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07/09/2019 Cinética

  

   
 
ensaios
Alguns encontros
De Casa de Lava a Juventude em Marcha
por João Dumans

No início de Casa de Lava, logo após os


impressionantes registros de um vulcão em
erupção, uma série de retratos, captados em
planos quase estáticos e recortados contra
uma paisagem árida, apresenta um pequeno
grupo de mulheres numa ilha de Cabo Verde.
À exceção do último retrato dessa série, no
qual uma jovem de cabelos desgrenhados
encara frontalmente a câmera, todos os
olhares da sequência dirigem-se melancolicamente para fora do quadro. Algumas cenas
depois veremos esse mesmo olhar no rosto de Leão (Isaach de Bankolé), um operário cabo-
verdiano que trabalha num canteiro de obras em Lisboa, pouco antes de se precipitar no vazio
da construção inacabada. A extensão percorrida por esses dois olhares é a mesma a ser
vencida por Mariana (Inês de Medeiros), a enfermeira responsável por conduzir Leão, agora
em coma, de volta à ilha em que nasceu.

Casa de Lava, o segundo filme de Pedro Costa, conta a estória desses dois percursos
improváveis, quando não impossíveis: um que vai de Cabo Verde - terra avessa à toda vida,
sede do Tarrafal e do "campo da morte lenta" para os presos políticos do Estado Novo - a
Portugal; o outro, que vai de Portugal a essa ilha de terra infértil para onde "ninguém volta".
Enquanto Leão preserva no sono de sua semi-vida a razão de seu retorno, Mariana se vê
obrigada a criar uma razão pra si, ou várias: devolver Leão a sua família, dar assistência aos
doentes, convencer os homens a ficarem em sua terra, desvendar o segredo de uma mulher
branca em meio aos negros, despertar o sexo ou o amor numa terra feita de cinzas. Seu
percurso faz colidir os temas mais abertamente políticos aos mais íntimos, a ponto destes
quase arrastarem-na para uma dimensão inesperada - tomada de consciência que, segundo
uma velha lição do cinema moderno, pode ser entendida menos pelo despertar da
"consciência em si", do que pela dissolução da consciência no mundo, pela elevação do ser
que precipita subitamente a aparição do amor (Viagem à Itália) ou da morte (Stromboli). Em
Casa de Lava, Mariana está sujeita a esses dois riscos (a esses dois desejos).

Mas seu percurso é também uma espécie de aprendizado que lhe ensina o quanto esse
mundo particular é capaz de se fechar sobre si mesmo. Talvez seja isso que nos torne tão
sensíveis à oferta do par de sandálias que logo no início do filme a mulher do mercado
(Clotilde Montron) lhe faz, como se também a nós dissesse: "sem isso, nenhum de vocês

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poderá resistir ao calor que queima por


debaixo dessa terra." Contra a gentil
precaução, Bassoé (Raul Andrade) não tarda
a aparecer para nos dizer exatamente o
contrário: "tirem as sandálias, o chão está
quente e bom." Como em seu primeiro filme,
O Sangue, Costa trabalha aqui a mesma
dualidade entre o prazer e a dor, a vida e a
morte, o mundo e tudo aquilo que o ameaça.
Seja nos contornos de um vulcão adormecido ou de uma cesta de maçã colocada contra o
chão pedregoso, Casa de Lava compõem-se como uma vasta coleção de naturezas mortas
que parece herdar do cinema dos Straub (assim como da pintura de Cézanne) a consciência
dessa sensualidade rudimentar que emana das formas mais elementares e simples. E o que é
uma natureza morta senão a forma mais direta de representar a vida por meio de sua
ausência? Ou de evocar a vida latente naquilo que, na verdade, está morto?

Enquanto em O Sangue a escuridão ameaçava comer a borda das coisas, em Casa de Lava
tudo é sólido, impenetrável - nada, ou quase nada, se mistura. E é sob o signo dessa
diferença, ou da impossibilidade de uma assimilação completa, que a perambulação de
Mariana se faz. Ainda sim, é ela que abre aos poucos as frestas que permitem enxergar a
realidade por trás do presente da ilha e de sua história. É por meio dela que ouvimos a morna
melancólica tocada por Bassoé, que descobrimos o nome de seus filhos, que conhecemos
Tina, que vemos um cachorro, o vulcão, a cólera, as ruas de Cabo Verde, uma festa ao som
do funaná, uma enfermeira que cozinhou para cento e cinquenta homens no Tarrafal, o mar,
uma feira de tecidos, a lavagem dos lençóis, os leitos de um hospital. Em Casa de Lava,
Mariana não é só a enfermeira que leva Leão à sua terra natal - mas a fresta aberta no mundo
pelo cinema, pela ficção (fresta essa por onde o cinema de Costa, dali em diante, deverá
passar).

