de laca com um papel de casca de amoreira e uma
pena de ave, com a qual desenhou sobre o papiro uns quantos Manirams em caracteres
naiden, escrita sagrada que só a entendem certos místicos iniciados. Logo tirou também
um espelhinho redondo de aço polido, cujo brilho era extraordinário, e, colocando-o
ante os olhos, ordenou-me que olhasse nele.
Eu tinha ouvido falar de semelhantes espelhos dos templos e até os tinha visto
várias vezes, sendo opinião correta no país que, sob a direção de sacerdotes iniciados,
neles podem ver-se aparecer os grandes espíritos reveladores de nosso destino, ou
sejam, os daij-dzins. Por isso supus que o ancião ia evocar, com o espelho, a aparição de
uma de tais entidades para que respondesse às minhas perguntas, porém o que me
aconteceu foi muito diferente.
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Com efeito, tão pronto tomei em minhas mãos o espelho, incomodado pela
angústia de minha absurda posição, notei que meus braços e até minha mente estavam
como que paralisados, quiçá por aquele temor que tantos outros sentem perante o
invisível roçar de asa da intrusa. O que era aquela sensação tão nova e tão contrária ao
meu eterno ceticismo, aquele gelo que paralisava de horror todos os meus nervos e até
a consciência e a razão, em meu próprio cérebro? Corno se uma serpente venenosa me
tivesse picado o coração, deixei cair o... - envergonho-me de usar o adjetivo!... - o
espelho mágico, sem me atrever a recolhê-lo do sofá em que me havia reclinado.
Estabeleceu-se, um momento, em meu ser uma luta terrível entre meu orgulho, meu
ceticismo congênito e a ânsia inexplicável que me impulsionava, a meu pesar, a
mergulhar o olhar no fundo do espelho... Venci minha fraqueza um instante e meus
olhos puderam ler esta estranha frase em um livrinho aberto, ao acaso, sobre o sofá:
"O véu do futuro descerra-o, às vezes, a mão da misericórdia". Então, como quem
repta o Destino, recolhi o fatídico e brilhante disco metálico e dispus-me a olhar nele. O
ancião trocou breves palavras com meu amigo, o benze, e este, aplacando minhas
constantes suspeitas, disse-me:
- Este santo ancião te adverte, previamente, de que se tu decidires a ver
magicamente, por fim, no espelho, terás que submeter-te logo a um processo
adequado de purificação, sem o qual - acrescentou frisando solenemente as palavras -
o que vai ver o verás uma, mil, cem mil vezes, contra toda a tua vontade e desejo.
- Como? disse-lhe com insolência.
- Sim, uma purificação muito necessária para tua futura tranquilidade; uma
purificação indispensável, se não quiseres sofrer constantemente a maior das torturas;
uma purificação, enfim, sem a qual transformar-te-ás para sempre em um vidente
irresponsável e desgraçado; tamanha responsabilidade gravitaria sobre minha
consciência de modo categórico, Se não te advertisse.
- Logo haverá tempo para pensar! respondi imprudentemente.
- Já estás, pelo menos, advertido - exclamou o bonzo com desconsolo - e toda a
responsabilidade do que te ocorre cairá unicamente sobre ti mesmo, pela tua
tranquilidade absurda!
Não pude reprimir minha impaciência e olhei para o relógio, com gesto que não
passou despercebido ao yamabooshi: eram precisamente cinco horas e sete minutos!
- Concentra quanto puderes em tua mente tudo quanto desejares ver ou saber -
disse o "exorcista", pondo-me nas mãos o espelho mágico, com mais impaciência e
incredulidade que gratidão de minha parte. Após um último momento de vacilação,
exclamei, já olhando no espelho:
- Só desejo saber porque minha irmã deixou de escrever-me tão repentinamente
desde...
IV - VISÃO DE HORRORES
Onde estou? Que me acontece? perguntei a mim mesmo, ansiosamente, tão logo
tornei a achar-me na posse de meus sentidos (a cabo de um tempo cuja duração ser-
me-ia impossível precisar), conscientizando-me, com surpresa, de que me movia
rapidamente para a frente, ao mesmo tempo que experimentava uma rara e estranha
sensação de nadar numa água tranquila, sem esforço nem dificuldade alguma,
rodeado de todos os lados pela mais completa obscuridade. Dir-se-ia que vogava ao
longo de uma interminável galeria submarina, cheia de água; de um terreno
compacto, ao mesmo tempo que perfeitamente penetrável, ou de um ar não menos
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sufocante e denso que a própria terra, embora nenhum daqueles elementos me
molestasse, ao mínimo, em minha desesperada marcha de projétil humano lançado
para o desconhecido... enquanto ainda sonhava com o eco daquela última frase:
"desejo saber as razões pelas quais minha querida irmã guarda tão prolongado
silêncio para comigo que... " Porém, de tantas palavras que compunham aquela frase,
somente a de "SABER" perdurava angustiosa em meu ouvido, vindo a mim qual
criatura vivente que com isso me obcecasse.
Outro movimento mais rápido e involuntário, outro novo mergulho, naquele tão
informe quanto angustioso elemento, e eis-me aqui, em pé, realmente em pé, dentro
do solo, comprimido por todos os lados, numa terra compacta e que, todavia, se
mostrava aos meus sentidos de perfeita transparência. Quão absurda, quão
inexplicável situação! um novo instante de suprema angústia e eis-me agora - horror
dos horrores! - com um negro ataúde estendido sob meus pés, um modesto caixão de
pinho, derradeiro leito de um infeliz, que não era homem de carne, mas um
repugnante esqueleto, deslocado e mutilado, qual vítima de uma nova Inquisição,
enquanto aquela voz, minha e ao mesmo tempo não minha, repetia a eterna lenga-
lenga de "...saber as razões pelas quais..." soando junto a mim, porém como provinda,
não obstante, da mais longínqua distância e, despertando, em minha mente, a ideia
de que em todas aquelas intoleráveis angústias não tinham levado tempo algum, pois
estava pronunciando, entretanto, as mesmas palavras com as quais, em Kioto ao lado
do yamabooshi, principiava a formular meu desejo de saber o que acontecia, naquela
oportunidade, à minha pobre irmã.
Súbito, aqueles informes e repugnantes restos principiaram a revestir-se de carne
e a recompor-se no mais estranho dos retornos retrospectivos, até reintegrar o
aspecto normal de um homem cuja fisionomia, ai!, era-me por demais conhecida, pois
que representava, nada menos, que o marido de minha pobre irmã, a quem tinha
tanto amado, porém a quem, em meio da maior indiferença, via agora destroçado,
como se acabasse de ser vítima de um acidente cruel.
- Que ocorreu contigo, infeliz? tratei de perguntar-lhe.
No inexplicável estado em que me achava, nem bem formulava mentalmente
uma pergunta qualquer, a resposta se me apresentava instantaneamente como em
um panorama retrospectivo. Vi, pois, assim, no ato, detalhe por detalhe, todas as
circunstâncias que rodearam a morte de meu desditoso Karl, a saber: que o chefe da
fábrica na qual, cheio de robustez e de vida, ele trabalhava, tinha trazido da América,
e montado, uma monstruosa máquina de serrar madeiras; que este para apertar uma
porca, ou examinar o motor, tinha tido um momento de descuido e fora colhido pelo
jogo do volante, atirado, feito em pedaços antes que os companheiros pudessem
correr em seu auxílio... Morto, triturado, transformado em horrível amontoado de
carne e sangue o que, entretanto, não me causava a mais ínfima emoção, como se eu
fosse de mármore!
Em meu macabro, embora indiferente pesadelo, acompanhei o cortejo fúnebre.
Detivemo-nos na casa da família, e como se se tratasse de outro que não eu,
presenciei impassível a cena da chegada da espantosa notícia em seus menores
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detalhes; ouvi o grito de agonia de minha irmã enlouquecida, percebi o golpe surdo de
seu corpo, caindo pesadamente sobre os restos de seu esposo e até ouvi pronunciar
meu nome. Porém não creiam que o compreendia, como de costume, mas muito mais
intensamente, pois que podia acompanhar com a mais impassível das curiosidades
indiscretas o estertor e a perturbação instantânea daquele cérebro, ao ocorrer a cena;
o movimento vermiforme e agigantado das fibras tubulares; a mudança fulgurante de
coloração do encéfalo e a mutação de toda a matéria nervosa, desde o branco ao
escarlate, ao vermelho-escuro e ao azul: um relâmpago lívido e fosfórico seguido de
completa obscuridade, no âmbito da memória, como se aquela fulguração, surgida da
tampa do crânio, se alargasse, desenhando um contorno humano duplicado,
desprendido do corpo inerte de minha irmã, o qual se ia distendendo o esfumando,
enquanto eu dizia a mim mesmo:
"Isto é a loucura; a incurável loucura em vida, pois que o princípio inteligente, não
só está extinto, temporariamente, como acaba de abandonar, para sempre, o
tabernáculo craniano, dele arrojado pela força terrível da repentina emoção" ... "O
laço entre a essência animal e divina acaba de romper-se", disse a mim mesmo,
enquanto que, ao ouvir o termo "divino" tão pouco familiar em mim, "meu
Pensamento" pôs-se a rir... ao mesmo tempo que continuavam ressoando, como no
primeiro momento, o final de minha frase inacabada... "saber as razões pelas quais
minha querida irmã guarda tão..."
Ao conjurar minha inacabada pergunta, a cena reveladora continuou. Vi a mãe,
minha própria irmã, convertida numa infeliz idiota no manicômio da cidade, e seus
sete filhos menores em um asilo, enquanto os meus prediletos, o rapaz de quinze
anos e a mocinha de quatorze, punham-se a serviço como criados. O capitão de um
navio mercante levara meu sobrinho e uma velha hebréia adotara a pobre menina.
Eu prosseguia, anotando em minha mente todos aqueles horripilantes detalhes,
com uma indiferença e sangue frio pasmosos. A mesma ideia de "horrores", deve-se
entender como algo ulterior, pois que eu não sentia, em verdade, horror algum, nem
experimentei, durante toda aquela visão, a mais leve noção de amor ou de piedade,
porque meus sentimentos pareciam paralisados, abolidos, como os sentimentos
externos... Somente ao voltar a mim foi que pude dar-me conta, em toda a sua
enormidade, daquelas perdas irreparáveis, e por isso confesso que não pouco do que
sempre negam obstinadamente, via-me admitindo em vista de tão grandes
experiências. Se alguém me houvesse dito antes que o homem podia atuar fora de
seu corpo, pensar fora de seu cérebro e ser transportado mentalmente a milhares de
léguas de distância de sua carne, por meio de um poder incompreensível e
misterioso, imediatamente eu o houvera considerado um louco - e, sem embargo,
este louco sou eu! Dez, cem, mil vezes durante o resto de minha miserável existência,
passei por semelhante vida, fora de meu corpo. Hora funesta foi aquela em que, pela
primeira vez, foi despertada em mim tão horrível poder, pois já nem me resta o
consolo de poder atribuir à delírio de loucura, tais visões de acontecimentos
distantes!... Se um louco vê o que não existe, minhas visões, ai! resultaram, pelo
contrário, infalivelmente exatas, para desgraça minha.
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Mas, prossigamos com minha narração.
Apenas havia visto minha infeliz sobrinha em seu albergue israelita, quando
recebi um segundo choque da mesma natureza que o primeiro que me tinha impelido
e feito vogar através das entranhas da Terra. Abri novamente os olhos e encontrei-
me no mesmo ponto de partida, fixando casualmente o olhar nos ponteiros do
relógio que marcavam, mistério absurdo!, cinco e sete minutos e meio... Todas as
minhas espantosas experiências se tinham desenrolado pois, em somente meio
minuto!
Todavia, esta mesma noção do brevíssimo instante transcorrido entre o
momento em que olhei o relógio, ao tomar o espelho das mãos do yamabooshi, e
aquele outro momento de meio minuto depois, é também um pensamento posterior.
Ia eu entreabrir os lábios para continuar rindo-me do yamabooshi e de sua
experiência, quando a lembrança completa de quanto acabava de ver fulgurou, qual
vívido relâmpago, em meu cérebro. Um grito de desespero supremo escapou-se de
meu peito e senti como se o mundo inteiro desabasse sobre minha cabeça, num caos
de ruína e desolação. Meu coração já pressentia o destino que me aguardava, e um
fúnebre manto de tristeza caiu fatal sobre mim para todo o resto de minha vida...
V - A ETERNA DÚVIDA
Poucos dias após a cena, embarquei para a Europa, sem voltar a ver o bondoso
bonzo. Sem dúvida estava ofendido por minhas impertinências e insultos. Que
estranha fúria, com efeito, apoderava-se de mim e obrigava-me, quase sem poder
remediar, a insultar o santo asceta?... Indubitavelmente, mais que uma força exterior
e insensível. que me dominasse, era meu cético amor próprio que assim me
impulsionava; e tão seguro achava-me, realmente, acerca das imposturas do
yamabooshi, que de antemão já saboreava meu triunfo sobre ele ao voltar para os
meus semanas depois e achá-los sãos e felizes.
Mas, ai! não fazia uma semana que me encontrava a bordo, quando a venda da
incredulidade começou a cair tardiamente, de meus olhos.
Desde o memorável dia da experiência do espelho, provava em todo o meu ser
inexplicável mudança que, a principio, atribuí as preocupações acerca dos meus
parentes, e com as quais estava lutando há vários meses. Durante o dia, encontrava-
me abstrato, como abobado; perdendo de vista, por alguns minutos, toda a realidade
do que me rodeava. Minhas noites eram intranquilas meus sonhos tristíssimos e até
com os horrores de pesadelos angustiosos. Embora bom navegador, com tempo
extraordinariamente belo, sentia vago enjoo e, de quando em quando, observava que
as fisionomias familiares dos passageiros adquiriam, em tais momentos, as mais
grotescas formas de caricaturas. Assim, certa vez Max Guinner, um jovem alemão, a
quem conhecia há tempo, pareceu transformado, de repente, em seu velho pai, a
quem havíamos enterrado três anos no cemitério de nossa colônia. Conversávamos
na coberta, acerca do finado e de seus negócios, quando a cabeça de Max se me
deparou rodeada de uma nebulosidade estranha e cinzenta que, condensando-se
gradualmente em torno de seu rosto saudável e corado, deu a ele, logo, toda a
rugosa aparência daquele a quem outrora eu mesmo sepultara.
Outra vez, enquanto o capitão falava de um ladrão malaio, para cuja captura
havia contribuído, vi a seu lado a repugnante e amarelada cara do homem que
correspondia à descrição do marujo; naturalmente, guardei silêncio a respeito de
tamanhas alucinações, crendo-as devidas a causas visíveis de que fala a Medicina, eis
por que se iam fazendo mais frequentes dia a dia.
48
Certa noite, senti-me despertar bruscamente por um penetrante grito de
angústia... Era a voz de uma mulher no paroxismo de seu desespero impotente.
Despertando, saltei num aposento que me era completamente desconhecido, onde
uma adolescente, quase uma menina, lutava desesperadamente contra um homem
de meia idade e de força hercúlea, que a tinha surpreendido enquanto dormia, ao
mesmo tempo que, atrás da porta, fechada à chave, observei uma velha de sentinela,
em cuja expressão infernal reconheci imediatamente a judia que tinha adotado
minha sobrinha, como vira no sonho de Kioto, pelas artes do yamabooshi. Ao voltar
ao meu estado normal e dar-me conta de minha situação, percebi, oh! cruel
desespero!, que a vítima da brutal afronta não era senão minha própria sobrinha.
Nem mais nem menos que em minha primeira visão em Kioto, eu não sentia em
mim essa compaixão que nasce da simpatia com a desgraça de um ser amado, mas
apenas uma indignação varonil ante a afronta infligida a uma criatura desvalida.
Assim, precipitei-me ferozmente em seu socorro, saltando ao pescoço daquele ser
lascivo e bestial; porém, não obstante meu esforço raivoso, o homem continuou
como se eu não existisse. O rufião covarde, exasperado com a resistência da donzela,
levantou irritado seu vigoroso braço e com um terrível soco sobre os dourados cachos
de sua cabecinha, jogou-a ao chão. Saltei, então, sobre a lúbrica besta, prorrompendo
num rugido de tigre que defende seus filhotes, tratando de segurá-lo entre minhas
garras; porém, horror dos horrores!, notei, então, pela primeira vez, que aquele meu
EU não era senão uma sombra vã!
Minhas imprecações e gritos despertaram todos os passageiros, que os
atribuíram a um pesadelo, de modo que não tentei confiar a ninguém o que me
acontecia. Mas, desde aquele infausto dia, minha vida não foi senão uma
interminável série de torturas porque, apenas cerrava os olhos, representava-se-me
com singular viveza o espantoso quadro de dores, desastres e crimes passados,
presentes e futuros, como se um demônio obsessor se comprazesse em oferecer-me
o macabro panorama de tudo quanto de horripilante, bestial ou maligno existe neste
desprezível mundo. Nunca um raio de felicidade, beleza ou virtude desceu, em troca,
até o lôbrego cárcere de meu infortúnio mental, senão lascívias, traições e crueldades
sem fim, em interminável caleidoscópio, como consequência das paixões humanas
desencadeadas algures.
Será tudo isto - disse a mim mesmo, por fim - o cumprimento fatal do vaticínio
de meu amigo bonzo? Estará minha alma real e efetivamente sob o ímpio domínio
dos cruéis daij-djins?... Mas não - respondi a mim mesmo logo, tratando em vão de
recobrar a tranquilidade perdida. Isto não é senão uma anormalidade passageira que
cessará tão logo me veja em Nuremberg e me convença do infundado de meus
absurdos temores. O próprio fato de que minha imaginação não me oferece senão
cenas macabras, demonstra que isso carece de toda a realidade. Mas, então,
acreditei estar ouvindo as palavras do bonzo, quando me dizia:
- O homem tem dois planos únicos de visão: o augusto plano do amor
transcendental e as aspirações espirituais em direção de uma eterna luz e o
tempestuoso mar de paixões humanas, em cuja luz inferior se banham os transviados
49
dajj-djins.
Outrora, as absurdas crenças de certas pessoas, com respeito aos espíritos bons
e maus, pareciam-me incompreensíveis, porém, a partir, ai!, das dolorosas
experiências daqueles momentos, passei a compreendê-las.
Para robustecer, não obstante, minha incredulidade nata, procurava evocar em
minha mente o quanto me era dado: as lembranças de minhas leituras anti-
supersticiosas; o judicioso raciocinar de Hume; as áticas mordacidades sarcásticas de
Voltaire e aquelas passagens de Rousseau, onde chamava a superstição de "a eterna
perturbação da sociedade". - Para que afetarmo-nos com as fantasmagorias do sonho
- dizia com eles - quando logo comprovamos sua completa falsidade, em vigília? por
que, como diz o clássico, hão de assustar-nos com coisas que não existem? conceitos
cujo sentido vemos?
Um dia em que o velho capitão relatava-nos histórias supersticiosas de
marinheiros, um enfatuado e pedante missionário inglês recordou-nos aquela frase
de Fielding: "a superstição dá ao homem a estupidez de um animal", porém, no
mesmo instante em que dizia isso, eu o vi vacilar de modo estranho e deter-se
bruscamente, enquanto eu, que permanecia afastado da conversação geral, acreditei
ler claramente na auréola de vibrantes radiações, que há muitos dias percebia sobre
todas as cabeças, as palavras com que Fielding concluía sua proposição: "e o ceticismo
o torna louco"...
Tinha já ouvido falar muitas vezes, sem admiti-la, a afirmação de que, aqueles
que pretendem gozar do duvidoso privilégio da clarividência, veem os pensamentos
das pessoas presentes "como retratados em seu próprio aura". Eu já, paradoxo
absurdo!, via-me dotado, com efeito, da faculdade desagradabilíssima de poder
comprovar, por mim, a exatidão do odioso fato, acrescentando um novo conjunto de
horrores à minha ridícula vida, vendo-me forçado a ter que ocultar, aos demais, tão
funestos dons, como se se tratasse de um caso de lepra. Meu ódio, então, contra o
yamabooshi e o bonzo não tinha limites, pois aquele, sem dúvida alguma, havia
tocado com suas nefastas manipulações alguma secreta mola de meu cérebro
fisiológico e posto em ação alguma faculdade das comumente ocultas na constituição
humana. .. E o maldito farsante japonês havia injetado tal praga em mim mesmo!
Praticamente de nada servia minha impotente cólera. Ademais, vogávamos já
em águas europeias e, dali a poucos dias, ancoraríamos em Hamburgo, onde
cessariam minhas dúvidas e temores. Ainda quando a clarividência pudesse existir
em algum caso, tal como na leitura dos pensamentos, no ver as coisas à distância, do
modo pelo qual eu o havia sonhado sob a sugestão do yamabooshi, era demasiado
admitir, dentro das possibilidades humanas... Sopesei todos estes tristes raciocínios
(meu coração parecia dizer que me enganava com eles), sentindo como se minha
definitiva condenação estivesse próxima, com sofrimentos tão torturantes que
50
intensificavam perigosamente minha prostração física e mental.
Na mesma noite de nossa entrada em Hamburgo, assaltou-me um sonho cruel.
Parecia que eu mesmo me via morto; meu corpo jazia rígido e inerte e, ao mesmo
tempo que minha consciência dava conta disso, parecia preparar-se também para a
sua extinção. Mas como tinha aprendido que o cérebro conservava o calor vital
durante uns minutos mais que os órgãos periféricos, aquilo que não me podia causar
estranheza. Assim, no crepúsculo do grande mistério, já sem dúvida à borda da
tenebrosa cova "da qual nenhum mortal pode regressar, uma vez franqueada", meu
pensamento, envolto nos restos de uma vitalidade que escapava de instante a
instante ia extinguindo-se como uma chama, assistindo ao mesmo tempo a seu
aniquilamento, porém tomando o meu EU nota daquelas minhas últimas impressões,
com o apressuramento de quem sabe que lhe vai cair o negro manto do nada sobre
a consciência, para ter o gozo de sentir todo o grande triunfo de minhas convicções
relativas à completa e absoluta cessação de ser. Por momentos, tudo se ia
escurecendo ao meu redor. Enormes sombras, fantásticas e informes, desfilavam
ante meu desvanecido olhar: primeiro lentas, logo aceleradas e, finalmente, girando
vertiginosamente em torno de mim, qual em terrível dança macabra e, uma vez
alcançado seu objetivo de intensificar as trevas, abrindo um como indefinido espaço
de vazios e impalpáveis negrumes, um insondável oceano de eternidade, pelo qual,
ilimitado, deslizava o tempo, essa fantástica progênie do homem, sem que jamais
consiga acabar de cruzá-lo...
Não foi em vão que Catão disse que os sonhos não são mais do que o reflexo de
todos os nossos temores e esperanças. Como em estado de vigília jamais temi a
morte, ante a evidência de meu afã, senti-me tranquilo, até consolado de que o
término de minhas torturas mentais se avizinhasse. A angústia, aquela angústia, já se
havia tornado intolerável, e se, como disse Sêneca, a morte não e senão a cessação
de tudo quanto fomos antes - valia mais morrer do que suportar durante tantos
meses tamanha agonia.
