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FICHA TÉCNICA

COORDENAÇÃO
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
Liliana Oliveira Souza

EQUIPE TÉCNICA
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
Kesley Paiva da Silva
Luciano Silva Galeno
Ana Maria Brandão de Oliveira
Daniele Alves Lopes
Rosangela Maria dos Santos
Francisca Maria Nascimento Oliveira

ELABORAÇÃO TEXTUAL
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
Osmar Rufino Braga
Samuel Pires Melo

ILUSTRAÇÃO
Kleber Lima

REVISÃO TÉCNICA
Luciana Matias Cavalcante

REALIZAÇÃO
Comissão Ilha Ativa - CIA

PARCERIA
UFPI/ Campus Ministro Reis Veloso - Projeto de Extensão Rodas
de Griô
APA Delta do Parnaíba
Associação de Catadoras de Marisco
Associação de Moradores do Bairro Coqueiro
Associação de Moradores e Pescadores da Pedra do Sal Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária
Associação Moradores do Macapá Christiane Maria Montenegro Sá Lins CRB/3 - 952
Associação de Moradores da Canária
R672s
APOIO
Fundação SOS Mata Atlântica ROCHA, Francinalva Maria Rodrigues da

A sereia Mariá e as histórias da comunidade do Delta do Parnaíba/


Diagramação Francinalva Maria Rodrigues da Rocha; Osmar Rufino Braga; Samuel
Fabricia Lopes Pires Melo. - Parnaíba: Sieart, 2015.

48 p
Impressão ISBN: 978-85-60146-60-4
Sieart Gráfica e Editora
1. Literatura Piauiense - Contos. I. Título.

CDD B869.3
Comissão Ilha Ativa - CIA

Presidente
Leandro Inakake de Souza

Vice-presidente
Liliana Oliveira Souza

Secretária
Kesley Paiva da Silva

Sub-secretária
Daniele Alves Lopes

Tesoureiro
Mario Lucio de Moraes Damasceno

Sub-tesoureiro
Alan Elias Silva

Conselho Fiscal
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
Flávio Luiz Simões Crespo
Adilson Silva de Castro
Luciano Silva Galeno
Ana Maria Brandão de Oliveira
Maria Antônia de Oliveira dos Santos

Endereços
Sede: Rua São José, 192 - Centro
Ilha Grande - PI - CEP: 64.224-000
www.comissaoilhaativa.org.br

Contatos
cia@comissaoilhaativa.org.br
(86)3322 3505
Dedicatória

Aos povos da maré da APA Delta do Parnaíba,


pescadores, mulheres, crianças, adolescentes e
jovens que ajudaram a escrever com suas viven-
cias essa história que envolve o resgate de sua
cultura e a proteção ambiental.
Agradecimento

Aos moradores da Pedra do Sal por compartilharem suas histórias e


seus espaços de vida por meio da Memória e Contação de Histórias,
para os quais esta publicação foi elaborada no desejo de colaborar
com o resgate da memória desse espaço rico em sabedoria e de re-
cursos naturais.

A Superintendência de Cultura de Parnaíba pela credibilidade


e apoio financeiro para realização dessa publicação.

A Fundação SOS Mata Atlântica por entender


que o respeito aos bens naturais está compartilhado
dentro da cultura de um povo.

A Universidade Federal do Piauí - Campus Ministr


Reis Veloso, representado pelo curso de Pedagogia,
em nome dos professores Samuel Pires Melo e Osmar Rufino Braga
por acreditarem na construção do conhecimento
em parceria com as comunidades.

A Universidade Estadual do Piauí - UESPI,


pela professora Marcia Evelin de Carvalho por suas
contribuições na revisão textual.

Aos sócios da Comissão Ilha Ativa CIA


por valorizarem as histórias das comunidades
para o fortalecimento do compromisso socioambiental.
Sumário

7 1 MARIÁ, A SEREIA DA APA DELTA DO PARNAÍBA

9 2 OS PESCADORES DO MACAPÁ – LUÍS CORREIA

3 A COMUNIDADE DO COQUEIRO DA PRAIA, LUIZ CORREIA


12
3.1 Água de cacimba, peixe na cebola, a brincadeira do coco
3.2 O lobisomem da Mutuca
15 3.3 A arte da pesca
3.4 As formas de diversão
3.5 A vida das mulheres e a relação entre pais e filho
18 3.6 O turismo na comunidade e o Projeto Piauí
3.7 A macumba, o coco e o campo de futebol
20
4 A COMUNIDADE DE VAZANTINHA, MUNICÍPIO DE PARNAÍBA (PI)
22
4.1 Vazantinha no início do século XX
37 4.2 A cultura do povo de Vazantinha
4.3 A Associação Comunitária
42
5 A COMUNIDADE DA PEDRA DO SAL, NO MUNICÍPIO DE PARNAÍBA
45
5.1 O farol e as primeiras casas da Pedra do Sal
5.2 Os des (encantos) na área da pesca

6 ILHA GRANDE: MORROS DA MARIANA E O LABINO

6.1 Dona Mariana e a cobra que engoliu sua filha


6.2 O modo de vida do povo da Ilha
6.3 O Labino e a história do índio

7 ILHA DAS CANÁRIAS – ARAIOSES (MA)

7.1 Escravidão, lendas e mistérios


7.2 A história do coqueiro queimando
7.3 O pé de ciúme
7.4 História de lobisomem
7.5 O porco de 10 quilos

8 AS MULHERES DA APA DELTA DO PARNAÍBA

8.1 As mulheres da Comunidade de Tatus – Ilha Grande


8.2 As mulheres do Labino – Ilha Grande
8.3 As mulheres da Comunidade de Vazantinha – Parnaíba
Apresentação

Para mim é uma honra fazer a apresentação da região do delta do Parnaíba, integrantes de
área de proteção ambiental: Macapá, Coqueiro,
da obra A SEREIA MARIÁ E AS HISTORIAS Vazantinha, Pedra do Sal, Tatus, Labino, Ilha
DAS COMINIDADES DA APA DO DELTA DO das Canarias.
PARNAÍBA. Mariá é uma sereia que sempre viveu “nas
O convite partiu da coordenadora do projeto profundezas do mar, no mundo de baixo das
APA VIVA - com a seguinte declaração: “A escolha águas” e que decide entrevistar “o povo que vive
de sua pessoa para fazer apresentação foi porque no mundo de cima das águas, na APA Delta do
nos momentos em que estivemos juntos, nas Parnaíba”.
rodas de memória você apresentou a emoção Foi numa dessas entrevistas que aprendi,
por meio de poesia de nativo conhecedor de por exemplo, que a localidade conhecida hoje
nossas terras. ’’ como Praia do Coqueiro ou simplesmente Co-
Realmente participei com muito interesse de queiro foi chamada primitivamente de Coqueiro
algumas rodas de memória organizadas pela CIA da Praia, porque “a praia chegou primeiro, o
e em encantei com vários depoimentos de mora- cajueiro chegou por derradeiro”.
dores da região de nosso delta, especialmente da Por meio das conversas com moradores
Pedra do Sal, onde na minha infância conheci os da região do único delta das Américas em mar
irmãos Antônio e João Severo, lembramos neste aberto, tenta-se recuperar um pouco da memória
livro com os mais antigos moradores do lugarejo dessa gente: suas origens, seus saberes e experi-
ao lado de poucos outros. Desses dois velhos pes- ências, seus usos e costumes, ao tempo em que
cadores ouvi nos anos 50 fantásticas narrativas de vêm à tona as suas preocupações com a morte de
pescarias em alto mar e inesquecíveis histórias lagoas centenárias, com a destruição da mata na-
de assombração desenroladas no morro gemedor tiva, com a pesca predatória e com outros danos
e na pedra gigante, duas preciosas referencias do que a ambição desenfreada de “gente civilizada”
pequeno litoral Parnaibano. vem provocando em toda a região.
Esta ‘’cartilha’’, na definição do mestre Au- Entendo que esta cartilha, construído por
rélio Buarque de Holanda é ‘’livro para aprender pessoas preocupadas com a conservação da am-
a ler’’. De fato, por meio deste trabalho o leitor biental e com os sistemas naturais existentes na
terá a oportunidade de aprender interessantes região em que vivem, foi feito para, como diria
histórias contadas por nativos (pescadores, lavra- Carlos Drummond de Andrade, ‘’ acordar os
dores, marisqueiras e artesãos) de comunidades homens / e adormecer as crianças’’.

Parnaíba, julho de 2015


Alcenor Candeira Filho
E u me chamo Sereia Mariá

Mariá, a Sereia e sempre vivi nas profundezas do


mar, no mundo de baixo das águas.
O povo, que vive no mundo de cima

da APA Delta do das águas, na APA Delta do Parnaíba,


nunca soube que - apesar de gostar de
viver no mundo de baixo - eu observo,

Parnaíba
acompanho e cuido das pessoas e das
coisas do mundo de cima. Porém, não
sei por qual razão, mas o povo desse
mundo de cima tem medo de mim.
Quando me encontram sentada em
algum lugar perto do mar, em cima de
alguma pedra, na proa de algum barco
abandonado, em cima de um tronco
que passeia embalado pelas ondas
formosas dessa encantada região, ou
mesmo quando estou acomodada na
beirinha da praia, olhando quão belo
é o mar, sempre têm medo de mim.
Pois é, muita gente não sabe, mas
eu conheço profundamente a vida
no mar, no mundo de baixo, e tenho
como missão vigiar, cuidar, acompa-
nhar, guardar as histórias, as riquezas,
belezas naturais e culturais dessa
imensidão que existe no mundo de
baixo das águas e que sustenta a vida
do mundo de cima! Na verdade, é um
mundo só, que eu chamo de APA Delta
do Parnaíba! Uma região que une três
estados, o Piauí, Ceará e o Maranhão.
Eu adoro a APA Delta do Parnaíba!
A gente tem que lembrar que APA é
uma Área de Proteção Ambiental, e lá
a área é protegida por lei desde agosto
de 1996, onde encontramos muitas
riquezas e belezas naturais: cinco
espécies de manguezais, carnaubeira,
babaçu, cajueiro, milhares de espécies

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fluviomarinhas, entre muitas: o camarão, o siri, o ca- as novas atitudes e comportamentos; é forte a ideia de
ranguejo, o guará vermelho, o peixe boi. Desde sempre um progresso e de um desenvolvimento que não tem
procuro preservar essa imensa e única riqueza, não escutado e considerado o mundo de baixo. Será que o
só de fauna e flora, mas de histórias e memórias que afastamento e o sumiço de vários seres do mundo de
vi serem geradas no seio da vida do povo que nasceu baixo não é explicado pelo que se tem feito no mundo
e habita essa região – pescadores, pescadoras, maris- de cima? Nós aqui, do mundo de baixo, estamos todas
queiras, extrativistas, artesãos e artesãs. Tem muita e todos aflitos. Tenho percebido e acompanhado que o
coisa linda no mundo de cima, e que precisa de minha esquecimento está sendo o grande mal que pode nos
atenção e cuidado, apesar da maioria não respeitar os levar à falta de reconhecimento. Quero dizer que a
preceitos ordenados pelo Criador do mundo de baixo memória do que vivemos e do que nós fomos, garante
e do mundo cima. em nós o reconhecimento do que
E, de tanto escutar e fomos, do que somos e do que
saber dos desejos e am- queremos ser. É preciso
bições que andam me- cuidar da memória!
xendo com a cabeça Na viagem pela
e as ações de tanta APA Delta do Parnaí-
gente do mundo ba, vou passar pelas
de cima, eu resolvi Comunidades do
fazer uma grande Macapá e Coquei-
viagem pela área ro, no município
protegida para re- de Luís Correia;
lembrar, recontar e por Vazantinha,
recuperar histórias, Labino e Pedra do
memórias, a fim de Sal, no município
mostrar ao povo de de Parnaíba; de-
cima que todas nós e pois, sigo viagem
todos nós precisamos pela cidade de Ilha
guardar a memória para Grande e vou até a
que a história de nossas Ilha das Canárias, no
invenções, criações e ações município de Araioses,
que têm a ver com nossas ori- no estado do Maranhão.
gens e com nossas fontes ancestrais O meu objetivo nessa passagem
na relação com a natureza e com as pessoas, não seja pelas comunidades é conversar com as moradoras e
completamente abandonada, apagada e destruída! moradores antigos, saber deles como as comunidades
Quero fazer essa viagem porque muita coisa vem nasceram, como se criaram nela e foram se desen-
mudando no mundo de cima. E o que muda no mundo volvendo na vida.
de cima, afeta o mundo de baixo. Do mesmo modo, o Nessa viagem pelo mundo de cima, eu escutei
que muda no mundo de baixo das águas, interfere no muitas histórias, até histórias falando de mim, a sereia
mundo de cima. Confesso que estou muito preocupa- do mar que muita gente chama de Mãe D´água. Você
da com o que está acontecendo: são tantas invenções, vai adorar saber! Mas é preciso me acompanhar nessa
projetos; são tantos os empreendimentos, são tantas viagem! Vamos começar?

8
N
Os Pescadores uma noite de lua, maré gran-
de, pouco vento, não muito longe das
casas dos moradores e moradoras do
Macapá, eu avistei um barco de cima

do Macapá - de uma rocha. Na vela, estava escrito:


Macapá. Os pescadores com suas redes,
varas, anzóis, linhas, cestos, estavam ali

Luís Correia
muito animados com a pescaria. Apro-
ximei-me e vi que todos ficaram muito
assustados, alguns até quiseram ligar o
motor do barco e sair apressadamente.
Entre si, gritavam:
– Meu Deus, é a Mãe D’água! Va-
mos sair daqui, pessoal! Liga o motor,
Bujão, liga o motor!
– Eu estou tentando, não está dan-
do certo, parece que emperrou! – res-
pondeu o outro pescador muito aflito!
Falei calmamente para que não
tivessem medo, eu não ia lhes fazer
mal algum. Aos poucos, mesmo ame-
drontados, resolveram me escutar.
Disse-lhes que eu queria conhecê-los
e que estava muito preocupada com
o mundo de cima, mesmo vivendo no
mundo de baixo; muitas coisas estavam
acontecendo, coisas que afetam a vida
no mar e a vida na terra.
– Vocês não veem que essas coisas
têm a ver com o esquecimento, a per-
da da memória, o distanciamento das
nossas origens, de uma forma de vida
que herdamos de nossos antepassados?
– perguntei aos pescadores. Informei a
eles que a partir daquele dia, daquela
noite, eu tinha resolvido viajar pelas
comunidades da APA Delta do Parnaíba
para conversar com os moradores e mo-
radoras sobre a vida no mundo de cima,
falar sobre suas memórias e histórias,

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recuperar como foi o caminho para organizarem suas no mar. Mas o senhor só vivia do peixe? – perguntei
comunidades e o que temos que fazer para conservar de novo. E ele esclareceu: – Depois montei uma
e atualizar nossos saberes e nossos fazeres, de modo a pescaria pra mim, mas a pescaria arruinou, foi na
construir uma vida mais sustentável. – Assim fazen- época que vendi a canoa e tudo, e fiquei viajando.
do – disse para eles – podemos promover uma nova Mas, naquele tempo, tinha mais peixes, pois havia
consciência sobre quem somos, o que estamos fazendo menos pescadores, hoje tem muitos pescadores.
e para onde queremos ir. Nesse tempo das pescarias, aqui nessa área – ele
Depois desses esclarecimentos, os pescadores fica- apontou em direção a comunidade com uma vara
ram pensando e se abriram para a conversa. Perguntei na mão – não existia nada, só era lá para cima que
então: – Quem pode falar um pouco da formação e da tinha poucos moradores; hoje não, hoje tem muita
organização da comunidade de Macapá? gente morando aqui.
Enquanto me aproximava do barco, um dos pes- Novamente, eu perguntei ao pescador: – Na-
cadores, conhecido como seu Bujão1, prontamente quele tempo tinha os problemas que tem hoje na
se dispôs e logo começou a falar: comunidade?
– Cheguei aqui, porque morava no Ceará e nem Seu Bujão me respondeu:
rede para dormir eu tinha. Vim de Carnaubal traba- – Quando eu cheguei aqui, o mar não avançava
lhar na comunidade do Macapá, município de Luís nada, depois que começaram a fazer muito viveiros
Correia, no Piauí. Trabalhava com a carnaúba. Um de camarão aqui, porque mataram os manguezais,
dia, um rapaz me convidou para pescar. Comecei a aí o mar começou a avançar em pouco anos.
pescar no mar, depois fui trabalhar As consequências foram: desapa-
de garçom, que gostei muito. recimentos das casas, derrubada
Quando já entendia do ramo, de bares e de tudo que se encon-
coloquei uma barraca na trava no lugar. Assim, todos se
praia do Macapá/Maramar. mudaram da praia de Macapá e
E hoje faço parte da comu- foram para praia de Maramar.
nidade há 25 anos. Eu pe- No fim da fala de seu Bu-
guei esse apelido de Bujão jão, percebi que outro pescador
trabalhando de garçom. se esquivou para o meu lado e
Perguntei para seu Bu- foi logo me contando:
jão como era viver naquela – Meu nome é Marcos 2 .
época e ele me respondeu: Quando cheguei ao Macapá,
– Para ganhar dinheiro em 1999, era pescador. Traba-
naquela época era com a lhava na pesca, com caranguejo
pescaria. Eu nunca tinha e também na roça com agricul-
ido ao mar. A gente ia para tura. Depois comecei a traba-
o mar bem cedo, ficava lhar de garçom, na área do turis-
dois dias; aí vinha em casa mo. Hoje, tenho 10 anos nesse
deixar os peixes e voltava de ramo fazendo parte da Rota das
novo. A gente pegava Pesca- Emoções nessa comunidade. É
da, Robalo, Pescadinha, ca- mesmo, seu Marcos? – indaguei
marão e passava a semana toda olhando para ele.

