Fonte: http://www.webartigos.com/articles/26711/1/A-ARROGANCIA-
CIENTIFICA-NO-FILME-O-OLEO-DE-
LORENZO/pagina1.html#ixzz0unWxJVMM
O ensino das ciências e a própria ciência está em crise. Esta afirmação pode parecer aos
olhos do leigo e do próprio homem de ciências como algo infundado, carente de
fundamentos. Para o primeiro há a discordância pelos avanços tecnológicos nas áreas de
informática e da medicina, para o segundo os avanços da engenharia genética e da física
quântica garantem a primazia do sucesso científico do século XX e a certeza de outros
avanços mais para o século XXI.
Mas, apesar de tantas certezas a maior delas é que a ciência está em crise. Para imprimir
fundamento a tal assertiva, basta um olhar histórico com o objetivo amplo de observar a
manifestação da crise. A primeira, que teve início em fins do século XIX, está
representada pela Crise do Racionalismo. Este se impusera como concepção
mecanicista ou logicista do Universo, expressa em soberbos sistemas filosóficos que, a
partir de Descartes, dominaram o pensamento ocidental durante muitos anos.
Por outro lado, Barbosa (1996), argumenta que a rígida divisão dicotômica do
pensamento filosófico entre idealismo e realismo manteve o mistério da existência
humana "entre parênteses", o seu estudo a plano secundário. E o próprio homem é
diversificado, pelas eliminações de seus aspectos subjetivos, em virtude de se lhe
aplicarem os métodos das ciências exatas. Isto evidenciava o que Husserl denominou de
"Crise das Ciências Européias".
A crise das ciências, entretanto, era apenas projeção de uma crise maior: a crise da
civilização ocidental. Com efeito, o império da razão, que a Revolução Francesa julgara
institucionalizado no "nouveau regime", cuja expressão mais alta era o culto da
Humanidade e a crença numa era de justiça e progresso cedeu lugar a uma realidade
histórica estigmatizada pela guerra, no plano internacional, pela hipertrofia do poder
estatal, pela radicalização do mundo no binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento
e pelo conseqüente cepticismo do homem diante dos valores tradicionais da civilização
cristã.
O existencialismo, enquanto filosofia da crise (do homem e das ciências) e por suas
próprias origens Kierkegaardianas, deve ser historicamente entendido como um
complexo de doutrinas eminentemente antirracionalistas ou,símbolo de oficina e de
arena onde o homem forja o seu projeto e trava a batalha quotidiana do seu próprio
destino. Daí Jolivet conceituar o existencialismo como
[...] o conjunto de doutrinas segundo as quais a filosofia tem como objetivos a análise e
a descrição da existência concreta, considerada como ato de uma liberdade que se
constitui afirmando-se e que tem unicamente como gênese ou fundamento esta
afirmando de si. (Apud ARANHA; MARTINS, 1986, p. 326).
A obra de Gaston Bachelard ergue uma ponte entre duas culturas muitas vezes
apartadas: a científica e a humanista. Em nossa época de transformações contínuas, a
filosofia bachelardiana destaca-se pelo caráter proteiforme da descoberta científica e da
criação artística, e sugere a fuga da representação geométrica marcada pela autoridade
canônica dos cientistas.
Esta representação pode ser verificada através do filme "O Óleo de Lorenzo", lançado
nos EUA em 1992, com a distribuição da Universal Pictures e direção de George Miller,
que ilustra bem esta situação, ao trazer à tona uma história real de uma criança que tem
um distúrbio raro – ALD, uma doença extremamente rara que provoca uma incurável
degeneração no cérebro, levando o paciente à morte em no máximo dois anos – . e,
pelos prognósticos dos doutos cientistas, não viverá muito.
Mas a curiosidade e a intuição dos Odone's se mostraram mais forte que o saber mítico
constituído, e, buscam a compreensão do fenômeno que interfere no processo
bioquímico que causa a moléstia do filho, passando a desagradar aos arrogantes e
presunçosos representantes da ciência, ao agir diretamente sobre a natureza e controlar a
até então incontrolável licodistofia.
