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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP
Maria Consuelo da Costa Oliveira e Silva

O LEGADO DE GEORG GRODDECK –


GENUINIDADE E ORIGINALIDADE.

MESTRADO EM PSICOSSOMÁTICA E PSICOLOGIA


HOSPITALAR

São Paulo
2009
MARIA CONSUELO DA COSTA OLIVEIRA E SILVA

O LEGADO DE GEORG GRODDECK –


GENUINIDADE E ORIGINALIDADE.

MESTRADO EM PSICOSSOMÁTICA E PSICOLOGIA


HOSPITALAR

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestrado em
Psicossomática e Psicologia
Hospitalar, sob a orientação da
Professora Dra. Mathilde Neder.

São Paulo
2009
Banca Examinadora

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Dedico esta dissertação aos meus pais, Armando e Dulce.
Por me amarem e apoiarem em todos os momentos da minha vida.
Por suas presenças inspiradoras, nas quais me espelho todos os dias.
“Como o não sabes ainda
agradecer é mistério”
Fernando Pessoa.

Escrever os agradecimentos é mais difícil do que redigir a dissertação.


Não tenho duvidas. Diversas pessoas colaboraram direta ou indiretamente para
a realização deste trabalho com sugestões, idéias, criticas e opiniões. Outros
contribuíram com amizade, carinho, e afeto, provavelmente os ingredientes
mais importantes para um bom trabalho. Temendo esquecer alguém, agradeço
a todos que conviveram comigo nestes anos de mestrado. Gostaria de
destacar algumas pessoas que foram especialmente importantes.
Em primeiro lugar, o agradecimento mais especial, é para meus pais:
Armando e Dulce, pois sem o apoio deles nada teria sido possível. Obrigado
pelo estímulo e apoio incondicional desde a primeira hora; pela paciência e
sensatez com que sempre me ouviram e me ajudaram. Obrigado
principalmente por acreditarem em mim.
Agradeço a minha irmã, Manu, e ao meu cunhado, Gui, por torcerem e por
estarem presentes nos momentos difíceis e nas maiores alegrias da minha
vida.
Ao meu afilhado, Pedro, que conviveu com as minhas ausências e por
representar o futuro.
Ao meu namorado, Pedro, por ter entrado na minha vida, e que mesmo
com tanta correria, viagens e cansaço, nunca mais saiu.
Ao Rodrigo Jardim, que não só revisou minha dissertação como também
se envolveu dispondo mais que seu tempo e conhecimento para que este
trabalho fosse concluído.
Agradeço ao Hospital Pequeno Príncipe (Curitiba) e aos meus pacientes
que em cada dia de trabalho despertam em mim questionamentos, perguntas
essas, que me fizeram ir em busca de saber sempre mais, tendo como
conseqüência o Mestrado.
As psicólogas do serviço de psicologia do Hospital Pequeno Príncipe,
Marianne, Cássia, Viviane, Silvia, Marislei e Leila, por suprir de forma sempre
competente minhas ausências.
A minha chefa Daniela, por permitir minhas viagens semanais e por
comemorar junto cada conquista.
A Tatiana Forte por desde o começo acreditar no meu trabalho no hospital
e me incentivar a crescer como profissional, como teórica, e também como
pessoa.
A minha amiga, Ângela, que sem o seu bom humor e companhia, nada
teria sido igual. Obrigado por ter tornado esta jornada, cansativa e longa, em
vários momentos de alegrias e agradáveis lembranças.
A uma amizade iniciada e que espero ser longa, apesar da distancia.
Obrigado Eduardo e Eliana, pelos jantares, conversas, e risadas, que tornaram
dias cansativos em noites leves e agradáveis.
Agradeço a todos os professores do núcleo por dividirem seus
conhecimentos com seus alunos.
A Professora Dra. Denise Ramos por suas sugestões pertinentes, durante
a qualificação, e por me recordar que “agora um ciclo se fecha”.
Ao Professor Dr. Esdras Guerreiro Vasconcellos, por ter desde o inicio
confiado que este trabalho seria possível; por sua disponibilidade e sugestões
sábias, e principalmente por ser o responsável em me apresentar este desafio
chamado George Groddeck.
A minha orientadora, Professora Dra. Matlhilde Neder, que com seu
sempre presente espírito pioneiro, acolheu com gentileza e confiança a idéia,
ainda, incipiente deste trabalho, e com sua participação e conhecimento
possibilitou sua realização.
Por ultimo, mas lembrando sempre, que os últimos serão os primeiros
George Groddeck: Por ter sido quem ele era.
“Que todos os humanos sejam médicos.
E que todos os médicos sejam humanos.”

(Georg Groddeck, Nasamecu, 1913).


SILVA, Maria Consuelo. O Pensamento de Groddeck - Genuinidade e
Originalidade [Groddeck´s thought – Genuinity and Originality] Mestrado em
Psicossomática e Psicologia Hospitalar, v. 1, 2009.

Pesquisas realizadas sobre o conceito Psicossomática apontam para muitos


autores. Cada um deles com referencias teóricas próprias. Conseqüência disso
é a falta de consistência na busca dessa definição. Com base nesse fato, a
autora preferenciará a teoria de Georg Groddeck como tema central desta
dissertação. Ele que, em um primeiro contato, já chama a atenção por ser
considerado por alguns pesquisadores como o “Pai da Psicossomática”,
também se destaca pela originalidade e genuinidade de sua teoria. O objetivo
desta dissertação é realizar uma leitura mais detalhada da obra de Georg
Groddeck, categorizá-la, enfatizar sua produção intelectual, situá-la dentro do
referencial biográfico e ainda, tentar localizar sua obra dentro de um contexto
histórico/teórico: O Romantismo e A Filosofia da Natureza. Com isso, a autora
espera subtrair da obra de Georg Groddeck sua conceituação de
psicossomática no período anterior aos seus contatos com Freud e com a
Psicanálise, percorrendo sua biografia e escritos até data próxima à Primeira
Guerra Mundial. A bibliografia estará principalmente centrada em fontes
primárias.

Palavras–chaves: Georg Groddeck; Psicossomática; Romantismo.


SILVA, Maria Consuelo. Groddeck´s thought – Genuinity and Originality [O
Pensamento de Groddeck-Genuinidade e Originalidade] Master in
psychosomatic and hospital psychology, v. 1, 2009.

Researches over psychosomatic theme point to various authors. Each one with
their own definition of the theme. By consequence there is no consistent
definition of it. It is from this point that the author will use Georg Groddeck as a
central theme of this dissertation. Groddeck calls the attention on the subject to
be easily announced as the “father of psychosomatic” besides the originality
and uniqueness of his theories. The main objective of this paper is to make a
deeper reading of Groddecks work, categorizing it, emphasizing his intellectual
production, giving it biographic context and enhancing his procedures to
understand the historical context of his time. This work aim to subtract the
concepts of psychosomatics found on Groddecks work before his contacts with
Freud and psycanalisis passing by his biography and writings that approach the
first world war. Sources are mainly primary ones.

Key- words: Georg Groddeck; Psychosomatic; Romantism.


SUMÁRIO:

I. INTRODUÇÃO..............................................................................09
1. OBJETIVO ..................................................... ........................................................... 21
II. PANORAMA HISTÒRICO ANTERIOR A OBRA DE
GRODDECK...................................................................................22
1. ROMANTISMO...............................................................................................................22
2. JOHANN WOLFGANG VON GOETHE.................................................... .......................... 33
3. C.G.CARUS .............................................................................. ................................... 35
III. MÉTODO........................................................................................44
1. INSTRUMENTOS............................................................................................................ 45
2. LOCAL DE COLETAS DE DADOS.................................................................................... 46
3. PROCEDIMENTO........................................................................ ................................... 46
IV. CRONOGRAMA DAS PUBLICAÇÕES DE GRODDECK......49
V. O LEGADO DE GEORG GRODDECK - GENUINIDADE E
ORIGINALIDADE.........................................................................51
1. GEORG GRODDECK – DO NASCIMENTO ATÉ SUA ADOLESCÊNCIA. ............................51
2. COMO SE DEU SUA FORMAÇÃO PROFISSIONAL.............................................................. 62
3. PRIMEIRA ETAPA DA FORMAÇÃO DE GRODDECK EM MEDICINA......... .......................... 65
4. SEGUNDA ETAPA DA FORMAÇÃO DE GRODDECK EM MEDICINA – SCHWENINGER.........70
5. TESE DE DOUTORADO.................................................................................................. 77
6. MORTE DA MÃE DE GRODDECK E O SEU CASAMENTO COM ELSE............................... ... 78
7. ALGUNS ESCRITOS TEÓRICOS............................................................ ........................... 82
8. MÉTODO DE TRATAMENTO MINISTRADO POR GRODDECK............................................ 87
9. TEXTOS MÉDICOS E ESCRITOS LITERÁRIOS............................................ ....................... 89
10. “SENHORA G”............................................................................................................ 98
11. CICLO DE CONFERÊNCIAS – RUMO AO DEUS NATUREZA......................................... 102
12. O “ISSO”..................................................................................... ............................. 107
13. CÍRCULOS DE DISCUSSÃO POPULAR E COOPERATIVA DE CONSUMO.........................114
14. NASAMECU............................................................................... ............................... 117
15. ATIVIDADE MÉDICA DE GRODDECK NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL....... .............. 133
VI. CONCLUSÃO...............................................................................144
VII. BIBLIOGRAFIA...........................................................................146
9

I. INTRODUÇÃO

O foco do presente tema para o desenvolvimento da dissertação de


mestrado deve-se ao interesse pessoal e profissional da autora em aprofundar
seus conhecimentos teóricos sobre o conceito de Psicossomática. Tem como
ponto de partida o trabalho que vem sendo realizado no Hospital Infantil
Pequeno Príncipe, na cidade de Curitiba, mais especificamente no ambulatório
de Gastroenterologia, desde o ano de 2006. Neste ambulatório, fui designada
para atender pacientes com queixas clínicas descritas como: dores
abdominais, falta de apetite, vômitos, entre outras. Quando examinados, tais
pacientes não apresentavam nenhuma causa orgânica que justificasse tais
queixas. Estes pacientes são classificados pelos médicos de “pacientes
psicossomáticos”. Foi neste momento que surgiu a primeira questão: O que
significa este adjetivo dado aos pacientes? O que é Psicossomática?
Como uma primeira tentativa de responder esta questão, a autora deu
início ao Mestrado na área de Psicossomática e Psicologia Hospitalar. A partir
deste momento, passou a se aprofundar em alguns autores, citados como
referência nesta temática: Joyce McDougall, Pierre Marty, Rosine Debray,
Franz Alexandre, entre outros. Porém, um autor em particular chamou a
atenção, não só por ser um autor considerado como o “Pai da Psicossomática”,
mas também, e principalmente, por sempre vê-lo citado como referência pelos
autores acima mencionados. O nome deste autor é Georg Groddeck. Neste
momento, outro questionamento se fez necessário: Quem é este autor?
Quem seria este autor, que por volta de 1895, aos vinte e nove anos
de idade, iniciando seus estudos em Medicina na Kaiser Wilhelm Universität
em Berlim, escreveu uma carta a um professor de Medicina, com afirmações
ou questionamentos no mínimo polêmicos, sobre as escolas de Medicina da
época, e a forma como eram formados os médicos e de como estes exerciam
sua profissão:

Todo conjunto do estudo médico não vale mais nada.È preciso que
seja mudado radicalmente, Na Universidade não se formam e
médicos, mas eruditos; não se formam artífices, mas cientistas. Os
estudantes foram maçados com fórmulas e hipóteses que
precisavam esquecer para poderem ajudar os seus doentes [...]
Quem alguma vez, ao estudar, teria aprendido a ver e a ouvir? Quem
ensinou o estudante a diagnosticar o ser humano e não a doença? E
10

se um ou outro consegue realmente estabelecer um diagnóstico, não


um diagnóstico em palavras, que é o recurso dos tolos, mas um
diagnóstico que caracterize o ser humano no conjunto de suas
relações, quem entre os jovens sabe ajudar o doente? Ninguém, não
o aprenderam [...] Unicamente o estudo do ser individual, do doente
e não a doença é a nossa tarefa. Acolham os jovens que querem
viver a nossa sagrada profissão. Levem os recém-saídos do colégio
ao leito dos doentes, ensinem-nos a cuidar deles e a tratá-los,
ensinem a pô-los na cama, a levantá-los e ajudá-los, sobretudo
ensinem-nos a amá-los. (GRODDECK 1970, 1994, p.96-97).

O trecho acima mostra um estudante de medicina polêmico e defensor de


uma concepção de medicina, doença e paciente inovadora não só para aquela
época, mas também para os dias atuais.
Esta temática que Groddeck já fazia referência naquele tempo ao que hoje
em dia podemos denominar de Humanização Hospitalar e da Prática Médica.
Segundo Goldenstein:

Humanismo médico, palavra diretamente conectada ao ato de


humanizar a medicina, é a atitude que o medico toma frente ao seu
paciente quando o considera, o valoriza e o trata como uma pessoa,
não como um corpo humano e, menos ainda simplesmente, como
um fígado ou intestino enfermo. (GOLDENSTEIN, 2007, p.58)

No início de meus estudos sobre Groddeck, lendo a sua correspondência


com Freud, chamou-me a atenção o modo como ele se apresentou. Na
primeira carta desse diálogo epistolar, Groddeck assim se dirige a Freud:

Às minhas – ou devo dizer às suas – concepções não cheguei


através do estudo das neuroses, mediante a observação de doenças
chamadas comumente de corporais. Minha reputação médica deve-
se originariamente à minha atividade de fisioterapeuta, mais
particularmente de massagista. Em conseqüência, a minha clientela
é sem dúvida muito diferente da dos psicanalistas. (GRODDECK
1970, 1994, pg. 3-81).

O que chama a atenção é a situação em que Freud foi colocado por


Groddeck, na medida em que este (Freud) já era na época do início dessa
correspondência (27 de maio de 1917) conhecido a nível internacional, com
uma identidade teórica estabelecida, com veículos próprios para a divulgação
das suas teorias (Imago e Internazionale Zeitschrift für Psychoanalyse), alguns
espaços institucionais estabelecidos (Viena, Berlim, Zurique), um grupo de
seguidores e já havia superado o período de tormentas que determinou seu
enfrentamento com alguns autores (Stekel, Rank e Jung).
11

Em torno disso, o que levaria Freud a reconhecer e a validar as idéias e a


originalidade de um clínico geral e massagista de Baden-Baden? É
interessante a reação de Freud em uma carta escrita à Ferenczi alguns dias
depois (3 de junho de 1917):

Em breve lhe mandarei a carta mais interessante que jamais havia


recebido de um médico alemão; seu conteúdo tem uma relação
estreita com sua “patoneurose” e suas idéias de Lamarck. Ainda
1
tenho que respondê-la. (FREUD, 1996, p.68) .

Sou novamente surpreendida e tomada por um questionamento: quem


era este autor que desperta tamanho interesse em Freud? Este autor é de
quem Freud tomou emprestado por sua vez o termo “Id”, porém
caracterizando-o a seu gosto e deformando-o para que se encaixasse em suas
idéias. Groddeck não pode tolerar isto e se afasta da psicanálise.
Na tentativa de responder a estas questões, outras surgem: Que tempo é
este vivido por Groddeck? Quem são as pessoas que tiveram influência em sua
formação e teoria? Quem era ele antes de se corresponder com Freud? Qual é
a sua teoria? O que é o “Isso” de que tanto se fala e parece ser a assinatura
conceitual mais importante de Groddeck? O que é a Psicossomática proposta
por Groddeck? Quem é o autor que vai publicar um livro polêmico na
Internationaler Psychoanalytischer Verlag (editora oficial do Movimento
Psicanalítico)?
A proposta do presente trabalho é a de tentar responder a estes
questionamentos, compreender e contextualizar algumas dessas citações,
algumas das quais elogiosas e possivelmente formular novas questões.
A obra de Groddeck será considerada não como um saber instituído,
privilegiando a sua formulação final, mas como um saber em construção, com
um enfoque que enfatiza o contexto no qual as formulações são propostas e
que, simultaneamente, exerce um fator determinante nestas mesmas
formulações.

1
[…] En breve le mandaré la carta más interesante que he recibido jamás de un médico alemán; su
contenido guarda una estrecha relación con sus patoneurosis y su idea de Lamarck. Aún tengo que
contestarla.
12

É importante assinalar que, [...] junto com uma equação pessoal na


construção teórica, é possível falar de uma equação social 2, que estabelece o
contexto intelectual no qual esta teoria é definida. Essa equação se caracteriza
pela rede de interlocutores que discutem a teoria através de fóruns
institucionais como conferências, seminários, periódicos científicos e em
espaços não-institucionais como encontros particulares, de difícil registro, e
principalmente, através da troca de correspondência. Podemos imaginar essa
equação social como uma grande rede de diálogos, em constante mudança e
que serve como fonte para tensões conceituais e ambigüidades e que exerce
uma ação vital para o esforço criativo. Enfatizando um pouco mais, é possível
perceber nessa rede, não um conceito estático, mas sim direcional e temporal
e que introduz a localização, a contextualização e a historicidade do exercício
teórico de uma forma fundamental.
Ao escrever sua obra monumental, El Descubrimiento del Inconsciente:
historia y evolución de la psiquiatría dinámica, Henri Ellenberger (1976) sugere
quatro passos importantes na sua metodologia de pesquisa, os quais ele
procurava seguir com rigor: 1) Não considerar jamais nenhum dado como certo
a priori; 2) Comprovar tudo; 3) Colocar cada dado sempre em seu contexto; 4)
Fazer uma distinção marcante entre os fatos e a interpretação dos fatos
(ELLENBERGER, 1976, p. 7).
Para esta presente pesquisa foi utilizado fontes primárias, ou seja,
traduções confiáveis da obra de Groddeck da língua original, o alemão,para
outras línguas (espanhol,francês,italiano), sempre estabelecendo uma rigorosa
cronologia dos documentos e por se tratar de um trabalho de pesquisa
baseando em fontes primárias, depois de cada citação será mencionado o
autos o ano em que ele editou pela primeira vez, e o ano da edição da qual foi
retirada a citação. A análise desses materiais mostrará claramente os
problemas com os quais o autor estava às voltas durante todo o processo de
construção de sua teoria. Também possibilita as condições para uma visão
mais crítica e realista da obra. São esses os critérios e o modelo de
pensamento e pesquisa em relação à obra de Groddeck que serão utilizados
na elaboração desse trabalho, que terá como característica o de ser uma bio -

2
Anotações retiradas da aula proferida no curso de Especialização em Psicologia Analítica, PUC-PR,
2006, ministrada pelo professor e psicólogo Armando de Oliveira e Silva.
13

bibliografia do autor, procurando explorar as inter-relações entre os aspectos


biográficos e a produção teórica que o autor desenvolve dentro do período
biográfico considerado.
A essa altura se faz necessário definir os passos que serão dados na
execução deste trabalho. Para isso, volto a uma pergunta feita anteriormente:
“Que tempo é esse vivido por Groddeck”, e que pretendo desdobrar em
três tópicos:
1) Qual é o tempo da obra de Groddeck?
2) Quais são os tempos na obra de Groddeck?
3) É tempo para a obra de Groddeck?
Antes de prosseguir, é importante ressaltar que a utilização da
palavra tempo não se limita a considerá-lo apenas como medida cronológica,
linear, quantitativa, mas também como as realizações culturais, filosóficas e os
autores que fazem parte de um período, e com quem Groddeck interagiu.
A resposta à primeira pergunta, implica uma divisão do tempo em dois
momentos distintos, porém complementares:
a) o tempo que antecedeu à obra de Groddeck;
b) o tempo onde Groddeck se construiu.
Para explorar o primeiro momento, na busca dos antecedentes filosóficos
e culturais, cito Angel Cagigas: “[O último romântico] assim se poderia
denominar Georg Groddeck, pois ao romantismo temos que nos remeter para
3
compreender sua obra” , Henri Ellenberger [...] A descrição que fazia
Groddeck do “Isso” reflete, em grau extremo, o velho conceito romântico do
inconsciente irracional.” (ELLENBERGER, 1976, p. 954)4 e Aleksandar
Dimitrijevic5: [...] Diferente de Freud, que estava fortemente influenciado pelas
ciências naturais e seu determinismo, reducionismo e mecanicismo, Groddeck
estava impregnado pelo Romantismo.

3
.[El último romántico] Asi se podría denominar a George Groddeck pues al romanticismo hemos de
remitirnos para comprender su obra.El ultimo romántico. (1998) Texto pesquisado em
www.indepsi.cl/ferenczi/vinculaciones/groddeck
4
. […] La descripción que hacía Groddeck del ello reflejaba, en grado extremo, el viejo concepto
romántico de inconsciente irracional.
5
. [...] A diferencia de Freud, sin embargo, quien estaba fuertemente influido por las ciencias naturales y
su determinismo, reduccionismo, y mecanicismo, Groddeck estaba impregnado por el Romantismo.
“Definición, fundación y significado de enfermedad: Situando a Georg Groddeck en la história de la
Medicina”(2008). Texto pesquisado em: www.indepsi.cl/ferenczi/vinculaciones/groddeck. }
14

Tomando estas citações como ponto de partida, novas perguntas se


fazem: O que é o romantismo? Quais são suas características? De que forma
esse período influenciou a obra de Groddeck? Que autores privilegiar e que se
fazem presentes na obra de Groddeck?
Em 1909, Groddeck profere um ciclo de conferências, “Rumo ao Deus-
Natureza” e o nome de Goethe é mencionado como alguém que disse: Deve-
se considerar cada coisa como parte de um todo. Observem o todo na parte, e
a parte no todo. [...] Goethe foi maior como pesquisador da natureza do que
como poeta. (GRODDECK, 2001, p. 26). O próprio título desse ciclo nos
remete à Goethe, que mesmo reconhecendo o profundo entrelaçamento entre
Deus e a Natureza, poucas vezes o emprega, como no poema “Contemplando
o crânio de Schiller” 6. Goethe, como representante desse período filosófico e
cultural, foi o primeiro autor a ser considerado na participação da constituição
da constelação intelectual de Groddeck.
Na biografia, Georg Groddeck: Una vita, o autor escreve:

Groddeck é um dos primeiros a tematizar o significado e a influência


do processo inconsciente no surgimento e desenvolvimento da
doença física. Este pensamento mesmo não é novo, já Carl Gustav
Carus, na metade do século XIX havia acenado com o fato de que “a
idéia da doença pode nascer só do inconsciente do sujeito”.
7
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 234) .

Agora a atenção se desloca para outro autor, Carl Gustav Carus (médico
e paisagista), não citado por Groddeck, autor de um livro sobre Goethe (1843)
e cartas a respeito de Fausto (1835). James Hillman, nas notas introdutórias à
edição da Spring Publication da primeira parte do livro Psyche, refere-se a
Carus da seguinte forma:

Carus continuou a encontrar em Goethe seu “spiritus rector” mesmo


depois da morte deste em 1832. Goethe refere-se a Carus em suas
cartas e citações. Ele se entusiasmou pelo livro de Carus, “Lições
sobre Psicologia” (1831), vendo nele um herdeiro na sua abordagem

6
. Bei Betrachtung von Schillers Schädel, escrito em 1833. Para o texto de o poema ver: página 102,
deste trabalho.
7
. Groddeck è uno dei primi a tematizzare il significato e l’influenza di processi inconsci sull’insorgenza
e lo sviluppo di malattie fisiche. Il pensiero stesso non è nuovo, già Carl Gustav Carus a metà del XIX
secolo aveva accennato al fatto che “l’idea della malattia può nascere solo dall’inconscio della nostra
persona”.
15

da natureza e da vida. “Psyche” é o resultado maduro destas lições


8
iniciais. (HILMAN in CARUS, 1989, p.IX) .

Na “Introdução” e logo no primeiro parágrafo do Psyche (1846) Carus


escreve:
A chave para uma compreensão da natureza da vida consciente da
alma permanece na esfera do inconsciente. Todas as dificuldades,
mesmo a aparente impossibilidade, de uma compreensão verdadeira
dos segredos da psique a luz disso se tornam óbvias (CARUS, 1989,
9
p.1) .

Tendo essa posição como seu guia, Carus escreve seu livro e em um dos
tópicos, “A Patologia e o Inconsciente”, pode-se ler:

Mas esses sistemas e órgãos do corpo humano muito pouco


influenciados pela consciência e inteiramente governado pelo
inconsciente são mais freqüentemente sujeitos a uma variedade de
doenças do que aqueles que são altamente influenciados pela
consciência. O grande número de doenças aparecem nos sistemas
digestivos e circulatório, as glândulas e os órgãos de excreção. [...]
considero a doença como sendo realmente um sofrimento
generalizado afetando o corpo como um todo. Nenhuma parte de um
corpo saudável invadido por um organismo patológico pode
permanecer normal. O corpo é uma entidade completa e só existe
como tal. [...] de uma importância enorme é o excitante maravilhoso
e misterioso da vida inconsciente, esse “poder curativo da natureza”,
esse “médico no homem”, que lentamente mina a doença, induzindo
uma “crise” que freqüentemente restauram a saúde com uma rapidez
assustadora através de uma inversão da atividade orgânica. [...]
Então podemos ver que a existência orgânica do inconsciente,
embora ignorante da doença, sustenta tudo que combate a doença e
se esforça constantemente para restaurar a saúde. Isso é
comumente chamado de “poder curativo da natureza”. (CARUS,
10
1989, p. 68, 69, 70, 71) .

8
. Carus continued to find his spiritus rector in Goethe until the old man’s death in 1832. Goethe refers to
Carus in his letters and remarks. He was particularly enthusiastic over Carus’ Lectures on Psychology
(1831), seeing in him an heir to his approach to nature and life. Psyche is the matured result of these
earlier lectures.
9
. The key to an understanding of the nature of the conscious life of the soul lies in the sphere of the
unconscious. All the difficulties, even the apparent impossibility, of a real understanding of the secrets of
the psyche become obvious in this light.
10
. But those systems and organs in the human body, so little influenced by consciousness and entirely
governed by the unconscious, are more frequently subject to a variety of illnesses than are those highly
influenced by consciousness. The greatest number of illnesses appear in the circulatory and digestive
systems, the glands and the excretory organs. […] We consider illness to be really a generalized affliction
affecting the body as a whole. No part of a healthy body invaded by a pathological organism can remain
normal. The body is a complete entity and can exist only as such. […]of far greater importance is the
marvelous and mysterious stirring of unconscious life, that ‘healing power of nature’, that ‘physician in
man which slowly undermines illness, inducing a ‘crysis’ that frequently restores health with astonishing
rapidity by means of strange reversals of organic activity. […]Thus we can see that unconscious organic
existence, though ignorant of illness, underlies everything that combines illness and strives constantly to
restore health. This used to be called ‘ nature’s healing power’.
16

Após essas citações, com um leve sabor groddeckiano, é importante


responder perguntas básicas: Quem foi Carus? Ele foi uma influência ou um
precursor de Groddeck?
Quanto à segunda parte é necessário desenhar uma linha cronológica
dentro da qual a trajetória pessoal e intelectual de Groddeck seja iluminada.
Uma vez construído este eixo temporal é possível estabelecer, para os
propósitos deste trabalho, as etapas da sua produção teórica e as diferentes
formas de expressão da mesma, seja através de textos literários, escritos
técnicos, ciclo de conferências, pois que citando Galina Hristeva (2008) [...]
mudanças nas posições teóricas produzem mudanças nos métodos de escrita,
indicando tendência a homogeneização e a dissociação. 11
Um aspecto importante ao se estabelecer essa linha temporal é que dois
modelos de análise da obra de Groddeck podem ser utilizados: 1) analisar a
obra e 2) analisar a partir da obra. No primeiro aspecto, a análise visa explorar
a obra em si, os modelos explicativos, os conceitos estabelecidos, suas
filiações, suas variações e aplicações e formas de apresentação. No segundo,
é preciso analisar as derivações, seguidores, pós - groddeckianos.
Como a proposta desta dissertação é apresentar a originalidade de
Groddeck e como veremos a seguir, o que se poderia chamar de o “primeiro
Groddeck”, o modelo de análise empregado ficará restrito a analisar a obra.
Em que tempo se construiu a obra de Groddeck? Groddeck viveu
em dois séculos e as transformações ocorridas neste período, tanto na
Alemanha quanto na Europa, tiveram influência na construção da sua obra.
Sendo mais específica, ele nasceu em 13 de outubro de 1866 e morreu em 11
de junho de 1934. É importante lembrar que ele falava de si mesmo como o
“quinto” Groddeck e derivou uma série de raciocínios a partir do número cinco.
E o que significa esta lembrança? O período de vida deste clínico geral começa
em 1866 (cinco anos antes da unificação da Alemanha) e morre em 1934
(cinco anos antes da invasão da Polônia pela Alemanha e do início da Segunda
Guerra Mundial). O seu período de vida, e por extensão, da construção da sua

11
[…] changes in the theorical positions cause changes in the writing methods, indicating homogenization
and dissociation trends. (HRISTEVA, 2008, p. 21).
17

obra está situado entre dois grandes eventos históricos significativos para a
Alemanha e para o mundo.
Como responder à segunda pergunta: quais são os tempos na obra de
Groddeck? A obra de Groddeck pode ser organizada em três tempos distintos
e simultaneamente interligados: período pré-psicanalítico, período
psicanalítico12 e período pós-psicanalítico. A passagem do primeiro período
para o segundo período se dá através da série das Conferências Psicanalíticas
13
ministradas por Groddeck no seu Sanatório em Baden-Baden. O trânsito do

12
Este período começa com uma carta de Groddeck a Freud (27 de maio de 1917), na qual esboça sua
concepção de psicanálise e se desculpa por haver escrito de forma desfavorável sobre, também, a
psicanálise, afirmando que foi movido mais pela inveja do que pelo conhecimento. O interesse de Freud
por Groddeck se expressa em seu convite para que este fizesse parte da “horda selvagem”, que é como ele
denominava seus seguidores. Este otimismo inicial vai diminuindo progressivamente na medida em que
percebe que nunca tivera próximo de si um espírito tão indômito e cioso de sua liberdade e que
dificilmente se adaptaria passivamente ao círculo psicanalítico. Este negativismo de Freud, uma vez
instalado, nunca desapareceu, levando-o a ver Groddeck como outro membro pouco digno de confiança,
como já o fizera com Stekel. Apesar dessa visão, Freud reconhece haver emprestado o termo “Isso” para a
formulação do “Id”. Os melhores documentos para uma análise detalhada deste período são as cartas
trocadas entre Freud e Groddeck (Groddeck, 1994, p. 3–71), além de uma leitura acurada dos textos
produzidos por Groddeck, principalmente até 1925. Um pouco da simpatia, ainda no início da relação,
está presente nos comentários e na tomada de posição que Freud ( ver por exemplo as cartas de Freud a
Pfister em 04-02-1921 e Pfister a Freud em 14-03-1921. ) ( tem que assumir diante de um livro escrito
por Groddeck e publicado, em 1921, pela Internationaler Psychoanalytischer Verlag: trata-se do Der
Seelensucher: Ein psychoanalytischer Roman. Este livro, fez com que alguns analistas ( Ernst Jones,
Hans Sachs, Pfister ) julgassem a obra como sendo de mal gosto, pornográfica e se perguntassem como
uma editora séria e responsável pelas publicações científicas do movimento poderia publicar tal tipo de
livro. Essa polêmica, tanto a nível institucional (principalmente pelas reações na Suíça) quanto no círculo
mais próximo de Freud (presente nas circulares do “Comitê Secreto” em 1921), faz com que este e
Ferenczi saiam em defesa das idéias de Groddeck e diante das criticas de Pfister, Freud o defende
energicamente e o compara a Rabelais ( Autor do romance Gargantua ), comparação que também é
ratificada por Ferenczi. Um outro livro importante deste período e também publicado pela Verlag, em
1923, foi o Das Buch vom Es (“O Livro do Isso”) que pode ser considerado um bom livro de divulgação
da psicanálise, ou pelo menos como ela é pensada por Groddeck. Além desses dois livros, é importante
salientar alguns artigos produzidos por Groddeck neste período, principalmente Psychische Bedingtheit
und psychoanalytische Behandlung organischer leidem(“Condicionamento Psíquico e Tratamento de
Moléstias Orgânicas pela Psicanálise”, em Groddeck, 1992, p. 9–28), que foi o primeiro contato de Freud
com a obra teórica de Groddeck e que, por sua sugestão, moveu Ferenczi a fazer uma crítica favorável,
sem deixar de manifestar em alguns momentos suas reservas e ceticismo. Mas, uma análise detalhada e
aprofundada deste período ficará para outro momento e está fora do âmbito deste trabalho.
13
Em 16 de agosto de 1916, Groddeck pronuncia a “primeira conferência psicanalítica para doentes”, no
sanatório em Baden-Baden. Essas conferências, em número de 115, se estenderam até 2 de abril de 1919,
com algumas breves interrupções com um período máximo de três meses [10/07/1918–16/10/1918]. A
primeira compilação completa dessas conferências foi feita por Roger Lewinter e publicadas em três
volumes em francês (1978,1979,1981). Essas conferências eram destinadas aos pacientes internos do
Sanatório e faziam parte do processo de tratamento sugerido por Groddeck. É importante ressaltar que os
pacientes atendidos por Groddeck padeciam, na maioria dos casos, de doenças orgânicas e que ele não era
psiquiatra, mas sim clínico geral. Essas conferências, que começam no período anterior ao primeiro
contato epistolar (27/05/1917) de Groddeck com Freud, se prolongam por mais dois anos após o início
desse contato. Representam de fato, após um período de gestação, o ato de nascimento da psicossomática
tal como foi pensada por Groddeck e que se constitui após a descoberta da psicanálise tal como escrita
por Freud e não como Groddeck pensava. Muitas das idéias trabalhadas posteriormente por Groddeck
podem ser percebidas “in status nascendi” nessas conferências, como, por exemplo, as idéias discutidas
no Livro do Isso, publicado em 1923, e que estão presentes nas conferências do período de 29 de maio de
18

segundo para o terceiro período coincide com o afastamento de Groddeck da


psicanálise, conforme, proposta por Freud e uma presença maior de Ferenczi14
e também uma aproximação com Hermann Keyserling15 e a sua “Escola de

1918 (conferência 90) até 10 de julho de 1918 (conferência 96); lembrando sempre que o livro foi escrito
em forma de cartas para uma amiga, mas aqui cabe a suposição de que na sua essência elas são na
realidade as conferências reescritas, revistas e posteriormente transformadas em “cartas”. Essas
conferências eram realizadas todas as quartas-feiras, das 17 às 18 horas. As palestras tinham uma duração
média: nem muito curtas, para que os pacientes tivessem tempo de absorvê-las, a fim de deixá-las agir,
nem muito longas, para evitar que resistissem a elas devido à fadiga. No final, era possível fazer
perguntas. O tema das conferências eram o mais vasto possível e procuravam apreender o ser humano em
todas as suas manifestações de vida, desde as suas criações culturais mais complexas (Bíblia, obras
literárias, obras de arte, etc.) até as manifestações mais simples (gestos, palavras, maneiras de ser e de
agir etc.). A respeito da atmosfera e da dramaticidade das conferências, Georg Hirzel, editor das obras de
Groddeck até 1917, escreve um artigo, com o pseudônimo de “Sátiro”, na revista Satanarium (no. XXI,
26 de junho de 1918), revista poli-copiada e dirigida aos pacientes do sanatório e publicado em Groddeck,
1996, p. 224-225).
14
No início do relacionamento entre Freud e Groddeck (1917), Sandor Ferenczi assumiu uma posição
distante e crítica às idéias do médico de Baden-Baden e mesmo assim aceitou escrever uma resenha
favorável ao primeiro texto que Freud leu de Groddeck. No final de 1921, Ferenczi resolveu tratar-se no
sanatório de Groddeck em Mariennhöle, sem que isso significasse que tivesse se tornado adepto das
idéias proferidas neste local. Mas a partir deste instante iniciou-se uma longa amizade entre esses dois
homens, com uma intensa e significativa troca de correspondência, que começa com um pedido de
compreensão que está presente numa carta escrita por Ferenczi no Natal de 1921. Este pedido de vínculo
envolverá vários aspectos da vida amorosa de Ferenczi, sua insatisfação com Freud e com a sua análise, o
pedido e a necessidade dele por análises mútuas, e como este pedido revela alto grau de honestidade
emocional, Groddeck se converte no companheiro analítico mútuo o que Freud não chegou a ser. E esta
relação de amizade e confiança profunda, com visitas constantes, principalmente de Ferenczi a Baden-
Baden, durará até a morte deste em 22 de maio de 1933. A compreensão e as implicações desta relação
podem ser buscadas na leitura das correspondências trocadas entre os dois entre 1921 e 1933.
15
Nas suas “Memórias” Groddeck se refere a Keyserling como sendo [...] o mais brilhante interlocutor
que jamais encontrei, um completo homem do mundo no melhor sentido da palavra e um homem que
sabia dar e receber. Encontram-se com bastante freqüência os que sabem dar, pelo menos se se tiver o
dom de se deixar presentear; os que sabem receber já são mais raros, pois cada um se desacostuma o
mais rápido e radicalmente possível do ingênuo receber da criança, para logo pisar com prazer na lama
do pagar e quitar, igual a todos os outros; como se algum dia algo pudesse ser pago.[ ... ] Então, homens
que sabem dar e receber quase não existem. Considero uma graça especial do destino ter conhecido
Keyserling.[...] Conheço muito bem a sua paixão pela sabedoria, o que se pode chamar de filosofia, e foi
assim que ele a chamou. E sendo ele o único entre milhares que suspeita do que seja sabedoria,
considero justo que tenha dado à instituição de Darmstadt o nome de “Escola de Sabedoria”. [...] Estive
várias vezes em Darmstadt e existe o fato de que Keyserling é capaz de harmonizar de forma perfeita os
pensamentos de homens de tão diferentes correntes de espírito e índoles, como Scheler, Jung, Frobenius,
de tal forma que o ouvinte, mediante um claro conhecimento de cada personalidade individual e através
de um interesse atento pela lei individual sob a qual vive o orador, pode facilmente absorver e assimilar
o humano em geral; este fato dá a Keyserling o direito de afirmar que, em Darmstadt, se está realizando
algo de diferente que não é oferecido em nenhum outro lugar e que só pode ser realizado por ele.
(GRODDECK 1970, 1994, p. 322–323). Em 1925, Groddeck escreve o trabalho: Der Sinn der Krankheit
(“O Sentido da Doença”, em Groddeck, 1992, p. 97-101) que será publicado no periódico editado por
Keyserling,chamado Der Leuchter. Trata-se do primeiro texto publicado logo após a edição do Livro do
Isso. A primeira participação de Groddeck na “Escola de Sabedoria” foi em setembro de 1925 e apresenta
a conferência Schicksal und Zwang (“Destino e Coação” em Groddeck, 1994, p. 231–245). O tema geral
deste ciclo versava sobre “Lei e Liberdade”. Groddeck permanecerá em contato Keyserling até a sua
morte. Quando Groddeck morre, Keyserling escreve algumas linhas elogiosas:
Em 10 de junho de 1934 morre em Zurique, com a idade de sessenta e sete anos, o médico de Baden-
Baden Georg Groddeck, o único autêntico e qualificado continuador da escola de Schweninger. Com ele
desapareceu um dos homens mais extraordinários que eu jamais havia encontrado. Era a única pessoa
minha conhecida que sempre me fazia pensar em Lao-Tsé: seu não fazer era criativo, a um nível
inclusive mágico. Ele se atribuía o princípio de que o médico não sabe nada, nada pode fazer e pouco
19

Sabedoria”, com Groddeck participando ativamente dos seus encontros anuais


e publicando suas conferências no anuário da Escola. Porem esta dissertação
tem como objetivo, apenas o período pré – psicanalítico.
Apesar de se usar o termo psicanalítico como referência para esta
periodização, de fato, Groddeck nunca se integrou no movimento psicanalítico,
em parte por seu próprio desejo de ser original e independente – Groddeck se
autodenominava “psicanalista selvagem”. Teve desavenças com diversos
psicanalistas e fez poucos amigos, como Ferenczi, Ernst Simmel, Karen

tem o que fazer: deverá somente, com sua presença, despertar as forças curativas inatas no paciente.
Naturalmente, esta técnica de não saber, de não fazer por si só não lhe daria condições de manter ativa
sua clínica em Baden-Baden. Portanto, ele curava fazendo uso de uma combinação de psicanálise e
massagens. [...] Foi assim que Groddeck me curou, em menos de uma semana, de uma flebite recorrente.
[...] Sem dúvida, em Georg Groddeck, eu não amava e respeitava tanto o médico como o sábio
paradoxal. Ele não pertencia a nenhuma escola: sobre cada coisa tinha suas opiniões estritamente
pessoais e freqüentemente heréticas. E todas elas eram entendidas no sentido justo, não muito ajustadas
ao literal, opiniões profundas. Não conheço nenhum filósofo da natureza que como ele tenha ressaltado a
condição da infância; até quase se poderia dizer que seu ideal era o ovo, posto que nenhum organismo já
formado saberia do que o “Isso” é capaz. [...] Porém, como acontece freqüentemente com as pessoas
de vida rica, a presença pessoal de Groddeck contava muito, muito mais do que aquilo que ele
expressava em suas palavras e em suas teorias. Disso puderam se interar, até agora, os participantes dos
seminários da “Escola da Sabedoria15” em Darmstadt: onde apesar de que muitas vezes ele tomava a
palavra, era sobretudo sua simplicidade, sua presença viva o que fazia de Groddeck um participante
único daquelas reuniões pensar por si mesmo. [...] Porém, no íntimo, foi um dos homens mais cálidos,
mais carinhosos, mais preocupados pelo bem-estar alheio que jamais havia encontrado. Epílogo a “El
Libro del Ello, de Georg Groddeck de Hermann Keyserling (texto pesquisado em:
www.indepsi.cl/ferenczi/vinculaciones/groddeck.) “El 10 de junio de 1934 muere en Zurich, a la edad de
sesenta y siente años, el médico de Baden-Baden Georg Groddeck, el único auténtico y calificado
continuador de la escuela de Schweninger. Con él ha desaparecido uno de los hombres más
extraordinarios que yo haya encontrado nunca. Y la única persona de mi conocimiento que siempre me
había hecho pensar en Lao-Tse: su no-hacer era creativo, a un grado incluso mágico. El se adscribía al
principio de que el médico no sabe nada, nada puede hacer, y poco tiene que hacer: deberá solamente, con
su presencia, despertar las fuerzas sanativas innatas en el paciente. Naturalmente, esta técnica del no-
saber y del no-hacer no le habría permitido, por si sola, mantener activa su clínica de Baden-Baden. Por lo
tanto él sanaba haciendo uso de una combinación de psicoanálisis y masajes; […] Fue así como Groddeck
me curó, en menos de una semana, de una flebitis recurrente. […] Sin embargo, en Georg Groddeck, yo
no amaba y respetaba tanto al médico como el sabio paradójico. Él no pertenecia a ninguna escuela: sobre
cada cosa tenía sus opiniones estrictamente personales, y a menudo las más heréticas. Y todas ellas eran,
entendidas en el sentido justo, no muy ajustada a lo literal, opiniones profundas. No conozco a ningún
filósofo de la naturaleza que como él haya resaltado la condición de la infancia; hasta casi se podría decir
que su ideal era el huevo, puesto que ningún organismo ya formado sabría de lo que el Ello es capaz. […]
Pero, como sucede frecuentemente con las personas de vida enriquecidas, la presencia personal de
Groddeck contaba mucho, mucho más de aquello que él expresaba en sus palabras y en sus teorías. De
ello han podido enterarse, hasta ahora, los participantes a los seminarios de la “Escuela” de la sabiduria”
en Darmstadt, donde a pesar de que muchas veces él tomaba la palabra, era sobre todo su simplicidad, su
presencia viva lo que hacia de Groddeck un participante insustituible de aquellas reuniones: ya fuese
provocando, ya exasperando, ya fascinando, él obligaba a cada uno a pensar por si mismo. Su apariencia
era ruda: su alma, demasiado vulnerable, con una gran necesidad de protección. Pero, en lo íntimo, fue
uno de los hombres más cálidos, más cariñosos, más preocupados por el bien ajeno, y más grande que yo
haya encontrado nunca”.
20

Horney, Fromm e Frieda Fromm-Reichmann. Costumava tratar os


psicanalistas, que para ele não tinham muita originalidade e não estavam à
altura de Freud, como “funcionários da psicanálise”.
Uma vez estabelecida essa periodização, um recorte se faz necessário.
Recorte este que estabelecerá as características deste trabalho, definindo o
seu foco no período pré-psicanalítico, onde será enfatizado o papel de Ernst
Schweninger. Posteriormente, estudaremos o início do trabalho no Sanatório
em Baden-Baden e as suas obras principais - tanto literárias quanto médicas
desse período - com destaque especial ao livro que finaliza este período,
Nasamecu.
Quanto à última das três perguntas: “é tempo para a obra de
Groddeck?”, ou seja, é valido e relevante estudar a obra de Groddeck no
momento histórico em que vivemos?
Um tempo em que se discute sobre a origem e o significado das
doenças, onde o papel do médico está sendo repensado, tempo em que
termos como “humanização” da medicina e na medicina são tratados como
“novidade”. A resposta é afirmativa: vejo que este é o tempo certo para estudar
Groddeck.
Além disso, este autor serve de tema para estudos acadêmicos e é
constantemente, ainda que de forma parcial, citado por autores que pesquisam
a Psicossomática. Por isso, de fato é tempo para a sua obra como também é
tempo de pesquisar sua obra. Porém, esta é apenas uma inferência anterior à
pesquisa realizada sobre a trajetória intelectual de Groddeck, portanto, a
resposta precisa se é tempo ou não para a obra de Groddeck, pretende ser
respondida ao final desta dissertação.
21

1. OBJETIVO

O objetivo deste trabalho é fazer uma leitura detalhada da obra de Georg


Groddeck, dentro de um espaço de tempo definido como período pré -
psicanalítico.
No que se refere a obra escrita por Groddeck,procurarei categorizá-la,
enfatizar sua produção intelectual e situá-la dentro de seu contexto biográfico,
ampliando meu procedimento para compreender também o contexto histórico-
teórico que corresponde à sua época.
Esse estudo visa subtrair da obra a conceituação Groddeckiana de
Psicossomática no período que antecede ao seu contato com Freud.
A bibliografia estará principalmente centrada em fontes primárias1.

