G663r
Goody, Jack, 1919-
Renascimentos: um ou muitos? / Jack Goody; tradução de Magda Lopes. - São
Paulo: Editora Unesp, 2011.
Editora afiliada:
dlS!xg i{Bldí3 Wd !O] d{d lB{ní3U!S o~nb SBW "{B!pUnW Bp9lS!l[ BU dlUBllOdw!
Embora o nome que se deu ao período (Renascimento) não seja o nome original. desde os
tempos de Petrarca entendia-se que havia ocorrido um rompimento com o que foi conhecido
como Idade Média.
2 Toynbee. A Study of History. p.4.
3 Ibid.
12
A ideia de um renascimento
4 O uso que faço da metáfora do revenant, que atravessa toda a obra de Toynbee, é totalmente
independente. O uso mais extremo dessa metáfora fantasmagórica pode ser encontrado no
volume 9, p.I28-9, em que praticamente sai fora de controle.
5 Toynbee, op. cit., p.I66.
6 Toynbee, op. cit., p.56.
7 Bury, The Idea of Progress, p.48; Toynbee, op. cit., p.67.
8 Ver a discussão de Toynbee (op. cit., p.68-9) a respeito dos antigos e dos modernos em
Fontenelle, Une digression sur les ancients et les moderns. In: Poesies pastorales, avec un traité
sur la nature de l'eclogue et une digression sur les ancients et les modemes; Wotton, Reflections upon
Ancient and Modem Leaming; Swift, A Tale of a Tub: Written for the Universal Improvement of
Mankind; e Bayle, Dietionnaire historique et critique (um antecessor da Encyclopédie, de Diderot).
13
Jack Goody
14
A ideia de um renascimento
15
Jack Goody
18 Eckstein, Study af Italian Rennaissance Saciety in Australia: The State af Play, Bulletin of
the Society for Renaissance Studies, v.22, n.2, p.6-7.
16
A ideia de um renascimento
Realmente não há homem de verdade que não conheça e não adore Deuso Para
que são necessários todos esses sumários, códigos, conselhos e advertências? [.,,]
Sereis maiores que Platão ou Pitágoras com todos os seus trabalhos e números,
que Aristóteles com todas as suas idiossincrasias e silogismos.19
19 Agostinho, The City ofCod, vo1,p,426; ele também escreveu: "Existe na alma [...] uma cobiça
que não se encanta com os prazeres carnais, mas com as percepções adquiridas por meio da
carne. É uma inquisição em vão dignificada com o título de conhecimento e ciência [..o]Para
satisfazer [...] esse anseio doentio [..o] as pessoas estudam as operações da natureza, que
estão bem além de nossa percepção quando não há vantagem em saber e os investigadores
simplesmente desejam o conhecimento por si só" (ido, Confessions, 10:35, po21O-2).
20 Vernant, Religions, Histoires, Raisonso
17
Jack Goody
18
A ideia de um renascimento
início dos períodos clássicos grego e romano a questão era outra; em Pom-
peia, por exemplo, houve estímulo a uma arte secular em que o sexo era o
tema predominante, algo praticamente impossível na maioria dos períodos
da cristandade, sobretudo com seu sacerdócio celibatário e sua ideologia
puritana. É claro que, com o tempo, a arte religiosa incluiu cada vez mais um
pano de fundo secular (como o sexo na literatura de Chaucer e Boccaccio),
mas apenas no Renascimento a pintura plenamente secular foi legitimada.
Isso se deveu, em parte, às mudanças ideológicas, mas há também a questão
do patronato, que passou a ser exercido não mais pela Igreja ou pela corte,
mas pela burguesia, e envolveu uma revitalização da cidade e da vida urbana.
O resultado é claro na atenção que se dá à natureza. A maioria dos "pintores
do início do Renascimento tinha uma consciência dos elementos da paisagem
totalmente desconhecida dos pintores do passado gótico, quando esta era re-
tratada simbolicamente".23 Evidentemente, durante muito tempo, a paisagem
constituiu um aspecto essencial da pintura chinesa. Na Europa, isso aconte-
ceu muito mais tarde; foi Dürer quem introduziu o autorretrato24 e enfatizou
aspectos visuais das pequenas criaturas. Logo depois, nas décadas de 1510
e 1520, os artistas da escola do Danúbio, em especial Albrecht Altdorfer e
WolfHuber, "começaram, pela primeira vez na Europa, a realizar estudos de
paisagens sem figuras humanas em painel ou papel como uma especialidade
independente".25 O Renascimento rompeu com o passado.