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– No Macapá melhorou muitas coisas, cresceu – conti-


nuou o pescador contando – antes era um vilarejo, uma vila
de pescadores, na época em que eu cheguei aqui. As pessoas
não trabalhavam na área do turismo, o ramo forte era a pesca.
Depois, começou na área do turismo, com pousada, restauran-
tes. Quando o mar avançou, as pessoas começaram a se mudar,
mas passaram a investir novamente nas barracas.
– E como é hoje, seu Marcos? – perguntei.
– Hoje se vê que tem muita gente de fora morando aqui,
principalmente de Teresina, o que possibilita o surgimento de Questões para reflexão:
emprego para as pessoas da comunidade.
– Mas o povo de fora também traz problemas, não é seu
Marcos? – indaguei olhando bem para ele. – Observo que a
praia anda muito suja – apontei mostrando para seu Marcos. 1. De quais elementos da
– Quanto à limpeza do local, verificamos que está muito natureza a comunidade do
sujo. A gente coloca o lixo para o carro levar, mas ele passa mui- Macapá fez uso para sua
tos dias sem vir recolher. Os animais, como o jumento, rasgam constituição?
tudo, contribuindo para espalhar o lixo, deixando o ambiente
cada vez mais sujo. A gente queria mais apoio da prefeitura.
– E ninguém faz nada na comunidade? – perguntei para o 2. O que é comunidade
pescador, que respondeu: – A associação de moradores já está
quilombola e comunidade
ajudando fazendo campanhas de limpeza e cobrando o papel
do setor público. Fazer a coleta é bom para a gente, mas poucos indígena?
colaboram, ainda é preciso unir mais forças.
– Fale um pouco da sua vida de pescador, seu Marcos! 3. O que é desenvolvimento?
–No tempo em que pescava, eu ia e voltava no mesmo dia. Todas as comunidades podem
A pesca era principalmente de camarão e peixe. Na infância, se desenvolver sem prejudicar
eu pegava muito caranguejo, eu era um catador de caranguejo. nenhuma? Explique.
Costumava pegar dois, três dias e guardava para vender nos
interiores de casa em casa. A venda aqui era ruim porque ainda
4. Por que é importante
não tinhas as barracas. Agora está melhor, pois o pessoal, hoje,
conhecer a história de um
já cata os caranguejos e já vende para barracas na hora que che-
gam. Já tem procura pelo caranguejo, pelo peixe. O que falta é o lugar e de um povo?
pescador, pois o pessoal não quer pescar, já tem muitas casas e
eles preferem ficar sendo caseiros ou trabalhando na construção.
Por quê? – questionei ao pecador. Ele destacou: – É tão difí-
cil a vida de pescador que as pessoas estão deixando mais, pois
também o peixe a cada dia está diminuindo!
Despedimo-nos, naquele dia, mas já pensando em novos
encontros, os pescadores procuraram então atracar o barco na
pesqueira da comunidade.

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A comunidade do Água de cacimba, peixe na
cebola, a brincadeira do coco
Coqueiro da Praia,
Luiz Correia E ra um dia bem cedo quando
avistei um grupo de marisqueiras se
deslocando para pesca do marisco. As
mulheres estavam bem preparadas:
landuá, cesto, varas, apetrechos diver-
sos. Aproveitaram a maré secando para
seguir viagem ao local. Acompanhei e
vi que o grupo era grande, era formado
por duas dezenas de mulheres e meia
dúzia de homens e crianças. O barco
seguia ligeiro. Depois de quase uma
hora de viagem, chegaram ao local
da pesca. Todas e todos desceram e
foram logo se organizando para o tra-
balho. As mulheres, vestidas de calças
compridas, blusas de mangas longas,
óculos escuros e chapéu, mostravam-se
adiantadas. Chegando à água, pare-
ciam desenvolver um ritual: primeiro,
mexeram na água para espantar as ar-
raias, evitando o contato com o animal,
pois uma esporada da arraia maltrata a
pessoa por vários dias; depois lançaram
o landuá na lama, iniciando a cata do
marisco.
Consegui me aproximar dos ho-
mens, pescadores que estavam no gru-
po das mulheres marisqueiras. Cheguei
mais próximo de um pescador que cui-
dava da comida das trabalhadoras. Ao
me perceber chegando à beiradinha da
praia, o pescador ficou amedrontado,
desconfiado e arisco, ameaçando correr
e gritar. Eu pedi que me ouvisse, ex-
plicando que queria apenas conversar

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sobre a comunidade. Falei de ou até mesmo 150 anos.
minha missão e os motivos – De que o senhor vivia nesse tempo? – indaguei
que me levaram a estar ali a Seu Antônio de Laura.
agora, depois de ter ido – A gente sobrevivia da pesca, comia peixe natural.
visitar pescadores e pesca- Boi era criado na baixa e comia capim, você comia o
doras da Comunidade do boi e ele tinha gosto. Hoje, o boi é criado lá no estado
Macapá. de Goiás, quando chega à Parnaíba, tem um mês de
– Qual o seu nome, frigorífico, e a carne é criada com hormônios e mui-
pescador? –indaguei ao tos remédios. É comendo, adoecendo e morrendo, é
homem que tremia as o que dá.
pernas, parecendo uma – E como era a culinária do peixe? – eu quis saber.
vara de bambu. Seu Antônio de Laura explicou:
– Eu me cha-mo An-tô-tô-nio de Lau-lau-ra – res- – A vida da pesca proporcionava a gente a comer
pondeu o pescador gaguejando e a com a voz trêmula. peixe natural, cozinhado com cebola. Hoje, se você
– O senhor poderia falar um pouco de como era chega com peixe e vai botar no fogo, alguém da famí-
a vida da Comunidade do Coqueiro no passado? – lia já pergunta: “Cadê o tomate?”. “Não tem tomate
Continuei perguntando e Seu Antônio da Laura3 não”, a gente responde. “Então, não bota peixe no fogo
respondendo, com menos medo: hoje não!”. Mas, um marido criado como eu, aqui, diz
– Antigamente, no Coqueiro, a gente bebia água de assim: “Mulher, tem uma cebolinha no canteiro ou na
cacimba. A cacimba é um buraco que se faz no chão geladeira!”. A esposa responde: “Com cebola eu não
e cerca de madeira. A água, quando saia, vinha com quero, não!”. Se o marido cozinhar só com cebola, ele
cisco, se coava no pano, na boca de um pote e bebia, come só. A mulher não come, o filho não come, pois
e não tinha nenhuma poluição. O meu avô durou 95 não tem pimentão e nem aquele monte de tempero...
anos. Hoje a agua é tratada, encanada, passa pelo Tomate vermelhão, criado com agrotóxicos, e melhor,
filtro. Em casa é passada em dois filtros para poder você nem come aquele tomate e fica só cebolinha ver-
beber, um que fica direto na torneira e, o outro, sepa- de caseira, no caldo do peixe gordo!
rado. Com todo esse cuidado, quando se bebe ainda Fiquei curiosa para saber
se sente dor no fígado e no rim. A minha mulher já sobre a cultura popular. Então,
tirou 13 pedras dos rins. Essa água que vem do rio perguntei ao Seu Antônio de
Parnaíba –continuou falando Seu Antônio de Laura –é Laura:
tratada com uma tonelada de cloro, formando aquela – Como o povo se divertia
gororoba, que tudo quanto morre é jogado dentro, e na comunidade, o que gostava
tem ainda os esgotos dos hospitais. Não valorizo o de fazer ligado ao lazer e à
tratamento, porque tem a poluição. E aqui, quando cultura? Ele respondeu:
o chão não era poluído (porque hoje está poluído de – A brincadeira que tinha
fossas), aqui não tinha fossa. As fezes ficavam na ter- era do coco. Aprendemos do
ra, o porco e urubu consumiam. O chão era virgem. pessoal do Ceará. A festa
Bebia água doce e limpa, purificada pela natureza. acontecia uma vez por ano,
Hoje é tratada e está matando todo mundo. O pessoal com sanfona no Coqueiro, no
morre novo porque a poluição vem na água, vem no mês de junho; no Carnaubal,
alimento e não tem condição de sobreviver 200 anos na entrada do ano, e também no

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Sobradinho. Nós aprendemos a música do coco com embaixo, onde o meu avô morou, e nasceu coqueiro.
um marinheiro. A gente ia para o interior, no Bezerro Quando encontraram esse coqueiro nascido, cerca-
Morto em Luís Correia, para brincar essa brincadeira. ram. Uma pessoa que pegava água na cabaça para
E nós éramos aplaudidos nessa brincadeira de coco. beber, sempre deixava sobrar um pouco, para colocar
– Mas, por que essa brincadeira do coco acabou, no coqueirinho que, com esse cuidado, ia crescendo.
seu Antônio ? – questionei. O ponto de encontro de quem ia pescar, sempre era
– Essa brincadeira morreu quando as pessoas o coqueirinho da praia. A pessoa vinha, amarrava o
mais velhas morreram e acabou, mas o coco aqui era animal e ficava por ali. Em pouco tempo, chegava o
bem aplaudido. E tinha outras musicazinhas que eu companheiro, que, quando se juntava, iam olhar o
não estou lembrando agora, mas a negrada do Ceará curral. Assim, ficou esse nome de Coqueiro da Praia,
trouxe algumas. A brincadeira era a roda, uma pes- em homenagem a esse coqueirinho que apareceu.
soa balançando o ganzá, outros batendo no bumbo, Cheguei a conhecer esse coqueiro, o vi muito alto,
entrava na sapatada cada um com o litro de bebida quase se quebrando. Na época, era um menino de
na mão. Quem se agradava da pessoa que sete anos. Ele ficava localizado onde,
estava dançando, ia sapatear perto hoje, é a casa da Perpetua, da Sa-
dela, poderia ser moça ou rapaz, lete, do Sr. Antônio, ali na rua do
era todo mundo. Aimberê. Houve até pessoas que
A conversa sobre o coco chamavam também de coqueiro
com seu Antônio, acabou nos do Abelardo.
levando a falar sobre a origem A conversa com Seu Antô-
do nome da comunidade. Pedi, nio de Laura despertou-me o
então, para ele explicar. Seu interesse sobre a arte da pesca,
Antônio relatou: ou seja, sobre o modo como os
– O Coqueiro foi bem movi- pescadores pescavam. Seu An-
mentado, no ano de 1973, quan- tônio explicou direitinho:
do entrou o projeto “O Piauí se – As pessoas que colocavam
desenvolve aqui”. Entrou na nossa curral no Coqueiro da Praia,
comunidade um pessoal formado, era o Curral do Velho, Salgado.
as doutoras. Os nomes que lembro era Quem olhava a forma de como era
Doutora Gurgel, Doutor João Ribeiro, Doutor Neves, construído o curral, chamava os pescadores de brabos,
todos vieram de São Paulo com o objetivo de desen- pois cortavam a madeira para colocar no curral, mas,
volver o Coqueiro. na cabeça do mourão, deixavam um fardo de folhas.
Nesse tempo todo mundo aqui era brabo, tinha As pessoas pensavam que aquilo era ignorância, mas
medos dos outros, como a chegada de alguém de não era. Este era uma proteção para os peixes, com
fora, a pessoa não se encostava, ficava com medo, se sua sombra. Quando eles chegavam aqui, colocavam
escondendo para não encarar e não falar nada. os currais em qualquer lugar nessas marinhas, que na
– O nome de Coqueiro não significa o que a maio- maré seca ficava cheia de peixes para eles comerem.
ria das pessoas de fora chama, “Praia do Coqueiro”, Eram poucas pessoas, se o dono não tirasse os peixes
pois aqui o nome é Coqueiro da Praia, pois a praia do curral, estes apodreciam, pois era deserto.
chegou primeiro, o coqueiro chegou por derradeiro, Nessa pequena história sobre a arte de pescar vejo
não tinha coqueiro. Uma pessoa derrubou um coco lá que há um saber que está voltado para a proteção,

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mostrando que, nessa época, o pescador já tinha uma casinhas próximas umas das outras: a do seu pai, Vi-
prática de pesca que se preocupava com a vida dos cente Anselmo; a do Manoel; e a outra, do seu irmão.
peixes. Fiquei tão alegre, só imaginando: – Quantos Ele, confiado que as casas ficavam próximas umas
pescadores, quantas pescadoras, marisqueiras tinham das outras, saiu para beber sossegado. A mulherzinha
essa prática espalhada nesse mundo de meu Deus! estava dormindo com a criança, em casa, no escuro,
A comunidade do Coqueiro, a exemplo de outras pois na lamparina o querosene estava pouco. Para
comunidades, também registra histórias de “visagem”, economizar, a mulher apagou a lamparina e colocou
que é como se chama assombração ou outras coisas embaixo da rede do menino, era inverno e estava frio.
inexplicáveis, por estas bandas daqui de cima. Senti De repente, ela desperta do sono com os gritos da
um pouco de medo, pois no fundo do mar não encon- criança... Ao olhar para a rede em que estava a criança,
tramos essas histórias. Na conversa com seu Antônio, havia um grande monstro com o corpo por cima da
fiquei muito curiosa querendo saber mais sobre as criança para tirar o menino da rede e levar para ele. A
visagens do Coqueiro. Ele relatou dois fatos horríveis. mãe, aflita e assombrada, deu um grito esbravejador:
– No Coqueiro, tinha muita visagem. As visagens “Sai daí, deixa o meu filho, miserável!”. Ela nem
eram as histórias de lobisomem que ninguém acre- pensou duas vezes, correu para o canto, pegou uma
dita. Hoje o pessoal quer ver o lobisomem é dentro pá, ainda no escuro, e saiu batendo no bicho. Mas o
da televisão, mas é de borracha ou é alguém fazendo monstro era rápido e muito astucioso. Correndo de
uma montagem. Aqui tinha lobisomem de carne de um canto para o outro, não desistia, tirou o menino e
gente, para comer gente, para assombrar as pessoas. saiu correndo pelos quartos. “Deixa o meu filho, des-
O lobisomem só nasce de três acontecimentos: do graçado, deixa a minha criança, desgraçado!”, gritava
filho que convive maritalmente com a mãe; do irmão a pobre mulher aos prantos e cansada.
que convive maritalmente com a irmã; e do pai que – Com os gritos da mulher – continuou relatan-
vive maritalmente com a filha. É o monstro central. do o pescador – o sogro escutou
Ele vai dormir e o espírito dele voa do corpo e faz e saiu logo correndo em
uma marmota feiosa e assombra as pessoas. Coloca direção à casa da mãe
as pessoas para correrem, invade casas, bebe sangue em apuros. Quando o
de menino novo. bicho percebeu que
chegara mais gen-
te, saiu velozmente
O Lobisomem da Mutuca correndo para fora
da casa e viu que o
que planejara fazer
S eu Antônio, muito conhecedor das histórias de não era possível com
lobisomem, relatou: a presença de outras
– Na Mutuca, uma comunidade próxima ao Co- pessoas. Resolveu,
queiro, tem um moço que é afilhado do meu tio. O pai então, deixar a criança.
dele era um beberrão e deixou sua mãe de resguardo Mas, antes de sair, ras-
e com ela uma criancinha recém-nascida. O menino cou o rosto do menino,
tinha uns três ou quatro meses de nascido. A casa não que ficou esvaindo em
tinha porta, a mãe foi dormir com a criança e o marido sangue, no chão. Ao acen-
foi beber cachaça no Jabuti. Nesse local só havia três der a lamparina, o sogro da