1
Fontes Primárias: Nesta dissertação denominaremos fontes primárias as traduções confiáveis, dos
escritos originais escritos por Groddeck em Alemão, para outras línguas.

21
22

II. PANORAMA HISTÓRICO ANTERIOR A OBRA DE GRODDECK

Qual a importância de um panorama histórico para uma obra? Ele antecede e


serve como pano de fundo para fundamentar o pensamento de Groddeck? Ele
ajudará a elaborar o tema principal deste trabalho?
Nosso ponto de partida é que o panorama histórico, ainda que brevemente
descrito aqui, contextualizará a obra de Groddeck e evidenciará de que forma tanto
o Romantismo quanto a Filosofia da Natureza não apenas influenciaram como
também serviram de inspiração para a construção de seu pensamento sobre o
doente e a doença.
Ellenberger, em seu significativo livro que trata da questão do descobrimento
do inconsciente1, evidencia a influência e a inspiração que o Romantismo teve sobre
Groddeck. Em seu breve comentário sobre o “Isso” assinala:

[...] A descrição que fazia Groddeck do Isso reflete em grau extremo, o


velho conceito romântico do inconsciente irracional. [...] Verdadeiro
continuador de Novalis, Carus e Von Hartmann, Groddeck afirmou que o
Isso podia conformar processos fisiológicos e produzir doenças
2
(ELLENBERGER, 1976, p. 954) .

Ao analisarmos esta citação, podemos destacar dois aspectos: a relação


entre o Isso e o pensamento romântico3 e Groddeck visto como um continuador das
idéias propostas por teóricos importantes desta visão romântica do inconsciente.
Nas considerações históricas deste trabalho, dos três autores citados acima, a obra
de Carus será a única mencionada.

1. Romantismo

Inicialmente vou citar um trecho de um texto escrito por Gerd Bornheim, no


qual explica a construção e as razões históricas pelas quais o movimento Romântico
surgiu primeiro na Alemanha:

1
. Para Ellenberger, o inconsciente é uma descoberta e não uma invenção e tem uma longa história e uma
diversidade de definições e caracterizações.
2
. [...] La descripción que hacía Groddeck del ello reflejaba, en grado extremo, el viejo concepto romántico de
inconsciente irracional. [...] Verdadero epígono de Novalis, Carus e Von Hartmann, Groddeck afirmó que el ello
podía conformar procesos fisiológicos y producir enfermedades.
3
. Relação esta que outros autores, conforme vimos na introdução, fazem questão de enfatizar.
23

[...] Quando na Itália floresceu a Renascença, na Alemanha processou-se a


Reforma, fato que viria estabelecer uma profunda cisão entre a cultura
latina e a nórdica. No Sul, a palavra de ordem era a volta à Natureza. No
Norte, dava-se exatamente o contrário: não a volta à natureza, mas o
afastamento dela e a fixação no sobrenatural. Os italianos buscavam
inspiração na arte antiga; os alemães concentravam-se na fé e na vida
religiosa. [...] O grande tema da cultura renascentista é a natureza e o
caminho que conduz a ela, a razão. Para Lutero, o único caminho válido é
a fé, e o seu objeto é o sobrenatural, razão pela qual as concessões que
Lutero fazia à cultura – fundação de escolas, estudo de línguas antigas,
musica, etc – encontram a sua justificação na Bíblia e na vida religiosa. O
homem deveria ser educado a fim de melhor atender a seu Beruf
(profissão, vocação, chamado divino ) e aprender a submeter-se às ordens
de Deus. Assim, se a vitória nos países latinos cabe ao racionalismo, na
Alemanha é o irracionalismo que se introduz, constituindo-se em uma das
presenças constantes ao longo de toda cultura alemã. A primeira
conseqüência da Reforma foi o isolamento da Alemanha durante cerca de
dois séculos, divorciando-se da cultura latina. Depois, segue-se uma série
de movimentos subseqüentes, que tendem não só a integrar a Alemanha
na Europa, mas sobretudo a reabilitar os seus valores. No século XVIII
surge o primeiro desses movimentos, a Aufklaerung que deve ser
compreendida como um esforço de assimilação da cultura européia. Em
seguida, o Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), um Pré-Romantismo
rebelado contra o classicismo francês e desperto aos valores germânicos.
Depois o classicismo alemão, alheio a exclusivismos exacerbados,
tendendo a realizar uma síntese européia da cultura. E finalmente, o
Romantismo, no qual a Alemanha atinge a sua máxima maturidade cultural.
Com o Romantismo, os papéis se invertem. Se a Alemanha vence o
“obscurantismo” graças à influência do Classicismo latino, o seu
Romantismo impõe-se a toda Europa. (GERD BORNHEIM, in
J.GUINSBURG, p. 78, 1997).

O termo que faz referência a este conjunto de movimentos intelectuais que


surgiram na Europa no final do século XVIII e têm na Alemanha seu principal ponto
de desenvolvimento e influência, é romantisch.

Karl Friedrich Schlegel [...] usa o termo para significar literatura imaginativa
com uma forma moderna diferente, a ser contrastada com os escritos de
autores antigos, especialmente Homero e os poetas líricos e os dramáticos
gregos. A palavra deriva do francês Roman, que se refere a uma história,
usualmente uma história militar de criaturas medonhas, cavaleiros heróicos
e amor cavalheiresco. Quando a palavra entra na Alemanha, próximo ao
final do século XVIII, ela carrega o significado de romanhaft, semelhante a
uma novela, especialmente o tipo de história ou atitude típica do gênero.
[...] ele deseja empregar o termo mais especificamente para descrever uma
forma de literatura poética desenvolvida no período moderno que
expressava os interesses subjetivos do artista, permitindo elementos
conflitivos a permanecerem insolúveis, rejeitando a conter uma obra livre e
de imaginação irônica, que descrevia as reações e retratando as
sensibilidades dos indivíduos comuns, usualmente o próprio poeta, e que
focalizado nos modos e tempo característicos de um período definido da
história. A literatura antiga, em contraste, se conformava ao objetivo e aos
princípios formais da beleza, unificando seus elementos em uma síntese
harmoniosa, descrevendo as atividades dos heróis e deuses,
transcendendo historicamente tempos fixados e lugares e então,
24

indiretamente, representa acontecimentos universais da humanidade


4
(RICHARDS, 2002, p. 20-21) .

Romantisch, romanhaft, roman, romantic, romance, todos estes termos têm


sua origem em palavras derivadas do radical rom, de Roma.

Etimologicamente, a palavra “romance” deriva da expressão latina


romanice loqui, “falar românico”, ou seja, falar num dos vários dialetos
europeus que se formaram a partir da língua da antiga Roma, em oposição
ao latine loqui, que era a língua culta da Idade Média, falada e escrita
apenas por clérigos e nobres. E porque nesses dialetos populares
contavam-se histórias de amor e de aventuras cavalheirescas, transmitidas
oralmente, a palavra “romance” passou a indicar uma longa narrativa
sentimental, forma cultural que viveu à margem da literatura oficial durante
a época medieval e renascentista. (D’ONOFRIO, 2005, p. 489)

Segundo Raymond Williams:

Romântico é uma palavra complexa porque empresta seus sentidos


modernos de dois contextos distinguíveis: o conteúdo e o caráter dos
romances e o conteúdo e o caráter do movimento romântico. Este
último, em geral datado do final do século XVIII e início do século XIX, é,
em si mesmo, excepcionalmente complexo e diverso.(WILLIAMS, 2007, p.
363)

Retornando ao significado do fenômeno romântico, faço referência ao autor


Henri Ellenberger:

O romantismo teve sua origem na Alemanha, onde alcançou seu maior


desenvolvimento entre 1880 e 1830, começando depois a declinar, ainda
que se estendesse até a França, Inglaterra e outros países. Seu impacto foi
tal que seus efeitos persistiram na vida cultural européia durante todo o
século XIX. […] Foi considerado muitas vezes como uma reação cultural
diante do Iluminismo. Enquanto que esta última proclamava os valores da
5
razão e da sociedade, o romantismo manteve o culto do irracional e do

4
. Karl Friedrich Schlegel [...] used the term to signify imaginative literature of a distinctively modern form, to be
contrasted with the writings of ancient authors, especially Homer and the Greeks lyric poets and dramatists. The
word derives from the French roman, which referred to a story, usually a military tale of awful creatures, heroic
knights, and chivalric love. When the world entered the German language, toward the end of the seventeenth
century, it carried the meaning of romanhaft, novel-like, specifically the kind of story or attitude typical of the
genre. […] he wished to employ the term more specifically to describe a form of poetic literature developed in
the modern period that expressed the subjective interests of the artist, that allowed conflicting elements to remain
unresolved, that refused to restrain a freely playing and ironic imagination, that described the reactions and
portrayed the sensibilities of individuals of common clay, usually the poet himself, and that focused on manners
and times characteristic of a definite period in history. Ancient literature, by contrast, conformed to objective and
formal principles of beauty, unified its various elements into a harmonious synthesis, described the activities of
heroes and gods, transcended historically fixed times and places, and thus, indirectly, represented universal
features of humanity.
5
. [...] A res cogitans, tal como Descartes a pensara, exerce um papel fundamental. A razão seria o ponto
arquimédico que permitiria dominar o mundo. E se o homem quisesse atingir a sua plenitude, quer dizer, ser
25

individual. Com ele, ressurgiram as tendências místicas que haviam sido


relegadas a um segundo plano pelo Iluminismo.
6
(ELLENBERGER, 1976, p. 234, 235) .

Este movimento está diretamente relacionado com as transformações


socioculturais pelas quais a Europa passou durante a segunda metade do século
XVIII. Entres estes acontecimentos, destacam-se os dois mais significativos: a
Revolução Francesa e a Revolução Industrial, herdeiros diretos das atividades
comerciais que se intensificaram a partir da Renascença.

[...] com as Grandes Navegações, acabou provocando uma grande


atividade industrial, que, devido ao sucessivo progresso científico e
tecnológico (emprego de máquinas movidas por energia não-animal e não-
humana), deu origem a uma verdadeira reviravolta. A Revolução Industrial,
que teve como centro de irradiação a Inglaterra, provocou a crise do
artesanato, da manufatura e da pequena indústria doméstica,
transformando a velha sociedade agrária em moderna sociedade industrial.
Milhares de seres humanos deixaram o campo para trabalhar nas fábricas,
dando origem a um proletariado urbano, que passou a integrar o Terceiro
Estado (os dois outros Estados eram constituídos pela nobreza e pelo alto
clero), composto de artesãos independentes, pequenos comerciantes,
funcionários públicos, sacerdotes e pastores humildes. Este Terceiro
Estado começou a reclamar seus direitos, na tentativa de libertar-se do
jugo das classes dominantes. Em 1789, estourou a Revolução Francesa
que derrubou os Bourbon do poder, proclamando a liberdade, a igualdade
e a fraternidade. [...] O desejo de libertação de qualquer forma de tirania
pode ser percebido em todos os países da Europa que, nessa época,
lutavam para conseguir constituições democráticas em seus Estados.
Também nas colônias sentiu-se o sopro do liberalismo. A Declaração da
Independência dos Estados Unidos da América do Norte já em 1776,
proclamava o direito natural de todos os homens à vida, à liberdade e à
busca da felicidade. [...] Com as revoluções industrial e comercial, o eixo
das influências se desloca das regiões latinas (Itália, Portugal, Espanha,
França) que, até então e sucessivamente, tinham dominado a Europa, para
os países do norte. Era inevitável que a hegemonia política da Inglaterra e
dos outros países nórdicos acabasse impondo também o predomínio
cultural, revelando formas estéticas e princípios ideológicos de povos que
até então viveram à margem da cultura européia por não possuírem uma
sólida tradição clássica. (D’ONOFRIO, 2005, p. 492 – 494)

soberanamente livre,deveria considerar a razão como a essência do seu ser, derivando dela as normas de seu
comportamento. O homem atingiria, portanto, o máximo de sua humanidade, se racionalista. Só pode ser
considerado como verdadeiro, bom e belo, aquilo que resiste à critica racional. [...] A razão é, portanto, o valor
supremo e todos os aspectos da cultura lhe devem estar subordinados. [...] O direito, a moral, a arte, assim como
a ciência a filosofia, devem ser explicados a partir de um principio único, a razão. (GERD BORNHEIM, in
J.GUINSBURG, 1997, p.79).
6
. El romanticismo tuvo su origen en Alemania, donde alcanzó su más alto desarrollo entre 1800 y 1830,
comenzando después a declinar, aunque se extendió por Francia, Inglaterra y otros países. Su impacto fue tal que
sus efectos persistieron en la vida cultural europea durante todo el siglo XIX. [...] Ha sido considerado muchas
veces como una reacción cultural frente a la Ilustración. Mientras que esta última proclamaba los valores de la
razón y de la sociedad, el romanticismo mantuvo el culto de lo irracional y lo individual. Con él resurgieron las
tendencias místicas, que habían sido relegadas a un segundo plano por la Ilustración.
26

O Romantismo Alemão teve suas origens no movimento Sturm und Drang do


século XVIII, que significa “tempestade e ímpeto”, que é o título de uma peça escrita
por Frederico Maximiliano Linger, publicada em 1776. Este movimento registrou,
entre 1770 e 1780, data anterior à Revolução Francesa, as primeiras modificações
que teriam levado gradualmente à superação total do Iluminismo e à afirmação do
Romantismo.
No livro a História da Filosofia, os autores Antiseri e Reale, se referem às
posições e ideias de fundo do movimento “Sturm und Drang”:

1) A natureza, entendida como força onipotente e criadora de vida;


2) O gênio, como força originária que cria analogamente à natureza e é
regra de si mesmo;
3) O panteísmo, que começa a se contrapor à concepção iluminista da
divindade como razão suprema;
4) O sentimento pátrio, expresso no ódio pelo tirano, na exaltação da
liberdade e no desejo de infringir convenções e leis exteriores;
5) A predileção pelos sentimentos fortes e pelas paixões impetuosas;
6) Quem deu sentido e importância supranacional ao Sturm und Drang
foram principalmente Goethe, Schiller e os filósofos Jacobi e Herder
com sua primeira produção poética e literária. (REALE, ANTISERI,
1997, p.3, cap. 1)

O Romantismo é considerado por muitos autores como uma reação cultural ao


Iluminismo, mas reconhecendo em muitos autores românticos uma inegável
mentalidade e preocupação científica7 o Historiador da Ciência Robert J. Richards
considera o Romantismo como uma visão complementar8 da realidade. O problema
não é com a ciência como tal, mas com o tipo especifico de ciência então praticada;
a tarefa dos românticos não é a rejeição mas a transformação da ciência, ir além do
estabelecido. O seu propósito tem que ser ampliado, a ciência deve se dirigir para as
profundidades como também para as alturas. Citando Arthur Zajonc:

7
. Duas citações se fazem necessárias para precisar esta preocupação científica: 1) [...] As estruturas básicas da
natureza podem então ser apreendidas e representadas pelas habilidades dos artistas e as metáforas poéticas,
como também pelos experimentos do cientista e as observações dos naturalistas. (RICHARDS, 2002, p. 12) [...]
The basic structures of nature might thus be apprehended and represented by the artist’s sketch and the poet’s
metaphor, as well as by the scientist’s experiment and the naturalist observation. 2) […] os pensadores
românticos consideravam as atividades do cientista comparáveis às do artista, pois ambos empregavam
imaginação criadora. (idem, p. 12). { [ ... ] Romantic thinkers considered the activities of the scientist
comparable to that of the artist, for both employed creative imagination. Considerando essas duas citações e o
que foi dito acima, a ciência proposta pelos românticos continha, além das características próprias da ciência
iluminista, uma consideração moral e uma perspectiva estética.
8
.De forma coloquial, duas descrições de uma situação são complementares se ambas são necessárias para uma
completa descrição dessa situação e ao mesmo tempo são incompatíveis uma com a outra. ( Armando de
Oliveira e Silva: anotações de aula para o Curso de Especialização em Psicologia Analítica- PUC/Pr, , 2007 ).
27

[...] Muitos pensadores participaram neste projeto, especialmente na


Alemanha, aonde teve várias formas, talvez o modelo mais conhecido é a
Naturphilosophie ou “Filosofia da Natureza” associada com os nomes de
Friedrich von Schelling, Georg Hegel, Lorenz Oken, Carl Gustav Carus,
Henrik Steffens and Karl Ernst von Baer.[...] Os filósofos da natureza estão
associados com a filosofia idealista alemã, e abordam a natureza a partir
9
do pólo do pensamento puro.( ZAJONC, 1998, p.18 )

A partir de Descartes e Newton, até Hume e Kant, o mecanicismo foi


empregado como o conceito básico pelo qual é possível compreender não somente
o universo inanimado como também a realidade viva. Os Românticos substituem o
conceito de mecanismo por uma visão orgânica como o princípio fundamental para
interpretar a natureza. Esta concepção orgânica da natureza,

[...] proposta por Herder, Goethe e Schelling – se opõe ao ideal mecânico


de Descartes e Newton. [...] A natureza deixa de ser um mero produto do
Criador, mas em si mesma se torna geradora – de si mesma. Auto -
produção e desenvolvimento revelam a natureza se movendo de um
estado simples, menos organizado para um estado posterior mais
desenvolvido. [...] a natureza se torna temporalizada. [...] A concepção
mecanicista da natureza, em contraste, não pode facilmente suportar uma
temporalidade intrínseca: o mecanismo do relógio que um Criador
inteligente criou era estável, coerente e perfeito desde o começo como o
será no final. [...] O mecanismo do relógio em si mesmo é
fundamentalmente atemporal e então a - histórico. Mas a natureza como
auto - gerativa, como orgânica, pode ter uma história. [...] A infusão do
tempo na natureza não foi meramente uma condição necessária para o
aparecimento das teorias evolutivas; ela constitui essas mesmas teorias
10
durante os séculos XVIII e XIX. (RICHARDS, 2002, p. 11) .

Esta visão histórica e orgânica da natureza e da vida, além de possibilitar a


teoria da evolução, vai possibilitar, no âmbito da psicologia, as teorias do
desenvolvimento humano e, sobretudo, pensar o sujeito como um ser em

9
. […] Many thinkers participated in the project, especially in Germany, where it took various forms. Perhaps
best know is the Naturphilosophie, or, “nature philosophy”, associated with the names of Friedrich von
Schelling, Georg Hegel, Lorenz Oken, Carl Gustav Carus, Henrik Steffens and Karl Ernst von Baer. […] the
nature-philosophers were associated with German idealistic philosophy, which approached nature from the pole
of pure thought.
10
. [...] - given currency by Herder, Goethe, and Schelling – opposed the mechanical ideal stemming from
Descartes and Newton. […] nature ceased to be mere product of the Creator’s designs but itself became producer –
of itself. Self-production and development revealed that nature moved from a simpler, less organized, earlier state
to a more progressively developed later state. […] nature became temporalized. […] The mechanistic conception
of nature, by contrast, could not easily support intrinsic temporality: the clockwork mechanism that an intelligent
Creator would produce was stable, coherent, and as perfect from the beginning as it would be at the end. […] The
clockwork mechanism itself was, fundamentally a-temporal and thus a-historical. But nature as self-productive, as
organic, could have a history. […] The infusion of time into nature was not merely a necessary condition for the
appearance of evolutionary theories; it constituted those very theories during the late eighteen and the nineteenth
centuries.
28

transformação, com um determinado propósito. Como veremos em outro momento


deste trabalho, Groddeck adota uma perspectiva desenvolvimentista e define a
importância dos primeiros vínculos da criança com a sua mãe como um aspecto
fundamental para seu crescimento emocional e sua noção da doença como tendo
um determinado propósito dentro da vida do indivíduo.
Essa visão temporal pode ser aplicada no próprio Romantismo e com isto
este movimento vai se revelar não como um sistema pronto, encerrado em si
mesmo, mas como um movimento filosófico que se transforma, com o aparecimento
de novos autores e também com um deslocamento geográfico dentro da Alemanha e
da Europa. Robert J. Richards em seu livro sobre a questão da ciência e da filosofia
no Romantismo, propõe, seguindo tradição acadêmica, a divisão do Romantismo em
três períodos e localizados em ou mais centros urbanos importantes:
1) Romantismo Inicial (Die Frühromantiker), situado em Jena. Alguns autores que
canonicamente definem este primeiro romantismo: os irmãos Wilhelm e Friedrich
Schlegel, suas esposas Caroline e Dorothea, o teólogo Friedrich Schleiermacher, os
poetas e novelistas Ludwig Tieck e Friedrich von Hardenberg ( Novalis ), o teórico
das artes Wilhelm Wackenroder e o filosofo Friedrich Schelling.
2) Romantismo Médio ou Segundo Romantismo, centrado em Heidelberg, inclui
autores como os escritores Achim von Arnim, Clerius Brentano e o pintor Caspar
David Friedrich.
3) Romantismo Tardio ou Terceiro Romantismo, ativo em Viena , Berlin e Munique.
Este grupo mantém alguns membros do Primeiro Romantismo, como o crítico
literário e historiador Friedrich Schlegel e o filosofo Friedrich Schelling e também
novos participantes como os escritores Johann Ludwig Uhland e E.T.A. Hoffman.
Uma observação feita por Robert J. Richards, acerca do primeiro romantismo,
é importante citar:

[...] Esta lista não é meramente um artifício de historiadores da literatura –


membros desse grupo tinham vínculos pessoais próximo e compartilhavam
atividades intelectuais e artísticas, embora eles certamente não se referiam
a si mesmos como “Romantismo Inicial”. [...] Os primeiros Românticos
eram poetas e pintores, filósofos e historiadores, teólogos e cientistas e
maioria deles era jovem. Nós comumente pensamos esse grupo como
formando um movimento coerente, e os leitores foram certamente
seduzidos em adotar essa visão pelos críticos e historiadores ao se
referirem à “escola Romântica”. Os Românticos, no entanto, comumente
divergem significativamente entre si em suas concepções das operações
da sensação, imaginação e razão; e, de fato, eles freqüentemente
consideravam as funções dessas faculdades de forma diferente em
diferentes estágios do seu próprio desenvolvimento intelectual. [...] O
29

“movimento” Romântico ou “escola”, então, é melhor concebido como


constituído não por um grupo compartilhando uma unanimidade de idéias
mas [...] por pensadores cujo apoio mutuo em considerações filosóficas,
literárias e cientificas se tornaram entrelaçadas nas suas relações pessoais
e profissionais. Dentro do seu meio social e intelectual, experiências
particulares então formaram seus crescimento conceitual em direções
divergentes. A disjunção radical, no entanto, foi evitada pela semelhança
das suas heranças intelectuais e pela co-adaptação das suas idéias em
desenvolvimento as visões de um outro e as idéias de seus professores,
amigos, e de forma oposta, aos seus inimigos. O modelo implicitamente
evolutivo que alimenta minha sugestão de como compreender o movimento
Romântico preserva a história habitual – a semelhança de idéias, o
suficiente para satisfazer filósofos, com a apreciação das diferenças
peculiares, as quais os historiadores são ansiosos em assinalar.
(RICHARDS, 2002, p. 17- 19)

Sendo assim torna-se necessário definir as características essenciais do


Romantismo. Para tanto, vou utilizar a descrição estabelecida por Ellenberger, na
medida em que, conforme já mencionamos, seu propósito é o de estabelecer uma
investigação sobre o descobrimento do inconsciente e seu olhar é permeado pelas
concepções oriundas da psiquiatria e psicologia.

1) A principal era sua profunda sensibilidade pela natureza, em contraste


com o Iluminismo que estava centrada no homem, [...] O Romantismo
contemplava a natureza com um sentido de profunda reverência, com
Einfühlung (sentimento interno ou empatia), com uma tentativa de penetrar
em suas profundidades para descobrir a verdadeira relação do homem com
ela.
2) Além da natureza visível, o Romântico aspirava penetrar nos segredos
do “fundamento” (Grund) da natureza, que considerava por sua vez como
fundamento de sua própria alma. Os meios para alcançar esse fundamento
se encontram não só no intelecto mas também no Gemüt, que quer dizer,
a qualidade mais íntima da vida emocional. Daí o interesse Romântico por
todas as manifestações do inconsciente: sonhos, índole, enfermidade
mental, parapsicologia, os poderes ocultos do destino, a psicologia animal.
Pela mesma razão, estava preocupado com os contos e manifestações
folclóricas populares e a expressão espontânea do temperamento popular.
[...] O estudo sistemático dos mitos e símbolos começou com pensadores
tais como Heine, Schlegel, Creuzer e Schelling, para eles não havia erros
históricos ou conceitos abstratos, mas forças e realidades vivas.
3) Em terceiro lugar estava o sentimento do “devir” (Werden). Enquanto o
Iluminismo acreditava na razão eterna e em suas manifestações estáveis
em forma de progresso da humanidade, o Romantismo propunha que
todos os seres derivavam de princípios embrionários, que se desenvolviam
em indivíduos, sociedades, nações, línguas e culturas. A vida humana não
era simplesmente um longo período de maturidade depois de um período
mais curto de imaturidade, mas um processo espontâneo de
desenvolvimento, uma série de metamorfoses. O Bildungsroman, novela
que descrevia os processos de desenvolvimento intelectual e emocional de
um indivíduo, se converteu na manifestação literária preferida e
provavelmente induziu os psiquiatras a escreverem histórias clínicas em
conexão com a história completa de seus pacientes.
4) O Romantismo se interessava por nações e culturas particulares, não
pela sociedade em geral.
30

5) O Romantismo supôs uma nova sensibilidade para a história, lutando


por evocar, tal como era, o espírito dos séculos passados. Se diz que
conseguiu a Einfühlung com todos os períodos possíveis da história, com a
única exceção do Iluminismo. Porém mostrou predileção pela Idade Média,
a qual redescobriu do mesmo modo que o Renascimento havia
redescoberto a Antiguidade Grego-Romana.
6) Em contraste com o Iluminismo, o Romantismo dava uma forte ênfase
na noção de indivíduo. Em 1880 Schleiermacher assinalava em seus
Monologen a absoluta unicidade de cada indivíduo, conceito este
sustentado por todos os Românticos. O conceito tipicamente Romântico de
Weltanschauung (concepção do mundo) indica uma forma específica de
perceber o mundo peculiar de uma nação, um período histórico ou um
indivíduo. Segundo Max Scheler, esta palavra foi proposta por Wilhelm von
Humboldt, que afirmava que a ciência de um determinado período estava
sempre determinada inconscientemente por sua Weltanschauung.
Enquanto o Iluminismo havia considerado a sociedade como um produto
mais ou menos voluntário, quando não artificial, da vontade humana ou de
um contrato social, o Romantismo considerava a vida comunitária como
dada pela natureza e independente da vontade humana.
(ELLENBERGER, 1976, p. 235-237)

Em todos os movimentos culturais é possível perceber um tipo ou conceito


ideal de homem e o Romantismo também produziu seu tipo ideal. Mais uma vez, é
Ellenberger quem descreve as principais características deste homem:

[...] uma sensibilidade extrema que lhe permitia “sentir” a Natureza e “sentir
com” outros homens, uma rica vida interior, a crença no poder da
inspiração, da intuição e da espontaneidade e a importância atribuída à
vida emocional. (ELLENBERGER, 1976, p. 238)

Depois de abordar alguns dos temas discutidos pelo Romantismo (religião,


inconsciente, natureza) cabe agora um breve comentário a respeito de alguns
filósofos. Como este estudo oferece apenas uma contextualização do Romantismo,
abordarei apenas dois destes pensadores, escolhidos por estarem ligados ao
Romantismo e por terem influenciado de uma forma mais visível a construção do
pensamento do Groddeck.11 Um deles é Goethe, que inspirou e é citado inúmeras
vezes por Groddeck, o outro é Carl Gustav Carus representante da Filosofia da
Natureza.
Antes de apresentar, de forma resumida, esses dois autores, uma citação de
Robert J. Richards se torna necessário, pois nela o autor estabelece a relação entre
o Romantismo e a Naturphilosophie;

11
. Este recorte de autores não ignora a suposição de que outros autores do Movimento Romântico e da Filosofia
da Natureza possam ter influenciado de alguma forma a construção do pensamento de Groddeck.
31

[...] O tipo de perspectiva cientifica que emergiu na Alemanha pode ser


denominada Naturphilosophie e “ciência romantica”. [...] Naturphilosophie
especificamente focaliza o nucleo organico da natureza, suas estruturas
arquetipicas e suas relações com a mente, enquanto o Romantismo
adiciona aspectos esteticos e morais a esta concepção da natureza. Então
[...] todos os pensadores romanticos são Naturphilosophie enquanto nem
12
todos os Naturphilosophie eram Romanticos.(RICHARDS, 2002, p.516)

O ato de fundação da Filosofia da Natureza pode ser estabelecido em 1797


quando Schelling publica a sua obra Ideen zur einer Philosophie der Natur (“Idéias
para uma Filosofia da Natureza”). A tarefa da Naturphilophie (diferente da filosofia
transcendental) é começar com uma compreensão refinada da natureza, uma
natureza articulada com a ajuda das últimas teorias empíricas. Nesta obra é possível
perceber o respeito de Schelling pela pesquisa experimental como também o seu
uso. Na primeira parte do livro, ele examina os últimos desenvolvimentos em várias
áreas das ciências naturais – química e física – em seus principais assuntos:
combustão, luz, gases, eletricidade e magnetismo. Este livro surge para preparar a
transformação do pesado conceito de natureza como máquina em outro, mais “leve”
e penso mais livre também.
Schelling demonstra que para a Filosofia da Natureza, a natureza não pode ser
compreendida unicamente em função de conceitos mecânicos e físicos, tendo que
levar em conta as leis espirituais subjacentes. Essas leis ajudam precisamente a
elucidar a compreensão da natureza.
Outro principio básico da Filosofia da Natureza, considerado por Schelling, era
expresso pela lei das polaridades, que seriam partes de forças antagonistas e
complementares que se uniriam de forma diferente. Segundo ele, no seio da
natureza havia polaridades como o dia e a noite, a gravidade e a luz, o homem e a
mulher (que seriam talvez a mais importante das polaridades; para ele tão
importante que ultrapassava os limites do mundo animado). Em toda parte existiria a
polaridade, dos tratados químicos (polaridade ácido/base), até a fisiologia humana
(polaridade sono/vigília).

12
. [...] The kind of scientific perspective that emerged in German usually bears variously the names
Naturphilosophie and “Romantic science”. […] Naturphilosophie specifically focused on the organic core of
nature, its archetypal structure, and its relationship to mind, while Roamnticism added aesthetic and moral
features to this conception of nature. Thus […] all Romantic thinkers were Naturphilosophie, though not all
Naturphilosophie were Romantics.
32

Nada melhor do que o próprio autor para explicar o que ele pretendia com seu
texto. Em sua introdução a Idéias para uma Filosofia da Natureza, Schelling explicita
a essência de sua argumentação:

[...] em vez de avançar com um qualquer conceito de filosofia. ou de


filosofia da natureza em particular, para posteriormente o desagregar nas
suas partes, esforçar-me-ei por fazer com que tal conceito comece por
surgir diante dos olhos do leitor. Todavia, na medida em que temos de
partir de alguma coisa, pressuponho que uma filosofia da natureza deveria
deduzir, de principio, a possibilidade da natureza, ou seja, a totalidade do
mundo da experiência. Porém, não manejarei este conceito de forma
analítica, nem pressuporei a sua correção, nem retirarei dele quaisquer
conseqüências, mas investigarei, antes de qualquer outra coisa, se ele tem
realidade e se ele exprime alguma coisa que se pode realizar.
(SCHELLING, 2001, p. 35)

Neste escrito, segundo Gonçalves (2006), Schelling relembra a antiga idéia


platônica de um principio vivificante que perpassaria a totalidade do mundo,
denominado “alma do mundo”, descrevendo-o como uma espécie de “crença
natural” que habita o espírito humano, cujo fundamento ele parece finalmente ter
encontrado. Schelling acreditava na idéia de uma matéria “auto organizante”, como
uma unificação originária do espírito e da matéria, aproximando-se cada vez mais de
uma totalidade, idéia está que deveria estar no centro da noção de Psicossomática,
mas a Psicossomática é carente de uma sólida fundamentação filosófica.
Para concluir esta breve contextualização, usaremos as palavras que Schelling
escreve no prefácio do “Idéias para uma Filosofia da Natureza”:

Pela introdução, ver-se-á que meu objetivo não é aplicar a filosofia à


doutrina da natureza. Não posso pensar numa ocupação mais desoladora
do que uma tal aplicação de princípios abstratos ao domínio de uma
ciência empírica já existente. O meu objetivo é, antes deixar que a própria
ciência da natureza surja apenas filosoficamente, e a minha filosofia não é
senão ciência da natureza. É verdade que a química nos ensina a ler os
elementos, a física, as silabas, e a matemática, a natureza; mas não nos
devemos esquecer que cabe à filosofia interpretar aquilo que se leu.
(SCHELLING, 2001, p. 33).

2. Johann Wolfgang von Goethe

Johann Wolfgang von Goethe nasceu em 28 de agosto de 1749 em Frankfurt


am Main, Alemanha.
33

Foi escritor, pensador e também incursionou pelo campo da ciência. Como


escritor, Goethe foi uma das mais importantes figuras da Literatura Alemã e do
Romantismo Europeu, no final do século XVIII e início do século XIX. Juntamente
com Friedrich Schiller, foi um dos líderes do movimento literário romântico alemão
Sturm und Drang.
Realizou pesquisas em campos tão variados como: a óptica, a geologia, a
mineralogia, a botânica e a zoologia. Fez descobertas importantes, como a do osso
intermaxilar no crânio humano. Elaborou uma teoria das cores alternativa à do
grande físico inglês Isaac Newton (1642-1727). Mais significativa do que essas
realizações isoladas, porém, foi sua visão da natureza. Divergindo das idéias
científicas da época, Goethe a concebeu como uma totalidade orgânica e viva, em
profunda conexão com o mundo espiritual, e não um mecanismo frio e sem alma,
constituído apenas por matéria em movimento. Segundo Giovanni Reale e Dario
Antiseri, a concepção Goethiana da natureza era:

Uma forma de organicismo levado às últimas conseqüências. A natureza é


toda viva, até em seus mínimos particulares. A totalidade dos fenômenos é
vista como produção orgânica da “forma interior”. Uma polaridade de forças
(contração e expansão) origina as diversas formações naturais, que
assinalam acréscimo e produzem elevação progressiva (ANTISERI;
REALE, p. 26, 27, 2005)

Segundo, o próprio Goethe: “Quem quiser negar a natureza como um órgão


divino acaba por negar simultaneamente toda revelação”. (GOETHE, 2003, p.1).
Nesta citação Goethe deixa claro, que sua adoração pela natureza, também aparece
em sua concepção de Deus.
Em relação a este assunto, ele se considerava um panteísta, ou seja, para ele
Deus e o mundo constituíam uma unidade e uma só substância. Mas esta crença,
segundo ele, não apresentava uma rigidez dogmática. Com efeito, ele disse ser
“politeísta” como poeta e “panteísta” como cientista, mas ainda assim abria a
possibilidade para um Deus pessoal: “Pesquisando a natureza somos panteístas,
poeticamente somos politeístas e eticamente somos monoteístas.” (GOETHE, 2003,
p. 9)
Deus e religião são temas presentes na obra de Goethe, o que em alguns
momentos de seus escritos e pensamentos, parecem ocupar o lugar dos
34

“fenômenos inexplicáveis”, que hoje seriam denominados “fenômenos do


inconsciente”.