19
Jack Goody
20
A ideia de um renascimento
21
Jock Goody
22
A ideia de um renascimento
criança; a partir daí, eles começaram a brigar por sua posse. A visita ao Céu32
parecia tão essencial ao mito que fiquei impressionado quando, alguns anos
depois, registrei outra versão ("o segundo Bagre"), em que se fazia apenas
uma breve referência à jornada e o papel criativo não era de Deus (o Deus
Supremo, Na-angmin), mas do próprio homem e dos seres da floresta (konto-
me). Ninguém conseguiria reconstituir os detalhes da viagem ao Céu a partir
das poucas referências que existiam (nem jamais o havia feito até então,
pelo que eu sei), exceto eu, simplesmente porque pus no papel a primeira
recitação oral. Feito isso, ela se tornou minha versão "autorizada" e pode
ser ressuscitada a qualquer momento.33 Essa era a diferença nos meios de
comunicação, o escrito e o oral.
Exceto num plano muito geral ("mítico"), uma ressurreição específica
do passado só é virtualmente possível em culturas escritas, e isso ocorreu
com frequência na Europa e na Ásia a partir da Idade do Bronze. Inerente-
mente conservadora nas culturas escritas, a religião teve seu próprio papel
a desempenhar nessa recuperação dos textos antigos. Argumento que, em
muitos aspectos, ela se tornou mais conservadora que a atividade religiosa
das culturas orais, muito mais eclética, inventiva e não restrita a um tex-
to. Nem sempre nos lembramos de que os primeiros textos eram escritos
com frequência para serem lidos em voz alta, ou seja, talvez fossem apenas
lembretes ou resumos, em vez de manuscritos literários completamente de-
senvolvidos. No cristianismo, a procura da "verdade" implicava um reexame
dos textos antigos para encontrar a fé real. Outros já haviam feito isso: os
cátaros, Wycliffe, Huss; com a Reforma de Lutero e o Renascimento, o pro-
cesso se intensificou. Para os cristãos, a tentativa de reconstituir as palavras
de Deus ou de Cristo era o objetivo principal da sabedoria do "renascimento".
Essa recuperação do texto podia assumir a forma de uma "reforma" ou, em
outras religiões, de "fundamentalismo". Voltou-se, por exemplo, ao Antigo
Testamento e descobriu-se que Deus permitia a "poliginia", daí ela ter sido
institucionalizada na Igreja Mórmon. O mesmo acontece com o aniconismo,
pois Deus proibia a fabricação de imagens de criaturas vivas. Mas olhar para
trás também significa olhar para frente e dispor as coisas de outro modo no
presente. Foi certamente isso que aconteceu com a Contrarreforma, quando
a Igreja Católica tentou combater o protestantismo e retornou aos textos.
Isso representou uma renovação da religião.
23
Jack Goody
24
A ideia de um renascimento
25
Jack Goody
26
A ideia de um renascimento
27
Jack Goody
Casiri.46 E isso numa época em que se dizia que a maior biblioteca da Europa
cristã era a do Mosteiro de São Galo, na Suíça, que possuía oitocentos livros.
O secretário de Chaucer tinha uma "grande" biblioteca de trinta livros.
Mas é claro que é importante saber que um "livro" poderia ser constituído
por algumas folhas ou ser um grosso volume. Seja como for, a diferença de
tamanho entre as coleções do Islã e da Europa é extraordinária. E isso se
deve em parte ao fato de que o leste do Mediterrâneo e, mais em geral, o
Oriente Médio nunca experimentaram o grande declínio do conhecimento
que ocorreu no Ocidente; na Inglaterra, por exemplo, sugeriu-se que, de-
pois dos romanos, o letramento aparentemente desapareceu, assim como
o próprio cristianismo e muitas artes úteis. Quando retornou, o cristianis-
mo excluiu o conhecimento "pagão", mas manteve o latim como língua
da Igreja no oeste da Europa; isso propiciou uma espécie de abertura para
o passado. No Oriente (não na Europa Ocidental após o cisma), o grego
continuou a ser usado em Bizâncio. Isso preservou muitas obras de apren-
dizagem, algumas das quais foram traduzidas para o árabe nos séculos IX
e X, na corte de Bagdá, e, finalmente, constituíram parte do conhecimento
do Renascimento europeu.
