Resumo
No século XIX o comércio de rua no Rio
de Janeiro era dominado pelas chamadas negras minas
quitandeiras. Vindas de Salvador na Bahia como escravas
ou libertas após o fracasso da rebelião malê em 1835 elas
conseguiram o respeito de africanos e crioulos, escravos e
libertos, além de comerciantes de “grosso trato” e se torna-
ram, parte da paisagem carioca retratada pelos viajantes.
Mas elas também eram um problema da ordem urbana
escravista, auiliando cativos a fugirem, criando redes de
associação coletiva e liderando movimentos de resistência
oculta que se tornaram um flagelo para os responsáveis
pelo controle social na cidade.
Palavras-chave
africanas - minas - quitandeiras - Rio de
Janeiro - escravidão urbana.
***
e Santo Elesbão, onde eles tinham funções de destaque, e forte peso numé-
rico. Assim, o trabalho de Mariza Carvalho Soares aponta a possibilidade
– mesmo que muitas vezes de forma polêmica – do estudo de uma “nação”
específica de africanos no seio da vasta população negra-escrava . Nosso
trabalho ainda mais reduz este objeto, pois pretendemos enfatizar um deter-
minado nicho ocupacional dentro dos minas, que são as negras quitandeiras
ou vendedoras ambulantes.
***
O Rio de Janeiro foi uma das regiões mais afetadas pelo tráfico
atlântico de escravos africanos, mas este comércio se dirigia majoritariamente
para a África Centro-Ocidental, dominada pelos povos bantos de região
Congo – Angola. Entretanto os estudiosos do tema em geral esquecem que
o tráfico de africanos entre as diferentes partes do Brasil também era grande,
isto muito antes do fim do comércio negreiro transatlântico terminar, em
1850. Para o Rio a rota costeira de escravos africanos mais importante era a
indica um espaço social que abre caminho para uma negociação mais com-
plexa com a sociedade envolvente.
As mulheres eram escolhidas para funções específicas: lavadeiras,
costureiras, mucambas (criadas de quarto). Mas as quitandeiras eram vis-
tas como especializadas, capazes de transitar com desenvoltura pela cidade
colonial, com sua rede complexa de becos, vielas e ruas estreitas, ir onde
o mercado consumidor fosse mais atraente, e se defender contra os perigos
que espreitavam na via pública. Por algum motivo ainda não completamente
solucionado as minas eram vistas como as mais tarimbadas para este ofício
do que qualquer outra.
Não pode ser esquecido que a ampla maioria dos proprietários era do
sexo masculino, e deve ocasionalmente agido sobre eles a sedução feminina:
as minas eram retratadas pelos viajantes estrangeiros com as mais belas das
negras, superando até as crioulas pelos seus traços finos, o que, de acordo
com o padrão vindo dos países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos,
era sinal de maior avanço “civilizacional” em relação aos “grosseiros” bantos
em geral.
Os preços das escravas minas também devem ter sido, por causa da
sua raridade (como das cativas africanas em geral) maiores do que os homens,
e isto fazia com que o senhor resistisse em coloca-las em tarefas insalubres
ou pouco rendosas.
Estas virtudes devem ter contrabalançado o medo endêmico
que os senhores cariocas passaram a sentir dos africanos vindos da Bahia
no pós 1835. Mas tudo isto não significava que as relações com senhores
não eram conflituosas. Os anúncios de fugitivos para escravas minas eram
relativamente numerosos, e eles passam uma imagem muito rica e complexa
do cotidiano particular destas africanas: Elas facilmente se ocultavam na
cidade, mas dificilmente os senhores apontam que elas rumaram para fora
do meio urbano, o que indica um padrão de fuga circunscrito a cidade,
ou algo parecido com aquilo que os historiadores do Caribe chamaram de
“petitt Maronage”:
rápidas fugas apenas para se abastecer cultural e socialmente nas casas co-
munitárias de africanos, também denominadas “casas de angu” ou “casas
de zungu”.36
Mas não pode ser esquecido que muitas destas minas eram
libertas. Da documentação da principal prisão do Rio da segunda metade
do século XIX, a Casa de Detenção, aflora uma quantidade assombrosa
de dados sobre libertas minas, de 1860 até os primórdios do século XX.
Os registros de escravas eram menores e cobrem apenas quatro anos, 1863,
1879, 1881 e 1882. No total 70 fichas de prisão de escravas minas sobre-
viveram nos registros, e apenas uma era de nação Calabar. Mina já era um
sinônimo para africano ocidental no Rio.
padrão pode indicar uma divisão da cidade entre libertas e escravas. Mas
uma coisa podemos ter certo: libertas eram mais desenvoltas, e palmilhavam
o mapa urbano com maior facilidade do que sua companheiras mantidas no
cativeiro, e o fato das suas freguesias de trabalho normalmente serem mais
distantes do centro urbano pode ser um reflexo deste fato.
Notas
*Este texto é parte de um projeto de pesquisa em andamento apoiado pelo CNPq e pela Univer-
sidade Severino Sombra, de Vassouras, estado do Rio de Janeiro.
