Le Paixão
Segundo a concepção do senso comum, admitida Mas ao mesmo tempo, a inteligência caracteriza-se
igualmente pela ciência, as propriedades do mundo são a igualmente pelo fato de, por natureza, lhe ser impossível
extensão, a multiplicidade numérica e o determinismo compreender a duração real, a vida. Constituída de acordo
causal. O mundo compõe-se de corpos sólidos extensos, com a matéria, a inteligência transfere as formas
cujas partes se encontram espacialmente justapostas. É materiais, extensivas, calculáveis, claras e determinadas,
caracterizado por um espaço totalmente homogêneo e por ao mundo da duração; interrompendo a corrente vital
separações precisas, e todos os acontecimentos são de única e introduzindo nela a descontinuidade, o espaço e a
antemão determinados por leis invariáveis. A ciência da necessidade. Não pode sequer compreender o simples
natureza nunca considera o movimento, mas só as movimento local, como o provam os paradoxos de Zenão.
posições sucessivas dos corpos. Nunca as forças, mas só
Só podemos conhecer a duração graças à intuição. Com a
os seus efeitos. A imagem do mundo traçada pela ciência
intuição, podemos acessar a duração diretamente e como
natural carece de dinamismo e de vida. O tempo, tal como
algo íntimo. A intuição distingue-se por características que
o encara a ciência, não é, em última instância, senão
se contrapõem às características da inteligência. Órgão do
espaço, e quando a ciência natural pretende medir o
homo sapiens, a intuição não está a serviço da prática;
tempo, na realidade não mede senão o espaço.
seu objeto é o fluente, o orgânico, o que está em marcha;
Todavia, podemos descobrir em nós mesmos, embora só ela pode captar a duração. Enquanto a inteligência
com esforço, uma realidade inteiramente diferente. Esta analisa, decompõe, para preparar a ação, a intuição é uma
realidade possui uma intensidade puramente qualitativa, simples visão, que não decompõe nem compõe, mas vive
compõem-se de elementos absolutamente heterogêneos, a realidade da duração. Não se adquire facilmente a
que, entretanto, se interpenetram, de sorte que não é intuição; tão habituados estamos ao uso da inteligência
possível discriminá-los claramente uns dos outros. E, por que se torna necessária uma transformação íntima
último, esta realidade interior é livre. Não é espacial, nem violenta, contrária a nossas inclinações naturais, para
calculável. De fato, não somente ela dura senão que é podermos exercitar a intuição. E, mesmo assim, só em
duração pura, e, como tal, completamente diferente do momentos favoráveis e fugazes, somos capazes de o
espaço e do tempo das ciências da natureza. É um agir fazer.
único e indivisível, um alor (ou elã, do francês élan:
impulso, arremesso, ímpeto, entusiasmo) e um devir que Em resumo, existem dois domínios: de um lado, o domínio
não pode ser medido. Esta realidade encontra-se, em da matéria espacial e rígida, subordinado à inteligência
princípio, em constante fluir, nunca é, mas perpetuamente prática. De outro lado, o domínio da vida e da consciência
devém. que dura, a que corresponde a intuição. Sendo a atitude
da inteligência exclusivamente prática, a filosofia não pode
A faculdade humana que corresponde à matéria espacial é utilizar senão a intuição. Os conhecimentos, obtidos por
a inteligência, e esta caracteriza-se por sua exclusiva este meio, não podem ser expressos em ideias claras e
orientação para a ação. É a ação que comanda, sem mais, precisas, nem tampouco são possíveis as demonstrações.
a forma da inteligência. Como para a ação necessitamos A única coisa que o filósofo pode fazer é ajudar os outros
de coisas exatamente definidas, o objeto principal da a experimentarem uma intuição semelhante à dele. Assim
inteligência é o fixo corpóreo, inorganizado, fragmentário. se explica a riqueza de imagens sugestivas que as obras
A inteligência não concebe claramente senão o imóvel. de Bergson oferecem.
Seu domínio é a matéria. Ela a capta para transformar os
corpos em instrumentos. É o órgão do homo faber e Em resumo, estas, que seguem, são as principais
subordinada, essencialmente, à construção de conclusões a que chega Bergson. Os processos próprios
instrumentos. Dentro do domínio da matéria e graças à das ciências físicas e matemáticas tem apenas algum
sua afinidade essencial com a matéria, a inteligência não valor nas atividades práticas, e são absolutamente
só capta os fenômenos, como também a essência das inadequadas ao conhecimento da realidade. Podemos
coisas (“corte privilegiado no devir contínuo da realidade chegar a esse conhecimento através da intuição, despida
movente”). Contra Kant e os positivistas, Bergson confere de qualquer interferência de noções científicas. Essa
à inteligência, no domínio do corpóreo, a capacidade de intuição profunda nos leva ao conhecimento da duração
captar a essência das coisas (mas uma essência imutável, pura, diferente do tempo como o concebem os cientistas.
estável). Segundo ele, a inteligência é também analítica, Na duração pura reside a essência da realidade, que é
ou seja, capaz de decompor qualquer lei ou sistema e de vida e ininterrupto devir. Os seres vivos obedecem a um
processo de evolução diferente do que indicam os
cientistas. A evolução criadora é impulsionada pelo élan
vital (ímpeto de vida), que se manifesta através de toda a
natureza e culmina na consciência intuitiva humana.