RESUMO: O presente artigo pretende traçar um panorama dos protestos que tomaram o Bra-
sil nos anos de 2013 e suas persistências no ano de 2014, dando um enfoque especial ao deba-
te suscitado por tais movimentos acerca do conceito de democracia. Pretende-se analisar o
caso brasileiro em especial, mas enxergando-o como parte de um contexto internacional pro-
pício a tais tipos de mobilização social – portanto, também serão analisados de forma breve os
demais movimentos ao redor do mundo. Nesse sentido, busca-se um convite à reflexão sobre
o ideal democrático no novo tipo de movimento social surgido no século XXI. Assim, o deba-
te será orientado em torno da seguinte questão: a atual conjuntura político-social representa
uma crise definitiva dos princípios democráticos ou trata-se de um momento de ressignifica-
ção do termo, estimulado pelo conflito entre diferentes projetos de democracia?
A ditadura dura, e ainda há quem diga aos brados que ela é branda
Os corpos que somem se somam aos corpos cuja soma nem se sabe
Quem tenta gritar corre o risco de a luta terminar em luto
1
Conceito utilizado por March Bloch em A sociedade feudal (1939) e recuperado por Arno Mayer em A força da
tradição (1990). Por feudalidade, aqui, entende-se o conjunto de características que remetem à ordem feudal, não
necessariamente dependentes de sua existência em si. Diferencia-se, portanto, da ideia de feudalismo, o movi-
mento doutrinal, as ideias que levam à ação, o sistema constituído e solidificado.
2
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-
neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 1.
intervenção do Estado seriam, para os economistas de Mont Pèlerin, caros à liberdade do in-
divíduo e à vitalidade da concorrência, essencial para a prosperidade social como um todo.
Mas, e a democracia? Para Hayek, um dos pais do neoliberalismo, “se quisermos re-
sultados devemos libertar as autoridades responsáveis dos grilhões representados pelas nor-
mas democráticas”3. Portanto, para Hayek, o ideal democrático seria apenas um meio de ga-
rantir a liberdade individual e o livre mercado. Como conclui Perry Anderson,
3
HAYEK, Friedrich Von. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1987, p. 81.
4
ANDERSON, Perry. Op cit. p. 10.
5
ALVES, Giovanni. Ocupar Wall Street... e depois? In: HARVEY, D.; TELES, E.; SADER, E.; et al. Ocuppy:
movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
A crise dos subprimes6, iniciada em 2008, trouxe um colapso econômico significativo
nas economias neoliberais. Embora já prevista por economistas influentes nos Estados Unidos
e em diversas partes da Europa ocidental, foi ignorada por Wall Street e pelo estadunidense
até o último segundo, uma vez que a desregulamentação e securitização do sistema financeiro
garantiam lucros astronômicos ao império dos bancos e das seguradoras. Contudo, a corda,
para não perder o costume, arrebentou do lado mais fraco: por ter sua gênese no ramo imobi-
liário, essa crise deixou grande parte da população estadunidense desabrigada, impedida de
pagar hipotecas caríssimas e de arcar com o elevado custo de vida. Essa situação logo se di-
fundiu pelo mundo, tornando crítica a situação das economias centrais e mais crítica ainda a
situação das economias periféricas.
Bastaram pouco mais de dois anos para explodir a revolta popular. Após anos de ex-
ploração e de problemas econômicos críticos, as flores da primavera desabrocharam para pro-
var que os invernos também são passageiros. Seus gritos ecoaram por todo o mundo, refor-
çando o poder da internet anárquica e trazendo à luz um novo tipo de movimento social: sem
lideranças, sem projetos claros e tendo a cidade como palco. Se o fortalecimento da democra-
cia grega arcaica se associa a certo declínio do pensamento mitológico, o modelo democrático
contemporâneo, no contexto de afirmação da doutrina neoliberal, foi perdendo seu caráter
popular e caminhou a passos largos para se tornar um mito, uma utopia. Dos indignados aos
ocupas, do Movimento Passe Livre aos black blocs, são claras as divergências, mas talvez
mais clara seja uma semelhança: a ideia de que não é essa a democracia dos sonhos.
6
Não é objetivo, nesse artigo, dissecar a crise dos subprimes. Para mais informações, é indicado o documentário
Inside Job (Charles Fergunson, 2010).