15
mulher olhou o local para ver o que tinha acontecido
e constatara, sem dúvida, que o lobisomem havia A arte da pesca
atacado a casa da mulher. De imediato, pegaram a
criança e levaram para Luiz Correia, onde morava o
Sr. Chico Cândido, assim como o Sr. Loiola, os homens
C hega de história de lobisomem! – eu disse. –
Seu Antônio, o senhor poderia falar um pouco mais
que medicavam as pessoas com algum problema. Ele
da arte da pesca, como era antigamente – pedi ao
tratou esse menino, que conseguiu escapar da fúria
pescador. Ele me respondeu:
do lobisomem. Na mesma noite, a mãe abandonou a
– Antigamente, na pesca, o povo não sabia pescar.
casa, pegou a criança e foi para casa do sogro, pois
O pessoal pescava com linha de fio e anzol, feito pelo
ficava com medo do monstro aparecer novamente.
ferreiro em Parnaíba. Um anzol preto, enrolado por um
Pensando que história havia chegado ao fim e
arame amarelo; colocavam na água, mas não pegavam
a criança se salvado, escutei seu Antônio continuar
peixe, pois era um erro pegar um peixe com esse mate-
contando:
– Passado algum tempo, no inverno, o vento estava
brando. De repente, ouviram um barulho estranho na
casa da mulher que enfrentara o lobisomem. Naquele
momento, a casa estava vazia. O barulho era como se
alguém tivesse raspando o chão. O pessoal, de ime-
diato, ficou em alerta e passou a comentar que era o
lobisomem que havia voltado e estava na casa, bebendo
o sangue da criança que ele derramara no chão. Os
homens se arrumaram - o esposo, o pai, e o irmão - e
foram os três com faca e chiqueirador. Ao chegarem
bem perto da casa, aproximaram-se de mansinho,
tomando chegada. Quando encostaram próximo à
residência, bem perto, perceberam que tinha um bicho
raspando o chão. Um dos homens foi pelo local onde
ficava localizada a porta, pois não tinha porta, só havia
uns buracos em que eram colocados pedaços de ma- rial. Então, em 1958 e 1959, foi que as famílias vindas
deira. E os outros homens, seguiram por outro lado, do Ceará ajudaram a desenvolver a pesca. Chegaram
de maneira que pudessem deixar o bicho encurralado. ensinando a pescar com anzol de aço inoxidável e com
Assim, invadiram a casa ao mesmo tempo, deixando linha de náilon. Nessa época só tinha uma marca,
o lobisomem sem chance de fugir. Quando o bicho Anil, anzol inglês. Nós não sabíamos pescar nem de
sentiu a chegada dos homens, correu do quarto para corso e aceno. A gente entrava o inverno com a linha
a sala, os três homens chegaram ao mesmo tempo. O pendurada, colocando camarão como isca; se pegasse
sogro, que se aproximara primeiro do bicho, deu uma algum peixe era parum, pirambu, mas a serra, a cavala
lapada com o chiqueirador. Ao tentar fugir em direção não pegava. A pesca da cavala acontece durante o mês
à cozinha, encontrou os outros dois homens, sendo de maio em diante, quando a Sardinha pegava naquela
que um deles era medroso e de tanto medo abriu as isca, pois quando ela surge fica só brincando. Hoje a
pernas, por onde o lobisomem passou e foi embora. gente coloca dez anzóis na linha e ela pega nos anzóis

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limpinhos. A gente está matando cavala o tempo todo. a mulher com uma alegria no rosto. E continuou: –
O Louro está cansado de matar cavala, estamos no Nessas praias do Coqueiro existiam uns seis currais ou
verão e matamos cavala nas marambaias que fizemos. mais. Os primeiros moradores residiam no Coqueiro
A pesca era devagar, mas todo mundo sobrevivia das de Baixo, Barro Preto, Itaqui. Eram as famílias dos
pescarias. Agora, tem mordomia das pessoas que não Galianos, Zeca Leriano, Zé Pinto, que eram os donos
comem mais só na cebolinha e na água; tem que ter das praias e pesqueiras. A turma desse pessoal novo
muito tempero, muito óleo. Estou aposentado, mas lá eu alcancei eles morando lá embaixo, perto dos Co-
em casa, a gente, se não der duro na pescaria, não se queiros dos Pintos, Coqueiros de Baixo. No centro do
vence as despesas de casa, pois se gasta muito para Coqueiro, eram poucas casas, mas era muita fartura
comprar remédios e roupa. de peixe. Você tratava peixe, ganhava peixe. Mas veio
Pedi licença a seu Antônio, agradeci sua boa o inverno, o mar cresceu e derrubou as pesqueiras dos
conversa, e voltei para onde as mulheres estavam donos de curral, fazendo com que os donos, como Zé
pescando. Pinto, fossem se mudando até partirem de vez, fican-
Havia uma senhora, um pouco afastada do grupo. do somente o Zeca Seleriano, fazendo com que aos
Aproximei-me dela e me apresentei. A mulher, ao poucos acabassem os movimentos de curral. Depois
contrário dos homens que me viram, não teve medo disso, ficou somente a pesca com a linha.
nem quis correr, ficou encantada e maravilhada com Você poderia explicar como eram esses currais?
minha beleza! Aproveitei a aproximação e lhe falei: – – pedi para a mulher.
Sou Mariá, a sereia da APA Delta do Parnaíba! Vivo por – Os currais têm uns seis meses de vida. Para
aqui também, cuido desse mundo de beleza e riqueza! formar sua estrutura, envolvem quase três mil quilos
Estou vindo do Macapá, conversando com pescadoras de arame para colocar no curral. É muito investimento
e pescadores, pois estou preocupada com as coisas para sobreviver por seis meses e ainda não conseguir
que estão acontecendo nesse território. Resolvi sair tirar o lucro e ficar no prejuízo. O maior produtor de
do mundo de baixo para visitar o mundo de cima, tem curral foi embora para Belo Horizonte, o Zé Pinto,
muita coisa ruim acontecendo por aqui. Estou ouvindo que colocava cinco currais. O Gastão Rodrigues, que
o povo das comunidades, pois tem muita coisa nesse é o pai do Gustavo, da Pousada do Itaqui, segundo o
mundo de cima que está afetando a vida por aqui, seu filho, me mostrou um caderno antigo de notas do
fazendo as pessoas perderem o contato com suas ori- tempo do seu pai, que ele tinha pescado uns cinco mil
gens, suas memórias, suas tradições! Nem tudo que é quilos de corpo de Camurupim.
novo significa que é bom para o povo! Digo a você que Pegava-se muito peixe, não era Dona Djanira? –
é muito importante recuperar a memória do vivido. interroguei à pescadora. Ela explicou:
Você poderia falar um pouco do que você sabe sobre – Matava-se muito peixe. Matava-se tanto peixe
a Comunidade Coqueiro da Praia? Você poderia falar que queimavam uma parte para não fazer carniça na
do que você sabe fazer muito bem: pescar! praia. Do Camurupim tirava-se só a carne e levava-se
Então, perguntei à mulher, para iniciar a conversa: salgado para Parnaíba. Do espinhaço com a cabeça
– A pescaria por aqui foi sempre assim? Ela começou faziam um monte e queimava-se tudo. Nesse tempo,
a contar: matava-se em quantidade e tudo isso foi se acabando
– Meu nome é Djanira4. Como você é linda, Mariá! por causa do arame que era muito caro para botar o
Nunca havia visto você de pertinho! Só conhecia as curral. Assim, morreu essa maneira de pescar e co-
estórias que o povo conta sobre você! Vejo que você é meçou a pesca de anzol. Mas os homens não sabiam
sereia, mas é uma mulher muito bonita! – demonstrou pescar, penavam muito por não saber pescar, pois a

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produção da pescada era pouca. Pescava-se ruim e cortina se abria, as moças se apresentavam dançando,
pegavam pouco peixe. se requebrando. E nós ficávamos todas babando. Era
E a pesca, Dona Djanira, naquela época, envolvia pago, a entrada do drama era cinco contos de réis, e
homens e mulheres? – eu quis saber. só começava quando tudo estava arrumado e a casa
– Os homens iam pescar e as mulheres ficavam cheia. Quando começava, o dinheiro já estava nas
esperando eles chegarem do mar. Depois dos anos 70, gavetas das dramistas. E além desse trabalho cultural
chegou um pessoal de fora, do projeto Rondon. Chega- com drama, apareceu um moço aqui muito afamado
ram ao Coqueiro e com eles apareceram outras opções do Ceará, que apresentava um trabalho chamado
de serviços. Nesse período, também apareceu a Sra. Cassimiro, utilizando boneco de pano. Colocava uma
Almira, do município de Parnaíba, que trouxe serviço empanada e ficava por trás dos panos com os bonecos,
com artesanato. As mulheres começaram a trabalhar que chamavam de babau. Eu me encabulava porque o
fazendo tapete de taboa e os homens iam pescar. compadre Zé do Gás suspendia três bonecos ao mesmo
tempo. Suspendia o Cassimiro, o boi, o cachorro que
As formas de diversão tinha o nome de joly. O cachorro avançava no boi, o
vaqueiro fazia aquela macacada de vaqueiro. Ele fala-
va o idioma de todos os três, urrava como boi, falava
P erguntei à pescadora sobre o modo como o povo
como vaqueiro, e eu me encabulava e dizia que tinha
um diabo com ele. E Cassimiro tirava muito dinheiro
se divertia e ela me contou:
da gente, no tempo do conto, a gente pagava dois
– No Coqueiro, como divertimento, tinha drama
contos, três contos. Ele apresentava tudo, tinha uma
todo mês de junho. As moças se preparavam, compra-
cobra que engolia um homem todo. Ele apresentava
vam papel crepom e faziam as sainhas bem curtinhas,
muitas coisas em forma de bonecos. Nesse tempo, no
para fazer o drama. Eram de 10 a 12 moças, com
Coqueiro, tinha umas quinze casas e aqui tudo era
uma grande mesa, colocavam uma cortina na frente,
morro. Era uma casinha em cima do alto; uma aqui,
acompanhadas de um tocador com sanfona e cava-
outra acolá, a base da luz era a lamparina.
quinho, que cantavam a música do drama. Quando a

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lapada com uma corda, chibata. Hoje, se o pai disser
A vida das mulheres e a “meu filho não dá certo pra você ir pra onde você tá
relação entre pais e filhos projetando”, o filho já vem com palavrões, ai dá logo
as costas para o pai e ainda passa três dias sem tomar
a benção a ele.
N essa hora da conversa com Dona Djanira, Como Antônio de Laura precisava levar a comida
avistei de longe o Seu Antônio de Laura, que passava para as marisqueiras, fiquei conversando com outra
com umas panelas e uns pratos na mão, deslocando- moradora que, de longe assistia minha conversa. Antes,
se em direção ao grupo de mulheres marisqueiras. pedi a ele para que chamasse uma mulher que estava
Lembrei-me que ele não falou sobre a participação das desconfiada, para que explicasse meu objetivo para que
mulheres na pescaria naquela época, na Comunidade ela não saísse correndo pela estrada a fora. Assim fez
do Coqueiro. Pedi licença a Dona Djanira e corri pela o pescador, e a mulher tomou coragem e de mim se
beirinha da praia até o pescador, antes de ele chagar aproximou. Perguntei o seu nome e ela respondeu: –
no local onde o grupo de mulheres se encontrava. Gri- meu nome é Jesus5. Você pode falar alguma coisa que
tei: – Seu Antônio de Laura, espera aí rapaz! Eu tenho você conhece da Comunidade do Coqueiro da Praia?
uma pergunta para lhe fazer! Pedi apressadamente: – solicitei a mulher. Ela contou:
– Você poderia falar um pouco da vida das mulheres – Estou com quase 30 anos que moro no Coqueiro.
naquela época? Quando cheguei, tinha poucas casas, algumas casas
Ele então, me contou: de turistas, as ruas eram todas de areia. Quando dava
– Meu pai vivia pescando, minha mãe ficava em na época de agosto, era tanto vento, que faltava levar
casa cuidando de onze filhos, essa mulher lutava com a gente e ainda batiam uns caroços grandes de terra
esses filhos! Costurava para eles e utilizava lenha nas pernas da gente, que doía! Nesse tempo, trabalhei
para fazer o fogo para cozinhar. A nossa condição de muito com tapete, fiz muito tapete de taboa na minha
vida era muito boa em relação à vida de muita gente vida. A gente também brincava com bazar no Gonzaga.
do Coqueiro. Nós tínhamos animais: burro, jumento. Bazar era dança, festa, forró. As festas que tinham
Todo final de semana, com sete anos de idade, a gente aqui eram as brincadeiras. Algumas vezes, alcancei o
encangava o animal e ia ao poleiro buscar carga de Cassimiro Coco.
lenha para queimar, de baixo da trempe de ferro, de
fornalha, que a gente fazia quando colocava as grelhas
onde ficavam as panelas. No final de semana, quando
acabava a madeira, tinha que ir buscar, embora muitas
vezes a gente sentisse vontade de não ir, para poder ir a
uma festinha, a um jogo de bola; por isso, a gente ficava
meio escorado, sem querer fazer esse favor para a mãe.
– E como era a relação entre pai e filho? – eu quis
saber do pescador.
– Naquela época, a obediência aos pais era uma
coisa sagrada, o pai falava com o filho e ele obedecia.
Era só eles falarem que estava faltando lenha que,
depressa, íamos pegar, com obediência e também para
não apanhar, nosso pai já pegava pela orelha e dava uma

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– Nesse
A macumba, o coco e o campo de futebol tempo não
existia turismo.
E m meio à conversa, senti que havia alguém nos
Para o Coquei-
ro vinha um
observando. Pedi ao Seu Antônio de Laura para espiar povo de Parnaí-
atrás da moita. E lá tinha um homem Era um pescador ba, que passava
escondido, com medo de passar na estrada. Antônio o mês todo de
de Laura conversou com o homem e o convidou para julho aqui na
a roda. Meio desconfiado, aproximou-se e eu fui logo comunida-
explicando para ele o motivo da conversa e o que eu de, os donos
estava fazendo ali. Perguntei o seu nome e o que ele de loja, em
sabia sobre o Coqueiro. Ele, amedrontado, me fitando Parnaíba, os
meio de longe, falou: Pintos, os Li-
– Eu me chamo Francisco6. Não tenha medo, nhares, o Abe-
não, não vou lhe fazer mal – procurei acalmar o pes- lardo, Manoel de
cador. – O senhor sempre morou aqui? – perguntei Almeida, Doutor
ao homem. – Nós morávamos no Itaqui. Minha mãe Mariano. Vinham e
tinha dez filhos. Meu pai era pescador, colocava curral, passavam o mês todo
pegava muito peixe e ia vender em Parnaíba. Saía duas aqui. A gente jogava bola com os
horas da manhã e chegava nove horas da noite em casa, filhos dos ricos aos domingos.
no lombo do burro. Aqui já teve muita fartura de peixe, – O campo de futebol tem história – continuou
peixe que até apodrecia nas pesqueiras, porque não Seu Francisco – nos mudamos para esse local em que
tinha que aguentasse consertar tudo. Todo mundo no se encontra hoje, porque antes era na rua da igreja,
Coqueiro sabe disso, que a gente colocava curral, tinha dentro de uma baixa. Joguei muito nesse campo. Mas
muito tipo de peixe: Sardinha, Espada... Os pescadores todo mundo queria montar suas casas, fazer um giná-
viravam as canoas na beira da praia, porque não tinha sio, mas para mim tem que permanecer o campo de
quem tratasse. Era muita fartura. Agora que não tem futebol... Colocar uma grama de um lado e do outro,
mais, se acabou, não tem mais pescador. A pescaria para ficar bonitinho para todo mundo. Jogava, princi-
está acabando. palmente os filhos da família Mariscal, que tinha sete
– E como nessa época o povo se divertia, Seu homens e todos os setes jogavam bola. Os nomes deles
Francisco? – perguntei. Ele me contou: eram: Sebastião Mariscal, Zeca Mariscal, Luis Maris-
– Para se divertir era a macumba e o coco. O meu cal, João Batista, João de Deus, só tem dois vivos hoje.
pai, nesse tempo, era baiador do coco de roda. No Já era fim de tarde e a maré subia, chaman-
Coqueiro, antigamente era pouca casa. Quando meu do-me para seguir viagem. As marisqueiras já se
pai veio para cá, tinham onze casas. Os primeiros preparavam para voltar as suas moradias. Agradeci
moradores eram os Miguel, os Pintos, os Mariscal e os aos pescadores, pedi para eles agradecerem a Dona
Galeno. A família dos galenos é muito grande. Djanira, mulher sabida e de boa memória. Arrastei-me
– Tinha turismo aqui, Seu Francisco? – procurei até a praia, mergulhei fundo e parti.
saber.

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Questões para reflexão:

1. Mariá traz uma reflexão


sobre a importância do mar
para manutenção de todas as
formas de vida. A partir das
falas dos moradores, você
confirma o que diz Mariá?
Explique sua afirmação.

2. Quais eram as formas de


diversão do povo do Coqueiro
da Praia? Por que não se vê
mais essas formas de diversão
nos dias de hoje?

3. Qual o significado das


brincadeiras para a cultura
do povo e para a vida?

4. Quem mais se beneficiou


no processo de interação
natureza-ser humano?
A natureza ou ser humano?
Explique.