Sendo um ente real, o homem é posto no meio de um mundo real e se vê


dotado de órgãos tais que lhe permitem conhecer e produzir o que é real,
e, de passagem, o que é possível. Todos os homens saudáveis têm a
convicção de sua existência e de algo que existe em torno deles.
Entretanto, há uma mancha oca no cérebro, ou seja, um lugar, em que não
se reflete nenhum objeto, exatamente como no olho mesmo há uma
manchinha que não se vê. Se o homem atenta especialmente para este
lugar, se ele se aprofunda aí, acaba por recair em uma doença mental. Ele
pressente aí coisas de um outro mundo. Contudo estas não são
propriamente senão não-coisas e não possuem figura, nem limitação. Elas
assustam como espacialidades noturnas vazias e aquele que não se aparta
é perseguido de maneira mais do que fantasmagórica. (GOETHE, 2003,
p.10)

Em relação às suas obras escritas, podemos dizer que as principais foram:

• Götz von Berlichingen - 1773


• Prometheus (Poesia) - 1774
• Os Sofrimentos do Jovem Werther - 1774
• Egmont - 1775
• Iphigenie auf Tauris - 1779
• Torquato Tasso - 1780
• Reineke Raposo - 1794
• Xenien (escrito com Friedrich Schiller) - 1796
• Hermann e Dorothea - 1798
• Fausto - 1806
• Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister - 1807

Dentre elas, destacaremos, o Fausto. Obra fundamental e que serve de


inspiração para Groddeck (será novamente comentada no corpo deste trabalho).
Fausto é o protagonista de uma popular lenda alemã de um pacto com o
demônio, baseada no médico, mágico e alquimista alemão Dr. Johannes Georg
Faust (1480-1540). O nome Fausto foi usado como base de diversos romances de
ficção, porem o mais famoso deles, foi o de autoria de Goethe. Produzido em duas
partes, tendo sido escrito e reescrito ao longo de quase sessenta anos. A primeira
parte - mais famosa - foi publicada em 1806 e a segunda, em 1832 - às vésperas de
sua morte.
35

Considerado símbolo cultural da modernidade, Fausto é um poema de


proporções épicas que relata a tragédia do Dr. Fausto, homem de ciência que,
desiludido com o conhecimento de seu tempo, faz um pacto com o demônio
Mefistófeles, que o enche com a energia satânica insufladora da paixão pela técnica
e pelo progresso. Segundo Franklin Baumer: “Goethe através de Fausto, tentava
alcançar o infinito, à sua maneira especial, como fizeram outros românticos.”
(BAUMER,1990,p. 29)

3. Carl Gustav Carus

Um representante importante da Filosofia da Natureza, é o médico e


paisagista alemão, Carl Gustav Carus. Autor que merece ser estudado com mais
atenção pela psicologia, tomando como referência a colocação feita por Hillman:

[...] De todos os precursores, Carus chama maior atenção da psicologia


porque a sua apresentação do inconsciente mostra-o principalmente como
um psicólogo. Sua idéia do inconsciente, não é nem um flash poético nem
um sistema filosófico especulativo, como nas mãos do jovem von Hartmann
[...] nem tampouco é um conceito médico heurístico, semi-neurológico e útil
para explicar processos mentais desconhecidos. [...] Carus descreve
processos psicológicos em detalhe e ainda assim mantém uma visão
13
holística , colocando o inconsciente e a psique dentro de um universo
significativo cujo foco maior para ele é a vida. No humano, a vida
manifesta-se como psique, cujo primeiro nível é o inconsciente. Ele vê o
homem principalmente como ser psicológico (JAMES HILLMAN, in
14
CARUS, 1989, p. VII – VIII ) .

A noção de inconsciente proposta por Carus, atende ao modo como esta


havia sido pensada pela Filosofia da Natureza, ou seja, o inconsciente não
significava recordações esquecidas (Santo Agostinho) ou percepções obscuras

13
[...] Qualquer tentativa de separar o consciente e o inconsciente da mesma maneira que a alma e o corpo, os
quais são normalmente vistos em contraste direto, pode não ser adequada e é tão infrutífera como dividir o
homem em um homem especial dormindo e outro acordado; ambos são um, e somente nesta unidade eles são
capazes de manifestação. (CARUS ,1989, p.73 nota.3). [...] Any attempt to separate the conscious and the
unconscious in the same way as soul and body, which are commonly viewed in sharp contrast, may not be much
better and cannot be any more successful than trying to divide man into a special waking and sleeping man; both
are one, and only in this unity are they capable of manifestation.
14
[...] Of all precursors Carus claims the closer attention of psychology because his presentation of the
unconscious shows him to be mainly a psychologist. His idea of the unconscious is neither a poetic flash, nor a
speculative philosophic system as in the hands of the young von Hartmann, […] nor is it a heuristic medical
concept, semi-neurological and useful for explaining unknown mental processes. […] Carus described
psychological processes in detail and yet holds to a holistic view, placing the unconscious and the psyche within
a meaningful universe whose main focus for him is “life”. In the human life manifests as psyche, the first level
of which is the unconscious. He sees man as a psychological being.
36

(Leibniz) mas era o verdadeiro fundamento do ser humano, por estar enraizado na
vida invisível do mundo e por ser o elo entre a natureza e o homem.
Tendo como ponto de sustentação todas essas ideias, Carus vai distinguir a) três
níveis no inconscienteI, b) propor uma teoria do desenvolvimento humanoII, c)atribuir
uma série de características ao inconscienteIII, d)estabelecer formas de relação
interpessoalIV e e)definir a psicologia como sendo a ciência que estuda o
desenvolvimento da psique desde o inconsciente até o consciente.
Uma das suas principais obras é Psyche: Zur Entwicklungsgeschichte der Seele
(“Psyche: Sobre uma História do Desenvolviemnto da Alma”), publicado em 1846.
Dividido em três partes, com a primeira15 dedicada ao inconsciente, o livro começa
com as seguintes proposições:

A chave para a compreensão da natureza da vida consciente da alma


permanece na esfera do inconsciente. Todas as dificuldades, mesmo a
aparente impossibilidade de uma compreensão real dos segredos da
psique se tornam óbvias, nesta perspectiva. Se fosse absolutamente
impossível saber do inconsciente na consciência, o homem deveria desistir
de tentar compreender sua psique. Se, no entanto, esta impossibilidade é
somente aparente, então a primeira tarefa de uma ciência da psique é
explicar como a mente humana é capaz de descender a estas
16
profundidades. (CARUS,1989, p.1)

Após esta declaração de princípios, Carus analisa a vida inconsciente da


psique, em cinco aspectos:

1) Primeiros Processos Formativos


2) Diferenciação do Organismo
3) Processo Inconsciente de Reprodução
4) O Inconsciente Duradouro
5) Patologia e o Inconsciente

15
. As outras duas partes são dedicadas ao consciente e à questão do eterno e do temporal no inconsciente e no
consciente.
16
. The key to an understanding of the nature of the conscious life of the soul lies in the sphere of the
unconscious. All the difficulties, even the apparent impossibility, of a real understanding of the secrets of the
psyche become obvious in this light. If it were absolutely impossible to be aware of the unconscious in
consciousness, man would have to despair of ever understanding his psyche. If, however, this impossibility is
only apparent, then the first task of a science of the psyche is to explain how man’s mind can descend into these
depths.
37

Infelizmente, uma exposição mais detalhada desta análise do inconsciente


está fora do âmbito deste trabalho, mas o quinto aspecto, merecerá, mais adiante,
um cuidado especial, pois aí é possível perceber a influência de Carus em
Groddeck. Mas antes de prosseguir, alguns detalhes biográficos se fazem
necessários.
Carus nasceu em 3 de janeiro de 1789, em Leipzig. Nesta cidade cursou a
Universidade, estudou medicina em função de seu interesse pela ciência da
natureza, começou a dar palestras no campo da anatomia comparada, recebeu seu
Doutorado com 22 anos e no mesmo ano casou-se (1811). Foi então chamado para
a clínica da Universidade de Dresden. Em 1814 se tornou professor de Ginecologia
e dirigiu a clínica de obstetrícia da Universidade de Dresden e escreveu um manual
( Lehrbuch der Gynekologie ) sobre ginecologia e obstretícia . Foi autor de um outro
manual importante (1818) ( Lehrbuch der Zootomie ) sobre anatomia comparada,
um assunto que então estava muito em voga e que ele introduziu em Dresden.
Como médico da corte do Rei da Saxônia, Carus tinha privilégios junto a grupos de
intelectuais que viviam em Dresden. Neste mundo de artistas, Carus não era apenas
o médico da corte; ele também era um deles, pois Carus pertence à história da arte
como um reconhecido pintor de paisagens, tendo deixado uma coleção de 420
pinturas e 1100 desenhos.
Ele viajou com o Rei, então Príncipe Herdeiro, pela Itália e Suíça, e mais
tarde para a Inglaterra e a Escócia. Com exceção destas viagens, com propósito
principalmente de pesquisa, ele permaneceu em Dresden até sua morte, em 28 de
julho de 1869. Seu período de vida abrange desde a Revolução Francesa até a era
do moderno positivismo, liberalismo e nacionalismo.
Durante seus primeiros anos em Dresden, Carus primeiramente se aproximou
de Goethe que, apesar de ser quarenta anos mais velho que ele, muito o admirava.
Carus escreveu um livro, Goethe (1843) e publicou, em 1835, uma série de cartas
sobre o Fausto. Goethe refere-se a Carus em suas cartas e notas. Ele era
particularmente entusiasmado com as Lectures on Psychology (1831) vendo-o como
um herdeiro de sua abordagem da natureza e da vida.
Ao escrever sobre Carus, James Hillman o apresenta como alguém que:

[ ... ] tinha um talento para a precisão. Ele era um observador exato, um


naturalista, um anatomista. No entanto, ele sempre permaneceu um
generalista, buscando a relação mais ampla das coisas, apesar de seu
38

dom artístico. [...] A ocupação de Carus com os detalhes dos processos na


natureza, corpo e psique era em função de um todo maior. Ele nunca
buscou explicações menores em direção à matéria, movendo-se para fora
em direção a princípios holísticos. Carus tentou juntar os dois lados de sua
natureza e assim da natureza em si. Para ele o particular era sempe um
aspecto do geral, o microcósmico e o microscópico eram uma mostra de
um macrocosmo significativo, o detalhe da paisagem uma expressão da
17
realidade espiritual .(HILLMAN, in CARUS, 1989, p. X –XI) .

Na bibliografia de Groddeck é possível perceber que em momento algum


Carus é citado. No entanto a forma como Groddeck concebe o inconsciente,
principalmente a relação entre o inconsciente e a doença, e também ao reconhecer
a capacidade curativa presente na natureza é muito semelhante à de Carus.
Um elo importante entre os dois é a presença de Goethe. Carus o tinha como
amigo, poeta, cientista, admirava sua obra e era por Goethe igualmente estimado. A
influência de Goethe sobre Carus é portanto direta. Groddeck, contrariamente só
conhecia Goethe através da leitura de sua obra. Groddeck é portanto influenciado
claramente pela obra de Goethe e supostamente pelos escritos de Carus, sobretudo
no que este postula sobre a força vital da antureza:

[...] Então tudo sugere que um princípio vital unificador, alguma coisa
autônoma – a entelequia de Aristóteles, a idéia de Platão, ou uma psique,
uma alma, alguma coisa, chame isso do você quiser – é a condição básica
18
de toda vida e portanto de todas as formas vivas.(CARUS, 1989, p. 7)

Por sua vez, Groddeck se refere ao Isso afirmando:

[...] todas essas coisas são criações desse ser curioso: “isso”, ser humano,
Deus ou qualquer que seja o nome que se queira dar.

Retornando ao livro Psyche e ao trecho em que Carus apresenta a relação


existente entre a patologia e o inconsciente, vemos que ele começa o seu estudo
propondo a pergunta se é possível aplicar o conceito de doença à vida do
inconsciente? A resposta imediata é que no inconsciente absoluto, que é o nível

17
. [...] had a talent for precision. He was an exact observer, a naturalist, an anatomist. However, he remained
always a generalist, seeking the large relationship of things, despite his craftsman’s gift. [ … ] Carus’ occupation
with the detail of processes in nature, body and psyche was for the sake of a greater whole. He did not seek ever
smaller explanations downward into matter, but moved outward into holistic principles. Carus attempted to hold
together the two sides of his nature, and thus of nature itself
18
. [...] Thus everything suggests that a unified life principle, something self-moving – Aristotle’s entelechy,
Plato’s idea, or a psyche, a soul, something divine, call it what you will – is the basic condition of all life, and
therefore of all living forms.
39

mais profundo (ver nota I), não existe a possibilidade da doença e que a disposição
para a doença aumenta proporcionalmente com o crescimento da consciência. Por
isso, Carus afirma que o ser humano tem a triste honra de possuir uma grande
variedade de doenças.
Avançando um pouco mais nesta questão, deparamos com uma reflexão
aparentemente contraditória em Carus:

Tudo issso sugere que a vida inconsciente da alma deveria, pela sua
própria essência, não ser suscetível à doença. Mas esses sistemas e
órgãos do corpo humano, pouco influenciados pela consciência e
totalmente governados pelo inconsciente são mais freqüentemente
suscetíveis à uma variedade de doenças do que aqueles altamente
19
influenciados pela consciência. (CARUS, 1989, p. 68)

Como exemplo disso ele cita doenças no sistema digestivo, circulatório, as glândulas
e os órgãos de excreção, dentre outros.

[...] Nós consideramos a doença como sendo um sofrimento generalizado


afetando o corpo como um todo; nenhuma parte de um corpo saudável
invadido por um organismo patológico pode permanecer normal. O corpo é
uma entidade completa e somente pode existir como tal. [...] Sempre que a
doença localizada se desenvolve, mais de um órgão é afetado
20
parcialmente em uma ou outra parte. (CARUS, 1989, p. 69)

Ao solucionar a contradição, Carus revela a sua visão sistêmica, das inter-


relações e interconexões que existem e ocorrem no sujeito, com a doença sendo
vista como decorrente de algum agente externo, estranho ao organismo, que nele se
instala alterando o curso normal da vida; a ação da doença é local mas o sofrimento
sentido é global.21
Colocando um foco mais atento no inconsciente, Carus reconhece que o
inconsciente, mesmo sendo quem sofre a doença, pode negá-la, se opor
veementemente a ela, e em muitos casos, mesmo eliminá-la; e reconhece no
inconsciente dois aspectos importantes, sendo um deles definido como uma

19
. All this suggests that the unconscious life of the soul should , by its very essence, not be subject to illness.
But those systems and organs in the human body, so little influenced by consciousness and entirely governed by
the unconscious, are more frequently subject to a variety of illnesses than are those highly influenced by
consciousness.
20
.[...] We consider illness to be really a generalized affliction affecting the body as a whole. No part of a healthy
body invaded by a pathological organism can remain normal. The body is a complete entity an can exist only as
such.[…] Whenever a localized illness develops, more than one organ is affected; the whole man is ill, suffering
particularly in one or another part.
21
. Partindo do princípio que Groddeck não conhecia a obra de Carus, ele ficaria bastante estimulado em
perceber essa sintonia entre sua noção de doença e a que Carus propõe.
40

tendência ou um instinto para procurar os meios mais adequados para se auto-curar.


O outro aspecto tem uma importância maior e é:

[...] o maravilhoso e excitante mistério da vida consciente, este “poder


curativo da natureza”, este “médico no homem” que lentamente mina a
doença, induzindo a uma “crise” que freqüentemente restaura a saúde com
uma rapidez surpreendente através de estranhas inversões da atividade
orgânica. [...] Então nós podemos ver que a existência orgânica
inconsciente, embora ignorante da doença, sustenta tudo que combate a
doença e esforça-se constantemente para restaurar a saúde; isto é
comumente chamado “poder curativo da natureza” (CARUS, 1989, p. 70-
22
71)

Carus menciona aqui clara a primeira parte da fórmula (Nasamecu) proposta


por Schweninger e adotada por Groddeck: Nasa (a natureza cura) e a segunda parte
da fórmula Mecu (médico cuida). Ele não se refere claramente, e nem poderia, pois
a sua proposta no livro não é o de ser um livro de medicina mas sim uma reflexão
filosófica sobre o inconsciente. Essa atividade do inconsciente é efetiva no caso das
doenças como também restaura o estado natural de saúde do organismo no caso de
acidentes, como por exemplo, um ferimento, uma lesão ou a quebra de um osso; e
ele deixa claro que isto não é uma doença no sentido definido acima, mas o
resultado de um impacto violento de uma força externa. Resumindo, esta
capacidade curativa age de duas formas distintas: 1) ação curativa, no caso de uma
doença e 2) ação restauradora, no caso de acidentes.
Ao concluir o livro, Carus faz uma breve menção aos médicos e propõe uma
tarefa para a medicina; ou seja, que os médicos percebam, se forem bem atentos,
esse processo da natureza e a sua dupla manifestação. A sua tarefa é a de:

[...] uma ciência médica investigar esses processos curativos do


inconsciente no sentido de entendê-los, de desenvolvê-los [...] assim como
23
imitá-los e estimulá-los o mais que for possível (idem p. 72)

Por estas breves colocações de Carus sobre a doença propondo um modelo que poderia
ser chamado somatopsíquico24,e aquilo que será considerado sobre a questão da doença, da

22
. [...] the marvelous and mysterious stirring of unconscious life , that “healing power of nature”, that
“physician in man” which slowly undermines illness, inducing a “crisis” that frequently restores health with
astonishing rapidity by means of strange reversals of organic activity. […] Thus we can see that unconscious
organic existence, though ignorant of illness, underlies everything that combats illness and strives constantly to
restore health. This used to be called “nature’s healing power”.
23
. […] of medical science to investigate these unconscious healing processes in order to understand them better,
to develop them,[…] as well as to imitate and stimulate them as far as possible.
41

saúde e do médico em Groddeck, podemos considerar Carus como uma fonte de inspiração,
lembrando sempre o que já foi dito sobre a falta de referência a Carus. De alguma maneira,
Groddeck tomou nas mãos estas tarefas propostas para a medicina - inspirado por
Schweninger - e explorou com mais profundidade esta “capacidade curativa da natureza”.

24
. Somatopsíquico: a doença ou a lesão é causada no corpo por algum agente patológico externo ou pela ação
de uma força externa intensa e com ressonâncias no curso total da vida do sujeito e mobilizando processos no
inconsciente para curar ou restaurar o equilíbrio. Neste modelo, inspirado a partir das idéias de Carus, tendo dois
sistemas interagindo (soma /psique) é possível perceber três momentos: 1) corpo: espaço do sofrimento; 2)
psique (passiva): vivendo os efeitos do sofrimento; 3) psique (ativa) buscando em si mesma meios de recuperar o
equilíbrio.
42

NOTAS

I
.1) Inconsciente absoluto geral: total e permanentemente inacessível à nossa consciência. 2) Inconsciente
absoluto parcial: ao qual pertencem os processos de formação, crescimento e atividade dos órgãos. Exerce uma
influência indireta sobre nossa vida emocional. Carus descreve os diferentes “espaços da alma”, como a
respiração, a circulação sanguínea, a atividade hepática; cada um destes espaços tem uma tonalidade emocional
própria e contribuiram para a constituição do sentimento vital, base da vida emocional. Os pensamentos e
sentimentos conscientes exercem também uma ação lenta e mediata sobre o inconsciente absoluto parcial, isto
explica porque a fisionomia de uma pessoa pode refletir sua personalidade consciente. 3) Inconsciente relativo
ou secundário que compreende a totalidade dos sentimentos, percepções e representações, que nos pertencem em
um momento ou outro, e que se converteram em inconsciente. (ELLENBERGER, 1976, p. 244-245). { 1). El
inconsciente absoluto general, total y permanentemente inaccesible a nuestra conciencia. 2). El inconsciente
absoluto parcial, al que pertenecen los procesos de formación, crecimiento y actividad de los órganos. Ejerce
una influencia indirecta sobre nuestra vida emocional. Carus describe los distintos “distritos del alma”, como la
respiración, la circulación sanguínea, la actividad hepática; cada uno de estos distritos tiene una tonalidad
emocional propia y contribuye a la constitución del sentimiento vital base de la vida emocional. Los
pensamientos y sentimientos conscientes ejercen también una acción lenta y mediata sobre el inconsciente
absoluto parcial, esto explica por qué la fisonomía de una persona puede reflejar su personalidad consciente. 3).
El inconsciente relativo o secundario que comprende la totalidad de los sentimientos, percepciones y
representaciones, que nos pertenecieron en un momento u otro y que se han convertido en inconscientes.
II
. Segundo Carus, a vida humana está dividida em três períodos: 1) Período pré-embrionário, durante o qual o
indivíduo existe simplesmente como uma pequena célula dentro do ovário da mãe; 2) Período embrionário,
mediante a fecundação, o indivíduo é despertado subitamente de seu longo sono, e se desenvolve o inconsciente
formativo. 3) Período posterior ao nascimento, no qual o inconsciente formativo continua dirigindo o
crescimento do indivíduo e a função de seus órgãos. A consciência surge de forma gradual, porém permanece
sempre sob a influência do inconsciente, ao qual o indivíduo retorna periodicamente durante o sono. (idem. p.
244).
{Según Carus, la vida humana está dividida en tres períodos: 1) Período pre-embrionario, durante el cual el
individuo existe simplemente como una pequeña célula dentro del ovario de la madre. 2) Período embrionario:
mediante la fecundación, el individuo es despertado súbitamente de su largo sueño, y se desarrolla el
inconsciente formativo. 3) Período posterior al nacimiento, en el cual el inconsciente formativo continúa
dirigiendo el crecimiento del individuo y la función de sus órganos. La conciencia surge de forma gradual, pero
permanece siempre bajo la influencia del inconsciente, al que el individuo retorna periódicamente durante el
sueño.
III
. Carus atribui as seguintes características ao inconsciente: 1) Tem aspectos “prometéicos” e “epimetéicos”,
está dirigido para o futuro e para o passado, porém não conhece o presente. 2) Está em movimento e
transformação constantes; os pensamentos ou sentimentos conscientes, quando se convertem em inconscientes,
sofrem uma modificação e maturação contínua. 3) É incansável; não necessita descanso periódico, enquanto que
nossa vida consciente necessita descanso e recuperação mental, o que consegue submergindo-se no inconsciente.
4) É basicamente perfeito e não conhece a enfermidade; uma de suas funções é “o poder curativo da Natureza”.
5) Segue suas próprias leis ineludíveis e não tem liberdade. 6) Possui sua própria sabedoria inata; nele não há
ensaio e erro, não há aprendizagem. 7) Sem darmos conta consciente disso, por meio do inconsciente
permanecemos em conexão com o resto do mundo, em particular com nossos semelhantes. (idem, p. 245).
{Carus adscribe las siguientes características al inconsciente: 1) Tiene aspectos “prometeícos” y “epímeteicos”,
está dirigido hacia el futuro y hacia el pasado, pero no conoce el presente. 2) Está en movimiento y
transformación constantes; los pensamientos o sentimientos conscientes, cuando se convierten en inconscientes
sufren una modificación y maduración continua. 3) Es incansable; no necesita descanso periódico, mientras que
nuestra vida consciente necesita descanso y recuperación mental, lo que encuentra sumergiéndose en el
inconsciente. 4) Es básicamente perfecto y no conoce la enfermedad; una de sus funciones es “el poder curativo
de la Naturaleza”. 5) Sigue sus propias leyes ineludibles y no tiene libertad. 6) Posee su propia sabiduría innata;
en él no hay ensayo y error, no hay aprendizaje. 7) Sin darnos cuenta consciente de ello, por medio del
inconsciente permanecemos en conexión con el resto del mundo, en particular con nuestros semejantes.
IV
. Carus distingue quatro formas de relação interpessoal: 1) De consciente a consciente; 2) De consciente a
inconsciente; 3) De inconsciente a consciente; 4) De inconsciente a inconsciente. Formulou o princípio de que o
inconsciente do indivíduo está relacionado com o inconsciente de todos os homens. (idem, p. 245) {Carus
43

distingue cuatro formas de relación interpersonal: 1) De consciente a consciente; 2) De consciente a


inconsciente; 3) De inconsciente a consciente; 4) De inconsciente a inconsciente. Formulo el principio de que el
inconsciente del individuo está relacionado con el inconsciente de todos los hombres.
44

III. MÉTODO

A seguinte dissertação que tem como objetivo principal o de buscar na obra


de Groddeck sua definição, se é que existe, de Psicossomática, terá como forma
de investigação a chamada “Pesquisa Qualitativa”. Na medida em que a autora irá
trabalhar com uma obra concluída e com suas manifestações, ou seja, com os
fenômenos decorrentes desta obra. Sobre isto, a Drª. Mathilde Neder refere:

Na pesquisa qualitativa o pesquisador trabalha com fenômenos, que de


alguma forma se expressam, se mostram, situacionalmente. O
pesquisador não busca, não se preocupa com, não faz generalizações.
O fenômeno é estudado nas suas qualidades essenciais, na sua
especialidade e peculiaridade, o que vale dizer que o trato é individual,
diferenciado. Em lugar de uma explicação causal, o que se busca, na
pesquisa qualitativa, é a compreensão do fenômeno que se mostra. [...]
Assim é que, na ação metodológica, no que se refere ao instrumental,
podemos dizer que ele é variável, incluindo técnicas que o pesquisador
conhece e vivencia em sua experiência diária. E é grande a variedade
de instrumentos, considerando a amplitude dos aspectos qualitativos a
serem pesquisados nos fenômenos. Verdadeiramente, o investigador é o
mais importante instrumento, dado que de sua capacidade de
criatividade depende o sucesso do processo de pesquisa. (NEDER,
1993, p.2).

Ainda sobre a pesquisa qualitativa, a autora conclui:

Na pesquisa qualitativa destacam-se: a consideração ao conteúdo


específico dos dados característicos do fenômeno, que se espera obter;
a consideração a um fundamento filosófico, marcando as estruturas dos
fenômenos, a sua essência; e a consideração ao compromisso de
utilização da linguagem, enquanto relato, para fornecer formas de
representações dos dados, correspondendo à descrição do significado
geral dos conteúdos, anotadas as semelhanças ou aproximações entre
as partes específicas dos fenômenos. (NEDER, 1993, p.3).

Sendo assim, para melhor efetividade na obtenção do conceito de


psicossomática dentro do recorte da obra de Groddeck, o método de pesquisa
qualitativo se mostra o meio mais eficiente. Por tanto por se tratar de uma análise
biográfica esse método se apresenta como a maneira mais pertinente e lógica
para a obtenção do resultado proposto.
45

1. Instrumentos:
Para atingir o objetivo proposto por esta dissertação, foram utilizados os
seguintes instrumentos:
 Livro escrito por Freud:
 Correspondência completa: Freud, Lou Andreas – Salome/ Freud,
Lou Andreas – Salome.
 Revista com capitulo se referindo ao método qualitativo:
 Revista de Psicóloga Hospitalar editada pela Coordenadoria das
atividades dos psicólogos do H.C.
 Livro sobre a historia da Psiquiatria;
 A History of Clinical Psychiatry. The Origin and History of Psychiatric
Disorders;
 Livro de autor se referindo sobre a humanização:
 Goldenstein;
 Livros de autores se referindo a historia do Inconsciente:
 Ellenberger, Meier;
 Livros de autores se referindo aos interlocutores de Groddeck:
 Fortune, Ruby, Brabant;
 Livro escrito por Ferenczi:
 Thalassa. Ensaio sobre a teoria da genitalidade;
 Obras escritas por Georg Groddeck até 1913;
 Livros de autores se referindo a Georg Groddeck:
 Chemouni,Fortune,Grossman,Martynkewick,Riveras, Hristeva,Nasio;
 Livros de autores sobre Psicossomática:
 Ávila, Chauchard, Ramos, Cagli, Hames, Lichtenberg;
 Livros que referem o Romantismo Alemão:
 Antiseri, Baumer, Descartes, Guinsburg, Richards, Tarnas, Williams;
 Livros sobre a Filosofia da Natureza
 Maritain, Schelling;
 Obra escrita por Carl Carus:
46

 Psyche: On the Development of the Soul;


 Obras escritas por Johann Wolfgang von Goethe:
 Máximas e Reflexões e Fausto;
 Livros de autores se referindo a Johann Wolfgang von Goethe:
 Bishop, Eckermann, Seamon;
 Livro sobre História da Medicina:
 Das Tripas Coração: uma breve história da medicina;

2. Local de coletas:
As fontes utilizadas foram:
 Bases de dados como: Capes BVS - Psi (biblioteca virtual em Saúde),
SciElo (Scientific Electronic Library Online) e PubMed/MedLine
 Biblioteca da PUC-SP
 Site de livros usados: Estante Virtual
 Acervo da Livraria Cultura São Paulo
 Sites de Internet; www.indepsi.cl ; www.amazon.com.br

3. Procedimento:
Para o desenvolvimento da seguinte dissertação a autora teve o seguinte
procedimento:
Primeiramente, foi feita uma pesquisa eletrônica que tinha por finalidade
levantar menções sobre a teoria de Georg Groddeck, nos relatos de pesquisas
empíricas onde o tema foi observado direta e indiretamente.
Assim, para realizar a pesquisa de artigos, ao acessar a base de dados,
foram digitadas as palavras–chaves escolhidas pela autora, sendo que, a princípio
eram realizadas buscas individualmente e em seguida eram feitas por meio de
cruzamento entre as palavras selecionadas em grupos de dois ou três termos.
As palavras-chaves escolhidas foram: Romantismo, Filosofia da Natureza,
Georg Groddeck, Psicossomática, Medicina Psicossomática, História da
47

Psicossomática. A autora teve como escolha estas palavras por acreditar que
teriam relação com o tema e objetivo proposto na adjacente dissertação.
No site www.indepsi.cl, a busca foi a partir da página referente ao autor
Sándor Ferenczi, por não existir uma página específica sobre Georg Groddeck.
Lá constava um link referente à Ferenczi e suas vinculações e aqui continha
uma página com textos sobre Groddeck.
Para a pesquisa por títulos de livros, tanto nas livrarias, como nos sites e na
biblioteca da PUC, o critério utilizado foi a busca de livros que tivessem como
tema: Psicossomática, Romantismo, Filosofia da Natureza e Georg Groddeck.
Concluída esta etapa da pesquisa, a autora passou a fazer a leitura dos
títulos dos artigos e literaturas, com o objetivo de fazer uma seleção inicial
daqueles que pareciam abordar os temas desejados. Foi priorizada nesta
dissertação, principalmente, uma biografia centrada em fontes primárias, ou seja,
as traduções confiáveis, dos escritos originais escritos por Groddeck em Alemão,
para outras línguas. Portanto, por se tratar de um trabalho de pesquisa em fontes
primárias, depois de cada citação de autoria de Groddeck, será mencionado seu
nome, o ano em que o texto foi editado pela primeira vez, e na seqüência o ano da
edição na qual a citação foi retirada, e a pagina (Primeira Seleção).
Terminada a busca de títulos compatíveis, realizou–se a leitura dos
instrumentos coletados e previamente selecionado, através da qual foi possível
elucidar o conteúdo dos mesmos e assim separar aqueles que seriam relevantes à
pesquisa descartando os que não tinham correlação com o tema. (Segunda
Seleção).
Por fim, realizou–se a leitura e seleção dos instrumentos, seguindo uma
categorização cronológica baseada nos acontecimentos biográficos, dentro de um
espaço de tempo definido como período pré – psicanalítico, enfatizando sua
produção intelectual e situando dentro de seu contexto biográfico, ampliando meu
procedimento para compreender também o contexto histórico-teórico que
corresponde à sua época.
E, a partir desta categorização da obra do autor, a autora deu início ao
desenvolvimento e à escrita desta Dissertação de Mestrado.
48

Como a autora não domina a língua Alemã, o trabalho foi fundamentado em


livros traduzidos. Portanto na impossibilidade de traduzir do alemão para o
português, a autora utilizou textos traduzidos para o português, inglês, francês,
italiano. Por este motivo nenhuma das citações desta dissertação estará na língua
alemã e sim nos outros idiomas já mencionados.
49

IV. CRONOGRAMA DOS ESCRITOS DE GRODDECK:

• 1889 – Über das Hydroxylamin und seine Verwendung in der Therapie


der Hautkrankheiten (“Sobre a Hidroxilamina e sua aplicação no tratamento de
enfermidades cutâneas”)

• 1890 – Das Hydroxylamin und die Schweningerkur. (“A Hidroxilamina e a


terapia de Schweninger”).

• 1892 -1893- Ketzreien (“Heresias”)


Rezeptschwindel (“O Embuste das receitas”)
Laienweisheit (“Sabedoria Leiga”)
Einiges über moderne Kollegialität (“Apontamentos sobre o
coleguismo moderno”)
Kunst und Wissenschaft in der Medizin. (“Arte e Ciência na
Medicina”)
Krankheit (“Enfermidade”)
Die Schurzmassregeln gegen die Cholera (“As medidas de
proteção contra o cólera”)

• 1893 –1894: Ärzteschulen (“Escolas de Médicos”)


Kur und Kuren (“Cura e Curas”)

• 1894 –1895- Krankendiät. (“A Dieta dos Doentes”)


Behring und Virchow (“Behring e Virchow”)

• 1896- Konstipation (“Constipação”)

• 1899- Über Messen und Wägen in der ärztlichen Tätigkeit (“Sobre a medida
e a pesagem na atividade médica”)

• 1901- Einiges über die Bedeutung mechanischen Vorgängen im Bauch


(“Algumas considerações sobre o significado dos processos mecânicos no ventre”)

• 1903- Ein Frauenproblem.(“Um Problema de Mulher”)

• 1905- Ein Kind der Erde. (“Um Filho da Terra”)


Über die Mechanik des Wachstum. (“Sobre o mecanismo do
crescimento”)

• 1906- Bemerkungen über mechanische Kräfte in menschlischem Körper


(Considerações sobre forças mecânicas no corpo humano”)
Die Wasserverteilung im Körper (“A distribuição da água no corpo”)
Die Wasserbewegung im Körper (“A circulação da água no corpo”)
Wasserfülle und Wasserarmut (“Abundância e falta de água”)
Die Hochzeit des Dionysos (“As Núpcias de Dionísio”)

• 1908- Studien über die Rolle des Wassers im menschlichen Organismus


(“Estudo sobre o papel da água no Organismo Humano”)
50

• 1909- Der Pfarrer von Langewiesche (“O Pastor de Langewiesche”)


Hin zu Gottnatur (“Rumo ao Deus-Natureza”)

• 1910- Tragödie oder Komödie? Eine Frage an die Ibsenleser (“Tragédia ou


Comédia? Uma questão para os leitores de Ibsen”)

• 1913- Nasamecu, natura sanat, medicus curat. Der gesunde und der
kranke Mensch gemeinverständlich angestellt (“Nasamecu, a natureza cura, o
médico trata. O Homem são e o Homem Doente representados de maneira
compreensível a todos”).
51

V. O LEGADO DE GEORG GRODDECK – GENUIDADE E ORIGINALIDADE.

1. Georg Groddeck – do nascimento até sua adolescência.

Georg Groddeck nasceu em 13 de outubro de 1866, na pequena cidade


termal de Bad-Kösen (região da Saxônia, Alemanha) e morreu em 10 de junho de
1934, em Zurique. Cresceu junto com quatro irmãos: “Sou o quinto Groddeck”, dizia
ele; sendo que o número cinco se torna seu número pessoal e desta preferência fará
derivar muitas questões. Na realidade, ele seria o sexto Groddeck, pois a sua
primeira irmã morreu um mês depois que nasceu (22/06/1853). Seu irmão mais
velho, Carl, nasceu em 1885 (apelidado Bumi), o segundo, Hans Albrecht, nasceu
em 7 de abril de 1860. Dezenove meses depois, em 29 de outubro de 1861, nasceu
Wolfgang e em 21 de junho de 1865, nascia a irmã Caroline (Lina).
Eram filhos do Doutor Carl Theodor Groddeck (1826-1885), epidemiólogo e
posteriormente médico “termal”, e de Caroline Koberstein (1825-1892). Antes de
prosseguir com as notas biográficas de Groddeck, é necessário fazer um breve
percurso em torno da cidade onde ele nasceu e posteriormente pela biografia dos
pais.
Bad-Kösen: uma característica importante é a criação e o desenvolvimento da
cidade como estação termal a partir do século XIX. Citando Wolfgang Martynkewicz:

Inicialmente, porém, o interesse maior era voltado para o sal abundante,


mais do que ao efeito terapêutico da água salgada. A partir de 1730, o filho
de um marceneiro de Dresden, Johann Gottfried Borlach, abre a fonte de
água salgada em Kösen e faz da atividade da salina um empreendimento
próspero. A extração do sal alcança rápido desenvolvimento e em 1880 se
torna um elemento essencial na economia de Kösen. Neste período
destaca-se também a construção do estabelecimento de gradação, hoje
uma das estruturas mais características da cidade. Paralelamente, a
atenção se volta também para a eficácia terapêutica da água salgada.
Entre os adeptos e mantenedores desta terapia se destaca o médico da
corte prussiana Wilhelm Hufeland, que propõe fazer de Kösen uma cidade
modelo para a saúde. No início do século XIX chegaram os primeiros
hóspedes das termas, que para fazer a inalação deveriam agora caminhar
no espaço traçado no amontoado de sal. Uma sala para inalação foi
construída em 1888. No início, os hóspedes não eram mais do que
quarenta por ano. Sucessivamente, se construiu, sobretudo, a estrutura
termal. Em 1863, o doutor Rosenberg abriu uma clínica para crianças
doentes, fazendo conhecido o efeito terapêutico do banho termal e, um
pouco mais tarde, também da eletricidade. Quando, em 1847, é aberta a
linha ferroviária e, logo em uma dezena de anos, cessou a produção da
salina, o número de hóspedes das termas aumentou consideravelmente.
Em 1859 se contavam já 300 hóspedes e Kösen vem a ser chamada
“termas de água salgada”. A inalação e a cura com o banho eram
52

acompanhadas de uma bebida à base do soro do leite, dieta, muito


movimento ao ar livre e rígido respeito ao tempo de repouso e de sono. Na
metade do século XIX, nas termas em Saale, vieram sobretudo hóspedes
provenientes de Berlim, entre eles o pintor Adolph von Mezel, que durante
sua estadia se inspirou para duas pinturas. De Weimar algumas vezes veio
Franz Liszt acompanhado da princesa Sayn-Wittgenstein. [...] Kösen não
era de fato uma localidade termal luxuosa, porém tinha certa atmosfera e
1
um fascínio. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 43-44)

Mas voltemos agora ao primeiro ano das termas, ou seja, a metade do século
XIX:
Além do já citado Doutor Rosenberg, outro médico se torna conhecido
neste período: o doutor Carl Theodor Groddeck. Em 20 de junho de 1885,
perto de sua residência, na Chause 18, abriu um estabelecimento de água
termal e nata do soro, a qual um ano mais tarde acrescentou um espaço
para banho com água salgada. [...] A posição da propriedade era
particularmente vantajosa: uma casa imponente, com um grande jardim,
adjacente a um bosque serrano e com uma bela vista para o vale do Saale.
Para o Doutor Groddeck, que se transferiu para cá com sua mulher no
último mês de gravidez, este foi um grande passo. Os meios financeiros da
família eram insuficientes, então o marido teve que emprestar dinheiro de
algum parente e, para aumentar a renda, foram obrigados a alugar alguns
apartamentos da casa. Porque os banhos termais prometiam um
crescimento feliz, eles esperavam que o investimento logo começasse a
render. Além do risco financeiro, a transferência para Kösen proporcionou
para o Doutor Groddeck também uma mudança na atividade profissional:
ele não tinha experiência como médico termal, havendo trabalhado até
aquele momento como epidemiologista na Prússia. [...] Em alguns anúncios
nos jornais, o Doutor Groddeck propunha um programa de terapia e de
cura que seguia os princípios mais modernos: oferecia ao paciente banho
de água salgada e um tratamento à base do soro do leite, banho termal,
erva e uva. Praticava também cura elétrica que seguia o método
apresentado por Duchene em 1852. O horário do atendimento era das seis
2
da manhã até o entardecer. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 44 e 51)

1
. Inizialmente, però, l’interesse maggiore era rivolto al sale piuttosto che all effetto terapêutico dell’acqua salsa.
A partir de 1730 il figlio di un falegname di Dresda, Johann Gottfried Borlach, apri le fonti di acqua salsa a
Kösen e fece dell’attività della saline una prospera impresa. L’estrazione del sale ebbe un rápido sviluppo e nel
1880 divenne un elemento essenziale dell’economis di Kösen. A questo periodo risale anche la costruzione dello
stabilimento di gradazione, oggi tra le strutture più caratteristiche della città. Parallelamente si risolse
l’attenzione anche all’efficacia terapêutica dell’acqua salsa. Tra gli amici e sostenitori di questa terapia si
annovera il medico di corte prussiano, dottor Wilhelm Hufeland, che propose di fare di Kösen una località
modelo per l’igiene. All’inizio del XIX secolo arrivarono i primi ospiti delle terme, che per fare le inalazioni
dovevano ancora camminare negli spazi ricavati sui cumuli di sale. Una sala per inalazioni fu construita nel
1888. All’inizio gli ospiti non erano più di quaranta all’anno. Sucessivamente si construirono anzitutto le
strutture termali. Nel 1836 il dottor Rosenberg aprì una clinica per bambini malati facendo conoscere l’effetto
terapêutico del bagno termale e, poco più tardi, anche dell’elettricità. Quando nel 1847 venne aperta la linea
ferroviaria e, dopo una decina anni, cesso la produzione delle saline, il numero degli ospiti delle terme aumento
notevolmente. Nel 1859 si contavano già 1300 ospiti e Kösen venne chiamata “terme de acqua salsa”. Le
inalazioni e la cura i bagni erano accompagnate da bevande a base di siero del latte, dieta, molto movimento
all’aria fresca e rigido rispetto dei tempi di riposo e di sono. Dalla meta del XIX secolo nella termale sulla Saale
arrivarono soprattutto ospiti provenienti da Berlino, tra cui il pittore Adolph von Menzel, che durante i suoi
soggiorni trasse ispirazione per due dipinti. Da Weimar più volte venne a Kösen Franz Liszt, accompagnato dalla
principessa Sayn-Wittegenstein. [ ... ] Kösen non era di sicuro una località termale lussuosa, però aveva una certa
atmosfera e un fascinio.
2
.Oltre al giá citato dottor Rosenberg, un altro medico fece parlare di sé in questo período: il dottor Carl Theodor
Groddeck. Il 20 giugno 1855, accanto allá sua abitazione, in Chause 81, apri uno stabilimento di acque termali e
di pura del siero, al quale un anno più tarde si aggiunse uno stabilimento per bagni con acqua salsa. [...] La
53