Evidentemente, o Islã não era a única fonte de conhecimento, por mais
importante que fosse. No Renascimento, o conhecimento clássico de Aristó-
teles e outros escritores veio não apenas dos muçulmanos, mas também dos
gregos de Bizâncio - apesar do "antagonismo mútuo" entre as duas Igrejas.
É o caso, por exemplo, das traduções que William de Brabant fez por volta de
1273 na Grécia, para onde foi enviado provavelmente para aprender gregoY
No Islã, um fator importante que deu impulso à quantidade de livros e
à circulação de informações foi não só o uso comum da língua sagrada (o
árabe), mas também o advento do papel, que fez uso de refugo (trapo) e de
material vegetal encontrado em qualquer parte - ao contrário do pergami-
nho, feito de pele, ou do papiro, importado. O papel vinha originalmente da
China e foi então assimilado pelos árabes depois do século X. Os europeus
o conheceram pela primeira vez em Constantinopla e, por isso, o chamavam
de pergomena graeca, apesar de todo o papel utilizado ali ter origem muçulma-
na.48 A fabricação do papel começou na Espanha islâmica, depois foi para a
Catalunha, quando Jaime conquistou Valência, em 1238, e para Játiva, e em
28
A ideia de um renascimento
49 Em estado não refinado em Gênova, em 1235; ver Burns, The Paper Revolution in Europe:
Valencia's Paper lndustry: A Technological and Behavioural Breakthrough, Pacific Historical
Review, v.50, 1981, p.I-30.
50 Spufford, op. cit., p.357.
51 McDermott, A Social History of the Chinese Book: Books and Literati Culture in Late Imperial
China, p.43.
29
Jack Goody
52 1bid., pAS.
53 Eisenstein, The Printing Press as an Agent of Change.
54 Goody; Watt, The Consequences of Literacy, Compara tive Studies in Society and History, v.5,
1963, p.304-45.
30
A ideia de um renascimento
31
Jack Goody
32
A ideia de um renascimento
33
Jack Goody
Desde a Antiguidade clássica até o fim do século XII e início do século XIII,
nenhuma cidade da Europa Ocidental, nem mesmo a lombarda Milão, excedeu
os 30 mil habitantes. As novas oportunidades para os governantes e sua nobreza
para viverem de rendas em espécie distantes de suas propriedades rurais pos-
sibilitou de novo o crescimento das cidades no Ocidente, pela primeira vez em
três quartos de milênio.60
34
A ideia de um renascimento
61 A importância do luxo é enfatizada na obra de Sombart (The jews and Modem Capitalism) e
de Veblen (The Theory of the Leisure Class: An Economic Study in the Evolution of Institutions).
62 Crouzet-Pavan, Renaissances italiennes, p.31S.
63 Spufford, Power and Profit: The Merchant in Medieval Europe, p.82.
35
Jack Goody
é mais do que coincidência que tenha sido nessas duas décadas otimistas do início
do século XV que surgiu o patronato que ajudou a iniciar a transição do estilo do
gótico tardio para o precoce Renascimento?66
64 Ibid., p.I9.
65 Ibid., p.29.
66 Ibid., p.4S9.
36
A ideia de um renascimento
67 Espécies domesticadas que são assim designadas por não se ter registro de seu ancestral
silvestre. (N. E.)
68 Spufford, op. cit., p.28.
69 Ibid., p.29.
37
Jack Goody
Assim como havia uma demanda por melhores habitações, alimentos, bebidas
e roupas, havia também, em cada capital, uma demanda prodigiosa pela exibição
ostensiva de ouro e prata, bronze e esmalte do vale do Meuse, da Renânia e de
Limoges, pérolas do Golfo Pérsico ou diamantes, rubis e gemas da Índia.7!