- Meu corpo já está morto - dizia de mim para mim - e meu EU, minha
consciência, que é o que de mim permanece por alguns momentos mais, prepare-se
já para segui-lo; minhas percepções mentais, enfraquecendo-se, ir-se-ão apagando,
segundo por segundo, até que o anelado esquecimento envolva-me por completo
em seu sudário. Vem, pois, doce e consoladora morte; teu sonho sem sonhos é um
porto de paz e de refúgio, em meio das borrascas da vida... ! Ali, em seu regaço
eterno, descançarei para sempre, e tu, pobre corpo, adeus! Gostosamente te
abandono, já que me tens dado mais dores do que prazeres na vida!
Enquanto eu entoava este hino à morte libertadora, examinava-a,
concomitantemente, com estranha curiesidade, não me podendo maravilhar menos,
sem embargo, de que minha ação cerebral continuasse sendo tão vigorosa. Meu
corpo, desaparecido de minha vista por alguns segundos, reaparecia uma e várias
vezes com sua face cadavérica... De improviso, experimentei um violentíssimo desejo
de saber quanto duraria o complicado processo de minha dissolução, antes que o
cérebro, estampando seu último sinete, deixasse-me inerte. Através das, para mim
51
transparentes paredes de meu crânio, podia contemplar e até tocar minha massa
cerebral. Com que mãos? é-me impossível precisá-lo; porém o contato de sua fria e
viscosa matéria, produzia-me profundíssima impressão. Com um terror indizível,
compreendi que meu sangue se havia congelado por completo e que, alterada a íntima
constituição de minhas células cerebrais, já se impossibilitava, de modo absoluto, todo
o seu funcionamento... Ao mesmo tempo, a mesma, ou maior obscuridade, rodeava-
me, impenetrável, em todas as direções; além disso, porém, à minha frente, e fosse
qual fosse a direção de meu olhar, via um gigantesco relógio circular, cuja caraça
enorme e branca destacava-se de um modo sinistro sobre aquela escura moldura que o
rodeava. Seu pêndulo oscilava com a costumeira regularidade, de um lado para outro,
como se pretendesse divisar a eternidade, assinalando os ponteiros (coisa bem
extraordinária!) as cinco e sete minutos, quer dizer, a hora precisa em que começara, em
Kioto, a minha tortura!
Mal notei essa terrível coincidência, quando horrorizado, do modo mais pavoroso,
senti-me arrastado de maneira idêntica a outrora: nadando, vogando veloz por baixo
do solo, no mesmo meio viscoso e paradoxal. Assim, vi-me outra vez ante a tumba,
onde os despedaçados restos de meu cunhado jaziam; presenciei logo,
retrospectivamente, sua infeliz morte; a cena da recepção da notícia fatal por minha
irmã, com o aditamento de sua loucura - tudo sem perder o mínimo detalhe.
Para maior espanto, desta vez, ai!, já não estava escudado por aquela tranquila
indiferença de pedra com que vi pela primeira vez a cena, a não ser que minhas
torturas mentais, minha ansiedade, meu desespero, em meio daquele ciclone de
morte, já não tinham limites... Oh! e como sofria com aquele acúmulo de horrores
infernais acrescido do pior de tudo, que era a desesperada realidade de que meu corpo
já estava morto!...
Nem bem se fez uma leve pausa de alívio, tornei a ver, de igual modo a enorme
esfera com seus ponteiros colossais, marcando cinco e sete minutos! porém, antes que
houvesse tido tempo de dar-me conta exata de tal mudança, o ponteiro começou a
mover-se lentamente para trás, detendo-se no sétimo minuto, para sentir-me outra e
outra vez forçado a padecer, interminavelmente, a repetição exata e implacável das
mesmíssimas cenas espantosas que pareciam não terminar jamais.
Ao mesmo tempo, minha consciência parecia triplicar-se, quintuplicar-se,
decuplicar-se, podendo viver e sentir, no mesmo lapso de tempo e em meia dezena de
lugares, ao mesmo tempo, desfilando ante mim múltiplos acontecimentos de sua vida,
em diferentes épocas de minha vida, porém, predominando sobre todas, minha
experiência espiritual de Kioto. À maneira da famosa fuga de D. Juan de Mozart,
destacam-se dilacerantes as notas de desesperação de Elvira, sem que por isso se
entrecruzem ou confundam-se com a melodia do minueto, com o canto de sedução ou
com o coro; da mesma maneira, passei, uma e mil vezes, mesclada com as aflições das
demais cenas, por aquela indescritível agonia de Kioto, ouvindo as inúteis exortações
do bonzo, ao mesmo tempo que se apresentavam (sem com isso confundirem-se)
múltiplas recordações: ora de minha meninice, ora de minha adolescência, ora de
meus pais, ora, enfim, daquele dia memorável em que salvara um amigo que se estava
52
afogando e ria-me de seu pai que me agradecia por haver salvo "sua alma" não
preparada ainda, sem dúvida, para dar contas a "seu Criador". Tudo isso,
supostamente, na consciência mais complicada e multiforme!
- Falai, falai de personalidades múltiplas, vós, professores de psicofisiologia! dizia-
me, em meio daquela tortura que haveria bastado para matar meia dezena de homens.
Falai, vós, orgulhosos e enfatuados com a leitura de milhares de livros!... Jamais
poderíeis explicar-me, não obstante a sucessão daquela horrorosa cadeia real, ao
mesmo tempo que sonhada, cujo desfilar parecia não ter fim. Não, embora minha
consciência se rebelasse contra certas afirmações teológicas, já não podia negar a
realidade do meu EU imortal... Qual é, pois, oh! Mistério!, tua insondável Realidade que
de tal modo conduz meu pensamento e minha imaginação, sem término conhecido e
com o corpo já morto? Poderá, acaso, ser certa essa doutrina da reencarnação, na qual
tanto porfiava o bonzo para que cresse? Por que não, se cada ano nasce, de uma
mesma e permanente raiz, uma nova folha e uma nova flor?
Nesse ponto, o fatídico relógio desapareceu enquanto a voz carinhosa do bonzo,
uma vez mais, parecia repetir: "No caso de terdes aberto somente uma vez a porta do
augusto Santuário de tua alma, terás que abri-la e cerrá-la uma e mil vezes durante um
período que, por mais curto que seja, parecer-te-á uma eternidade"...
Um instante depois, a voz do bonzo era afogada pela multidão de outras vozes na
coberta. Alagado em um suor frio, despertei. Estávamos em Hamburgo!
56
A FAÇANHA DE UM GOSAIN HINDU
60
DEMONOLOGIA E MAGIA ECLESIÁSTICA
Na famosa obra de Bodin "La Demonomanie, ou Traité des Sorciers" (Paris 1587),
relata-se uma arrepiante história acerca de Catarina de Médicis. O autor era um
ilustre escritor que durante vinte e cinco anos esteve colecionando documentos
autênticos, tirados dos arquivos das mais importantes cidades da França, para
escrever uma obra completa sobre feitiçaria e poder "dos demônios". Semelhante
livro apresenta segundo a expressão gráfica de Eliphas Lévi, a mais notável coleção
que se possa apresentar sobre "os fatos mais sangrentos e espantosos, os mais
repugnantes atos de superstição, os encarceramentos e execuções capitais da mais
estúpida ferocidade" .
- Queimemos todo o mundo! parecia dizer a Inquisição. Facilmente Deus
distinguirá os seus.
Loucos infelizes, mulheres histéricas e idiotas eram queimados vivos, sem
compaixão alguma, pelo crime de "magia". Porém, ao mesmo tempo, quantos e quão
grandes criminosos não escaparam a esta injusta e sanguinária justiça! Isto é o que
nos faz apreciar perfeitamente Bodin.
Catarina de Médicis, a piedosíssima cristã que tão meritória se tinha feito aos
olhos da Igreja de Cristo, pela horrenda e inolvidável carnificina de São Bartolomeu -
a rainha Catarina, dizemos, tinha a seu serviço um sacerdote apóstata jacobino.
Sumamente versado na "arte negra" sempre tão patrocinada pela família dos
Médicis, tinha-se feito credor da gratidão e proteção de sua piedosa senhora, mercê
de sua destreza, sem igual, em matar pessoas à distância - e sem responsabilidade,
torturando por meio de feitiços suas figuras de cera. O processo tem sido descrito
repetidas vezes e apenas vamos repeti-lo.
Carlos estava de cama, atacado de incurável moléstia. A rainha-mãe que com a morte
do doente ia perder tudo, recorreu à necromancia e quis consultar o oráculo da "cabeça
sangrenta. Esta operação infernal requeria a decapitação de um menino, que devia ser de
grande formosura e pureza. Tal menino havia sido preparado para a sua primeira
comunhão pelo capelão do Palácio. o qual estava inteirado do infame projeto. Chegado o
dia determinado para a execução deste, à meia-noite, no aposento do enfermo, em
presença unicamente de Catarina e de uns tantos de seus congregados, celebrou-se a
"missa do diabo". Seja-nos permitido citar o resto da história, tal como a encontramos em
uma das obras de Lévi: "Nesta missa, celebrada ante a imagem do demônio, tendo sob seus
pés uma cruz invertida, o feiticeiro-sacerdote consagrava duas hóstias: negra e grande, uma
e branca e pequena a outra. Esta foi dada ao menino, que estava vestido de branco, como
para o batismo, e a quem mataram nos próprios degraus do altar, imediatamente após sua
comunhão. A cabeça de um só golpe separada do tronco, foi colocada, ainda palpitante,
sobre a grande hóstia negra, que cobria a pátena, e logo foi deixada em cima de uma mesa,
na qual ardiam algumas lâmpadas funéreas. Começou, então, o exorcismo. O demônio
tinha que pronunciar um oráculo e responder, por intermédio da cabeça cortada, uma
61
pergunta secreta que o rei não se atrevia a formular em voz alta e que a ninguém havia sido
comunicada... Naquele momento, uma voz débil, uma estranha voz que já nada tinha de
humana, fez-se ouvir da cabeça do infeliz e pequeno mártir..." Porém de nada serviu
semelhante crime de feitiçaria, porque o rei morreu e, Catarina de Médicis continuou
sendo a fiel filha de Roma! E notável é que o escritor católico Des Mousseaux que, em sua
"Demonologia", usa com tão excessiva liberdade o material da obra de Bodin para formular
sua formidável acusação contra "os espíritas e outros feiticeiros", haja cuidadosamente
passado por alto de tão interessante episódio.
É também um fato bem provado que o Papa Silvestre II foi acusado publicamente,
pelo cardeal Benno, de encantador e feiticeiro. A "cabeça oracular" de bronze fabricada por
Sua Santidade era da mesma espécie da criada por Alberto Magno e que foi feita em
pedaços por Tomás de Aquino, não porque fosse obra do demônio ou que por ele estivesse
habitada, mas, sim, porque o espírito que nela estava encerrado, pela força magnética,
falava sem parar, como uma matraca e sua arenga contínua impedia o eloquente santo de
trabalhar em sem, problemas filosóficos. Tais cabeças e até completas estátuas falantes,
solenes troféus da ciência mágica de monges e bispos, eram meros "fac-similes" dos deuses
"animados" dos templos antigos. A acusação contra o Papa era certa, naquela época,
provando-se também a ele que estava acompanhado constantemente de "demônios" ou
"espíritos". Benedito IX, João XX e os Gregórios VI e VII, eram todos conhecidos como
magos. Este último Papa era, além disso, o famoso Hildebrando, do qual se disse ser tão
destro "em fazer sair raios da boca da manga de suas vestes" que isso deu motivo ao
respeitável escritor espírita Howitt em crer que tal era a origem do célebre "raio do
Vaticano".
Quanto às façanhas mágicas do bispo de Ratisbona e do "angélico" Dr. Tomás de
Aquino são demasiado conhecidas, para serem relatadas novamente. Se o prelado católico
era tão hábil em fazer as pessoas crerem que, durante uma crua noite de inverno, estavam
gozando as delícias de um esplêndido dia de verão, e que as bolas de neve pendentes dos
ramos das árvores do jardim eram outros tantos frutos tropicais, também os magos da
Índia, ainda hoje mesmo e sem necessidade de deuses ou diabo algum fora de seu
conhecimento de leis da Natureza, não conhecidas, podem pôr em jogo, ante seu
assombrado público, tais poderes biológicos, pois que todos esses pretendidos "milagres"
são produzidos por um mesmo e adormecido poder humano, que nos é inerente a todos,
resumindo-se o problema somente em saber desenvolvê-los.
Durante a época da Reforma, o estudo da magia e da alquimia havia adquirido uma
preponderância tal entre o clero que deu lugar aos maiores escândalos. O cardeal Wolsey
foi acusado publicamente, ante o Tribunal e o Conselho Privado, de cumplicidade com um
homem chamado Wood, conhecidíssimo como feiticeiro, o qual declarou: "Meu
senhor, o cardeal, possui um anel de tal virtude que qualquer coisa que deseja da graça
dos reis lhe é concedido...", acrescentando: "Maese Cromwell, quando servia como
criado em casa de meu senhor, o cardeal... , lia muitos de seus livros, especialmente o
chamado Livro de Salomão e estudava as virtudes que, segundo o cânone do rei,
possuem todos os metais. Este caso, juntamente com outros igualmente curiosos,
podem ver-se entre os papéis de Cromwell, na Repartição dos Arquivos da Casa de
62
Documentos Públicos.
Em tal arquivo conserva-se, do mesmo modo, uma relação das aventuras de certo
sacerdote chamado William Stapleton, que foi preso como conjurado durante o
reinado de Henrique VIII. O sacerdote siciliano, a quem Benevenuto Cellini chama de
necromante, fez-se famoso por suas afortunadas conjurações, nas quais jamais foi
molestado. A notável aventura que com ele teve no Coliseu de Roma, onde o sacerdote
conjurou uma legião inteira de diabos, é fartamente conhecida do público ilustrado.
Naturalmente que o subsequente encontro de Cellini com sua amiga, predito e
anunciado com todos os detalhes pelo conjurador, no tempo preciso, fixado por ele,
será sempre considerado pelos frívolos e pelos céticos como "uma curiosa e mera
coincidência".
Nos finais do século XVI, dificilmente se podia encontrar uma paróquia, por mais
inferior, na qual os vigários não se entregassem ao estudo da magia e da alquimia. A
prática do exorcismo para expulsar os diabos, como o fez Cristo - que, diga-se de
passagem, jamais empregou tal modo de proceder - conduziu o clero à "sagrada
magia", em oposição à "arte negra", de cujo crime eram acusados todos quantos não
eram monges ou sacerdotes. Os conhecimentos ocultos coligidos pela Igreja Romana
nos, em outros tempos, férteis campos da Teurgia, ela os reservava cuidadosamente
para seu próprio uso, enviando unicamente ao patíbulo, mediante a Inquisição,
quantos praticantes caçava, furtivamente, nos campos daquela Ciência das ciências.
Os anais da História assim o comprovam. "Somente no transcurso de quinze anos
(1580 a 1595) - disse Thomas Wright em sua obra "Magia e Feitiçaria" - no
limitadíssimo território da Lorena, o inquisidor Remigius queimou implacavelmente uns
novecentos bruxos de ambos os sexos". Em tais tempos, publicava Bodin sua célebre
obra mencionada.
Assim, enquanto o clero ortodoxo evocava legiões inteiras de "demônios" por
meio de encantos mágicos, sem ser molestado pelas autoridades, contanto que não
ensinasse heresia alguma e se mantivesse fiel aos dogmas estabelecidos, perpetravam-
se, por outro lado, atos de inaudita crueldade contra as pessoas de pobres loucos. Por
exemplo, Gabriel Malagrida, ancião de oitenta anos, foi queimado por esses verdugos
(estilo Jack Ketches) em 1761. Existe na biblioteca de Amsterdã uma cópia de seu
famoso processo, traduzido da edição de Lisboa. Malagrida, com efeito, foi acusado de
feitiçaria e de manter pacto com o diabo, o qual lhe havia revelado o futuro!... A
profecia, comunicada ao pobre jesuíta visionário pelo "inimigo do gênero humano",
está concebida nestes termos: "O réu confessou que o demônio, sob a forma da bem-
aventurada Virgem Maria, ordenou-lhe que escrevesse a vida do Anticristo; que
deveriam existir, a bem dizer, três Anticristos sucessivos, e que o último nasceria em
Milão do comércio de um frade com uma monja, em 1920..." e outras enormidades
desse teor.
Sob este estandarte (1) cristão, e no breve espaço de catorze anos, Tomás de
Torquemada, confessor da rainha Isabel "a Católica", queimou mais de dez mil pessoas
e sentenciou à tortura outras oitenta mil. Oróbio, o famoso escritor que pelo espaço de
tanto tempo permaneceu encarcerado, escapando com dificuldade à fogueira,
63
imortalizou essa instituição em suas obras, quando se viu libertado na Holanda, não
encontrando melhor argumento contra a Santa Igreja do que abraçar a fé judaica e,
até, submeter-se à circuncisão.
(1). Referência ao estandarte da Santa Inquisição, tirado de um original que
existe na biblioteca do EscoriaI, onde, aos pés do imaculado trono do Todo
Poderoso, figura uma cruz carmesim, com um ramo de oliveira de um lado e
do outro uma espada tinta de sangue até o punho, estando escrito o tema
dos Salmos em letras de ouro: Enxurge, Domine, et judíca causam mean.
... Granger, por seu lado, conta-nos a história daquele famoso cavalo ao qual,
por artes mágicas, dizia-as que lhe fora ensinado a indicar os lugares em um mapa e
a hora nos relógios. O cavalo e seu dono foram acusados pelo Santo Ofício de ter
pacto com o demônio e ambos foram queimados, em grande cerimônia, como
feiticeiros, num Auto de Fé celebrado em Lisboa, no ano de 1601. Tão notável
instituição de Cristianismo chegou a ter até o seu correspondente Dante para
imortalizá-la: "Macedo, jesuíta português - disse o autor da "Demonologia" -
descobriu a origem da Santa Inquisição, nada menos que no paraíso terreno,
pretendendo que o próprio Deus tivesse sido o primeiro que começou a
desempenhar o ofício de inquisidor, tanto com Caim como com os ímpios
construtores da Torre de Babel".
Certamente, acrescentamos, que em nenhuma parte foram mais praticadas
pelo clero as artes da feitiçaria e da magia do que na Espanha e Portugal, porque os,
mouros sempre foram versadíssimos nas ciências ocultas, já que em Toledo,
Salamanca, Sevilha, etc., existiram grandes escolas de magia. Os cabalistas
salamanquinos têm fama de haverem sido grandes peritos em todas as ciências
ocultas; conheciam as virtudes das pedras preciosas e tinham arrancado à Inquisição
seus mais preciosos segredos.
O cura de Barjota, da diocese espanhola de Calahorra, por seus mágicos
poderes, veio a ser a maravilha do século XVI. O mais extraordinário de seus feitos.
era o de poder trasladar-se aos países mais distantes, presenciar neles os mais
interessantes acontecimentos, e profetizá-los logo ao voltar ao seu vicariato.
Acrescenta a "Crônica" que o cura efetivamente contava com um demônio familiar
que, entretanto, foi ingrato para com este, usando de artifícios para enganá-lo.
Informado, por tal demônio, acerca de uma conspiração, que se tramava contra o
Papa, por seus excessivos galanteios a certa formosa dama, o bom cura transportou-
se em seu duplo astral para Roma, salvando assim a vida de Sua Santidade. Depois
disso, arrependeu-se: confessou seus pecados ao Papa galanteador e foi absolvido.
"Ao regressar de Roma foi posto, pró-forma, sob a custória dos inquisidores, porém
foi perdoado e recobrou a liberdade em pouco tempo".
Frei Pedro, monge dominicano do século XVI - o próprio mago que, dizem,
presenteou o famoso licenciado Eugênio Torralba, médico do almirante de Castela
com o "demônio" chamado Ezequiel - deveu sua grande fama ao subsequente
processo que por isso teve de descarregar sobre o mencionado Torralba. O
extraordinário processo está descrito nos documentos que Sé! conservam nos
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Arquivos da Inquisição. Os cardeais de Volterra e de Santa Cruz testemunham que
viram Ezequiel e tiveram íntimos contatos com o mesmo, o qual no futuro tornou-se,
durante o resto da vida de Torralba, um homem puro e bondoso, que levou a cabo
mil ações benéficas e se manteve fiel ao mencionado médico até o último momento
de sua vida. A própria Inquisição, tendo isso em conta, absolveu Torralba e, embora
a sátira de Cervantes lhe haja assegurado uma fama imortal, nem Torralba, nem o
monge Pedro são heróis fictícios, mas sim personagens históricos, citados em
documentos eclesiásticos que existem em Roma e em Cuenca, onde ventilou-se o
processo, no dia 29 de janeiro de 1530.
O livro do Dr. W. G. Soldan, "Geschiche der Hexen procese, aus den Quellen
dargestellt", de Stutgart, chegou a ser tão famoso na Alemanha como o fora, na
França, a "Demonologia", de Bodin. É o tratado alemão mais completo sobre a
feitiçaria no século XVI e quantos sintam interesse em conhecer as maquinações
secretas que motivaram os assassinatos perpetrados, aos milhares, por um clero que
pretendia crer no diabo, encontrá-las-ão divulgadas na mencionada obra. A
verdadeira origem das acusações diárias e sentenças de morte por feitiçaria é
habilmente atribuída a inimizades políticas e pessoais, em especial ao ódio dos
católicos contra os protestantes. O astuto trabalho dos jesuítas manifesta-se em
cada uma das páginas daquelas sangrentas tragédias e em Bamberg e Wurzbourg
(onde esses dignos filhos de Loyolla eram mais poderosos por aquele tempo) era
onde com mais frequência se apresentavam os casos de feitiçaria.
Os falsificadores eclesiásticos que acusam a magia, o espiritismo e até o
magnetismo de serem produzidos pelo demônio, esqueceram, ou jamais leram, os
clássicos. Nenhum de nossos hipócritas olharam com maior desprezo os abusos da
magia, como o verdadeiro iniciado da antiguidade. Nenhuma lei medieval, ou
moderna, pode ser tão severa como a do hierofante, porque se bem que expulsasse
o bruxo "inconsciente", a pessoa perturbada por um demônio, do interior do templo,
os sacerdotes, em lugar de queimá-los desapiedadamente cuidavam com terna
solicitude do infeliz "possesso" em hospitais, onde se lhes devolvia a saúde. Porém,
com relação àquele que, por meio de feitiçaria consciente, havia adquirido poderes
perigosos para os seus semelhantes, os sacerdotes da antiguidade eram
severíssimos. "Qualquer pessoa acidentalmente culpável de homicídio, ou convicta de
bruxaria era excluída dos mistérios de Eleusis", disse Taylor em sua obra "Os
Mistérios bâquicos e eleusinos". A preterição de Agostinho de que todas as
explicações dadas sobre isso, pelos neoplatônicos eram invencionices destes, é
absurda, porquanto quase todas elas são relatadas, mais ou menos explicitamente,
pelo próprio Platão. Os Mistério são tão antigos quanto o mundo, e qualquer um
bem versado no esoterismo das mitologias das diversas nações pode seguir sua
pegadas até os dias do período antivédico, na Índia. Nesta, exige-se do candidato à
iniciação a virtude e pureza mais estritas, tanto se se pretender ser um "Sannyasi",
um santo, como se se desejar ser um "Purohita", ou sacerdote público, ou enfim se
se contentar em ser um mero faquir... Indubitavelmente, o exercício de tais virtudes
exigidas ainda que para este último caso, é incompatível com a ideia que aqui, no
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Ocidente, temos do culto diabólico e de seus fins lascivos!...