Democracias em conflito no mundo árabe
O ano é 2010, dia 17 de dezembro. O vendedor de rua Mohamed Bouazizi, após ter
suas mercadorias confiscadas por autoridades tunisianas sob a alegação de estar praticando
uma atividade ilegal, ateia fogo no próprio corpo e morre dias depois, em 4 de janeiro do ano
seguinte. Como sempre acontece na história dos movimentos sociais, fatos isolados tornam-se
metonímias de um quadro geral de insatisfação e, de uma maneira inesperada, consolidam-se
como estopim de lutas populares com reivindicações diversas. Com Bouazizi não foi diferen-
te: sua autoimolação serviu para dar impulso à chamada Revolução de Jasmim, responsável
pela derrubada do governo da Tunísia em janeiro de 2011 e, ainda, pela onda de revoluções
que tomou conta do norte da África e de países do Oriente Médio, conhecida por Primavera
Árabe. Um conjunto de protestos contra ditaduras amplamente apoiadas pelos Estados Unidos
e que, por décadas, haviam se consolidado sob o pressuposto de defender a autodeterminação
dos povos frente aos governos anteriores.
“Percebemos que o verdadeiro poder é o povo”7 disse um manifestante egípcio no
contexto das lutas contra a ditadura do presidente Hosni Mubarak, um dos principais capítulos
da Primavera Árabe. As redes sociais foram o principal motor dos protestos, um acontecimen-
to de organização sem lideranças jamais visto na História. Esse caráter popular prosseguiu
conquistando espaço nas praças de variados lugares do norte da África e do Oriente Médio,
onde ainda se desenrolam esses movimentos num misto de vitória e de derrota: o ideal de po-
der popular foi capaz de derrubar governos na Tunísia, no Egito – por duas vezes consecuti-
vas – e na Líbia – cujo ditador foi executado por rebeldes, numa forte demonstração capaz de
retirar de qualquer um a esperança na humanidade. Contudo, as alternativas que se apresenta-
ram não conseguiam corresponder aos anseios populares: persistiu a situação de fome, cares-
tia dos alimentos, autoritarismo e escassa liberdade de expressão – no Egito, por exemplo, o
Exército assumiu o poder após a queda de Mubarak e seus homens protagonizaram cenas de
horror contra manifestantes, divididos entre forças islâmicas e seculares. Entretanto, militares
egípcios e seus partidários afirmam que o controle político do país após a queda de Mubarak
foi essencial para preservar a revolução, culminando com um golpe militar que abriu espaço
para eleições parlamentares e presidenciais, responsáveis pela ascensão da Irmandade Mu-
çulmana ao poder, tempo depois recuperado pela ala militar após o prosseguimento das mani-
festações. Grande parte do povo egípcio, ainda em luta, deixa clara a descrença numa demo-
7
Depoimento retirado do documentário A praça (Jehane Noujaim, 2013).
cracia islamizada ou fardada, pois nenhum desses modelos corresponderia, na visão dessa
parcela da população, uma mudança significativa, como exemplifica a fala de um desses ma-
nifestantes no calor dos protestos em 2011:
8 Idem.
9
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 2000. Pág. 193.
10
Depoimento retirado do documentário A praça (Jehane Noujaim, 2013).
esperança desde a aprovação da Constituição e na gradual construção de um governo concilia-
tório entre as tendências populares e islâmicas.
Indignação e ocupação
11
Idem.
cracia. Sua demanda é que as elites corruptas que governam há 30 anos ‘e conduzi-
ram a Grécia à beira do colapso’ saiam.
“(...) essa não é a cara da democracia. Essa é a cara da liberdade de expressão. De-
mocracia é bem mais chato. Democracia requer instituições, eleições, partidos polí-
ticos, regras, leis, um judiciário e muitas nada glamourosas atividades, nenhuma tão
12
Retirado de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1606201102.htm. Acesso em 13/08/2014.
13
ZIZEK, Slavoj. O violento silêncio de um novo começo. In: HARVEY, D.; TELES, E.; SADER, E.; et al.
Ocuppy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
divertida quanto ocupar em frente à catedral de São Paulo ou bradar slogans na rua
Saint-Martin em Paris”14
Na terra de muitas palmeiras onde canta o sabiá não foi diferente. A efervescência que
dominou mentes, noticiários e – sobretudo – os asfaltos do Brasil não é facilmente crível aos
olhos da maioria que tinha nítida e cristalizada a histórica letargia política nacional. Apesar de
14
Artigo disponível em: http://www.washingtonpost.com/opinions/what-the-occupy-protests-tell-us-about-the-
limits-of-democracy/2011/10/17/gIQAay5YsL_story.html. Tradução livre.