21
A comunidade E ra uma manhã linda, o sol bri-

de Vazantinha -
lhava e as águas cintilavam. Continuei
minha viagem pelas comunidades, em
busca de homens e mulheres pelo mar,

município de Parnaíba
pelas praias, pelas pesqueiras, pelos
mangues, pelas baixas, a fim de con-
tinuar ouvindo as histórias do povo da
APA Delta do Paranaíba, conversando,
reconstruindo memórias e registrando
saberes e experiências desse povo.
Passei por mais duas praias lindas, de-
pois das praias de Macapá, Maramar e
Coqueiro da Praia: a praia de Peito de
Moça e Atalaia, todas em Luís Correia.
Depois, segui em direção à Comunidade
de Vazantinha e Pedra do Sal, no mu-
nicípio de Parnaíba, e à Comunidade
do Labino, município de Ilha Grande.
Para chegar à Comunidade de Va-
zantinha, em Parnaíba, saí do Oceano
e peguei o Rio Igaraçu, rio que separa
o município de Ilha Grande do Oceano
Atlântico, onde derrama suas águas. O
rio Igaraçu é uma das cinco bocas do
Rio Parnaíba, formando o delta deste rio
junto com as suas quatro outras bocas:
Tutóia, Caju, Carrapato e Canárias.
E foi num dia em que, próximo ao
Porto das Barcas, às margens do Rio
Igaraçu, eu cheguei e encontrei várias
mulheres tirando a palha da carnaúba
para fazer seus artesanatos. As mulhe-
res eram moradoras da Comunidade
Vazantinha. A região ainda tem muita
carnaúba. De longe avistei uma senhora
que, sentada, à beira do rio, fazia os
feixes de palha. Aproximei-me deva-
garinho. A mulher ficou assustada e
começou a chamar pelas outras: – Me-
ninas, meninas, cheguem aqui, eu vi
uma sereia, eu vi uma sereia, eu vi uma
22 22
sereia! Então, eu disse para ela: – As mulheres não
estão lhe ouvindo, mas não fique com medo, quero Vazantinha no início do século XX
apenas conversar! – falei tentando acalmar a artesã.
Mas ela insistia: – Oh, meninas, meninas, meninas,
acudam aqui! Disse a ela: – Por favor, tenha calma, não –P or favor, você pode me dizer o seu nome?
faço mal, quero conversar sobre sua comunidade. Sou – pedi para a moradora. Ela, de olhos arregalados,
respondeu:
Mariá, a sereia da APA Delta do Parnaíba! – mais uma
– Sou Maria do Socorro7, tenho 67 anos de idade.
vez insisti com a mulher, explicando as razões porque
– Me fale um pouco de Varzantinha – pedi para ela.
estava ali. Ela ficou me olhando assustada, ao mesmo
– No início da Vazantinha, por volta de 1920, as
tempo encantada com minha beleza e presença. Fi-
pessoas eram muito humildes, não tinham televisão.
nalmente, silenciou e passou a me ouvir. Disse a ela:
Quando era noite, sentavam à porta da casa para
– Sou Mariá, a sereia do mar, vivo e cuido do mun- conversar com os vizinhos e observavam a claridade
do debaixo das águas, mas que estou muito preocupa- da lua do céu, porque a eletricidade não existia. Eu
da com o mundo de cima. Assumi a missão de visitar fazia roça com o meu marido. Ele pescava, como
toda essa região para conversar com as moradoras e até hoje gosta de pescar. Eu fazia trança para trans-
moradores sobre suas histórias, memórias e saberes, formar em sacas para vender no Paraiso (próximo a
pois estou vendo muita coisa se acabar, estou vendo Vazantinha). Todos os sábados eu entregava doze jogos
muito desrespeito à vida marinha, aos seres das águas. para receber um trocadinho que dava para ajudar em
Os problemas no mundo de cima estão aumentando ao alguma coisa em casa. Tive 14 filhos, criei 11. Passei
ponto de afetar o mundo de baixo. Os peixes estão se por muitos obstáculos ruins, sofri muito, mas graças
acabando, os mares estão poluídos, algumas espécies a Deus eu estou aqui contando a história. Agradeço
estão sumindo, a fauna e flora estão sendo destruídas... aquele Pai, que é muito bom, maravilhoso para nós
Os projetos que estão chegando querem apenas usar todos! Juntava arroz na roça e a palha da carnaúba
os recursos dessa região para enriquecer sem a pre- para fazer as tranças – continuou a senhora. Apanhava
ocupação e o interesse em guardar, preservar, cuidar arroz nas roças das pessoas que plantavam, em troca
de maneira sustentável das riquezas e bens que ainda ganhava arroz ou dinheiro. O dono da roça perguntava:
dispomos na APA. “você quer o arroz ou o dinheiro?”. Eu escolhia quase
Expliquei ainda: – Estou viajando por essa região sempre dinheiro para ajudar em casa, mas tinha vez
desde Macapá, em Luís Correia, visitando ilhas, co- que preferia o arroz para colocar para secar, pisar no
munidades pesqueiras para conversar sobre a vida, pilão, pois as coisas nesse tempo eram muito difíceis.
recuperar a memória do povo, suas histórias, saberes Às vezes, era colocado o arroz mole no sol pra secar,
e experiências, para registrar e manter vivo um jeito pisava no pilão e peneirava para a gente comer.
de viver que casa bem com o que temos nessa região. – O que é que tinha na comunidade nessa época?
Por isso, quero que fale comigo, me conte um pouco – perguntei. E ela, mais tranquila, foi logo respon-
da sua história, da história de sua comunidade. Assim, dendo:
a mulher se convenceu, mesmo desconfiada. – Nessa época, Dona sereia, já havia a igreja de
Nossa Senhora da Graça, aqui na ilha sempre teve a
igreja de Santa Isabel, lá embaixo, mas aqui na Va-
zantinha, não tinha utilidade nenhuma, não existia
nada. Para ir para esses lugares era uma dificuldade,
pois como eu tinha muitos filhos, teria que levá-los

23
comigo, por isso ficava dentro de casa cuidando dos Só não tem alguma coisa quem não quer nada na
filhos. Ir ao mercado era raro, pois quando aparecia vida, porque possibilidades têm para conseguir ajuda.
um trocado não dava para ir porque não tinha com Antigamente, ninguém tinha nada disso porque as
quem deixar os filhos e eu tinha medo deles morrerem condições não permitiam. Vejo que tem muita coisa
afogados no rio. boa, mas tem muitas coisas erradas aqui nessa Va-
– Para atravessar o rio nessa época – contou ainda zantinha. Nem vou falar porque é melhor silenciar,
– não tinha ponte, existia canoa que fazia a passagem porque se a gente denunciar pode complicar.
de um lado para outro. Uma vez, a canoa se alagou Nesse instante, vi chegando um senhor e quan-
e morreram duas pessoas. Outra vez, tivemos que do me viu, ficou sem saber o que fazer: se corria
salvar a vida de uma pessoa, eu chorei porque eu não ou se chegava para perto de
consegui salvar a vida de uma senhora que Dona Socorro. Aproximou-se
estava morrendo afogada. Vi desconfiado, pegando na
quando a canoa se alagou, mão de Dona Socorro e
mas eu não pude salvar puxando-a com um pau
a vida dela, porque se na mão. Prontamente a
eu entrasse na água, mulher retrucou: – solta
imaginei que ela ia se esse pau, homem, deixa
atracar comigo, assim de nervoso, tu num tá
seriam duas mortes. vendo que é uma sereia
– Na Vazantinha, que tá conversando
sempre teve o igarapé comigo? O homem
onde, para atravessá-lo, sem entender, respon-
existia uma tabua com deu: – vamos embora,
umas varinhas, e ai a mulher, deixa tudo
gente passava se se- aí, vamos correr! –
gurando para não cair Tem calma, homem
– procurou a mulher
dentro da água. Isso
acalmar o homem –
era quando a gente
Ela só quer conversar
precisava comprar um
sobre a comunidade!
quilo de farinha lá do
Ela está só conversando!
outro lado. Agora tem
O homem foi ficando um
essa pontezinha que,
pouco mais calmo, mas não
embora em péssimo esta-
largava a mão da artesã.
do, nós estamos nos céus, comparando com o que
Eu aproveitei o momento e perguntei:
tínhamos antes.
– Como é seu nome, sua idade e o que o senhor
– A senhora vê alguma diferença, comparando sabe da sua comunidade?
a vida naquela época e a vida de hoje? – indaguei à – Sou Guilherme8, tenho 53 anos.
artesã. – Fale da sua Comunidade – pedi ao homem.
– Em comparação ao tempo antigo, verificamos – A minha chegada à Vazantinha se deu em 1970.
que hoje qualquer pessoa humilde tem sua televisão, Na realidade, me considero filho de Bom Jesus. Nasci
som, sofá para sentar, geladeira, fogão dentro de casa. aqui na Ilha Grande de Santa Isabel. Vim morar na

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comunidade quando tinha 10 anos de idade, mas eu – E o que o senhor fez diante da enchente? – per-
tinha um vínculo grande com o pessoal do Labino, ali guntei para o artesão.
no Bom Jesus, porque nossa família é praticamente – Nessa época conseguimos fazer o primeiro con-
toda de lá. Mas, hoje nós temos grande parte da família junto habitacional com 23 casas da nossa comunidade,
morando na comunidade de Vazantinha. As outras que hoje mora a dona Aparecida e outras pessoas, de
pessoas vieram com a gente, se instalaram, e esse uma forma que a Vazantinha devia ser um bairro e
local pegou a forma de um bairro, que antigamente começamos a organização. Nesse período, não tinha
era chamada de Ilha das Cobras, pois era uma terra associação, não tinha nada, mas eu já tinha uma no-
que não tinha nenhum valor, só existiam seis casas. ção porque eu fui bem catequizado, tive uma grande
professora de catecismo e a gente ia muito para o mo-
vimento popular, questão de caridade. Como na época
A cultura do povo da Vazantinha a situação era muito difícil para as famílias, a gente
ia nas casas. Quando tinha uma pessoa em situação
crítica a gente se organizava para levar alimentos para
–O senhor pode me falar um pouco da cultura, uma mãe de família que tinha seis filhos e não tinha
como da comunidade, seu Guilherme? – solicitei a ele. marido, e ela sofria muito.
– A cultura das pessoas era de trabalhar na roça, – Ao verificar essas situações – continuou con-
outra boa parte trabalhava fazendo sacas pra família
Silva, porque eles tinham as terras de carnaubais e
usavam muitas sacas para ensacar pó de carnaúba. E
também tinha o Moraes S/A, que também trabalhava
com sacarias e muita gente também remendava os
sacos para o Moraes S/A.
– E como o senhor chegou a se fixar na Comuni-
dade? – assim, eu quis saber.
– Quando vim morar na Vazantinha foi porque
tive a sorte de ser premiado como o melhor artesão
(escultor) do Piauí, com 10 anos de idade. Recebi um
convite da Senhora Almira para vir morar na casa dela,
onde passei seis anos, morando lá. Em 1973 consegui
fazer uma barraquinha e, em 1974, veio uma enchente
muito grande que levou nossa casa. Aí nós tivemos
que recuperá-la, mas nessa época era muito ruim,
tinha lama demais. E ainda tive sorte, naquela época,
de medir umas terras junto com meu pai, pois diziam
que essas terras não valiam nada e eram terras de
ninguém. Por isso, as pessoas dizem que o Guilherme
quer ser dono da Vazantinha. Não é isso não, pois foi
o nosso conhecimento que permitiu isso. Em 1975
houve outra enchente grande que levou o restinho
de casa que a gente tinha recuperado.

25
tando seu Guilherme – refletimos que a Vazantinha a sua situação. Essas pessoas saíram da associação e
precisava mudar sua história, ter uma organização. não quiseram mais participar. Parece que chegou o
Nessa época, nós nos juntamos com alguns amigos: o final e na realidade não é assim, pois a Associação, a
Antônio Cunha, que morava no outro lado da cidade, cada tempo que se passa, tem uma coisa para fazer,
e com o Trindade, ele veio morar aqui também. nunca falta trabalho.
– Na realidade, onde é essa pista, da rua principal E hoje – perguntei ao Seu Guilherme – como está
do bairro – apontou ele para a estrada – era cheio de a vida na comunidade?
mato, não tinha calçamento, não tinha nada. Como – No momento, temos algumas demandas que
trabalhava com o Doutor João Silva, fazendo artesa- precisam ser intermediadas pela prefeitura, pois
nato, fizemos uma vereda da fábrica de tijolos (Irmac) temos alguns projetos elaborados no papel, mas não
em direção à ponte. Aí eu disse: – Doutor João Silva temos um número suficiente de pessoas para fazer
– explica ele – era bom se fizesse um calçamento essa reivindicação de maneira que tenha peso frente
naquela rua (pois ele era dono da IRMAC, ai ficava ao prefeito, apresentando o que queremos aqui. Em-
melhor para a fábrica). Ele disse: – Rapaz, tu sabe que bora seja grande número de pessoas que moram na
essa é uma boa ideia? comunidade, e que carecem de muitas coisas para
Continuou explicando: – Começaram a colocar melhoria de sua vida, muitos têm a autoestima baixa
material, resto de tijolo, até quando conseguimos fazer e parecem que não acreditam mais neles.
uma estrada aqui, mas só que não existia ponte, a que Como Seu Guilherme e Dona Maria do Socorro
existia era de carnaúba, que passávamos por cima. A precisavam voltar para a comunidade, depois de uma
Vazantinha tem sua história. É um bairro bom e um manhã colhendo palha de carnaúba para fazer o arte-
dos melhores lugares para morar, pois estamos em sanato, tive que deixá-los ir embora, mas eu os agra-
contato direto com o rio Igaraçu. deci pelos relatos e disse para eles que estava muito
alegre por terem tido a coragem de falar comigo. Seu
Guilherme, ao se despedir, falou algo muito importan-
A Associação comunitária te, e que eu não consegui mais esquecer. Ele disse:
– Contar o que a gente sente, o que a gente pensa,
isso é uma forma de repassar o conhecimento e saber
P erguntei ao artesão: – A Associação existe há que a gente tá vivo. Não adianta a pessoa pensar que
muito tempo? vive bem e se isolar, não conversar com os amigos, isso
– A Associação de Moradores e de artesão da Va- aí não é viver. Na nossa realidade, a gente tem que
zantinha foi criada há 21 anos. Para o início tivemos conversar com todo mundo, nós temos que aproveitar
um grupo de pessoas que decidiu se organizar, como o momento da comunidade aqui na nossa cidade,
o compadre Evaldo, Valdomiro. Essa Associação deu para que a gente saiba da nossa história e da nossa
muita vida à comunidade, embora, algumas pessoas comunidade.
não se importam mais com a Associação. Hoje tem Assim, alegre e feliz, mergulhei no rio e segui
poucas pessoas, porque a maioria do pessoal assim, minha viagem.
como daquele tempo, trabalhava e conseguia melhorar

26
As mulheres da Comunidade
de Vazantinha - Parnaíba
Dona Maria Aparecida25

–C heguei na Vazantinha em 2007. Sou do Maranhão, nasci em


Tamborim, no municipio de Tutóia. Vim embora para Ilha. Quando Questões para reflexão:
casei, morei na Ilha do Urubu, depois no Cipoal e agora moro na
Vazantinha, tudo é na ilha, pois eu gosto é da Ilha. Na época que
cheguei aqui tudo já era modificado como se encontra hoje. Já ti-
nha associação dos moradores, com Sr. Guilherme. Tinha televisão, 1. Muitas vezes, pensa-se que
dançarinas, terreiros de macumba. Aqui se vive de tudo, trabalha de somente algumas pessoas têm
tudo, de fazer coxinha, chá de burro (mingau com milho), creme cultura. Mas, devemos saber
de galinha para vender, pesca... Trabalho na horta, de manhã e de que Cultura é a forma como as
tarde. Quando morava no Maranhão era uma dificuldade, mas,
pessoas se organizam para viver.
quando eu cheguei aqui é essa maravilha. Aqui na Vazantinha se
falava de histórias de assombração, como a história de uma senhora Entendendo assim, explique a
que virava lobisomem, que corria batendo umas malas velhas secas cultura do povo da Vazantinha.
para os cachorros saírem correndo latindo atrás, mulher arrastando
as malas nessa ilha. E por falar em cultura, minha filha tem história 2. A associação é uma entidade
a contar, pois ela formou um grupo das meninas de dança, o Raízes
fundamental para o reconheci-
do Nordeste, que viajam pelo mundo a fora falando da história de
nosso local, de Parnaíba, do Piauí e do Brasil. mento e desenvolvimento de um
grupo. Diante dessa afirmação,
explique por que a Associação
de Moradores e de Artesãos da
Vazantinha foi e é importante
para as pessoas desse lugar.