1
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Livros de Entrada da Casa de Detenção da Corte
(LECDC) no 3969, ficha 909, 16/08/1863.
2
Jean Baptiste Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, tradução de Sérgio Miliet, São
Paulo, Livraria Martins Fontes, 1954.
3 Daniel P. Kidder. Reminiscências de viagens e permanências no Brasil (províncias do sul). Tra-
dução de Moacir N. Vasconcelos, São Paulo, Livraria Martins Editora/EDUSP, 1972.
4 Maria Lúcia David Sanson, Mário Aizen e Pedro Karp Vasquez. O Rio de Janeiro do fotógrafo
Leuzinger, Rio de Janeiro, Sextante Artes, 1998.
5 A fotografia de Ferrez que mostra as negras quitandeiras está reproduzida em Miécio Tati,
O mundo de Machado de Assis. Rio de janeiro, Sec. Municipal de Cultura, DGDI, 1995, Col.
Biblioteca Carioca, p.131, e também em Gilberto Ferrez. O Rio de Janeiro do fotógrafo Marc
Ferrez: paisagens e tipos humanos do Rio de Janeiro, 1865-1918. Rio de Janeiro, João Fortes
Eng./Ex Libris, 1984.
6 Thomas Ewbank. A vida no Brasil ou diário de uma visita ao país do cacau e das palmeiras,
Tradução de Homero Castro Jobim. Rio de Janeiro, Ed. Conquista, 1973, pg. 99.
7 F. Dabadie. A travers L’Amérique du Sud, Rio de Janeiro et environs. Les esclaves au Brésil.
Paris, Ferdinand Sartoriuns Editeur, 1859, p.51.
8 Charles Ribeyrolles. Brasil pitoresco, tradução de Gastão Penalva. Belo Horizonte-São Paulo,
Ed. Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 203.
9 Outro viajante que se surpreendeu com as minas quitandeiras no Rio foi Luiz Agassiz. Em seus
passeios com sua mulher, Elizabeth Agassiz – também naturalista como ele – pelas ruas do Rio
em 1865, ele afirmou: “É uma raça possante, e as mulheres em particular tem formas muito belas
e um porte quase nobre. Sinto sempre um grande prazer em contempla-las na rua ou no mercado,
onde se vêem em grande número, pois as empregam mais como vendedoras de frutas e legumes que
como criadas. Diz-se que há no caráter desta tribo um elemento de independência indomável, que
não permite emprega-las nas funções domésticas.” Luiz Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz. Viagem
ao Brasil. 1865-1866. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo, EDUSP, 1975 pp. 68-69.
10 Outros viajantes que mencionam as pretas minas são François Biard, Dois anos no Brasil.
Trad. De Mário Sete, São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1945, p. 43, e Robert Walsh, Notícias do
Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, 1985, p. 501-502.
11 Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 5a edição, São Paulo, Ed. Nacional, 1977. Uma
análise crítica deste estudioso e sua obra está em Mariza Corrêa. As ilusões da liberdade: a escola de
Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. São Paulo: FFLCH-USP, 1982, tese de doutorado.
12
Entre as obras de Arthur Ramos destacamos A aculturação negra no Novo Mundo, São Paulo,
Cia. Ed. Nacional,1942, O negro na civilização brasileira, Rio de Janeiro, Ed. Casa do Estudante
do Brasil, 1953, e principalmente As culturas negras no Novo Mundo, 3a edição, São Paulo, Cia.
Ed. Nacional, 1979.
13 Roger Bastide. As religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma sociologia das interpene-
trações de civilizações, 3a edição, São Paulo, Pioneira, 1989
14 Roger Bastide. As Américas negras: as civilizações africanas no Novo Mundo. São Paulo,
Difel/EDUSP, 1974.
15 Pierre Verger. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de todos
os Santos dos séculos XVIII a XIX, 3a edição, Ed. Corrupio, 1987.
16 Pierre Verger, Os libertos: sete caminhos na liberdade de escravos na Bahia no século XIX.
São Paulo, Corrupio, 1992.
17 Antônio Carreira. Notas sobre o tráfico português de escravos circunscritos à costa ocidental
africana. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1978, série investigação, 6. J. K. Fynn. Assante
and its neigbours 1700-1807. Illinos: Northwestern University Press, 1971.
18 Karasch, op. cit. “West Africa” pp. 25-28, e o capítulo 7 “Porters and Property: The Functions
of Slaves in op. cit.”. pp. 185-213.
19 Lyn Hunt. A nova história cultural. São Paulo, Comp. Das Letras, 1992.
20 Eugene Genovese, A terra prometida: o mundo que os escravos criaram, Rio de Janeiro/Bra-
sília, Paz e Terra/CNPQ, 1988. Hebert Gutman, The Black Family in Slavery and Freedom,
1750-1925, New York, Random House, 1976. Sidney Mintz & Richard Price. The Birth of
African-American Culture: na Anthropological Perspective. Boston, Beacon Press, 1992.