15
SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
existirem exemplos de lutas populares em nossa História, como os protestos em razão do sui-
cídio de Vargas, ou então na Passeata dos Cem Mil, uma mobilização de grande amplitude
parecia ter sido deixada de lado como artefato de luta por justiça social. Persistiram as revolu-
ções de sofá, marcadas por verborragias hipócritas, cegas e incoerentes. A origem de tudo
isso, pois, não é incomum.
Pelo conjunto de medidas aplicadas pela Reforma do Estado Brasileiro nos anos 90,
que o nosso país, com isso, se inseria na agenda neoliberal. O cumprimento das exigências
neoliberais iniciadas no governo de Fernando Collor de Mello (1990/1992), chegando ao seu
ápice com o governo Fernando Henrique Cardoso e tendo continuidade nos governos do ex-
presidente Lula e da atual presidente Dilma significou o que comumente se chama de Estado
mínimo:
16
BORGES, Fabiano Tonaco [etal.]. Anatomia da privatização neoliberal do SUS: o papel das organizações
sociais São Paulo, SP: Cultura Acadêmica. 2012.
caracterizar o movimento –, a juventude foi ganhando vivência, experiência e maturidade. A
movimentação foi ganhando solidez, até chegar o dia quando provaria ao sistema que as cri-
anças crescem. A essas reivindicações, com o tempo e em certa medida, uniram-se as de ou-
tros grupos: homossexuais, feministas, negros, indígenas; ao passo que contra elas surgiram
os vorazes interesses de grandes empresários, as concepções de cidade elitista e excludente, os
governos corruptos, a especulação imobiliária e, por mais incrível que pudesse parecer, o fu-
tebol – não obviamente o esporte em si, mas o futebol cartolesco dos padrões FIFA, do pão e
circo e do amor ao dinheiro antes do à camisa. Como se pode notar, já havia luta no Brasil
anteriormente – o próprio Movimento Passe Livre, por exemplo, foi fundado nos idos de 2005
e desde então se empenha para conquistar seus objetivos.
Faces do neoliberalismo tupiniquim em São Paulo. Foto de Lucas Pedretti, março de 2013.
Eis que o ano de 2013 apresenta-se à História. Na Turquia – que até então era, para o
Brasil letárgico, sinônimo apenas de prostituição e tráfico de pessoas graças à então novela
das 9 –, um grupo de manifestantes se levanta contra, mas não somente, a construção de um
shopping numa das poucas áreas verdes do país. No Brasil, às vésperas da Copa das Confede-
rações, após um aumento de 20 centavos da passagem dos ônibus, explodem as primeiras ma-
nifestações. As passeatas foram tomando força e se tornando cada vez mais violentas, mos-
trando que a nocividade da verdadeira democracia vai além de atrapalhar o trânsito: ela com-
promete paredes e vidraças dos palácios, lares dos verdadeiros vândalos; compromete a men-
talidade reacionária do Brasil corrupto e excludente, da grande mídia e de muitos cidadãos
que, no fundo, são produtos e, pior ainda, reprodutores desse mesmo Brasil, o qual não que-
remos que sobreviva. Mas essa democracia nunca tinha tempo para se expressar. Para dar fim
a cada dia de protesto sempre vinham as tropas de choque, provar que a democracia instituída,
na verdade, sufoca e arde nos olhos.
Como já era de se esperar, vieram as primeiras interpretações jornalísticas dos fatos.
Nos primeiros dias, os grupos revoltosos não passavam de “baderneiros”, apenas “atrapalha-
vam o trânsito”. Uma esquerda que, para Arnaldos da vida, “não valia nem 20 centavos”.
Uma classe média hipócrita e inconsequente cuja reivindicação era vazia, afinal ela tinha nos
bolsos dinheiro suficiente para arcar com o aumento das passagens, como se a luta fosse só
por causa dele e, mais grave ainda, como se só devêssemos lutar por interesses individuais.
Mas a voz das ruas falou mais alto: os “baderneiros” tornaram-se “manifestantes”, divididos
entre um grupo “pacífico” e outro minoritário, de “vândalos”, “bandidos”, “arruaceiros”, dis-
postos unicamente a destruir as cidades do país. Os primeiros foram calorosamente elogiados
pelos oportunistas da comunicação de direita, desejosos de uma perda de credibilidade da
presidenta e ansiosos pela vacância do cargo.