27
A comunidade da A tarde já se ia, a maré secava e o
sol já estava se pondo quando percebi,
na pesqueira, alguns moradores se

Pedra do Sal, aproximando para o desembarque no


porto da comunidade. Eram pesca-
dores e suas mulheres que, ansiosas,

município de Parnaíba aguardavam com alegria o retorno de


mais um dia trabalho em alto mar. Na-
dei, saindo das pedras onde esperava
alguém se aproximar, e percebi que
uma senhora que estava na beira da
praia, distante do grupo que esperava
os barcos atracarem. Não esperava
ninguém, apenas olhava para o mar.
Procurei me aproximar, sem assustar
a tal mulher, e quando ela me avistou
notei uma um brilho em seus olhos.
Ela me acolheu, admirada, encantada
ao chegar bem pertinho de mim.
– Você é a sereia que os pesca-
dores daqui falam, não é? – indagou
calmamente.
– Sou eu mesma – falei no mesmo
tom de voz! E perguntei: – qual o seu
nome mulher?
– Em me chamo Teresa9, sou mora-
dora antiga dessa comunidade e estava
aqui, olhando para o mar, rezando e me
lembrando de meus pais e de minha
infância, brincando nessas pedras...
– Eu sou Mariá, a sereia dessa
região. Tenho aparecido muitas vezes
porque estou muito preocupada com o
que vem acontecendo nessas praias de
meu Deus, da APA Delta do Parnaíba
– expliquei.
– Governo o mundo de baixo e re-
solvi, nos últimos meses, sair viajando,
desde a praia do Macapá, passando por
aqui e indo para o Maranhão. Meus
irmãos e irmãs do fundo do mar estão
28
perturbados com tanta coisa que está acontecendo no farol, logo diziam: – “Estamos no Canto da Pedra do
mundo de cima. Várias espécies e seres, que vivem no Sal”. Quem tomava de conta do farol era chamado de
mesmo mundo que eu, estão morrendo, outros desapa- faroleiro, capataz da capitania. No fogo do farol havia
recendo, as marés estão mais agitadas, as praias sujas quatro tubos grandes, trazidos de jipe ou lancha da
e a cada dia que passa constato mudanças profundas capitania, que permitiam a luz do farol acender.
no modo de ser e viver do povo daqui. Eu sei que Dona Teresa me contou ainda que a pessoa maior
tudo muda, a vida é um movimento, como vemos na que existia aqui na Pedra do Sal era o capataz da ca-
vida das marés e dos seres do mar. Mas, percebo que, pitania, Antônio Firmino dos Santos.
em muitas dessas mudanças, o povo está perdendo a – Se fosse nessa época de hoje, se ele não tivesse
ligação com sua história e suas memórias, com seus morrido, tinha ganhado alguma coisa, mas, naquele
símbolos e lembranças que, até pouco tempo, eram tempo, não tinha esse negócio de dizer o ponto é tra-
importantes, pois sustentavam a sua luta diária, a balho, tem que ganhar isso, aquilo – explicou Dona
construção de seus saberes e experiências, bem como Teresa. Com o tempo – continuou ela – começaram
a construção de seu futuro. Vejo que – continuei expli- a chegar mais pescadores que, para se desenvolverem
cando para Dona Teresa – o povo está perdendo muitas nesse trabalho, tinham que tirar um talãozinho na
lembranças e referências que são importantes para capitania para se declararem pescadores. Se ocorresse
fortalecer os laços de uma cultura de pertencimento. alguma coisa com eles, a capitania dava um auxílio.
Dona Teresa informou ainda:
– Há quem afirme que seria a família de Dona
Elisa, a primeira moradora daqui. Eles eram descen-
O farol e as primeiras dentes de quilombo, vindos por meio de barcos que
casas da Pedra do Sal transportavam escravos e ancoraram nesse lugar.
E comentam ainda que, nessa época, existia uma
moça que vivia nos matos com medo da repressão e
D ona Teresa, entendendo minha explicação, foi que, para pegarem-na, tinham que utilizar o facão
enquanto saiam correndo no mato, mas com o tempo
logo perguntando:
– E o que você, sereia Mariá, quer saber sobre a foi amansando com as outras pessoas.
Pedra do Sal? Continuou ela:
– Quero saber um pouco da história da comuni- – É importante também lembrar a história
dade, como ela se formou – respondi. de que só existiam dez casas no lugar. E como se
– O que sei é que, no início, a Pedra do Sal tinha muito espaço, todas se localizavam longe
aconteceu com a presença de mais ou menos 15 umas das outras. Entre os donos daquelas casas
casas ao redor do farol. A casa mais próxima do farol estavam o Venâncio, Joaquinzinho, Vaquinzinho e
pertencia ao morador mais velho e ficava próxima ao a do Doutor Luiz. Os moradores mais velhos eram
morro. A história contada nos mostra que os primeiros o Severo, Coringa, Anjo, Zé Grosso, Zé Vitorino,
moradores fizeram parte do pessoal de Severo, que era Fortuna e o Coringa.
o Antônio Severo, João Severo, Ângelo Vieira, Antônio Falei para Dona Teresa de uma história, tam-
Bernardino e o pessoal de Emília. bém sobre a Pedra do Sal, que escutei certa vez,
Contou-me Dona Teresa que a única obra cons- numa noite de pescaria:
truída com telha era o farol da capitania, que servia – Cinco pescadores lançaram as redes de pesca
de sinal para os navios que, quando avistavam a luz do numa área não muito longe daqui. A noite estava

29
bonita e eles não me viram chegar. Subi numa
pedra e passei a observar os homens trabalhando.
Um deles, chamado de Garajau10, reclamando que
a pesca estava diminuindo na região, começou a
falar sobre a história da Pedra do Sal. Ele contou
que, no início, aqui na comunidade moravam três
famílias: a família Bernardinho, do João Severo e
a Carraca. Segundo esse morador, essa informação
foi contada pelo seu pai. Lembrou ainda, esse mo-
rador, que existem registros em pedras que podem
também dizer sobre as famílias que fizeram história
neste lugar. Segundo ele, foram encontrados -em
uns cascalhos- registros com os nomes Vidal e do
Zé de Brito. E também ele conseguiu ter pedra
com o seu sobrenome “Garajau”, no local que é um
visgueiro achado por ele e um colega do Ceará, em não se sabia de nada. Pelo que o povo conta, na mes-
1971. Sabendo então da existência dessas famílias ma região, numa pequena comunidade da Pedra do
que foram habitando o lugar, pelo que contam os Sal, conhecida como Alvim, área de dunas, existiam
moradores, existiram distinções da forma como vi- pessoas que tinham traços indígenas. E o morro do
viam. Eram poucos os pescadores que viviam como Urubu era habitado por outras pessoas que viviam
a família de João Severo e do Ricardo. Foi somente nesse lugar como o falecido, Xaru e a Dona Nega.
depois de certo tempo que foram chegando outras Quando terminei de contar a história para D.
famílias, como as de Silva. Os Silva fizeram as casas Teresa, já estava escurecendo e ela tinha que voltar
nas pedras para mostrar a grandiosidade da força para casa. Pediu-me licença e saiu, dizendo que
que tinham de chegar e ter o direito de ocupar uma precisa ir, pois seu irmão contaria com a ajuda dela
área pertencente à Marinha. para tratar os peixes. E foi assim que, naquela tarde,
Na conversa, um dos companheiros de Seu pude conhecer um pouco mais sobre a Pedra do Sal.
Garajau pediu para ele falar da família Silva – ex-
pliquei eu para Dona Teresa. E ele, Seu Garajau,
continuou a história:
– A história da família Silva, na formação da Pedra
Os (des) encantos na área da pesca
do Sal, começou quando eu cheguei na comunidade.
Já existiam pessoas morando no local, mas quando o
Em outro ponto, com o som das ondas quebran-
do perto da praia, escuto o redemoinho do vento que
Tavares velho vinha montado em seu cavalo, amarra- vem do mar com as vozes dos pescadores. Entre eles,
va-o debaixo da latada do Coringa, uma bodega que identifico o Julio11 que muito conta sobre a arte de
existia no povoado, e saia passeando na praia, olhando pescar e os significados que a pescaria vai ganhando
as pedras e tudo o que existia na região. O velho, como para o comércio, daí me pego ouvindo a história da
tinha terreno fora da comunidade, chegou dizendo pesca do Mero:
que as terras lhe interessavam; pegou, escreveu e até – Meu pai contou uma história do Mero. Eles pes-
hoje em dia a família dos Silva diz ser dono da Pedra cavam no visgueiro que achavam que só tinha Cavala
do Sal. E todo mundo naquela época era neutro, e Cação flamenco, mas encontravam muito Ariacó e

30
Mero. Na época não tinha a comercialização do Mero (que é a canoa ficar cheia de água). Saímos para pes-
e por isso não pescavam esse peixe. Mas, teve um car, dia 19 de julho, eu e meus dois companheiros às
tio meu que, sem que os outros pescadores vissem, cinco horas da tarde. Estava ventando muito na Pedra
colocou uma linha e pegou um Mero. Quando foi per- do Sal. O Genecir e o Adriano, nessa data, sempre
cebido pelos pescadores, foram reclamar com ele, pois comemora dizendo que é o seu renascimento.
ninguém comprava o Mero na época. Mesmo assim, Paulo contou:
ele trouxe o Mero. Quando chegou à terra, já tinha – Nós nos alagamos dia 19 de julho e fomos
um caboco no caminhão querendo comprar. Nesse encontrados dia 20 de julho, umas 10 horas da
dia, quem ganhou dinheiro foi ele, por pegar o Mero. manhã. Passamos a noite dentro da água, descemos
Ele continua: à deriva, nas águas. Para
– O Mero era um peixe desvalorizado por ser sobreviver, pas-
grande, as pessoas achavam que a carne é ruim. Para samos toda a
nós, que pescamos de linha, é mais fácil pegar o Mero. madruga en-
Para pegar um Mero tinha que batalhar muito perto costados no
das pedras, além de ter muita força para puxá-lo, barco ten-
pois ele fica localizado quase sempre debaixo das tando pegar
pedras. Já matei Mero de 200 kg, quando ainda não o cabo dele,
era proibido. A captura do Mero deveria ser proibida mas não deu
para mergulhador, pois ele ao mergulhar passa a ver certo. Fica-
o peixe e tem condição de selecionar o tipo de peixe mos à noite
que poderá pegar antes de atirar no peixe e o barco toda con-
puxar. E a pesca na linha é diferente, pois a gente joga versando
a linha e não sabe que tipo de peixe vem. A pesca do um com
Mero tem que ter muita força e nós só o pegávamos o u t r o ,
quando era mais afastado da pedra. Hoje, se formos dentro da
ao visgueiro, para as Pedras do Seu Gongo -local em água, para
que matamos Camurupins- a gente coloca as linhas que ninguém
lá, mas, não vamos saber o que a gente vai pegar, se é dormisse, pois
um Camurupim, uma Arraia ou um Mero. Ninguém se alguém pegas-
coloca a linha dizendo que vai pegar o peixe tal. Muitas se no sono se solta-
vezes, a gente é obrigada a matar o Mero quando ele ria do barco e morreria
pega na linha. de imediato. Lá pela madrugada apareceu um barco
Depois de Julio fazer a descrição de como acon- de nome Safira, que vinha de Santa Catarina, nos
tece a pesca do Mero, um peixe que, do ano de 2002 resgatou na Baía do Caju, no Maranhão, e ficou de
até 2015 é protegido por lei para que não entre em nos deixar na Pedra do Sal. Mas, quando a pessoa
extinção, o pescador Paulo Sérgio12 entra na nossa que andava no barco ligou para o seu patrão e avisou
conversa e descreve um momento de desencanto no que tinha resgatado uma canoa com três pescado-
mar. Como fiquei interessada, pedi que Júlio continu- res, ele ficou de ligar para nossa colônia, a Z-7, em
asse e ele continuou: Ilha Grande - PI para avisar a nossa família e pedir
– Nessa minha vida de pescador um acontecimen- que alguém fosse encontrar conosco. Mas, não foi
to que mais me chamou atenção foi a minha alagação avisado. E o patrão ainda deu ordem para que ele

31
continuasse a viagem, que não poderia nos deixar, sobre o Mero (espécie protegida para não entrar em
porque ele só iria entrar no Porto de Luís Correia no extinção) e destacou o cuidado com as outras espécies
domingo, pois estava no arrasto do camarão. Então, existentes na Pedra do Sal que estão para se extinguir,
perguntei aos que estavam na embarcação: - “Em se não houver cuidado por parte da comunidade. E em
quantos dias iremos chegar à Pedra do Sal?” e ele suspiros e indignação, ele balbuciou:
respondeu que seria no domingo. Contei e vi que – O mero, hoje, é proibido pegar porque as pessoas
seriam seis dias. E pensei: “Vamos chegar ainda no pegavam demais e ele entrou em extinção. Sei que
sexto dia, antes da celebração do nosso sétimo dia”. ainda tem gente a caçá-lo. Os mergulhadores acham
Mas, o nosso companheiro de canoa se desesperou e muito, e ainda encontram outras espécies que são
ficou zangado com o dono do barco. Conversamos e proibidas, como o boto e a tartaruga marinha, que es-
então disse a ele: - “Calma, rapaz! O barco é grande tão em extinção. O Cação (tubarão) também está em
e tem comida aqui para nós, estamos protegidos”. extinção. A panas-assaflora, a sirizeira que é a pana,
Quando chegamos a nossa casa, a gente ficou feliz. não existem na nossa área, bem como o Marcelino,
Ao falar da pescaria, Júlio fala também com a Tintureira que é a Gralha preta. Acredito que as
angústia do momento em que se vive a escassez dos Arraias também estejam em extinção, como a Arraia
seres do mar. Nesse momento, volto a pensar como viola, Arraia papagaio, e a raia narim, que é a pintada.
as pessoas, que vivem na terra, não compreendem a Ao lembrar o momento atual da pesca com muita
importância da proteção das praias, mesmo estando angústia, Júlio também conta os momentos de alegria
dentro de uma área de proteção. Peço que Júlio conte por ter resgatado uma tripulação que estava nas in-
como era e como está pesca de um peixe valioso para tempéries do mar, No meio de risos, falou de sua lida
eles na Pedra do Sal, o Camurupim, e também que em que pode ser solidário com outros companheiros
fale de outras pescarias. Ele contou: do mar. E assim continuou:
– Pesquei na minha canoa uns 14 peixes de – Fiz o resgate de uma tripulação com quatro ho-
Camurupim, de 30, 40, 50 kg. A pesca desse peixe mens, que saíram para passar três dias e já estavam
começa por volta do dia 15 de agosto, vai até dezem- com sete dias no mar, sem comida, sem água, à deriva.
bro e em janeiro termina a safra dele. Só que, de uns No domingo, a gente saiu para mergulhar. Lá, a gente
oitos a 10 anos pra cá, esse peixe vem aparecendo encontrou uma tripulação à deriva, pois estavam no
fora de época. O pescar antigo era aqui perto, hoje barranco com a vela rasgada. Conseguimos resgatá-los
está mais longe. Estamos indo mais de uns 25 km para terra. Após serem medicados, conseguimos par-
da distância da costa. O jeito de pescar mudou, pois ceiros que foram deixá-los no lugar de onde vieram.
antigamente pescava com linha de fio e hoje utiliza Ao ficar contemplando a beleza do pôr do sol na
linha de náilon; usamos GPS para localização das Pedra do Sal, verifiquei que se aproximavam dois pes-
pedras, pois a diferença é que antigamente era a água cadores. Nesse dia, eles foram os últimos a chegar da
que nos direcionava. Você via as encostas da água e pescaria. Aos poucos, me aproximei sem assustá-los
hoje nós estamos mais pela altura para marcar uma e verifiquei que estavam desabafando - um para o
distância, mais ou menos. Antigamente você ia indo outro- o que estava lhes entristecendo. Então fiquei
e na altura que você encontrava peixe, você marcava quietinha, escutando a conversa dos dois.
com uma pedra. Hoje a gente pesca mais nos locais – Zé Bureta, você sabe que eu, Antônio de Pádua13,
de pedras, onde as iscas se acumulam mais em cima desde pequeno sou pescador e vivo da pesca para so-
de pedras ou nas marambaias. breviver e sustentar minha família. Vivo dessa maneira
No meio de suas histórias, Júlio ainda comentou livre de trabalhar. Mas, de uns tempos para cá vieram

32
umas pessoas falando que querem “desenvolver” a Pedra do Sal de
um jeito que não inclui a comunidade, mas um desenvolvimento
que beneficia aos empresários que querem se instalar aqui. O que
nos revolta é essa maneira de dizer que estão querendo desenvolver
a região sem a participação da população local. Esse jeito de chegar
como se fossem muito entendidos da região, tentando iludir os mo-
radores com promessas de emprego. Aos poucos vão se apossando
do que é nosso, oferecendo uma nova opção de vida. Pagamos alto
preço, principalmente por perder nossa liberdade de viver. Hoje você
anda na Pedra do Sal tudo já está cercado, tem um dono e o que é da
comunidade está cada vez mais se estreitando, pouquíssimo espaço.
Como lutar para defender o nosso território? Questões para reflexão:
E até a APA Delta não tem como nos ajudar, pois falta o Plano
de Manejo. Esta Unidade de Conservação, criada em 1996, ainda
hoje, não foi possível elaborar o seu Plano de Manejo, com isso nos
deixando sem armas legais para lutar. Quando teremos resposta
1. Já foram vistas outras histórias
concreta do governo a nosso favor?
E o outro pescador, Zé Bureta14, continuou a conversa: que falam da importância do povo
–Vivo do que há na Pedra do Sal. Com os empreendimentos que quilombola para formação do lugar.
estão chegando aqui, estão aterrando nossas lagoas centenárias e Pensando nisso, faça uma reflexão
destruindo a nossa mata nativa. Isso não é um crime ambiental? E sobre o que tem em comum entre
do que complementa a nossa alimentação que é a cata do murici,
essas histórias.
guagiru, caju, castanha e de outras espécies nativas, agora estamos
sendo impedidos de realizar. Estamos impedidos de realizar nosso
extrativismo vegetal pela poda de nossa liberdade de ir e vir em 2. Entendendo a Cultura
nossas terras. A gente, que vive há muito tempo aqui, ainda não Material como sendo a finalidade
tem a posse de nossa terra. Mas, uns estrangeiros que chegam já se ou o sentido que os objetos têm
dizem donos. Isso é um abandono do governo com a população. É
para um povo numa cultura,
engraçado, mas é real, pois nós é que escolhemos as armas para nos
matar ao escolher nossos representantes políticos que nos deixam no explique qual a finalidade ou
abandono. E agora, o que será de nossa Pedra do Sal?. Só o futuro sentido do Farol para os primeiros
nos dirá. O que pudermos fazer para impedir essa destruição em moradores da Pedra do Sal. Existe
massa, faremos, lutaremos. diferença hoje?
Em meio a tantas angústias, saí escondida e com tristeza por
ouvir aquele desabafo dos pescadores, mas também feliz, pois eles
estão percebendo o que está acontecendo no mundo de cima e que
eu não estou sozinha na luta pela proteção desses lugares. E assim,
fui descansar.