Isto nos faz retomar a biografia dos pais de Groddeck. O pai, Carl Groddeck,
era filho de um deputado de Danzing, sua cidade natal, no norte da Alemanha. Já
sua mãe, Caroline, era filha do professor August Koberstein, historiador da literatura
alemã e professor em PforteI por 50 anos. Caroline e Carl se conheceram quando
ele ainda era estudante em Pforte. O jovem estudante era pensionista na casa dos
Koberstein e foi acometido por um distúrbio cardíaco que perduraria por toda a vida.
Durante a convalescença, Carl permaneceu na casa do professor, o que
proporcionou o tempo e a intimidade suficientes para que os dois jovens se
apaixonassem. A Senhora Koberstein era quem se ocupava do paciente, e por este
motivo Carl tinha muito apreço por ela. Por sua vez a filha, Caroline, nunca falava de
sua mãe com muita admiração, diferente de como se referia a seu pai 3. A mãe era
uma mulher totalmente comum, mas com uma facilidade para atrair pessoas, o que
para a filha era um defeito. Independente de como a Senhora Koberstein era vista
por sua filha, para os demais, no entanto, era uma pessoa notável.
Em 1849, Carl Groddeck formou-se na Faculdade de Medicina da
Universidade de Berlim, com a tese com o título em latim, De morbo democrático,
nova insaniae forma. Em 1850, Carl apresenta-a em público, revista e ampliada,
agora com o título em alemão: Die Demokratische Krankheit, Eine Neue
Wahnsinnsform. Nas suas “Memórias”4, Groddeck escreve sobre seu pai:

[...] Como era normal na época – eram os anos em torno de 1848 - aquele
que estivesse mais próximo da política se tornava o centro do círculo; era o
meu pai. Tirando o fato de ter ele, como filho de um deputado, sido atraído
para o movimento com mais força do que os outros, ele pusera na cabeça,
mostrar-se ativo e, pela necessidade de ser incomum – uma necessidade
que infelizmente adotei e que levei uma grande parte da minha vida para
neutralizar – ele o fez de um modo característico: escolheu para sua tese

posizione della proprietà poi era particolarmente vantaggiosa: una casa imponente, con un grande giardino,
adiacente a un bosco montano e con una bella vista sulla valle della Saale. Per il dottor Groddeck, transferitosi
qui con la moglie agli ultimi di gravidanza, questo fu un grande passo. I mezzi finanziri della famiglia non erano
sifficienti, cosi i coniugi dovettero farsi prestare denaro da parenti e, per aumentare le entrate, fuorono costretti
anche ad affitare alcuni appartamenti della casa. Poichè i bagni termali promettevano uno sviluppo felice, essi
speravano che gli investimenti avrebbero presto cominciato a rendere. Oltre al rischio finanziario, il
transferimento a Kösen comporto per il dottor Groddeck anche un cambiamento nell’attività professionale: egli
non aveva alcuna esperienza come medico termale, avendo lavorato fino a quel giorno come epidemiologo in
Prussia. [...] In parecchi annunci sul giornale il dottor Groddeck proponeva un programa di terapia e di cura che
seguiva i principi più moderni: offriva ai pazienti bagni di acqua salsa e una cura a base di siero del latte, bagni
termali, erbe e uva. Praticava anche cure elettriche che seguivano il metodo presentato da Duchene nel 1852. Gli
orari della andavano dalle sei del mattino al tardo pomeriggi.
4
. Lebenserinnerungen, escrito em 1929 e inéditas até 1970 quando são incluídas na coletânea Der Mensch und
sein Es. Briefe, Aufsätze, Biographisches, editado por Margaretha Honnegger. ( Editora Perspectiva, São Paulo,
1994, pags. 267-378 ).
54

de doutoramento o tema: De morbo democrático, nova insaniae forma , ou


seja, “A doença democrática, uma nova forma de loucura”. Foi esta a única
vez que meu pai se apresentou publicamente, e não ficou pouco orgulhoso
deste grande momento; já idoso, ele me contou com grande alegria como
tudo teria acontecido, como o pequeno salão não foi suficiente para a
afluência do público e todos passaram para o grande salão da
universidade, como foi assaltado por todos os lados e escarnecido e como
a situação se tornou difícil por ter que se defender em latim, de mais a
mais, contra dois dos melhores mestres de línguas antigas. Naturalmente,
tornou-se desse modo o herói de seus amigos. (GRODDECK 1929, 1994,
p. 326)

Na carta ao Prof. H. Vaihinger, citada anteriormente, o editor adiciona a nota


de rodapé 9 que amplia o tema da dissertação de Carl Groddeck, sua importância e
relevância para a obra de Nietzsche. No prefácio à 5a edição, de 1930, de seu livro
Nietzsche als Philosoph, Vaihinger escreve:

A posição antidemocrática de Nietzsche é fortemente influenciada pela


dissertação de Carl Theodor Groddeck, De modo democratico, nova
insaniae forma, tese aprovada pela Faculdade de Medicina de Berlim no
ano da Revolução de 1849 e famosa e muito discutida nos círculos mais
amplos. [...] A defesa pública da tese, em 21 de dezembro de 1849, tornou-
se um acontecimento político de grandes proporções: líderes do Partido
Democrático apresentaram-se como oponentes, como, por exemplo,
Krüger, o importante filólogo clássico e gramático. Enquanto o original
latino é encontrado em todas as bibliotecas universitárias alemães entre as
teses de medicina, a edição alemã, publicada pelo próprio Groddeck em
1850, Die Demokratische Krankheit, Eine Neue Wahnsinnsform, tornou-se
muito rara. [...] A tese de Carl Theodor Groddeck, [...] é extremamente
séria, e como tal deve ser considerada: em conexão com a literatura
psiquiátrica da época, especialmente com a teoria de Hecker sobre as
doenças mentais contagiosas, Groddeck descreve o movimento
democrático espalhado por toda a Europa como uma epidemia do espírito.
– O título e o assunto parecem menos escandalosos, se considerarmos
que os ‘democratas’ de então não podem ser identificados ao partido
político tão característico hoje em dia. Pois os ‘democratas’ de 1848
abrangiam não só os constitucionalistas e os republicanos de todas as
correntes como também os socialistas, comunistas e anarquistas. [...]
Friedrich Nietzsche foi interno em Schulpforta, de 1858 a 1864, onde
manteve estreitas relações com o diretor Koberstein, em cuja casa
conheceu também Carl. T. Groddeck. Na casa de Koberstein falou-se muito
do texto sobre a doença democrática, e desse modo Nietzsche absorveu
com certeza o espírito antidemocrático e provavelmente também leu o livro.
Pois muita coisa que Nietzsche diz, em inúmeras passagens das suas
obras, deriva quase palavra por palavra, das concepções de Carl. T.
Groddeck. (VAIHINGER in GRODDECK 1930, 1994. p. 117/9)

Se o trabalho de Carl T. Groddeck que é, sobretudo, uma tese política,


exerceu influência em algumas ideias de Nietzsche, o que é possível afirmar da
55

presença das ideias do pai no pensamento futuro do filho? A resposta a esta


questão será dada por Jacquy Chemouni:

[...] Escolhendo a mesma profissão que seu pai, Groddeck não poderia
deixar de conhecer sua tese de doutorado. Sua influência direta não é
possível de ser percebida, mas os problemas que ela propõe produziram
efeitos alguns anos mais tarde em seu filho. No entanto, o que de fato vai
marcar o futuro psicanalista, é a maneira própria como seu pai praticava a
5
medicina. (CHEMOUNI, 1984, p. 23)

A este respeito, Georg Groddeck escreve:

[...] De resto era tão pouco neurologista quanto eu, mas um simples médico
clínico, aliás, muito avançado em relação ao seu tempo, talvez também
bastante distante das opiniões remanescentes da sua época, conforme se
quer. Nos seus últimos anos de vida, estudou, para uso médico particular,
o livro de Rademacher, o redescobridor de Paracelso, então quase
desconhecido. Eu já havia lido, no tempo do colégio, esta “terapêutica” pela
experiência de Rademacher; para minha formação médica e humana, foi
tão importante quanto a minha relação de estudante e de amigo com
Schweninger. (GRODDECK 1930, 1994, p. 118)

Voltando ao esboço biográfico de Carl T. Groddeck e considerando um


aspecto da sua vida pessoal vemos que após acabar os estudos em Berlim volta a
encontrar Caroline KobersteinII. Movido por um fato externo e enfrentando certa
resistência da família, ambos casam-se em 14 de setembro de 1852 (RIVERAS,
2004). O fato externo que acelera o matrimônio é uma epidemia de cólera e tifo que
se alastra pela Prússia, o que faz com que Carl receba o cargo de epidemiólogo na
cidade de Marienburg.
O período passado em Marienburg é marcado por dois fatos importantes: em
22 de junho de 1853, a primeira filha morre um mês após seu nascimento e, em
1854, após a epidemia estar praticamente controlada, Carl contrai tifo e fica muito
doente. A situação da família se torna mais equilibrada só a partir de 1855 com a
mudança para Kösen, e conforme vimos, ali estabelecem uma clínica termal, que
graças à atitude firme da mãe, se manteria por mais de duas décadas. Ali fixados,
tiveram cinco filhos. (RIVERAS, 2004, p.23)

5
. Choisissant le même métier que son père, Groddeck n’était pas sans connaître sa thèse de doctorat. Son
influence directe n’est pas d’emblée perceptible, mais les problèmes qu’elle soulève trouveront quelques annèes
plus tard un écho chez son fils. Toutefois, ce qui semble surtout avoir marqué le futur psychanalyste, c’est la
façon personnelle dont son père pratique la médecine.
56

Como médico, Carl T. Groddeck se posicionava contra os conceitos da


medicina oficial e criticava os pressupostos da ciência médica; estava mais afinado
com o modelo hipocrático, no qual o papel importante é jogado pela natureza, e o
médico deve observar e confiar nela e em sua força curativa. Ao falar do pai como
médico, Georg Groddeck escreve:

III
Em medicina meu pai era um herege , reconhecendo sua própria
autoridade, seguindo seu próprio caminho e perdendo-se nele, a seu bel-
prazer. Em relação ao respeito pela ciência não era possível encontrar
qualquer vestígio disso em suas palavras e atos. Ainda me lembro como
ele ria das esperanças depositadas na descoberta dos bacilos da
tuberculose e do cólera e com que prazer ele dizia que, desprezando todos
os dogmas da fisiologia, havia alimentado com sopinha um bebê.
(GRODDECK 1929,1994)

Sobre o relacionamento entre seus pais, desde pequeno Georg Groddeck


percebia que existia uma distância irreparável entre os dois, e discorre sobre as
atitudes que o pai tinha, com o intuito de agradar a esposa: “Creio que tentou
honradamente converter-se em um Koberstein”. (apud GROSSMAN, 1967, p.18)6.
Por este motivo, se comportava como se a medicina significasse apenas uma forma
de viver, pois para Caroline era a Literatura que valia a pena, e não a medicina. Em
resumo, Carl tentava agradar sua esposa de todas as formas possíveis, e nas
palavras de seu filho: “Buscou a companhia dos pais de sua mulher e tratou de
adotar sua visão de vida, porém não foi possível. Era demasiado solitário,
demasiado forte”. (apud GROSSMAN, 1967, p.18) 7. Segundo o relato biográfico
escrito por Grossman, para Groddeck, o pai era o homem mais forte e mais sábio do
mundo. Era um pai severo, porém afetuoso, que os filhos adoravamIV, mas que
nunca encontrou a aceitação plena da esposa.
Relatos sobre o nascimentoV (GROSSMAN, 1967) de Georg Groddeck fazem
alusão de que foi um bebê feio, de enormes orelhas, a quem nem sequer haviam
escolhido um nome de família. Foi decidido, depois, que se chamaria George
Marchand, igual ao amigo de seu pai, chegando ao ponto de ser chamado não só
pelo nome, mas também pelo cognome de Marchand, “Pat8”. Outra situação que

6
. Creo que intentó honradamente convertise en un Koberstein.
7
.Buscó la compania de los padres de su mujer y trató de adoptar su visón de la vida, pero no fue possible. Era
demasiado solitário, demasiado fuerte.
8
. “[...], por que me apelidaram de Pat? [...] Mas não tem nada a ver com o padroeiro irlandês. O homem de
quem recebi o nome de Georg era um amigo particular de meu pai, Marchand, que, na opinião da sua esposa, era
57

marca não só seu nascimento como sua vida - “... os primeiros e mais terríveis
conflitos de minha vida.” (GRODDECK 1929, 1994, p.3) -, foi o fato de sua mãe só
ter amamentado o primeiro de seus filhos. Sobre este acontecimento, já na vida
adulta, Groddeck anota:

Minha mãe só amamentou o primeiro de seus filhos; nessa época ela


contraiu uma grave infecção nos seios, em conseqüência da qual suas
glândulas mamárias secaram. Meu nascimento deve ter ocorrido alguns
dias antes da data prevista. Seja como for, a ama-de-leite que me estava
destinada não se achava por perto e durante três dias fui alimentado, mais
ou menos alimentado, por uma mulher que me vinha dar de mamar duas
vezes por dia. Minha saúde não foi prejudicada por isso, me disseram
depois. Mas quem pode conhecer os sentimentos de um bebê? Ter fome
não é uma acolhida agradável para um recém-nascido. Várias vezes
encontrei pessoas que passaram pela mesma experiência e embora eu
não possa demonstrar que o espírito delas tenha sofrido algum dano, isso
é algo bastante provável. E comparando-me com elas fico com a
impressão de que eu me saí excepcionalmente bem de tudo isso.
(GRODDECK 1929, 1994, p. 4)

Depois destes três dias, chegou a sua casa Bertha, uma senhora gorda e afetuosa,
que lá permaneceu por três anos (GROSSMAN, 1967). Para Groddeck, o fato de ter
sido amamentado por uma ama-de-leite e ter uma mãe verdadeira que lhe dava
carinho, o colocava em dúvida sobre qual das mulheres amar, dilema que tornaria
todas as suas escolhas mais difíceis:

Você já imaginou as atribulações de uma criança amamentada por uma


ama? É uma situação complicada, pelo menos quando a mãe verdadeira
gosta da criança. De um lado a mãe, em cuja barriga a gente viveu durante
nove meses, sem nenhuma preocupação no quentinho, nadando na
felicidade. Como não gostar dela? E depois, uma segunda pessoa, em cujo
seio a gente se alimenta todo dia, cujo leite a gente bebe, sentindo sua
pele fresca e respirando seu cheiro. Como não se afeiçoar por ela? E
então, a quem se apegar? Alimentado pela ama, o bebê se coloca num
estado de incerteza do qual nunca conseguirá sair. Sua capacidade de
crença se vê abalada em suas bases e a escolha torna-se para ele mais
difícil do que para os outros. (GRODDECK 1929, 1994, p.5)

Mesmo sendo o mais novo dos irmãos, Groddeck não gozava de uma posição
privilegiada em sua família, esta pertencia à sua irmã Lina, pois ela sofria de
insuficiência cardíaca, sendo considerada frágil e doente. Segundo o relato do
próprio Groddeck, a mãe buscava tratar os filhos de forma semelhante, e ao

parecido com o cantor Padilla; em conseqüência disso, ela lhe deu uma alcunha, mas como era saxônia, falava
Patilje, em vez de Padilla. E tornou-se também meu apelido.”
(GRODDECK 1929, 1994 p. 358)
58

obedecê-la, Groddeck acabava sendo beneficiado. Assim, desde muito jovem


compreendeu o surpreendente poder da enfermidade. Lina não necessitava de
esforço e nem criatividade, recebia o que desejava pelo simples fato de estar
doente.

Lina, desde o primeiro ano de vida, tinha uma insuficiência cardíaca e deve
ter sido muito delicada, embora não me lembre disso da minha infância. Ela
me contou mais tarde que a chamavam de almofada chorona, e eu me
recordo que de noite nós nos deitávamos alternadamente no sofá, atrás de
nossa mãe, às vezes juntos. Devido às muitas doenças de minha irmã, eu
me arrogava diversos direitos, pois mamãe, bem ou mal, devia tratar todos
os filhos por igual, se não quisesse cedo demais chamar a atenção da filha
para sua doença. Creio que ela o fez com muita habilidade, a irmã foi
poupada de muitos sofrimentos e foi-lhe dada a sensação de muita
felicidade, e eu me alegrava por ter sido mimado desde cedo por causa
disso, um hábito a que ainda hoje estou apegado. (GRODDECK 1929,
1994, p. 365)

Acredito que a partir desta condição de doença de sua irmã, Groddeck vivencia
uma lição, que é aprendida e memorizada para sempre: a debilidade orgânica tinha
força, era uma arma poderosa.
Ainda sobre a influência das descobertas das patologias vale ressaltar o fato
que define a escolha da sua profissão. Segundo relatos de historiadores, em um
determinado dia, enquanto brincava com Lina no quintal, observou que a irmã cobria
sua boneca com vários cobertores, então ele diz: “Não faça isso, não vês que ela
acabará sufocada?”. O Dr. Carl Groddeck observou a cena e entendeu que o filho de
apenas três anos já tinha vocação para a medicina. Quando o pai perguntou-lhe se
gostaria de ser médico, o menino entendeu que aquilo era um elogio e respondeu-
lhe entusiasmado que sim.
Próximo de completar seis anos foi à primeira escola, juntamente com sua irmã
Lina. Era uma escola de meninas, uma Mädchenschule. Na época, os filhos de pais
bem situados começavam seus estudos em escolas femininas. Era uma escola
dirigida por três irmãs, e foi descrita por Groddeck com riqueza de detalhes:

As três irmãs Hochbohm dirigiam a escola, cada uma era mais gorda do
que a outra e a mais magra - Marie - era a mais temida. Entre outras
coisas, ela nos ensinava aritmética. Sua influência, a influência do medo,
foi muito grande e ainda hoje tem vestígios [...]. A irmã do meio, Emma
Hochbohm, era a diretora do instituto; por causa da sua obesidade, foi
apelidada de “carrossel de duas pernas”. [...] A mais velha das irmãs
Hochbohm era a mais gorda; na verdade era tão gorda que não podia
lecionar, porque as crianças não queriam e não podiam ser ensinadas por
59

ela. Diziam as más línguas que ela, com toda aquela gordura, não podia
passar pelo portão da igreja, mas tinha de se lançar com o ombro à frente.
(GRODDECK 1929, 1994, p. 269)

Ao sair dessa escola, Groddeck sabia ler e escrever corretamente, embora


sua letra, durante a vida, não tenha mudado muito. Como diria, sua letra se manteve
como a de uma criança de oito anos. (RIVERAS, 2004)
Aos nove anos, Groddeck, foi transferido para outra escola, agora uma escola
só pra meninos, dirigida pelo Dr. Raabe. Pela primeira vez se separava de sua irmã.
O que no início lhe pareceu estranho, resultou em sua emancipação (RIVERAS,
2004). O que incomodava ali era o fato do diretor ter:

O desagradável costume de perguntar, às segundas-feiras, sobre o texto


do sermão; mas havia muitas possibilidades de subtrair-se às
conseqüências de tal pergunta. A igreja de Kösen não era atrativa. Ao
acreditarmos na lenda, o prédio servira antigamente de redil, a aparência
externa era bastante esquisita e não deveria ser mais bonito por dentro.
(GRODDECK 1929, 1994, p. 272)

Este fato parece ter incomodado Groddeck, pois ele próprio se definia como
“um pagãozinho”, que até deixar a casa paterna nunca havia entrado em uma igreja.
Mas, apesar deste fato, foi nesta escola que descobriu o verdadeiro sentido do
escrever:

Quando deixei a escola de meninas para estudar com meninos, sabia


escrever correntemente, embora de forma ruim. Desde então, a minha letra
não mudou muito. Mas, na época, abre-se diante de mim o outro mundo do
escrever que exige que se pense o que se coloca no papel, o verdadeiro
escrever; tenho de escrever ensaios, dar algo de mim mesmo. Nem mesmo
hoje, quando cultivo há dezenas de anos a negra arte do escritor, sou
capaz de entregar-me ao papel, pelo menos não da maneira como exigem
os críticos. Naquela ocasião devo tê-lo tentado seriamente, mas com
certeza foi uma tentativa cômica: toda a classe, alunos e professor, riram
de mim. (GRODDECK 1929, 1994, p. 285)

Este relato é referente à redação que os alunos deveriam fazer, sobre “minhas
férias”. Ele relatou sua primeira saída de casa sem a mãe, com os irmãos. Foram a
Sachsenhausen, onde havia uma fonte de água mineral: “não me admira que a
tenha escrito na redação; era a primeira vez em que me dava conta de como são
fúteis todas as questões do espírito, quando as comparamos com a delícia que o
sedento sente ao beber água”. (GRODDECK 1929, 1994, p.285)
60

No início da adolescência, Groddeck passou por várias situações que


marcariam sua vida (RIVERAS, 2004). Aos 11 anos, segundo ele próprio, a
desgraça se abateu sobre sua família. Seu pai havia se envolvido em negócios
imobiliários e, aparentemente devido a um golpe dado por um sócio, perdeu todas
as posses. A casa onde Groddeck havia nascido e passado toda a infância foi
leiloada, assim como os móveis aos quais o seu coração estava ligado. O pai, sem
outra saída, resolveu deixar a cidade e tentou se estabelecer em Berlim, porém não
obteve o número de pacientes que esperava. Retornou a Bad-Kösen no verão para
tentar ganhar algum dinheiro. A sua mãe, no intuito de ajudar a família, empregou-se
como dama de companhia. Georg Groddeck entendeu este afastamento da mãe
como uma traição. Pior que tudo isso, antes da dissolução da casa e de que
tomasse conhecimento da situação, sua irmã, a companheira de toda a infância, foi
mandada à casa de um tio para lá viver, passando a trabalhar como babá. A ferida
aberta por este fato nunca cicatrizaria. Só posteriormente Groddeck descobriria que
isso havia sido, de certa forma, bom para ele. (RIVERAS, 2004)
Por último, e também aos onze anos, ingressou no tradicional Colégio Pforte
que ficava apenas a meia hora de Bad-Kösen. Referências biográficas sobre Pforte
fazem alusão a que Groddeck já sabia algo sobre este Colégio. Sabia que os livros
de seu avô Koberstein estavam na biblioteca, que havia folga na Páscoa e no Natal
e também que a comida era ruim e os castigos severos. (GROSSMAN, 1967)
Sempre soube que, assim como o avô, pai e irmão, ele também deveria
ingressar no tradicional Colégio de Pforte, mas quando se passou a falar sobre sua
partida, relatos revelam que ele tomou esta notícia com surpresa (GROSSMAN,
1967). Possivelmente, a dificuldade em pensar em sua partida era referente à
dificuldade em deixar sua mãe, pois, quando adulto Groddeck diz ter sido um “filho
de mamãe” (GROSSMAN, 1967), uma criança mimada, apesar dos relatos
biográficos mostrarem o contrário.
Segundo o biógrafo Grossman, quando sua ida para Pforte se tornou inevitável,
recordou a lição que teve cedo sobre a força da enfermidade. Não obstante, se
sentisse enfermo pois tinha uma enfermidade “real”, e sintomas físico além das
queixas subjetivas. O diagnóstico permaneceu indefinido e os médicos a
denominaram “febre nervosa”, e lhe prescreveram repouso, expurgo e uma rápida
dieta. Durante várias semanas permaneceu na cama com febre alta. Apesar de
todas as tentativas, partiu para Pforte na data prevista.
61

Pforte resultou em tudo que ele havia temido. A escola é descrita como uma
fortaleza, rodeada de muros altos feitos de pedra, uma verdadeira prisão. O jovem
Groddeck foi um pecador desde o início, parecia desejar tudo aquilo que estava
proibido: jogos de cartas, trepar sobre os muros e fumar. E depois de ser um
magnífico estudante durante anos, se tornou um estudante medíocre (GROSSMAN,
1967).
Vários relatos de seus biógrafos, revelam o quanto a disciplina aplicada nessa
escola gerou sofrimento e desamparo durante os seis anos em que ali viveu.
(VALVERDE; RIVERAS, 2004, p. 28)

O distanciamento de Lina, como também a perda de um amigo de infância,


fez-no perceber que sempre precisaria de alguém com quem pudesse
repartir. No colégio, encontraria um grande amigo que ajudaria a enfrentar
os anos de solidão seguintes. Com ele repartia tudo honestamente. Depois,
durante muitos anos não mais se viram e, ao se reencontrarem, foi como
se nunca tivessem se afastado. (VALVERDE; RIVERAS, 2004, p.28)

Não só a rigidez e a solidão foram vivenciadas por Groddeck no período em


que estudou em Pforte. Outros fatos tiveram importância, não tanto no momento em
que aconteceram, mas sim no decorrer de sua vida. Como por exemplo, quando
escutou falar pela primeira vez em Ernst Schweninger, que mais adiante se tornaria
uma espécie de “mentor” de Groddeck:

[...] Ouvi pela primeira vez o nome de Schweninger. Meu pai falou com
entusiasmo sobre ele, que devia ser um médico sob a graça divina, pois
conseguira obrigar Bismarck a obedecer. Eu nunca tinha ouvido da boca do
meu pai um elogio a qualquer médico e estava sinceramente convencido
de que só ele compreendia a Medicina. (GRODDECK 1929, 1994, p. 332)

[...] Em toda a Alemanha levantou-se um tumultuoso alarido contra a


violação da liberdade científica pelo tirano Bismarck. [...] A gritaria chegou
até a vida tranqüila de Pforte, e mesmo um tímido como eu foi arrastado
para o conflito. Tomei o partido de Schweninger, e o teria feito mesmo que
não tivesse ouvido a observação do meu pai sobre a genialidade de
Schweninger; pois eu estava na idade em que naturezas hipersensíveis
procuram abrigo no cinismo. Esta briga de dormitório decidiu a minha vida.
Sem ela, eu não teria sido capaz, sendo um rapaz ignorante, de absorver
as idéias de Schweninger. Quando o conheci, já gostei dele, como se gosta
de algo que se defendeu com força e sorte. E como não podia ser
diferente, desde então começou a minha veneração por Bismarck.
(GRODDECK 1929, 1994, p. 333 e 334)
62

Outra situação marcante na vida de Groddeck, na época da escola, deve ter


sido o fato de não conseguir ser capaz de controlar o hábito de molhar a cama
durante a noite até os catorze anos. Em suas “Memórias”, ele relata:

[...] E quando finalmente cheguei e fui instalado em cima de um colchão,


um novo medo me assaltou. Eu ainda molhava a cama na época, fi-lo até
os meus catorze anos. Meu irmão me prometeu uma boa surra se eu
sujasse a cama numa casa estranha. Tive sorte, todavia, à custa do melhor
sono. (GRODDECK 1929, 1994, p. 287)

Na primavera de 1885, logo após fazer dezenove anos,


completou o colégio e seguiu para Berlim:

9
Com o diploma de bacharel no bolso, deixei a escola estadual de Pforte
10
para estudar em Berlim , o domicílio dos meus pais. Pouco depois de
minha chegada, meu pai teve um derrame e faleceu em setembro do
mesmo ano. A primeiro de outubro ingressei, como estudante, no Instituto
de Educação para Médicos Militares. (GRODDECK 1929, 1994, p. 268).

2. Formação Profissional

E como se deu a escolha profissional de Groddeck? O pai era partidário da


ideia de que nenhum dos filhos estudasse medicina e, por extensão, nenhum deles
sequer havia pensado na possibilidade de ser médico, inclusive o próprio Groddeck.
Mas:

Meu pai de repente, interveio nesta despreocupação com o futuro,


perguntando se eu não gostaria de estudar medicina. Ao perceber que ele
esperava um sim, concordei sem hesitar; mas a minha esperança de, com
esse sim, poder voltar ao meu mundo de sonhos se dissipou: tive de
escutar por um bom tempo o que o meu pai tinha a dizer sobre o estudo de
medicina (GRODDECK 1929, 1994, p. 369)

A essa sugestão do pai para que Groddeck fosse médico se segue outra,
complementar: a de que fosse médico militar. E os motivos para isso são expostos,
de forma singela, por Groddeck:

Nas muitas conversas com esse homem (Villaret) ele tentava convencer-se
de que a carreira de médico militar, com o seu misto de obrigações rígidas

9
. Para uma avaliação sobre os efeitos dos seis anos e meio passados no Pforte na formação pessoal e intelectual
de Groddeck, ver Wolfgang Martynkewicz, p. 87-89.
10
. Sobre as razões, as consequências e os desdobramentos da mudança da família Groddeck para Berlim, ver
“Memórias” (GRODDECK 1929, 1994, p. 369- 370).
63

e da ampla liberdade médica, era adequado para o seu caçula, cuja vida
ainda não estava assentada e podia ser moldada. Ele pensava
provavelmente que, no serviço militar, esse menino sonhador pudesse
adquirir senso de realidade, do qual ele possuía uma grande porção.
Estava firmemente convencido de que nisso estava meu futuro [...]
(GRODDECK 1929, 1994, p. 371, 372)

Essas duas sugestões são consideradas e acatadas, mas surge um outro


problema: a situação familiar é precária, em consequência da mudança da família
para Berlim (MARTYNKEWICZ, 2005). Apesar de a escola militar ser gratuita, é
necessário uma participação financeira para a manutenção do filho na escola e isto
só será possível com a ajuda de alguns amigos mais abastados e próximos à
família.
Uma vez encaminhada a questão da escolha profissional, onde seria feita
esta formação, equacionada a ajuda financeira, surge um novo impasse: o prazo
para a inscrição na escola havia: “Chegado atrasado e que, por conseguinte,
somente poderia ingressar no outono. A mim pouco importava, minhas inclinações
ainda estavam ligadas à escola que eu acabara de deixar”. (GRODDECK 1927,
1994, p. 380)11.
Esse adiamento no início do seu curso faz com que Groddeck, inicialmente,
para fazer o tempo passar se matricule em um curso de química. Mas Groddeck
mantém um nível muito baixo de assiduidade (apenas três aulas). Percebendo o
pouco interesse e envolvimento de Groddeck com essa atividade acadêmica, seu pai
faz com que ele venha ajudá-lo no horário das suas consultas médicas. Essa
atividade irá marcar muito Groddeck, tanto na sua formação pessoal quanto na sua
formação e visão da atividade médica. Em um trecho do seu texto “Lembranças do
Pai”, ele escreve sobre o valor e o significado que essa experiência teve e como ela
foi bruscamente interrompida:

Sob o pretexto de anotar o histórico do doente e as prescrições que ele


ditava, foi colocada uma cadeira ao lado da sua escrivaninha, da qual eu
podia observar tudo. Naquele tempo acabavam de ser instaladas as
clínicas de assistência social; meu pai conseguiu um emprego como
médico da Caixa e acorriam diariamente um grande número de padeiros,
pedreiros e outros trabalhadores às suas consultas, a fim de ratificar a sua
admissão na assistência social. Foi para mim uma coisa muito agradável;
meu pai gostava de conversar com as pessoas, perguntava-lhes sobre as
suas vidas e suas opiniões, logo adquiriram uma pequena visão da vida do
trabalhador e das lutas entre os empregadores e eles, que eram então

11
. Lembranças do Pai, publicado inicialmente em Die Arché III, 8 ( 23 de setembro de 1927 ).
64

considerados apenas como ferramentas da empresa; isso era muito


importante para a minha formação humana, mas agia sobre mim outra
coisa muito mais forte, embora não o tivesse percebido naquele tempo:
aprendi a conhecer a atividade médica não com doentes, mas com
pessoas sadias. Isso foi de valor inestimável para mim. [...] É claro que
também vinham doentes ao consultório de meu pai, mas isso me agradava
menos. Meu pai não percebia que eu não tinha qualquer conhecimento do
latim médico, de que me eram totalmente incompreensíveis as receitas que
me ditava e de que não era melhor com os nomes de doenças que eu tinha
de anotar aos livros. E ficava impaciente quando eu lhe pedia que repetisse
uma palavra. [...] nessa época, teve lugar o acontecimento que de algum
modo me tirou da minha vida de sonhos e deu a direção decisiva à minha
12
carreira: no meio de uma consulta, meu pai sofreu um derrame . [...] Na
13
noite de 19 para 20 de setembro meu pai faleceu . (GRODDECK 1927,
1994, p. 380, 381, 385)

Após o falecimento do pai, mais uma surpresa o aguardava: “Depois de sua


morte verificou-se que ele não me inscrevera no Instituto de Educação para Médicos
Militares. Minha mãe o fez então”. (GRODDECK 1927, in GRODDECK, 1994, p. 385)
Finalmente em 1° de outubro de 1885, Groddeck começ a o seu curso de
medicina. Um dado importante acerca do Instituto é que para poder frequentar esta
instituição o aluno deveria preencher uma série de exigências, como por exemplo,
ser alemão, ser filho legítimo, ter menos de vinte e um anos, apresentar o certificado
de alistamento militar e se dispor a prestar um ano de serviço militar voluntário.
Concluídos os estudos, era previsto um serviço de oito anos como médico militar
para um período de aperfeiçoamentoVI. O estudante então, ao mesmo tempo em que
assistia às aulas de seu curso de medicina, estava submetido ao regulamento
militar.
Aí vemos Groddeck às voltas com as estruturas hierárquicas e com todos os
seus rigores. Em 1° de abril de 1886, é destacado p ara a Sexta Companhia do
Regimento Kaiser Alexander e uma das aquisições importantes desse período foi
uma “tosse crônica”. Groddeck assim recorda este período:

O comandante da Companhia era o capitão Von Bernuth, que foi reformado


no meio do meu serviço. O seu sucessor foi o Conde Hardenberg. Servi
sob seu comando apenas quatro semanas. Nada sei sobre ele, nunca mais
o encontrei, mas ainda assim seu nome esta gravado tão profundamente
na minha memória, que quase diariamente penso nele. Por alguma razão
totalmente injustificada, atribuo-lhe a culpa pela tosse com que eu mesmo
me divirto e atormento os outros; não sei por que o faço e persisto nisso,
embora saiba que não há a menor ligação entre ele e meu doce hábito de

12
. 07 de maio de 1885
13
. Segundo Wolfgang Martynkewicz a data da morte do pai de Georg Groddeck é 22 de setembro de 1885.
65

tossir claro e ruidosamente a tudo o que não me agrada. (GRODDECK


1929, 1994, p. 368)

Em 1° de outubro de 1886 termina seu período de tre inamento militar e recebe


uma boa avaliação.
Afora a necessidade de Groddeck ter que se adaptar a uma estrutura
hierárquica, um outro acontecimento importante ocorre em seu ingresso no curso de
medicina: em Pforte ele havia sido educado dentro do espírito da cultura clássica e
na tradição do humanismo, mas a partir de agora deve confrontar-se com o estudo
de uma ciência com características eminentemente empíricas, permeada pelo
paradigma da ciência natural (MARTYNKEWICZ, 2005). Ao perceber este choque de
formação e ao mesmo tempo a permanência de Groddeck em seu esforço de se
formar médico, é possível dividir este período de estudo em duas etapas. Uma
primeira, na qual ocorre um encontro entre a formação e os interesses anteriores de
Groddeck com esse modelo de medicina, tal como ensinado na Alemanha, encontro
que, apesar das turbulências que causam, não o impedem de continuar estudando.
E uma segunda etapa, que se inicia em torno da metade de seu percurso
acadêmico, e que corresponde ao seu encontro com Schweninger.

3. Primeira Etapa da Formação de Groddeck em Medicina

Neste momento se faz necessário interromper a biografia de Groddeck para


descrever o método de ensino da medicina da sua época e que terá influência em
sua prática clínica e em sua construção teórica.
Dois espaços situados em cidades diferentes, com funções específicas e que
de alguma maneira se complementam irão caracterizar e definir o estilo de medicina
do século XIX: de um lado o hospital, principalmente os grandes hospitais públicos
em Paris, e de outro o laboratório14, em Berlim.
Para a escola Parisiense, o hospital era o ponto central para a investigação
médica: a variedade e a diversidade em termos de material clínico eram
absolutamente insuperáveis. Em torno desse envolvimento com a pesquisa, os
médicos de Paris valorizaram e se aprofundaram em recursos e precisão diagnóstica

14
. O molde para a ciência laboratorial foi criado no Instituto de Química de Justus von Liebig, na Universidade
de Giessen.
66

e, por extensão, pouco valor deram à terapêutica. É possível falar de uma atitude
médica, que tem um tom até certo ponto fatalista, chamada de “niilismo terapêutico”
e que segundo Roy Porter se define como a capacidade da medicina [...] em
compreender as doenças de que as pessoas morriam, mas não conseguir impedi-las
de morrer. (PORTER, 2004, p. 57). A atitude dos médicos para com as
possibilidades terapêuticas e curativas disponíveis nessa época pode ser ilustrada
pela afirmação, com a dose certa de ironia, feita por Oliver Wendell Holmes, ao
escrever, em 1891, seus Medical Essays:

Excetue-se o ópio [...], excetuem-se alguns medicamentos específicos [...],


excetue-se o vinho, que é um alimento, e os vapores que produzem o
milagre da anestesia, e creio firmemente que, se toda a matéria médica, tal
como é hoje usada, fosse atirada no fundo do mar, seria muito melhor para
a humanidade – e muito pior para os peixes. (PORTER, 2004, p. 125)

A respeito do papel do hospital como um centro de pesquisa por excelência e


não apenas como um espaço de caridade, assistência e convalescença, podemos
ler em Roy Porter:

15
[...] A nova medicina anátomo-clínica, que teve em Laënnec seu pioneiro
16
em Paris no Hôpital Necker, e Louis, no Hôtel Dieu, foi produto de
gigantescos hospitais públicos em que pesquisadores e alunos podiam
adquirir abundante experiência direta, tendo uma participação ativa. A
“clínica” (como passou a ser chamada essa medicina hospitalar) tornou-se
axial na medicina. Montaram-se instalações hospitalares para a realização
de exames post-mortem, que correlacionaram a patologia dos vivos com as
manifestações internas depois da morte. A observação em massa dos
pacientes permitiu que as doenças fossem identificadas ontologicamente
como entidades independentes, em vez de serem singulares em cada
caso, e a estatística criou perfis representativos das moléstias. Assim, além
de cuidar dos enfermos, o hospital oitocentista transformou-se no lugar por
excelência em que a doença podia ser exibida aos estudantes, no que se
converteu numa ronda padronizada dos pavilhões: sendo casos de
caridade, os pacientes não podiam reclamar. Além disso, os necrotérios
eram um local perfeito para preparar os estudantes e realizar pesquisas.
(Porter, 2004, p.175). [...] Assim, para Louis e seus colegas, a medicina
clínica era uma ciência da observação, a ser aprendida nos pavilhões
hospitalares e nos necrotérios, através da anotação e da explicação dos
fatos. A formação médica devia ser uma disciplina da explicação dos
aspectos visuais, dos sons e dos odores da doença – uma educação dos
sentidos. O julgamento clínico, verdadeiro ofício do médico, estava na

15
. René Théophile Hyacinthe Laënnec (1781 – 1826): inventor, em 1813, do estetoscópio, que era, e foi,
durante muito tempo, a grande inovação diagnóstica até por volta de 1895 quando se dá a descoberta do Raio X.
16
. Pierre Louis, que publicou, em 1834, Ensaios sobre a instrução clínica, nos quais estabelece os princípios do
que seria a nova medicina hospitalar. “[...] Este afirmou que os sintomas (isto é, o que o paciente sentia) tinham
um valor clínico secundário; muito mais importantes eram os sinais (o que o exame clínico constatava). Com
base nesses sinais, era possível determinar as lesões dos órgãos enfermos – que eram os guias mais objetivos
para identificar a doença, fazer prognósticos e sempre que possível, conceber remédios”. (PORTER, 2004, p. 99)
67

interpretação arguta do que os sentidos tarimbados percebiam. (PORTER


2004, p. 99-100).