Estes faquires, se bem que nunca possam passar do primeiro grau da iniciação,
são, não obstante, os únicos agentes, entre o mundo dos vivos e os "silenciosos
irmãos" ou "sannayasis", os quais jamais cruzam os umbrais de suas sagradas
vivendas. Os "fukarayoguis" estão eternamente adstritos aos seus templos e, quem
sabe se estes cenobitas, assim ilhados do mundo profano, tenham muito mais que
ver, do que comumente se crê, com os fenômenos psicológicos operados sempre
sob sua oculta direção pelos faquires? Fenômenos tão rigorosamente descritos por
Louis Jacolliott... , esse "cético e emperdenido racionalista" (como ele próprio se
jacta de ser) em sua obra "O Espiritismo no Mundo"... Não obstante seu incorrigível
racionalismo, este autor francês se viu obrigado a admitir as maiores maravilhas com
relação aos faquires, vistas por seus próprios olhos em sua longa permanência na
Índia.
Em regra geral, os brâmanes - diz J acolliot - raramente passam da classe de
"grihastas", ou sacerdotes das castas vulgares e "purohitas", exorcistas, adivinhos,
profetas e evocadores de espíritos. E não obstante vemos que estes iniciados do
grau inferior se atribuem e parecem possuir, com efeito, faculdades desenvolvidas
em tal grau, que jamais foram igualados na Europa. Quanto aos iniciados,
pertencentes à segunda e em especial à terceira categoria, têm a preterição de não
conhecer o tempo nem o espaço e de ser donos até da morte e da vida. Iniciados
desta classe, confessa Jacolliot, que nunca os encontrou, porque - acrescenta - "não
se os vê jamais, nem nas imediações ou no interior dos templos, exceto na festa
lustral do fogo sagrado. Nessa ocasião, aparecem à meia-noite, numa plataforma
erigida ao centro do lago sagrado, qual outros tantos espectros, iluminando o espaço
com seus conjures. Uma brilhante coluna de luz eleva-se em torno deles, desde o
solo até os céus; sulcam os ares os mais estranhos ruídos e os cinco ou seis mil fiéis,
chegados de todos os pontos da Índia para contemplar um instante aqueles
semideuses, prostam-se, invocando as almas de seus queridos antepassados".
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ASSASSINATO À DISTÂNCIA (1)
(1). Este relato foi tirado da Revista "A Modern Panarion", a qual insere a
carta dirigida ao editor de "The Sun" por H.P.B., sobre tal narração.
Certa manhã de 1867, uma espantosa notícia comoveu todo o Oriente europeu.
Miguel Obrenovitch, rei da Sérvia, sua tia Katinka, ou Catarina, e a filha desta haviam
sido assassinados em pleno dia, no próprio jardim de seu palácio, sem se saber quem
eram os assassinos. O príncipe estava, materialmente, crivado de punhaladas e tiros;
a princesa Catarina tinha a cabeça desfeita por golpes e sua jovem filha agonizava
em consequência dos ferimentos. Todas as circunstâncias do terrível crime
causaram, como é natural, uma excitação e uma ansiedade gerais, tocando às raias
da loucura
Desde aquele instante cruel, de Bucareste a Trieste, tanto no Império austríaco,
como em todos os países dependentes do duvidoso protetorado da Turquia,
nenhum aristocrata de sangue, ou príncipe, se acreditou seguro, estendendo-se por
toda a parte o rumor de que aquele crime político havia sido executado por "Tzerno-
Guorgey" ou seja pelo príncipe Kara Georgevitch. Numerosos inocentes foram
encarcerados, enquanto que, como sempre acontece, os verdadeiros regicidas
lograram escapar. Um menino, muito amado na Sérvia, parente próximo das vítimas,
foi tirado de um colégio parisiense, conduzido com toda a pompa a Belgrado e
coroado rei da Sérvia, com o nome de Hospodar.
Como o são, em todos os povos, as paixões políticas, a tragédia de Belgrado foi
esquecida, apagando-se com isso as rivalidades e ódios que ela despertara. Porém,
havia uma idosa matrona sérvia, ligada pelos mais íntimos laços de afeto à família dos
Obrenovitch e que como Raquel, não conseguira facilmente consolar-se com a morte dos
seus. Proclamado o jovem Obrenovitch sobrinho do príncipe assassinado, a matrona
misteriosa vendeu seus bens e desapareceu da vista de todos, não sem jurar antes, sobre o
túmulo das vítimas, que as vingaria.
Quem escreve esta história verídica havia passado uns dias em Belgrado, três meses
antes de se cometer o crime, e conhecia a princesa Catarina - criatura branda, abúlica,
porém cheia de bondade e uma perfeita parisiense por seu excelente trato e educação.
Quanto aos personagens que figuram nesta narração, como ainda vivem, ocultarei seus
sobrenomes sob iniciais.
A idosa sérvia de nosso relato, que de tal maneira jurara vingança, saía muito pouco de
casa só mesmo para visitar, uma ou outra tarde, sua amiga: a princesa Katinka.
Languidaments reclinada sobre tapetes e almofadoes orientais, ataviada com o típico traje
nacional, parecia a própria Sibila de Cumas em seus dias de tranquilo repouso e
alheiamento.
É certo que se contavam estranhas histórias acerca dos conhecimentos ocultos
daquela solitária mulher circulando, entre os hóspedes reunidos ao redor da lareira de
nossa modesta pousada, relatos aterradores, capazes de por em pé os cabelos dos mais
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valentes. O primo de uma tia solteirona de nosso obeso hospedeiro havia caído, certo dia,
sob a garra de um vampiro cruel que esteve a ponto de sangrá-lo e matá-lo com suas
contínuas visitas noturnas. Vãos foram os esforços do pobre cura da paróquia que o
exorcizara e todos já se desesperavam por causa da vítima, quando Gospoja P. - assim
chamarei desde agora a famosa sibila - curou o jovem, afugentando o espírito obsessor,
ameaçando-o apenas com o punho e repreendendo-o em Sua própria língua. Ali, em
Belgrado, foi pois onde aprendi o curioso pormenor de que todos os fantasmas têm sua
linguagem peculiar.
Acrescentamos, também, que Gospoja P., ou seja a anciã em questão, tinha como
serva uma jovem cigana de uns catorze anos, procedente da Romênia chamada a
desempenhar um grande papel neste espantoso relato. Quem foram os pais da moça e qual
o lugar de seu nascimento, todos o ignoravam, inclusive ela mesma. Contaram-me que um
bando de vagabundos a tinha abandonado um dia, no pátio de Gospoja P., a que ela
respondia pelo nome de Frosya, ou "a menina sonâmbula", por sua anormalidade,
raramente encontrada, de à menor insinuação dormir sonambulicamente, falando, nesse
estado, qual médium autômata.
Por aquele tempo, eu viajava muito. Dezoito meses depois do assassinato do príncipe
sérvio, percorria a pitoresca comarca italiana de Banat em um coche de minha propriedade,
para o qual ia alugando cavalos, sucessivamente, nas localidades que visitava.
Certo dia de minha peregrinação, extasiada na contemplação das belezas da paisagem,
estive a ponto de atropelar, distraída que estava, um velho sábio francês que, como eu,
embora a pé, percorria aqueles lugares. Simpatizamo-nos e sem cerimônias enfadonhas,
aceitou o lugar que lhe ofereci, de boa vontade, a meu lado, um modesto assento de feno
em meu carro, constantemente estalando.
O nome do cientista francês era célebre nas Sociedades consagradas ao estudo do
magnetismo e seus similares, como um dos melhores discípulos de Dupotet.
- Quanto me alegro com o nosso encontro! Disse-me o sábio companheiro, no curso
de nossa conversação científica. Nesta solitária e deliciosa Tebaida, encontrei um ente
sensível, uma moça, a coisa mais notável que se podia esperar. É uma maravilha e por seu
intermédio, tratamos esta noite, com sua família, de descobrir, mediante seus dotes de
clarividência, o mistério que rodeia certo assassinato.
- De quem se trata? perguntei curiosa.
- De uma ciganinha romena, que parece ter sido criada na família do príncipe da
Sérvia, aquele que já não existe porque logo fará dois anos que foi assassinado do modo
mais miste ... Eh! "diable", tende cuidado, pois vamos nos despencar por esse precipício!
interrompeu-se o francês, arrebatando-me as rédeas do cavalo.
- Por acaso o príncipe Obrenovitch? exclamei alarmadíssima.
- Ele mesmo! e, como te digo - continuou o francês - penso chegar à aldeia hoje
à noite para altimar, ali, uma série de sessões de magnetismo, desenvolvendo com o
mesmo fim uma das mais admiráveis manifestações que jazem ocultas no fundo de
nosso espírito. Se quiseres acompanhar-me, poderás servir de intérprete, posto que
aquela família não fala francês.
Para mim, diante disto, não cabia a menor dúvida de que se tratava de Frosya e
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de que Gospoja P. acompanhá-la-ia, como de fato aconteceu.
Caía a tarde e chegávamos à falda de uma montanha: o "vieux château", como o
bom francês deu de chamá-la. Detivemo-nos num daqueles sombrios albergues da
poética falda, sentando-nos num banco rústico da entrada. Enquanto meu
companheiro de viagem cuidava, galantemente, de meu cavalo, vi sobre um inseguro
pontilhão da torrente vizinha a figura espectral, pálida e alta de minha velha amiga
Gospoja P., que por isso não pareceu demonstrar surpresa alguma. Ao chegar a mim,
saudou-me com o tríplice beijo em ambas as faces característico da Sérvia, e
conduziu-me carinhosamente à sua choça de hera onde, reclinada num tapetinho
sobre a relva e com os ombros contra a parede, reconheci a jovem Frosya...
Frosya vestia o clássico traje válaco, uma espécie de turbante de gaze, com fitas
e medalhinhas douradas; blusa de mangas abertas e saia colorida. Seu rosto
apresentava uma palidez extrema, seus olhos cerrados davam ao seu todo esse
aspecto de estátua, peculiar a todos os sonâmbulos clarividentes, a ponto de
acreditar-se que estivesse morta, não fosse o ritmo respiratório de seu peito
adornado de medalhas e fios de colares de contas. O francês disse-me que já a fizera
dormir de igual modo a noite anterior e sem reparar mais em nossa presença, deu-lhe
uns tantos passes e levou-a ao estado cataléptico. Dobrou-lhe, depois, um por um os
dedos da mão direita, salvo o indicador, com o qual fê-la indicar a estrela da tarde,
que luzia esplendorosa no imenso azul do céu. Seguiu, assim, regulando os passes
magnéticos e manejando os invisíveis, mas poderosos, fluidos de Frosya, como um
hábil pintor que dá os últimos toques em seu quadro. Naquele momento, a anciã se
deteve e disse-lhe em voz baixa:
- Espera as nove horas, quando se oculta o belo luzeiro. Os "vurdalakis" vagam
em redor e podem anular nossa influência.
- Que dizes? retrucou, contrariado, o magnetizador.
Eu, então, expliquei-lhe o que eram no Oriente os "vurdalakis" e sua perniciosa
intervenção, tão temida pela anciã.
- "Vurdalakis"! Bah! Já temos de sobra a ver com os espíritos cristãos que acaso
nos honrem com sua visita, esta noite!
Gospoja tinha se tornado pálida como uma morta; seu cenho apresentava um
enrugamento pavoroso e seus olhos acesos chispavam, fatídicos.
- Diga-lhe que não graceje em momentos como os destas horas noturnas -
exclamou. Este senhor não conhece o país e não sabe que, até a própria Santa Igreja,
daí por diante seria impotente para proteger-nos contra a irritação dos "vurdalakis".
E, apanhando com desagrado um punhado de hervas que o botânico francês
havia deixado no chão, acrescentou:
- Que invólucro é esse? São pés de verbena, a herva de São João, que não devem
ser deixadas aqui, sob pena de atrair os vampiros vagabundos.
A noite já havia estendido seu manto por completo, e a lua, com sua luz prateada
de fantasmagóricos tons, realçava o misterioso âmbito da paisagem, numa daquelas
placidezes do Banat, que se tornam quase tão formosas, como as do Oriente.
Achavamo-nos operando o fenômeno magnético, no meio daquele campo, porque o
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pobre pároco da aldeia havia dito ao magnetizador:
- Afasta-te do lugar; pode ser que teus demônios estrangeiros invadam teu
recinto e o da igreja, contra os quais, como forasteiros, não terão valor meus
exorcismos.
O francês tirara seu guarda-pó de viagem e enrolara as mangas da camisa,
tomando a atitude teatral tão comum em semelhantes operações magnetizadoras.
Sob seus dedos nervosos, o fluido parecia resplandecer como luzes forfóricas.
Frosya, encarando a Lua, permitia-nos ver todos os seus movimentos convulsos,
como se fosse de dia. Grandes gotas de suor surgiam em sua testa, resvalando por
suas faces abatidas. Em seguida, a moça iniciou um lento vaivem de inquietação e
começou a entoar uma ladainha estranha, cujas notas e palavras Gospoja recolhia
ávida, transformada na estátua da atenção, com seu dedo ossudo aos lábios, os
olhos saltando das órbitas, seu corpo inerte e uma atitude de ansiedade
indescritível, formando com a jovem Frosya, um contraste digno de ser imortalizado
num quadro. Ademais, a cena toda que, a seguir, começou a desenrolar-se, era
merecedora de qualquer das más tragédias de Macbeth: a infeliz moça, retorcendo-
se, atormentada, sob os tão invisíveis como poderosos fluidos que sobre ela
descarregava seu tirânico magnetizador e, de outro lado, a velha matrona, obsecada
por sua sede ardente de vingança e esperando ouvir, por fim, de um momento para
outro, o nome do assassino de seu amado príncipe sérvio. Até o onipotente
magnetizador francês parecia transfigurado: eriçada eletricamente sua nívea e
ondeada cabeleira e agigantada, de modo incrível, sua tosca e pequena estatura.
Não havia pois, ali, mistificação nem teatralidade, porém uma das mais estupendas e
aterradoras experiências de magnetismo nativo, bem acima dos mais altos
conhecimentos ocultistas de quem as tinha provocado inconscientemente.
Súbito, como acionada por uma mola e um poder sobrenaturais. Frosya pôs-se
em pé; não aguardava mais para lançar-se em direção ao desconhecido, qual.
autômata que vai receber as ordens de quem, naquele instante, era seu onímodo
senhor. Este, então, tomou solenemente a mãe de Gospoja e, colocando-a sobre a
da sonâmbula ordenou a esta última que obedecesse àquela.
- Que vês, minha filha? murmurou ansiosamente a senhora sérvia. Pode, acaso,
teu espírito encontrar-se com os assassinos de nosso príncipe e dizer-nos seus
nomes?
- Procura, pois, solícita, o que a senhora te manda! ordenou, por sua vez, com
firmeza, o magnetizador.
- Já estou a caminho - exclamou debilmente a menina, com uma vozinha que,
mais do que de seus lábios, parecia sair de "seu duplo" e à curta distância.
Impossível descrever com acerto o que neste momento aconteceu. Algo assim
como uma nuvem esbranquiçada e informe se foi condensando ao lado de Frosya,
envolvendo-a primeiro com sua azulada e metálica luz e destacando-se claramente,
depois, a seu lado com cárdenas, clorinas centelhas de relâmpago, qual um novo
corpo brilhante, junto ao corpo material, para separar-se deste, enfim, coerente,
semi-sólido e, depois de flutuar uns segundos no espaço, lançar-se rápido e
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silencioso em direção ao riachinho, desaparecendo, finalmente, corrente abaixo, à
distância, confundido com os raios do luar, qual porção de névoa desfeita em noite
otonal.
Não é preciso acrescentar que a cena tinha absorvido todas as minhas forças,
sob um torpor de sonho misterioso. Via, com efeito, desenvolver-se ante meus olhos
espantados nada menos que a evocação dos "Scin-Leca" do Oriente! Dupotet tinha
razão em afirmar, como o fez, que o magnetismo ocidental não é senão a magia
consciente dos antigos, e o espiritismo é o efeito inconsciente da mesma magia
sobre certos organismos neurastênicos.
Convém acrescentar que, nem bem o vaporoso duplo astral da jovem se havia
desprendido de seu corpo físico, a pérfida Gospoja, com um rápido movimento da
mão que estava livre, tinha tirado de sob seu abrigo e colocado no seio da
magnetizada um pequeno estilete ou punhal, tudo com rapidez tal, que nem o
próprio magnetizador deu conta disso, como logo me disse. Seguiu-se, então, um
silêncio sepucral, no qual podia-se quase ouvir o emocionado bater de nossos
corações, enquanto que nossos corpos pareciam se ter petrificado de surpresa,
como o da mulher de Lot. Mas, logo, a sonâmbula lançou um grito estridente que
despertou os ecos da montanha, ao mesmo tempo que se inclinava para a frente.
Empunhando o afiado estilete, começou a esgrimi-lo com sanha, para a direta e para
a esquerda, em seu redor, com o mais selvagem sorriso de vingança satisfeita,
naqueles seus inimigos imaginários, lançando espuma pela boca, ao mesmo tempo
que pronunciava, várias vezes, entre incoerentes exclamações guturais, dois
conhecidos nomes cristãos masculinos. O magnetizador, ao ver aquilo, tinha se
aterrorizado de tal forma Que, em vez de descarregar os fluidos da sonâmbula,
naquela cena angustiosa, carregava-a mais e mais, fortalecendo-a.
- Desgraçado, detende-a! gritei-lhe exasperada. Vai matá-la... se é que ela não
chegue a matar-te!
O imprudente magnetizador, sem se dar conta, havia despertado, sem dúvida,
sutis forças ou entidades da Natureza Oculta, sobre as quais carecia de todo o poder.
A própria sonâmbula, em seu paroxismo homicida, assestou-lhe, com sanha, uma
tremenda punhalada que ele pôde evitar, dando, obliquamente, um grande salto, não
sem antes receber um corte considerável no braço direito. Aterrado, o infeliz francês
trepou no muro vizinho, com a agilidade de um gato perseguido, pondo-se a cavalgar
montado nele, ao mesmo tempo que, tremendo ainda de medo, conseguiu reunir os
restos de sua desfeita vontade para obter que, por fim, a moça soltasse a arma e
permanecesse paralisada.
- Que fizeste, desgraçada? o magnetizador gritou, então, para Frosya em sua
nativa língua francesa. Responda-me, clara e imediatamente.
Ao que esta respondeu, no mais correto parisiense, com grande estupefação
minha, pois sabia que, em seu estado normal, a mocinha ignorava aquele idioma:
- Não fiz outra coisa senão... o que ela me ordenou que fizesse e isso porque tu
mesmo me havias exigido que a obedecesse em tudo...
- Que é, pois, que a velha bruxa mandou-te fazer? acrescentou o francês
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desrespeitosamente.
- Que encontrasse os assassinos do príncipe de..., e que, assim que os visse,
matasse-os, como acabo de fazer... Oh! que felicidade; vingados, vingados por fim!
acrescentou já em sua própria língua.
Uma estrondosa exclamação triunfal de Gospoja acolheu estas últimas frases da
inconsciente sonâmbula. Uma gargalhada que fez ladrar lugubremente todos os cães
das redondezas.
- Vingada, sim, vingada! Eu o sabia! Meu coração não me engana ao dizer-me
que aqueles infames criminosos já deixaram de existir - exclamou - caindo ao solo,
esgotada dos nervos e arrastando consigo a sonâmbula.
- Oh! que boa pessoa para experiências é esta moça! disse o pobre francês,
completamente alheio ao verdadeiro desenlace daquela "inocente" prática de magia
de má lei. Perigosa sim, mas admirável! terminou, esfregando as mãos contentíssimo,
Dali a poucas horas, separei-me do pobre francês, de Gospoja e de Frosya.
Três dias mais tarde, achava-me no refeitório de um bom hotel, em T... ,
esperando que me servissem o desjejum. Minha vista fixou-se, distraidamente, em
um periódico, onde com surpresa inaudita li:
"Duas mortes misteriosas
Viena .....
72
A MÃO MISTERIOSA (1)
(1). Referindo-se esta pequena história, como se vê, a H. P. Blavatsky,
inserimo-la aqui, tomando-a das Revistas que a traduziram, tanto da
"Theosophist" de Madras, como da "Listok" e da "Rebus", de S. Petersburgo,
revistas russas nas quais apareceu pela primeira vez, e, logo em seguida, nas
publicações de diversos países. O artigo em questão acrescenta que o caso
sucedeu em 1886 e as pessoas que nele figuram eram todas conhecidíssimas
na alta sociedade russa.
Por outro lado, segundo relatos de Olcott, Sinnett, Hartmann e outros,
H. P. Blavatsky costumava realizar semelhantes atos de verdadeira "proteção
invisível", como quando deteve, na estepe, um trem de passageiros já
próximo a uma perigosa interrupção da via férrea.
Conversando várias vezes com D. José Xifré, o veterano e querido
teósofo da primeira hora, homem que tantos sacrifícios fez pela Causa,
ouvimo-lo contar tiradas semelhantes, com as quais a Mestra salvou-lhe a
vida em duas ou três ocasiões memoráveis, uma delas quando ia tomar um
trem que foi vítima, com muitos de seus passageiros, de um choque
tremendo. A cena em que, em "O tesouro dos lagos de Somiedo", figuramos
como o alquimista Cudillero (no final da segunda parte) está calcada na
primeira entrevista que ''le petit espagnol", como aquela paternalmente o
chamava, teve com a mesma, na Ilha Wight... E quantas destas invisíveis
proteções não se veem acumuladas ou impedidas pela oposição (a elas) do
karma de nossos vícios!
A não ser por estes últimos, seriam frequentíssimos os casos, como o
que abaixo segue, o qual retiramos de uma Revista inglesa:
"Mr. S. Wllmount, tendo embarcado no vapor "City of Limerik" para
atravessar o Atlântico, conta que, durante a viagem, arrostaram uma
tempestade horrorosa que durou nove dias, nos quais não lhes foi possível
conciliar o sono, até que na madrugada do nono dia, havendo se apaziguado
um pouco o vento, dormiu profundamente. Sonhou que via sua esposa (a
quem tinha deixado bem de saúde, na ocasião de sua partida) abrir a porta
do camarote e, depois de titubear por um instante ao ver não estava só,
entrar resolutamente, pendurar-se ao seu pescoço, abraçá-lo e desaparecer.