33
Ilha Grande: Em minhas andanças pelos ca-
Morros da Mariana minhos e lugares da biodiversidade da
APA Delta do Parnaíba, sempre admirei
os catadores de caranguejo, que atra-

e o Labino vessam ilhas e chegam aos mangues


para captura do animal. O movimento
pela captura do caranguejo é forte na
Ilha Grande, região de muitas riquezas
e histórias.
Num dia desses, conheci o catador
de caranguejo Sr. Julinho15. Foi difícil
me aproximar dele, pois era muito
arisco, tinha medo de mim. Até que,
numa tarde bonita, acompanhei sua
viagem saindo do Porto dos Tatus - local
de grande movimentação de turistas,
pescadores e comerciantes que vêm
comprar o pescado da região e levar
para os centros comerciais em outros
Estados. Era um dia bom para a cata
do caranguejo, o caranguejo-uçá, o
mais coletado na região, estava livre
e Julinho tinha no rosto a esperança
de um trabalho produtivo naquele
dia. Depois de algumas tentativas,
finalmente consegui conversar com
o catador. Expliquei os meus motivos
e com ele tive uma longa conversa.
Enquanto catava o caranguejo-uçá,
eu procurava conhecer a história da
Ilha Grande, buscando desvendar sua
formação a partir do conhecimento e
das experiências do catador.

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34
senhor tem informação sobre essa história? – indaguei.
Dona Mariana e a cobra que Ele me contou:
engoliu sua filha – Certo dia, os caçadores tinham chegado à casa
dela e a sua filha tinha ido lavar roupa, ao lado da casa
de Dona Mariana (local onde ainda hoje existe um cór-
–V ocê pode me contar o que você sabe sobre rego, saindo do cais, do Morro da Mariana, em direção
ao Baixão). E quando ela saiu para lavar a roupa, ela
a Ilha Grande, como este lugar nasceu, como foi o
seu povoamento? – perguntei para Sr. Julinho que, demorou a chegar. A mãe se preocupou e pediu que
prontamente, começou a me relatar: o filho fosse ver o que aconteceu. Chegando ao local,
– A história de Ilha Grande iniciou, como falaram onde a moça costumava lavar as roupas, ela não se
meus antepassados, através de uma senhora por nome encontrava. E aí alarmou, chamou os que estavam por
Mariana e com a sua família. Nesse tempo, existiam lá. No mesmo instante, os caçadores saíram à procura
caçadores em Parnaíba que vinham caçar em da menina, gritando por ela e viram o rastro na beira
Ilha Grande e se hospedavam na casa da lama, e lá eles reconheceram que ela
dela. Eles iam caçar na Ilha das tinha sido atacada por algum bicho
Batatas, que também era desabi- rastejante, uma cobra que a engo-
tada. Recebia esse nome porque liu. O nome da menina que estava
tinha muita batata, ao invés de boiando no córrego era Laurinha,
ser batata brava, como batata se não me falho a memória. Os
de porco ou de tiú, era a batata caçadores pegaram a cobra e
natural que a gente come. A levaram para casa, abriram-na
Dona Mariana pedia que os fi- e tiraram a moça, que já estava
lhos fossem com os caçadores morta. Daí vem a história dos
que se hospedavam em sua Morros da Mariana.
casa, para pegar batata para Seu Júlio me contou que
comerem. existem outros relatos sobre essa
– Por que “Ilha Grande”, história, contada por vários mo-
Sr. Julinho? – perguntei ao radores da Ilha Grande, que teria
catador. dado origem ao local. Perguntei
– Ilha Grande, digo melhor, para ele se havia alguém no meio
Morros da Mariana, porque a Ilha Grande dos catadores e catadoras que poderia me
para mim é a Ilha Grande de Santa Isabel, embora dar mais informações sobre a história de formação
tenha havido um corte. Quando se fala de Ilha falamos da Ilha Grande, antigo Morros da Mariana. Ele falou:
de acidente geográfico. É uma porção de terra cercada – A presidente da Associação das Rendeiras da Ilha
de água por todo o lado. E quem divide uma ilha da Grande, está aqui no grupo nos ajudando, ela veio nos
outra, nada mais nada menos, do que o leito do rio. acompanhando em busca de matéria-prima para seu
Uma ilha não pode ser dividida. E Dona Mariana foi artesanato. É a Dona Socorro!
a primeira a ser encontrada nos Morros da Mariana. Pedi ao Seu Júlio para conversar com Dona So-
– Ouvi falar, Sr. Julinho, que ela tinha uma filha corro e ela se prontificou a falar.
e que aconteceu algo que a deixou muito triste. O Apresentei-me para ela, falei do meu propósito, e

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pedi que ela falasse sobre como nasceu a Ilha Grande, à sua frente, a figura de sua neta pedindo para que a
mas antes falasse um pouquinho sobre o seu ofício. avó mandasse construir a Capela de Nossa Senhora da
Ela relatou: Conceição e instruiu que a frente da igreja não fosse
– Sou Socorro Reis16, artesã. Se a senhora Mariá construída nem para o nascente nem para o poente.
não sabe, fazer renda de bilro é um ofício antigo, do E assim foi realizado. Dizem os moradores que, ainda
tempo das minhas avós, que teciam debaixo das árvo- hoje, muitos pedem a intersecção de Maurinha, junto
res dos quintais. Herdei delas esse ofício e hoje, junto a Nossa Senhora da Conceição, para melhor solução
com outras amigas, fazemos o artesanato, continuando de problemas e, geralmente, são atendidos em suas
um conhecimento que nossas avós nos ensinaram. preces.
– Que bonito e importante, Dona Socorro! – ma-
nifestei minha alegria. E continuei: – É bom saber
disso, Dona Socorro! É por isso que resolvi fazer essas O modo de vida do povo da Ilha
visitas e andanças pelas comunidades da APA Delta
do Parnaíba, para recuperar histórias como a sua e de
outras centenas de mulheres! Elas me mostram que Q ue história triste, Dona Socorro! – comentei
existem muitos saberes, técnicas e conhecimentos lamentando. Então, pedi ao Sr. Julinho que relatasse
que foram e ainda são, hoje, tecidos como resultados sobre o modo de vida do povo da ilha, para puxar outro
da convivência entre gerações, das relações que são assunto. E ele contou o seguinte:
construídas no cotidiano; como fruto dos valores, – Lembro que, em 1974, teve uma invernada
desejos, obrigações, descobertas que se fazem em muito boa, muito forte aqui em Ilha
um contexto de vida e trabalho... Isso, Dona Socorro, Grande. Nesse ano, aqui
cumpre um papel formador da vida social e sustenta nos Tatus não tinha ne-
um jeito de viver que ajuda a viver melhor no mundo nhum catador de ca-
de baixo, onde vivo, e no mundo cima, onde a senhora ranguejo, nenhum,
e milhares de outras pessoas vivem. – Mas, o que a nenhum! Aí eu
senhora sabe sobre a origem da Ilha Grande? – retomei fui para o man-
a pergunta de antes. Ela me relatou outra história gue, por terra,
parecida com a de Seu Júlio, com mais detalhes: mais o compa-
– Conta-se que Minervina, filha de D. Mariana, dre Antônio Ma-
foi lavar roupa, em companhia de sua filha mais ve- ria. Nós íamos
lha – Maura, de seis anos de idade, no local chamado lá para Casa Ve-
“Cupim”. De súbito, as águas cresceram e surgiu na lha. Quando a
superfície da água uma cobra Surucucu, que laçou gente retornava,
a criança com o rabo e levou-a para a parte mais descia bem ai,
profunda do poço. Os homens, ao verem a aflição no Marinheiro,
da mãe, correram até o local, atiraram-se na água e para vender os
trouxeram a cobra até a margem, rasgando sua barriga caranguejos nos
com suas facas e arrancando fora o corpo, já sem vida, Tatus.
a criança. Maura foi o primeiro corpo a ser enterrado – Então, em um
no cemitério dos Morros da Mariana. Certa noite, belo dia saímos de casa
quando D. Mariana estava quase dormindo, surgiu, só com a mão abanando, sem

36
nada para comer. Na volta trouxemos uns caranguejos, paz. – O que a gente faz? E chovendo todo tempo. E
vendemos e compramos muito suco e pão, e comemos. naquela hora eu não sei se, por Deus mesmo, vinha
Chegamos em casa com a barriga cheia de suco e pão. voando uma Inhambu e baixo, bem pertinho de nós,
Seu Júlio lembrou ainda da intervenção de um ele atirou de baladeira e matou, que quando ele foi
determinado governo com distribuição de grãos na apanhar o pássaro na outra moita do tucunzeiro, caiu
comunidade. lá no outro lado e nós saímos procurando onde ele
– Quando eu cheguei em casa, o compadre Antônio disse estar, mas passou de imediato a matar outra.
chegou primeiro do que eu, Já ia saindo com as duas Nesse mesmo instante, vinha um povo do Canto do
mãos cheia de arroz com feijão e a boca cheia, que não Igarapé, com um jumento dentro da canoa. Encosta-
podia nem mastigar. Aí ele perguntou: “Compadre você ram lá no seco e nós só ouvíamos eles de lá, gritando:
olhou como está sua cozinha?”. Aí eu disse não, e ele: “Pega lá vai, lá vai, lá vai”. Nós fomos ver o que era,
“Pois olhe aqui!”. Quando eu saí fora, lá pra cozinha que quando chegamos perto, eles estão correndo
estava uma panela em tempo de falar, cheia de arroz atrás de um preá. E não teve outra, passamos a fazer
com feijão. a mesma coisa, o meu cunhado ficou de cócoras e o
Por outro lado, conta ainda Seu Júlio que tiveram preá entrou entre suas pernas e ele conseguiu pegar
momentos muito difíceis: o preá. Ai, nos juntemos os três e fomos meditar o
– O inverno caindo que, quando foi três dias ou que devia fazer, o que seria aqui. Depois de tudo que
quatro, nós estávamos sem nada e o inverno caindo! havíamos passado, pensamos que tudo isso foi um
Mesmo diante desses momentos difíceis, Seu exemplo para não roubar.
Júlio lembra que a dignidade deve se sobrepor à de- E continuou:
sonestidade. – Então fomos comer a caça que pegamos. Como
– A várzea em cheia tinha umas baganas muito o negócio era ruim, nem farinha tínhamos, foi preciso
altas e lá uns porcos ficaram ilhados, aí me compadre pedir farinha lá na casa de minha tia. Assim, passa-
foi me convidar para roubar uns porcos: “Rapaz, va- mos o dia matando a fome com os bichos: um preá e
mos roubar uns porcos?”. Aí, eu disse: “E dá certo?”. os dois inhambus. Com esse exemplo, apreendemos
Ele disse: - “Dá!”. “Eu vou contratar um comprador que, apesar do maior perigo do mundo para o homem,
de porco daqui da Ilha Grande para nós vendermos o Deus aparece para que a gente entenda que não é o
porco para ele”. E assim ele fez, contratou a pessoa. sacrifício da vida, que ninguém deve deixar a nossa
O homem disse: “Vocês matam o porco cedo e deixam dignidade voar por um dia de fome.
escorrer bem o sangue, botam dentro de uma saca, e
na alta madrugada vocês jogam por cima do muro, que
quando eu ouvir a pancada eu já sei que são vocês;
quando for por volta das 8 até as 10h, vocês veem
O Labino e a história do índio
pegar o dinheiro”. Aí fui eu, ele e o cunhado meu,
que, quando nós chegamos lá na beira do barco para
Observando nossa conversa, outra comunitária
se aproximou curiosa e, devagarinho, entrou no diá-
pegar esse porco, ele estava ilhado nas bacanas, não
logo se apresentando:
podia sair de jeito nenhum.
– Sou Maria do Socorro17, tenho 66 anos, sou
Continuou:
neta de cearense. Eu ouvi a conversa e gostaria de
– Fiquei pensando: “Rapaz, roubar... Eu nunca
falar sobre o Labino, porque eu sou dessa comunidade.
roubei. Eu nunca comi às custas de roubo!”. Passar
– Pois se aproxime mais, Dona Maria, e fique à
fome eu já passei e “eu também” – respondeu o ra-

37
vontade! – abri espaço para a mulher. Ela então co- uma farinha gostosa, aqueles beijus que dão água na
meçou a relatar: boca, fazíamos rapadura, mel de cana! O meu avô
– Cheguei no Labino, em 1948, neta de cearense. trabalhava muito com essas coisas de fazer rapadura,
Antigamente, era um tempo muito bom, diferente mel, garapa de cana, e sei que eu me criei muito bem
do tempo desses meninos daqui, pois eles têm tudo com essas coisas e era feliz!
e não querem estudar. A gente tinha vontade, mas Perguntei para Dona Maria: – E as primeiras famí-
não tinha aula, não tinha professor, não tinha nada, lias da comunidade, a senhora tem lembrança delas?
somente trabalho. Eu me criei trabalhando. Era um – Não me lembro das primeiras famílias que
tempo que a gente não tinha tanta coisa boa, como chegaram aqui no Labino. O que recordo é o nome
dinheiro, casa de tijolo, geladeira... Não tinha de algumas das famílias que viveram
nada, só tinha um casebre de palha. Havia aqui como a dos Martins, Vianas,
uma fonte que botava água e o piso da Mendes, Lucas, Alves.
casa da gente era de areia. Nossas – E a senhora lembra das
casas pareciam com as de João de histórias antigas, contadas
Barro. Mesmo assim, era uma vida pelos seus avós? – indaguei
boa, mesmo sem essas coisas que para a mulher.
existem hoje. – Do que recordo das
– É, Dona Maria – entrei na histórias antigas, foram as
conversa – a realidade era outra contadas por minha avó.
para muita gente dessa região! Ela A trajetória do índio no
continuou: Labino; lembro que o índio
– Quando era noite de lua, deixou uma tigela de louça
o povo se sentava para contar no pé do morro e minha avó
histórias, nas calçadas, lendo resgatou para ela. Ela dizia,
romances, cantando. Muitas segurando a tigela: – minha fi-
coisas daquele tempo que não tem lha isso aqui é ainda lembran-
mais hoje. Os jovens de hoje não se ça do índio; naquele tempo ele
interessam mais em contar histórias e deixou muita coisa, como ouro
ouvir os idosos, só olham os idosos com olhar perdido; o pessoal achou moedas deixadas por ele.
diferente. Naquele tempo, mesmo a gente não tendo – E o que seus avós contaram sobre os motivos
muito estudo, era muito bom e feliz. que levaram os índios a abandonarem suas terras
Perguntei para Dona Maria: – E como é Labino e perderem suas vidas aqui na região? – perguntei
hoje, Dona Maria? Ela respondeu imediatamente: curiosa para a mulher.
– O Labino é muito bom. É um dos melhores – O que eles contaram é que os índios foram
lugares que existem. A sensação que temos é que embora, porque os portugueses tomaram de conta
estamos em um cantinho do céu, pois vivemos tão do que era deles e para isso andaram matando alguns
tranquilos. Naquela época, a gente vivia de pescar e índios, porque eles, os índios, eram muito valentes e
trabalhar de roça. Esses eram os únicos trabalhos. O os outros foram embora com medo do homem branco,
artesanato com palha de carnaúba tinha para os lados os portugueses que atacavam eles.
dos Morros da Mariana e de São Roque. Plantávamos A conversa estava boa, mas ao repararmos ao
cana-de-açúcar, banana, macaxeira, mandioca. Fazia nosso redor, vimos que estava escurecendo. Os pes-

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cadores e outras mulheres já estavam embarcando de volta ao Porto
dos Tatus. As mulheres se despediram e seguiram de volta para casa.
Aproveitei, seguindo viagem na direção das Ilhas Canárias, aventu-
rando encontrar pescadores da região.

As mulheres da Comunidade
de Tatus - Ilha Grande
Questões para reflexão:
Dona Claudia 23

– Quando eu tinha uns 12 anos, juntei uma turma de meninas.