Em resumo, a contribuição desse grupo de médicos estabelecidos em Paris


foi estabelecer o conceito de que: “[...] as doenças eram entidades distintas – coisas
reais – e ensinou que os estados patológicos eram qualitativamente diferentes dos
estados normais. Isto é conhecido como teoria ontológica da doença”. (PORTER,
2004, p.100)
Mas nem tudo em Paris revelava concordância e obediência a essa visão. Um
médico, F.J.V.Broussais, criticou veementemente esta perspectiva dogmática sobre
o que a doença tinha de específico e esse explícito desânimo terapêutico. Para ele,
a doença: “[...] não era, fundamental e qualitativamente, diferente da saúde;
instalava-se, ao contrário, quando as funções normais desviavam-se de seu curso
correto”. (PORTER, 2004, p.100)
Esse ponto de vista, mais tarde, vai influenciar um médico patologista alemão
que participa, de certa maneira, como médico e como pessoa da biografia de
Groddeck: Rudolf Virchow.
Simultaneamente ao hospital, surgiu uma outra instituição devotada à
pesquisa, que por suas características e condições próprias, vai rivalizar com o
hospital: o laboratório. Enquanto o hospital era o espaço adequado para as
observações, o laboratório era o espaço certo para a experimentação controlada e
sistemática. Uma área de investigação importante foi a Fisiologia que:

[...] atingiu sua maioridade, como disciplina experimental de status superior.


Seu pioneiro foi Johannes Muller, professor de fisiologia e anatomia em
Berlim a partir de 1833. [...] foi um professor inspirador, e seus alunos –
Theodor Schwann, Hermann von Helmholtz, Emil Du Bois-Reymond, Karl
Ludwig, Ernst Brücke, Jacob Henle, Rudolf Virchow e muitos outros –
tornaram-se os dirigentes da pesquisa científica e médica no mundo
alemão e ganharam fama internacional. (PORTER, 2004, p. 103)

Como consequência dessas pesquisas, Helmholtz, Du Bois-Reymond, Ludwig


e Brücke publicaram em 1847 um manifesto:

[...] proclamando que a meta da fisiologia era explicar reducionisticamente


todos os fenômenos vitais, em termos de leis físicas e químicas. Com esse
compromisso com o naturalismo científico, a fisiologia experimental visava,
no dizer de Ludwig, compreender as funções “a partir das condições
68

elementares inerentes ao próprio organismo” – determinar qual era a


matéria da vida e de que modo ela se organizava. (PORTER, 2004, p.103)

A fisiologia experimental vem a ser estabelecida como o modelo científico


básico do século XIX, influenciando também as pesquisas no campo da Patologia
Celular e da Bacteriologia.

Com a fisiologia científica nasce um novo paradigma que se impõe sobre o


conceito vitalista dominante no início do século XIX e sob a influência do
naturalismo romântico de Friedrich Wilhelm Schelling. A fisiologia inspirada
na filosofia da natureza de Schelling postulava a unidade da natureza e do
espírito, indagava o conceito de vida e refutava qualquer descrição
fisiológica isolada de um fenômeno singular. A doença não era considerada
como dano localizado, mas como um desequilíbrio na pessoa ou entre o
indivíduo e o ambiente. A fisiologia científica, nascida em torno de 1820,
colocava os fundamentos para uma nova formulação. Du Bois, Brücke,
Helmholtz e Ludwig consideravam o homem como máquina bioquímica
complexa. Em 1842 escreve numa carta: “Brücke e eu fizemos uma
promessa solenemente de fazer valer a verdade segundo a qual no
organismo nenhuma outra força é ativa, senão a simples força físico-
química”. Trata-se, como mostra a citação, de uma aliança orgulhosa de
haver superado a estupidez romântica da especulação com dados
empíricos. No período da industrialização e da fundação do império a
fisiologia científica não é somente um método de indagação, mas também
como diz Siegfried Bernfeld, uma “Weltanschauung” (MARTYNKEWICZ,
17
2005, p. 93)

Como foi dito anteriormente, um dos discípulos de Johannes Muller foi Rudolf
Virchow, considerado o mais criativo dos pesquisadores médicos alemães. Virchow
é conhecido, entre outros resultados, pela sua máxima Omnis cellula e cellula (todas
as células provêm de células):

[...] Em suas mãos a teoria celular ganhou a reputação de ter um enorme


poder explicativo com respeito a eventos biológicos como a fecundação e o
crescimento e a eventos patológicos, como, por exemplo, a origem do pus
nas inflamações. O câncer, demonstrou Virchow brilhantemente, surgia de
mudanças anormais nas células, que então se multiplicavam de maneira
descontrolada através da divisão (metástase). No estudo das células

17
. Con la fisiologia scientifica nasce un nuovo paradigma che se impone sui concetti vitalistici dominanti
all’inizio del XIX secolo e sull’influsso del naturalismo romantico di Friedrich Wilhelm Schelling. La fisiologia
ispirata alla filosofia della natura di Schelling postulava l’unita di natura e spirito, indagava il concetto di vita e
rifiutava qualsiasi descrizione fisiologica isolata dei singoli fenomeni. La malattia non veniva spiegata con un
danno localizzato, bensi con uno squilibrio nella persona o tra l’individuo e l’ambiente. La fisiologia scientifica,
natta attorno al 1820, poneva le basi per nuove concezioni. Du Bois, Brücke, Helmholtz e Ludwig videro
nell’uomo una macchina bioquimica complessa. Du Bois-Reymond nel 1842 scrisse in una lettera: “Brücke e io
siamo promessi solennemente di far valere la verità secondo la quale nell’organismo nessun’altra forza è attiva,
se non le semplici forze fisico-chimiche”. Si tratta, come mostra la citazione, di un’alleanza orgogliosa di aver
superato le stupidaggini romantiche della speculazione con dati empirici. Nel periodo dell’industrializzazione e
della fondazione dell’imperio la fisiologia scientifica non è solo un metodo di indagine, bensi, come dice
Siegfried Bernfeld, una “Weltansschauung”.
69

encontrava-se a chave para a compreensão das doenças. Assim, Virchow


defendeu uma concepção interna da doença; por essa razão, em parte, ele
veio depois a suspeitar da bacteriologia pasteuriana, a qual considerava
muito superficial, por ela ver a doença como sendo de causa
essencialmente externa. (PORTER, 2004, p. 105).

Virchow está presente, de certa maneira, na biografia de Groddeck, não só


pelas dificuldades encontradas por ele no estudo da anatomia patológica:

[...] Assim, minha mãe entrou em contato com a sociedade bom-tom de


Berlim e soube angariar prestígio. Entre outros, Rudolf Virchow foi um dos
seus admiradores. Quando mais tarde, fui reprovado nos exames estaduais
de medicina por Virchow, por falta de conhecimento em anatomia
patológica, tentei atribuir este fato à atitude pouco amável da minha mãe
para com ele, uma tolice vaidosa que repeti muitas vezes em outras
ocasiões e que ainda repito de tempos em tempos quando falho em
alguma coisa por minha própria negligência. (GRODDECK 1929, 1994, p.
328)

Influenciou essa postura também o fato do nome de Virchow desde muito cedo estar
mencionado à Groddeck de uma forma muito negativa, seja pela posição que ele
assume, contrária à nomeação de Schweninger como médico do Charité,18 como
também pelas opiniões contrárias à Virchow emitidas pelo seu pai, não só em
relação aos seus métodos de cura como também por suas opiniões políticas.
Retornando à bio - bibliografia de Groddeck, será dentro deste contexto de
pesquisas, descobertas, materialismo científico, primazia do espírito reducionista, e
franca oposição em relação à filosofia especulativa do romantismo, que acontecerá a
primeira fase do processo de formação profissional, na área médica, e também na
esfera pessoal de Groddeck.
Neste momento, cabe citar a precisa observação feita pelo biógrafo
Martynkewicz:

Groddeck é entusiasmado em aprender a profissão de médico, mas quanto


mais amplia o seu conhecimento médico, tanto mais lhe resulta difícil
pensar de praticá-la um dia. A imagem que tem do médico e da medicina
foi influenciada pelo pai e pelas ideias românticas e vitalísticas. [...] A
cientifização da formação e a estandartização do nível profissional foram
introduzidos no início dos Oitocentos, mas se afirmaram só na segunda
metade do século. Em 1861 o estudo da física foi inserido no curso de
medicina em lugar da filosofia. O paradigma da ciência natural se sobrepõe
ao filosófico. A linguagem do médico é separada daquela da filosofia. Isso
é visível, não apenas, no encontro entre o médico e o paciente: a pergunta
do médico não é mais: “O que tens?”, mas sim “O que te faz mal?”. A

18
. Hospital da Universidade de Berlim.
70

experiência e o conhecimento médico foram reduzidos a um encontro,


descrever empiricamente, qual sintoma, lesão ou órgão doente. Porque o
fenômeno da doença aparece em todas as suas ligações e combinações, e
o médico deve libertar-se dos sinais diretamente visíveis na superfície e
seguir as pistas da doença além da sua mera manifestação. O médico na
tradição hipocrática era um tipo de adivinho que se aproximava do corpo à
distância e o observava como uma trama, se afastando do visível e
penetrando na profundidade do corpo. Muda a angulação. [...] O saber
ordenado na base da ordenação, classificação ou experimento científico
para decifrar a doença devia sempre abstrair-se do processo vital do
indivíduo. Neste caso, Groddeck se encontra em dificuldade: como a maior
parte dos estudantes de medicina daquele tempo ele também chegou à
universidade com uma formação humanística e que não era muito
adaptada às necessidades da disciplina. Havia aprendido a interpretar, a
abrir e a descrever, mas não a separar, a dividir e a fixar. O olhar
anatômico, que coloca a verdade da doença no corpo morto, teve sobre ele
um efeito repugnante. Ele duvida desta verdade que se manifesta somente
na morte, no cadáver. Só com grande fadiga consegue assimilar o
argumento da lesão e a seguir o programa. (MARTYNKEWICZ, 2005, p.
19
98, 99)

4. Segunda Etapa da Formação Médica de Groddeck: Schweninger

Mas esta situação de descompasso entre a medicina mecanicista,


reducionista ensinada na Faculdade de Medicina e a formação clássica e romântica
de Georg Groddeck não perdura e sofrerá uma mudança quando, na metade do
percurso acadêmico, Groddeck encontra Schweninger, que será o responsável pela
segunda fase de sua formação pessoal como médico.

19
. Groddeck è entusiasta di aprendere la professione di medico, ma quanto più amplia le sue conoscenze
mediche, tanto più gli risulta difficile pensare di praticarle un giorno. L’immagine che ha del medico e della
medicina è stata influenzata dal padre e da concezioni romantiche e vitalistiche. [...] La scientifizzazione della
formazione e la standardizzazione del livello professionale furono introdotti all’inizio dell’Ottocento, ma si
affermarono solo nella seconda metá del secolo. Nel 1861 lo studio della fisica venne inserito nel corso di studi
di medicina al posto della filosofia. Il paradigma delle scienze naturali è subentrato a quello filosofico. Il
linguagio del medico si è separato da questo del filosofo. Ciò è visible, non da ultimo, anche nel colloquio tra
medico e paziente: la doamnda del medico non è piu: “Che cos’ha?, bensì “Dove le fa male?” L’esperienza e la
conoscenza medica sono ridotte a un rapporto, descrivibile empiricamente, tra sintomi, lesioni e organi malati.
Perché il fenomeno della malattia appaia in tutti i suoi collegamenti e combinazioni, il medico deve liberarse dai
segni diretamente visibili alla superficie e seguire le tracce della malattia oltre la sua mera manifestazione. Se il
medico nella tradizioen ippocratica era una sorta di indovino che si avvicianava al corpo da lontano e lo
osservava come una trama, ora si allontana dal visible e penetra nella profonditá del corpo. Cambia
l’angolazione. [...] Il sapere ordinato sulla base di annotazioni, classificazioni o esperimenti scientifici nel
decifrare la malattia doveva sempre astrarre dai processi vitali, dall’individuo. In questo Groddeck si trova in
difficoltá: come la maggior parte degli studenti di medicina di quel tempo è arrivato all’università con una
formazione umanistica non più adatta alle necessità della disciplina. Aveva imparato a interpretare, a spiegare e a
descrivere, ma non a separare,a scindere e a fissare. Lo sguardo anatomico, che trova la verità della malattia nel
corpo morto, su di lui ha un effetto ripugnante. Egli diffida di questa verità che si manifesta solamente nella
morte, nel cadavere. Solo con grande fatica riesce ad assimilare gli argomenti delle lezioni e a seguire il
programma.
71

Schweninger é de suma importância e influência na maneira como Groddeck irá


conduzir sua carreira como médico, e não menos importante para a construção de
sua teoria psicossomática. Portanto, sua biografia merece uma breve referência.
Ernst Schweninger nasceu em 15 de junho de 1850 e faleceu em 13 de
janeiro de 1924. No texto escrito por Groddeck em sua homenagem e publicado pela
primeira vez em 192520, ele é apresentado como o criador da ciência médica:

[...] Ciência não é erudição, não é saber, mas aquilo que o saber cria; é o
alicerce imprescindível sobre o qual se constroem saber, conhecimento e
talento. E um homem de ciência é apenas aquele que lança tal alicerce ou,
pelo menos, trabalha nesse alicerce. Quem compreende este sentido da
palavra ciência não confunde o saber médico, a soma dos conhecimentos
anatômicos, fisiológicos, diagnósticos ou terapêuticos, com ciência médica.
Quando alguém é chamado um homem de ciência médica, isto significa:
esse homem descobriu a essência do pensamento e do agir médico,
estudou conscienciosamente a base e o terreno e, de acordo com esse
terreno e conforme a finalidade do ser médico, a partir do seu espírito e
pensamento traçou um plano de construção e lançou os fundamentos aos
quais poderiam ater-se os mestres de obras, até que seja imaginado um
plano novo, verdadeira ou aparentemente melhor. O essencial para o
criador da ciência médica é, portanto, o conhecimento da finalidade do
médico e o pensamento e o trabalho independentes para esta finalidade e,
finalmente, o que é mais importante, o acerto desse trabalho (GRODDECK
1925, 1994, p. 139, 140).

Schweninger lembrado, na maioria das vezes por ter sido o médico de


Bismarck. O nome dele não está associado a nenhuma descoberta científica
significativa e dentro da história da medicina normalmente seu nome é ignorado ou
pouco mencionado e isto se deve principalmente ao fato de Schweninger pouco ter
produzido teoricamente; somente em 1906 publicou sua obra maior Der Arzt, livro
que enfoca a questão da relação médico-paciente. Ao escrever sobre a relevância
histórica e a lembrança do nome de Schweninger, Jacquy Chemouni faz a seguinte
observação em uma nota de rodapé:

Atualmente o nome de Schweninger parece totalmente desconhecido. As


grandes enciclopédias francesas, inglesas ou americanas não o
mencionam. Nós encontramos, na Der Grosse Brockhaus in Zwölf Banden
(1980) três ou quatro linhas indicando, além da sua data de nascimento e
do seu falecimento, sua qualidade de médico de Bismarck. Ao contrário, a
grande Encyclopédie Française, do fim do século passado consagrou em
seu tomo 29 linhas a Schweninger: “Schweninger, Ernst: médico alemão
contemporâneo, nascido em Freistadt (Baviera) em 15 de junho de 1850.
Assistente de Buhl em Munique em 1870, torna-se professor titular em
1875. Ele conta com alguns favores especiais de Bismarck, e foi nomeado,
graças a ele, professor da Universidade de Berlim em 1884, depois

20
. Die Arché, I, 5 (10 de julho de 1925) em GRODDECK, 1994, p. 139-142.
72

membro extraordinário do escritório de saúde, e diretor da clínica


dermatológica no Hospital Charité. Em 1886, criou em Heidelberg um
sanatório especial para a cura da obesidade” [...] Quanto aos historiadores
da medicina, as diferentes obras consultadas ignoram totalmente o nome
21
de Schweninger. (CHEMOUNI, 1984, p. 37, nota 1)

O nome de Schweninger não é mencionado nenhuma vez na obra de Freud,


nem é mencionado diretamente na correspondência entre Freud e Groddeck: [...] Na
sua obra, Freud jamais faz menção a Schweninger, com exceção do «protocolo
original» do Homem dos Ratos. Neste texto, Freud relata um sonho de seu paciente
no qual estão presentes Schweninger e Harden. (CHEMOUNI, 1984, p. 42)22
O que pensa Freud a respeito de Schweninger pode ser lido na carta que
escreve a Fliess, em 6 de fevereiro de 1898: “[...] A apresentação de Schweninger,
aqui no circo dos tagarelas, foi um verdadeiro desastre! Não compareci, é claro; em
vez disso, presenteei-me com uma audição do nosso velho amigo Mark Twain, em
pessoa, o que foi um deleite absoluto.” (FREUD, 1986, p. 300) VII.
Groddeck cita duas frases ditas constantemente por Schweninger que o
marcaram profundamente e que, segundo ele, definiam o verdadeiro espírito do
médico: “o médico trata, a natureza cura”.23

[...] Sei que a máxima “Natura sanat, medicus curat” não foi descoberta por
Schweninger. Mas Schweninger foi o primeiro e, durante dezenas de anos,
o único médico moderno a reconhecê-la como ponto de partida, barreira e
objetivo da ciência médica. (GRODDECK 1925, 1994, p. 141)

21
. Aujourd’hui, le nom de Schweninger semble totalement inconnu. Les grandes encyclopédies française,
anglaises ou americaines ne le mentionnet ps. Tout au plus trouvons-nous, dans le Der grosse Brockhaus in
zwölf Banden (1980), trois ou quatre lignes indiquant, outra sa date de naissance et celle de son décés, sa qualité
de médecin de Bismarck. Par contre, la grande Encyclopédie française, de la fin du siécle dernier probablement,
consacre dans son tome 29 plus ligne à Schweninger : » Schweninger Ernst : médecin allemand contemporain,
né à Freistadt (Bavière) 15 juin 1850. Assistant de Buhl à Munich en 1870, il devint privat-docent en 1875. Il a
joui de la faveur spéciale de Bismarck, et a été nommé, grâce à lui, professeur à Université de Berlin en 1884,
puis membre extraordinaire du bureau de santé, et directeur de la clinique dermtologique à l’hôpital de la
Charité. En 1886, il a créé à Heidelberg un sanatorium spécial pour la cure de l’obésité d’aprés. [ ... ] Quant aux
histoires de la médecine, les différents ouvrages consultés ignorent totalement le nom de Schweninger.
22
Dans son ouvre, Freud ne fit jamais mention de Schweninger, sauf dans le « protocole original » de L’homme
aux rats ». Dans ce texte Freud rapporte une rêve de son patient dans lequel celui-ci était à la fois Schweninger et
Harden. (CHEMOUNI, 1984, p. 42)
23
. De fato, esta sentença é muito antiga, formulada inicialmente em latim arcaico conforme podemos ler no
Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas. O seu autor, Renzo Tosi, ao comentar a sentença “Vis medicatrix
naturae” (“A força saneadora da natureza”) que de acordo com ele significa que a cura só é possível pela
capacidade natural de reação, escreve: [ ... ] Este conceito, porém, já se encontra em Hipócrates (por exemplo,
De fractoris 1,2); ainda goza de certa fama a medieval “Medicus curat, natura sanat” (“O médico cuida, a
natureza cura”) (TOSI, 2000, p. 353)
73

E, “não são as doenças, mas os doentes o objeto do tratamento médico”.


Groddeck considera essas duas frases dentro do rol dos saberes simples que
deveriam estar estabelecidos como verdades gerais, mas na realidade eram
totalmente desconhecidos por aqueles que praticam a ciência médica; eram
considerados saberes mortos e isto demandou de Schweninger um esforço lento e
duradouro para que estas “verdades básicas” fossem respeitadas na ciência:

[...] A luta que ele, no princípio, travou sozinho, escarnecido, odiado,


invejado, difamado por todos, foi decidida em seu favor; o edifício da
ciência cresce sobre esses alicerces, mas que nós pensamos de modo
diferente do que tentaram nos ensinar, vinte anos atrás, os professores de
ciência, muitas pessoas não sabem tão imperceptivelmente tudo
aconteceu; a maioria nem mesmo suspeita de que todos nós trabalhamos
cientificamente com a frase: “A natureza cura, o médico trata”. E quase
ninguém conhece o fato de que foi Schweninger quem semeou esta
semente, que hoje dá milhares de frutos. (GRODDECK 1925, 1994, p. 140)

Conforme foi dito anteriormente, um aspecto sempre ressaltado na história


profissional de Schweninger é a sua relação com a família Bismarck. Inicialmente
tratou com êxito o Conde Wilhelm von Bismarck e posteriormente, em 1881, tratou e
curou o Chanceler do Império, o Príncipe Bismarck, sendo por muito tempo o seu
médico pessoal. Com 35 anos, protegido pelo Chanceler, Schweninger tornou-se
professor da Universidade de Berlim e diretor do Departamento de Doenças da Pele
no Hospital Charité. Neste momento algumas perguntas são necessárias: o que foi
esse tratamento? De que sofria este paciente tão importante? Como se deu esse
desdobramento profissional e com que nível de facilidade ou dificuldade isso
ocorreu? As respostas para essas indagações vamos encontrar principalmente, mas
não só, nos escritos biográficos de Groddeck.
O relato de Groddeck sobre o tratamento de Bismarck é parcial e isto se deve,
em parte, a esta observação sobre a postura e a discrição de Schweninger:

(Schweninger) me contou alguma coisa sobre o caso Bismarck; uma coisa


dessa era muito rara, pois Schweninger era a própria discrição. Nos vinte e
cinco anos em que fui seu aluno predileto, não falou quase nada de suas
atividades junto a Bismarck, nunca disse também a mínima coisa que
estivesse fora do puramente médico. (GRODDECK 1929, 1994, p. 340)

E o que conta Groddeck, a respeito do que sabia sobre o atendimento de


Bismarck?
74

[...] A coisa se passou assim: através da observação incansável dos


hábitos de vida do Príncipe, Schweninger, havia curado Bismarck de uma
grave e perigosa doença, depois que cem médicos o tentaram inutilmente.
O próprio Bismarck disse à sua maneira pertinente como Schweninger o
conseguiu: “Até agora eu tratei de todos os médicos, o Senhor é o primeiro
que trata de mim”. (GRODDECK 1929, 1994, p. 333)

Em outro trecho do seu escrito biográfico, Groddeck apresenta mais um


detalhe a partir de um relato feito pelo próprio Schweninger:

[...] “Meu príncipe – Schweninger nunca se referia a Bismarck a não ser


com esta denominação – “estava acostumado a grandes refeições e
grande quantidade de líquidos, e como achavam que ele tinha câncer
quando o conheci, reforçam a sua tendência a comer e beber muito, em
vez de reprimi-la. O segredo do meu sucesso foi que lhe dei para comer
somente arenques salgados e contra a sede apenas a água que ele
mesmo pegava do poço. Sempre se afirmou que eu o fizera emagrecer.
Não é nada disso; ao contrário, com muito esforço conseguiu aumentar os
seus cem quilos. Portanto, apesar de toda a comida intensa, ele
emagreceu e, apesar de toda a fome, aumentou de peso. Não importa o
que o homem come, mas como utiliza o que come. Desde então, os
arenques de Bismarck viraram moda. Mas o que o Príncipe recebeu para
comer não eram aqueles arenques artísticos já preparados, mas simples
arenques salgados. (GRODDECK 1929, 1994, p. 341)

Por estas duas citações percebe-se que a interferência de Schweninger foi


quase que exclusivamente mudar a dieta e os hábitos alimentares do Príncipe, sem
que apareçam outras ações que definam o estilo Schweninger de atendimento.
Isto se torna mais claro na biografia de Groddeck, escrita por Carl M.
Grossman e Sylvia Grossman, onde detalhes mais claros são apresentados no
tratamento do Chanceler. Mas antes de seguir adiante, um comentário é necessário
a respeito da biografia escrita pelos Grossman. É o primeiro relato biográfico de
Groddeck - a sua edição original em inglês é de 1965 e posteriormente traduzido em
diversos idiomas - e, apesar da variedade e da riqueza das informações contidas,
não apresenta, pelo menos nas duas edições24 consultadas, a mínima referência
bibliográfica, não citando as suas fontes; o que se faz com que qualquer citação ou
referência a esta obra seja feita sob o signo da cautela. Podemos situar esta obra
em um espaço tênue e frágil entre uma biografia “ficcional” e uma biografia baseada

24
“El Psicoanalista Profano”, Fondo de Cultura Económica, México (1967); “L’analyste sauvage”, Press
Universitaires de France, Paris (1978).
75

em dados históricos e sustentada principalmente a partir de fontes primárias e


confiáveis. Somente uma biografia assim tem valor acadêmico. 25
Feito o reparo, os dois biógrafos no capítulo sobre Schweninger e apoiados
sobre uma biografia de Bismarck, escrita por Emil Ludwig, descrevem Schweninger
dessa forma:

[...] Agressivo, vulgar, áspero, barulhento, Schweninger ordenava com


freqüência estranhos tratamentos e o de Otto von Bismarck foi típico. Aos
68 anos, Bismarck se viu obrigado a retirar-se em sua propriedade no
campo “para restabelecer sua saúde”. Sua dieta, apesar da indigestão
crônica e de uma dezena de outros sintomas relacionados não era
precisamente a de um inválido. Emil Ludwig, em sua biografia de Bismarck,
descreve uma refeição na qual o chanceler comeu “livremente” sopa,
enguia, carne fria, lagostim, lagosta, carne defumada, presunto cru, carne
assada e pudim (o Chanceler se queixava, entre outras coisas, de falta de
apetite). Schweninger foi chamado à consulta e esteve de acordo com
outros médicos que, se não se fizesse algo imediatamente, Bismarck não
viveria seis meses; estava irritado e apático, sofria de dores de cabeça,
veias varicosas, insônia, cólica, inchaço das pernas e dores na cara.
Schweninger aceitou cuidar do paciente, porém não junto com outros
médicos; não seria responsável senão diante do próprio Bismarck.

Emil Ludwig descreve o procedimento:

Faz com que o chanceler se levante às oito da manhã para fazer exercícios
com pesos; durante todo o dia o paciente não deve comer senão arenques.
Quando Bismarck exclama: “Você deve estar completamente louco”,
Schweninger responde: “Muito bem, Alteza, será melhor que chame a um
veterinário. Dito isto Schweninger se vai. Este procedimento estabelece
seu poder sobre Bismarck, que se submete. Agora o doutor leva quinze
dias sem abandonar a casa de seu paciente. Os alimentos e a bebida, a
hora de levantar-se e de deitar-se, o trabalho e o sono, são
meticulosamente vigiados. Ao final deste período houve uma melhora
notável. Schweninger abandona a casa pela primeira vez. Neste momento,
o paciente ordena “uma porção tripla de creme”. Isto provoca uma violenta
gastralgia, seguida de icterícia e partida para Friedrischsruh. Ali o doutor
volta a vigiá-lo de perto e depois em Kissingen e Gastein não o deixa só
um dia. Depois de dois meses, o paciente está praticamente curado e
reconhece que pode voltar, rejuvenescido à fadiga do trabalho. Dominando
em vez de deixar-se dominar, Schweninger salva a vida de Bismarck.

Schweninger quase nunca empregava drogas, porém com freqüência


dietas estranhas. Propunha o exercício, a hidroterapia e a massagem. Não
subestimava a quarta arma que empregava o domínio absoluto, e a
utilizava conscientemente. Médicos excelentes haviam fracassado com
Bismarck porque se deixavam intimidar pelo paciente. Schweninger não se
deixava intimidar por nada. Porém nas escolas de medicina não se
fabricam autocratas: era difícil para ele ensinar seu método. Dava
seminários freqüentes com seus discípulos e prestava especial atenção
aos que considerava promissores. Discutiam sobre casos e formas de
tratamento, porém uma ou outra vez ficava óbvio que um médico não podia

25
. Para uma análise destes dois estilos de apresentação e o quanto estes estilos dificultam (ao criar lendas) ou
facilitam (ao situar o sujeito rigorosamente dentro do seu contexto histórico) o estudo criterioso de um autor, ver:
“Introduction: Biography, Fiction, History” (pg. 1-7) em Jung stripped bare by his biographers, even, Sonu
Shamdasani (Karnac Books, London, 2005).
76

só ter a aparência de autoridade; tinha que ter essa autoridade.


26
(GROSSMAN e GROSSMAN, 1967, p. 29 e 30)

Após o término do tratamento, com sucesso, acontecem os desdobramentos


em torno da carreira acadêmica de Schweninger. Groddeck relata e tece seus
comentários pessoais, sobre a forma como foi feita a nomeação do Doutor como
Professor da Universidade e como Diretor de Serviço no Hospital Charité.

[...] Depois de seu restabelecimento, Bismarck expressou o desejo de que


Schweninger permanecesse em Berlim e primeiro tentou amistosamente
conseguir para seu médico preferido um cargo de professor e uma clínica
através de decisão da faculdade de medicina. Teria sido muito fácil, pois
Schweninger era hábil em todas as ciências, se Bismarck não tivesse
tantos inimigos entre os eruditos da universidade, sobretudo se Virchow
não estivesse lá. [...] Mas a sua perícia ia no máximo a odiar Bismarck e a
opor-se a ele sempre que possível, e já que o Príncipe nunca soube tratar
com afabilidade os seus adversários querelantes, o erudito se enchera de
tanta amargura que se aproveitou com prazer da oportunidade de frustrar o
desejo ardente de Bismarck. Ele obstou, juntamente com um grande
número de presunçosos moralistas, uma decisão da faculdade em favor de
Schweninger. [...] Talvez Bismarck tivesse encontrado outro meio para
conseguir a posição para o genial salvador de sua vida; pois, na verdade,
Schweninger estaria muito mal na camarilha administrativa das
universidades alemães da época. Mas era teimoso, e o que não podia
obter por bem, agora forçava por mal. Por um ato autoritário, Schweninger

26
. [...] Agresivo, vulgar, áspero, ruidoso, Schweninger ordenaba con frecuencia extraños tratamientos, y el de
Otto Von Bismarck fue típico. A los 68 años, Bismarck se había visto obligado a retirarse a su propiedad en el
campo “para restablecer su salud”. Su dieta, a pesar de la indigestión crónica y de una docena de otros síntomas
relacionados, no era precisamente la de un inválido. Emil Ludwig, en su biografía de Bismarck, describe una
comida en la que el canciller enfermo comió “libremente” sopa, anguilas, carne fría, langostinos, langostas,
carne ahumada, jamón crudo, carne asada y budín (¡ El canciller se quejaba, entre otras cosas, de falta de apetito!
). Schweninger fue llamad a consulta y estuvo de acuerdo con otros médicos en que, si no se hacía algo
inmediatamente, Bismarck no viviria seis meses; estaba irritable y apático, sufría de dolores de cabeza, venas
varicosas, insomnio, cólico, hinchazón de las piernas y dolores en la cara. Schweninger aceptó encargarse del
paciente, pero no en consulta con otros médicos; no sería responsable sino ante el proprio Bismarck. Ludwig
describe el procedimiento:
Hace que el canciller se levante a las ocho de la mañana para hacer ejercicios con pesas; durante todo el día el
paciente no debe comer sino arenques. Cuando Bismarck exclama:”!Usted debe de estar completamente loco!”,
Schweninger responde: “Muy bien, Alteza, será mejor que llame a un veterinário”. Dicho esto, Schweninger se
va. Este procedimiento estabelece su poder sobre Bismarck, quien se somete. Ahora el doctor lleva quince días
sin abandonar la casa de su paciente. Los alimentos y la bebida, la hora de levantarse y de acostarse, el trabalho y
el sueño, son meticulosamente vigilados. Al final deste período ha habido una notable mejoria. Schweninger
abandona la casa por primera vez. Al punto, el paciente ordena una “tripla porción de crema”. Se la produce una
violenta gastralgia, seguida de icterícia y partida hacia Friedrischsruth. Allí el doctor vuelve a vigilarlo de cerca
y después en Kissingen y Gastein no lo deja solo ni un dia. Después de un par de meses, el paciente está
práticamente curado y reconoce que puede volver, rejuvenecido a la fatiga del trabajo. Dominando en vez de
dejarse dominar, Schweninger le salva la vida a Bismarck.
Schweninger casi nunca empleaba drogas, pero si con frecuencia dietas extrañas. Propugnaba el ejercicio, la
hidroterapia y el masaje. No subestimaba la cuarta arma que empleaba, el dominio absoluto, y la utilizaba
conscientemente. Médicos excelentes habían fracasados con Bismarck porque se dejaban intimidar por el
paciente. Schweninger no se dejaba intimidar por nadie. Pero en las escuelas de medicina no se fabrican
autócratas; le resultaba difícil enseñar su método. Celebraba seminários frecuentes con sus discípulos y prestaba
especial atención a los que consideraba prometedores. Discutían sobre casos y formas de tratamiento, pero una y
otra vez resultaba obvio que un médico no podía sólo tener la aparencia de autoridade: tenia que tener esa
autoridad.
77

recebeu o cargo de professor de doenças dermatológicas e uma clínica


para doentes de pele. (GRODDECK 1929, 1994, p. 333 e 334)

Retornando ao relato a respeito do tratamento de Bismarck, vamos perceber


que Schweninger concentra-se naquele aspecto menos explorado da medicina do
século XIX, ou seja, a questão da ênfase na terapia. Com isso, ele se opõe aos
grandes projetos de uma medicina científica, conforme vimos anteriormente e se
move em direção a um modelo hipocrático, que, segundo ele, deveria ser o fio
condutor da prática médica.

[...] Ele promove uma medicina da expectativa. O médico não deve intervir
no processo de cura natural, mas só sustentar e reforçar as defesas. Em
cada doença existe um determinismo que ao se retirar a ação médica pode
levar à morte ou à cura [...] Ele rejeita a procura da causa oculta de uma
doença; ao centro de sua teoria não busca aquilo que produz a doença,
mas aquilo que o libera dela. Não se interessa como respira uma pessoa e
que coisa significa respirar bem ou normalmente, a ele interessa como
ajudar e aliviar o sofrimento daquele que respira mal. Reprovará a medicina
científica de estudar a gênesis da doença abstraindo-a do processo vital.
27
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 101, 102)

Enquanto isso Groddeck continua normalmente seu curso de medicina, agora


sob a influência direta de Schweninger. Torna-se admirador fiel desse médico, não
só pela sua capacidade, como também pelos seus modos e suas atitudes:

[...] Peculiar nisto é seu carisma, que sobre Groddeck age como uma
vontade inflexível, na qual, porém ele não vê algum constrangimento, mas
uma alta exaltação. Agora tem uma tarefa: se tornar como Schweninger. E
partindo deste desejo estabelece suas próprias opiniões a respeito da
28
medicina. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 101)

E a medicina na qual Groddeck busca a sua inspiração e a sua aspiração, é


aquela entendida e praticada como a arte da compreensão da pessoa doente, e

27
. [...] Egli promove uma medicina dell’attesa. Il medico nao deve intervenire nei processi di cura naturale,
bensi solo sostenere e rinforzare le difese. In ogni malattia c’è un determinismo che si sottrae all’azione medica e
porta alla morte o alla guarigione. [...] Egli respinge la ricerca delle cause nascoste di una malattia; al centro
della su teoria non vi è ciò che produce la malattia, bensi ciò che libera da essa. Non chiede come repira una
persona e che cosa significhi respirare bene o normalmente, alui interessa come aiutare e alleviare la sofrenza di
chi respira male. Rimprovera alla medicina scientifica di studiare la genesi delle malattie astraendole dai processi
vitale.
28
. [...] Proprio in uesto è il suo carisma, che su Groddeck agisce come una volontà inflessibile, nella quale però
egli non vede alcuna costrizione, bensì un’autoesaltazione. Ora ha uno scopo: vuole diventare come
Schweninger. E partendo da questo desiderio fa proprie anche le sue opinioni riguardo alla medicina.
78

para isso deve possuir um conhecimento acurado da pessoa sadia e da vida; um


dos primeiros deveres do médico, de acordo com Schweninger é: “[...] saber da vida
tudo aquilo que é dado saber em seu próprio tempo (SCHWENINGER in
MARTYNKEWICZ, 2005, p. 102) 29.
Para esse médico, a doença não deve ser considerada como tendo um
significado em si mesma, distante do sujeito mas o seu nexo só pode ser encontrado
e compreendido dentro da complexidade que é o sujeito e este dentro daquilo que
caracteriza sua vida: como se alimenta, respira, come, descansa, trabalha. O
método de trabalho é o de procurar relacionar tudo, ao invés de isolar e separar. É
estender e aplicar à medicina e, por extensão, ao trabalho do médico, a noção de
que o todo é maior e diferente da soma das suas partes.

5. Tese de Doutorado

Em 1889, Schweninger oferece como sugestão a Groddeck uma pesquisa


com um novo remédio para as doenças da pele, a Hidroxilamina, e que serviria
como tema para seu trabalho de doutoramento. A sugestão de Schweninger tem
uma conotação no mínimo curiosa, principalmente em épocas de pesquisas e êxitos
científicos:

[...] Schweninger, porém não esperava de seu formando resultados


necessariamente positivos, mas uma documentação detalhada da
completa ineficácia do remédio. Groddeck deve escrever uma crítica
destrutiva sobre o remédio e enfrenta com prazer esta tarefa. [...] Tanto o
orientador quanto o formando, com os resultados do trabalho visavam um
confronto com alguma autoridade importante do grupo de médicos que
estavam sugerindo fartamente este remédio. A pesquisa sobre a
hidroxilamina deve ser a ocasião para criticar em geral a produção e
30
difusão desregrada de remédios. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 105)

Essa pesquisa dá origem ao trabalho Uber das Hydroxylamin und seine


Verwendung in der Therapie der Hautkrankheiten (“Sobre a Hidroxilamina e sua

29
. [...] sapere della vita tutto cio è dato sapere nel proprio tempo.
30
. [...] Schweninger però non se aspetta dal suo laureando risultati necessariamente positivi, bensi una
documentazione dettagliata della completa inefficacia del farmaco. Groddeck deve scrivere una critica distruttiva
sul farmaco e afronta piacere uest’impresa. [...] Tanto il relatore uanto il laureando con i risultati del lavoro
mirano a un confronto con alcune autorità importanti del corpo dei medici che hanno consigliato caldamente
questo farmaco. Le ricerche sull’idrossilamina devo essere l’occasione per criticare in generale la produzione e
la diffusione scondirate di farmaci.
79

aplicação no tratamento de enfermidades cutâneas”), no qual Groddeck escreve


uma crítica destrutiva a respeito deste remédio e executa esta tarefa com uma certa
dose de prazer, como se pode ler no trecho a seguir:

“Executei escrupulosamente, com grande afinco, todos os experimentos,


recorrendo ao pincelamento, aplicação do ungüento e sabão, e aqui
percebia, alguma esperança de não obter resultados positivos. Quando
percebi que não havia me enganado me propus a estender o protocolo,
que de um lado reportava um conjunto escarnecedor dos insucessos, e de
outro, ao contrário, oferecia uma visão harmônica bem exitosa da teoria de
Schweninger”. (Texto de Groddeck citado em: MARTYNKEWICZ, 2005, p.
31
105) .

Além desta proposta crítica a respeito do medicamento em si, o trabalho


também visava uma avaliação rigorosa quanto à produção e difusão considerável e
exagerada de remédios. Sobre esta questão, Groddeck escreve:

“A minha recusa na comparação do uso da hidroxilamina pode parecer de


certo modo exagerada, acerca dos resultados negativos. Há, porém, um
significado particular: desejo de fato sustentar um bom exemplo de como
alguns novos remédios são indicados prontamente, sem se efetuar o
controle necessário. Os colegas que introduziram o novo remédio
acreditam poder contribuir deste modo com o progresso da nossa arte?
Talvez desta maneira estejam acrescentando um nome à farmacopéia,
para o horror de todos os candidatos ao exame de habilitação, mas não
fornecem alguma vantagem à medicina”. (Texto de Groddeck citado
32
em:MARTYNKEWICZ, 2005, p. 105 e 106) .