Despertando, ficou surpreendido ao ver que seu companheiro de
camarote, Mr. William J. Tait, com a cabeça apoiada à mão, olhava-o
fixamente e, ainda mais quando lhe disse: "Muito bem! Que folga a sua
receber aqui a visita de uma dama!" Wilmount insistiu para obter uma
explicação dessas palavras, sendo-lhe recusada até que, mais tarde, Mr. Tait
acedeu em contar-lhe o que tinha visto, achando-se em seu leito,
completamente desperto - o que foi exatamente o sonhado por Mr.
73
Wilmount. No dia seguinte, ao desembarcar, Mr. Wilmount foi buscar a
esposa que tinha ido visitar seus pais e, ao encontrarem-se a sós, a primeira
coisa que ela lhe perguntou foi: "Recebeste minha visita na quarta-feira?"
Contou-lhe, então, que se achava muito intranquila por ele, por causa da
tempestade, não podendo conciliar o sono, pensando no risco que podia
correr e que, às quatro e trinta da madrugada, pareceu-lhe que ia ao seu
encontro. Atravessando o mar, viu, a cabo de certo tempo, um navio no qual
subiu, descendo, em seguida, ao camarote onde ele se achava. Prosseguiu,
descrevendo a cena, e os objetos, tal e qual foram descritos anteriormente.
76
A ALMA DE UM VIOLINO
I
Um velho alemão, professor de música, chegou a Paris certo dia do ano de 1828,
estabelecendo-se, mui modestamente, num dos bairros mais tranquilos da grande
urbe, com um de seus discípulos. O nome do ancião era Samuel Klaus e o do jovem
respondia ao muito mais poético de Franz Stênio.
Este era um novel violinista dotado, segundo a fama, de um talento musical
extraordinário, quase milagroso; mas como era pobre e sem fama na Europa,
permaneceu vários anos desconhecido e não apreciado no seio da capital da França,
metrópole da sempre caprichosa moda ocidental.
Franz Stênio havia nascido em Styer e não contava ainda trinta anos, nos dias a
que nos vamos referir. Sonhador e filósofo, por natureza, com todas essas raridades
místicas do verdadeiro homem de gênio, não parecia senão um desses heróis
inquietantes dos "Contos Fantásticos" de Hoffmann. Seus primeiros anos estavam
cheios de coisas extraordinárias, excêntricas, incríveis, a ponto de hoje nos vermos
levados a contar sua história com brevidade, para melhor compreensão desta
narrativa.
Nasceu, Stênio, no seio de uma família de piedosos camponeses, moradores de
uma tão afastada quanto pacífica aldeiazinha, no coração dos Alpes de Steyer; foi
criado, segundo se disse, pelos próprios gnomos e demais gênios da região, que
velaram solícitos em torno de seu berço. Cresceu, assim, a criança nesse ambiente
mágico de fantasmas, fadas e vampiros que tão essencial papel desempenham em
todos os lares de Steyer, da Eslavônia e também da Áustria meridional.
Educado, mais tarde como estudante, à sombra dos antigos castelos renanos, dir-
se-ia que o jovem Franz tinha vivido toda a sua vida, até então, nesse emocionante
plano chamado de "sobrenatural". Ademais, durante alguns anos, estudou algo sobre
ciências ocultas com um grande discípulo de Kunrath e de Paracelso motivo pelo qual
era tão destro em feitiçarias de todo o gênero, inclusive em "cerimônias mágicas" e
segredos teóricos da Alquimia, como o mais esperto dos ciganos húngaros.
Não obstante tudo isto, o jovem Franz amava com delírio a música e, por tudo e
acima de tudo seu violino. Foi assim que, aos vinte e dois anos de idade, pôs de lado,
por completo, seus estudos ocultos, e se consagrou desde então, por completo à sua
arte, embora permanecendo fiel adorador dos deuses gregos, em especial das Musas
de Euterpe, em cujo altar, e no de Pan e de Orfeu, rendia o mais nobre culto de
admiração ao seu instrumento, ansiando por vê-lo igualado à flauta e à lira destes
últimos deuses. As notas de seu stradivarius afastavam-no, sublimes, de tudo quanto
neste mundo inferior não fossem seus sonhos musicais com ninfas, sereais e demais
deusas pagãs da melodia e da poesia. Como nuvem de perfumado incenso, os acentos
celestiais de seu violino querido subiam às alturas, enquanto o jovem "virtuose"
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sonhava sempre desperto vivendo a vida real como através de um ambiente
encantado: Assim, ainda em sua própria aldeia, onde só se respirava magia e bruxedo,
passou sempre por criança singularíssima e chegou a homem adulto, sem quase haver
tido juventude.
Nunca uma linda cara de moça cativara o artista, nem fora capaz de arrancá-lo de
seus solitários estudos. Todos os seus amores eram o seu violino; em sua única
companhia havia sempre vivido, sem contar com outro auditório para seus concertos
musicais, os deuses e deusas da Grécia clássica daquelas serras. Um ininterrupto sonho
de harmonia e de luz!
Quão vívidos, quão gloriosos, mas quão inúteis eram estes sonhos duradouros do
maravilhoso Franz! Ele era um herói da música, como o deus egípcio com sua lira, ou o
deus grego com seu caramilho, e até as deusas do amor e da beleza deixavam suas
excelsas moradas, sugestionadas pela arte suprema das escalas de seu violino!...
- Oh! dizia a si próprio, mais de uma vez, o jovem em suas nostalgias de uma arte
nunca ouvida. Poderia eu atrair e encerrar uma ninfa do Parnaso na alma de meu
querido violino? Conseguiria eu roubar, algum dia, esse mistério, que se conta, dos
grandes deuses da música, domesticando com meu canto as feras e encantando os
homens, até obrigá-los também a render-me culto?
Tais vinham sendo os sonhos de Franz, ansioso sempre dessas tão efêmeras
glórias entre os homens. Para desgraça dele, sua mãe, ao enviuvar, chamou-o para seu
lado, na aldeia, arrancando-o da Universidade alemã, onde estava há quase dois anos.
Esta chamada deitou por terra todos os projetos do jovem, pelo menos em relação ao
seu futuro imediato, pois que, fora de sua aldeia e do calor de sua casa, não contava
com os meios necessários para satisfazer seus desígnios, por limitados que fossem.
Para cúmulo, sua mãe, que constituía seu único amor na Terra, faleceu pouco
depois de ter estreitado em seus braços o seu amado filho caçula. Ainda aconteceu
que, não se sabe porque, as comadres da aldeiola desataram cruelmente suas línguas a
respeito das verdadeiras causas determinantes da morte da aldeã, relacionando-a,
eventualmente, com a estada de seu filho em casa.
A viúva, Senhora Stênio, com efeito, antes do regresso de seu Franz, era uma
mulher alegre, forte e ainda jovem; alma piedosa e por demais temente a Deus, que
jamais faltou à missa e nem deixou de orar diariamente. Sem embargo, apesar disso, o
primeiro domingo que se seguiu à chegada do jovem estudante, quando a pobre aldeã
limpava o pó, de vários anos, do livrinho de orações que Franz havia usado em sua
infância, quando se sentava a seu lado na igreja, e no momento enfim em que o alegre
repique dos sinos ressoava, chamando a todos para a Santa missa, a amorosa mãe
ouvira, com calafrio mortal, aqueles sonoros repiques serem abafados pelas notas
macabras do violino, respondendo, sarcástico, à chamada, com as selvagens melodias
de "A Dança das Bruxas"(1). Faltou muito pouco para a aldeã desmaiar, quando seu
filho querido negou-se depois, peremptoriamente, a ir à missa, acrescentando, ímpio,
que todo tempo passado na igreja era tempo perdido, e que, ademais, os ruidosos
sons do vetusto órgão crispavam seus nervos de artista. Para completar aquele
acúmulo de enormidades blásfemas e melhor calar as desesperadas súplicas
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maternas, convidou-a, o grande perverso, a ouvir o belíssimo "Hino ao Sol" que
acabava de compor.
(1). Aquelarre (Witches Sabbath - ou Sábado das Bruxas) - A suposta dança
e assembleia das bruxas, em algumas paragem solitária, onde se acusava as
bruxas de comunicar-se diretamente com o diabo. Todas as raças e todos os
povos acreditaram nisto, e alguns ainda hoje o creem. Assim, o principal
ponto de reunião de todas as bruxas da Rússia, dizem ser a Montanha Pelada
(Lissaya Goru), situada perto de Kiev e, na Alemanha, Brocken, nos Montes
Harz. No velho Boston (E.E.U.U. da América) congregavam-se perto do
"Tanque do Diabo", em uma vasta selva, ora desaparecida. Em Salem,
deram-lhes morte com aquiescência dos dignitários da Igreja e, na Carolina
do Sul, foi queimada uma feiticeira em época recente - ano de 1865. Na
Alemanha e Inglaterra foram assassinadas aos milhares, pela Igreja e pelo
Estado, depois de verem-se obrigadas a mentir e confessar, pela violência da
tortura, sua participação no "Sábado das Bruxas". A noite de Santa Walpurgis
ou Walpurga, cuja festa a Igreja celebra a 1º de maio (noite em que ainda
hoje as pessoas sensíveis veem chegar com certo temor supersticioso) fez-se
famosa na Idade Média pelo aquelarre que bruxos e bruxas celebram na
agreste montanha Brocken, ou Broksberg, o mais elevado pico do Hartz. Esta
cena está magistralmente descrita na primeira parte do Fausto, de Goethe.
(Do Glossário Teosófico de H.P.B.)
A boa Senhora Stênio perdeu, desde aquele triste domingo, a costumeira
placidez de seu espírito e foi desafogar suas angústias e remorsos aos pés do
confessor. A resposta do sacerdote, às suas dúvidas, levou sua alma simples e lógica
às raias do desespero, pois da severidade daquele não recebeu a respeito de seu filho
senão os mais funestos augúrios. Um contínuo sobressalto, um terror sem limites
dominou, então, a anciã, que não deixava de rezar noite e dia pela quase impossível
salvação de seu filho e, não contente em fazer, em vão, os votos mais temerários
para lográ-la, vendo que nem os salmos em latim, nem as humildes súplicas em
alemão, que dirigiu a toda a Corte celestial, davam resultado algum, para com aquele
réprobo, fez várias peregrinações a santuários distantes, numa das quais, pelos
nevados campos do Tirol, atacou-a um forte resfriado que a levou rapidamente ao
túmulo. Via-se, pois, que de certo modo o voto da Senhora Stênio se havia cumprido,
dado que a boa senhora já podia, em seu novo estado de após vida, realizar
pessoalmente sua visita aos Santos e advogar, junto deles, por aquele perverso que
renegava a Igreja, nossa Santa Madre, tinha invencível horror ao órgão e zombava
dos sacerdotes e de seus confessionários.
Bem alheio estava Franz à ideia de haver sido o verdadeiro causador, embora
inconsciente, da morte de sua mãe; lamentou-a de todo o coração e dali a poucas
semanas vendeu todos os trastes de sua casa e as modestas benfeitorias de sua
fazenda e, leve de bolsa, como de preocupações, resolveu percorrer o mundo como
um bom boêmio, sem se estabelecer, nem trabalhar em nada.
Visitou, assim, o jovem Franz Stênio, as principais cidades europeias. Depositada
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sua modesta fortuna em um Banco, percorreu a pé a Alemanha e a Áustria, pagando
com as notas de seu violino as hospedagens, em quantos albergues e estâncias
visitava, passando não poucos dias da boa estação, entre o verdor dos campos e o
augusto silêncio dos bosques umbrosos, frente a frente com a Natureza, sonhando
sempre de olhos abertos, reduzindo tudo a harmonias, à moda de Hesíodo ou de
Anacreonte, nem mais nem menos - como o alquimista transforma tudo em ouro. Até
em seus concertos noturnos, nas hospedarias e nos prados das aldeias, nos dias de
festa, os participantes eram, para a sua imaginação artística, pastores e pastoras da
feliz Arcádia que o coroavam, como ao próprio deus Pan, em seus triunfos. O solo dos
salões eram, para ele, prados das mais sugestivas criações mitológicas; sacerdotes e
sacerdotisas de Terpsícore, aqueles rudes labregos e aquelas sadias filhas da
Alemanha rural, de faces semelhantes a maçãs frescas, lábios de cerejas e olhos de
céu, bailando uma dança sagrada, sob as cadências de uma valsa...
Seu violino, nos momentos solitários passados por seu dono no mais espesso da
selva de pinheiros, parecia animar com forças de sagrada magia as próprias árvores,
pedras, musgos, tudo quanto, como novo Orfeu, rodeava-o, embelezando; afigurava-
se, ao jovem, ver, no delírio de seus sonhos musicais, que até as águas do riachinho
detinham, também, seu curso para continuar ouvindo-o, enquanto a cegonha, a
águia ou o mocho pareciam perguntar-lhe em seu linguajar desconhecido:
"És tu, Franz Stênio, ou o próprio Orfeu redivivo?"
Aquele tempo foi a época mais feliz de sua existência de contínua exaltação
artística, de divinos delíquios, de sonhos inenarráveis. Nunca, em nada afetaram o
jovem as últimas palavras de sua mãe agonizante, que murmurara em seus ouvidos
todos os horrores de uma tão próxima, como definitiva, condenação.
Aquilo não se podia comparar mais que a seu conceito musical do domínio
pagão de Plutão, senhor do tétrico reino das sombras, quem, ao ouvir seu
instrumento, dava-lhe as boas-vindas a seus estados, como a um novo libertador de
outra Eurídice de Orfeu. Uma vez mais, a roda de Ísion havia parado ante as
cadências mágicas, dando, assim, um descanso ao triste sedutor de Juno e um
mentismo a quantos cressem eternos os suplícios dos condenados daquela mansão
inabordável, pois o próprio Franz via Tântalo esquecer-se de sua inextinguível sede
ao beber naquela torrente de harmonias; Sísifo permaneceu imóvel, sem já sentir o
peso de seu opressivo rochedo, sorridente das próprias Fúrias infernais. Vemos, pois,
que a mitologia clássica era para Franz, como para tantos outros eleitos, o mais
seguro antídoto contra os terrores e ameaças teológicas, sobre a velha e alta
Mitologia, fortalecida e espiritualizada pela Música. Euterpe, pela mão de seu fiel
discípulo Franz, triunfava, enfim, até do próprio inferno.
Porém, tudo acaba logo, oh! dor !, neste mundo infame, e os sonhos do jovem
Franz não se puderam subtrair a tão grande lei. Chegou afinal, certo dia, à cidade em
cuja universidade ensinava Samuel Klaus, seu velho professor de violino. Quando
este santo ancião viu, pobre, órfão e sozinho, seu discípulo favorito, sentiu
centuplicar o carinho que nutria pelo rapaz e, estreitando-o contra seu nobre
coração, generoso, adotou-o como filho.
80
O violinista Klaus parecia evocar, com sua grotesca e rotunda pessoa, os
românticos entalhes medievais, porém, desmentindo a sua aparência de trasgo ou
duende fantástico, possuía um dos maiores corações, uma alma de ternuras
femininas e uma abnegação não inferior à de quaisquer dos mártires do
Cristianismo. Ao contar-lhe, o jovem discípulo, a história dos últimos anos de sua
ausência, o velho mestre tomou-o pela mão e levando-o a seu estúdio, disse-lhe
apenas:
- Abandona a vida errante e fica comigo. Poderás alcançar glória e dinheiro. Eu,
ancião e sem família, não serei mais que um pai para ti. Vivamos, pois, juntos,
olvidando tudo o que é deste mundo, salvo a glória que em breve conquistaremos.
Mestre e discípulo concordaram em ir a Paris, tocando em várias cidades alemãs
por onde passassem. Com isto, o jovem Franz esqueceu-se, em breve, de sua vida
errante; renunciou às nostalgias de sua independência artística, despertando, em
troca, sua antiga e adormecida ambição de glória e ouro. Contente, desde a morte
de sua mãe, com o aplauso dos deuses moradores de sua vulcânica fantasia, queria,
além do mais, também o aplauso dos homens mortais. Sob os severos ensinamentos
de Klaus, seu talento musical inato ganhava, cada dia, em vigor e magia, estendendo-
se, rapidamente, a fama de seus méritos por cidades e vilas. As mais geniais
capacidades de vários centros proclamaram-no, de pronto, violinista sem rival, o
violinista único, com o que, não é preciso acrescentar, perderam a cabeça por fim
tanto o mestre como o discípulo.
Mas a capital da França não concedeu, de início, facilmente, ao jovem tamanha
fama, porque é sabido que Paris costuma fixar por si mesma as reputações, sem
aceitá-las sob opinião alheia. Assim é que o violinista Franz já ali estava há três anos
e subia ainda a áspera encosta de seu calvário, como artista, quando lhe aconteceu
um fato que chegou a fazer murchar todos os seus sonhos de glória. O primeiro
concerto de Paganini pôs a cidade-luz em intensa comoção. O maestro italiano
apareceu e Lutécia inteira caiu a seus pés.
II
Chegados a este ponto de nosso relato, convém recordar uma superstição
medieval que subsistiu até meados do presente século e que atribui todas as
grandezas do gênio ao fato deste manter estreito "pacto com o diabo".
Todos os artistas, Paganini inclusive, foram acusados de semelhante pacto.
Do grande violinista Tartini, assombro do século XVII, chegou-se a dizer que os
mágico efeitos, sobre seus auditórios enfeitiçados, deviam-se nada mais do que a
seus pactos com os "malignos". Assim, sua célebre "Sonata do Diabo" foi causa das
mais terríveis lendas. Conhecida também por "O Sonho de Tartini", a ele atribuiu-se
a direta inspiração do próprio Satanás, que a executou perante Tartini, enquanto
este dormia, sendo o próprio músico o primeiro culpado de semelhante fama por
suas frases imprudentes. (2)
2. À famosa "Sonata do Diabo", de Tartini, atribui-se a seguinte origem:
81
"Depois de haver lutado em vão, a fim de achar inspiração para a sonata que
estava compondo, o maestro adormeceu profundamente.
Preocupado, como estava com seu tema, Tartini sonhou que continuava
seu trabalho de vigília, tão esterilmente, que, desesperado, invocou o diabo,
o qual, aparecendo-lhe, propôs a mais abundante inspiração em troca de
sua alma.
Feito o trato, o maestro ouviu, no mesmo instante, um violino
maravilhoso que executava a sonata mais assombrosa que se poderia ouvir,
sobretudo nas fases finais que não pareciam, com efeito, coisas deste
mundo...
Tartini despertou sobressaltado, mas com a inexplicável inspiração
recebida no sonho, cheio de ardor, pegou seu instrumento e,
Imediatamente, ficou pronta a obra que, desde então, chamou-se a "A
Sonata do Diabo".
De tamanhas acusações bruxas não escaparam tão pouco os mais célebres
cantores, pelos efeitos maravilhosos logrados com suas vozes sobre os auditórios
embevecidos. A voz sublime de Pasta atribui-se a que sua mãe, nos três últimos
meses de gestação, teria sido arrebatada ao Céu e, durante seu êxtase, havia
tomado parte em um coro de excelsos serafins. Malibran devia sua voz, segundo
uns, a Santa Cecília, patrona dos músicos e, segundo outros, ao próprio diabo que já
lhe cantava ao ouvido, à beira de seu berço, para que adormecesse. Por último,
Jubal de Dryden alcançou a suprema arte de tocar, à guisa de violino, numa simples
concha marinha com cordas, arrastando, entretanto, a multidão enlouquecida e
fazendo-a dizer que era um anjo do céu, e não as cordas da concha, quem produzia
aqueles sons.
O avaro violinista italiano, Paganini, não podia deixar de ter outra lenda análoga,
porque sem ela eram inexplicáveis seus prodígios. Eram tais, com efeito, as emoções
que, com o instrumento despertava em seus auditórios que, dizem, ter Rossini
chorado, como uma sentimental mocinha alemã, ao escutá-lo pela primeira vez. A
princesa Elisa de Lucca, irmã de Napoleão I, a cujo serviço esteve Paganini algum
tempo, como diretor de sua orquestra particular, não podia ouvir as primeiras notas
do músico sem desmaiar imediatamente. A magia de seu arco permitia ao grande
artista determinar, à vontade, os mais aparatosos ataques histéricos nas mulheres e
despertar entre os homens fortes o mais louco frenesi, fazendo de qualquer covarde
um herói e do soldado mais aguerrido uma nervosa meninota. Daí é que as lendas
macabras, acerca do artista, tanto se alimentaram (e isto não se dizia, de modo
algum, sem terror e de ouvido a ouvido), afirmando-se, especialmente, que tudo
aquilo se devia apenas às cordas de seu violino que não eram como as dos demais
instrumentos, mas que estavam torcidas com intestinos humanos, verdadeiros, extraídos
por feitiçaria, de acordo com os cânones mais horríveis da necromancia.
Isto, por muito que choque aos sábios ouvidos ocidentais, nada tem de
impossível, com efeito. Talvez a tradição da própria necromancia da Idade-Média
pôde dar lugar a tamanha lenda, porque é um fato provado em Ocultismo, que
82
muitos magos negros orientais, em especial os tântricos bengaleses recitadores de
tantras ou conjuros para atrair espíritos maléficos, usam, para suas perversas obras,
dos próprios órgãos internos dos cadáveres. Agora, por outro lado, que nos são mais
conhecidos os poderes perigosos do magnetismo, mesmerismo e hipnotismo,
manejados tecnicamente pelos próprios médicos, poder-se-ia supor que, com menos
perigo que antes de ser escarnecido, os efeitos mágicos que Paganini produzia com
seu violino, não eram devidos somente a seu gênio musical, mas aqueles fenômenos
de admiração, patologia e sugestão experimentados por seus auditórios (admirações
que tinham algo de sobrenatural e diabólico, segundo muitos de seus biógrafos)
deviam-se a uma origem mais misteriosa que a da impecável execução e técnica do
mestre. E, por isso também até podia mudar de timbre o instrumento, fazendo com
que, com suas melodias na corda G somente, o violino se assemelhasse a uma flauta.
Rumores tais podiam tomar corpo muito mais antigamente do que agora que as
pessoas são muito mais céticas, chegando-se a murmurar, assim, em sua cidade
natal e também em toda a Itália que Paganini havia assassinado sua esposa e mais
tarde uma amante, a qual, não obstante sua paixão, não achou inconveniente em
sacrificar com suas próprias mãos para lograr suas diabólicas ambições. Com o
conhecimento prévio que efetivamente tinha, acerca de diferentes artes
necromântícas, tinha conseguido logo aprisionar na alma de seu violino de Cremona
as almas amantes de suas duas vítimas.
Os íntimos de Ernesto T. W. Hoffmann, o admirável autor de "O Mestre Martin",
"O Tanoeiro de Nuremberg ", "O Elixir Diabólico" e outras narrações místicas e
arrepiantes, asseguram que o Conselheiro Crespel de "O Violino de Cremona" fora
baseado no lendário caso de Paganini, pois, segundo todos sabem, o conto
fantástico narra como Crespel, o violinista, havia encerrado em seu violino a alma de
uma diva famosa, a quem tinha amado com delírio, incorporando ainda a seu
instrumento a alma pura de Antônia, sua própria filha.
