A recordação da
infância motiva um angustiante sentimento de perda, pois esse estádio corresponde, para o o
sujeito poético, a uma época feliz, aquela em que ele tinha uma família e era visto por esta
como alguém que merecia atenção.
Infância / Passado = Vida = Inconsciência ("Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa
nenhuma")
Versus
Idade adulta / Presente = Morte = Consciência ("O que eu sou hoje é como a humidade no
corredor do fim da casa"; "É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio..."
O corredor simboliza a perda no tempo - este espaço é uma metáfora do próprio tempo, que
se associa ao mito de Cronos, o deus que devora os próprios filhos, ou seja, aquele que os
aniquila.
A antítese entre o Passado e o Presente pode ser clarificada através das seguintes linhas
isotópicas:
casa -> saúde -> família -> serões -> mesa / loiça / copo -> aparador / doces / frutas = Infância -
Passado
humidade do corredor / grelado das paredes (metonimicamente ligado à casa) -> lágrimas ->
fósforo (frio) -> fome = Idade adulta - Presente
A passagem do tempo significa, para o sujeito poético, a perda do seu próprio ser, enquanto
pessoa.
Num plano simbólico, a angústia do sujeito lírico, motivada pela perda, faz ecoar um tempo
recuado, um momento de felicidade absoluta, em que, afinal, a sua identidade só existia,
porque construída pela vontade e pelas esperanças dos outros, o que lhe conferia um poder
messiânico, porque ele era, para eles, uma promessa.
"Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos"
"E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer."
A idade adulta significa ausência de amor, metaforizado no pão (o corpo de Cristo a que se
alia, obviamente, uma dimensão espiritual e metafísica - comer o pão significa, na liturgia
cristã, absorver o Amor de Jesus).
(...)
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!"
A "manteiga" associa-se metonimicamente ao leite, símbolo materno; por isso, igualmente
situado na constelação semântica dos vocábulos que aglutinam a ideia de amor.
A casa, metáfora do paraíso, o primeiro espaço que, segundo o livro de Génesis, foi habitado
pelo Homem, é destruída pelas lágrimas do sujeito poético, ou seja, a sua perda motiva essas
lágrimas, mas a sua destruição acontece na interioridade da sua alma.
"(...) (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)"
Ao nível estilístico, a comparação funciona como tradução de uma dor que trespassa a alma do
sujeito lírico e o esmaga contra as suas recordações.
"O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa"
A anáfora traduz a saudade imensa de um passado que o sujeito poético não pôde roubar e o
desespero que essa incapacidade lhe causa.
Os adjectivos sugerem quer a alegria da infância remota, perdida num tempo recuado,
primordial, quer a distância infinita que separa o "eu" poético dessa época.
O verso "O que sou hoje é terem vendido a casa" enfatiza as ideias anteriormente expressas.
"O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui..."
"Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui..."
O "refrão", a repetição, ao longo do poema, do verso "O tempo em que festejavam o dia dos
meus anos!" funciona como uma espécie de refrão e atroa como um esgar nostálgico,
retumbando sempre, traduzindo a revolta, a não aceitação do irremediável, a saudade
profunda de um tempo perfeito.
Ao nível das sonoridades, predominam, ao longo do poema, os sons fechados e nasais, e numa
expressão da melancolia perante a perda do passado.
Sons nasais - tempo, ninguém, antiga, uma, grande, inteligente, esperanças, mim, vim, serões,
província, distância, vendido, sobrevivente, viagem, pão, manteiga.
Sons fechados - dia, feliz, antiga, tradição, séculos, religião, tinha, nenhuma, quando, fui, frio,
vida, ali, metafísica.
A vogal aberta (a) enfatiza o valor de determinados vocábulos-chave, ao nível semântico, pela
intensidade da sua sonoridade (casa; humidade; nada; raiva; roubado).