6. Morte da mãe de Groddeck e o seu casamento com Else.

Após o término dos estudos acadêmicos, Groddeck começa, a partir de 15 de


fevereiro de 1890, a trabalhar como médico assistente de Schweninger no Charité e
publica um resumo da sua tese com o título Das Hydoxylamin und die
Schweningerkur. Em 8 de junho de 1891 presta prova e recebe a habilitação como
médico. Após a conclusão do curso, e como parte do pagamento pelo ensino
gratuito, Groddeck, como todos os alunos, deve servir ao exército como médico
31
. Eseguii scrupolosamente, con grande gioia, tutti gli esperimenti, ricorrendo a spennellature, aplicazioni di
unguenti e saponi, e così via, nella speranza di non ottenere risultati positivi. Quando mi accorsi che non mi ero
sbagliato, mi accinsi a stendere il protocoll, che da una parte riportava un elenco beffardo degli insuccessi,
dall’altra, invece, offriva una visione d’insieme ben riuscita delle teorie di Schweninger.
32
. Il mio rifiuto Nei confronti dell’utilizzo dell’idrossilamina forse a ualcuno sembera esagerato, rispetto ai
risultati negativi. Ha però un significato particolare: volevo infatti portare un esempio di come alcuni nuovi
farmaci vengono consigliati troppo in fretta, senza effetuare i necessari controli. I colleghi che introducono nuovi
farmaci credono forse di contribuire in uesto modo al progresso della nostra arte? Forse in uesto modo essi
aggiungono un nome alla farmacopes, per il terrore di tutti i candidati all’esame di Stato, ma nos apportano alcun
vantaggio alla medicina.
80

militar por um período de oito anos e isso ocorre a partir de 28 de junho de 1891
quando é designado para o Regimento de Infantaria Real em Brandenburgo. Sua ida
para o exército faz com que Groddeck interrompa seu trabalho como médico
assistente de Schweninger.
Neste período de trabalho como oficial médico - que vai de 28 de junho de
1891 até março de 1897 - além das obras escritas, dois fatos pessoais relevantes e
suas implicações posteriores marcam esta etapa da vida de Groddeck. Antes de
mencionar os acontecimentos, é importante salientar que esse período da sua vida
militar não é contínuo, tendo uma interrupção de um ano, a partir de maio de 1896,
por conta de uma dispensa, quando Groddeck volta a trabalhar como assistente de
Schweninger em sua clínica em Berlim. Uma outra observação é que neste tempo
de vida militar, que se inicia no Regimento de Infantaria Real em Brandenburgo,
Groddeck é transferido 3 vezes: inicialmente para Ueckermunde (1892) onde vai
supervisionar a higiene das embarcações fluviais; posteriormente volta para
Brandenburgo, e por último, é transferido para a escola de formação de Oficiais em
Weilburg33 (1894), onde permanece até obter a dispensa, por motivos de saúde, em
março de 1897. Sobre a sua permanência em WeilburgVIII e de uma dificuldade muito
específica, Groddeck escreverá:

[...] Ainda relativamente jovem, eu obtivera um posto independente na


Escola de Suboficiais de Weilburg, o que eu podia e devia considerar uma
distinção. Tinha pouca coisa a fazer, esse pouco eu podia organizar como
quisesse, era adulado por jovens e velhos, por patentes altas e baixas,
enfim, tudo poderia ter sido bom, se não fossem os relatórios. Na minha
guarnição anterior, como se eu fosse totalmente incapaz de desempenhar
essa tarefa, deixei-a a cargo do escriturário do hospital militar. Mas, em
Weilburg, o titular desse posto era mais bobo do que eu. Não consegui
uma única vez fazer um relatório sem erros, sempre recebia de volta com o
amável pedido para corrigi-los. (Meu superior) me transferiu, por algumas
semanas, para Frankfurt e encarregou um antigo médico do quartel de me
introduzir nos segredos dos relatórios militares. O plano falhou. [...] E
continua assim até hoje, e se muitas vezes pensei na possibilidade de
desistir do meu sanatório, a razão principal para isso é a obrigação de
preencher todo ano um questionário simples – em três cópias. O estranho
é que, só no ano passado, descobri que o questionário pode ser
preenchido por qualquer outra pessoa que não eu. Tenho grande prazer na
leitura de estatísticas; só que não acredito nelas. (GRODDECK 1929, 1994,
p. 291, 292)

Mas o que acontece de tão significativo na vida pessoal de Groddeck? O


primeiro fato é a morte de sua mãe em 20 de setembro de 1892. O último encontro
81

com a mãe havia ocorrido quando ela vivia em Ilmenau, onde havia aberto um
pensionato para jovens e que logo seria fechado por motivos econômicos. Groddeck
recordará:
[...] Depois da morte do meu pai, minha mãe tentou novamente criar para si
mesma um campo de atividade: empregou uma pequena herança que
recebera de uma amiga de juventude – eram apenas algumas centenas de
marcos -, para fundar um lar para moças; para isso, mudou-se para
Ilmenau. [...] Passei com ela em Ilmenau algumas semanas e lembro-me
desse tempo com uma especial sensação de prazer. O natural nas
relações entre mim e minha mãe voltara a ser como no tempo da infância,
só que era diferente o plano em que este convívio de compreensão era
vivido no falar e no calar; assim continuou até a morte de minha mãe,
éramos adultos dados um ao outro com caminhos próprios. (GRODDECK
1929, 1994, p. 377)

Quando a mãe morre de infarto em 20 de setembro de 1892, Groddeck :

[...] tem um forte sentimento de culpa. Exteriormente isto poderia estar


relacionado, sobretudo à sua chegada atrasada ao funeral da mãe e ao
fato de não ter conseguido vê-la mais consciente. A sua última visita
apressada, as cartas escritas de forma irregular e com um longo intervalo,
tudo isso serve para agravar seu ânimo. (GRODDECK in
34
MARTYNKEWICZ, 2005, p. 117)

Em decorrência da morte da mãe, Groddeck passa a se sentir responsável


por sua irmã Lina, que, em função de problemas de saúde não pode mais trabalhar
como dama de companhia. Groddeck, para garantir à irmã alguma autonomia
financeira, se dispõe a ensiná-la a fazer massagem, conforme escreve numa carta:

“Aposto diariamente sempre mais na massagem e este é o campo no qual


gostaria de te ver. Talvez tenha muito sucesso porque faço tudo sozinho. E
tu não tens vontade? Faz poucos anos que a massagem tem uma grande
relevância na cura das doenças femininas. Uma mulher que seja capaz de
fazê-la poderá contar com um ganho de muitos milhares de marcos. Deste
modo serás completamente autônoma. Com cuidado posso te ensinar
coisas que nenhum outro pode”. (Trecho de uma carta de Georg Groddeck
a Lina Groddeck ( 17 de novembro de 1892 ) in MARTYNKEWICZ, 2005, p.
35
120)

34
. [...] viene preso da forti sensi di colpa. Esteriormente questo potrebbe essere collegato soprattutto al suo
arrivo tardivo al capezzale della madre e al fatto di non essere riuscito a vederla ancora cosciente. La sue ultime
visite frettolose, le lettere scritte con irregolarità e con lunghi intervalli, tutto questo ora gli agrava sull’animo.
35
Scommetto di giorno in giorno sempre di più sui massaggi e questo è il campo nel quale mi piacerebbe
vederti. Forse ho molto sucesso perchè faccio tutto da solo. Tu non vehai voglia? Fra pocchi anni i massaggi
avranno una grossa rilevanza nella cura delle malattie femminili. Una donna che sia capace di farli potrà contare
su un guadagno di parecchie migliaia di marchi; in uesto modo saresti completamente autonoma. Al riguardo ti
posso insegnare cose che nessun altro sa.
82

O segundo acontecimento ocorre em 1894, quando Groddeck conhece Else


von der Goltz:

A mudança mais importante deste período está sem dúvida ligada ao


encontro com Else von der Goltz. Groddeck a conheceu como paciente.
Era a mulher do conselheiro regional Friedrich von der Goltz, catorze anos
mais velho do que ela. Quando se casaram a mulher não havia ainda
completado dezenove anos. Do casamento nasceram duas crianças:
Ursula (11 de setembro de 1889) e Joachim (19 de março de 1892). No
período no qual Else encontra Groddeck, o casamento estava em crise e a
separação é só uma questão de tempo. Else von der Goltz, que no diário
Groddeck chama de Elfie, é de uma beleza extraordinária, é culta e possui
um grande talento musical. Antes do casamento com Friedrich Von der
Goltz se apresentava como pianista e cantora e os seus dotes provocavam
36
a admiração geral. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 125)

No dia 28 de março de 1896, Else se divorcia e em 20 de setembro do


mesmo ano, Else e Groddeck se casam em Berlin. Após obter a dispensa definitiva
do exército e tendo aceitado o convite de Schweninger para que assumisse uma
clínica que ele dirigia em Baden-Baden37, Groddeck, a esposa, seus enteados e sua
irmã Lina mudam-se para esta cidade termal em 18 de março de 1897:

[...] A fama que Groddeck traz consigo para Baden-Baden deriva de


Schweninger, que o recomenda expressamente e que tinha muitos
admiradores e conhecidos de peso. Também os pacientes são
encaminhados a Groddeck normalmente pelo mestre, que em Berlin trata
de um grande número de doentes ilustres, e o seu discípulo deve
representá-lo em suas dependências de Baden-Baden. E esta não é uma
tarefa muito fácil, porque o tratamento de Schweninger, e como veremos
depois também o de Groddeck, depende completamente da pessoa do
médico, da sua presença. Que o médico deve ser, não agir, é uma
experiência que Groddeck havia feito com o mestre. (MARTYNKEWICZ,
38
2005, p.137)

36
. Il cambiamento più importante di questo periodo comunque è senza dubbio legato al rapporto con Else von
der Grotz. Groddeck l’ha conosciuta come paziente. È la moglie del consigliere regionale Friedrich von der
Goltz, di uattordici anni più vecchio di lei. Quando si sono sposati la donna non aveva ancora compiuto
diciannove anni. Dal matrimonio sono natti due bambini: Ursula, l’11sttembre 1889 e Joachim, il 19 marzo
1892. Nel periodo in cui Else incontra Groddeck il matrimonio è già in crisi e la separazione è solo una questione
di tempo. Else vonder Grotz, che Groddeck nel diario chiama Elfe, è di una belezza straorninaria, è colta e
possiede un grande talento musicale. Già prima del matrimonio con Friedrich von der Goltz si era esibita come
pianista e cantante e le sue doti riscuotevano l’ammirazione generale.
37
. Era uma clínica, o Lichtenfelder-Kreiskrankenhaus, famosa por seu atendimento e por ter bons resultados no
tratamento e cura de emagrecimento.
38
. [ ... ] La fama che Groddeck porta con sé a Baden-Baden gli deriva da Schweninger, che lo ha espressamente
raccomandato e che qui ha molti sostenitori e conoscenti di rango. Anche i pazienti vengono inviati a Groddeck
prevalentemente dal maestro, che a Berlino cura un’illustre schiera di malati, mentre il suo allievo deve
rappresentarlo nella sua dépendance di Baden-Baden. È questo un compito per niente facile, perchè le guarigioni
di Schweninger, come saranno più tardi quelle di Groddeck, dipendono completamente dalla persona dl medico,
dalla sua presenza. Che il medico debba essere, non agire, è un’esperienza che Groddeck ha fatto con il maestro.
83

No final de 1897, Lina aluga a vila Monbijou, situada no número 16 da


Werderstrasse e, em fevereiro de 1898, 39 abrem um novo espaço para atendimento.
Este espaço sofrerá uma nova alteração de endereço quando, em 1899, o
comerciante Gustav Bazoche oferece a Lina, uma casa situada na Werderstrasse
14, a pensão Marienhöhe. A irmã de Groddeck se sente encorajada a realizar a
compra, mesmo não tendo os recursos necessários, tanto pela sensação de ser
independente quanto também pela esperança de enriquecer tendo sua própria casa.
Os recursos são obtidos a partir de um empréstimo com a paciente Margarethe
Hermann (50.000 marcos) e de um banco em Zurique (70.000 marcos). Em 31 de
julho, Lina assina o contrato de compra e venda e após algumas reformas, em 6 de
março de 1900, a clínica Marienhöhe abre suas portas.

7. Alguns escritos teóricos

Antes de prosseguir na trajetória de Groddeck, a partir da sua chegada a


Baden-Baden e à abertura da clínica de Marienhöhe, vou me deter em alguns dos
escritos teóricos40 produzidos por ele neste período inicial de sua trajetória e que
coincide com o tempo em que trabalhou como médico militar. Essa atividade

39
. Em março de 1898 Groddeck aluga um apartamento e um pequeno estúdio na Yburgstrasse, 7
40
.1889: Uber des Hydroxylamin und seine Verwendung in der Therapie der Hauntkrankheuen (“Sobre
a Hidroxilamina e sua aplicação no tratamento das enfermidades cutâneas”) - Tese de Doutorado.
1890: Das Hydroxylamin und die Schweningerkur (“A Hidroxilamina e a terapia de Schweninger”) -
Monatsheft für Praktische Dermatologie, 10, p. 349-354.
1892-1893: Hetzrein (“Heresias”) - Hygieia. Monatsschrift für Hygienisch Aufklärung und Reform.
Publicado com o pseudônimo de Cain;
: Rezeptschwindel (“O Embuste das receitas”) - Hygieia 6, caderno1;
: Lainweisheir (“Sabedoria leiga”) - Hygieia 6, caderno 1;
:Einiges über moderne Kollegialität (“Apontamentos sobre o coleguismo moderno”) - Hygieia, caderno 7;
: Kunst und Wissenschaft in der Medizen (“Arte e Ciência Médica”) - Hygieia 6, caderno especial;
: Krankheit (“Doenças”) - Hygieia 7, caderno 1;
: Die Schurzmassregeln gegen die Cholera (“As medidas de proteção contra o cólera”) - Hygieia 6, p. 481-484.
Publicado com o pseudônimo de Cain.
1893 – 1894: Arzteschulen (“Escola para médicos”) - Hygieia 7, caderno 8;
:Kur und Kuren (“Cura e curas)- Bibliothek des gesamten Medizinischen Wissenschften für Pratik Ärzti.
Viena. Publicado em conjunto com Schweninger;
1894 – 1895: Krankendiaet (“A dieta dos doentes”) - Bibliotek des gesamten Medizinischen Wissenschften
für Pratik Ärzti, Viena. Publicado em conjunto com Schweninger.
: Behring und Virchow (“Behring und Virchow”) - Hygieia 8, caderno 3;
1896: Konstipation (“Constipação”) - Bibliotek des gesamten Medinischen Wissenschaften für Pratik Ärzt,
Viena. Publicado em conjunto com Schweninger,
1899: Uber Messen und Wägen in der Ärtzheim Tätigkeit (“Sobre a medida e a pesagem na atividade médica”)
- Wiener Medizinische Press 40, pags. 1752 – 1762, 1810-1. Os textos
grifados são comentados no corpo do texto.
84

intelectual serviu também para ajudá-lo a suportar o tédio que sentia no seu dia-a-
dia.
Em 1893, Groddeck publica em um número especial da revista Hygieia
(periódico que tem como subtítulo: Revista Mensal para a Ciência da Saúde Pública
e Cura da Saúde Pessoal), o artigo Kunst und Wissenschaft in der Medizin e
segundo comentário de Wolfgang Martynkewicz:

[...] É um ataque frontal direto contra a medicina como ciência e a favor de


uma medicina tradicional. A medicina moderna científica está falida; o
sucesso obtido no século XIX constata Groddeck irônico, foi tudo no campo
do “corpo humano morto”, e na terapia ao contrário nada mudou. A
medicina de qualquer maneira não tem interesse em progredir neste setor;
[...] A medicina não está à disposição do doente. O doente é que está à
disposição da medicina. O trabalho segue a onda de um mal-estar geral
que se percebe no século XIX no confronto do progresso científico e se
utiliza de uma linguagem formal e polêmica. [...] Os trabalhos que
Groddeck escreve nos anos seguintes se movem no espaço da crítica
cultural conservadora. Kunst und Wissenschaft in der Medizin representa o
início programático e indica a direção: em nome da totalidade, da
originalidade e da naturalidade a medicina deve novamente ocupar-se do
texto da vida e com isso explicar e compreender os sintomas da doença.
41
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 111, 112)

Para Groddeck, a medicina falha no seu objetivo básico: não se ocupa da


pessoa doente e ao invés disso tem como meta indagar e classificar as doenças. Um
outro aspecto que Groddeck introduz no modo de considerar a medicina diz respeito
ao aspecto social e às condições de vida do doente. Apesar de reconhecer a
presença do social, sua visão quanto aos resultados em função de mudanças nas
condições sociais não é otimista e se mantém na posição de que no fundo o que faz
adoecer o ser humano são as suas disposições pessoais e a singularidade de cada
caso.
Em 1893, no trabalho Krankeit, também publicado na revista Hygieia
Groddeck modifica a colocação de Virchow em seu livro de 1849
Einheitsbestrebungen in der wissenschaftlichen Medizin ( “O homem é produto das

41
. [...] È um attaco frontale diretto contro la medicina come scienza e a favore di una medicina tradizionale. La
medicina moderna scientifica è fallita; i successi ottenuti nel XIX secolo, constata Groddeck ironico, soni tutti
nel campo del “corpo umano morto”, nella terapia invece non è cambiato nulla. La medicina comunque non è
interessata a progredire in questo settore, [...] La medicina non è a dispozione dei malati. I malati sono a
disposizione della medicina. Il saggio segue l’onda di un malessere generale che si avverte nel XIX secolo nei
confronti del progresso scientifico i utilizza una lingua formale e polemica. [...] I lavori che Groddeck scrive nei
decenni successivi si muovono nella scia della critica culturale conservatrice. Kunst und Wissenschaft in der
Medezin rappresenta l’inizio programmatico e indica la direzione: in nome della totalità, dell’originalità e della
naturalità la medicina deve nuovamente occuparsi del testo della vita e da esso spiegare e compreendere i
sintomi della malattia.
85

suas relações” )42 e escreve: O homem é o produto dos seus antepassados e da sua
condição de vida. ( citado em MARTYNKEWICZ, 2005, pag. 113 )43 e comentado as
semelhanças e diferenças teóricas entre Virchow e Groddeck escreve Martynkewicz:

Ambos partem do pressuposto de que a adequação, pelo menos, às


condições de vida são decisivas para a saúde e para a doença. Enquanto
Virchow pensava poder controlar algumas doenças com uma melhora das
condições de vida, das condições de higiene, da cultura e da educação,
Groddeck é muito mais pessimista; [...] Aquilo que faz adoecer o homem
depende no fundo da disposição pessoal e do caso singular. Disto
Groddeck deduz o princípio terapêutico da personalização, um princípio
que no século XIX foi apropriado por pessoas pertencentes a correntes
completamente diferentes. [...] No princípio da personalização emerge o
ceticismo contra os métodos de cura que tendem a generalizar e a
esquematizar. Na escola de Schweninger a personalização é sustentada
com particular ênfase e se mescla em igual quantidade contra a medicina
44
científica e contra a social. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 113)

O processo de cura tal como é proposto por Groddeck é uma mistura de


terapia do corpo (com intervenções diretas sobre as condições de vida do doente,
sua alimentação, seus períodos de repouso e movimento, sua respiração) e a
sugestão.

[...] No tratamento não se faz diferença entre são e doente e menos ainda
entre doenças do corpo e doenças psíquicas. O papel da fantasia reprimida
ou recalcada no surgimento da doença, que Groddeck mais tarde elevará a
um ponto de referência causal que determina cada coisa, neste período
não é absolutamente considerado. Somente no trabalho sobre
45
constipação, publicado em 1896, fala pela primeira de certo influxo do
46
fator psíquico. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 115)

42
. L’uomo è il prodotto delle sue relazioni.( Texto de Virchow, citado em: MARTYNKEWICZ,2005, pag.113 ).
43
[...] L’uomo è il prodotto dei suoi antenati e delle sue condizioni di vita.
44
.. Entrambi partono dal presupposto che l’adeguatezza o meno delle condizioni di vita è decisiva per la salute e
la malattia. Mentre Virchow pensa di poter controllare alcune malattie con un miglioramento delle condizioni di
vita, delle condizioni igieniche, della cultura e dell’educazione, Groddeck è molto più pessimista; [ ... ] Ciò che
fa ammalare gli uomini dipende in fondo dalla dispozione personale e dal singolo caso. Da questo Groddeck
deduce il principio terapeutico della personalizzazione, um principio del quale nel XIX secolo si appropriano
persone appartenenti a correnti completamente diversi. [ ... ] Nel principio della personalizzazione emerge lo
scetticismo verso tutti i metodi di cura che tendono a generalizzare e a schematizzare. Nella scuola di
Schweninger la personalizzazione viene sostenuta con particolari enfasi e si rivolge in equale misura contro la
medicina scientifica e contro quella sociale.
45
. Escrito junto com Schweninger e publicado em 1896 na Bibliotek des gesamten Medizinischen
Wissenschaften für Pratik Ärztl ( Viena ).
46
. [...] Nel tratamento non si fa differenza tra sano e malato e neppure tra mallatie del corpo e malattie
psichiche. Il ruolo delle fantasie represse o rimosse nell’insorgenza della malattia, che Groddeck più tardi eleverà
a punto di riferimento causale che determina ogni cosa, in questo periodo non viene assolutamente considerato.
Solo nel saggio sulla stipsi, publicato nel 1896, parla per la volta di un certo influsso dei fattori psichici.
86

Em 1894 escreve o trabalho Kur und Kuren, no qual postula de forma clara o
princípio da personalização como fundamento de todo tipo de tratamento e cura: “A
respeito de toda ‘cura’ é necessário criar uma unidade, a ‘cura personalizada. [...] É a
única que tem validade geral. Essa na verdade supõe uma acurada apreciação de todos
os pontos vitais acessíveis, exteriores e interiores”. (GRODDECK in MARTYNKEWICZ,
2005, p. 114)47 e:

Por conseguinte, para restabelecer um nível de bem-estar, ela não se limita


inteiramente, como evidencia Groddeck, a simplesmente intervir; a cura
personalizada se interessa muito mesmo pela abordagem holística, global
da modalidade de vida, ao trabalho e propor um novo ‘regime’ de
prescrição e de regras. Neste modo ao médico é atribuído ‘um notável
predomínio psíquico sobre o doente’; seja só “influxo moral” do médico, diz
Groddeck. “Freqüentemente é suficiente para levar a uma melhora e à
48
cura”. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 114)

Em um outro trabalho escrito em 1894, Krankendiaet, Groddeck assume uma


posição crítica em relação às normas dietéticas, principalmente aquelas destinadas
ao sujeito doente e conforme comenta o biografo Martynkewicz:

[...] Considera sem valor o resultado de a fisiologia alimentar, porque o


homem não tem um determinado desejo de proteína, carboidrato e
gordura. O homem, segundo Groddeck, não vive daquilo que ingere, mas
daquilo que digere e como digere, vive daquilo que utiliza e consome e que
o seu corpo assimila. [...] No fundo, diz Groddeck, não é absolutamente
importante aquilo que o homem come, mas sim com que intervalo e em
qual porção assume o alimento. Ao invés de documentar no particular as
suas suposições, Groddeck se refugia no genérico e no final do trabalho
provoca uma polêmica contra a medicina. O escrito apresenta teses
bastante conhecidas. É devedor, sobretudo da terapia dietética, tanto que a
dieta, junto com a massagem e o banho quente, é um dos componentes
49
principais da cura de Schweninger. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 127)

47
. Rispetto a tutte le ‘cure’ bisogna creare um’unità, la cura personalizzata. È l’unica ad avere validità generale”
Essa infanti sottopone “a un accurato apprezzamento tutti i punti vitali accessibili, esteriori e interiori”.
48
. “Quindi, per ristabilire uno strato di benessere, essa non si limita affatto, como evidenzia Groddeck, agli
interventi puramente; alla cura personalizzata interessa molto di più l’approccio olistico, globale alle modalità di
vita, allo scopo di redigere un nuovo ‘regime’ di prescrizioni e di regole. In questo modo al medico viene
attribuito “un notevole predominio psichico sul malato”; giá solo “l’influsso morale” del medico, dice Groddeck,
“spesso è sufficiente per portare a un miglioramento e alla guarigione”.
49
[...] Considera privi di valore i resultati della fisiologia alimentare, perché l’uomo non ha un determinato
bisogno di proteine, carboidrati e grassi. L’uomo, secondo Groddeck, non vive di ciò che ingerisce, bensì di ciò
che digerisce e di come lo digerisce, vive di ciò che utilizza e consume e che il suo corpo assimila.[ ... ] In fondo,
dice Groddeck, non è assolutamente importante ciò che l’uomo mangia, bensì con quali intervalli e in quali
porzioni assume il cibo. Invece di documentare nei particolari le sue supposizioni, Groddeck si rifugia nel
generico e alla fine del saggio avvia una polemica contro la medicina. Lo scritto presenta tesi già abbastanza
conosciute. È debitore soprattutto della terapia dietetica, tanto più che la dieta, insieme ai massaggi e ai bagni
caldi, è una delle componenti principali delle cure di Schweninger.
87

Então, segundo Martynkewicz, no texto Krankendiaet Groddeck expõe algumas


críticas ao modelo proposto por Schweninger, e seu escrito por sua vez é criticado
por Schweninger que o considera destituído de conotações positivas. Este
descompasso revela um primeiro sinal de que Groddeck começa a propor seu
próprio modelo ou, mais ainda, seu jeito de comunicar suas ideias e esta questão e
suas implicações diretas são colocadas por Martynkewicz, que escreve:

Schweninger que, inicialmente, durante as discussões acadêmicas [...]


tomava sempre o partido de Groddeck, aqui ao contrário, pela primeira vez
mostra claramente insatisfação e ceticismo pelo trabalho do seu discípulo.
Muitas afirmações, segundo ele, são pungentes e muito negativas. Mesmo
com a sua crítica à formação do médico e à medicina científica Groddeck
nem sempre consegue encontrar aquele tom certo que agora Schweninger
espera dele. Ele, em cada um dos escritos é extremista e dirige ataques
selvagens contra a ciência e a fé na religião. Schweninger, porém não
deseja uma revolução, agora pelo menos não mais, e deseja um espírito
mais conciliador. No período em que esteve junto de Bismarck, havia
conduzido uma batalha particular contra a medicina universitária [...] Nos
anos noventa a medicina científica está em crise, em parte por motivos
internos, e com isso perdeu um pouco do seu prestígio. As ideias de
Schweninger na universidade são agora muitas vezes consideradas
extravagantes, mas a sua cura e terapia se tornaram reconhecidas,
sobretudo no ambiente das pessoas ricas e nobres. [...] Que Schweninger
consegue pacientes sempre mais industriais e menos no ambiente da
política é um fato sintomático e corresponde à mudança súbita da
sociedade no final do século XIX. A Alemanha se transformou em uma das
nações mais industrializadas, sobretudo no setor do carvão e do ferro. A
industrialização conduz a explosão crescente da população e da
urbanização. [...] O centro do executivo é mudado desde a destituição de
Bismarck. Schweninger antes médico pessoal e conselheiro de Bismarck,
inteligentemente percebeu a mudança e com a nova clientela de industriais
se move em compasso com o tempo. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 128)

Um certo desencantamento de Groddeck com estas novas atitudes de


Schweninger, que de certa maneira perdeu o espírito crítico e combativo, faz com
que escreva em seu diário: “[...] Schweninger está cansado e facilmente
influenciável.” (GRODDECK in MARTYNKEWICZ, 2005, p. 129) 50
Em função disso, Groddeck decide seguir seu próprio caminho, sem esperar
muita ajuda do mestre.

Duas são as possibilidades concretas: entrar em um ambulatório como


assistente, para que um dia possa tornar-se independente, ou então, como
o aconselha seu irmão Carl, afirmar-se como oficial médico em Weilburg e,

50
[...] Schweninger è stanco e facilmente influenzabile.
88

talvez, esperar sem demora fazer carreira militar (MARTYNKEWICZ, 2005


51
p. 129) .

Mas a solução oferecida pela vida e pelas circunstâncias foi uma solução
intermediária: ao obter uma dispensa da atividade militar em março de 1896,
Groddeck vai trabalhar como médico assistente da clínica de Schweninger em
Berlim. Até este ponto a vida pessoal de Groddeck já foi contada anteriormente e
seguimos agora com sua vida e seu trabalho a partir do seu período em Baden-
Baden.

8. Método de Tratamento Ministrado por Groddeck

Uma pergunta se faz necessária: como era o procedimento de cura ministrado


por Groddeck nesta época? A resposta pode ser encontrada em um relato escrito
pelo médico oftalmologista Hermann Cohn, um hóspede frequente da pensão em
Baden-Baden, e que foi publicado em 1898 no Wiener Medizinische Press. Cohn
descreve os três componentes da cura como sendo: 1) massagem; 2) banho quente;
3) dieta; e citando Martynkewicz na sua apresentação e comentários sobre o texto
de Cohn:
A massagem, refere-se Cohn, é aplicada três vezes ao dia pelo médico em
pessoa, com “um método muito particular” [...] antes do café da manhã,
antes do almoço e antes do jantar, cada vez durante um quarto de hora. O
paciente fica deitado sob um divã, com as coxas ligeiramente levantadas
contra o busto e os joelhos juntos, para forçar os músculos do abdômen,
enquanto segura a cabeça com as mãos. Cohn subdivide o procedimento
da massagem em três fases: na primeira fase o médico “dá dois golpes”
com punho fechado na região da fossa epigástrica, inicialmente levemente,
depois pressionando sempre mais, até afundar o máximo possível o punho;
tudo isto enquanto o paciente deve procurar respirar profundamente. No
primeiro dia não é possível fazer mais do que cinco vezes, porque o
movimento do diafragma, sob esta pressão é muito cansativo. Segue
depois a fase chamada por Cohn de “beliscar”: o médico prende com as
mãos aquele estrato do abdômen, com a máxima extensão e na horizontal,
apertando depois o “pneu” com tal força que sob a pele se formam
manchas marrons e azuis. Durante esta operação o doente chora e se
lamenta: é a parte mais dolorosa de todo o tratamento. Por fim, diz Cohn,
“o médico salta com todo seu peso sob o abdômen do paciente, de
maneira tal que consegue afundar o joelho em profundidade na fossa
epigástrica. O médico fica de joelho sob o doente até que este faça, no
início cinco, sete, depois dez respirações profundas, até chegar a trinta. [...]
O Doutor Groddeck é particularmente hábil e preciso neste tipo de

51
.[...] Due sono le possibilitá concrete: entrare in um ambulatório come assistente, per poi um giorno rendersi
indipendente, oppure, come gli consiglia il fratello Carl, affermarsi come ufficiale medico a Weilburg e, forse,
sperare addirittura in una carriera nell’esercito.
89

massagem”. Como segundo componente do tratamento vem descrito o


banho quente. Não se trata aqui de banho integral, mas de banho de partes
específicas do corpo. No primeiro dia, pela manhã, depois da massagem
vem prescrito o banho quente dos braços, no segundo dia o banho quente
dos pés e no terceiro o banho quente das nádegas, e assim continua cada
dia nesta ordem. Schweninger havia construído vasos específicos para os
braços e para os pés. Os vasos para os braços são grandes vasos de lata,
colocados numa mesa, possuem uma tampa com dois furos e são cheios
o
com água a 36 Réamur (NB. Nesta escala térmica a temperatura de
o
ebulição é de 80 ). Na parte superior existe um bocal de afluxo e ao lado
um tubo ligado a uma torneira, esta à entrada de um balde grande. O
doente coloca na bacia o braço até o ombro, deixando o antebraço e a mão
sob a cinta esticada no interior do vaso. O braço permanece vinte minutos
no banho, enquanto é colocada continuamente nova água quente, até
0
quando a temperatura atinge lentamente os 40 Réamur. [...] O vaso para
os pés se distingue dos baldes pelo fato de serem em forma de bota, de
modo que toda a base do pé possa pousar comodamente, enquanto a
perna permanece em ângulo reto. [...] No terceiro dia era realizado o banho
das nádegas, à mesma temperatura. O terceiro componente da cura de
Schweninger é a dieta. Antes de falar das iguarias, Cohn relata como a
massa era servida em porções pequenas e em louças pequenas. Os copos
são aqueles de brinquedo que contém menos de 50 gramas de água.
Mesmo os pratos são de boneca, que podem conter no máximo uma fatia
de carne. A faca e o garfo são também muito pequenos. Em tudo isto há
uma ação sugestiva benéfica: imagina haver bebido e comido muito
quando na realidade não é tanto quanto recebeu. Além dessa forma
exterior, segundo Cohn, se cuida, sobretudo o ritmo de fornecimento da
massa. Com grande pontualidade, cada três horas são servidas uma nova
alimentação, o café da manhã às sete e meia, a segunda refeição em torno
das dez e meia, a uma e meia o almoço, às quatro e meia o lanche e o
jantar às sete e meia. Com o passar do tempo, Groddeck modifica e integra
a cura. A massagem e o banho quente permanecem substancialmente
iguais; a importância da dieta é, no entanto redimensionada e no final é
sem dúvida considerada um procedimento danoso. A cura no momento é
de tipo puramente fisioterápico, deve somente reforçar as resistências do
corpo e favorecer o processo natural de cura. Um papel central, sobretudo
para a massagem e para o banho quente, é atribuído à dor tratada como
um escopo terapêutico, que sobre o homem deverá ter valor educativo.
52
(MARTYNKEWICZ, 2005, p.138-140)

52
. I massagi, riferisce Cohn, vengono praticati tre volte al giorno dal medico in persona con “un metodo del
tutto particolare” [...] prima della colazione, prima del pranzo e prima di cena, ogni volta per un quarto d’ora. Il
paziente rimane sdraiato su un divano, con le cosce leggermente sollevate verso il busto e le ginocchia piegate,
per rilassare i muscoli dell’addome, mentre sorregge il capo con le mani”. Cohn subdivide il procedimento del
massaggio en tre fasi: Per prima cosa il medico “dà dei colpetti” con i pugni chiusi sulla zona della fossetta
epigrastica, prima leggermente, poi premendo semre di più, fino ad affondare il più possible i pugni; tutto questo
mentre il paziente deve cercare di respirare profondamente. Nei primi giorni non è possibili farlo più di cinque
volte, perchè il movimento del diaframma, soto questa pressione, è molto faticoso. Segue poi la fase chiamata da
Cohn il “pizzicare”: “Il medico prende tra le mani gli strati adiposi dell’addome, con la massima estensione e in
orizzontale, schiaccia poi i cuscinetti di grasso con tale e forza che sulla pelle si formano macchie marroni e blu.
Durante questa operazione i malati piagnucolano e si lamentano: è la parte più dolorosa di tutto il trattamento”.
Infine, dice Cohn, “il medico salta con tutta la sua persona sull addome del paziente, in modo tale che entrambe
le ginocchia affondino in profondità nella fossetta epigrastica. Il medico rimane in ginocchio sul malato finché
questi non abbia fatto, all’inizio cinque, sette, poi dieci respiri profondi, fino ad arrivare a trenta. [...] Il dottor
Groddeck è paricolarmente bravo e precio in questo tipo di massaggio”. Come seconda componente del
trattamento vengono descritti i bagni caldi: Non si trata qui di bagni integrali, bensì di bagni di specifiche parti
del corpo. Il primo giorno, al mattino, dopo il massaggio viene prescrito il bagno caldo delle braccia, il secondo
giorno il bagno caldo dei piedi e il terzo il bagno caldo delle natiche, e si prosegue ogni giorno con questo
ordine. Schweninger ha construito vasche particolari perle braccia e per i piedi. Le vasche per le braccia sono
grosse casse di latta, poste un tavolo, hanno un coperchio con due buchi e sono riempite con acqua a 360
90

9. Textos Médicos e Escritos Literários

Após esta apresentação do modelo terapêutico praticado por Groddeck no


início do seu trabalho em Baden-Baden, baseado em sua essência em Schweninger,
mas com algumas variações propostas por ele, principalmente em relação à dieta,
uma nova fase dentro da trajetória de Groddeck se inicia e vai de 16 de março de
190053, que marca o início das atividades no Sanatório em Marienhöhe, até 16 de
agosto de 1916, quando faz a primeira das suas Conferências Psicanalíticas para
doentes em Marienhöhe. Sua produção teórica deste período é composta de textos
médicos sobre questões mecânicas do corpo humano, o papel da água e da
hidroterapia, escritos literários e ciclos de conferências. 54

Réamur. Nella parte superiore c’è una bocchetta d’afflusso e di lato un tubo collegato a un rubinetto, che porta a
un secchio. Il malato infila nella vasca le braccia fino alla spalla, lasciando gli avambracci e le mani posate sulle
cinghie tese all’interno della vasca. Le braccia rimangono venti minuti a bagno, mentre viene versata
continuamente nuova acqua calda fino a quando la temperatura raggiunge lentamente i 400 Réamur. [...] Le
vasche per i piedi si distinguono dai secchi normali per il fatto che sono a forma di stivale, in modo che tutta la
base del piede possa poggiare comodamente, mentre la gamba rimane piegata ad angolo reto. [...] Il terzo giorno
viene fatto un bagno alle natiche, alla stesa temperatura. La terza componente della cura di Schweninger è la
dieta. Prima di parlare delle pientanze, Cohn racconta di “come i pasti vengano serviti in piccole porzioni e con
altrettanto picole stoviglie. I bicchieri sono quelli delle bambole, che contengono meno di 50 grammi d’acqua.
Anche i piatti sono quelli delle bambole, che possono contenere al massimo una fetta di carne. I coltelli e le
forchette sono pure molto piccoli. E tutto questo ha un’azione suggestiva benefica: sembra di aver bevuto e
mangiato di più quanto in realtà non si sia ricevulto”. Oltre alla forma esteriori, secondo Cohn si cura soprattutto
il ritmo della somministrazione dei pasti. Con grande puntualità, ogni tre ore viene servito un nuovo pasto: “la
prima colazione attorno alle sette e mezzo, la seconda attorno alle dieci e mezzo, all’una e mezzo il pranzo, alle
quattro e mezzo la merenda e la cena alle sette e mezzo”. Con il passare del tempo Groddeck modifica e integra
la cura. I massaggi e i bagni caldi rimangono sostanzialmente gli stessi; l’importanza della dieta viene invece
ridimensionata e alla fine addirittura considerata un provvedimento dannoso. La cura per il mommento è di tipo
puramente fisioterapico, deve solo rafforzare in generale la resistenza del corpo e favorire i processi naturali di
guarigione. Un ruolo centrale, soprattutto per i massaggi e per i bagni caldi, è ricoperto dal dolore procurato a
scopo terapeutico, che sugli uomini dovrebbe avere valore educatico.
53
. Em 23 de março de 1901, nasce sua filha Barbara. (falece em 7 de agosto de 1957).
54
.1901: Einiges über die Bedeutung mechanischen Vorgänge im Bauch (“Algumas considerações sobre o
significado dos processos mecânicos no ventre”). Wiener Medizinische Presse, 42, 1455-1459 e 1534 –1538.
1903: Ein Frauenproblem (“Um Problema de Mulher”). C.J. Naumann, Leipzig
1905: Ein Kind der Erde (“Um Filho da Terra” 2 vols.). Herzel, Lepzig.
Uber die Mechanik des Wachsturs (“Sobre o mecanismo do crescimento“). Wiener Medizinische Press
46, 1184 –1188.
1906: Bemerkungen über mechanische Kräfte in menschlischen Korper (“Considerações sobre forças
mecânicas no corpo humano”). Archiv für physikalisch-diatetische Therapie in der Ärtzliche Práxis, 8, 8-12.
Die Wasserverteilung in Körpen (“A distribuição da água no corpo”). Idem. 8, no 3.
Die Wasserbewegung in Körpen (“A circulação da água no corpo”). Idem. 8, no 4.
Wasserfülle und Wasserarmut (“Abundância e falta de água”). Idem 8, no 5.
Die Hochzeit des Dionysos (“As Núpcias de Dioniso”) E. Pierson, Dresden
1908: Studien über die Rolle des Wassers in menschlichen Organismus (“Estudos sobre o papel da água no
organismo humano”). Zeitschrift für den Ausbau der Entwickelugslehre 2, cadernos 3 e 4.
1909: Der Pfarrer von Langewiesche (“O Pastor de Langewiesche”). Publicado como folhetim no Frankfurter
Zeitung (março e abril).
Hiz zu Gottnatur (“Rumo ao Deus-Natureza”). Verlag von S. Hirzel. Leipzig
91

Ein Frauenproblem (1903) é o primeiro texto literário, não-médico de


Groddeck: “à minha mulher, pelo Natal” é a dedicatória e como escreve
Martynkewicz: “[...] no caso de Groddeck a dedicatória e o conteúdo do livro são
extremamente correlatos. Aquilo que ele diz neste livro gira sempre em torno da
mulher e, [...] este presente de Natal é uma carta e contemporaneamente um
manifesto da misoginia”. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 164). 55
Sobre a forma de apresentação dos temas deste texto e seu impacto no
público, Groddeck escreve ao seu irmão Carl (24 de fevereiro de 1905): “[...] “O
Problema da Mulher” foi mal entendido por todos que o leram. Sobre isso, eu só
censuro a mim mesmo. Não se deve escrever por enigmas.”
As dificuldades para a compreensão e a aceitação do livro não estão centradas
nos temas tratados e nem na maneira como Groddeck os considera, mas sim no
estilo em que foi escrito usando uma linguagem muito enfática, às vezes empolada,
grandiloqüente, fazendo com que: “[...] mesmo um leitor cheio de boa vontade perca
a paciência” (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 172). 56
E merece de Carl Groddeck, numa carta escrita a Georg (janeiro de 1903), o
seguinte comentário:

[...] Quanto à forma, a minha primeira impressão havia sido extremamente


positiva [...] a segunda ao contrário é aquela que o livro se deixa ler com
certa dificuldade; [...] para mim resulta uma leitura difícil. [...] é muito
conciso, tenso, com frases curtas e com aquilo que na música se chama,
creio, “ritmo sustenido”. (GRODDECK in MARTYNKEWICZ, 2005, p.173)
57
.