Uma nação, enfim, como a Itália que tinha tido entre seus antepassados as
famosas famílias necromânticas dos Bórgias e Médicis, podia bem fomentar lendas
como aquela, máxime quando certo período da juventude de Paganiní aparece, com
efeito, envolto em mistério impenetrável, o que, juntamente com aquela
extraordinária facilidade com a qual tirava os mais extraterrenos sons de seu
instrumento, inclusive o da voz humana, bem puderam dar pábulo a tamanha lenda
terrorífica.
III
Até os dias de nosso conto, Franz Stênio não havia ouvido falar de Paganini. Em
tais tempos, precursores do vapor e da eletricidade, a Imprensa quase não existia e
era mais curto o voo da fama.
O rapaz, devorado pela inveja, jurou competir com o mago genovês e até
superá-lo se pudesse. Sim, ou conseguiria o atrevido jovem ser o mais famoso de
83
todos os violinistas de sua época, ou faria em pedaços seu indócil instrumento! O
velho Klaus aplaudia com toda a sua alma tão heroica determinação.
Esfregando as mãos, com mostras do mais louco contentamento, Samuel Klaus
saltava alegremente sobre sua perna coxa, como um sátiro estropiado, lisonjeando e
adulando seu discípulo predileto, como se cumprisse o sagrado dever de consagrar
um herói.
Franz era capaz de sofrer tudo, menos o fracasso.
Era indiscutível que já tocava como um mestre; porém, os críticos severos
tinham lhe afirmado que necessitava uns tantos anos mais de trabalho esforçado,
antes que pudesse aspirar ao dom de arrebatar seu auditório. Isto ocorreu depois de
três anos da chegada a Paris do discípulo e do mestre. Por fim, depois de um estudo
desesperado, durante mais de dois anos, nos quais pode-se dizer que Franz não fez
outra coisa, o artista Sleyer já lhe tinha preparado a primeira audição no Teatro da
Ópera, ante o público mais exigente do mundo. Mas, golpe fatal assestado contra as
floridas ilusões do artista! A apresentação de Paganini então encarregou de dar por
findos tão dourados sonhos! Tinha que esperar, e não pouco, ante a refulgente
aparição daquele astro único!...
A princípio, o invejoso Franz contentou-se em sorrir ante o cego entusiasmo, os
hinos de elogio cantados em louvor do italiano e o assombro, quase supersticioso,
com que, em qualquer lugar, ouvia pronunciar o odioso nome, porém bem cedo este
chegou a ser, para os corações de ambos, um ferro candente que os abrasava.
Ultimamente, só o nome de seu rival, cujos êxitos eram, cada dia, mais estupendos,
quase lhes produzia acessos de loucura.
Concluiu a primeira série de concertos sem que nem o velho, nem o jovem
houvessem podido ouvir Paganini e julgá-lo por si próprios. Eram tão exorbitantes os
preços, mesmo os dos lugares mais inferiores e tão pequena a esperança de que
aquele grandissíssimo avaro se mostrasse generoso para com um humilde e
desconhecido irmão da Arte, que tiveram de resignar-se a esperar que a sorte lhes
proporcionasse um meio, como tantos outros que já lhes havia dado. Mas, chegou
um dia em que lhes foi impossível aguentar mais e, empenhando seus relógios,
compraram dois modestos lugares para o concerto.
Como descrever as emoções daquela noite, ao mesmo tempo feliz e fatal? O
auditório estava mais enlouquecido que nunca: os homens rugiam e choravam, as
senhoras guinchavam histéricas, desmaiando, enquanto KIaus e Stênio, mais pálidos
que espectros, mordiam os lábios em silêncio. Ao brotar a primeira nota do arco
mágico de Paganini, ambos sentiram um calafrio sobrenatural, como se a gelada mão
da morte os houvesse tocado o coração. Sua tortura era violenta, sobre-humana, ao
mesmo tempo que indescritível sua emoção artística... Acabada a função, à meia-
noite, e, enquanto os delegados selecionados, das Sociedades Filarmônicas e do
Conservatório, desatrelavam os cavalos do coche do colosso e o arrastavam em
triunfo até sua casa, os dois infelizes alemães, cambaleando, como ébrios, e sem dizer
palavra, tristes e desesperados, retornavam a seu tugúrio, ocupando seus
costumeiros lugares, junto ao fogo, até que Franz, pálido como a própria morte,
84
rompeu o triste silêncio e disse:
- Samuel, Samuel, já não nos resta mais salvação senão morrer! Estás me
ouvindo? Nada somos, nada valemos; éramos dois infelizes iludidos ao crer que
alguém pudesse chegar a rivalizar com ele, com...
O nome odioso e impronunciável do mago atravessava-se-lhe na garganta. Cheio
de raiva, impotente, espojou-se pelo chão, desesperado.
O apergaminhado semblante de Mestre Samuel tornou-se primeiro lívido,
congestionando-se depois; seus pequenos olhos cinzentos despendiam uma singular
fosforescência. Inclinando-se ao ouvido de seu discípulo, disse-lhe com voz
entrecortada e cavernosa:
- "Nein, nein"! Tu te enganas, meu amado Franz, tu te enganas! Ensinei-te da
divina arte quanto um simples mortal, cristão, velho, pode ensinar a outro mortal.
Tenho eu culpa de que estes condenados italianos apelem aos recursos diabólicos da
Magia Negra, ensinados por Satanás em pessoa, para poder triunfar sem réplica no
mundo da arte?
Franz, ao ouvir aquilo, olhou seu mestre de um modo sinistro, deitando fogo
pelos olhos febris. Aquele olhar era todo um poema de desespero, que parecia dizer:
- Se assim fosse, eu não teria, tampouco, inconveniente algum em vender-me de
corpo e alma ao mesmíssimo diabo!
Mas nada disseram seus lábios contraídos. Pelo contrário, desviando o olhar de
seu mestre, o jovem pôs-se a contemplar, como um idiota, o fogo mortiço e começou
a sonhar... Sonhava, sim, que voltavam, como antes, seus incoerentes anelos; suas
ânsias, tornadas como realidade em seus anos de juventude, quando falava com os
gnomos, bruxas e fadas da selva, inspirando a seu instrumento as mais extra-
humanas melodias. As sinistras sombras de Tântalo e Sísifo, ressuscitando como
antigamente nas peregrinações boêmias do jovem, pareciam dizer-lhe com inaudita
perversidade:
- Que te podem importar, tonto os horrores de um inferno, do qual não crês? E,
ainda, na suposição de que existisse, que outro lugar pode ser senão o grandioso
lugar descrito com cores épicas, pelos clássicos gregos, não o dos imbecis fanáticos
modernos - quer dizer, uma vasta região cheia de sombras conscientes entre as quais
poderias, acaso, ser premiado como um segundo Orfeu?
Franz, indubitavelmente, enlouquecia por momentos.
Seus olhos injetados de sangue, olhavam seu mestre de um modo
excessivamente singular. Ao ver-se surpreendido, logo iludia o bondoso olhar do
velho. Samuel compreendia, com efeito, o estado mental de seu discípulo, e fez
quanto podia para tirá-lo desse estado, porém foi em vão.
- Franz, filho meu - dizia-lhe - asseguro-te, sim, que a funesta arte desse italiano
não é natural não nem devido ao estudo, nem ao gênio, nem adquirido, repito, pelas
vias ordinárias que os demais mortais seguem. Deixa de olhar-me assim, desse modo
tão inquietante, porque o que te digo já não é segredo para ninguém. Escuta e
compreenderás...
E, fazendo um esforço como para afastar uma sombra de medo, continuou:
85
- Sabes bem o que se murmurava acerca da morte de Tartini e da "Dança das
Bruxas"? que morreu num sábado, a altas horas da noite, estrangulado por seu
próprio demônio familiar que antes lhe dera o segredo de dotar seu violino da voz
humana, encerrando na alma do Instrumento a alma de uma infeliz donzela a quem,
com efeito, assassinara. Pois saiba mais: Paganini fez outra coisa, pior entretanto;
para conseguir o mesmo para seu instrumento e fazer com que pudesse rir, chorar,
gritar, blasfemar ou orar - tudo ao mesmo tempo. - com as mais patéticas entonações
humanas, assassinou não só sua mulher e sua amante, mas também o amigo mais
íntimo que o estimava com delírio fazendo com os intestinos deste (retorcidos por ele
próprio) as cordas para seu violino. Daí o segredo de seu gênio mágico e dessas
sucessões de melodias inauditas, com as quais, diariamente, enlouquece seu público.
Estas coisas, tu não podes consegui-las nunca, a menos que...
O ancião não pôde concluir a frase. Viu algo, então, no olhar diabólico do
enlouquecido discípulo, que o deixou petrificado de espanto e o fez cobrir o rosto
com as mãos, para não tornar a vê-lo, Franz tinha um ricto imponente, satânico! Seus
olhos de hiena, sua palidez cadavérica, diziam tudo...
Com voz cavernosa, exclamou com dificuldade, por fim:
- Mas, falas seriamente?
- Que dúvida há, desde o momento em que empenho minha palavra de ajudar-te
custe o que custar? respondeu Samuel.
- Quer dizer que - continuou o terrível jovem - crês firmemente que, se eu
conseguisse contar com os meios de arranjar também intestinos humanos, poderia
igualar Paganini e ainda superá-lo?...
O ancião descobriu o rosto e, como quem já tomou uma resolução heroica,
acrescentou de modo sinistro:
- Os simples intestinos humanos não bastam por si só para conseguir nosso
intento, mas têm que haver sido arrancados de alguém a quem se haja querido com
afeto desinteressado e santo. Tartini dotou seu violino com a alma de uma virgem
que o amava e que morreu por sua causa, ao ver que seu amor pelo grande músico
não era correspondido. Aquele verdadeiro diabo humano recolheu em uma redoma o
derradeiro alento da donzela, e logo o transferiu ao seu violino. No que tange a
Paganini, convém acrescentar que o amigo, por ele assassinado, o havia sido com seu
consentimento, em meio da mais assombrosa das renúncias.
- Oh! divino poder da voz humana, não igualado por nenhum outro poder do
mundo! continuou o velho. Que magia há na Terra que se possa igualar à sua? Eu
haveria te ensinado também este magno e último segredo, se não fosse porque isso
equivale a arrojar-se para sempre nas garras daquele cujo nome não se pode
pronunciar de noite... - acrescentou o ancião, voltando às superstições de sua
juventude.
Franz, em lugar de responder, levantou-se de seu assento, com uma
tranquilidade que dava frio; apanhou seu violino e, com um repuxão selvagem,
arrancou-lhe as cordas e atirou-as ao fogo. Elas, ao queimarem-se, pareciam silvar e
retorcer-se, como serpentes, nas brasas. Samuel deu um grito horrorizado.
86
- Por todas as bruxas da Tessália e pelas negras artes de Circe, a perversa maga!
Por Plutão e todas as suas infernais fúrias! Juro-te, oh! meu santo mestre Samuel!
que não tornarei a pegar esse violino nas mãos até que lhe coloque cordas humanas!
E, espumando de raiva, caiu ao solo sem sentidos O pobre mestre levantou-o
com ternuras de mãe; depositou-o suavemente no leito e saiu em busca de um
médico, alarmadíssimo ...
IV
Franz Stênio lutou varies dias entre a vida e a morte. O médico diagnosticou uma
febre cerebral da qual tudo se podia temer. Jazia o jovem em um quase contínuo
delírio e Klaus, que cuidava dele noite e dia com verdadeira solicitude paternal,
estava horrorizado de sua própria obra. O velho professor, não obstante os anos que
carregava, tratando seu discípulo, não havia compreendido até então toda a natural
brutalidade daquela alma selvagem, supersticiosa e impassível, cuja vida inteira havia
se refugiado tão somente na paixão pela música, alma que unicamente podia se
alimentar do aplauso, alma terrena, inumana; alma genuína de artista, porém com a
parte divina absolutamente ausente daquele filho das musas, todo imaginação e
poesia cerebral, mas sem coração, nem piedade.
Mais de uma vez, ao acompanhar o fio, difícil de seguir, daquela delirante
fantasia, o bom ancião acreditava-se transportado, por vez primeira, a uma região
inexplorada, absurda, de loucura, como se aquela natureza psíquica, encerrada no
débil corpo do enfermo, não fosse desta Terra, mas de algum outro planeta informe
ou incompleto. O terror ante tudo isso também o fizera enfermo e até perguntou se
valeria a pena salvar a vida daquela criatura infernal, ou deixá-la morrer
piedosamente antes de recobrar o uso dos sentidos.
Não obstante, amava demasiado "seu filho" para fazê-lo, pelo que, no mesmo
instante, sua mente afastou esta última ideia. Franz tinha enfeitiçado a alma
essencialmente musical do mestre e não parecia senão que a vida dos dois achava-se
ligada por um vínculo indestrutível ao mesmo Fado. Semelhante convicção, adquirida
num vivo raio de luz espiritual, à cabeceira do enfermo, decidiu-o por fim, como se
fosse uma revelação, a salvar o rapaz, ainda que fosse à custa de sua gasta e inútil
vida.
Era aquele o sétimo dia da enfermidade. A crise da manhã foi a mais terrível de
quantas haviam acometido o jovem até então. Este estava há vinte e quatro horas
sem cessar de delirar, com os olhos fechados, descrevendo com macabra
minuciosidade, em seus mínimos detalhes, espectros espantosos; sombras sinistras
de crimes flutuavam em fila interminável naquele recinto, fila cujos personagens
eram especificamente nomeados e designados pelo enfermo, como se se tratasse de
antigos conhecidos. Acreditava ser um novo Sísifo, amarrado ao penhasco do Cáucaso
com os quatro fragmentos de intestino, transformados em outras tantas cordas de
violino... Um rio Stix, não de negras águas, mas de sangue vermelho, corria a seus pés
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de condenado eterno e acrescentava enlouquecido:
- Desejas, oh! infeliz ancião!, saber como se chama a. rocha de meu Cáucaso?
Pois chama-se Samuel Klaus, aquele pobre velho que me ensinou a tocar violino!
- Oh! sim, sou eu, somente eu, a causa de tua desgraça meu filho! - respondia ele
chorando e pegando-lhe as mãos com desespero. Eu mesmo, ao tratar de consolar-te,
matei-te imprudentemente, pois feri de morte a tua imaginação, ao informar-te
acerca das negras artes de Paganini!
- Ha! Ha! Ha ! replicava o enfermo com horrível gargalhada satânica. Pobre velho
caduco, que é que me dizes? Tua carne é inconsistente! Eu a cortaria assim!... Tu não
vales nada e teu intestino só pareceria bem se estendido sobre um bom violino de
Cremona, e, posta nele, a tua própria alma!
Klaus sentiu um calafrio mortal, porém guardou silêncio e, inclinando-se sobre a testa
do jovem, abrasada pela febre, nela depositou um grande beijo... saindo por uns instantes
do quarto, porque sentia que o desespero afogava-o. Ao voltar dali a pouco, o delírio havia
tomado outro curso. Franz cantava, tratando de imitar as notas de seu violino, com a
mesma satisfação selvagem que teria, se já estivessem estendidas neste, à guisa de cordas,
os intestinos do mestre.
À tarde, o delírio revestiu-se de uma forma impossível de descrever, ígneos espíritos
punham na fogueira seu queridíssimo instrumento. Mãos esqueléticas, mãos que eram as
do jovem, brotando chispas e chamas por todos os dedos, faziam sinais ao velho para que
se aproximasse, como se fosse abrir-lhe um corte com absoluta rapidez, para dissecá-lo
ferozmente, a ele, a Samuel Klaus, o mestre, "o único homem que, por querer-lhe terna e
desinteressadamente, era o único também cujos intestinos podiam ser-lhe de alguma
utilidade no mundo!"
No outro dia, como por encanto, a febre cessou e dois dias depois, Stênio pôde deixar
o leito, sem conservar recordações de sua enfermidade e sem suspeitar que, em seus
delírios, havia deixado Klaus ler no fundo de seus mais secretos pensamentos... O único
resultado fatal da enfermidade foi que, firme o jovem em sua promessa ao arrancar as
cordas antigas de seu violino e necessitando sua indomável paixão de semelhante válvula,
enterrou-se no estudo da Alquimia, da Quiromancia e demais artes ocultas, com tanta ou
maior paixão do que a que antes sentira pela música.
Passaram-se semanas, meses e nem o mestre, nem o discípulo mencionaram sequer
Paganini. O violino, sem cordas e coberto de pó e teias de aranha, oscilava em seu lugar,
esquecido e mudo, em meio da profunda melancolia que se havia apoderado de ambos que
apenas trocavam palavras. Dir-se-ia que o violino não era senão um cadáver que a
fatalidade havia interposto entre os dois. Sarcástico e sombrio, o jovem evitava cuidadosa-
mente toda a conversação sobre música.
Para sondar um tanto a alma do jovem e saber o que se passava nela, certo dia, o
ancião tirou da caixa seu esquecido violino e se pôs a tocar não sei que tarantela. Às
primeiras notas, Franz experimentou um estremeção nervoso, semelhante a uma
chicotada, mas nada disse. Os olhos se lhe saltaram das órbitas e ele fugiu, por fim, como
um louco, vagando sem rumo pelas ruas de Paris, durante muitas horas, enquanto o bom
Klaus arrojou seu instrumento para um lado e encerrou-se em sua alcova até o dia seguinte.
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Como se vê, aquilo não podia continuar assim. Uma noite em que o jovem Stênio
estava, quiçá, mais sombrio e imponente que nunca, o velho mestre levantou-se
repentinamente de sua cadeira e, dirigindo-se com resolução ao seu discípulo amado, deu
um grande beijo em sua testa, dizendo-lhe afetuosamente:
- Franz querido! isto, assim, não pode continuar.
Não crês que é chegado o tempo de pôr fim à nossa violenta situação?
Franz despertou sobressaltado de seu letargo habitual respondendo como em sonho:
- Certo! já é mais que tempo de pôr-lhe fim.
Ambos foram dormir sem mais dizer palavra.
No dia seguinte, Franz não viu o ancião no seu lugar de costume. Vestiu-se e passou à
sala de jantar que separava as alcovas. Nem o fogo havia sido aceso, aquele dia, como era
hábito de Samuel; não se via sinal algum das ocupações usuais do mestre. Franz,
estranhando tudo aquilo, sentou-se em seu lugar de sempre ao lado da lareira apagada,
caindo em sua eterna obsessão, da qual saiu ao estender as mãos para cruzá-las atrás da
cabeça; chocaram-se elas com algo estranho que estava na estante, por detrás dele e caiu
ao solo com estrépito... Era a caixa do violino do pobre Klaus que caiu e rodou até os pés de
seu discípulo esvaziando de seu conteúdo o próprio violino, cujas cordas ao esbarrarem
contra a lareira produziram algo parecido com um gemido lastimoso. O efeito que aquilo
produziu, no jovem, foi mágico.
- Samuel, Samuel! gritou, sem ter resposta. Que acontece? acrescentou,
dirigindo-se ansiosamente até a alcova deste.
Mas, nesse momento, retrocedeu espantado ante o eco de sua própria voz, que
não recebia resposta alguma. O aposento estava às escuras e, ao abri-lo, viu que
Samuel Klaus estava sobre o leito, rígido e frio... Jazia morto!
O choque foi terrível. A louca ambição do artista fanático quase não deu lugar ao
primeiro impulso de afeto para com aquele amado morto, a quem tanto devia... ia,
pois, imediatamente, trabalhar, como era de temer-se, quando sua vista, perturbada,
fixou-se em um escrito a ele dirigido e que dizia:
Duas ardentes lágrimas lutaram por brotar dos olhos do enlouquecido Stênio,
mas evaporaram-se quase antes de surgir, enquanto que os olhos, com fulgores
demoníacos, nascidos de seu orgulho e de uma ambição sem limites, fixaram-se com
prazer no rígido cadáver. A pena resiste a escrever o que ali se passou mais tarde,
uma vez que se cumpriram os trâmites da lei com o suicida, porque convém advertir
que o abnegado Samuel Klaus havia previsto tudo, para assegurar a impunidade de
seu discípulo, escrevendo uma carta à Justiça para que ninguém fosse culpado de sua
morte.
Depois de um quase simulacro de autópsia, por parte das autoridades judiciárias,
ali ficou o cadáver do pobre Klaus, à completa disposição de seu herdeiro...
Nem bem haviam transcorrido quinze dias, após a desgraça, e já estava o violino
de Franz tirado de seu lugar, limpo e com suas quatro flamantes cordas novas. Seu
dono, o impassível Franz Stênio não se atrevia nem a olhá-las. Quis tocar, porém o
próprio arco parecia tremer em suas mãos, como o punhal nas de um assassino
novato. Resolveu, então não tocar até o memorável dia em que houvesse de
competir com o odiado Paganiní e até superá-lo, sem dúvida. Por aquele tempo, o
estupendo artista já não se encontrava em Paris, mas percorria em triunfo as cidades
flamengas da Bélgica.
V
Poucos dias depois do acima narrado, achava-se o maestro Paganini no refeitório
do seu hotel, de regresso de um concerto noturno, rodeado de seus constantes
admiradores, quando se acercou dele um estranho jovem, de olhar erradio e selvático,
que lhe entregou um cartão, com umas tantas linhas a lápis.
Paganini lançou sobre o intruso um daqueles seus olhares mágicos que poucos
homens podiam suportar cara a cara; porém, encontrou-se, como vulgarmente se diz
com a forma de seu sapato, posto que o jovem, sem baixar o olhar, sustentou-o como
de potência a potência. Saudou-o, então, friamente e disse-lhe com toda a secura:
- Estou à tua completa disposição, cavalheiro.
Fixa a noite e far-se-á como desejares.
No dia seguinte, a cidade inteira soube estupefata que se preparava, para a noite
imediata, um desafio singular. O estranho era o seguinte cartaz, fixado em todas as
esquinas:
"Na noite de..., no Grande Teatro da Ópera, estreará perante o respeitável
público o jovem artista alemão Franz Stênio que veio "ex-professo" a esta cidade, com
90
o único objetivo de medir seus dotes musicais, como violinista, com o maravilhoso
maestro Paganini, competindo, com o artista famoso, na interpretação de suas mais
difíceis composições. Nobremente aceito o repto pelo mestre sem rival, Franz Stênio
executará, competindo com ele, o capricho fantástico que leva o título de "Dança das
Bruxas".
O efeito daquela notícia não pôde ser mais delirante, coisa bem prevista pelo
avaro Paganini que, nunca perdendo de vista seus negócios, encarava-os tanto, ou
mais, que a sua própria arte. Havia, assim, dobrado o preço dos lugares, naquela
memorável noite, não obstante o que, o grande teatro encheu-se completamente.
Chegado o dia do certame, não se falava de outra coisa na cidade e nas
vizinhanças. O sono havia fugido dos olhos de Stênio, que tinha passado toda a noite
anterior em seu aposento, mais inquieto que a fera em seu covil caindo em sua cama,
ao amanhecer, esgotado física e moralmente, num estado comatoso, que não parecia
senão o prólogo de sua morte.
Então teve este macabro pesadelo, que mais parecia realidade do que sonho:
O violino estava sobre a mesa próxima, encerrado em sua caixa, à chave, a qual o
jovem nunca abandonava, desde o dia em que lhe pôs, impávido, as consabidas
cordas, as quais não havia roçado, uma só vez, com seu arco. Desde aquele famoso dia
havia se exercitado em outro instrumento.