Os problemas, contudo, começaram a surgir Em primeiro lugar, a “ausência de cau-
sas”. O brado era claro: “Não é só por 20 centavos!”. Por que seria então? A ansiedade dos
revoltosos exigia uma pauta, antes de tudo ir por água abaixo. A importância de reivindica-
ções sólidas era incontestável, mas como traduzi-la para uma população simplesmente cansa-
da e com raiva dos absurdos do cotidiano? Uma grande massa de manifestantes, fazendo uso
de suas liberdades de pensamento, optou por lutar “contra a corrupção”, numa forma de ex-
pressar um grande “cansei de tudo isso” e muito semelhante aos movimentos anteriores de
todo o mundo. Mas logo vieram grupos de nossa esquerda acusar essa maioria de “descaracte-
rizar o movimento”, cobertos por um autoritarismo desprezível, buscando, da forma mais pro-
tosstalinista e mascarada, dizer quem podia e quem não podia protestar. A generalidade das
lutas pode não levar a nada, ainda mais um objetivo vazio como “contra a corrupção, mas a
construção do “manifestante ideal” não era a saída.
Um segundo problema, visceral e, sem dúvida, uma incoerência tão grande quanto –
senão maior do que – os brados de “abaixo a corrupção” foi o “sem violência” – ou o “sem
vandalismo” emprestado dos reacionários. Primeiramente, talvez numa interpretação mais
abstrata, na negação da violência reside uma negação mais profunda: a da natureza que nos
concebeu e nos rodeia. A própria vida não existiria sem a violência do parto – coube ao ser
humano, pois, mascará-la com a cesariana, da mesma forma que mascara a violência das guer-
ras com a diplomacia. Em segundo lugar, numa perspectiva mais histórica, não existiram pro-
cessos sociais e/ou políticos vitoriosos que não tenham contado com um lado violento – há
aqueles que citam a “revolução” de Gandhi, que nem revolução foi, mas que não sabem nem
quem foi Gandhi e se esqueceram das milhares de mortes que os problemas decorrentes da
independência indiana geraram e ainda geram. E, por último, em terceiro lugar, numa visão
mais contextualizada, há os defensores da preservação do patrimônio público, mas que apoia-
ram a ação do Estado na Aldeia Maracanã, para ficar nos exemplos cariocas. É importante
notar que a nova democracia proposta por esses levantes vai além do Estado de direito, de
modo que existe uma substancial diferença entre depredar um prédio histórico como ALERJ –
onde sobraram janelas intactas demais – e torná-lo mais histórico ainda. Como muito bem
lembrou um velho companheiro de lutas, “os pacifistas parecem ter esquecido que o pau-
brasil é vermelho por dentro”.
A terceira e última questão trata dos (falsos) alarmes sobre um “perigo fascista”, um
“perigo golpista”, ou até mesmo um “perigo golpista fascista”. Os gritos de “sem partido”,
ecoados tanto no Brasil quanto em todos os lugares do mundo onde eclodiram movimentos
desse tipo traduzem a clara insatisfação popular frente à atual representatividade democrática
e aos incontáveis oportunismos protagonizados por essas agremiações políticas em toda a
História. No contexto brasileiro, atitudes como cantar o hino nacional ou bradar “sem partido”
nem de longe denunciavam um respaldo homogêneo e majoritário à construção de um projeto
de Estado fascista e/ou golpista. Essa hipótese golpista só ignorou a singularidade do movi-
mento como consistiu num grande surto de ansiedade esquerdista, convertendo-se em ações
autoritárias e preconceituosas contra aqueles que, sem qualquer influência fascista ou golpista,
agiam de tais formas.
Dias depois, outro conflito de democracias foi vivenciado no Brasil. Pelo menos no
Rio de Janeiro, muitos manifestantes disseram: “agora nós sabíamos como era viver na fave-
la”. A truculência da Polícia Militar – cujo período de militarização já passou da validade –
foi bem categórica em responder que, na verdade, não se sabia de nada, ao levar outra demo-
cracia para a Maré: a democracia da morte, das balas de chumbo, que a mídia não faz questão
em criticar, porque matar preto e pobre já virou normalidade no cotidiano nacional. E, como o
ímpeto de indignação e revolta não se saciava, construiu-se um mártir: Amarildo, desapareci-
do e brutalmente assassinado por policiais da UPP da Rocinha.