Roger Lewinter, o editor do livro “Écrits de Jeunesse”, que contém dois textos
literários58, não-médicos, de Groddeck, ao comentar sobre o estilo de apresentação
de Un Problème de Femme (Ein Frauenproblem) escreve:

1910: Tragödie oder Komödie? EineFrage na die Ibsenleser (“Tragédia ou Comédia? Uma questão para os
leitores de Ibsen”). Verlag von S.Hirzel. Leipzig.
1913: Nasamecu, natura sanat, medicus curat. Der Gesunde und der kranke Mensch Geimeinverständlich
Argestelt (“Nasamecu, a natureza cura, médico trata. O Homem São e o Homem Doente representados de
maneira compreensível a todos”). Verlag von S. Hirzel, Leipzig.
55
. [...] nel caso di Groddeck la dedica e il contenuto sono strettamente correlati. Ciò che egli dice in questo libro
è rivolto sempre anche alla moglie e, [...] questo regalo de Natale è un’epistola e contemporaneamente un
manifesto della misoginia.
56
. [...] anche un lettore pieno di buona volontà perde la pazienza.
57
. [...] Quanto alla forma, la mia prima impressione è stata estremamente positiva. [...] La seconda invece è
quella che il libro si lasci leggere con una certa difficoltà; [...] per me risulta una lettura difficile. [...] È tutto
conciso, teso, con frasi brevi e con quello che in musica si chiama, credo, “ritmo sostenuto”.
58
. Ein Frauenproblem (1903); Der Pfarrer von Langewiesche (1909).
92

[...] A decupagem formal do texto, todavia, em seqüências ininterruptas – a


tipografia, desejada, por Groddeck, suprime todos os espaços entre os
parágrafos de um mesmo capítulo; [...] a prosódia das frases, lapidares,
mas apresentadas em um fluxo contínuo, a articulação da obra, enfim, em
desenvolvimento que resume dados históricos, e em passagens
essencialmente líricas que culminam em uma exaltação visionária.
59
(LEWINTER in GRODDECK, 1992, p. 217, 218) .

E que temas são discutidos por Groddeck, dentro desta forma tão peculiar de
apresentação? E que relevância tem para a sua obra posterior? As discussões giram
em torno de questões como a ciência, a arte, a angústia, o sentimentalismo, o amor,
a família, a educação, o crescimento da mulher, o homem, a mulher, a criança; com
cada um desses temas sendo tratados em capítulos específicos.
A exposição e a análise detalhada de cada um desses temas estão fora do
âmbito deste trabalho, mas duas questões são formuladas aqui pela primeira vez e
vão percorrer a obra de Groddeck, merecendo em outros tempos um maior
aprofundamento, a partir de outros recursos teóricos. O fato é que a presença destes
temas, já no início de sua trajetória intelectual, revela muito de sua originalidade: a
mulher-mãe e a criança.
Na primeira questão, duas formas de apresentação estão presentes: as
colocações que Groddeck faz a respeito da mulher, que transitam entre o elogio, a
análise histórica e críticas ferinas às conquistas intelectuais das mulheres, e a
mulher como mãe, que seria para ele a imagem privilegiada da mulher. Segundo
Groddeck:
[...] mãe é o instrumento criador da eternidade. O amor maternal é o
60
começo e o fim de todo amor (GRODDECK 1903, 1992, p. 57)
[...] um amor superior vive na mulher, o amor à eternidade. O amor
maternal é o começo e o fim de todo amor. (GRODDECK 1903, 1992, p.
61
58)
[...] o amor da mãe, que é a origem e a continuação de toda a vida. O amor
é o melhor educador. Este amor floresce, e é imperecível, como a mulher.
62
(GRODDECK 1903, 1992, p. 79)

59
. [...] Le découpage formel du texte, cependant, en séquences ininterrompues – la typographie, voulue par
Groddeck, supprime tout espace entre les paragraphes d’un même chapitre – [...] la prosodie des phrases,
lapidaires mais comprises dans un flux continu; l’articulation de l’oeuvre, enfin, en développements qui
résument les donnés historiques, et en passages essentiellement lyriques qui culminent dans une exaltation
visionnaire...
60
. [...] la mère est l’instrument créateur de l’éternité. L’amour maternel est commencement et fin de tout amour.
61
. [...]Un amour supérieur vita dans la femme, l’amour de l’éternité. L’amour maternel est commencement et
fin de tout amour.
62
. [...] l’amour de la mère, qui est l’origine et la continuation de toute vie. L’amour est le meilleur éducateur .
Cet amour fleurit, et il est impérissable, comme la femme.
93

E este amor maternal é que dará à mulher, mais do que o amor pelo homem, a sua
plenitude. Em seu comentário sobre este trecho do livro, Jacquy Chemouni escreve:

[...] E este agora é o advento da mulher. Mulher e mãe se fundem em um


mesmo molde. Isto constitui a essência do ser feminino que irá contribuir
para o desaparecimento do homem. No final da sua obra ele pode afirmar:
“O homem desaparecerá, mas a mulher é eterna”. (CHEMOUNI, 1984, p.
63
301)

Ao segundo tema, “a criança”, Groddeck dedica o último capítulo do livro, A


Criança, e nele podemos ler um de seus temas fundamentais64 que é o tornar-se
criança, condição do tornar-se ser humano: [...] Agora torne-se uma criança e mais
ainda: um ser humano (GRODDECK, 1992, p. 117)65. Neste primeiro escrito não-
médico Groddeck afirma claramente sua visão do ser humano como uma realização
do ser-criança. As últimas palavras do livro deixam isso muito claro:

O sol brilha unicamente para ela, as árvores carregam frutos unicamente


para ela, a mãe vive unicamente para ela. A criança cria seu próprio
mundo, para ser livre e liberar. [...] Por eles, tu te tornarás livre, por eles, tu
te tornarás uma criança, e mais ainda: um ser humano. [...] Saudemos ao
ser humano, à criança realizada em um mundo realizado. (GRODDECK
66
1903, 1992, p.117)

Para Groddeck, é importante o papel e a presença da mãe na vida precoce da


criança e a respeito escreveu: [...] A mãe e sua criança, pelo menos por um tempo,
67
formam uma unidade indissociável. (GRODDECK 1903, 1992, p.83) . Esta
formulação, que muito bem poderia ter sido atribuída a Winnicott, da importância do
espaço maternal será posteriormente68 desenvolvida por Groddeck. Entretanto, vale
recordar o comentário que Chemouni fez a respeito da relação entre ele e outros
autores que também trabalharam esta questão e também em relação a Freud:

63
. [...] Et c’est alors l’avènement de la femme : Femme et mère se fondent dans un même moule. Elles
constituent l’essence de l’être feminin qui a contribué à la disparition de l’homme. À la fin de son ouvrage, il
peut affirmer que « l’homme disparaît, mais la femme est éternelle ».
64
. Com este lema ele encerra a sua primeira conferência (16 de agosto de 1916): [ ... ] O resultado da vida
humana é ser uma criança (GRODDECK, 2005, p.5) [...] L’esito della vita umana è di essere bambino}. E o
mesmo é explorado em outras das suas conferências psicanalíticas.
65
. [...] Alors tu deviendras un enfant, et plus encore: un être humain
66
. Le soleil brille uniquement pour lui, les arbres portent des fruits uniquement pour lui, la mère vit uniquement
pour lui. L’enfant crée ses propres mondes, pour être libre et libérer. [ ... ] Par eux, tu deviendras libre, par eux,
tu deviendras un enfant, et plus encore : un être humain.
67
. [ ... ] la mère et son enfant, un temps du moins, forment une unité indissociable.
68
. A partir das Conferências Psicanalíticas.
94

Da mesma maneira que Winnicott e que a Escola Psicanalítica Húngara,


mas de forma totalmente diferente, ele estabeleceu uma psicanálise
centrada exclusivamente na mãe, sobre o espaço que ela instaura durante
a vida de cada ser humano, [...] A Freud, cuja obra é sobretudo preocupada
em compreender o lugar do pai, Groddeck responde com uma psicanálise
que, sem se opor às idéias do fundador da psicanálise, vê na mãe e em
69
sua função o pivô da existência. (CHEMOUNI, 1984, p. 303)

O próximo texto literário de Groddeck, que tem inicialmente como título o


nome do personagem principal, Wolfgang Guntram, se propõe a ser um romance de
formaçãoIX, com traços autobiográficos: “[...] Wolfgang Guntram é o filho caçula de
um pai severo e de uma mãe sensível e delicada e cresce solitário com o irmão
maior”. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 175) 70

Em 12 de janeiro de 1905, Groddeck comunica ao irmão que o livro sairá


na primavera seguinte através da editora S.Hirzel de Leipzig. [...] Quanto
ao título, segue o conselho do irmão e o modifica para Ein Kind der Erde.
71
(CHEMOUNI, 1984, p.180)

Com a definição da editora, o título estabelecido e com a proximidade da data


de publicação, Groddeck escreve em 24 de fevereiro de 1905 ao seu irmão Carl
Groddeck:
Caro Bumi, não é mais possível deter a desgraça. As últimas provas
tipográficas foram revisadas, e me acho diante de um fato consumado.
Com um pouco de abatimento, admito-o abertamente. Estou tão
apaixonado pelo livro, e por mais que eu goste de muita coisa, ainda assim
não posso deixar de reconhecer os erros. Desse modo, tenho pelo menos
a esperança de poder amadurecer mais. E isso talvez seja mais importante
para mim do que se o livro fosse melhor. Não deve surpreendê-lo que nele
eu tenha deixado ficar muita coisa que o desagrade e que eu também não
o veja com muita simpatia. Nem sempre foram as razões mais puras que
me induziram a renegar o melhor juízo. Por exemplo, não era mais possível
remover Schweninger. Ele conhece o trecho que escrevi sobre ele, e eu
não gostaria de magoá-lo, ele que sempre foi amável comigo, mudando
agora alguma coisa. [...] O incensamento do meu herói também me tocou
de modo desagradável. É sem dúvida o erro mais grave, mas aqui também
espero que seja um erro de juventude. Todavia, eu gostaria, pelo menos
para evitar que você tire conclusões erradas, de dizer-lhe que as opiniões
de Wolfgang não são de modo nenhum as minhas. Se assim fosse, você
formaria de mim uma falsa imagem. Repugna-me que, hoje em dia, se
clame geralmente por subjetividade e personalidade; quanto mais velho eu

69
. Au même titre que Winnicott et que l’Ecole psychanalitique hongroise, mais de façon toute différente, il
établit une psychanalyse centrée exclusivemente sur la mère, sur l’espace qu’elle instaure dans la vie de chaque
être humain [ ... ] A Freud, dont l’ouvre s’est surtout préoccupée de comprendre la place du père, Groddeck
répond par une psychanalyse qui, sans, s’opposer aux idées du fondateur de la psychanalyse, voit en la mère et
en sa fonction le pivot de l’existence.
70
. [ ... ] Wolfgang Guntram è il figlio minore di un padre severo e di una madre sensibile e tenera e cresce
solitario tra i fratelli maggiori.
71
. Il 12 gennaio 1905 Groddeck comunica Al fratello che il libro uscirà la primavera seguente presso l’editore
S. Hirzel di Lipsia. [ ... ] Quanto al titolo, segue il consiglio del fratello e lo cambia in Ein Kind der Erde.
95

fico, mais sou a favor da forma e das regras, e rejeito a questão da


personalidade tanto quanto a emancipação da mulher. (GRODDECK 1905,
in GRODDECK 1994, p. 83/84)

Em 30 de março, sai o romance em 2 volumes Ein Kind der Erde e “[...] em abril
a editora envia a Groddeck uma breve crítica, que poderia ser considerada como
positiva. [...] Em julho a editora comunica que o livro não está vendendo bem”.
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 181) 72
O tema central dos escritos de Groddeck, produzidos em 1905 e publicados em
1906 no Archiv für physikalisch-diätetische Therapie in der ärztlichen Praxis (ver nota
52 ) é:

[...] O tema central destes é o aparecimento e o desenvolvimento das


doenças em função da influência exercida pela distribuição e pelo
movimento da água no corpo. Groddeck sustenta que as variações na
distribuição da água e dos humores causam ou pelo menos favorecem a
formação de determinadas doenças, entre as quais podemos citar a
poliartrite e doenças cardiocirculatórias. Segundo Groddeck, o responsável
da mal sucedida distribuição da água e da alteração do seu peso específico
são os hábitos da vida moderna, que levaram a um desequilíbrio, algo que
faz com o que o líquido permaneça bloqueado em determinados órgãos e
partes do corpo, e não circulem mais. [...] A água se desloca com o
movimento e não mais se acumula no espaço intersticial e nem nas
cavidades de articulação e do corpo. Com a atividade física, os exercícios
de respiração e a massagem se deve obter uma redistribuição do líquido
do corpo. Com esta terapia, Groddeck espera beneficiar não só o distúrbio
físico, mas também os sintomas psíquicos como a histeria, a neurastenia e
73
a obsessão. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 181)

O próximo texto literário, Der Pfarrer von Langewiesche, participou


inicialmente de um concurso literário organizado pela revista Daheim e como
podemos ler numa carta escrita por Groddeck ao seu irmão Carl74 (14 de julho de
1908):

72
. [ ... ] In aprile l’editore invia a Groddeck una breve critica, che questi stenta a considerare positiva. [ ... ] A
luglio l’editore comunica che il libro non si vende bene.
73
. [ ... ] Il tema centrale di questi è l’’insorgere e lo sviluppo di malattie a causa dell’influsso esercitato dalla
distribuzione e dal movimento dell’acqua nel corpo. Groddeck ritiene che variazioni nella distribuzione di acqua
e di umori causino, o perlomeno favoriscano, la formazione di determinate malattie, tra le quali egli annovera
poliartriti e malatie cardiocircolatorie. Secondo Groddeck i responsabili della mancata distribuzione dell’acqua e
dell’alterazione del suo peso specifico sono le abitudini di vita moderne, che hanno portanto a uno squilibrio,
così che i liquidi rimangono blocatti in determinati organi e parti del corpo e non circolano più, [ ... ] L’acqua
viene spostata con il movimento e non può accumularsi negli spazi interstiziali e neppure nelle cavitá delle
articolazioni e del corpo. Con l’attività fisica, gli esercizi di respirazione e i massaggi si dovrebbe ottenere una
ridistribuzione dei liquidi nel corpo. Con questi terapia Groddeck si aspetta benefici non solo per disturbi fisici,
ma anche per sintomi psichici quali l’isteria, la neurastenia e le ossessioni.
74
. Após um período sofrendo de hidropsia, Carl Groddeck morre em 6 de maio de 1909.
96

O contínuo insucesso da minha atividade literária infundiu em mim uma


aversão contra este tipo de ocupação, e, como, de quebra, perdi há algum
tempo a minha caneta costumeira, considerei isso um mau agouro. Talvez
ela me tenha sido furtada por algum deus benevolente. Para arquivar,
portanto, as atas desse período já encerrado, informo-lhe que a minha
novela foi rejeitada em toda parte. Eu a havia escrito inicialmente por um
prêmio de 5.000 marcos, que o Daheim tinha proposto pela melhor novela.
Evidentemente, lá ela não foi lida, pelo menos é o que deduzo do estado
inato do manuscrito, e teve a mesma sorte em diferentes mesas de
redação. (GRODDECK 1908, 1994, p. 89-90)

Apesar deste desencanto e da vontade de parar com a atividade literária,


Groddeck recebe, em 12 de outubro de 1908, uma carta do irmão Carl, na qual ele
escreve:
De resto, só posso repetir: essa novela é a melhor coisa que você
escreveu. Não quero ir tão longe e afirmar que não há erros; na primeira
versão, o final está fraco, e temo que isso não melhorou muito desde
então. Mas encontrei aqui em você, pela primeira vez, um pedaço de vida,
em lugar de invenções penosamente criadas. ( CARL GRODDECK 1908 in
GRODDECK 1994, p. 90, nota 13)

Finalmente, Groddeck consegue publicar a novela, em forma de folhetim, em


março e abril de 1909 no Frankfurter Zeitung.
Antes de seguir com a produção teórica de Groddeck, vou retornar no tempo.
Em 1906, Schweninger publica Der Arzt, livro que é uma síntese de suas ideias e
que pode ser visto como um guia de sua prática como médico, ou ainda, como seu
testamento teórico. A obra foi editada numa coleção dedicada a publicar estudos
sócio-psicológicos que era dirigida por Martin Buber.
Logo após a publicação do livro, Groddeck escreve ao seu irmão Carl (18 de
julho de 1907) falando das suas dificuldades em publicar seu poema Die Hochzeit
des Dionysos e comenta a respeito do livro de Schweninger:

[...] Decididamente, nisto Schweninger tem mais sorte. Do seu O Médico


foram impressos 14.000 exemplares e está esgotado. Além disso, recebeu
700 marcos como honorários pela primeira edição. O restante, o editor
meteu no bolso. O mais estranho para mim é que a crítica elogia quase
unanimemente O Médico. Não invejo o reconhecimento tardio do meu
mestre tão difamado pelo bando científico; gostaria apenas que ele
também fosse apreciado em outros campos, estritamente científicos, pelos
quais tanto fez. (GRODDECK 1907, 1994, p. 87)

Alguns anos mais tarde, o efeito do Der Arzt se manifestará na obra de


Groddeck com a redação e a publicação do Nasamecu.
97

Com o Nasamecu nós estamos no coração do ensinamento e do


pensamento de Schweninger. [ ... ] Da filosofia médica schweningeriana ao
Nasamecu existe uma verdadeira filiação intelectual, filiação que Groddeck
75
engaja na psicanálise... (CHEMOUNI, 1984, p. 21)

Para apresentar algumas ideias presentes no livro de Schweninger e que irão


influenciar a origem das concepções groddeckianas, farei uso da exposição e
análise de Jacquy Chemouni:

Segundo Schweninger “o médico é um soberano; sua prática se parece


com a arte. [...] Esta arte depende da força e da superioridade do médico.
[ ... ] A experiência permite ao médico afirmar sua arte, enquanto o amor
possibilita a instalação de uma verdadeira relação médico-doente.
[ ... ] A grande experiência é a própria vida. [ ... ] A ideia central da filosofia
de Schweninger é que o médico não é um cientista mas um artista. Com
esclarecimentos diferentes – histórico, sociológico, filosófico, etc. – ele
tenta dizer que a prática médica é uma arte. A arte é eterna. [ ... ] Em certo
sentido, a arte não constitui um saber mas resulta de uma atividade inata.
Ela se eleva contra a idéia, ainda prevalente, que a atividade do médico
consiste essencialmente em aplicar os conhecimentos científicos. A ciência
é de pouco auxílio na relação médico-doente. [...] o fato de cuidar é idêntico
através dos tempos. [ ... ] Hipócrates, pela sua arte de cuidar, pode ser
considerado hoje em dia como médico. [ ... ] Sua arte de cuidar não é
inferior à dos médicos formados na Universidade. Aquilo que o médico é
capaz de aportar a seu paciente é idêntico ao longo do tempo, somente a
forma muda. Não se pode imaginar melhores relações médico-paciente só
porque vivemos no século XX, as condições humanas serão sempre as
mesmas. [ ... ] Somente os meios colocados à disposição do médico se
modificam, a qualidade de seu trabalho, essencialmente relacional, é
constante. A arte do médico resulta de um saber inato: ele é inerente ao
homem. A arte não é mais do que a forma visível deste saber. A riqueza
técnico-científica não poderá mudá-la. [...] Arte e ciência se opõe como o
natural ao cultural. Só a experiência serve como denominador comum”.
[...] Schweninger critica a formação do médico, refutando que um diploma
possa sancionar a profissão médica. [...] é médico a partir da sua
capacidade de estabelecer com o outro uma relação que seja a mais
pessoal e íntima possível. A medicina é de qualquer maneira uma
instituição natural; não necessita de diplomas para defini-la. A capacidade
de cada um em se tornar médico depende de seu nível pessoal de
maturidade. A profissão médica exige que se atinja uma certa maturidade
diante da vida, a fim de enfrentá-la com as melhores condições. A melhor
escola para se tornar médico é a própria vida. A tarefa do médico não é
curar uma doença, [...] seu papel é o de cuidar: “A atividade do médico não
é mais de curar mas sim cuidar” [...] Qualquer que seja a grandeza da arte
do médico ele não cura jamais a doença. Um corpo restituído à sua
integridade saudável é obra da natureza: Natura sanat, medicus curat, isto
quer dizer que a natureza cura e o médico cuida. [...] Se o médico não
pode curar, ele não pode mais do que cuidar da doença, a doença não
existe para o médico. Na sua prática ele se encontra com homens doentes.
[...] A doença aparece agora para Schweninger como uma abstração, uma
abstração necessária ao pensamento. [...] Assim é um absurdo falar da

75
. Avec Nasamecu nous sommes au coeur de l’enseignemente et de la pensée de Schweninger. [ ... ] De la
philosophie médicale schweningerienne à Nasamecu, il existe une véritable filiation intellectuelle, filiation que
Groddeck, engagé totalement dans la psychanalyse ... .
98

doença pessoal de um indivíduo. Nós estamos em presença unicamente de


seres humanos doentes, jamais da doença. (CHEMOUNI, 1984, p. 24,
25, 26)76

Em 1909, além da publicação do Pastor de Langewiesche, ocorrem dois outros


acontecimentos que irão exercer forte influência no pensamento e na obra de
Groddeck. O primeiro é o atendimento de uma paciente em seu sanatório, conhecida
como “Srta. G”. E o segundo é o início da publicação dos ciclos de conferências,
sendo o primeiro dos ciclos, Hin zu Gottnatur.

10. Senhorita G.

A primeira menção que Groddeck faz à esta paciente, está na carta que
escreve a Freud, em 27 de maio de 1917:

77
[...] Em 1909, portanto, três anos antes da publicação desse livro ,
comecei a tratar uma senhora cuja observação me levou ao mesmo
caminho que, mais tarde, passei a conhecer como sendo o da psicanálise.
Posso garantir, com certeza, que aquela doente não conhecia nem mesmo

76
. [...] Selon Schweninger, « le médecin est un souverain » ; sa pratique s’apparente à l’ art, [...] Cet art dépend
de la force et de la supériorité du médecin. [...] L’expérience permet au médecin d’affirmer son art, alors que
l’amour empêche l’ installation d’une véritable relation médecin-malade. [...] La grande expérience est la vie
elle-même. [...] L’idée centrale de la philosophie de Schweninger est que le médecin n’est pas un scientifique,
mais un artiste. Avec des éclairages différents – historique, sociologique, philosophique, etc. – il tente de dire en
quoi la pratique médicale est un art. L’art est éternel.[...] En ce sens, l’art ne constitue pas un savoir mais résulte
d’une activité innée. Il s’élève contre l’idée, alors prévalente, que l’activité du médecin consiste essentiellement
à appliquer des connaissances scientifiques. [...] La science est de peu secours dans la relation médecin-malade.
[...] Le fait de soigner est identique à travers les temps.[...] Un Hipocrates, par son art de soigner, peut être
considéré aujourd’hui encore comme médecin [...] Son art de soigner n’est pas inférieur à celui des médecins
formés à l’université. Ce que le médecin est capable d’apporter à son patient est identique au cours des tems,
seule la forme change. On n’établit pas de meilleures relations médecin-malade parce qu’on vit au XX siècle, la
condition humaine étant toujours la même. [...] Seule les moyens mis à la disposition du médecin se modifient,la
qualité de son travail, essentiellement de son travail relationnel, est semblable. L’art du médecin résulte d’un
savoir inné : il est propre à l’homme. L’art n’est que la forme visible de ce savoir. La richesse technique,
scientifique ne pourra rien changer. [...] Art et science s’opposent donc comme le naturel s’oppose au culturel.
Seule l’experience leur sert de dénominateur commum. [...] Schweninger critique la formation du médecin,
refuse qu’un diplôme puisse sanctioner la profession médicale ;[...] est medecin à partir de la capacité à établir
une relation avec autrui dans ce qui qu’il a de plus personnel, de plus intime. Le médecin est en quelque sorte
une instituition naturelle ; nul besoin de diplôme pour le définir. La capacité de chacun à devenir médecin
dépend de son niveau personnel de maturité. La profession médicale exige qu’on accède à une certaine maturité
face à la vie, afin de l’affronter dans les meilleures conditions. La meilleure école pour devenir médecin est la
vie elle-même.La tâche du médecin n’est pas de guérir la maladie. [...] Son rôle est de soigner : « l’activité du
médecin n’est pas de guérir, mais de soigner » [...] Quelle que soit la subtilité de l’art du médecin, il ne guérit
jamais la maladie. Un corp restitué dans sa saine intégrité, n’est lóuvre que de la nature : « Natura sanat Medicus
curat ! », c’est-à-dire : la nature guérit, le médecin soigne.[...] Si le médecin ne peut guérir, il ne peut non plus
soigner la maladie, la maladie n’existant pas pour le médecin. Dans sa pratique, il est face à des hommes
malades. [...] La maladie apparaît alors pour Schweninger comme une abstraction, une abstraction nécessaire à la
pensée. [ ... ] Ainsi est-il absurde de parler de la maladie personelle d’un individu. Nous sommes en présence
uniquement d’êtres humains malades, jamais de maladie.
77
. Nasamecu.
99

a palavra psicanálise, e de mim acredito poder afirmar a mesma coisa. Por


ela comecei a conhecer as peculiaridades da sexualidade infantil e do
simbolismo, e logo me defrontei, após algumas semanas, com os conceitos
de transferência e de resistência, conceitos que vim a conhecer somente
agora e que se transformaram quase que automaticamente, nos eixos do
tratamento. A alegria da descoberta lançou-me então num arrebatamento
que perdurou por vários anos. A comparação do material sobre os meus
outros doentes com os acontecimentos da vida cotidiana foi uma época
fecunda. (GRODDECK 1917, 1994, p. 3,4)

No Livro do Isso (1921), na carta 30, Groddeck volta a mencionar esta


paciente com mais detalhes:

[...] Foi naquele momento que iniciei o tratamento de uma mulher


gravemente doente: foi ela que me obrigou a tornar-me psicanalista.
Espero que você me dispense de entrar em detalhes sobre a longa história
dos sofrimentos dessa mulher. Isso me seria desagradável porque não
consegui, infelizmente, curá-la completamente, mesmo que, no decorrer
dos catorze anos de nosso conhecimento e de tratamento, sua saúde
tenha melhorado a um ponto que ela nunca poderia esperar. Mas, para lhe
assegurar que a dela era uma sólida doença “orgânica”, portanto real, e
não um mal “imaginário”, uma histeria, como a minha, digo-lhe que nos
anos imediatamente anteriores a nosso encontro, ela havia sofrido duas
operações sérias e me havia sido enviada por seu último orientador médico
na qualidade de candidata à cova, num estado de aniquilação por um
arsenal de digitalinas, escopolaminas e outras imundícies. No começo,
nossas relações não eram fáceis. [...] Mas o que me chocou foi que, apesar
de uma notável inteligência, ela dispunha de um vocabulário ridiculamente
restrito. Para a maioria dos objetos, ela usava perífrases, de modo que, por
exemplo, dizia, no lugar do armário, “aquela coisa de roupa” ou, no lugar do
cano do aquecedor, “aparelho para a fumaça”. E dizia não suportar certos
gestos, por exemplo, morder os lábios ou brincar com bolotas que decoram
as cadeiras. [...] Eu percebia que em minha paciente havia uma mistura
estreita do que se convencionou chamar de manifestações físicas e
psíquicas, mas a maneira pela qual isso havia se produzido e o modo de
auxiliá-la eu não sabia. [...] Naquela época eu ainda não conhecia a noção
de transferência, mas me sentia contente com a aparente “sugestibilidade”
do objeto do tratamento e me apressei a servir-me disso, conforme meu
hábito. (GRODDECK 1921, 2004, p. 211, 212)

Na carta 31:

[...] Após a Srta. G me haver elevado ao grau de médico-mãe, ela se tornou


mais confiante. Ela consentia em entregar-se a todo tipo de “ocupações”,
como ela chamava minhas atividades de massagista, mas continuavam as
dificuldades na hora da conversa. [...] Travei conhecimento com os
símbolos. Isso deve ter acontecido de modo insensível, pois não me lembro
de quando percebi que uma cadeira não era apenas uma cadeira, mas
podia ser um mundo, que o polegar é o pai, que ele pode calçar botas de
sete léguas e tornar-se depois, na forma de um índice esticado, símbolo da
ereção; que um forno aquecido é uma mulher ardente e que o tubo da
caldeira é o homem; que a cor negra desse tubo causa um medo inefável
porque é o negro da morte, porque esse inocente aquecedor representa as
relações sexuais de um homem morto com uma mulher viva.. [...] O que
primeiro aprendi sobre a psicanálise foi o símbolo, e ele não me abandonou
mais. [...] O fato de a vida psíquica ser uma constante simbolização era tão
100

evidente a meus olhos que eu afastava com impaciência a inoportuna


massa de ideias e sentimentos novos – pelo menos no que me dizia
respeito – para me lançar com uma pressa frenética na pista do efeito pela
revelação dos símbolos sobre os órgãos doentes. E para mim esse efeito
era algo mágico. [...] Junto com os símbolos, minha paciente me ensinou a
me familiarizar praticamente com uma outra singularidade do pensamento
humano: a obsessão com as associações. Mas o essencial vinha da Srta.
G. (GRODDECK 1921, 2004, p. 215, 216)

Nesta visão retrospectiva de Groddeck, pode-se perceber que o atendimento


à Senhorita G. indicou um novo método de atendimento e que só mais tarde
Groddeck percebeu que se tratava da psicanálise freudiana. Duas ideias importantes
para a sua obra posterior estão presentes no caso da Senhorita G.: o símbolo e a
associação de palavras. A noção de símbolo e de simbolização começa a ser
desenvolvida por Groddeck nas Conferências Psicanalíticas, mais especificamente a
partir da segunda conferência (23 de agosto de 1916):

[...] Em tudo encontramos a mesma simbologia. É importante o fato de que


as coisas não estejam fechadas em si mesmas, de que o mar não seja só
mar, mas também mãe, de que a Igreja não seja só Igreja, mas também a
mãe; de que os pensamentos de eternidade sejam mãe. O mundo está
cheio de símbolos. Esse é também o significado dos diferentes mitos que
giram em torno do assassinato da mãe, do pai e do filho, dos irmãos e
irmãs. São mitos que ilustram os sentimentos mais profundos do ser
humano e unicamente permitem que se suspeite deles quando se os
consideram como símbolos, como coisas que nos revelam o reflexo da
78
vida. (GRODDECK 1916, 2005, p. 9)

A associação de palavras é mencionada pela primeira vez na décima sétima


conferência (6 de dezembro de 1916):

Desta vez me sinto na obrigação de abordar algo que deveria haver tratado
anteriormente: as associações de palavras. [...] a audição de uma palavra
determinada acarreta um sem fim de associações completamente
estranhas ao tema. [...] Nem todas estas associações podem ser reduzidas
imediatamente a fenômenos sexuais, porém, na vida de todo ser humano
existe uma quantidade tal de recordações agradáveis e desagradáveis, de
sonhos e histórias esboçadas, que resulta surpreendente que o som das
palavras não provoque mais danos que o que já provocou. Todas as
nossas preocupações são produzidas por associações que se
desenvolvem no subconsciente, porém que podem ser percebidas se

78
. [...] Dovunque possiamo trovare simboli. È importante che le cose non siano chiuse in se stesse, che il mare
non sia soltano il mare ma anche la madre, che la chiesa non sia soltanto la chiesa ma anhe la madre, che i
pensieri sull’eternità siano la madre. Il mondo è pieno di simboli. In questo sta il senso dei diversi miti relativi
all’omicidio della madre, del padre, del figlio, dei fratelli e delle sorelle. I miti istruiscono sui più profondi
sentimenti dell’uomo e si fanno intendere a patto che noi riusciamo a coglierne la valenza simbolica.
101

examinamos com atenção cada caso concreto. (GRODDECK 1916, 2005,


79
p. 111)

Os dois conceitos, símbolo e associação de palavras, vão ser desenvolvidos


ao longo das conferências posteriores e passam a fazer parte do acervo conceitual e
clínico de Groddeck no seu período psicanalítico.
Mas quem foi a Senhorita G? Será que ela existiu de fato ou ela resume
vários casos tratados por Groddeck no período anterior à Primeira Guerra Mundial?
Como vimos acima, este personagem só é mencionado por Groddeck algum tempo
depois de ter ocorrido o processo de tratamento. A resposta a estas perguntas será
dada por W. Martynkewicz:

O caso da Senhorita G. serve claramente a Groddeck para construir um


novo início, [...] No estado atual do conhecimento do legado não se pode
ainda afirmar com certeza se esta análise havia de fato ocorrido e se
existia uma figura de referência real para a Senhorita G. No que diz
respeito a esta última questão, venho colocando ênfase, e em parte
também o próprio Groddeck, em diversos pacientes. No esboço de uma
carta, posteriormente publicada, a Sigmund Freud (datada de junho de
1917) Groddeck parece revelar o segredo da Senhorita G.: “A paciente em
quem apliquei a psicanálise, diz Groddeck, é Martha Schwab”. Deste
esboço existem porém três versões, muito diferentes no tamanho e no
conteúdo, e de datação incerta. Em uma outra redação da carta, Groddeck
atenua de novo a referência à Senhorita G., dando o nome de outra
paciente que diz haver tratado também “com a psicanálise obtendo grande
sucesso”. De qualquer modo [...] não é nada improvável que atrás da
Senhorita G. estejam vários pacientes, e de que se trata de fato de um
caso altamente condensado.
[...] uma outra paciente não nominada explicitamente por Groddeck:
Margareth Fellinger. Esta iniciou o tratamento em agosto de 1909, no
mesmo período em que Groddeck também comenta com Freud. Como
mostra a correspondência, entre o médico e a paciente se criou um vínculo
próximo: Margareth Fellinger se torna a “cara Grete” (que poderia ser
desdobrada na abreviação “G”). Também o quadro de sintomas apresenta
alguma correspondência. Mas nas cartas a Margareth Fellinger não fica
80
claro o tipo de tratamento psicanalítico; a psicanálise não entra em jogo
81
nem ao menos como terminologia. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 197)

79
. Me siento in obbligo oggi di parlare di un argomento che avrei già dovuto affrontare da tempo: le
associazioni di parole.[...] ascoltare una data parola possa scatenare una ridda di associazioni che nulla hanno a
che fare con la conversazione che si sta svolgendo. [...] Tutte queste associazioni non sono da ricondurre
immediatamente a fenomeni sessuali, ma coinvolgono la vita dell’essere umano nella sua interezza: c’é in ogni
uomo una tale massa di ricordi piacevoli e spiacevoli, di fantasticherie e di storie irrisolte, che è stupefacente che
il suono delle parole non provochi più danni di quanto già non faccia.
80
. Na sua atividade como médico, já no período anterior à Primeira Guerra, Groddeck reconhece que o
tratamento psíquico está sempre presente no tratamento, e é o ponto de partida de todo procedimento terapêutico.
Mas como veremos nos comentários acerca do Nasamecu, este tratamento é baseado na sugestão: “[ ... ]
Imagina-se que um tratamento psíquico, uma terapêutica pela sugestão somente é útil para as pessoas ditas
nervosas. Este é um grave erro. O tratamento psíquico se coloca no início mesmo de todo tratamento.
(GRODDECK, 1980, p.102) { [ ... ] On s’imagine souvent qu’un traitement psychique, une thérapeutique par la
102

É importante mais uma vez salientar que esse caso só é relatado, por
Groddeck algum tempo depois, e não a partir de um relato em primeira mão; e que o
mesmo é considerado por ele como precursor do seu interesse pela temática
psicanalítica. Cronologicamente, vale salientar que entre a Senhorita G. e o contato
com Freud encontramos a redação do Nasamecu, no qual Groddeck faz uma crítica
incipiente à Psicanálise. Em função disso, vale citar Martynkewicz, que, com uma
certa dose de crítica, comenta o “contato” de Groddeck com a Psicanálise antes da
Primeira Guerra Mundial:

[...] Que Groddeck no período que precede a Primeira Guerra Mundial


havia efetuado um movimento em direção à psicanálise é, sobretudo, uma
auto-mistificação na qual os seus seguidores, no entanto, prontamente
82
acreditaram. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 198)

Terminada a referência ao primeiro fato que marcou a data de 1909, neste


momento se faz necessário relatar sobre o segundo marco deste ano, a saber, o
início da publicação dos Ciclos de Conferências.

11. Ciclo de Conferências – “Rumo ao Deus-Natureza”

suggestion ne soient utiles qu’aux personnes dites nerveuses. C’est un grave erreur. Le traitement psychique se
place au début même de tout traitement.
81
. Il caso della signorina G serve chiaramente a Groddeck per construire un nuovo inizio, [ ... ] Allo stato
attuale delle conoscenze del lascito non si può ancora affermare con certezza se questa analisi abbia avuto luogo
e se esista una figura di riferimento reale per la signorina G. Per quanto riguarda quest’ultima questione vengono
fatti accenni, in parte dallo stesso Groddeck, a diversi pazienti. Nella bozza di una lettera, mai publicata,a
Sigmundo Freud ( datata giugno 1917 ), Groddeck sembra svelare il segreto della signorina G: la paziente “dalla
quale ho imparato la psicoanalisi”, dice Groddeck, è Martha Schwab. Di questa bozza esistono però tre versioni,
molto diverse nella lunghezza e nel contenuto e di datazione incerta. In un’altra stesura della lettera Groddeck
attenua di nuovo i riferiemnte alla signorina G, facendo il nome di altre pazienti che dice aver trattato anch’esse
“ con la psicoanalisi ottenendo grande successo”. In qualunque modo [ ... ], non è cosi improbabile che dietro
alla signorina G. Ci siano state più pazienti, e che si tratti quindi di un caso altamente condensato. [ ... ] un’altra
paziente non nominata esplicitamente da Groddeck: Margarethe Fellinger. Questa iniziò il trattamento
nell’agosto 1909, proprio nel periodo che Groddeck indica anche a Freud. Come mostra la corrispondenza, tra
medico e paziente si crea presto un rapporto stretto: Margareth Fellinger diventa la “cara Grete” ( questo
spiegherebbe l’abbreviazione “G” ). Anche il quadro dei sintomi presenta alcune corrispondenze. Ma le lettere
scambiate con Margareth Fellinger non danno chiarimenti sul tipo di trattamento psicoanalitico, la psicoanalisi
non entre in gioco nemmeno come terminologia.
82
. [ ... ] Che Groddeck nel período che precede la Prima guerra mondiale abbia effettuato uma svolta verso la
psiconalisi è puttosto un’automistificazione alla quale i suoi seguaci, però, hanno prontamente creduto.
103

É a partir de 1909, que as ideias de Groddeck são inicialmente lidas para seus
pacientes e conhecidos, que se encontram no Sanatório; material que
posteriormente será organizado e publicado em forma de livro.
O primeiro ciclo destas conferênciasX tem como título Hin zu Gottnatur (“Rumo
ao Deus-Natureza”) que em seguida é editado pela S. Hirzel Verlag em julho de
1909: “[...] Em um livro a que dei o título “Rumo ao Deus-Natureza” – originou-se,
como várias das minhas publicações, de conferências dadas em círculo pequeno
[...]” (GRODDECK 1929, 1994, p. 310)
É um ciclo de cinco conferências que tem como tema a linguagem, a natureza,
a arte, a personalidade e a emancipação feminina. Destas conferências, duas foram
publicadas no livro “Escritos Psicanalíticos sobre Literatura e Arte” (Editora
Perspectiva, 2001), “Sobre a Linguagem” e “Caráter e Tipo”, que são exatamente as
palestras onde é possível reconhecer a noção do Deus-Natureza, noção que serve
de princípio para a origem do conceito do “Isso”; e na palestra a respeito da questão
da emancipação feminina podemos perceber ecos no livro “O Homem e seu Isso”
(Editora Perspectiva, 1994), principalmente no artigo autobiográfico de Groddeck e
na carta escrita por ele para a Senhorita Emma Stropp; outros comentários e
desdobramentos desta última conferência estão na biografia de Groddeck escrita por
W. Martynkewicz.
O título geral deste ciclo é inspirado nos versos finais do poema escrito por
GoetheXI, mas antes cabe uma nota sobre as referências que Groddeck faz sobre
este autor:
[...] Para minha mãe, que era a pessoa mais importante na minha infância,
havia dois deuses: um era Goethe – ela tinha sempre à sua mesinha de
cabeceira um livro verde com uma seleção dos poemas de Goethe, que ela
chamava a sua Bíblia -, o outro, não tão venerado, era Shakespeare. Na
minha infância, Goethe era para mim extremamente maçante, mesmo mais
tarde cultivei com ele apenas um culto das palavras, que sem dúvida eu lia
e relia. (GRODDECK 1929, 1994, p. 348)

Na primeira das conferências do ciclo “Sobre o Deus-Natureza”, Groddeck


assim se refere a Goethe:

[...] Foi um dos maiores pesquisadores de todos os tempos. Mostrou à


ciência um novo caminho. Exatamente aquele que vê a parte no todo, que
compreende o todo aparente como símbolo do universo, que vê
simbolicamente o mundo inteiro numa flor, num animal, num seixo, no olho
humano, no sol, que repensa construtivamente o mundo a partir desta flor,
104

deste seixo, isto é, cria de novo, investiga as coisas sem as decompor, mas
as vê na totalidade. (GRODDECK 1909, 2001, p. 27)

Retornando ao poema de Goethe, cujo título é: Bei Betrachtung von Schillers


Schädel (1833)83, e aos versos que inspiraram Groddeck:

Was kann der Mensch im Leben mehr gewinnen,


Als dass sich Gott-Natur ihm offenbare?
Wie sie das Feste lässt zu Geist verrinnen
84
Wie sie das Geisterzeugte fest bewahre.