Súbito, o jovem adormecido acreditou ver, completamente desperto, a tampa da
caixa levantar-se por si, deixando aparecer o cadáver do velho Klaus, com seus
fosforescentes olhos abertos, olhando-o súplices, enquanto que a voz do próprio
Klaus, cavernosa, ao mesmo tempo que difusa, dizia-lhe:
- Franz, filho querido, sou muito desgraçado nesta nova vida de além-túmulo,
porque não posso separar-me de ... elas, das cordas!
Estas, como respondendo telepaticamente à angustia de seu velho dono,
pareceram soar, debilmente, como um gemido...
Aquilo deixou Franz transido de espanto: seus cabelos eriçavam-se e seu sangue
se lhe gelou nas veias.
Isto não é mais que um sonho, um simples sonho! repetia maquinalmente, para,
em vão, criar ânimo.
- Sim, fiz todo o possível, filhinho, todo o possível para desprender-me destas
malditas cordas; mas, tudo inútil. Poderias ajudar-me, tu que ainda estás vivo?
Os sons foram se tornando mais e mais agudos, até tornarem-se fortes e
estridentes, enquanto que, dentro da caixa, um arranhar estranho, como de ratos, um
zumbir como de um enxame de abelhas, vagava angustioso e horrível.
Aqueles ruídos eram bem familiares ao mísero Franz, pois que os ouvira, amiúde,
desde a tarde em que havia operado os macabros despojos, para colocá-los como
pedestal de sua louca ambição, porém até então tinha logrado persuadir-se, mais ou
menos, de que se tratava de uma alucinação.
Aquilo era, sem embargo, bem real, dolorosamente real. Quis falar, pedir socorro,
fugir, porém, como sucede sempre, em tais casos de pesadelo, os pés permaneceram
cravados no solo e a voz expirou em sua garganta. Aqueles saltos e sacudiduras eram
91
cada vez mais angustiosos, até que chegou um momento em que soaram uns
estalidos, como algo que se rompe dentro de uma caixa. A visão de seu violino, já sem
cordas, consumia-o de desespero.
Fez então, o jovem, um supremo esforço para libertar-se do íncubo que o
obsecava, enquanto que a vozinha de sempre, suplicante, repetia:
- Faze, faze, pelo que mais amas; se não, faze por ti mesmo e ajuda-me a
desprender-me de mim...!
Franz saltou para a caixa entreaberta, como o avaro a quem tentam roubar o
tesouro, ou como a fera que disputa sua presa, no paraxismo do desespero, e rugiu
furioso, crispando as mãos:
- Diabo, monstro, ou o que sejas! Deixa em paz meu violino!
E, enquanto dizia isso, prendeu a caixa com a mão esquerda, segurando a tampa,
ao mesmo tempo que, com a direita, desenhava sobre ela, com um pedaço da
colofônia do arco, a famosa pentalfa, o signo de Salomão, com o qual, nos Contos das
"Mil e Uma Noites", o rei aprisionava, em suas redomas, hostes inteiras de jinas
rebeldes.
Um uivo de protesto ressoou no interior da caixa fechada.
- És um perverso, ingrato, meu amado Franz!
Entretanto, pelo muito que te estimo, perdoo tua insolência! Sabes bem, no
entanto, que não podes aprisionar-me. Olha!...
E, ao dizer isto, uma névoa escura surgiu de dentro da caixa fechada, estendendo-
se por todo o aposento e envolvendo em suas frias e viscosas volutas o corpo do
aterrorizado Franz, qual anéis de uma serpente, antes de estrangular sua vítima. Ao
seu contato, de insuportável angústia, o desventurado deu um grito agudo e
despertou...
- Não foi senão um sonho mau! exclamou acabrunhado o jovem, apertando
contra o coração a caixa do seu stradivarius.
Seu violino, com efeito, estava ali e, intactas, sobre seu cavalete, as preciosas
cordas mágicas, com o que recobrou logo o sangue frio de sempre. Limpou,
seguidamente com esmero o instrumento, passou resina nas cordas do arco, ajustou a
tensão das cordas, retesando-as e chegando até a ensaiar as primeiras notas de "As
Bruxas" - primeiro com medo e, logo a seguir, com corajosa resolução.
Aquelas primeiras notas da peça, ultrajantes e altivas, qual hino de combate, ao
mesmo tempo que doces e majestosas como arpejos de serafins, revelaram ao hábil
Franz uma nova e gigantesca potência de seu arco. Nos ligamentos das notas, que se
seguiam, viam-se surgir arco-íris maravilhosos, cataratas de luzes, tíbias, perfuradas,
extraterrestres... como em um supremo hino de amor, de juventude e de eterna
primavera. Aquelas harmonias, nunca ouvidas, pareciam poder fazer com que os rios
detivessem seu curso, as montanhas se trasladassem de lugar e até os poderes do
inferno inexorável se enternecessem de piedade...
Os "legati" converteram-se em singulares arpejos e terminaram por uns
desabridos "staccati", semelhantes à gargalhada de uma harpia infernal... De novo,
então, assaltaram a Franz os terrores astrais do pesadelo; reconheceu, naquela
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gargalhada, a própria voz de seu velho mestre Samuel, arrojando, acovardado, o arco.
Não se atrevendo a continuar aquela evocação musical bruxa, fechou,
cuidadosamente em sua caixa o terrível instrumento; levou-o à sala de jantar e,
vestindo-se com o maior esmero, pôs-se a esperar, o mais tranquilamente que pôde, a
hora solene de ir ao encontro marcado.
VI
O momento supremo chegou: Franz Stênio achava-se em seu posto, tranquilo e
sorridente. O teatro estava completamente cheio, tendo muita gente ficado fora,
pretendendo entrar por dinheiro ou por favor. Um rio de ouro desaguava, pois, no
bolso do avaro Paganini, já seguro de seu triunfo artístico.
Cabia ao famoso maestro começar. Quando, dono completo do público, entrou
em cena com seu stradivarius, estalou uma frenética tempestade de aplausos, que
durou largo tempo, fazendo vibrar as paredes do salão. No meio do mais religioso
silêncio, preludiou suas célebres variações de "A Bruxa", interrompidas por mal
contidos bravos! Ao acabar, de um modo prodigioso. 'houve um delírio de
entusiasmo, fazendo crer ao jovem 'Stênio que, durante muito tempo, sua vez não
chegaria 'nunca, ou que o público, acreditando ser insuperável a execução que
acabava de ouvir, não se prestaria a escutá-lo sequer. Por fim, o mestre, aborrecido
por tantos aplausos, pôde retirar-se do palco, porém não sem cruzar seu
desdenhoso olhar triunfal com o do sereno reptador, que se aprontava para o seu
trabalho.
A frieza mais glacial acolheu as primeiras notas de Stênio, sem que o presságio
de tão mal começo o desconsertasse de modo algum. Pálido, altaneiro, sereno, com
o sorriso mais desdenhoso, em seus delgados lábios, continuou, contudo, impassível
e seguro de si mesmo.
Ao avançar as notas do prelúdio, uma estranha reação operou-se no público.
Sim, a execução musical era a mesma de Paganini, disseram todos imediatamente,
porém sem dúvida era também algo mais. Não poucos chegaram a pensar que o
artista italiano jamais havia mostrado tão extraordinária originalidade, nem mesmo
em seus momentos mais sublimes. Aquelas cordas tocadas pelos grandes e
enérgicos dedos do jovem Stênio, vibravam, estremeciam sobre-humanas, como os
intestinos ainda palpitantes da vítima, sob o escalpelo de dissecador, gemendo em
estranha melodia, como o lamento angélico de uma criança moribunda. Aquelas não
eram as ressonâncias comuns de cordas, mas notas da lira de Orfeu, evocadas pelo
olhar satânico daqueles enormes olhos azuis sempre fixos nelas. Em torno daquele
novíssimo mago da arte, os sons pareciam colorir-se e tomar formas tangíveis, como
criaturas brotadas das cordas, ao conjuro do jovem artista, criaturas infernais,
informes brincalhonas, proteicas, na mais bruxa das danças macabras, enquanto que
além, no sombrio interior do palco, parecia estar representando-se, a par das
maiores lubricidades, os mais sabáticos himeneus...
O público viu-se, assim, presa, de pronto, da mais inevitável alucinação coletiva.
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Paralisados todos, impotentes para romper o perigoso encanto, permaneciam
pálidos e arquejantes, encolhidos em seus assentos, com O frio suor da morte. Todas
as delícias do ópio, todos sonhos mórbidos dos paraísos artificiais, sonhados em seus
cachimbos pelos mais perturbados fantasistas alcoranistas, com huris sedutoras, em
cujos lábios de fogo bebiam, a um tempo, a vida e a morte, estavam ali, e o público
inteiro vivia, horrorizado e agônico, o veneno daquele enlouquecedor delírio... As
senhoras guinchavam e desmaiavam, os homens rilhavam os dentes e crispavam as
mãos, com ardores de febre...
Chegou, assim, ao "finale", ao mesmo tempo anexado e temido, depois de um
verdadeiro terremoto de entusiasmo e frenesi. Uma última e radiante saudação do
jovem Stênio e ei-lo já alcançando o arco, para atacar, triunfante o "allegro" famoso.
Então, seus olhos cruzaram-se, um momento, com os de Paganini que, sentado
tranquilo no camarote do empresário, não tinha ficado atrás em aplausos, embora
seus olhinhos, negros e penetrantes como punhais, mostrassem a mais impassível
indiferença, fixos, não em Franz, mas nas misteriosas cordas do strtuliuariue. Aquilo
esteve a ponto de perturbar o jovem, mas este se refez e, deixando cair
galhardamente, o arco, deu, imediatamente as primeiras notas.
O entusiasmo do público chegou, então, a seu paroxismo, porque era já
indubitável que as mágicas vozes de mil bruxas soavam ali mesmo no recinto da
cena. Aqui, ladravam com elas cães raivosos e ululavam lobos, e tigres famélicos
urravam; lá, silvava a serpente venenosa, grasnava a gralha, rugia o leão, gemia o
vento, troava o trovão, cantava, ao mesmo tempo, por fim o rouxinol e o grilo
cricrilava... Logo o cromatismo das últimas escalas não parecia senão as
desenfreadas carreiras e voos das "malditas", em uma saturnal sem precedentes nas
noites de Walpurgís...
Porém, no mesmo momento daquela satânica apoteose de delírio, no meio de
uma das escalas cromáticas derradeiras, aconteceu uma coisa estranha, além de
toda a ponderação. Os sons haviam se feito desconexos, contraditórios, desarmônicos,
absurdos, enquanto que, do fundo da caixa sonora, surgia a voz alquebrada e
estridente do velho Samuel Klaus que, arrepiante e mortal, dizia-lhe:
- Cumpri, ou não cumpri minha promessa, Franz, filho querido? Estás, pois,
contente de mim e de meu sacrifício?
Ao diabólico aparecimento daquela voz, o encanto funesto quebrou-se,
imediatamente, e, com ele, o público, já livre da fascinação que o havia dominado até
então, prorrompeu em gargalhadas estrondosas, em vaias e assobios. Os músicos da
orquestra, pálidos ainda pelas emoções macabras anteriormente sofridas,
arrebentavam-se de rir, diante de suas estantes de música .e, levantando-se o
auditório em massa, procurou a porta, rindo-se ruidosamente, embora sem acertar
com a chave do enigma. Mas, bem pronto, teve que ficar petrificado todo aquele mar
de poltronas e camarotes, porque todos os circunstantes perceberam algo que os
gelou de espanto. As belas e juvenis feições de Stênio mudaram, envelhecendo em um
segundo; seu galhardo corpo curvou-se, no mesmo instante, como sob o peso dos
anos... Os mais sensíveis foram mais além ainda em sua vidência, uma vez que,
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surgindo do corpo de Franz algo como um vapor giratório e opalino, logo viram
formar-se uma branca nuvem que evoluiu, ao redor desta outra forma mais ampla e
ameaçadora: a do velho mestre Samuel Klaus, resmungona e grotesca, com ventre
sangrando e com os intestinos estendidos sobre a caixa do violino; enquanto que, com
frenético movimento, de um condenado eterno, Franz raspava e raspava seu arco
sobre aquelas cordas humanas, como essas figuras malditas talhadas nos capitéis
românicos da Idade Média...
O pânico foi geral; cada qual ganhou, enlouquecido, a porta externa do melhor
modo possível, aterrados com os estalos consecutivos das cordas fatídicas que se
arrancavam, com violência, do suporte do violino maldito como quatro grandes
trovões .
Os poucos que acudiram ao palco, para socorrer o desditoso artista, acharam-no
com o violino feito em pedaços e com as cordas enroladas ao pescoço, como
serpentes vingadoras que o acabavam de estrangular.
Quanto às pessoas de fora foram informadas do desgraçado fim de Franz Stênio,
sem nada deixar, nem para pagar seu enterro ou a conta do hotel; Nicolau Paganini,
embora sempre avaro, apressou-se em satisfazer a ambas e a recolher, também, até
as últimas estilhas do destroçado violino.
Por que o teria feito?
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OS "ESPÍRITOS" VAMPIROS (1)
(1). Estas páginas, e as seguintes, foram tiradas de "Ísis sem Véu", tradução
do malogrado teósofo da primeira hora, D. Francisco de Montolin y de
Togores, um dos ilustres fundadores da Sociedade Teosófica da Espanha.
Cada uma das coisas organizadas deste mundo, tanto visível, como invisível, tem
um elemento peculiar a si próprio. O peixe vive n'água; a planta consome o acido
carbônico que, ao contrário, é mortal para o animal e o homem. Alguns seres estão
organizados para viver nas camadas mais rarefeitas do ar; outros nas mais densas. A
vida, para uns, depende da luz do sol, enquanto que para outros precisa da
escuridão. Deste modo, a sábia economia da Natureza adapta sempre alguma forma
viva a cada uma das condições existentes. Estas analogias permitem inferir que, em
toda a Natureza, não existe ponto algum desabitado e que, ademais, cada coisa
vivente conta com quantas condições sejam necessárias para a sua vida.
Bem: admitindo que no universo exista uma parte invisível, a disposição
imutável da Natureza autoriza a conclusão de que semelhante parte está ocupada,
nem mais, nem menos, do que a parte visível e, desde o momento em que existem
espíritos, forçoso é aceitar a existência de uma grande diversidade dos mesmos,
dentro de seu respectivo mundo.
Dizer que todos os espíritos são iguais entre si, ou que estão adaptados a um
mesmo meio ambiente, ou, enfim, que possuem poderes idênticos, ou que
obedecem às mesmas afinidades e atrações - seria tão absurdo como pensar que
todos os animais são anfíbios, ou que todos os homens podem nutrir-se com a
mesma espécie de alimentos. Razoável é, pois, supor que os espíritos mais grosseiros
estão submersos nos mais profundos abismos da atmosfera espiritual, quer dizer, o mais
próximo de nossa Terra, enquanto que as naturezas mais puras estão muitíssimo mais
distantes do ambiente terreno... Supor o contrário e pensar que qualquer destes graus de
espíritos podem ocupar o lugar e as condições dos outros, equivaleria a esperar que, em lei
de hidráulica, dois líquidos de diferentes densidades possam mudar o grau que lhes
corresponde no aerômetro de Baumé.
Görres relata ("Mystiques" III, 63) uma conversa que teve com alguns hindus da costa
de Malabar. Tendo lhes perguntado se entre eles apresentavam-se espíritos ou aparições,
responderam: "Sim; porém, são maus espíritos. Os bons aparecem pouquíssimas vezes. Os
maus espíritos são geralmente dos suicidas e pessoas assassinadas, quer dizer, das que
morreram de modo violento, os quais revoluteiam em torno de nós e aparecem-nos, como
fantasmas, enganando às pessoas de curto alcance e tentando aos demais, de mil maneiras
diferentes, sendo a noite especialmente favorável a isso ".
Porfírio ("De Sacrificiis" capo de "O Verdadeiro Culto") apresenta-nos, sobre isto,
alguns fatos repugnantes, cuja verdade está comprovada pela experiência de todos os
96
estudantes de magia. "A alma de gente perversa - disse - tem, ainda depois da morte, certo
apego a seu corpo e afinidade para com ele, proporcionada pela violência com que sua
união se rompeu. Por isso, quando desenvolvemos certas faculdades, podemos ver muitos
espíritos adejar, possuídos de desespero, em torno de seus restos terrenos, e até procurar,
desejosos, os pútridos despojos de outros corpos e, sobretudo, o sangue recentemente
derramado, o que, por um momento, parece comunicar-lhes algumas das faculdades da
vida". Se algum espírita põe em dúvida as palavras do grande teurgo, não tem mais que
ensaiar em suas sessões de materialização os efeitos de um pouco de sangue fresco. "Os
deuses e os anjos aparecem-nos - diz Jámblico - no meio de paz e Harmonia, e os demônios
maus, agitando tudo, sem ordem, nem propósito...
Quanto às almas comuns, é muito raro podermos percebê-las" .
A alma com efeito, nasce neste mundo, abandonando o outro mundo, no qual existiu
antes de encarnar-se na Terra... Ela parece morrer, quando se separa de seu corpo no qual,
como uma frágil barca, cruzou por esta vida... Mas, esta morte não aniquila a alma,
transforma-a tão somente, ora em um ser protetor, desses que os romanos conheciam e
reverenciavam com tal nome e com o de mames, penates e lares; ora, se foi perverso, em
uma larva, um lêmur, um espírito errante, terror dos malvados... Quando, em razão de
vícios, crimes e paixões animais, um espírito desencarnado caiu na oitava esfera - o Hades
alegórico pagão ou o geena da Bíblia que é a região mais próxima de nossa Terra - pode
arrepender-se com o vislumbre de razão e de consciência que ainda conserva... Um ardente
desejo de ressarcir-se de seus sofrimentos, um fervoroso anelo de retorno, podem conduzi-
lo, novamente, para a atmosfera terrestre, onde permanecera errante e sofrendo mais ou
menos em sua triste solidão. Seus instintos induzi-lo-ão a buscar, com avidez, o contato dos
vivos...
Tais espíritos são os invisíveis, mas demasiado palpáveis vampiros magnéticos; os
demônios subjetivos tão bem conhecidos das monjas e frades contemplativos da Idade
Média e dos "bruxos", a quem tanta celebridade deu o "Martelo de Feiticeiros",
verdadeiros clarividentes sensitivos segundo suas próprias confissões. São os demônios
sanguinários de Porfirio; as larvas e emures dos antigos os abomináveis instrumentos de
sugestão que conduziram tantas desgraçadas e débeis vítimas à tortura e ao patíbulo.
Orígenes sustenta que, muitos demônios obsessores dos energúmenos do Novo
Testamento eram "espíritos" humanos... Moisés sabia, perfeitamente, quem eram esses
desgraçados e não ignorava as tremendas consequências a que estavam expostas as
pessoas que cediam a tais influências demoníacas, motivo pelo qual promulgou seus
terríveis decretos contra tais "bruxos". Jesus, em troca, cheio de justiça e de divino amor à
Humanidade, limitava-se a curá-los, em lugar de matá-los. Mais tarde, correndo os tempos,
nosso clero, o pretendido modelo de virtudes cristãs, seguiu a lei de Moisés,
prescindindo de "Aquele" a quem chamam "seu Deus Vivo" e queimou aos milhares,
os pretensos "feiticeiros"... Feiticeiros! Fatídico nome que levava emparelhada,
antigamente, a morte mais ignominiosa e que, hoje em dia, levanta, em troca, uma
tempestade de sarcasmos e de ridículo!...
A história dos sortilégios de Salem, tal como os encontramos registrados nas
obras de Cotton, Mather, Calef, Upham e outros, são um trágico capítulo da História
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da América do Norte, que jamais foi descrito de acordo com a verdade dos fatos.
No povoado de Salem, quatro ou cinco moças sentiram-se convertidas em
médiuns espontâneas, como hoje diríamos, por haverem convivido com uma índia
negra do Oeste norte-americano, que era muito hábil nas operações de magia negra,
conhecidas como Ritual de Obeah. As mencionadas moças começaram a se sentir
maltratadas por alfinetadas, beliscões e mordidas, em diferentes partes de seu
corpo, provocadas por invisíveis espectros que não as deixavam, um momento, em
repouso. A célebre "Narração de Deodat Lawson" (Londres, 1704) consigna que
aqueles espíritos obsessores das moças, maltratavam-nas, pelo conhecido método
feiticeiro do "envoutement", ou seja, das figurinhas de cera, trapos, etc.,
representando as vítimas, e sobre as quais cravavam alfinetes, davam beliscões, etc.,
o que, logo, por telepatia, sentiam as infelizes jovens". Mr. Upham conta-nos que
Abigail Hobles, uma dessas moças, reconheceu que havia feito pacto com o diabo "o
qual lhe aparecia sob a forma de um mancebo e o mandava atormentar as donzelas,
a quem conhecia, levando-lhe imagens de madeira, que mais ou menos, pareciam-se
com elas, bem como, espinhos para cravá-los em tais imagens, o que fazia ela ao pé
da letra com estas, recebendo então, as moças, dor idêntica à que experimentariam
se os próprios espinhos se lhes cravassem nas carnes".
Todos esses casos lamentáveis, fatos históricos cuja validez foi comprovada pelo
irrecusável testemunho dos Tribunais que conheceram da causa, confirmam a
doutrina de Paracelso, sendo por demais surpreendente que um sábio, tão sisudo
como Upham, haja podido acumular, nas páginas de seus livros, semelhante volume
de evidência legal, para demonstrar a intervenção, naqueles fatos, de almas ainda
ligadas à Terra e dos espíritos da Natureza, sem suspeitar a verdade ocultista que se
encontra por detrás dessas tragédias, já que, há alguns séculos, Lucrécio punha na
boca do velho Ennius estas frases de perfeito ocultismo:
“Bis duo sunt hominis: mane, caro, spiritus, umbra;
Quator ísta loci bis duo suscipiunt:
Terra tegit carnem, tumulum circumvolat umbra,
Orcus habet manés".
A respeito desta espécie de fatos, por incríveis que hoje pareçam a nosso
ceticismo, não devemos nos perguntar, imparciais, qual dos autores antigos
menciona fatos de índole tão aparentemente sobrenatural, ou melhor, qual deles não
o menciona?! Na" Odisseia" de Homero (V. 82) achamos Ulisses evocando o espírito
de seu amigo, o adivinho Tirésias, mediante a cerimônia da "festa do sangue". O
herói de Tróia desembainha sua espada, afugentando com ela os milhares de
sedentos fantasmas atraídos pelo cruento sacrifício '(não se atrevendo seu próprio
amigo Tirésias a acercar-se do fojo sangrento), enquanto Ulisses brande a arma
homicida... Ao troiano Enéas, na "Eneida" de Virgílio (Livro IV - v. 260), ao tratar de
descer ao reino das sombras, a Sibila que o guia aos seus umbrais, ordena-lhe que
desembainhe a espada e abra caminho através da compacta multidão de fugazes
sombras que, sedentas, lhe obstruem a passagem:
"Tuque invade viam, vaginaque eripe ferrum".