Casa de Lava e depois

Diante dos rumos tomados pela obra de


Pedro Costa, tornou-se possível enxergar
retrospectivamente na aventura solitária de
Mariana um percurso de afirmação interior e
de aproximação da realidade semelhante
àquele trilhado ao longo do tempo por seu
próprio cinema. Já em 1995, numa entrevista
concedida a Jacques Lemière, Costa dizia:
"Decidi afastar-me de casa e dos lugares
mágicos e exclusivos que me foram oferecidos pelo O Sangue. A Inês Medeiros e o Pedro
Hestnes, os dois cúmplices do primeiro filme, decidiram acompanhar-me. São dois actores
que não se assustam com o irracional e o risco... afastarmo-nos de tudo para ficarmos mais
perto de nós, de nossa casa. Creio que Casa de Lava é feito deste movimento duplo. É um
filme que me abre ao mundo e que, ao mesmo tempo, me esconde."

Este duplo movimento, ao longo dos anos, continua a funcionar e a provocar rupturas
sensíveis na sua forma de pensar e de fazer cinema, afastando-o cada vez mais desses
primeiros "cúmplices" em prol de uma relação ainda mais direta e mais vital com a realidade
das pessoas que encontra a partir de então. No seu impulso de se aproximar da realidade dos
habitantes da ilha, de desvendar os laços entre o seu passado histórico e sua situação
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presente, as perambulações de Mariana em Casa de Lava colocam já em movimento a


possibilidade desses laços ainda por vir na obra do realizador português. Se a ausência de
atores profissionais nos trabalhos da trilogia das Fontainhas é uma das mudanças mais
significativas em relação aos filmes precedentes, há algo que desde Casa de Lava continua a
pulsar por trás de suas estratégias de encenação, convocando o real não só a "entrar pela
fresta" - tomando parte dos temas que lhe servem como pano de fundo - mas a incidir
diretamente, e cada vez mais, sobre suas próprias opções formais.

No seu texto do catálogo da mostra "O Cinema de Pedro Costa" (publicado originalmente no
livro Cem Mil Cigarros, organizado por Ricardo Matos Cabo), Adrian Martin sugeria a forte
relação existente entre a obra do diretor e aquilo que ele chamou de "grande figura
cinematográfica do encontro". Ao lado do laço "pesado e difícil de suportar", da "ligação ética e
moral" que o crítico australiano identificou à figura do "encontro" nos filmes de Costa (e que
Serge Daney, por sua vez, havia associado ao cinema de John Ford) seria possível
acrescentar talvez uma outra dimensão: na procura de Mariana pela família de Leão ou na
perambulação sem fim de Ventura, em Juventude em Marcha, a mise en scène de Costa
orienta-se com frequência pela articulação de uma série de pequenos encontros, de
coincidências de vidas no tempo e no espaço, que fazem circular entre os personagens
("ficcionais" ou não) a energia vital que anima suas imagens.

Um dos filmes em que essa idéia surge com mais força é justamente No Quarto da Vanda. A
idéia da perambulação está ausente (a não ser nas vendas episódicas de verduras que Vanda
realiza pelo bairro), mas tudo transcorre de forma a tornar o quarto o centro para onde a maior
parte dos personagens do filme convergem. E na ausência de qualquer exterioridade possível,
Vanda encarrega-se com uma eloqüência viva, apesar da escuridão que a cerca, de fazer com
que o mundo venha também habitar o quarto em sua fala. Nada torna mais generosa a
escolha de Costa de um filme como Numéro Zéro, de Jean Eustache (assim como de Gente
da Sicília, dos Straub), para compor sua mostra, do que a sugestão que nos deixa do poder de
resistência da palavra e da memória frente a opressão e a violência, assim como do seu poder
de evocação da vida, mesmo que em sua face mais trágica. Benjamin, num ensaio clássico, já
havia apontado a relação existente entre a narrativa e a morte, mas só para provar como um
princípio vital parece pulsar por trás de quase todo ato de rememoração.

Mesmo em Juventude em Marcha,que trabalha num regime narrativo diferente do filme


anterior, a idéia do quarto da Vanda como lugar por excelência do encontro - do enlaçamento
de dois personagens, duas presenças, e ao mesmo tempo como lugar do transbordamento da
fala e da memória - continuará a funcionar mais ou menos da mesma maneira. A tal ponto,
inclusive, que mesmo a figura "mitológica" de Ventura (nas palavras de Rancière) deverá se
dobrar às frustrações e aos caprichos mundanos que inundam o quarto na fala torrencial de
Vanda. E entre a naturalidade de Vanda e a altivez de Ventura, um desequilíbrio, um desajuste
inerente à representação, faz com que algo circule de um pólo a outro do plano. O mesmo
acontece quando na última cena do filme, com a televisão ligada, Ventura olha pela janela
enquanto a filha de Vanda brinca distraidamente sobre a cama. Algo como uma "internalização
da diferença" (Daney) entre a vida e a ficção está progressivamente em jogo nesses encontros
que o cinema de Pedro Costa articula. Em parte, é por isso que seus filmes tornam tão
antiquadas as abordagens que procuram defini-los sob a ótica do documentário e da ficção, já
que essas diferenças são postas em movimento no interior do plano, constituindo como que a
essência, a respiração mesma de sua mise-en-scène.

