Introdução
A educação brasileira, desde os anos 90, vem sofrendo mudanças nas suas
políticas cujas diretrizes e ações estão contidas em documentos como a Lei 9.394/96,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, os Parâmetros Curriculares
Nacionais e as Diretrizes Curriculares Nacionais, implantados pelo Ministério da
Educação e Cultura – MEC, para os diversos níveis e modalidades de ensino.
Nesses documentos encontramos definidas políticas como o pluralismo cultural
do ensino fundamental, a inclusiva da educação especial, a equalizadora da educação de
jovens e adultos e a diferenciada da educação escolar indígena. Políticas que
apresentam um discurso comum, o da educação de qualidade para todos e o pluralismo
de idéias, mas dicotomizam o discurso da diferença, destacando cada uma, um dado
segmento social excluído: o pobre, o negro, a mulher, o deficiente, o adulto, o indígena.
Desse modo, problematizam a exclusão social destes segmentos sociais, mas não
constroem uma unicidade de ações que conduzam a objetivos comuns.
Essas políticas são demarcadas por mudanças de paradigmas nas concepções de
educação, rompendo com modelos estabelecidos. Assim, na política inclusiva da
educação especial a inclusão vem superar a de integração e a educação diferenciada
indígena substitui a integracionista preconizada pelo Estatuto do Índio/Lei 6.001/73
(BRASIL, 1999)4.
A educação indígena, neste cenário de mudanças na política educacional
brasileira, tem como referência básica a escola indígena, concebida como “o
estabelecimento de ensino, localizado no interior das terras indígenas, voltado para o
atendimento das necessidades escolares expressas pelas comunidades indígenas”
(BRASIL, 1999, p.10).
De acordo com dados do Censo Escolar do INEP/MEC de 2006, a oferta de
educação escolar indígena cresceu significativamente nos últimos 4 anos de modo que,
se em 2002 existiam 117.171 alunos freqüentando essas escolas em cursos de educação
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Fonte: HENNING, Leoni Maria Padilha. Pesquisa, ensino e extensão no campo filosófico-educacional:
debate contemporâneo sobre a educação filosófica. Londrina: EDUEL, 2010.
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Doutora em Educação: Currículo pela PUC-SP e UNAM/UAM-México. Professora e pesquisadora do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Coordenadora do
Núcleo de Educação Popular Paulo Freire da UEPA.
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Doutora em Educação: História, Política, Sociedade pela PUC-SP. Professora e pesquisadora do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará.
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O projeto integracionista, conforme o Art. 50 do Estatuto do Índio de 1973 assevera que “a educação do
índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa
compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional, bem como do aproveitamento de
suas aptidões individuais” (BRASIL, 1999).
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infantil e do ensino médio, em 2006 esse número aumentou para 174.255 (BRASIL,
2007). O aumento desta demanda deve-se a diferentes fatores, entre os quais a
percepção dos povos indígenas acerca da educação como um direito fundamental, na
medida em que entendida como estratégica para a construção de seus projetos
societários de futuro.
Além disso, conforme informações disponibilizadas pelo Ministério da
Educação e Cultura (MEC), o Brasil reconhece a diversidade sociocultural dos povos
indígenas manifestada pela existência de mais de 220 povos que habitam centenas de
aldeias presentes em praticamente todos os estados da Federação, com destaque para a
região amazônica onde se concentra mais de 60% dessa população. Essa diversidade se
evidencia a partir dos diferenciados ambientes em que esses povos habitam (litoral,
sertão, caatinga, pantanal, floresta, cerrado) que trás como conseqüência diferentes
formas de interação com a natureza, de sobrevivência, costumes e crenças.
Um dos pontos fundamentais dessa diversidade encontra-se nas diferentes
situações sócio-lingüísticas desses povos, posto que, atualmente, são conhecidas, “180
línguas indígenas, distribuídas em 41 famílias, dois troncos lingüísticos e dez línguas
isoladas” (BRASIL, 2007, p. 1). Portanto, é nessa complexidade sociocultural e
ambiental que o debate sobre a educação indígena se coloca.
As Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Indígena estabelecem
os pressupostos para a criação, organização e funcionamento da educação escolar, tendo
como elemento fundante a diversidade cultural das comunidades indígenas. Assim,
compreendemos que somente um projeto de educação intercultural pode vir a dar
subsídios a uma educação de qualidade, seja ela indígena ou não. Para tanto, não basta
apenas, como afirma Candau (2002), constatar a existência de diferentes culturas em
uma sociedade, sendo necessário considerar a inter-relação e o diálogo entre as culturas
que constituem a multiculturalidade social deste país. Por isso, entre os grandes desafios
a serem enfrentados em direção a uma educação intercultural, é a valorização das
diferenças que ontologicamente nos constituem.
A educação escolar indígena apontada nos documentos oficiais do MEC
apresenta as seguintes características: a) estar direcionada às especificidades das
comunidades indígenas (território, população, língua, contexto cultural...); b) envolver a
participação da comunidade indígena (gestão, práticas pedagógicas e organização
escolar); c) apresentar um projeto pedagógico autônomo e com flexibilidade curricular
pautado no diálogo intercultural.