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Glanvil, em seu "Sadducismus Triumphatus" faz uma resenha maravilhosa da
aparição do "Tamborileiro de Tedworth" ocorrida em 1661, e na qual o scin-lecca, ou
duplo do bruxo tamborileiro, assustava-se grandemente à vista de uma espada.
Psellus, em sua obra "De Daemon", faz uma vasta narração do terrível estado em
que se viu mergulhada sua cunhada, ao ser possuída de um "daemon" elemental, e
como foi curada pelo conjurador Anaphalagis que começou ameaçando, com a
espada desembainhada, o invisível obsessor daquele corpo, até lograr desalojá-lo. Psellus
expõe logo o catecismo da demologia nestes termos (ou termos semelhantes):
"Desejais saber se os corpos invisíveis dos espíritos podem ser feridos com uma
espada ou outra arma qualquer? Pois sabei que sim, que podem ser. Um objeto duro,
arrojado contra eles, causar-lhes-á a dor correspondente, como se ainda vivessem aqui
embaixo; porque, embora seus corpos já não estejam formados das substâncias resistentes
dos nossos, nem por isso deixam de ser sensíveis, porque, nos seres dotados de
sensibilidade, não são unicamente seus nervos que têm a faculdade de sentir, mas também
a tem o espírito que reside neles... Sem auxílio de organismo físico algum, o espírito vê,
ouve e sente qualquer contato... Se o dividirdes em dois, sentireis a mesma dor que
experimentaria qualquer homem vivo, porque seu corpo atual não deixa de ser matéria,
embora de natureza tão sutil que geralmente, é invisível aos nossos olhos".
...Sem embargo, há uma coisa que distingue o corpo do vivo, do corpo do morto:
quando se secciona os membros de uma pessoa viva, não se pode reunir, novamente, as
duas partes facilmente, enquanto que, o tênue corpo etéreo de um demônio reintegra-se
imediatamente depois de seccionado por completo, da mesma maneira que a água ou o ar
se unem depois que foram atravessados por um corpo sólido qualquer. Mas, apesar disso,
cada lanho, ou ferida produzida, é causa de dores para aquele demônio, razão pela qual
todos eles temem a ponta da espada ou os demais instrumentos de defesa.
Bodin, o mais sábio demonólogo de seu século, sustenta a mesma opinião, não
repetida, de igual modo por Porfício e Jâmblico, imitando Platão e Plutarco como muito
bem o sabem todos os teurgistas, Na "Demonologia", aquele sábio conta-nos: Recordo-me
que em 1557, um demônio elemental, dos chamados relampagueantes, caiu como um raio
em casa do sapateiro Pondot e logo começou a chover pedras em toda a casa, com as quais
pude encher uma grande arca fechando em seguida, hermeticamente as janelas, o que não
impediu, sem embargo, que as pedras continuassem caindo, embora sem causar dano a
nenhum dos presentes. O magistrado Latomi veio informar-se; porém, nem bem entrou, o
espírito arrebatou-lhe o chapéu. Seis dias haviam transcorrido, quando o Conselheiro M. J.
Morgues também foi buscar-me para esclarecer tal mistério. Quando entramos na casa, já
alguém havia aconselhado ao dono da mesma que se encomendasse a Deus de todo o
coração e brandisse, com energia, por todo o recinto do aposento, sua espada
desembainhada. Desde aquele momento cessaram, como por encanto, aqueles fenômenos
que, durante uma semana, tanto os havia molestado".
Os livros de feitiçaria da Idade Média estão cheios de narrações análogas, porém, os
mais antigos filósofos não só mencionam relatos semelhantes, mas os descrevem
minuciosamente e analisam-nos.
Proclo figura em primeira linha, no caso de semelhantes maravilhas. É de
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verdadeiramente pasmar a coleção de fatos que apresenta, corroborados por testemunhas,
entre elas alguns famosos filósofos. Ao recordar muitos casos de seu tempo, nos quais
relata que a não poucos cadáveres encontrou em suas tumbas em diferentes posições,
atribui isso a serem larvas ou vampires, "como os casos - acrescenta - referidos pelos
antigos, a respeito de Aristeu, Epimênides e Hermodoro, ou como os outros cinco da
"História de Clearco" o discípulo de Aristóteles. Para acabar cita o caso de Filones. Esta filha
de Demontrator - acrescenta - casada contra a vontade com um tal Krotero morreu pouco
depois, porém, passados seis meses de sua morte voltou à vida, como disse Proclo, por
causa de seu antigo amor pelo jovem Macates, a quem visitou durante muitas noites
sucessivas, até que ela, ou melhor, o vampiro que fazia suas vezes, morreu de raiva. Seu
corpo morto, depois do segundo falecimento, foi visto por toda a cidade, na casa de seu
pai, enquanto que sua sepultura estava vazia. Semelhante caso está confirmado pelas
"epístolas de Hiparco" e pelas de Arriedo e Filipo, segundo relata Catarina Crowe, em sua
"Night-Side of Nature", pág. 335. Demócrito, em seus frequentes escritos referentes a
Hades, disserta, enfim, amplamente, sobre as possibilidades de que alguns mortos
retornem à vida.
Para fazer acentuar a timidez, frivolidade e prejuízos com que soem julgar estes
e outros mil fatos do passado, bastará folhear a obra do Dr. Figuier "História do
maravilhoso nos tempos modernos". A obra apoiada em testemunhos tão valiosos
como o do célebre Dr. Calmeil, diretor do hospital de lunáticos de Charenton, ocupa-
se, documentadamente, dos profetas de Cevennes; os camisardos, os jansenistas, o
diácono Paris e cem outras epidemias de neuroses consignadas na História dos
últimos séculos e que só, ligeiramente, podemos mencionar, máxime, tendo sido
descritos por quantos autores modernos que se ocuparam destes problemas.
Os assombrosos fenômenos dos convulsionários de Cevennes apresentaram-se
como uma verdadeira epidemia, em fins de 1700. As medidas desumanas, adotadas
pelos católicos franceses, para extirpar aquele espírito de profecia que havia
assaltado uma povoação inteira, são acontecimentos históricos sobre os quais não
temos porque insistir. O mero fato de que um punhado de homens, mulheres e
crianças, somando apenas duas mil pessoas, resistissem durante anos inteiros aos
sessenta mil soldados do rei, já é, por si só, um prodígio. Todas as maravilhas,
acontecidas àqueles, estão registrados nos processos que hoje se conservam nos
Arquivos da França. Existe entre estes o informe oficial que o feroz abade Chayla,
prior de Laval, levou a Roma, no qual se lamenta que o espírito maligno fosse tão
poderoso que não bastasse exorcismo, nem tortura inquisitorial alguma, que
conseguisse desalojá-lo dos cevenenses. Acrescenta o abade que o mesmo pôs as
mãos dessa gente sobre carvões acesos; que envolveu a vários outros em algodão
impregnado de azeite e pôs-lhes fogo, sem conseguir, em um e outro caso, que se
chamuscassem, nem que se formasse uma só bolha em sua epiderme; que foram
disparados tiros contra eles, à queima-roupa, encontrando-se, logo, achatadas as
balas entre a roupa e a pele, sem produzir-lhes o menor arranhão, etc....
"Em fins do século XVII - diz o Dr. Figuier, depois de relatar tudo isto - uma anciã
importou de Cevennes aquele espírito de profecia, que bem pronto se comunicou a
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diversos jovens de ambos os sexos, acabando o contágio por se tornar geral.
Homens, mulheres, crianças de tenra idade haviam se constituído em torrentes da
mais estranha inspiração, expressando-se, não no "patois" vulgar, mas no mais
correto francês, língua tão pouco conhecida na região, naquele tempo. Até as
crianças de peito profetizavam. Oito mil profetas - continua - espalharam-se pela
região e a metade das Faculdades de Medicina da França, entre elas a de
Montpellier, apressaram-se em estabelecer-se em Cevennes, declarando-se
maravilhadas e confundidas ao ouvir as pessoas sem cultura literária alguma,
dissertar eruditamente sobre coisas das quais jamais souberam uma palavra, e até
crianças de peito! expressavam-se com igual lucidez, durando horas e horas tais
discursos... Aquilo - acrescenta o comentador - não foi senão uma exaltação
momentânea das faculdades intelectuais, fenômenos que se podem observar em
muitas afecções do cérebro". "Exaltação momentânea, que dura muitas horas, em
cérebros de crianças de peito, falando em correto francês, antes de haverem podido
aprender uma só palavra de seu "patois"! Oh! milagre da fisiologia! Prodígio devia
ser teu nome, exclama o católico Des Mousseaux, ao comentar a obra de Figuier, na
sua "Os Costumes e Práticas dos Demônios".
Chegamos, agora, aos não menos célebres prodígios dos jansenistas, segundo o
Dr. Figuier conta-nos com grande cópia de dados históricos.
O diácono Paris era um jansenista que morreu em 1727. Imediatamente depois
de sua morte, começaram a ocorrer junto à sua tumba os mais surpreendentes
fenômenos. O cemitério regorgitava de gente desde a madrugada até a noite, e os
jesuítas (exasperados ao ver que os herejes constatavam as curas mais maravilhosas
e todo o gênero de prodígios) recorreram às autoridades, delas obtendo ordem de
que se fechasse a entrada da tumba do célebre diácono. Porém, apesar de todos os
obstáculos, as maravilhas continuaram durante uns vinte anos. O bispo Douglas, que
foi a Paris, com este exclusivo objetivo, visitou o sepulcro e pôde comprovar que os
milagres continuavam, como no primeiro dia, entre os convulsionários, coisa que,
forçosamente atribuiu-se, como sempre, ao diabo. O próprio Hume, em seus "Ensaios
Filosóficos" acrescenta: " Jamais, por certo, ter-se-ão atribuído a uma só pessoa tantos
milagres, como os que ultimamente se dão como ocorridos junto à tumba do diácono
Paris. Por qualquer coisa semelhante, viam-se enfermos que haviam sarado, surdos
que haviam ouvido e cegos que tinham recobrado a visão, pela virtude do Santo
sepulcro. Porém, o mais extraordinário do caso é que muitos dos ditos milagres
aconteceram no próprio lugar da tumba, ante juízes de indiscutível seriedade e
retidão, numa época ilustrada, fatos que nem os próprios jesuítas (apesar de serem
pessoas de ordinário instruídas, de contar com o apoio das autoridades civis e de
serem decididos inimigos das opiniões a cujo favor foram obrados os milagres) foram
capazes de negá-los, nem de refutá-los, nem de descobrir sua verdadeira causa. Tal é a
verdade que arrasta o testemunho histórico acerca de semelhantes acontecimentos ".
O Dr. Middleton, em sua "Investigação Livre", obra que escreveu acerca de tais
fenômenos, dezenove anos após haverem eles começado e quando estavam em
franca decadência, declara que a evidência de tais milagres é tão plena e indiscutível,
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pelo menos, como as das maravilhas a que se referem os apóstolos. Com efeito, os
ditos fenômenos, cuja autenticidade está provada por tantos milhares de
testemunhos, perante magistrados e a despeito do clero, então onipotente, devem ser
colocados entre os mais surpreendentes que a História registra. Carré de Montgeron,
membro do Parlamento, que se fez famoso por suas relações com os jansenistas,
enumera-os cuidadosamente nos quatro grossos volumes, dedicados ao rei, sob o
título de "La Verité des miracles operés par l'intercession de M. de Paris, demonstrée
contra l’Archevêque de Sens". Por suas irreverências para com o clero foi encerrado
na Bastilha; porém, era tal o acúmulo de testemunhos pessoais e oficiais aduzidos para
provar cada um dos casos, que a obra foi aceita.
"Uma das convulsionárias - diz Figuier - apoiada por seu dorso na ponta de uma
aguda estaca, mantinha-se dobrada em forma de arco, na maior impassibilidade. O
prazer maior que se podia dar a essa criatura era o de receber, em tal posição e sobre
o estômago, o golpe de um pedrouço de cinquenta libras, suspenso de uma roldana.
Montgeron e muitas outras testemunhas acrescentam que a moça não só não
mostrava equimoses, como pedia, gritando, que lhe golpeassem ainda com mais força.
Jeanne Maulet, outra jovem de vinte anos, apoiadas suas costas contra a parede,
recebia sobre o epigastro, centenas de golpes dados por um forçudo lavrador, com um
martelo de trinta libras, sobre um trado de ferro apoiado sobre a boca do estômago
da débil paciente. Poder-se-ia crer - acrescenta Montgeron ao relatá-lo - que o trado
deveria aprofundar-se nas entranhas desta, mas, ao contrário, ela gritava, com as
feições radiantes de felicidade: Oh! que delícia! Quanto prazer causa-me este
espancamento! Ânimo, irmão! golpeie com dupla força, se puder!...
A relação oficial de tais maravilhas, que é muito mais completa que a de Figuier,
acrescenta outros detalhes, tais como o daqueles que, serenamente, punham-se a
descrever acontecimentos distantes, logo infalivelmente comprovados; o manter-se
no ar, destes convulsionarios, mercê de uma força invisível e sem que todos os esforços
reunidos dos membros da Comissão fossem capazes de obrigá-los a baixar. Viram-se
anciãs subindo, com agilidade de gatos monteses, por muros verticais de até trinta pés
de altura.
O Dr. Calmeil, diretor do Hospital de Loucos de Charenton, deu, acerca destes e
de outros fenômenos análogos, a costumeira explicação que deles dão os médicos: "o
meteorismo ou plenitude de gases no tubo digestivo; o estado espasmódico do útero
das mulheres; o entumecimento das envolturas adiposas das capas musculares que
protegem e cobrem o abdome, etc; acrescentando que a assombrosa resistência
oferecida pelo corpo dos convulsionários era devida ao histerismo ou à epilepsia, força
que tem alguns pontos de contato com as mudanças de sensibilidade que se produzem por
medo cólera, em uma palavra: por qualquer paixão de ânimo levada ao paroxismo. Porém,
o terrível crítico católico Des Mousseaux, em sua obra citada, replica, cheio de indignação
ante esta e outras opiniões semelhantes de nossa ciência médica:
"Estaria completamente desperto, o ilustre médico quando formulou tais teorias? "Se
ele e o Dr. Figuie; quisessem manter, seriamente, suas categóricas afirmações, poderíamos
dizer-lhes: "Permitir-nos-íeis uma vez, por experiência, insultar-vos tão duramente que
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explodísseis de justa indignação contra nós, ao ouvir de nossos lábios, por exemplo, que
falseastes a ciência e ludibriastes vosso público e, aproveitando tal momento, repetíssemos
convosco as experiências de Cevennes dando-vos uma saudável massagem com estacas ou
garrotes, seguros de que outra coisa não resultariam destes terríveis golpes, dado o estado
de insensibilidade a que seguramente, vos levaria a vossa cólera?"
Inútil é acrescentar que o repto de Des Mousseaux permaneceu, para sempre, sem
resposta.
Voltemos aos feitos de vampirismo.
Verdadeiras, ou falsas, existem entre os orientais "superstições" de natureza tal como
jamais puderam sonhar um Edgar Poe ou um Hoffmann e estas crenças acham-se infiltradas
no próprio sangue das nações que lhes deram vida. Cuidadosamente expurgadas de todo o
exagero, ver-se-á que encerram uma crença universal naquelas almas astrais, inquietas e
errantes, conhecidas com os nomes de gulas ou vampiros. Um bispo armênio do século V,
chamado Yesnik, cita alguns exemplos desta espécie, no livro I, parágrafo 20 e 30, de uma
obra manuscrita que se conservava há uns trinta anos na biblioteca do mosteiro de
Etchmeadzine, na Armênia russa. Entre outras, existe uma tradição que data dos tempos do
paganismo e, segundo a qual, sempre que um herói, cuja vida seja necessária na Terra, cai
no campo de batalha, os aralez, ou sejam, os antigos deuses populares do país, os quais
possuem a faculdade de poder devolver à vida os que morreram no combate, lambem as
sangrentas feridas da vítima e sopram sobre elas até que lhes tenham comunicado uma
vida nova e vigorosa, depois do que o guerreiro se levanta; desaparecem todos os seus
ferimentos e volta a ocupar seu posto na batalha. Porém, o espírito imortal do herói voa
para muito longe, entretanto, e vive o resto de seus dias num templo abandonado e
longínquo.
Tão logo, por outro lado, como adepto, era iniciado no último e mais solene mistério
da transmissão da vida, o sétimo e temível ritual da grande operação sacerdotal, que
constitui a mais elevada teurgia, já não pertencia mais a este mundo. Sua alma já estava
livre, desde aquele momento, e os sete pecados mortais, até então sempre à espreita para
devorar seu coração, ao mesmo tempo que sua alma, libertada pela morte, cruzasse as sete
escadas e os sete portais, já não podiam molestá-lo em morte, ou em vida, porquanto havia
passado as sete provas e os doze trabalhos da hora final. O Sumo Hierofante era,
unicamente, quem sabia como levar a cabo esta solene operação de infundir seu próprio
alento vital e sua própria alma astral a um adepto escolhido por ele para sucedê-lo, e quem,
desta sorte, ficava assim dotado de uma vida dupla. (1)
(1). O cruel costume, introduzido posteriormente entre o povo, de sacrificar
vítimas humanas é uma simples cópia, pervertida, dos Mistérios Teúrgicos.
Os sacerdotes pagãos, que não pertenciam à classe dos hierofantes,
continuaram praticando, algum tempo, este horrível ritual, o qual servia
para ocultar seus verdadeiros propósitos. Porém, o Héracles grego está
representado como o adversário dos sacrifícios humanos e como o
destruidor dos homens ou monstros que os ofereciam. Bunsen demonstra
(apoiando-se no fato de que, nos mais antigos monumentos, não se nota
figura ou sinal algum que indiquem que, então, se verificassem sacrifícios
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humanos) que este costume havia sido abolido no antigo Império, no fim
do sétimo século, depois de Menés. Ademais, três mil anos antes de Jesus
Cristo, Hipócrates havia proibido, severamente os sacrifícios humanos entre
os cartagineses. Défilus ordenou que as vitimas humanas fossem
substituídas por touros. Amoris obrigou os sacerdotes a substituírem, por
figuras de cera, aquelas vítimas.
A Epístola V aos Hebreus trata dos sacrifícios de sangue. "Onde existe um testamento -
diz - necessariamente deve medir a morte do testador... Sem derramamento de sangue
não há remissão alguma..." O sangue produz fantasmas e suas emanações
proporcionam, a certos espíritos, o material necessário para formar suas aparições
transitórias. "O sangue - diz Eliphas Lévi - é a primeira encarnação do fluido
universal, a luz vital materializada. Sua produção, a mais maravilhosa de todas as
maravilhas da Natureza; vive, porque se transforma, perpetuamente, sendo o real
Proteu universal. O sangue procede de princípios nos quais. antes, não existia nada
análogo e que se converte em carne, ossos, cabelos, suor, lágrimas... A substância
universal, com seu duplo movimento, é o grande arcano do SER, o sangue é, por sua
vez, o grande arcano da vida".
"O sangue - diz o hindu Ramatsariar - contém todos os segredos da existência;
nenhum ser vivente pode existir sem ele. Beber sangue é profanar a obra do
Criador". Por isso Moisés, seguindo a tradição universal, proíbe fazê-lo.
Paracelso escreve que com os vapores do sangue, pode-se evocar qualquer
espírito que se deseje ver, posto que, como suas emanações, formar-se-á uma
aparição, um corpo visível - mas isto é perfeita feitiçaria e necromancia. Os
hierofantes de Baal produziam profundas incisões em seus corpos e, com seu
próprio sangue, produziam aparições objetivas e tangíveis. Os sequazes de
determinada seita persa, muitos dos quais encontram-se nas imediações das
instituições russas de Temerchan-Shoura e Derbent, têm seus mistérios religiosos,
durante os quais formam um grande círculo e giram em frenética dança. Estando
seus templos arruinados, os rituais têm lugar em edifícios retirados e fechados à.
vista do exterior, edifícios esses com uma grossa camada de areia por pavimento.
Todos se vestem com esvoaçantes roupas brancas e têm as cabeças descobertas e
raspadas. Armados de facas e excitados pela dança macabra, chegam logo a um grau
de excitação furiosa, começando a ferir-se, a si e aos outros ficando o pavimento
empapado de sangue. Antes que semelhante "Mistério" termine, cada homem tem
um companheiro com quem dança. Algumas vezes, os espectrais bailarinos têm
cabelos em seus crânios, os quais se diferenciam dos cabelos naturais das suas
inconscientes cabeças. Como prometemos solenemente, não divulgar os detalhes
desta terrível cerimônia, que só uma vez presenciamos, devemos abandonar este
ponto, acrescentando que, durante o tempo em que estivemos em Petrovsk do
Cáucaso, presenciamos outro mistério semelhante.
Antigamente as feitiçarias da Tessália, acrescentavam, algumas vezes, ao sangue
do célebre cordeiro negro o de um menino, para melhor evocar as sombras. Aos
sacerdotes ensinava-se a arte de evocar os espíritos dos mortos assim como os dos
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elementos, porém, sua maneira de proceder não era certamente a daquelas terríveis
feiticeiras.
Entre os yakuts da Sibéria, nos próprios confins do Lago Baikal e junto ao Rio
Vitema, existe outra tribo que pratica feitiçaria, tal como a exerciam as famosas
bruxas da Tessália. Suas crenças religiosas são uma mescla estranha de superstições
e de filosofia... Segundo elas, as almas dos mortos convertem-se em sombras
condenadas a vagar sobre a Terra, até que se verifique certa mutação, ora favorável,
ora adversa, que explicam por suposição. As sombras luminosas, ou sejam, as dos
bons, convertem-se em guardiães ou protetores daqueles a quem hajam amado na
Terra. As sombras escuras sempre procuram, ao contrário, causar danos a quantos
em vida conheceram, incitando-os ao crime e a outras más ações, assim
prejudicando, por todos os meios, os mortais... Durante os sacrifícios de sangue, que
sempre se verificam à noite, os yakuts evocam as sombras escuras, ou malvadas, para
delas saberem como hão de conter sua malignidade. O sangue lhes é necessário para
isto, porque sem seus vapores, não poderiam aquelas se fazerem visíveis e também
seriam, acreditam, mais perigosas, pois, o sangue, extrairiam das pessoas vivas, por
meio da transpiração. Quando às sombras boas ou luminosas, estas não precisam ser
evocadas assim, porque isso desagrada-lhes e porque, quando querem, podem fazer
sentir sua presença, sem necessidade de nada.