Casa de Lava serve assim como uma espécie de prelúdio a essa busca pelo "entre dois" da
fala e da memória, e que vale menos por seu poder de análise do presente do que por sua
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capacidade de evocar o passado e a história,


assim como por seu potencial de inventariar e
de preservar, por meio do cinema, um mundo
sempre em vias de desaparecer. Ao contrário
do que podemos pensar, o personagem que
melhor responde em Casa de Lava ao
sentido profundo que Costa dá a essa
dimensão sensível do tempo não é de forma
alguma Mariana, tampouco Edite ou Leão -
mas Bassoé, a quem o diretor dedica um dos mais belos planos não só deste filme mas de
toda sua obra (a longa panorâmica que percorre as cadeias de montanhas da ilha e que
encontra Mariana e o músico sentados numa mesa, com este último trazendo à tona as
lembranças da juventude). Enquanto a personagem de Edite (Edith Scob; não por acaso a
misteriosa jovem sem rosto de Les Yeux sans Visages, de Franju), no seu luto pelos mortos do
Tarrafal, é a ponte "consciente" que nos permite fazer o percurso do presente ao passado
político da ilha, Bassoé, com sua música e com seu altivez trêmula e elegante, traz o passado
grudado ao próprio corpo, à própria voz.

De certa forma, a reaparição da carta de Costa/Desnos em Juventude em Marcha só pode ser


entendida como a reparação de uma pequena injustiça contra esse homem que seria, no fim
das contas, o único realmente digno de possuí-la, e que encontra finalmente na personagem
de Ventura a sua redenção. Vale lembrar que é tirada do próprio Desnos a letra da "morna das
sombras" que embala o violino de Bassoé. E vale lembrar também a figura desses dois
homens hostilizados pelas mulheres, protegendo os incontáveis filhos que se espalham pelo
mundo. Como Bassoé, Ventura traz inscrito no próprio corpo e na própria voz a experiência
daquilo que viveu - experiência esta que permanecerá inacessível (tanto para Costa quanto
para nós) mas cuja força está sempre em jogo nos encontros dos quais toma parte,
convidando a realidade a testemunhar (e a fabular) sobre si mesma e reforçando o vínculo
entre o passado histórico de Portugal e a situação presente de seus habitantes. Em Casa de
Lava, Mariana e Bassoé sonham juntos o personagem de Ventura.

Por um lado, seus longos périplos revolvem a poeira da realidade, convocam e recriam por
meio do cinema o trabalho da fala, do imaginário e da memória; por outro, seu corpo reclama
a experiência do tempo já vivido. Em Juventude em Marcha, contudo, muitas coisas deixam de
ter o estatuto de "indício" que as prendiam à estrutura narrativa um tanto quanto esquemática
de Casa de Lava para se tornarem, elas mesmas, fatos cinematográficos, poéticos. Assim, a
carta não é mais o indício de uma relação a ser decifrada por Mariana, mas um canto
endereçado ao futuro na voz de Ventura; o degredo não é simplesmente referido como um
problema, mas vivenciado; e, talvez, o mais importante - o presente não remete simplesmente
ao passado, mas coincide, numa espécie de curto-circuito do tempo, com ele. Se em Casa de
Lava estávamos no registro dos encontros mediados pela ficção e dos trânsitos entre os
espaços, em Juventude em Marcha Costa traduz na própria estrutura do filme os percursos
labirínticos de Ventura, que circula não só dos escombros do bairro aos corredores e
apartamentos vazios de Casal da Boba, mas também de uma ponta a outra da história de
Portugal. Costa dá a essa estruturação dos tempos, além de uma organicidade própria, um
forte sentido político, nos conduzindo da luta presente das Fontainhas à luta histórica dos
cabo-verdianos. Mas aqui já não é preciso, nem sequer possível, cortar a linha contínua que
liga a vida presente ao passado histórico. Pelo contrário, é preciso reconstituir, por meio do
cinema, a atemporalidade desta linha, e com ela o laço de solidariedade, ele também
atemporal, que atravessa a história de luta dos homens comuns.
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Numa das mais belas cenas de Juventude em Marcha, vemos Lento, ao lado de Ventura,
apoiado numa janela empunhando um facão, seu olhar sustentando a dignidade dos
sobreviventes contra um mundo que se despedaça. Numa outra bela cena, Ventura e Bete
contemplam sobre as paredes da casa das
Fontainhas os traços de um mundo
imaginário em vias de desaparecer.Em
Juventude em Marcha, entendemos melhor a
lição que aqueles primeiros olhares de Casa
de Lava já antecipavam: o encontro do
passado e do presente em Costa dá-se
justamente nessa contemplação solitária que
não acha na extensão visível da imagem uma
resposta. Com ele, aprendemos que um olhar sem contra-plano no cinema é menos um olhar
lançado sobre o mundo que um olhar lançado sobre a história. Talvez não seja à toa que,
como lembra Tag Gallagher, tanto para Costa quanto para Ford - outro cineasta que fará dos
vínculos inquebrantáveis dos homens comuns um tema central em sua obra - "olhar as
pessoas olhando é mais importante do que olhar o que elas vêem".

Dezembro de 2010

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