A gente pegou uns sacos, pois naquele tempo não sabíamos fazer
cofo de carnaúba, e nos embrenhamos nessas dunas. Subimos no 1. Já foi visto outras histórias daqui
primeiro alto e descemos, quando encontramos uma cobra. Ao ver que falam da importância do povo
a cobra, as molecas se espalhavam para tudo quanto foi lado. Como indígena para formação do lugar.
eu era a moleca mais danada e também a menor, eu disse: “Não Pensando nisso, faça uma reflexão
vamos voltar não, a gente vai matar essa cobra”. E fomos matar a
sobre o que tem em comum entre
cobra. Para matar essa cobra - todo mundo como medo- peguei a
cobra e coloquei no ombro, e sai exibindo meu troféu. A minha mãe essas histórias.
em casa, achando que estávamos pegando caju. Depois do episódio
da cobra é que fomos apanhar caju e cajuí. Para a coleta, eram se- 2. Entendendo a Cultura Imaterial
parados os mais bonitos e as castanhas em outro saco para vender. como sendo as expressões de vida
Utilizávamos o dinheiro para ajudar em casa. Essa coleta virava
e tradições que comunidades, gru-
uma diversão, pois todo mundo banhava nas lagoas e ficava um pé
na lagoa e outro no cajueiro. pos e indivíduos em todas as partes
do mundo recebem de seus ances-
Dona Luiza24 trais e passam seus conhecimentos
a seus descendentes. Explique
– A gente ia para apanhar caju. Eu, a Helena do Chaga Bilú, a
quais elementos narrados nas
Claudia, e outras mulheres. O pé de cajueiro estava carregadinho de
histórias da Ilha Grande podem ser
caju. Comentei com minhas amigas que aquele cajueiro tinha algum
problema. Quando as mulheres viram o cajueiro começaram a bater considerados Cultura Imaterial?
e a derrubar com tudo, mas tinha uma caixa de maribondo grande,
chamado taturana preto. Esses maribondos saíram voando, que eu
só vi essas mulheres gritarem com as bacias na cabeça, correndo
desesperadas. Teve umas mulheres de tantas picadas ficaram com
febre. Hoje quando a gente vai catar caju primeiro presta atenção,
se ele tem muito caju é porque tem algum problema dentro.

39
A Ilha das Canárias - Escravidão, lendas e mistérios
A tarde estava linda, as águas mor-

Araioses (MA) nas. Minha missão pelas comunidades


da APA Delta do Parnaíba incluía visitar
a Ilha das Canárias, a segunda maior
desta região. Essa ilha faz parte da Re-
serva Extrativista (RESEX) Marinha do
Delta do Parnaíba, criada pelo Decreto
s/n de 16/11/2000 na área da APA, a
RESEX abrange os estados do Piauí e
Maranhão (município de Ilha Grande
– PI e Araióses – MA), com 275,6 km²
requerida por 3.600 famílias. Tive sor-
te, pois ao chegar nas proximidades do
povoado, na pesqueira, vi um senhor
arrumando o barco após um dia de
pesca nas águas da ilha. Cheguei de
mansinho e chamei o pescador:
– Senhor, senhor? – chamei
sem assustar o homem. Quando ele me
viu, ficou parado sem saber o que fazer,
emudecido, olhos completamente arre-
galados. Depois de um longo instante,
ele gritou:
– Socorro! Socorro! Me acode,
criança!
– Calma, senhor, não se assuste,
não vou lhe fazer mal! – procurei
acalmá-lo.
– Chega, gente! Chega, gente me
acode, é uma Mãe D’água! – continuou
clamando o senhor!
Continuei insistindo: – Senhor, só
quero conversar, sou Mariá, estou aqui
apenas para fazer uma breve visita,
saber da história da comunidade!
E ele, muito assustado, retrucou:
– A senhora quer saber o quê?
A senhora quer é me encantar e me
levar daqui!

40 40
– Não, senhor! Quero apenas que me fale a res- saber mesmo? – perguntou-me o pescador.
peito da história da comunidade! – expliquei cuida- – Você poderia me falar como a comunidade se
dosamente para ele. E continuei: – estou preocupada originou, como era a vida no começo da comunidade?
com o mundo de cima, onde você vive; o mundo de Ele respondeu:
baixo, onde vivo, está sofrendo por causa dos aconte- – Cheguei nessa comunidade, em 1960. A gente
cimentos, dos projetos e das ações do povo do mundo ia vivendo e a vida era muito sofrida aqui, se tinha
de cima. Você sabe que o peixe está diminuindo, as necessidade de tudo. Entre as necessidades da época,
águas estão sendo poluídas; os grandes empreendi- tinha também muitas facilidades, pois havia fartura de
mentos estão chegando com força e sem respeitar a peixe, caranguejo, siri. O que não se tinha era mercado
vida marinha, a fauna, a flora, enfim as riquezas que para exportar essas coisas.
temos nessa região! – E como esse povoado se formou, Seu Juve-
Aos poucos, o homem foi se desarmando e passou nal? – indaguei ao pescador.
a prestar a atenção, mas ficou atento com a faca – Se tinha muitas lendas das histórias do
na mão. Perguntou-me, desconfiado: – O lugar – explicou Seu Juvenal – que hoje
que a senhora quer saber mesmo sobre essa garotada não tem conhecimento.
nossa comunidade? São coisas que praticamente estão sen-
– Quero saber da origem da do esquecidas. A televisão veio apagar
comunidade, como ela começou. essa história, a realidade, a essência
Você pode me contar? – Devolvi a das histórias da comunidade, do
pergunta. povo. Porque na minha época de
– Eu respondo, mas a senhora menino não tinha televisão. O nosso
fica aí de longe e eu fico aqui! – Ne- divertimento era fazer uma roda no
gociou o pescador. terreiro da casa e contar as histórias.
– Está tudo bem, fico aqui e A mãe contava histórias dos avós e
você me conta o que sabe sobre a dos pais. A roda era muito divertida
comunidade! Mas, antes, quero lhe e interessante, pois se ouvia histórias
dizer que estou numa missão, que é e não tinha essa necessidade de sair
recuperar a história das comunidades na rua, porque aquelas histórias eram
da APA Delta do Parnaíba, ajudar a re- atrativas, interessante e gostosas de se
construir a memória do povo que viveu e que ouvir.
vive nessa região, pois muita gente está se afastando – E hoje, Seu Juvenal, as pessoas não tem mais
da sabedoria, dos conhecimentos, das experiências essa prática de contar histórias aqui na comunidade?
que sustentaram e contribuíram para o bom desen- – perguntei ao pescador.
volvimento da vida que construímos nesses lugares, – O que hoje a gente raramente vê é uma reu-
seja no mar, seja na terra! O meu nome é Mariá, a nião da família para contar histórias. A gente passa
sereia que cuida da APA Delta do Parnaíba. horas na televisão e fica mais preocupado com que
– Entendi, Dona Mariá. Eu vou lhe ajudar, mas está acontecendo em Israel, os caras se detonando, e
a senhora fica por aí mesmo, no cantinho onde a se- esquece de nossa realidade. Mas entre essas histórias,
nhora está! – falou, ainda tomado pelo medo. sinto saudades de muitas delas. Eu sinto saudades do
– Meu nome é Juvenal de Carvalho18, sou pesca- aconchego familiar, de toda a noitinha ficar sentado
dor daqui da Ilha das Canárias. O que a senhora quer na areia, que pra mim era muito mais interessante

41
que está sentado nessa pedra quente aqui, era aquele pediu para eu mergulhar
terreiro limpinho que as pessoas tinham o cuidado de na água e só voltar depois
estar limpando e contando as histórias. que ele explicasse tudo
– E o senhor lembra de alguma história que gos- para ela, evitando que ela
taria de contar e que lhe marcou profundamente? se assustasse. Assim eu
– perguntei ao pescador. Ele contou: fiz, enquanto a mulher
– Entre as histórias se tem as lutas, pois sou se aproximava. E entre os
descendente de escravos, o meu bisavô foi escravo e dois, a conversa se deu:
trabalhava acorrentado. O meu pai era bem moreno, a – Ei Maria, ainda
minha mãe era mais clara um pouco. Era uma história bem que você chegou,
que eu ficava arrepiado de saber de como era difícil a pois eu não sabia como levar
vida naquela época, de ser escravo e trabalhar amarra- tanta coisa até a nossa casa!
do e, quando você não aguentava, apanhava para ainda – Pois é, Juvenal, eu estava estranhando
ter força. Os meus parentes escravos trabalhavam no a tua demora porque você ficou de chegar mais cedo,
Piauí, para a região da Ilha Grande. Chegou a traba- por isso que eu vim.
lhar numa região dos Morros da Mariana, próximo do – Olhe, Maria, não se assuste no que eu vou te
Camaço, não lembro direito o nome do lugar... Para falar... Eu demorei porque estava conversando com
quem vem de Parnaíba, fica próximo ao caminho do uma sereia...
Cipoal, das Ilhas das Batatas. Depois de muito tempo A mulher interrompeu logo, dizendo:
foram libertados. O meu avô já nasceu numa época – Tu está é doido ou mentindo, homem! – retru-
de liberdade, mas o pai dele ainda passou por essa cou.
dificuldade, essa situação de trabalhar como escravo. – Não, não estou não, ela estava falando comigo!
–Seu Juvenal – interrompi o homem – como o se- – Que mentira, homem! Tu foi encantado, foi?
nhor lembra dessas coisas de quando era mais jovem? – Que nada, mulher, se você prometer de não
– Essas histórias refletiam nas mentes da garo- se assustar, eu chamo ela, mas você não pode fazer
tada, pois a gente imaginava como seria a vida de se escândalo! – negociou o pescador.
trabalhar amarrado com uma corrente e ter um cara Dona Maria, muito curiosa, disse:
ainda com um chicote de corrente também para estar – Tá certo, eu não vou me assustar, mas tu tem
batendo nos escravos. Isso era uma forma de motivar que me prometer que tu não vai correr e me deixar
a gente a permanecer nessa liberdade, que hoje eu só aqui! – pediu ela.
entendo que ainda não somos livres totalmente. A – Eu não vou correr, porque ela estava conversan-
princesa Isabel assinou a Lei Áurea, mas em muitos do comigo sobre a história da comunidade. Ela é uma
casos ainda somos escravos; na questão de liberdade sereia que quer saber do mundo daqui cima, porque
de escolha a gente tem muita liberdade, mas ainda ela vive no mundo debaixo. Ela, Maria, tá visitando
não temos a liberdade de uma definição do que a as comunidades pra conversar com o povo e ajudar o
gente quer. Como, por exemplo, qual a comunidade povo a não largar mão das coisas que o povo aprendeu
que a gente quer? na vida e que ainda guia as pessoas nos dias de hoje,
No meio da conversa, Seu Juvenal avistou uma que são os nossos saberes e nossas experiências. Ela
mulher de longe, com um cesto nas mãos. Era da sua quer ajudar o povo a guardar sua memória pra que o
família, vinha ao sem encontro para ajudar a levar os povo fique firme na sua identidade e na sua luta por
peixes. Antes de chamar a mulher, Seu Juvenal me uma vida melhor.

42
– É mesmo, Juvenal? Eu estou é assustada dessa pai Lula, que sem ele nós não tínhamos essa luz. No
conversa, mas estou curiosa para ver. Cadê ela, ho- ano de 2005 a luz chegou aqui, e para nós foi uma
mem? vida muito boa. Aliás, para todo mundo do Nordeste.
Seu Juvenal, já ansioso, gritou: – Mariá, aparece A mulher se empolgou e continuou a falar:
Mariá, vamos terminar nossa conversa? – Pois é, uns acham que o Lula foi ruim, mas por
De repente, apareci e a mulher deu um pulo e Nordeste ele é muito bom! Porque hoje já tem o Bolsa
gritou arrepiada: Família, tem o bolsa verde. Para o menino estudar,
– Valha, minha Nossa Senhora, é uma sereia o governo paga a bolsa escola. Para uma mulher ter
mesmo, gente! criança, o Governo paga a bolsa maternidade. Então
Seu Juvenal segurou na mão da mulher e disse: hoje é um mundo bom para gente viver. A gente tira
– Tem calma mulher, ela não vai fazer mal pra seguro desemprego da pesca. Eu já tirei muito ma-
gente! Tem calma! Dona Mariá, essa é Maria, mora risco e pesquei muito siri e hoje eu estou contando a
aqui na ilha – falou ele, me apresentando a mulher. minha história para vocês. Podem até dizer: “a Lucia
E eu disse: só estava falando besteira”. Não, eu estou falando a
– Oi Dona Maria, não fique com medo não, eu não realidade, o que aconteceu comigo, a minha vida foi
faço mal pra ninguém. Seu Juvenal explicou direitinho pescar, tirar marisco, pescar siri, apanhar murici e
minha visita. Pois é, estou aqui para conhecer a vida castanha e trabalhar na roça com a minha mãe. A
do mundo cima e ajudar a recuperar a memória do minha vida foi muito sofrida, mas não é por isso que
povo para que ele continue construindo sua história vou dizer que foi ruim, foi boa! Porque hoje eu tenho
e buscando novas formas de organização e manuten- o que comer, e quem chega com fome na minha casa,
ção da sua cultura. Já que você está aqui, você pode eu ajudo. Estou aqui para ajudar todo mundo, pois
contar o que você sabe sobre essa comunidade, sobre eu sou feliz!
essa ilha? Entrei na conversa para perguntar:
Ainda, meio assustada, ela falou: – A senhora falou de como era a diversão. A se-
– Eu sou Maria Lucia19, como falou o Juvenal, eu nhora pode falar um pouco dessa questão? – pedi para
só me lembro que no ano de 1961 o que eu mais fazia a mulher. Ela explicou:
aqui com a minha mãe era apanhar arroz na Cuju- – Os festejos aqui antigamente eram muito ani-
beira, as sacas de arroz. E também apanhava murici mados, como ainda é. Mas antigamente era mais. Eu
na Caiçara e castanha. Porque toda vida eu gostei de acho que naquela época, a animação era maior porque
trabalhar. Toda vida eu gostei de ter o meu dinheiro não tinha televisão, não tinha luz, ai o povo era aquela
próprio, pra eu não fica pedindo ao meu marido. Eu animação, mas tinham mais vontade de se reunir –
também tenho uma lembrança muito forte é das continuou a mulher. A minha sogra contava que os
diversões... O que tinha de diversão eram as missas, primeiros moradores das Canárias foram a família do
jogo de futebol. As brincadeiras de roda que a gente Pião D’água. Algo que marcou minha vida foi uma
brincava muito era a de “cair no poço”, a gente brincou mesa que tenho, pois foi a primeira mesa que eu tive,
bastante. Hoje não tem mais, devido à televisão. Antes e ela nunca acabou. Fiz de tudo para que ela não se
aqui, em Canárias, a vida era muito difícil, não tinha acabasse. Comprei uma latinha de tinta e mandei o
energia elétrica, pois era na lamparina, no querosene. meu marido pintar. Enquanto viver ela vai estar jun-
Se a gente queria gelar algumas coisas, a gente pre- to comigo, porque de tudo que eu tive já se foi, e ela
cisava comprar gelo. Hoje já melhorou muito, porque continua. Ela significa muita coisa. Eu não vou contar
luz é vida. Ai apareceu aquele pai, que eu chamo de o segredo que ela tem, mas só Deus sabe da felicidade

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que eu tenho dela e, hoje, eu queria mostrar pra vocês, são memórias individuais, é uma memória coletiva,
era ela e uma panelinha, mas a panelinha uma moça comunitária, onde estão as referências do que foi
de Parnaíba, chamada Mana, que a Socorro conhece, vivido pelo povo. Percebi que era como se estivesse
endoidou pela minha panelinha, e aí eu troquei por visitando uma grande árvore, coberta de cera, onde o
outra maior. E ai hoje poderia estar também ali a povo grudou nela suas experiências, conquistas, fatos
panelinha para eu mostrar pra vocês. e situações que as marcaram profundamente. Cada
Notei que já estava escuro e os moradores preci- lugar é como se fosse essa árvore. E são essas árvores -
savam voltar para casa, que parecia não ficar perto onde estão fixadas as memórias, o vivido de cada uma,
dali. Então sugeri: de cada um - que produzem os frutos e sustentam a
– Seu Juvenal e Dona Maria Lucia, como já está caminhada do presente e das lutas do povo de hoje.
escurecendo, gostaria de saber se vocês poderiam Os frutos gerados pela memória não podem apodrecer,
reunir mais algumas pessoas amanhã, aqui eles precisam ser ressignificados, revalorizados,
mesmo nessa palhoça para continuar a revitalizando a vida para que ela continue
conversa sobre a história dessa ilha. produzindo frutos no presente. Observei
Vocês convidam algumas, mais também que a memória coletiva ajuda
umas duas ou três, explicam para o povo manter vivo o que ainda existe
elas quem sou eu e aí a gente de vida coletiva e comunitária. Ela é
termina essa conversa. Pode ser? como se fosse uma liga, que junta os
– perguntei ao casal. indivíduos, esses indivíduos viram pes-
– Mas é claro, Dona Mariá. A soas que se conhecem e essas pessoas
gente faz isso, porque a gente tem viram comunidade, porque constroem
interesse que nossa comunidade e mantém laços e valores coletivos, que
continue crescendo e se desenvol- são compartilhados uns com os outros.
vendo, não é Lucia? Esses laços e valores é que sustentam e
– É, e pode ficar tranquila que renovam as identidades dos grupos.
amanhã, umas sete horinhas, a gente Passei a noite atravessada por esses
está por aqui – prontificou-se, Dona Maria. pensamentos e reflexões, achando que estava
E assim ficou combinado. Despedi-me e mergu- sendo importante essa viagem pela APA Delta, en-
lhei nas águas mornas da Ilha das Canárias. quanto aguardava despontar o dia para continuar a
Decidi fazer um passeio pela Ilha para conhecer conversa sobre a história e as memórias da Ilha das
a região. Circulei e vi quanta beleza. Notei que a Ilha Canárias.
é grande e possui cinco localidades ou povoados, que No amanhecer do dia, eu me desloquei até a pes-
são: Passarinho, Caiçara, Torto, Morro do Meio e Ca- queira da comunidade e lá estavam algumas pessoas.
nárias, este último onde moram Dona Maria Lucia e Seu Juvenal foi o primeiro e me dar bom dia e a me
Seu Juvenal. apresentar ao grupo. Percebi que Dona Maria Lucia
Já tarde da noite, avistei uma rocha numa área não estava entre as pessoas, mas estavam no grupo,
próxima ao povoado das Canárias. A lua estava linda, além de seu Juvenal, uma mulher, uma criança e
brilhante! Sentei na pedra e comecei a me lembrar de outro homem. Seu Juvenal tomou a iniciativa e falou:
tudo que tinha ouvido dos pescadores, pescadoras e – Pronto, Dona Mariá, estamos nós aqui: este
marisqueiras. Observei que o trabalho de movimentar aqui é Felipe Carvalho, um menino de dez anos que
a memória do povo é muito importante, porque não se prontificou para a conversar e disse que não tinha