A evocação, por meio de sangue, também se pratica, embora com objetivo
diferente, em distintos pontos da Bulgária e da Moldávia, especialmente nos distritos
vizinhos dos muçulmanos. A tirania e escravidão horríveis a que têm estado sujeitos
estes desgraçados cristãos, durante séculos, fê-los mil vezes mais impressionáveis e
supersticiosos. No dia sete de maio de cada ano, os habitantes da Bulgária e Moldávía
Válaca celebram “a festa dos mortos". Com efeito, depois do sol posto, uma multidão
de homens e mulheres, cada qual levando um círio na mão, acodem aos cemitérios e
oram sobre as tumbas de seus defuntos. Esta antiga e solene cerimônia. chamada
Trizna, é uma reminiscência geral dos primitivos ritos cristãos, todavia era mais solene
enquanto durou a escravidão muçulmana... Entre os habitantes das cidades, a
cerimônia já é meramente ritual; porém, entre alguns camponeses, o rito toma
proporções de toda uma evocação teúrgica. À véspera do dia da Ascenção, as
mulheres búlgaras acendem uma porção de lâmpadas e círios; junto às tumbas,
colocam crisóis sobre tripeças e o incenso perfuma, ao redor, a atmosfera, num
grande raio. Desde que anoitece, até um pouco antes da meia-noite, e em memória
do morto, convida-se os amigos, e um certo número de mendigos, para comer,
obsequiando-os com vinho e raki, ou aguardente, distribuindo-se dinheiro aos
pobres. E, quando termina a festa, acercam-se da tumba os convidados, chamando o
defunto por seu nome, dando graças pelas bondades de que têm sido objeto. Quando
já todos, inclusive os parentes mais próximos, vão se retirando a pé, uma mulher,
geralmente a de mais idade, deixa-se ficar só com o morto, e, asseguram que
procede, então, à cerimônia de evocação. Prosternada de joelhos e depois de
ferventes súplicas ao morto, uma e mil vezes repetida, para que apareça, a mulher
extrai de si um número maior ou menor de gotas de sangue, do lado esquerdo do
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peito, e as deixa cair lentamente sobre a tumba. Isto dá forças ao invisível espírito do
morto que vaga ao redor do sepulcro, permitindo-lhe, por alguns instantes, assumir
forma visível e dar instruções adequadas à crista teurgista, ou então, abençoando-a
simplesmente e desaparecendo até o ano seguinte. Tão firmemente está arraigada
esta crença que, por motivo de uma dificuldade de família, ouvimos a uma mulher
moldávia propor a seu irmão para retardar toda a decisão acerca do assunto
debatido, até que, na noite da Ascensão, pudesse o pai resolver a dificuldade - coisa a
que o irmão acedeu, como se o pai estivesse na casa vizinha.
Que na Natureza existem segredos terríveis, pode crer quem, como nós, foi
testemunha do caso do zuachar russo, caso no qual não pôde o feiticeiro morrer, até
que conseguisse comunicar, a outro, a palavra - o que raras vezes deixam de fazê-lo,
de sua parte, os hierofantes da Magia Branca.
Os hindus acreditam, firmemente, como os sérvios e húngaros, nos vampiros. "O
fato de um espectro que reaparece para chupar o sangue humano - diz o Dr. Pierart,
famoso mesmerizador, em um sábio artigo da "Révue Spiritualiste", vol IV - não é tão
inexplicável quanto parece, e menos ainda para os espiritualistas que admitem os
fenômenos chamados de bi-corporificação ou duplicação da alma. Essas mãos
espectrais que temos apertado, esses membros materializados, que tão
palpavelmente temos visto nas sessões mediúnicas, são uma prova evidente acerca
de quantas e quantas coisas são possíveis, sob condições favoráveis, para esses
espectros do astral, evocados por elas".
Ao assim expressar-se o respeitável médico, não faz senão reproduzir a teoria
cabalística sobre os shandins, ou seja a categoria mais inferior de todos os seres
espirituais. Maiomônides conta-nos em sua obra "Abodah Sarah" que as gentes de
seu tempo viam-se obrigadas a manter íntimas relações com os seus defuntos e
descreve as festas de sangue que, em tais casos, se celebravam. Cavavam, com efeito,
no solo um buraco, no qual vertiam sangue fresco e, colocando em cima uma mesa,
evocavam os espíritos que, pressurosos, acudiam, respondendo a todas as perguntas.
Não obstante isso, Pierart, com toda a sua doutrina teurgista acerca do vampirismo,
mostra-se indignadíssimo contra a superstição do clero, ao ordenar que se
atravessasse com um espeto de pau o coração de todo o cadáver sobre o qual
houvesse recaído suspeita de vampirismo.
Enquanto a forma astral do morto não esteja completamente desprendida do
corpo, existe, com efeito, certa interligação, em virtude da qual, mediante a atração
magnética, pode-se obrigar àquela forma retornar e apossar-se novamente do corpo.
Acontece, em certas ocasiões, que a forma astral não se desprendeu deste, senão
pela metade, por assim dizer, quando o corpo é enterrado, por apresentar todas as
aparências de morte verdadeira. Em semelhantes horríveis casos, a alma astral,
aterrada, retorna violentamente ao seu invólucro de carne; então, a desditosa vítima,
ou bem acaba de morrer realmente, sob o paroxismo das atrozes angústias da
sufocação, ou bem se converte num vampiro, se durante a existência terrestre foi
grosseiramente material...
Neste segundo caso, começa para o mísero cataléptico, assim enterrado em vida,
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uma existência verdadeiramente bicorpórea, na qual o corpo que jaz aprisionado na
tumba é sustentado com o sangue ou fluidos vitais que seus corpos astrais,
fantasmagóricos, roubam, aqui e ali, aos vivos; porque é sabido que esta última forma
etérea pode ir onde queira, enquanto o laço que a mantém unida ao corpo não se
rompa, e vagar, em forma visível ou invisível, alimentando-se astuciosamente de suas
humanas vítimas. A julgar por todas as aparências, semelhante espírito logra,
seguidamente, transmitir, mediante uma disposição misteriosa e invisível (que acaso
chegue a ser explicada um dia) o produto de suas sucções fluídicas, ao corpo material
que jaz inerte no fundo da tumba, contribuindo, assim, para perpetuar, de certo
modo, aquele seu estado de catalepsia.
Bríêrre de Boismont cita alguns casos, pelo teor, completamente autênticos e
que houve por bem qualificar de "alucinações". "Uma recente investigação
demonstrou - diz um periódico francês - que, em 1871, dois cadáveres foram
submetidos ao infame tratamento da superstição popular, por instigação do clero...
Oh! que cega preocupação! Porém o Dr. Pierart, citado pelo escritor católico Des
Mousseaux, que resolutamente admite o vampirismo, exclama: - Cega superstição,
dizeis? Sim, tão cega quanto preferirdes, porém - de onde provêm tais preocupações?
Por que perpetuaram-se elas através de todas as épocas e em tantos países? Depois
da infinidade de casos de vampirismo, como se viu, devemos dizer que hoje já não
sucede tal coisa e que os casos que deles se relatam jamais tiveram sólido
fundamento? Do nada, nada se faz. Cada crença, cada costume, procede dos fatos e
causas que lhe deram origem. Só se nunca se houvesse visto aparecer, no seio das
famílias de certos países, seres revestidos da aparência comum dos mortos, indo
chupar o sangue de uma ou de várias pessoas; e se disto não tivesse resultado a
morte, por extenuação, da vitima; se ninguém jamais tivesse ido desenterrar
cadáveres no cemitério, nem jamais tivéssemos nós presenciado o fato incrível de
encontrarem-se pessoas enterradas, vários anos antes, com o corpo mole e flexível,
olhos abertos, tez rosada, com a boca e nariz cheios de sangue e vertendo sangue,
em torrentes, no ato de serem decapitadas".
Um dos mais importantes exemplos de vampirismo figura nas cartas
confidenciais do filósofo Marquês d'Argens e, na "Révue Britanique" de março de
1837, o viajante inglês Pashley descreve alguns casos de que teve notícia na Ilha de
Cândia. O Dr. Jobart, sábio belga, anticatólico e antiespírita, dá testemunho de outros
casos análogos em sua obra acerca de "Les Hauts Phenomênes de la Magie", pág. 199.
"Não quero examinar - diz o bispo de Avrauches Huel ("Huetiana" pág. 81) - se os
casos de vampirismo que se relatam diariamente são verdadeiros ou meros frutos de
um erro popular, mas o certo é que foram testemunhados por tantos autores
competentes e fidedignos, por um número tão considerável de testemunhas de vista, que
ninguém deve pronunciar-se, nesta questão, sem contar com uma grande dose de
prudência."
O bom senhor Des Mousseaux, que tanto se empenhou, recolhendo materiais
para a sua teoria demonológica, sai-nos com alguns exemplos sensacionais, para
demonstrar que todos esses casos se devem à intervenção do diabo, o qual toma as
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formas fantásticas dos mortos, para revestir-se delas e vagar pelas noites, chupando o
sangue das pessoas - explicação que a nós pareceria excelente, se não nos pudéssemos
conformar com outras melhores, sem trazer à cena tão sinistro personagem. Se, de
uma vez para sempre, queremos crer no retorno dos espíritos, temos uma multidão de
perversos sensualistas, miseráveis e criminosos de toda a espécie, principalmente
suicidas, capazes de rivalizar, em malícia, com o próprio diabo nos seus melhores dias,
já sendo bastante por si só o vermo-nos obrigados a crer no que vemos e que sabemos
ser um fato, ou seja nos espíritos, sem necessidade de acrescentar ao nosso panteon de
espectros um diabo que ninguém nunca viu.
Sem embargo, naquilo a que o vampirismo se refere, há particularidades
interessantíssimas a colher, desde o momento em que a crença em tal fenômeno
existiu desde a mais remota época, em todos os países. As nações eslavas, os gregos, os
válacos e os sérvios duvidaram mais da existência de seus inimigos - os turcos - que do
fato relativo à existência dos vampiros. Os brucolak ou vardalak, como são
denominados estes últimos, são hóspedes por demais familiares nos lares eslavos, para
que deles se duvide. Escritores do maior talento, tão íntegros quanto cheios de
perspicácia, têm se ocupado do assunto, nele crendo, como se supõe... Donde provém
esta crença máxima através dos tempos, esta identidade de detalhes e analogias nas
descrições daquele singular fenômeno que encontramos no testemunho juramentado
de povos estranhos uns aos outros (e que discrepam, sem embargo, por completo a
respeito de várias outras superstições)?
"Há - diz Dom Calmet, monge beneditino, cético, do século XIX, em seu artigo
"Apparition" (vol. 11, pág. 47 da obra citada) - dois procedimentos distintos para
destruir a crença destes pretensos espectros... O primeiro consiste em explicar os
prodígios do vampirismo por meio de meras causas físicas; o segundo em negar
completamente a verdade de tais relatos, o que consideramos a coisa mais segura e
mais prudente.
O primeiro procedimento de explicar, com efeito, o vampirismo por meio de
causas físicas, se bem que ocultas, é o adotado pela Escola de Mesmerismo de Pierart e
não são certamente os espíritas que possam ter mais direito de rechaçar o plausível
desta explicação. O segundo plano, todavia, é o adotado pelos homens de ciência e
pelos céticos. Segundo adverte Des Mousseaux, não há caminho que menos filosofia
requeira que este procedimento expedito - a negação completa daquilo que se ignora.
"Certo dia - continua Dom Calmet - começou a aparecer inopinadamente aos
habitantes de uma aldeia. perto de Kodom, o espectro de um pastor e, em
consequência do susto, ou por outra causa qualquer, todos os que o viram morreram
em menos de uma semana. Exasperados diante disso, os demais camponeses foram
em busca do cadáver do pastor e o desenterraram, cravando-o com uma grande estaca
no solo. Novamente, naquela mesma noite, apareceu seu espectro, abismando a
população num terror quase apocalíptico e matando por sufocação vários habitantes,
em vista do que as autoridades locais entregaram o corpo do pastor ao verdugo que o
queimou num campo vizinho. O cadáver - continua Des Mousseaux ao comentar o fato
- uivava como um louco, esperneando e resistindo como se estivesse vivo, arrojando
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rubras golfadas de sangue pelo ferimento da estaca, e as aparições de seu espectro não
cessaram enquanto todo o corpo não foi reduzido a cinzas.
"Em mais de uma ocasião - continua ainda Calmet - vários representantes da
justiça visitaram os lugares que, segundo rumores públicos, eram frequentados por
espectros. Os cadáveres destes foram logo exumados e sempre se observou estarem
sãos e rosados os corpos de todos os suspeitos de vampirismo. Observava-se também
que os objetos familiares das casas outrora habitadas por eles, em vida, moviam-se
estranhamente, sem que ninguém os tocasse. Por um zelo muito natural, as
autoridades negavam-se, geralmente, à cremação ou decapitação sem antes cumprir
os procedimentos legais: citavam-se, pois, testemunhas e suas declarações eram
ouvidas e atentamente meditadas. Logo passava-se ao exame dos cadáveres
desenterrados e, se apresentassem inequívocos sinais, ditos de vampirismo. eram
entregues ao verdugo.
"Porém, a dificuldade de tudo isso - termina Dom Calmet consiste em saber como
e quando esses vampiros podem abandonar suas tumbas e, logo após realizarem
proezas, tornar a entrar nelas, sem que pareça que a terra tenha sido removida na mais
ínfima porção, tendo sido vistos por testemunhas com suas vestes habituais, comendo
e vagando, enfim, de um lado para outro corno se estivessem vivos... E, se tudo isto
não é senão pura fantasia, por parte daqueles que se viram favorecidos por
semelhantes visitas - porque, indefectivelmente, encontram-se logo, em suas
respectivas sepulturas, os cadáveres de tais espectros, frescos e flexíveis, cheios de
sangue e sem oferecer em seus corpos sinais de decomposição alguma? Como
explicar que, no dia seguinte à noite em que repetidos espectros aterrorizavam, com suas
aparições, os vizinhos, seus pés encontravam-se sujos e cobertos de barro, coisa que não se
observava, de modo algum, nos demais cadáveres do mesmo cemitério? Por que, uma vez
queimados os corpos dos vampiros, nunca tornam a aparecer seus espectros e por
que, enfim, ocorreram casos semelhantes com tanta frequência nesse país, tornando
impossível extirpar dele tamanhas superstições?"
Existe, não há dúvida, em estado de semimorte, fenômeno de natureza
desconhecida e, portanto desprezado como superstição, pela Fisiologia e Psicologia
de nossa época. Em semelhante estado, o corpo está virtualmente morto e o caso
daquelas pessoas em que a matéria haja predominado sobre o espírito, sem que,
entretanto, uma perversão absoluta haja destruído "o fio de ouro" que une a alma
humana ao seu Supremo Espírito, uma vez que o corpo físico jaz abandonado a si
mesmo, a alma astral ir-se-á dele desprendendo, por meio de esforços gradativos,
separando-se completamente daquele, ao romper-se o elo derradeiro dos vínculos
corpóreos. A partir deste momento, uma polarização magnética repelirá
violentamente o homem etéreo da massa orgânica de seu corpo, já em franca
decomposição e toda a dificuldade consiste: primeiro - em que nós imaginamos que o
momento de tal separação é aquele em que o homem é declarado morto, pela
ciência, e não depois; e o segundo, na incredulidade dominante acerca da existência,
seja da alma, seja do espírito, mantida injustamente por essa mesma ciência.
Pierart trata de demonstrar, em sua obra, que são sempre perigosos os
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enterramentos prematuros, mesmo quando ofereçam sinais indubitáveis de putrefação.
"Os infelizes mortos catalépticos - diz - enterrados (por terem sido considerados
mortos) em lugares frescos e secos, onde o corpo não pode ser destruído por causas
locais seu espírito (quer dizer, seu corpo astral), revestindo-se de um corpo fluídico ou
etéreo, vê-se impelido a abandonar sua tumba e executar, a expensas dos seres
viventes, os atos peculiares de sua vida física, mui especialmente os da nutrição e
cujos elementos - graças ao misterioso laço existente entre o corpo e a alma (laço que
a ciência espiritualista um dia explicará) são transmitidos ao corpo material que jaz na
sepultura, ajudando-o, desse modo, a conservar sua mísera existência. Semelhantes
espíritos, vagando em seus corpos efêmeros têm sido vistos com frequência
afastando-se ou retornando aos cemitérios, e tem-se conhecimento de que, caindo
sobre os vivos, têm-lhes chupado o sangue, vampirizando-os. Ulteriores investigações
judiciais vieram logo demonstrar que, em consequência de tamanha monstruosidade,
sobrevinha às vítimas uma extraordinária sangria e, por causa disso, mais de uma
tinha sucumbido."
Assim, pois, segundo o teor do piedoso conselho de Dom Calmet, ou devemos
persistir em negar os fatos, ou bem se é que temos de admitir os testemunhos
humanos e legais, mui dignos de respeito, aceitar a única explicação possível dada
por Glanvil, ao dizer, no volume II, pág. 70 de seu "Sadducimus Triumphatus" que "as
almas dos defuntos encarnam-se em veículos aéreos ou etéreos, como está
plenamente comprovado por homens tão eminentes, como o Dr. More, ao evidenciar
que semelhante doutrina foi sempre a dos Santos Padres e dos mais antigos
filósofos..."
Antes de abandonar o repulsivo tema do vampirismo, e sem outra garantia que a
de havermos comunicado vários testemunhos fidedignos, queremos citar um caso a
mais, para que possa servir de exemplo.
Em princípios deste século, aconteceu, na Rússia, um dos mais horríveis casos de
vampirismo que a História registra. O governador da província de Tch... era um
homem de uns sessenta anos, de caráter ciumento, malicioso e cruel. Investido de
uma autoridade despótica, exerci-a sem contemplação alguma, levado sempre pelo
primeiro impulso de seus brutais instintos. Havia se enamorado, o governador, de
uma linda moça, filha de um oficial seu subordinado e, apesar da donzela estar
prometida a um jovem que a amava muitíssimo, o tirano obrigou o pai da moça a que
a casasse com ele e não com o jovem. Presa do maior desespero, a pobre vítima
chegou a ser a esposa do velho que, bem pronto, mostrou-se cheio de ciúmes,
chegando até a bater-lhe e encerrá-la semanas inteiras em seu domicílio, sem deixá-
la falar com ninguém, a não ser em sua presença. Por fim, o odioso governador, certo
dia, caiu doente e morreu; porém, ao sentir já próximo seu inevitável fim, fez sua
esposa jurar que não se tornaria a casar, ameaçando-a, com as mais horríveis
imprecações de que no caso de faltar a seu juramento, chegaria até a sair do sepulcro
e a mataria.
O tirano foi enterrado no cemitério da cidade, situado do outro lado do rio. Dali a
pouco, sua liberta viúva, vencendo seus escrúpulos pelo juramento que fez, deu novo
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ouvidos às instâncias de seu antigo noivo e ficaram comprometidos para casarem-se
em breve prazo.
Na própria noite da costumeira festa esponsalícia, quando todo o mundo já se
tinha retirado, alvoroçou-se toda a antiga mansão com lamentos e gritos angustiosos
de horror, que saíam do quarto da noiva. Forçaram logo as portas e viu-se, com
surpresa, que a infeliz mulher jazia desmaiada em seu leito, ao mesmo tempo que se
ouvia o ruído de uma carruagem saindo do pátio. O corpo da jovem estava cheio de
equimoses produzidas, ao que parece, por fortes beliscões e no seu pescoço via-se
como se fosse uma ligeiríssima punção, da qual brotavam gotinhas de sangue. Todos
ficaram, de pronto, pasmados de horror, quando a viúva, ao voltar a si, narrou
aterrorizada que seu falecido esposo, o governador, havia entrado, subitamente, em
seu quarto fechado, exatamente como em vida, com a diferença de apresentar em
seu semblante uma horrível palidez cadavérica e lhe havia batido e beliscado
cruelmente, depois de lhe ter lançado em rosto a sua infidelidade.
Inútil é acrescentar que ninguém deu crédito a semelhante relato, porém, na
manhã seguinte a sentinela, postada no outro extremo da ponte que cruza o rio,
contou que, momentos antes da meia-noite, uma carruagem puxada por seis cavalos
passou em grande velocidade pela ponte, em direção à cidade e sem fazer o menor
caso das vozes de "Alto!" que lhe deram.
O novo governador, que não acreditara na estória de semelhante aparição,
tomou, entretanto, a precaução de dobrar as sentinelas da outra parte da ponte,
apesar do que, o caso repetia-se, noite após noite, com desesperante regularidade.
Os soldados de guarda na barreira de portagem, declaravam unânimes que, apesar
de todos os seus cuidados e dos esforços feitos para detê-la, a carruagem fantástica
passava velozmente adiante, sem que fossem eles capazes de impedi-la. Todas as
noites também ouvia-se, no pátio da casa, o mesmo ruído prolongado e surdo do
referido coche; os vigias, juntamente com os criados e a família da viúva, ficavam
imersos, logo, num profundo sono, e todas as manhãs aparecia, enfim, a pobre
vítima, machucada, ensanguentada e desfalecida.
Não há como dizer da consternação que tal acontecimento produzia em toda a
cidade. Os médicos não conseguiam explicar aquele caso; os sacerdotes
estabeleciam-se no palácio da viúva, para nele passar a noite em oração mas, ao
avizinhar-se a hora da meia-noite, todos caíam presa de um letargo invencível. O
próprio arcebispo chegou da Capital e praticou, em pessoa, a cerimônia do
exorcismo, porém, na manhã seguinte acharam a viúva em estado mais deplorável e
prestes a morrer.
Para acalmar, enfim, a horrorizada vizinhança, o governador se viu obrigado a
adotar as mais severas medidas. Situou cinquenta cossacos em toda a extensão da
ponte, com ordem terminante de deter, a todo o transe a carruagem fantasma.
Soaram, entretanto, as doze badaladas da meia-noite e viu-se vir veloz o coche pelo
caminho do cemitério. O oficial de guarda e um sacerdote, crucifixo em punho,
plantaram-se diante da barreira de portagem, gritando ao mesmo tempo:
- Em nome de Deus e do Czar, quem vem aí?
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Ao que uma cabeça, muito conhecida de todos, apareceu à janelinha do coche e
uma voz não menos conhecida, respondeu, com energia:
- O Conselheiro Secreto do Estado e Governador C...! - e, no mesmo instante, o
sacerdote, o oficial e os cinquenta soldados foram lançados violentamente para um
lado, como sacudidos por um impulso elétrico, ao mesmo tempo que o fantástico e
luxuoso carro cruzava veloz, sem que ninguém pudesse detê-lo.
O arcebispo, então, e como último recurso, apelou para o processo sancionado
naquele tempo, ou seja de desenterrar o corpo e cravá-lo à terra, por meio de aguda
estaca de roble, que lhe atravessasse o coração - o que foi exatamente feito, com
grande pompa religiosa, na presença de todo o povo. Os narradores do maravilhoso
fato asseguraram-me que o corpo do governador achava-se, com efeito, repleto de
sangue e com as faces e os lábios vermelhos. No momento de cravar-lhe a estaca,
exalou um gemido, enquanto que um grande jorro de sangue brotou e, com ímpeto,
subiu a grande altura. O arcebispo pronunciou, logo, o exorcismo costumeiro e, desde
então, não se ouviu mais falar do vampiro, nem da carruagem fantástica.
Até que ponto as circunstâncias do caso tenham sido exageradas pela tradição,
não podemos dizer, porém nós o sabemos por uma testemunha ocular e, ainda hoje,
existem famílias na Rússia, cujos membros idosos recordam fielmente o espantoso
acontecimento.
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A RESSURREIÇÃO DOS MORTOS
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A IMAGINAÇÃO, A MAGIA E O OCULTISMO
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