21 Hilary McD. Beckles. Natural Rebels: a Social History of Enslaved Black Women in Barbados.
New Brunswick: Rutgers University Press, 1989; Barbara Busch. Slave Women in Caribbean So-
ciety, 1650-1838. Bloomington: Indiana University Press, 1990; Elizabeth Fox-Genovese. Within
the Plantation Household: Black and White Women of the Old South. Chapel Hill: University of
North Carolina Press, 1988; David Barry Gaspar & Darlene Clark Hine. More than Chattel:
Black Women and Slavery in the Americas. Bloomington: Indiana University Press, 1996.
22 Luís Carlos Soares. Urban slavery in nineteenth century. Rio de Janeiro. London, University
College London, 1988; “Escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX”, Revista Brasileira
de História, V.8, n. 16, pp. 107-142, São Paulo, mar.88/ago.88. Sobre escravidão ao ganho ver
também Marilene Rosa Nogueira. O negro na rua: uma nova perspectiva da escravidão, Rio de
Janeiro, Hucitec, 1988.
23 De um total de 2.823 africanos colocados ao ganho no Rio entre 1851 e 1870 ele encontrou
pelo menos 516 (18%) de nação mina, a maior nação isolada. Soares, “Os escravos de ganho...”
p.139 tabela I.
24
Maria Odila da Silva Dias. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo,
Brasiliense, 1995, 2o ed.
25
Sônia Maria Giacomini. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher ne-
gra
no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1988. Bárbara Busch ainda tem dois artigos interessantes sobre mulhe-
res e lutas escravas no Caribe. “ ‘The family tree not cut’: Women and Resistance in Slave Family
Life in the Britisch Caribbean” in Gary Y. Okihiro. In Resistance: Studies in African, Caribbean
and Afro-American History. Boston, University of Massachusets Press, pp. 117-134. “Towards
Emancipation: Slave Womens and Resistance to Coercive Labour Regimes in the Britisch West
Indian Colonies, 1790-1838” in David Richardson. Abolition and its Aftermath: the Historical
Context, 1790-1916. Frank Cass: University of Hull, 1985, pp. 27-53.
26 Luciano Figueiredo. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher nas Minas Gerais
no século XVIII, Rio de Janeiro, J. Olympio/EDUNB, 1993. Barrocas famílias: vida familiar
em Minas Gerais no século XVIII, Rio de Janeiro, 1998, Hucitec. E seu artigo “Mulheres nas
Minas Gerais” in Mary del Priore. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto/
UNESP, 1997, pp. 141-188.
27 Cecília Moreira Soares. Mulher negra na Bahia no século XIX, Dissertação de Mestrado
em História, Salvador, UFBA, 1994. Ver também da mesma autora “As ganhadeiras: mulher e
resistência negra em Salvador no século XIX” Afro-Ásia, n. 17, 1996, pp. 57-72.
28 Eduardo Silva. Dom Obá II D’ África: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor.
São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
29 Sidney Chalhoub. Visões da liberdade. São Paulo, Comp. das Letras, 1990.
30 Flávio Gomes. Histórias de quilombolas. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional. Manolo Florentino
e José Roberto Góes, A Paz nas senzalas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997.
31 Mariza Carvalho Soares. Identidade étnica, religiosidade e escravidão: os “pretos minas” no Rio
de Janeiro (século XVIII) UFF-ICHF, História, 1997, p.278
32 VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a baía de
Todos os Santos do século XVII ao século XIX. São Paulo, Corrupio, 1988.
33 O melhor trabalho sobre o movimento de 1835 continua sendo REIS, João José. Rebeldia
escrava no Brasil: a história do levante dos malês. São Paulo, Brasiliense, 1986.
34 Sobre os minas no Rio do século XVIII ver. SOARES, Mariza Carvalho. Devotos da cor:
Identidade étnica, religiosidade e escravidão. (século XVIII) Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
2001.
35
Sobre as fontes policiais e o medo dos minas ver SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira
escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro. 1808 1850. Campinas, Edunicamp, 2001,
especialmente no capítulo V o subcapítulo intitulado “O êxodo mina”
36
Ver SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungu: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro, Prêmio
Memória Fluminense, 1o lugar, 1998.
37
Os anos levantados até agora são 1860, 1861, 1868, 1870, 1875, 1879, 1880, 1881, 1882
e 1883, sendo que até 1881 os dados são incompletos para cada ano.
Abstract
In XIX century the street trade in Rio de Janeiro was dominated by so called
Mina Coast african women greengrocers. They was slave or free and came from Salvador,
Bahia, after the failure of Malê riot in 1835. They achieved the respect of africans and
criollos slaves, freemen and great traders. They became a part of urban landscape and was
portrayed by the travelers. But they also represent a trouble for the authorities charged with
maintenance of public order. The Mina Coast african women greengrocers aided slave
scapes, leaded hidden resistence moviments, and became a thorny problem for authorities
charged with the social control in Rio de Janeiro.
Key words