Grande parte das roupas de luxo vinha da Itália, que era uma enorme
oficina e também o centro da arte. Mas ela também importava roupas e ou-
tros produtos valiosos do Oriente. Todos os campos eram dominados pelos
italianos, e por isso esse comércio estava intimamente ligado ao Renascimen-
to. Na verdade, de certo ponto de vista, a arte era apenas mais um produto
procurado por ricos, aristocratas ou membros da Igreja. E a maior parte da
atividade girava em torno das cortes, grandes e pequenas, que, por sua vez,
necessitavam de uma burguesia para abastecê-las. O comércio de produtos
estimulou a troca de informações por toda a Europa. Em I 47 I, o matemático
Johannes Müller escreveu: Ué mais fácil para mim manter contato com os
homens ilustrados de todos os países, porque Nuremberg, graças às eternas
viagens de seus comerciantes, pode ser considerada o centro da Europa". 72
'1'\ tecnologia ocidental de impressão de livros disseminou-se na Europa ao
longo das rotas de comércio, assim como os próprios livros impressos se
tornaram itens de comércio em todo o continente."73 O mesmo aconteceu
com muitas ideias religiosas, no início a heresia dos cátaros, depois a peste
e a própria arte; todos se tornaram itens de troca, como outros aspectos do
próprio Renascimento.
Spufford nos apresenta um relato útil a respeito do comerciante europeu
nos tempos medievais, que foi fundamental para esse comércio, mas sua obra
70 Ibid., pAIO.
71 Ibid., p.ll9.
72 Ibid., p.390.
73 Ibid., pAIl.
38
A ideia de um renascimento
74 Ibid., p.2002.
75 Goody, Food and Love, capo 11.
76 Hobsbawm, Benefits of Diaspora, London Reviewof Books, 20 out. 2005, p.16-9.
39
Jack Goody
40
A ideia de um renascimento
78 Thapar, The Penguin History of Early lndia, from the Origins to AD 1300, p.306.
41
Jack Goody
79 Rostow, The Stages ofEconomic Growth, Economic History Review, v.l, p.I-16.
42
A ideia de um renascimento
43
Jack Gaody
estimulados por toda parte. O historiador judeu Zafrani descreveu esses pe-
ríodos no Islã como "humanistas"; eles envolveram uma negligência limitada
da religião e, por conseguinte, certo grau de liberdade de pensamento. Max
Weber chamou isso de "desmistificação" e o historiador Keith Thomas, de
"declínio da mágica", um processo que aconteceu de maneira segmentada em
outras esferas. No direito, por exemplo, a justiça do rei sempre foi separada
da dos tribunais eclesiásticos, mas assumiu cada vez mais a jurisdição. Esse
processo de libertação do controle religioso foi mais evidente nas artes visuais
e dramáticas, que até o Renascimento haviam sido objeto de pesados tabus
na Europa: apenas temas religiosos eram permitidos.
É preciso considerar também a contribuição da cultura muçulmana para
o Renascimento italiano - não tanto da religião islâmica, embora como al-
ternativa ao relato cristão sua presença tenha estimulado a investigação de
crenças específicas e, portanto, possa ter promovido o secular. Evidentemente,
a influência muçulmana foi menor nas artes figurativas, uma vez que desde a
controvérsia iconoclasta o cristianismo havia descartado certos tabus contra
a representação que o islamismo e o judaísmo ainda mantinham até recen-
temente. No Renascimento, já permitindo a arte religiosa, o cristianismo
voltou aos modelos clássicos, enquanto o islamismo e o judaísmo proibiam
as imagens esculpidas. Portanto, as outras religiões abraâmicas tiveram pou-
ca ou nenhuma influência sobre as artes visuais, apesar de o islamismo ter
influenciado o desenho abstrato e a arquitetura, sobretudo em cidades como
Veneza.80 Na literatura, a influência não foi clara. Por exemplo, consta que a
grande obra de Dante foi influenciada pelas narrativas islâmicas das viagens
noturnas de Maomé.
A ressurreição de outro gênero literário, a ficção, que havia virtualmente
desaparecido da Europa após a queda do Império Romano, pode também ter
sido influenciada pelas tradições islâmica e indiana de narração de histórias.
Algumas formas de poesia italiana, como o soneto e o canzoniere, parecem
ter se originado no sul da Itália e sofrido influência da corte altamente is-
lamizada da normanda Sicília. Mais significativamente, no século XII, os
trovadores do Languedoc, celebrados como os criadores da poesia de amor
na Europa, devem quase certamente muito de seu estilo, conteúdo e pro-
sódia às realizações islâmicas na Espanha e em outros lugares. A poesia de
amor (gazel) era uma categoria especial da tradição, composta pelos poetas
80 Howard, Venice and the East: The Impact of the Islamic World on European Architecture 1100-1500.
44
A ideia de um renascimento
abássidas de 750 d.e. O islamista H. A. R. Gibb considera que eles foram "os
verdadeiros humanistas do Islã".8!