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medo de sereia. Essa mulher ali é Dona Luiza Ângela – Como você conheceu as Canárias, Dona Luiza?
e aquele ali é o Seu Raimundo Pereira. Eles todos – indaguei. Ela continuou:
estão sabendo quem é a senhora e vieram dispostos a – Quando conheci as Canárias, não era só esse
falar sobre a comunidade. pedacinho aqui, era bem mais próximo ao mar, mas o
Eu agradeci e fui logo perguntando: Quem po- mar já pegou um monte de casas que hoje em dia não
deria me falar sobre a Ilha, alguns fatos que viveu ou existe mais, as casas dos mais antigos, no pé do mar...
experiências? Antes de chegar a energia, a luz da lamparina ou do
– Eu posso começar e os adultos podem ajudar lampião eram o que clareava durante a noite. Para ir
– falou o menino Felipe20. E continuou: – Quando à rua utilizava-se lanterna ou se ia mesmo no escuro,
cheguei aqui em 2004, foi antes de ter energia aqui. não tinha essa luz elétrica, não. O transporte que era
Minha avó contava que ela ia para as roças apanhar o uma vez por dia e só voltava meio dia de Parnaíba.
arroz. Ela dizia que a vida era de muita fome e difícil. Hoje em dia tem toda hora, é só você querer, vai e vem.
Ela contava que tinha que ir muito longe para buscar Acredito que melhorou muito, muito. Carro não existia
o arroz, catar marisco, pegar castanha nos cajueirais, dentro da Ilha, hoje em dia tem. Escola que não tinha,
lá de baixo da Ilha. Segundo minha avó, o primeiro as crianças iam para fora estudar em Parnaíba ou nos
morador que chegou aqui foi um cearense. Eu só não Morros da Mariana, em Ilha Grande - PI. Hoje em dia
estou lembrando é do nome dessa pessoa... E que tem duas escolas, melhorou bastante mesmo. Para as
antes, Canárias se chamava Baía dos Mergulhões. crianças não saírem daqui, as escolas estão aqui. Com
Gosto muito de brincar aqui com os meus amigos da professores tudo formado, com graduação, porque tem
escola, a gente brinca de esconde-esconde, pega-pega. que ter. Ficou muito bom mesmo.
É maravilhoso morar na Ilha das Canárias, pois todo –E a diversão, a senhora lembra como era? –
mundo é legal aqui. Tem uma coisa que eu também perguntei.
gosto muito de fazer aqui como ir para missa na igreja. – A diversão aqui era a gente sair para pegar siri.
Minha avó contava que aqui tinha muitas histórias de Fazia aquela comidinha na beira do rio e passava
lendas, assombração, como do cabeça de cuia, mão o dia pegando siri. Comia lá e às vezes trazia para
cabeluda, eu só não vou contar porque tenho medo casa. Tinham lagoas que hoje em dia não tem mais.
dessas coisas. Na casa do meu compadre mesmo tinha uma lagoa
No mesmo instante que o garoto parou de falar, grande, lá no fundo do quintal, hoje não existe mais.
entrou na conversa Dona Luiza Ângela21, que foi Ela nunca mais ficou cheia, como antigamente, que
informando: a gente tomava banho na lagoa. Antigamente tinha o
– Sou filha, neta e sobrinha de um morador das festejo, em junho, de São João Batista, e em dezembro,
Canárias. Sou filha do seu Ribamar, morador bem anti- a festa de Nossa Senhora das Dores. Sempre o festejo
go daqui. Fui esposa de uma pessoa daqui. Quando eu era muito animado. Tinham as festas, com ainda hoje
era criança, vinha nas Canárias. Tive a oportunidade tem. Só que aumentaram mais ainda. Na última noite
de conhecer somente o meu avô, meus tios e tias e do festejo, acontecia uma grande festa que começava
não foi possível conhecer a minha avó, que era mãe às nove horas da manhã, depois da missa, e ia até às
do meu pai. Depois de adulta namorei e casei com cinco horas tarde.
um rapaz das Canárias, mas ele foi embora, mesmo – E o senhor, Seu Raimundo22, o que o senhor
assim, tivemos um filho juntos. E somente depois de gostaria de falar? – perguntei olhando para o pescador.
vinte e quatro anos que ele conheceu o filho dele e – Cheguei nas Canárias com dois anos de idade.
também o seu neto. Fui criado pelos meus avós. Penava demais. Quando
amanhecia o dia, ia para roça, chegava da roça pilava era rapazinho. Quando casei, ele foi o meu padrinho.
arroz no pilão. Ficava naquele sofrimento, até a hora Com o tempo passei a produzir minhas redes, fiquei
de dormir. Brincadeira nós não tínhamos. Era pouca a trabalhar no que é meu e nunca mais precisei de
onde eu morava. Com 14 anos, não saia na rua porque coisas emprestadas de ninguém. Pescava toda marca
eu tinha medo, pois era muito mato. Com os meus de peixe, como: pescada, camurim, bagre. Criei todos
16 a 17 anos, casei. Meus avôs morreram e tinham os meus filhos, mas me desentendi com a família, não
pedido para que eu procurasse uma pessoa para tomar tenho vergonha de dizer, e passei a construir outra
de conta da gente. Então, resolvi casar, construir fa- família, com que tenho outros quatro filhos. Assim,
mília. O sofrimento pesou demais. Tive que ir pescar, tenho no total, 14 filhos, 10 com a primeira mulher e
quando chegava da pescaria ia para o mangue tirar três filhos com a segunda, um com a terceira e com a
lenha, para vender em Parnaíba. Depois de ir tirar quarta não tenho nenhum, nem quero mais.
Siriba (tipo de mangue), quando chegava em casa, – E sobre as diversões, o senhor lembra alguma?
a mulher já estava com a comida feita, que a gente – procurei saber.
comia na cuia de cujuba. Com dez filhos para criar, – Diversão aqui era muito pouca, as festas, aqui
sofri demais. Só Deus sabe o quando sofri. Nem dava era só no tempo dos festejos, onde tinha um sanfoneiro
tempo dormir durante a noite. Menino de todo jeito que vinha da Conceição, era o finado Zé Maneco, o
e não tinha com se livrar das obrigações. Aldir Maneco, o Caçuba, não sei se ainda são vivos.
– E como o senhor e sua família se comunicavam Depois, apareceu um rapaz que até hoje toca sanfona
diante das situações e dos problemas? – perguntei em Canárias. Assim, ficou um tamborim, um pandei-
preocupada. ro, mas não tinha essa coisa de hoje não. Hoje todo
– Nesse tempo não tinha nem rádio. Só quem mundo tem o seu som em casa, ouve no tempo que
tinha rádio era a Dona Firmina. Nas Canárias, na você quer. Depois que apareceu a televisão, faz uns
época, não tinha umas 200 pessoas, entre gente grande 30 anos atrás.
e criança. As casas, quase todas, eram tudo de taipa e – De fato, Seu Raimundo, a vida para o senhor
barro, as únicas construções de tijolo eram a igreja, a foi mesmo difícil, com muitos filhos para criar... – ele
casa do Sr. Raimundo Dodó e da Dona Firmina. Hoje nem me deixou concluir o pensamento e foi logo
tudo se modificou, pois não tem mais de 10 casas de confirmando:
taipa, e o restante de tijolo. A vida melhorou demais, – Sofri demais, mas hoje não tem sofrimento para
pois vou trabalhar o dia que eu quero! E os meus filhos, ninguém! Eu não tinha tempo para ouvir as histó-
os primeiros, já tinha uma escolazinha, mas ainda rias, porque o meu tempo era de muito trabalho. As
era pouca, vinha até a professora de Conceição, em histórias eram só quando a gente ia viajando, que a
Araioses... Lembro o nome dela, Morena! gente falava: “Onde será que a gente vai tirar a lenha
– E como o senhor se virava para garantir a ma- no outro dia”; “qual é o igarapé que a gente vai tirar
nutenção de seus filhos pequenos? Ele explicou: siriba?”.
– Mas, meus filhos não tinham muito tempo. Não Olhei para Seu Juvenal e perguntei:
vou mentir, tinha um dia que eles iam para escola – Seu Juvenal, o que é que o senhor ainda tem
e outro eles iam para roça, para plantar arroz para para contar e que não falou?
nossa alimentação, porque o arroz que plantávamos Imediatamente, ele tomou a palavra e ficou se
não era para vender, só era para comer mesmo. Era pronunciando:
muita gente na família. Na pescaria, pesquei nas redes – Em Canárias tivemos três dias de reunião para
de um padrinho, o finado Zé Luiz. Nesse tempo eu explicar o que é o associativismo. Hoje sou presiden-

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te de uma associação que foi fundada em 2003, a Associação de
Moradores das Canárias, e a de pescadores que fui o fundador em
1998. Com todo esse aparato de conhecimento, as pessoas ainda não
Questões para reflexão:
têm uma noção do que é uma associação, como se trabalhar numa
associação. Considero que a gente não é livre totalmente, porque só
se é livre quando você tem opção de escolha, que quando você sabe 1. Por que conhecer a história contada
o que você quer, da onde veio, e pra onde vai. Sinto saudade das sobre a Ilha das Canárias nos possibilita
histórias que ouvia, pois sentava ou deitava no colo da mãe. Nossa conservar seu povo e seu meio ambiente?
família era pequena mas, para encontrar o espaço no colo da mãe
era difícil porque na nossa família eram nove filhos, e para sentar
como a cabeça no colo dela, você tinha que disputar porque o espaço 2. Explique qual o tipo de desenvolvi-
era muito pequeno para tanta gente. mento os moradores desejam para a Ilha
– E senhor lembra alguma história que seus pais ou avós con- das Canárias?
tavam? – eu quis saber.
– Se ouvia histórias de Camões, dos Turcos, do espaço sideral, 3. Que planejamento você faria para que
as estrelas dos três reis, três Marias, carnaúba torta, cruzeiro do sul. esses moradores alcancem essa forma
São histórias que hoje a garotada aqui não conhece mais. Falava-se desenvolvimento que desejam?
sobre as visagens, que eram histórias de assombrações. Por exemplo,
tinha uma lenda aqui de uma mulher chorona. A gente que viajava
da Caiçara para Canárias, caminhando, pois não tinha outro meio As comunidades são reconhecidas como
de transporte- vinha a noite, caminhando e via uma mulher cho- tradicionais quando, em geral:
rando na frente com uma trouxa de roupa na cabeça e uma criança
escanchada no lado, caminhado, chorando e se lamentando da sua a) O modo de vida está diretamente ligado
situação de vida. Quem vinha atrás, tinha a impressão de ver aquilo à natureza e é repassado historicamente;
como uma necessidade de ajuda, parecia que caminhava na intenção b) O espaço é o lugar onde as pessoas se
de alcançar a pessoa, só que nunca alcançava, pois quanto mais
reproduzem social e economicamente,
você caminhava mais ela se distanciava de você. Isso acontecia até
chegar na comunidade das Canárias, pois ela desaparecia. pelas terras de seus ancestrais;
Agradeci a todo mundo, destacando a importância das conversas, c) Sua produção é pensada principal-
no sentido de ajudarem a reconstruir a história, a vida comunitária mente para subsistência, o excedente é
e os valores que estavam se perdendo, fragmentando, dividindo as vendido no mercado;
identidades. Nessa hora, Seu Juvenal, já se despedindo, comentou: d) Há uma reduzida divisão técnica e so-
– Essas histórias não têm mais, pois vão se perdendo no tempo, cial do trabalho, sobressaindo o trabalho
como também a história da Ilha das Canárias que também está se artesanal.
perdendo, pois hoje não se tem as informações dos primeiros mo-
radores que viveram na Ilha com detalhes. Quem foi? Como foi?
Por que foi? Essas perguntas precisam ser respondidas, porque é 4. Observando os aspectos acima, que
importante para comunidade ter sua história registrada para comu- definem populações tradicionais, exem-
nicar aos moradores. plifique porque as comunidades visitadas
Assim, finalmente nos despedimos e seguimos para casa. Mer- por Mariá, sereia do mar, podem ser con-
gulhei na Ilha e segui minha viagem. sideradas populações tradicionais.

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CONTADORES DAS HISTÓRIAS Pessoas que ao contar suas
DA APA DELTA DO PARNAÍBA historias participam deste livro.

SEBATIÃO DA CONCEIÇÃO. Apelido Bujão. MARCOS ADRIANO NASCIMENTO SANTOS. ANTONIO VIEIRA GALENO. Apelido Antonio da DJANIRA CARDOSO DA SILVA. Tem 73 anos. MARIA DE JESUS CARVALHO DA SILVA. Tem
Tem 44 anos. Proprietário da Barraca o Bujão Tem 55 anos. Condutor de turismo na Rota Laura. Tem 63 anos. Pescador aposentado do Antiga artesã de tapete de taboa do Coqueiro 46 anos. Proprietária da Barraca do Pife do
em Macapá/ Luís Correia - PI das Emoções. Mora Macapá/ Luís Correia - PI Coqueiro da Praia / Luís Correia - PI da Praia / Luís Correia – PI Coqueiro da Praia / Luís Correia – PI

FRANCISCO VIEIRA GALENO. Tem 69 anos. MARIA DO SOCORRO DA SILVA. Tem 68 anos. JOSÉ GULERDUCIO DOS SANTOS. Apelido MARIA APARECIDA REIS. Tem 55 anos.
Pescador aposentado do Coqueiro da Praia Antiga artesã com carnaúba da Vazantinha/ Mestre Guilherme. Presidente da Associação Pescadora e Horticultora familiar da TERESA SEVERIANO DOS SNATOS. Tem 87
/ Luís Correia - PI Parnaíba - PI de Moradores e Artesãos da Vazantinha/ Vazantinha/Parnaíba-PI anos. Moradora antiga da Pedra do Sal/
Parnaíba - PI Parnaíba - PI

JOSÉ MARIA DOS SANTOS. Tem 74 anos. JUALANEZ OLIVIERA COSTA. Tem 40 anos. PAULO SÉRGIO. Tem 42 anos. Pescador de ANTONIO DE PADUA NASCIMENTO DE SOUZA. JOSE DE SOUSA. Apelido Zé Bureta. Tem 56
Pescador, poeta, contador de história e cantor Pescador de linha e artesão nos petrechos linha da Pedra do Sal/ Parnaíba – PI Apelido Antonio Doido. Tem 34 anos. Pesca- anos. Foto com seu filho. Pescador de todas
de embolada em Pedra do Sal/ Parnaíba - PI de pesca em Pedra do Sal/ Parnaíba – PI dor da praia da Pedra do Sal/ Parnaíba – PI as artes de pesca e também extrativista ve-
getal da região da Pedra do Sal/ Parnaíba – PI

ANTONIO JULIIO MARQUES DE ARAUJO. MARIA DO SOCORRO REIS GALENO. Tem 62 CLAUDIA MARIA PERERIA DOS SANTOS LIMA. MARIA LUIZA SOUSA SANTOS. Tem 55 anos. MARIA DO SOCORRO. Tem 67 anos. Tesourei-
Apelido Julinho. Tem 68 anos. Presidente dos anos. Presidente da Associação das Rendei- Tem 38 anos. Pescadora de camarão, agricul- Presidente das Catadoras de Marisco de ra da Associação de Moradores e Pescadores
catadores de caranguejo de Ilha Grande - PI ras dos Morros da Mariana, Ilha Grande - PI tora e sócia do Sindicato dos Trabalhadores Ilha Grande - PI da Comunidade do Labino/Ilha Grande – PI.
Rurais de Ilha Grande - PI

JUVENAL DE CARVALHO GASPAR. Tem 55 MARIA LUCIA SOUSA FREITAS. Tem 53 FELIPE CARVALHO COSTA DOS SANTOS. LUIZA ANGELA SILVA COSTA. 48 anos. Raízes RAIMUNDO PEREIRA DOS SANTOS. Tem
anos. Pescador, carpinteiro naval e contador anos de idade. Moradora antiga, contadora Tem 11 anos. Estudante das Canárias/ familiar iniciada nas Canárias/Araioes-MA 75 anos. Apelido Raimundo Inês. Pescador
de histórias das Canárias/Araioses-MA de História, extrativistas das Canárias/ Araioses-MA. aposentado das Canárias/Araioses-MA.
Araioses-MA.

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