Tudo isso provava que o desmonte do Estado ditatorial brasileiro foi, de fato, um pro-
cesso incompleto. A luta pelos direitos sociais básicos se fortaleceu, caiu a PEC 37 e as tarifas
do transporte foram reduzidas. O Brasil venceu a Copa das Confederações – a que se faz com
estádios e não com hospitais, para não deixar de citar o mártir das alternativas orgias contem-
porâneas. A ideia de protesto surgiu no imaginário nacional, mas nada de estrutural foi altera-
do no país. Ganharam espaço os black blocs, ditos anarquistas, ao mesmo tempo rebeldes sem
causa e revolucionários conscientes. Mas os conservadores também construíram seu mártir:
Santiago, repórter, morto numa passeata, tudo o que a mídia nacional, covarde e repulsiva,
desejava para colocar na ilegalidade moral o direito de protestar. As mobilizações foram se
esvaziando, perdendo espaço, mas cientes de que haviam acendido uma fagulha e levantado
perguntas sem resposta. Segundo matéria publicada pelo Estadão em agosto de 2014,
“Em 2008 e 2012, a taxa de adolescentes que tirou título de eleitor para votar para
prefeito e vereador foi de cerca de 43% em relação ao total de jovens dessa idade,
segundo cruzamento dos dados de alistamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
com os da projeção da população do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Nas disputas de 2002, 2006 e 2010, a proporção ficou entre 36% e 37% em
cada uma. Em 2014, o índice caiu para 26%”17.
Pelo que parece, a democracia partidária não é a saída, pois a ela já se associa o retro-
cesso. Que situação, porém, teria sido responsável pelo esvaziamento do ideal democrático
em vigor e consolidado até o século anterior? Que democracia, então, desejam os novos mo-
vimentos sociais do século XXI? Eis algumas questões para reflexão.
17
Disponível em: http://estadao.br.msn.com/ultimas-noticias/eleicoes/story.aspx?cp-documentid=264752441.
Acesso em 11/08/2014.
18
BAKHTIN, Mikhail. Discourse in the novel in Dialogical imagination. 15.ed. Austin: University of Texas
Press, 2004, p. 291. Tradução livre.
XXI, época de democracias em choque, de um ideal democrático sólido em xeque, de diversas
propostas de ressignificação.
Em síntese, as manifestações brasileiras de antes, durante e após junho, bem como os
protestos internacionais que as antecederam e as sucederam serviram para mostrar ao mundo
ocidental as fragilidades e incoerências do modelo de democracia construído pelo neolibera-
lismo. As mesmas bocas de onde ecoam gritos de indignação cospem com repúdio nos símbo-
los da democracia neoliberal, profanando os santuários do deus Mercado e desmascarando a
hipocrisia sem precedentes de se orgulhar de um modelo democrático historicamente deturpa-
do, falho e essencialmente perverso. As utopias que tomaram as ruas nos últimos anos podem
não ter tido, pelo menos até o momento, impactos mundialmente revolucionários, mas carre-
gam um legado, propondo ao mundo uma nova democracia – a que realmente preserva o “po-
der do povo”. Sobretudo no caso brasileiro, esse novos movimentos sociais provam aos seus
inimigos que nem todos os cidadãos estão deitados eternamente em berço esplêndido; mos-
tram que muitas Marias, Clarices e Elizabeths ainda chorarão, mas não desistirão de lutar pela
justiça; fazem do poeta um profeta e insistem em nos lembrar que nossa piscina está mesmo
cheia de ratos.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail. Discourse in the novel in Dialogical imagination. 15.ed. Austin: Uni-
versity of Texas Press, 2004, p. 291. Tradução livre.
BORGES, Fabiano Tonaco [etal.]. Anatomia da privatização neoliberal do SUS: o papel das
organizações sociais São Paulo, SP: Cultura Acadêmica. 2012.
HARVEY, D.; TELES, E.; SADER, E.; et al. Ocuppy: movimentos de protesto que tomaram
as ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
HAYEK, Friedrich Von. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1987,
p. 81.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editoria Nacional, 2000.
SADER, Emir & GENTILI, Pablo (orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Esta-
do democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, p. 9-23.
SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas,
2013.
Referências eletrônicas
http://estudoshumeanos.com/2011/05/30/a-primavera-arabe-e-as-lembrancas-de-1848/
http://guiadoestudante.abril.com.br/estudar/jogos-multimidia/infografico-primavera-arabe-
743910.shtml
http://www.boston.com/bigpicture/2012/01/egyptians_gather_in_tahrir_squ.html
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/534177-ideais-da-primavera-arabe-caem-no-
esquecimento-com-descredito-da-democracia
http://www.theatlantic.com/politics/archive/2012/09/occupy-wall-streets-raucous-birthday-
party-arrests-sermons-and-signs/262522/
http://www.washingtonpost.com/opinions/what-the-occupy-protests-tell-us-about-the-limits-
of-democracy/2011/10/17/gIQAay5YsL_story.html
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1606201102.htm
Referências cinematográficas