A produção "O Óleo de Lorenzo" exibe a arrogância, dos guardiões do saber científico
que não permitem concorrência, conduzindo o espectador a uma profunda reflexão
acerca da contradição entre o saber científico acumulado pela academia e o saber não
reconhecido no ambiente acadêmico.
O controle, no entanto, não é mérito apenas da ciência representada pelos médicos, mas
dos pais de filhos acometidos pela ADL, que resistem à tentativa de superação dos
Odone ao saber constituído, pois estes se encontram fora da academia e por extensão,
distantes do saber científico daquela. Numa verdadeira mitificação da ciência e negação
da legitimidade ao saber não-titulado. "Querem ensinar os médicos", repele uma mãe,
que não concorda com a posição dos pais de Lorenzo, considerando mais uma afronta
arrogante ao saber estabelecido.
Sente-se pouco a pouco a necessidade de trabalhar sob o espaço, no nível das relações
essenciais que sustentam tanto o espaço quanto os fenômenos. O pensamento científico
é então levado para 'construções' mais metafóricas que reais, para 'espaços de
configuração', dos quais o espaço sensível não passa, no fundo, de um pobre exemplo.
O papel da matemática na física contemporânea supera, pois, de modo singular, a
simples descrição geométrica. (BACHELARD, 1996, p. 7).
A ciência é constituída pelo trabalho coletivo dos operários da prova. A poesia é nosso
modo de habitar o mundo através da celebração e da felicidade. Bachelard cimentou
estas duas vias com igual simetria e força: a via apenas na aparência mais sábia da
epistemologia, cujo universo é explorado e legitimado pela reflexão racional; e a via do
devaneio poético, meditando através do material imaginário sobre a empresa sempre
surpreendente da linguagem humana.
O saber racional e a criação poética não são excludentes. Embora opostos em
determinadas instâncias, vão se encontrar no momento da imaginação criadora. A obra
de Bachelard, ilustra ela própria este princípio dinâmico: uma unidade não harmônica
de um conflito. A melhor expressão dessa unidade é a imagem recolhida por Jean
Lescure num dos últimos cursos proferidos por Bachelard. Chama-se o ponto da vela:
Esse ponto que os dicionários descrevem como aquele onde se aplica a resultante de
todas as ações do vento sobre as velas ele o construía na interseção desta força
resultante com a força de resistência que o mar opõe ao avanço do navio[1].(Jean
Lescure, 1963)
Este ponto tão variável como variam as forças e as resistências, é a obra humana em
constante composição. Não existe propriamente repouso, se até o repouso é uma
"vibração feliz". (BACHELARD, 1996, p. 7). A filosofia bachelardiana não é uma
filosofia do ser, uma ontologia, mas uma filosofia da obra, do fazer-ser, da ontogênese
como criação absoluta.
Da obra de Bachelard, para efeitos deste artigo, interessa sobremaneira "o conhecimento
geral como obstáculo ao conhecimento científico", afinal, segundo o filósofo:
Um outro exemplo da literatura nacional que critica este "perigoso prazer intelectual na
generalização apressada e fácil" (FICHANT, 1974, p. 128) é a obra "Tenda dos
Milagres", do baiano Jorge Amado, que retrata a introdução do pensamento de Césare
Lombroso e Gobineau, na Faculdade de Medicina, berço da ciência brasileira. Estes
dois teóricos proclamaram teses horripilantes acerca da superioridade racial dos
europeus em relação aos negros, mestiços e outros povos colonizados, mas que foram
aceitas, acatadas e transmitidas como verdadeiras para gerações de médicos e
criminalistas em todo o mundo, de forma arrogantemente determinísticas.
O filme "Óleo de Lorenzo", não descarta o saber instituído. Não apresenta contradição
absoluta entre os tipos de saber: o autodidatismo do pai de Lorenzo se referencia no
conhecimento científico acumulado e disperso; em contudo negar o saber científico,
mas sim de uma determinada maneira de compreendê-lo e de agir.
"O Óleo de Lorenzo " baseado em história real, questiona a arrogância titulada,
instituída e o intelectualismo desencantado do mundo: o saber cientificista, abstrato e
sisudo, profundamente desvinculado do humano; um saber que não mergulha no mar da
humanidade, um saber desumanizado por um método que despreza a intuição e amplia a
vaidade.
REFERÊNCIAS