Contudo, como a educação, imersa em um conjunto de procedimentos, práticas e
conceitos orientados por uma mentalidade universalista pode vir a considerar as
complexas dimensões da diversidade cultural características da sociedade brasileira e,
em especial, das comunidades indígenas? Como construir uma escola indígena
autônoma e diferenciada? E, fundamentalmente, como a filosofia pode contribuir na
construção desse tipo de escola se ela mesma encontra-se muito pouco alicerçada em
bases interculturais? Tais questões nos remetem a outras perguntas: É possível falar em
uma filosofia indígena? Qual o lugar ocupado pelo pensamento indígena no campo
filosófico-educacional? Perguntas que nos conduzem a refletir sobre o que caracteriza a
educação escolar indígena intercultural, a contribuição da filosofia na construção dessa
educação, perpassando, também, pelo debate sobre o pensamento indígena no campo
filosófico-educacional e o ensino de filosofia em escolas indígenas.
As reflexões aqui efetivadas partem de uma investigação centrada em fontes
bibliográficas tendo como principais referências: Dussel (1994), Santos (2002), Freire
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“Saber experiencial apreendido no cotidiano social, através da oralidade” (OLIVEIRA, Ivanilde; MOTA
NETO, João, 2004, p. 61).
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ameríndia, a diferença? Viveiros de Castro (2002, p.380) responde: “os animais vêem
da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são
diferentes dos nossos”. A diferença, portanto, está no corpo. A idéia de corpo, contudo,
não se restringe a diferenças fisiológicas. Trata-se de “um conjunto de maneiras ou
modos de ser que constituem um hábitus”.
Elsje Lagrou (apud LUZ, 2002, p.36) explica que o conceito de natureza para
os Kaxinawá se aproxima da noção grega de physis segundo a qual “a natureza possui
alma, vontade e uma ordem própria, sendo a cultura apenas umas das possibilidades
dessa ordem”. O yuxin (espírito) não é entendido como relativo ao mundo sobrenatural,
mas “como uma força vital permeando todo fenômeno vivo em qualquer parte do
mundo”. Desse modo, “a natureza não está fora do humano”, ao mesmo tempo em que
“o humano está dentro da natureza”. A relação entre homem e natureza não é, portanto,
mecânica, mas orgânica, estando a divindade presente em tudo.
Tal visão de mundo instaura uma noção de filosofia ameríndia que traz
conseqüências fundamentais para a dissolução das clássicas oposições entre natureza e
cultura, entre corpo e espírito. Se o espírito permeia todo corpo vivo, isto alarga
sobremaneira a perspectiva da alteridade, em geral circunscrita ao mundo humano,
passando a incluir todos os seres nas suas mais diferentes formas de manifestação,
configurando aquilo que Eduardo Viveiros de Castro denominou de sabedoria
ecosófica. Nas suas palavras:
Os ameríndios não somente passariam ao largo do Grande Divisor
cartesiano que separou a humanidade da animalidade, como sua
concepção social do cosmo (e cósmica da sociedade) anteciparia as
lições fundamentais da ecologia, que apenas agora estamos em
condições de assimilar. Antes, ironizava-se a recusa, por parte dos
índios, de conceder os predicados da humanidade a outros homens;
agora se sublinha que eles estendem tais predicados muito além das
fronteiras da espécie, em uma demonstração de sabedoria ecosófica
que devemos emular tanto quanto permitam os limites de nosso
objetivismo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 370).
Resta saber como o respeito ao outro, corolário das filosofias indígenas, tem
estado presente sob a forma de reflexão filosófica no âmbito da educação escolar
indígena? De outro modo, qual o lugar destinado à filosofia na educação escolar
indígena?
Considera Gustavo Leyva (1995) que a filosofia tem um papel crítico, o de
concretizar a pretensão de universalidade própria da reflexão ética da modernidade,
mas, ao mesmo tempo, impedir sua instrumentalização legitimando um sistema de
dominação sobre a diferença. Neste sentido, como afirma Gramsci (1991) a Filosofia
deve demonstrar que:
todos os homens são ‘filósofos’, definindo os limites e as
características desta ‘filosofia espontânea’, peculiar a ‘todo o
mundo’, isto é, da filosofia que está contida: 1) na própria linguagem,
que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não,
simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no
senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e,
consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições,
opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que se
conhece geralmente por ‘folclore’ (GRAMSCI, 1991, p. 11).
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legítimo, válido e real. Neste sentido, compreender a sabedoria e escutar a voz dos
povos indígenas é fundamental para “problematizarmos nossas certezas, nossas
verdades, nossa forma hegemônica – mas não única, de conceber e construir a vida”
(SILVA, 2007, p. 141).
Assim, o que parece existir são, na realidade, diferentes razões a serem
reconhecidas e a possibilidade de uma filosofia intercultural pressupõe exatamente a
construção de uma razão compromissada eticamente com a dignidade do outro e seus
saberes.
Considerações Finais
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