Alguns campos, como, por exemplo, a filosofia, parecem dever pouco
diretamente ao Islã. Como disse o filósofo Richard Rorty,82a filosofia como
a conhecemos é produto da linha Antiguidade-Renascimento do pensamento
ocidental. Na verdade, tanto os europeus quanto os árabes resgataram o co-
nhecimento grego, resgataram Platão e Aristóteles. Nos períodos humanistas,
o Islã distinguiu a filosofia da teologia e contribuiu para esse campo. Mas a
tradição europeia posterior dificilmente incluiu a filosofia árabe de Averróis
(apesar de ter sido descrito como o pai do pensamento secular na Europa) ou
a filosofia judaica de Maimônides, ao menos não de maneira explícita, embora
esses escritores tenham tido influência de ambos.83 Nas Ciências Sociais, a
obra do historiador Ibn Khaldun (t 1406), autor do Muqaddimah [Introdução],
que com frequência se remete a Aristóteles, foi totalmente negligenciada até
o presente século e, mesmo no Islã, foi pouco seguida. Ao fim e ao cabo, o
maior débito da Europa com o Islã e o Oriente está nas ciências duras [hard
sciences], e não na religião ou nas artes.
É importante reconhecer a dívida que temos com o Islã nesses outros
campos para nos redimirmos um pouco desse elemento autocongratulatório
e etnocêntrico que tanto marca nosso pensamento sobre o papel do Renasci-
mento italiano na situação mundial presente e passada. Do contrário, é pro-
vável que interpretemos mal a natureza dos avanços na ciência. Por exemplo,
a atitude eurocêntrica parece distorcer o lugar de Salerno ou Montpellier na
discussão sobre a história da medicina, como veremos no Capítulo 2. O pro-
blema é que, na Europa, nós frequentemente traçamos uma linha reta desde
a Antiguidade até o Renascimento e a ressurreição da Antiguidade, passando
pelo feudalismo, que não só excluímos a contribuição dos outros, como negli-
genciamos o fato de que, no que se refere a muitos dos aspectos do conheci-
mento, estávamos tão preocupados que a linha direta entre o mundo clássico
e o mundo do Renascimento tivesse sido interrompida com o colapso da
educação secular e sua eventual substituição por escolas religiosas, como
também prestamos pouca ou nenhuma atenção às maneiras alternativas de
pensar e agir. É claro que o Oriente Médio também não escapou dos efeitos
da ideologia religiosa na educação e no conhecimento. Mas o efeito deletério
45
Jock Goody
na ciência parece ter sido menos forte sob o controle do Islã, talvez em parte
pela herança literária dos gregos,84mas sobretudo pela persistência da cultura
urbana. Essa persistência significou a continuação do comércio e das escolas.
A noção de alternativa (das sociedades e também nessas sociedades) é
essencial, porque reconhece a natureza não intrínseca da supremacia cultu-
ral, ou seja, não atribui vantagem ou atraso a uma qualidade permanente da
cultura, como o gênio, o espírito ou a mentalidade, mas a fatores que podem
mudar com o tempo. A história raramente é escrita a partir desse ponto de
vista, mas com frequência é essencialista em sua abordagem, com frequência
etnocêntrica.
Meu próprio interesse pelo estudo comparativo do Renascimento tem
evidentemente uma dimensão política. Os líderes contemporâneos referem-
-se continuamente às contribuições das civilizações judaico-cristãs ao mundo
moderno. O Islã é deixado de lado - embora pertença muito consistentemente
à tríade de religiões que se baseiam nos mesmos textos sagrados, remetam-
-se ao conhecimento clássico e tenham muitos dos mesmos valores. Mas
não é só o Islã que é excluído da história do Renascimento: a Índia e a China
também são, embora algumas de suas realizações tenham atingido a Europa
por intermédio de um Islã que se estendia do sul da Espanha ao Extremo
Oriente. E essas realizações foram muito consideráveis. No caso da China,
]oseph Needham declarou que, até o século XVI, a ciência chinesa estava à
frente da Europa em muitos aspectos. E, na esfera econômica, a antropóloga
Francesca Bray descreveu o país como o maior exportador de produtos ma-
nufaturados do mundo antes do século XIX; só então, segundo o sinólogo
Kenneth Pomeranz,85 ocorreu a Grande Divergência. A Índia também estava à
frente da Europa em alguns aspectos, por exemplo, no uso e na produção de
algodão antes da Revolução Industrial e, intelectualmente, com seus algaris-
mos "arábicos" e a matemática. Essas culturas não estavam simplesmente de
braços cruzados à espera de serem superadas por uma Europa renascente. Elas
deram sua própria contribuição a um avanço científico, tecnológico, econômi-
co e, com isso, contribuíram nesse processo para o Renascimento europeu.
Mas o resultado de traçar e enfatizar uma linha exclusiva entre a Antiguidade
e o Renascimento foi excluir as culturas não europeias do crescimento da
84 Aristóteles era conhecido por muitos como o "primeiro grande professor". Ver Robinson,
Knowledge, its Transmission and the Making of Muslim Societies. In: The Cambridge Il/us-
trated History oi the Islamic World.
85 Pomeranz, The Great Divergence: China, Europe and the Making oi the Modem World Economy.
46
A ideia de um renascimento
civilização. Não vou tratar das implicações políticas, exceto para dizer que,
às vezes, essa exclusão, pensada ou impensada, estimula uma superioridade
falaciosa quase racista em relação ao resto do mundo. Esse sentimento se
justifica desde o século XIX - ou desde o Renascimento, diriam alguns. O
Islã e outras sociedades podem alegar superioridade moral, mas no século
XIX o Ocidente superou todas em poder econômico e militar e em educação.
O que é totalmente ilegítimo, e leva ao epíteto "racista", é projetar essa su-
perioridade, em bases quase genéticas, para períodos anteriores, apesar de
faltar evidências para isso.
O problema da história etnocêntrica não começou com o Renascimento
nem com as civilizações clássicas. A Antiguidade foi concebida num período
diferente da Idade do Bronze ou mesmo da Idade do Ferro, muito distinti-
vamente europeu e separado da Ásia, um período que colocou a Europa no
caminho da modernização. Ninguém teve uma Antiguidade, ninguém teve
democracia (a Grécia a inventou!), só nós, europeus. Mas isso é verdade, de
fato? Em Tiro, os fenícios tinham um sistema democrático e inventaram nosso
alfabeto. Também tinham Cartago, uma colônia de Tiro. Mas Cartago, rival
mediterrâneo da Grécia e de Roma, é omitida em grande parte dos escritos
sobre a Antiguidade. Não pretendo seguir até o fim a tese do historiador
cultural Martin Bernal de uma Atenas negra, mas a maneira como os falan-
tes do semítico foram excluídos da história ocidental parece ter paralelos
com o tratamento que se deu à contribuição árabe para o Renascimento.
A contribuição asiática para a comunicação na forma do alfabeto semítico
(consonantal) foi desconsiderada (ainda que, com essa "alfabetização", tenha
proporcionado à Europa cristã suas escrituras), assim como a democracia
em Tiro, Cartago e outros lugares. Todo o peso do conhecimento clássico e
humanista foi concentrado nas sociedades gregas e romanas, que criaram a
Antiguidade, a Antiguidade europeia, como forma de civilização que tinha de
ser diferenciada das culturas da Idade do Bronze do Oriente Médio e da Ásia
por seus desenvolvimentos, e que foi revivida no Renascimento.
É evidente que essas contribuições foram diferentes das do Egito e do
Oriente Médio, mas a tentativa de eliminá-las radicalmente, como fazem com
frequência os europeanistas, tem sido combatida por intelectuais como Bernal
e, na verdade, pela própria tradição judaico-cristã, embora seja reforçada pela
inclusão contemporânea de Israel na Europa por muitos propósitos.
Seria mais correto ver um florescimento da Idade do Bronze em todo o
mundo antigo do Mediterrâneo, inclusive no Oriente Médio, florescimento
este que sofreu um drástico revés com a queda do Império Romano e, em
47
Jack Goody
86 Carboni, Moments of Vision: Venice and the Islamic World, 828-1797. In: Venice and the
Islamic World, 828-1797, p.lS.
48
A ideia de um renascimento
49
Jack Goody
87 Os cristãos do sul da Índia eram nestorianos, foram condenados por heresia no século V e
podem ter fugido para a Índia no início do século VI.
88 Goitein, Letters and Documents on the India Trade in Medieval Times. Islamic Cu/rure, n.37,
1963, p.96.
89 Brotton, The Renaissance Bazaar, p.3.
50
A ideia de um renascimento
51