O editor do livro Psychoanalytische Schriften zur Literatur und Kunst,85 Egenolf


Roeder escreve:

Os versos que cunham essa expressão (“deus-natureza”) são do período


final de Goethe. Mas a concepção de mundo representada pela designação
XII
“deus-natureza” data da época de Spinoza . Nos anos que medeiam os
dois períodos de estudo intensivos da Ética, fruto maduro, portanto do
primeiro entusiasmo juvenil, Goethe escreveu o fragmento “Sobre a
XIII
Natureza” . [...] “Natureza!” – escreve Goethe – “Estamos envoltos e
cingidos por ela – impossibilitados de sair dela”.
. Quindid est, in Deo est.
Segundo Groddeck, Goethe voltou a mostrar o meio “de ver a parte no
todo” e, o que dá no mesmo, de “olhar as coisas no todo”; o modo de
XIV
reconhecer que a parte responde pelo todo, e o todo pela parte.
(ROEDER in GRODDECK, 2001, p. 14)

No estudo de Paul Bishop sobre Goethe, Schiller e Jung, podemos ler alguns
trechos do ensaio Die Natur, atribuído a Goethe:

83
. “Ao Contemplar o Crânio de Schiller”
84
. Que pode o homem mais nesta vida,
Do que se lhe revele a Natureza-Deus?:
Ao vê-la sublimar a matéria firme em Espírito,
E firme conservar o que o Espírito criou.
Traduzido por Paulo Quintela e publicado em Goethe: Poemas, Editora Centelha, Coimbra, 1986 (p. 227). No
livro Georg Groddeck: Escritos Psicanalíticos sobre Literatura e Arte, publicado em 2001, pela Editora
Perspectiva, São Paulo e traduzido por Natan Robert Zins e Geraldo Gerson de Souza, temos outra tradução do
mesmo trecho:
“O que pode um homem ganhar mais na vida
“Do que o que lhe revela o deus-natureza:
“Como ele dissolve o sólido em espírito,
“Como ele mantém sólido o que o espírito gerou.
85
. Escritos Psicanalíticos sobre Literatura e Arte.
105

Natureza! Estamos cercados e envolvidos por ela – impotentes para deixá-


la e impotentes para adentrá-la mais profundamente. Sem aviso, e sem ser
chamada, ela nos varre para longe nas voltas da sua dança e continua a
dançar até que caiamos exaustos dos seus braços. Ela sempre gera
formas novas: o que existia, nunca tinha existido antes, o que era, nunca
voltará. Tudo é novo, e, no entanto, velho para sempre. [...] Todos os
esforços dela, parecem inclinados à individualidade, e ela não se preocupa
com indivíduos. Ela constrói, sempre, destrói sempre, e sua área de
trabalho está além do nosso alcance. [...] A sua coroa é o amor. Somente
através do amor nós chegamos a ela. Ela abre um abismo entre todos os
seres, e um quer devorar o outro. Ela separa todos para depois juntá-los,
com uns poucos goles da sua taça de amor, ela torna boa uma vida cheia
de labuta. Ela é tudo. Ela se recompensa e se pune, deleita e atormenta a
si mesma. Ela é rude e gentil, agradável e terrível, impotente e toda
poderosa, tudo está eternamente presente nela. Ela nada sabe de passado
86
e futuro. O presente é eternidade para ela. (BISHOP 2009, p. 12, 13)

Marthe Robert, no seu livro La Revolución Psicoanalítica, apresenta também,


alguns trechos deste escrito de Goethe:

Suas leis são obedecidas, ainda que resistindo, se age com ela até quando
se acredita estar desafiando-a. Não tem linguagem nem discurso mas cria
línguas e caracteres para sentir e falar. Sua coroa é o amor. Só através do
amor alguém se aproxima dela. Abre abismos entre os seres e tudo aspira
a enlaçar-se. Isolou tudo para poder voltar a unir. Com uns poucos goles
na taça do amor repara toda uma vida de dor. É tudo. Se recompensa e se
castiga a si mesma, se compraz e se tortura a si mesma. É rude e doce,
amável e terrível, fraca e todo poderosa. Tudo está sempre nela. Não
conhece nem passado nem futuro. O presente é sua eternidade. É
bondosa. Eu a felicito por todas as suas obras. É sábia e tranqüila. Não se
arranca dela nenhuma explicação. Nenhum presente que não dê de boa
vontade. É astuta, mas com boa finalidade e o melhor é não ver as suas
astúcias. É inteira e, no entanto, completamente inacabada. O que faz
pode fazê-lo sempre. A cada um ela se mostra com sua própria forma. Se
esconde sob mil nomes e mil termos e permanece sempre a mesma. Ela
colocou-me aqui. Também me fará sair. Confiou-me a ela. Pode mover-me
a seu bel prazer. Não adiará a sua obra. Não fui eu quem falou com ela.
Não, o verdadeiro e o falso foi ela quem definiu. Tudo é culpa dela, tudo é
87
mérito seu. (ROBERT, 1966, p. 51)

86
. Nature! We are surrounded and embraced by her – powerless to leave her and powerless to enter her more
deeply. Unasked and without warning she sweeps us away in the round of her dance and dances on until we fall
exhausted from her arms. She brings forth ever new forms: what is there, never was; what was, never will return.
All is new, and yet forever old. [ … ] All her effort seems bent toward individuality, and she cares nothing for
individuals. She builds, always, destroys always, and her workshop is beyond our reach.[ … ] Her crown is love.
Only through love do we come to her. She opens chasms between all beings, and each seeks to devour the other.
She has set all apart to draw all together. With a few draughts from the cup of love she makes good a life full of
toil. She is all. She rewards herself and punishes herself, delights and torments herself. She is rough and gentle,
charming and terrifying, impotent and all-powerful. All is eternally present in her. She knows nothing of past
and future. The present is eternity for her.
87
.La Naturaleza : Se obedecen sus leys aun cuando se la resiste, se actúa con ella hasta cuando se cree,
desafiarla.No tiene ni lenguaje ni discurso pero crea lenguas e caracteres con el fin de sentir y de hablar. Su
corona es el amor. Sólo por él se acerca uno a ella. Abre abismos entre los seres y todo aspira a enlazarse. Todo
lo ha aislado para reunirlo todo. Con unos pocos rasgos en la copa del amor, repara toda una vida de dolor. Es
todo. Se recompensa y se castiga a sí misma, se goza y se tortura a si misma. Es ruda y dulce, amable y terrible,
débil y todopoderosa. En ella está todo siempre. No conoce, ni pasado ni futuro. El presente es su eternidad. Es
buena. Yo la alabo con todas sus obras. Es sabia y tranquila. No se le arranca ninguna explicación. Ningun
regalo que no dé por su gusto. Es astuta, pero con buen fin y lo mejor es no ver su astucia. Es entera y, sin
106

Este texto, um poema em prosa, nos proporciona uma visão dinâmica,


energética e vitalista da natureza, em sua constante luta entre suas forças
construtivas e suas forças destrutivas e nele podemos reconhecer um princípio muito
caro a Groddeck: o princípio88 das polaridades e que pode ser definido como um
estado de constante atração e repulsão.
Este ensaio de Goethe auxilia Groddeck na sua compreensão do conceito
de natureza, e por extensão, a idéia de Deus-Natureza presente na sua concepção
inicial do “IssoXV” e que tem uma importância na escolha de Freud em estudar
medicinaXVI e que mereceu de Wilhelm W. Hemecker uma análise cuidadosa do seu
significado e importância:

[...] Como nos faz lembrar Hemecker, “Na Natureza provou ser uma chave
para toda uma geração de pensadores Românticos e Pós-Românticos,
inclusive Alexander von Humboldt (1769-1859) (a quem Freud muito
admirava), Carl Gustav Carus (1789-1869), Rudolf Virchow (1821-1902),
isso sem mencionar Ernst Haeckel (1834-1919) (que via Goethe como
predecessor de Darwin e a si mesmo como um sucessor de ambos),
Hermann von Helmholtz (1821-1894) e Emil Du Bois-Reymond (1834-
1896). De fato, como Hemecker sugeriu, caros, Virchow e Haeckel
concluíram, o ‘princípio genético’, que sustenta as teorias deles, a partir do
conceito de morfologia de Goethe. E ele propõe o fisiologista Johannes
Müller (1801-1858) como a figura mais provável de ter mediado a
morfologia Goethiana e os princípios da Filosofia da Natureza para
Virchow, Helmholtz, Du Bois-Reymond, e, particularmente, Ernst Brücke
(1819-1892). [...] aonde a objeção freqüentemente afirmada, de que o
status de Goethe como um cientista natural foi ignorado ou considerado
como uma figura marginal no século dezenove, acaba por ser uma lenda
89
cujo tempo há muito acabou (BISHOP, 2009. p. 15)

embargo, completamente inacabada. Lo que hace puede hacerlo siempre. A cada cual se le muestra con una
forma pròpria. Se esconde bajo mil nombres y mil terminos y siempre permanece la misma. Me ha colocado
aquí. También me hará salir. Me confió a ella. Puede moverme a su antojo. No adiará su obra. Non soy yo quien
ha hablado de ella. No, lo verdadero y lo falso es ella quien lo ha dicho. Todo és su culpa, todo és su mérito.
88
. [...] De acordo com este princípio, a tensão entre polos opostos fornece o mecanismo pelo qual a vida se
desenvolve. (BISHOP, 2009, p. 54) […] According to this principle, the tension between polar opposites
provides the mechanism by which life develops}. Esta tensão pode ser formulada no seguinte aforismo de
Goethe: “Tensão é o estado aparentemente indiferente de um ser cheio de energia em plena prontidão para se
manifestar, se diferenciar, se polarizar”. (GOETHE, 2003, p. 5)
89
. As Hemecker remind us, ‘On Nature’ proved to be a key for a whole generation of Romantic and post-
Romantic thinkers, including Alexander von Humboldt (1769–1859) (whom Freud much admired), Carl Gustav
Carus (1789–1869), Rudolf Virchow (1821–1902), not to mention Ernst Haeckel (1834 – 1919) (who saw
Goethe as a forerunner to Darwin and himself as a successor to both), Hermann von Helmholtz (1821–1894),
and Emil Du Bois-Reymond (1834–1896). Indeed, as Hemecker has suggested, Carus, Virchow, and Haeckel
derived the ‘genetic principle’ that underpins their theories from Goethe’s concept of morphology. And he
proposes the physiologist Johannes Müller (1801– 1858) as the figure most likely to have mediated Goethean
morphology and the principles of Naturphilosophie to Virchow, Helmholtz, du Bois-Reymond, and, in
particular, Ernst Brücke (1819 – 1892), […] Thus the objection, frequently asserted, that Goethe’s status as a
natural scientist was ignored or regarded as a marginal figure in the nineteenth century, turns out to be a legend
whose time is long since over.
107

Groddeck usa como ponto de partida o conceito de Goethe sobre o Deus na


Natureza e a Natureza em Deus, que, conforme vimos, deriva originalmente de
Espinosa. Deus, nesta forma de consideração, não é visto como a causa externa e
transcendente de todas as coisas, mas como uma força ativa e imanente. A matéria
deixa de ser vista como inerte, morta, mas plenamente dotada de força vital.
Essa referência de Groddeck à ideia de Goethe implica, entre outras coisas,
que se tenha claro que essa visão é essencialmente dinâmica, que essa troca de
valência na percepção da natureza significa reconhecer a simultaneidade de todas
as coisas, a relação intensa entre o particular e o universal, as oposições entendidas
não como antagônicas, mas como complementares. Se uma ação é tratada e
reconhecida como verdadeira, o seu oposto não pode ser visto como uma negação
dessa ação, mas tão verdadeira quanto ela. Essa noção pode ser percebida se
citarmos Goethe:

21. Propriedades fundamentais da unidade viva: cindir-se, unificar-se,


expandir-se até o universal, perseverar no singular, transformar-se,
especificar-se; e como o vivente pode se tornar manifesto sob mil
condições, ele pode aparecer e desaparecer, solidificar e derreter,
cristalizar e fluir, estender-se e contrair-se. E porque todos esses efeitos se
dão no mesmo momento do tempo, todas as coisas em geral e cada uma
delas em particular podem entrar em cena ao mesmo tempo. Surgir e
perecer, criar e aniquilar, nascimento e morte, alegria e tristeza: todos
atuam uns por meio dos outros, no mesmo sentido e na mesma medida.
Assim, mesmo a coisa mais particular que possa acontecer sempre
aparece como imagem e alegoria da mais universal. (GOETHE, 2003, p.
90
4)

Ainda dentro do conjunto das suas “Máximas e Reflexões”, vamos encontrar


uma outra colocação onde fica mais clara a questão da visão dinâmica e complexa
da natureza e por extensão do ser humano. Essa máxima fica mais atraente pela
forma como Goethe a apresenta e pelas possibilidades combinatórias que ela
contém:
Constância
(enquanto) com (e no entanto)
Contradição
(GOETHE, 2003, p. 6)

90
. De acordo com Paul Bishop esse aforismo expressa de forma clara e precisa a concepção dinâmica e
polarística da natureza.
108

Neste momento uma citação é necessária, por fazer uma síntese a respeito
da influência e da presença de Goethe na obra de Groddeck. Este esforço sintético
foi realizado por Jacquy Chemouni:

[...] Se Schweninger e Freud inspiram diretamente a prática e a teoria


groddeckiana, Goethe aparece como o autor aonde a obra traça a via de
um ideal científico e propõe, dentro da linguagem da sua época, um
“quadro” para pensar o homem, quadro que Groddeck vai reaver. Além da
adesão de Groddeck a tal ou tal das explicações científicas de Goethe,
dentre as quais muitas serão demonstradas como totalmente falsas,
encontramos também sua apreciação sobre Goethe “... maior como
naturalista que como poeta”. A obra de Goethe estará presente ao longo da
elaboração das concepções groddeckianas. Certamente entre elas, o
“Isso”, como também a simbolização que está no coração da psicanálise
selvagem, tem suas origens em Goethe. [ ... ] Esquematicamente se pode
dizer que Groddeck está colocado constantemente próximo do Goethe
filósofo naturalista, mais filósofo do que naturalista, poeta romântico mais
que cientista, panteísta mais do que materialista (CHEMOUNI, 1984, p. 165
91
e 168)

12. O “ISSO”

Na primeira conferência, “Sobre a Linguagem”, Groddeck menciona pela


XVII
primeira vez o conceito de “o Isso” (das Es) que se tornará posteriormente a sua
92
assinatura conceitual mais conhecida e citada.

[...] Não existe nenhum eu, é uma mentira, uma desfiguração quando se
diz: eu penso, eu vivo. Dever-se-ia dizer: isso pensa isso vive. “Isso” quer
dizer o grande mistério do mundo. Não existe um eu. [...] Tudo flui. Com
toda a certeza não existe um eu. É um erro da linguagem e
lamentavelmente um erro fatal. Porque ninguém é capaz de libertar-se
dessa palavra “eu”. Encontramo-nos então diante de um mistério profundo
da natureza que não se pode explicar. (GRODDECK 1909, 2001, p. 28, 29)

91
. [ ... ] Si Schweninger et Freud inspiret directment la pratique et la théorie groddckienne, Goethe apparaît
comme l’auteur dont l’ouvre trace la voie d’un ideal scientifique et propose, dans le langage de son époque, un
« cadre » pour penser l’homme, « cadre » que Groddeck reprendra. Au-delá de l’adhésion de Groddeck à telle ou
telle des explications scientifique de Goethe, dont beaucoup se sont avérées totalement fausses, à l’encontre ausi
de son appréciation sur « Goethe ... plus grand comme naturaliste que come poète », l’ouvre de Goethe sera
présente tout au long de l’elaboration des conceptions groddeckiennes. Certaine d’entre elles, le ça, mais aussi la
symbolisation qui est au coeur de la psychanalyse sauvage, trouvent leurs origines chez Goethe. [...]
Schématiquement, on peut dire que Groddeck est resté constamment proche du Goethe philosophe naturaliste,
plus philosophe que naturaliste, poète romantique plus que scientifique, panthéiste plus que matérialiste...
92
. Outras assinaturas conceituais importantes de Groddeck: monismo psique-soma, a mãe, simbolização, bi-
sexualidade natural do ser humano.
109

Um aspecto importante a assinalar nesta primeira definição, ainda não muito


específica, é que o “Isso” aparece junto com o conceito de Deus-Natureza e,
conforme vimos anteriormente, este termo será melhor apresentado na segunda
conferência, “Caráter e Tipo”. Apesar de estarem relacionados e possuírem algumas
semelhanças93 não se podem considerar os dois termos como sinônimos.
Antes de apresentar a origem intelectual do conceito do “Isso”, vou me deter no
significado do termo “das ES” e para isso o melhor guia é a análise feita por Luis
Alberto Hanns94, coordenador geral da tradução das Obras Psicológicas de S. Freud
(Imago Editora). No volume II (Escritos sobre a Psicanálise do Inconsciente) ao
fazer os comentários sobre o texto “O Eu e o Id” (Das Ich und das Es) faz aquilo que
ele chama de “comentários sobre os problemas semânticos-conceituais” envolvidos
na tradução dos termos das Es, das Ich e Über-Ich; vou me ater somente ao termo
das Es:
Das Es é uma substantivação do pronome pessoal do gênero neutro Es.
Em alemão, há três pronomes: o masculino (er), o feminino (sie) e o neutro
(Es); em alguns casos análogo ao it do inglês. Embora a substantivação
das Es, para um falante do alemão, de entendimento imediato e auto-
explicativo, é uma criação filosófico-psicanalítica. No contexto psicanalítico,
evoca a imagem de algo contido no sujeito, que nele brota e o atravessa,
mas que simultaneamente lhe é estranho.
Se em nosso idioma, diversas palavras se recobrem com os termos
alemães Trieb (pulsão), Drang (ânsia, pressão) e Zwang (compulsão,
coação), o mesmo não ocorre com das Es, para o qual não temos nenhum
termo aparentado em português. Assim, conhecer o uso de Es como
pronome pessoal no alemão é útil para se compreender os sentidos e
conotações de das Es no freudiano – Es – tem múltiplos usos e funções, e
ocorre:
1. em frases corriqueiras referentes a objetos e pessoas de gênero neutro;
2. em contextos que remetem a algo indefinido e inominável (fenômenos
meteorológicos, estados que acometem o sujeito, etc.);
3. como pronome pessoal que se refere a conteúdos de frases ou objetos
indicados em frases precedentes: Eu não o creio (Ich glaube es nicht). Ela
o disses (Sie sagt es). Está bem assim (Es ist gut so). Neste último caso,
além de referir-se a um conteúdo, o Es também tem a função de ocupar o
lugar inicial da frase;
4. como pronome pessoal utilizado com verbos impessoais: Chove (Es
regnet). Neva . (Es schneit);

93
. [...] A semelhança entre os atributos da natureza e os atributos do «isso» são evidentes: todo-poderoso,
onipresente, na origem de todas as criações e ações humanas, traço monista, caráter transcendente, estranho ao
poder da consciência e do eu, etc. A Natureza, Deus-Natureza, como o Isso ignora a vontade do sujeito; ela não
obedece a não ser ao seu próprio determinismo. Ele constitui a essência mesma do indivíduo, em determinar a
ação (CHEMOUNI, 1984, p. 161). La similitude entre les attributes de la Nature et eux du ça est évidente :
toute-puissance, omniprésence, à l’origine de toutes créations et actions humaines, teinte moniste, caractère
transcendant, étranger au pouvoir de la conscience, du moi, et.. La Nature, le Dieu-Nature, comme le ça, ignore
la volonté du sujet ; elle n’obéit qu’à son propre déterminisme. Elle constitue l’essence même de l’individu, en
détermine l’action.
94
. Uma outra fonte importante deste mesmo autor é o Dicionário Comentado do Alemão de Freud [DCAF]
(Imago Editora, Rio de Janeiro, 1996). Ver verbete: Id ou “o Isso”: das Es(p. 261-269).
110

5. como pronome pessoal utilizado com verbos que designam eventos de


causas indeterminadas, crescimentos e ruídos: Floresce (Es blüth). Crepita
(Es knistert);
6. como pronome pessoal utilizado com verbos que designam
acontecimentos em si, em que os participantes ficam em segundo plano,
deixando a frase mais anônima (empregado no alemão freqüentemente no
passivo): Falava-se, cantava-se e bebia-se (Es wurde gesprochen, es
wurde gesungen, es wurde getrunken);
7. como pronome pessoal utilizado com verbos que designam ações que
independem do sujeito: Eu não respiro, isso respira por mim (Ich atme
nicht, es atmet in mir);
8. como pronome pessoal utilizado para verbos que designam sensações
corpóreas e psíquicas por influência externa. Algo difícil de reproduzir em
português, poder-se-ia tentar traduzir por: Faz-me frio (Es friert mich)
[utilizado em vez de “sinto frio”]; e
9. como elemento que ocupa um lugar no início de frases: Era uma vez
uma princesa (Es war einmal eine Prinzessin), Vieram meus dois filhos (Es
kamen meine zwei Kinder).

O pronome es designa, com freqüência, algo que se manifesta à revelia do


sujeito, tendo a função de personalizar o que é indeterminado, impessoal e
indefinível, mas que pode ser apontado e circunscrito por um pronome. É
como se no alemão não pudessem existir frases sem sujeito nomeável
(mesmo quando em português correspondem a frases de sujeito “oculto”,
inexistente ou indeterminado).

Alguns comentários da gramática alemã Duden-Grammatik [D4, 555-558] a


respeito do es são bastante elucidativos: “[...] Enquanto alguns pesquisadores
não reconhecem ao es um valor como conteúdo e o consideram como uma palavra
de uso puramente formal ou um sujeito fictício, outros vêem no es a expressão
verbal da ação de forças impessoais, irracionais ou míticas. Entretanto, mesmo
aqueles que são céticos com relação a interpretações mitológicas deveriam admitir
nas frases a seguir que o es designa uma causa indefinida de um acontecimento.”

Em seguida, os autores enumeram exemplos comentados do uso do es, os


quais podem, em parte, ser consultados também no DCAF. (FREUD, 2007,
p. 20-22)

A questão que agora se coloca, é acerca da origem do conceito tal como


empregado por Groddeck, a partir de 1909. Tradicionalmente a origem é buscada e
atribuída a Nietzsche, como supõe, por exemplo, o autor dos comentários editoriais
da Standard Edition (Obras Completas de Freud), embora ele reconheça, sem deixar
claro, a presença de Schweninger na formulação do termo: “[...] Groddeck, por sua
vez, parece ter derivado “das Es” de seu próprio professor, Ernst SchweningerXVIII
médico alemão bem conhecido de uma geração anterior, entretanto, como Freud
também indica, o uso da palavra certamente remonta a Nietzsche. (FREUD, 2007, p.
17)”. Esse reconhecimento da participação de Schweninger vai ser formulado pelo
biógrafo Martynkewicz que vai deixar claro o significado do termo como empregado
por Schweninger e Groddeck e também as suas diferenças.
111

Para uma apresentação mais rigorosa e crítica acerca da origem do conceito do


“Isso” em Groddeck, vou utilizar a apresentação feita por Martynkewicz, autor que
desloca o ponto de vista habitual, que tem em Nietzsche e seu “isso pensa” a origem
e construção do termo, para um outro autor, contemporâneo de Groddeck, Wilhelm
Bölsche, que em 1904 escreve sobre o “Isso” de uma forma muito similar ao que
Groddeck escreverá em 1909. Citando Martynkewicz:

Se reconhece o “Isso” de Groddeck na medida em que se observa o


contexto no qual este conceito aparece pela primeira vez: com o livro Hin
zu Gottnatur Groddeck anuncia uma nova religião, uma nova fé: é em tudo
um livro absolutamente profético. E muito daquilo que Groddeck dirá mais
tarde do “Isso” é influenciado por este motivo religioso; o “Isso” como força
que guia, como princípio criativo, que se pode certamente chamar também
“Deus”. [ ... ] De um “Isso” como esse, antes de Groddeck, já havia falado
Wilhelm Bölsche na obra Die Auferstehung des Religiösen durch die Kunrst
(“O ressurgimento da Religião através da Arte”), publicado em 1904 no
Kunstwart, uma revista que Groddeck, como demonstrado, conhecia bem.
Depois da perda unificante da religião, Bölsche escreve sobre a nostalgia
de um princípio de vida interior dos objetos, de uma união com a força que
cria, governa e progride e chama a este princípio interior “Isso”.

Uma fonte que provém de uma profundidade que age em nós, mas que
este conhecimento nem é apreendido antes nem domina, e que irrompe,
um “Isso” que flui em nós e não chega a nós certamente do exterior como
um prodígio estranho mas que advertimos de um lado como nós mesmos e
de outro como qualquer coisa de muito respeito e ao qual temos a nossa
disposição na superfície para o cotidiano.

Neste “Isso” se situa a unidade da natureza, se unem corpo e espírito. O


“Isso” é o princípio curador do mundo que “compõe e ressoa em nós”. No
final do seu trabalho cria um nexo, que reencontramos no Hinz zu
Gottnatur. “Isso”. O meu eu mais profundo. A natureza em mim. O princípio
do desenvolvimento. Além da grande linha da fronteira, onde entre os
puros todas as palavras se unem, não há nada a ser dito contra Deus.
“Deus-Natureza”, diz Goethe. Bölsche não é de fato o descobridor do
“Isso”, mas muito provavelmente é a partir dele que Groddeck tomou
emprestado o conceito e do qual se deixou estimular [ ... ]. Para Bölsche, o
“Isso” cria uma conexão entre a vida espiritual e o mundo corpóreo, anula
“a fragmentação da vida individual”, possibilitando ao homem chegar à
totalidade: “Na unidade da natureza o corpo e o espírito não são opostos
absolutos”. O entusiasmo pelo todo, o ser totalmente um, vem transferido
ao “Isso”, que agora representa, como diz Bölsche, “essência da
religiosidade”, o momento nostálgico (Sehnsucht). O “Isso” supera a velha
fé e gera uma nova religião criada pela arte. (MARTYNKEWICZ, 2005 p.
95
204, 205)

95
Si riconosce l’Es di Groddeck soltanto se si osserva il contesto nel quale questo concetto compare per la prima
volta: con il libro Hin zu Gottnatur Groddeck annuncia una nuova religione, una nueva fede; è en tutto un libro
absolutamente profetico. E molto di ciò che Groddeck dirà piu tardi dell’Es è influenzato da questo motivo
religioso primigenio: l’Es come forza che ci guida, come principio creatore, che si può benissimo chiamare
anche “Dio”. [ ... ] Di un tale Es, prima di Groddeck, ha già parlato Wilhelm Bölsche nel saggio Die
Auferstehung des Religiösen durch die Kunst ( Il risorgere del religioso per mezzo dell’arte ), apparso nel 1904
sul Kunstwart, una rivista che Groddeck, come dimostrato, conosceva bene. Doppo la perdita della forza
unificante della religione Bölsche scrive della “nostalgia di un principio di vita interiore delle cose, di un
congiungimento con la forza che crea, gover na e sviluppa”. E chiama questo principio interiore “Es”;
112

Com esta colocação original de Martynkewicz, é possível pensar que a fonte


de inspiração para esta ideia inicial do “Isso” é o “Deus-Natureza” de Goethe e que o
sentido do termo, a imagem e a função do “Isso”, foi encontrado por Groddeck na
leitura do trabalho de Bölsche.
Antes da edição do ciclo de conferências, Hin zu Gottnatur, a quinta
conferência, Gottnatur und die Frau, é publicada em 10 de julho de 1909, na revista
Die Zukunft96: “[...] Harden se deixou convencer pelo meu professor Schweninger, a
publicar este capítulo sobre a mulher no seu periódico Zukunft, e então se ergueu
um clamor entre as grandes mulheres”. (GRODDECK, 1994, p. 310)
Esta edição é acompanhada por uma nota escrita pelo editor do periódico,
Maximilian Harden:

Na metade de julho, através da editora S. Hirzel de Leipzing sairá um livro


singular. Um livro que fará alguns sacudirem a cabeça, outros irão se irritar
ferozmente (principalmente as mulheres); talvez em muitos, pelo menos

Una sorgente che proveniene da una profundità che agisce in noi, ma che questa consapevolezza nè coglie prima
né domina, e che irrompe, un “Es”che fluisce in noi e non arriva a noi certo dall’esterno, come un prodigio
estraneo, ma che avvertiamo da unlatto come noi stessi e dall’altro come qualcosa di più rispetto a ciò che
abbiamo a disposizione in superficie per il quotidiano.

In questo Es si trova l’unita del naturale, si uniscono corpo e spirito. L’Es è il principio creatore del mundo che
“compone e risuona in noi”. Alle fine del suo saggio Bölsche crea un nesso che ritroviamo poi in Hiz zu
Gottnatur: “Es. Il mio Io più profondo. La natura in me. Il principio di sviluppo. Al di là della grande linea di
confine, tra i puri tutte le parole si ricongiungono. Non ho niente da dire contro Dio. “Dio-natura’ dice Goethe.
Bölsche non è affatto lo scopritore dell”Es, ma molto probabilmente è colui dal quale Groddeck ha preso in
prestito il concetto e dal quale si è lasciato stimolare, come dimostra soprattutto il fatto che ha desunto da lui
l’intero nesso, la struttura di pensiero. Per Bölsche l’Es crea una connessione tra vita spirituale e mondo
corporeo, anulla “la frantumazione della vita individuale”, consentendo all’uomo di arrivare alla totalità:
“Nell’unità della natura il corpo e lo spirito non sono opposti assoluti”. L’entusiasmo per il tutto, l’’esserebun
tutt’uno” viene transferito all’Es che così rappresenta, dice Bölsche, “l’essenza della religiosità”, il “momento
nostalgico (Sehnsucht)”. L’ Es supera la vecchia fede e ne genera una nuova, una religione creata ad arte.
96
. Quando Freud escreve a Lou Andreas-Salomé (7 de outubro de 1917) sugerindo que lesse o texto de
Groddeck, Psychische Bedingtheit und Psychoanalytische Behandlung organischer Leiden, recém-publicado e
mesmo recomendando, Freud faz algumas ressalvas {tendência do autor ao excesso e à simplificação e um certo
elemento de misticismo}, Lou Salomé responde em 10 de outubro de 1917:
[...] Conheço o autor até certo ponto de alguns artigos do Zukunft, que ele escreveu há anos atrás sobre
‘Gottnatur und die Frau’, até quanto posso lembrar-me, engenhoso mas decididamente místico ( FREUD, 1975,
pags. 88-89 ). Esta resposta mostra que Lou Salomé acompanhou a polêmica do texto de Groddeck e também foi
uma das poucas, senão a única psicanalista, a conhecer algo de Groddeck, antes que ele se aproximasse da
psicanálise; pois a obra pré-psicanalítica de Groddeck parece ter sido totalmente ignorada por Freud e seus
discípulos. A única referência feita por Freud a algumas dessas obras, e já publicadas há um certo tempo, e não
de forma elogiosa, está numa carta que ele escreve a Ferenczi em 30 de março de 1922: [ ... ]Cumprimente Frau
Gisela cordialmente por mim e diga a ela que recentemente li alguns velhos livros de Groddeck (‘Ein Kind der
Erde’ – ‘Tragödie oder Komödie’ – ‘Hin zur Gottnatur’ ) os quais são muito alemães e ruins. (FREUD, 2000,
p. 78 – 79) { [ ... ] Greet Frau Gisela cordially for me and tell her that I recently read several old books by
Groddeck (A Child of the Earth – Tragedy or Comedy – Over to God’s Nature), which are very German and bad.
113

num grupo singular de pessoas, produzirá um verdadeiro entusiasmo.


Deverá levar, porém, cada inimigo ou amigo, a admitir: que é alguém, uma
97
personalidade que tem o que dizer. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 206)

O editor acertou bem a medida do impacto. A reação dos movimentos


feministas foi intensa, com artigos, resenhas e assembléias, o que, em certa medida,
contribuiu para aumentar a popularidade do livro. Alguns exemplos destas reações:
em 30 de julho, Anna Plothow escreve Die Frauein Stuck Gottnatur e publica no
Berliner Tagerblatt; em 15 de agosto, Hedwig Dohn publica na revista quinzenal Die
Frauenbewegung o artigo Die Unpersönlichkeit Der Frau, no qual, entre outras
questões, sugere que as mulheres deixem de ir à clínica de Groddeck. Esta
sugestão merece de Groddeck o seguinte comentário: ”[...] nem eu o esperava, pois
na mesma ocasião ela se encontrava no Sanatório de Schweninger, e seria ilógico ir
ao aluno quando se tinha o mestre à disposição”. (GRODDECK, 1994, p. 310)
Em 25 de setembro, Hedwig Dohn escreve outro artigo, Ein Erlöser von der
Frauenemanzipation na revista Zukunft; ainda no mês de setembro, Emma Strop
publica, em Die Frau und ihre Zeit, o artigo Die Frau ohne Persönlichkeit. Este
merece um comentário de Groddeck em uma carta escrita à autora em 22 de
setembro de 1909.98 Em 27 de novembro, no Deutscher LyceumKlub de Berlim
realizou-se mais um ciclo de discussão sobre o livro. Groddeck escreve:

[...] realizou-se uma discussão sobre o meu livro para o qual fui convidado
e lá compareci. Recebi muitas descomposturas, o que faz parte das minhas
agradáveis recordações da reunião de mulheres, pois, significa algo
quando senhoras como Gertrud Bäumer ou Sra. Heyl se dão ao trabalho de
me educar. [...] Gabriele Reuter levantou-se e me explicou com insistência
que eu não podia falar sobre essas coisas porque nunca tinha sido mãe.
Isto já era demais para uma pessoa com alegre disposição, mas tão logo
ela terminou de falar, a minha vizinha me cochichou ao ouvido as palavras
– não sei se por um senso de justiça ofensiva ou por troça: “Ela também
nunca teve filho”. (GRODDECK 1929, 1994, p. 311)

A respeito deste encontro no Lyceumklub, Martynkewicz conta outros


detalhes:
[...] Groddeck comunica o seu forte interesse em falar às mulheres e a
intervir no debate. No final, depois de um pouco de dúvida, foi convidado.
Na noite do encontro, a sala espaçosa do Lyceumklub estava cheia, não

97
. A metá luglio, presso l’editore S. Hirzel di Lipsia uscirà un libro singolare. Un libro che ad alcuni farà
scuotere la testa, farà arrabbiare ferocemente altri ( soprattutto donne ), forse in molti, perlomeno in singoli
gruppi di persone, scatenerà un vero entusiasmo. Dovrebbe portare però ciascuno, nemico e amico, ad
ammettere: qui c’è qualcuno, una personalità che ha da dire qualcosa.
98
Ver: GRODDECK, 1994, p. 103-106.
114

obstante as numerosas solicitações, segundo o estatuto não poderiam


participar do encontro pessoas de fora. Groddeck faz um discurso longo e
apaixonado. Não acontece aquilo que todos na sala estavam esperando:
as afirmações contidas no livro a respeito da mulher, que não conseguiria
desenvolver uma personalidade própria e o discurso sobre sua periódica
incapacidade de ouvir e querer não é repetido pelo autor da mesma
maneira. No centro da sua fala ocorre o deterioramento iminente da raça e
a responsabilidade da mulher com o resguardo. Sobre este tema, seja
como for, na sala havia entendimento: à pureza da raça e à
responsabilidade peculiar da mulher como imperativo supremo estavam
todos de acordo. As especialistas em direito feminino Alice Salomon e
Gertrud Bäumer procuraram de novo conduzir a discussão para a
divergência e criticar o ideal feminino de Groddeck como vago e estilizado.
Uma parte das mulheres presentes acolhe a crítica, negando-se porém a
desaprovar por este motivo o livro inteiro, que também continha muitas
99
coisas bonitas. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 208)

Voltando à polêmica provocada pela quinta conferência, duas visões


diferentes, porém complementares, podem ser citadas: a primeira vem de uma breve
referência feita por Groddeck em suas “Memórias” e a outra é o comentário feito pelo
biógrafo Martynkewicz. Groddeck escreve: “[...] E então ergueu-se um clamor entre
as grandes mulheres, principalmente porque eu havia afirmado que o período da
mulher não é tanto um processo corporal quanto um êxtase que se repete a cada
quatro semanas “. (GRODDECK 1929, 1994, p. 310)
Em Martynkewicz, podemos ler: “[...] A celeuma é grande e está relacionada
sobretudo com a afirmação de Groddeck segundo a qual a mulher não tem uma
personalidade própria mas é somente uma parte da natureza divina.
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 207)100
Diferente de outros escritos anteriores de Groddeck, o livro Hin zu Gottnatur
tem uma boa repercussão no público leitor e merece, por exemplo, do escritor
vienense Hermann Bahr, um artigo crítico, publicado em 28 de janeiro de 1910, no
Neue Wiener Journal.101

99
. [ ... ] Groddeck comunica il suo forte interesse a parlare alle donne e a intervenire nel dibattito. Alla fine,
dopo un po’di esitazione, viene invitato. La serata dell’incontro la spaziosa sala del Lyceum-Klub è affollata;
nonostante le numerose richieste, secondo lo statuto, non possono parteciare all’incontro ospiti esterni. Groddeck
tiene un discorso lungo e appassionato. Non accade però quello che tutti nella sala stanno aspettando: le
affermazioni contenute nel libro riguardanti la donna, che non riuscirebbe a sviluppare una sua personalità, e il
discorso sulla sua “periodica incapacità di intendere e volere” non vengono più riprese dall’autore nella stessa
forma. Al centro del suo discorso vi sono il deterioramento incombente della razza e la responsabilità della
donna al riguardo. Su questo tema comunque nella sala c’è accordo: la purezza della razza e la responsabilità
peculiare della donna come imperativi supremi trovano tutti concordi. Le esperte di diritto femminile Alice
Salomon e Gertrud Bäumer cercano perciò di portare la discussione di nuovo sul dissenso e criticano l’ideale
femminile di Groddeck in quanto vago e stilizzato. Una parte della donne presenti accoglie la critica, rifiutandosi
però di disapprovare per questo motivo l’intero libro, che conterrebbe anche molte cose belle.
100
. [ ... ] Lo scalpore è grande e si ricollega soprattutto all’afermazione di Groddeck secondo la quale la donna
non ha una personalità propria, ma è solo una parte della natureza divina.
101
. Sobre esta crítica ver: MARTYNKEWICZ, 2005, p. 206)
115

Entre as muitas cartas que Groddeck recebe da maioria das mulheres,


criticando suas posições em relação aos movimentos feministas, uma se destaca,
escrita por:

[...] Hanneliese Schuman [...] é casada com Wolfgang Schuman, enteado


de Ferdinand Avenarius [que] em 1908 entra na redação do Kunstwart .[...]
Entre Hanneliese e Groddeck se desenvolve uma volumosa
correspondência entre os anos 1909 e 1919. [...] Entre os dois
correspondentes cria-se uma certa proximidade que os leva a fazer
confidências e a contarem particularidades íntimas. Podemos antecipar que
Hanneliese Schuman é, com certa segurança a verdadeira mediatriz e o
modelo para aquela a quem o alter ego de Groddeck, Patrik Troll, no Livro
do Isso escreve suas cartas sobre a psicanálise. Emerge aqui que as
histórias contadas no livro não estão privadas de uma base real; por outro
lado também o estilo das cartas é extremamente semelhante.
102
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 208, 209)

Por esta observação feita pelo biógrafo Martynkewicz, a misteriosa amiga, a


quem Patrik Troll escreve as cartas que constituem o Livro do Isso, não é na
realidade nenhum recurso literário, mas sim uma pessoa com quem Groddeck trocou
intensa correspondência. A afirmação é sustentada pelo biógrafo com base na
análise que fez das cartas, inéditas entre os dois e que se encontram nos arquivos
pessoais de Groddeck.

13. Círculos de Discussão Popular e a Cooperativa de Consumo

Ainda segundo Martynkewicz, através de Hanneliese, Groddeck entra em


contato com temas que estão sendo discutidos na Der Kunstwart, como por
exemplo, a questão das associações culturais e de consumo, a cooperativa de
arquitetura e residência, preocupações com a proteção da natureza. Um desses
temas importantes e que vai estar muito presente na formação pessoal e intelectual
de Groddeck diz respeito aos círculos de discussão popular e a cooperativa de
consumo.

102
. Hanneliese Schumann, [...] è sposata con Wolfgang Schumann, un figliastro di Ferdinand Avenarius, che
dopo disparati studi, tutti incompiuti, nel 1908 è entrato nella redazione del Kunstwart, del quale presto diventa
un importante collaboratore con funzioni di dirigente.[...] Tra Hanneliese Schumann e Groddeck si sviluppa una
voluminosa corrispondenza negli anni tra il 1909 e il 1919; [...] tra i due corrispondenti si crea una certa
vicinanza che li porta a farsi confidenzi e a raccontarsi particolari intimi. Possiamo qui anticipare che Hanneliese
Schumann è, con una certa sucurezza, la reale mediatrice e il modelo per quell’amica alla quale l’alter ego di
Groddeck, Patrik Troll, nel Libro dell’Es scrive a sue lettere sulla psicoanalisi. Emerge così che le storie
raccontate nel libro non sono prive di una base reale; peraltro anche lo stile delle lettere è estemamente simile.
116

Na primavera de 1909 foi criado um desses círculos em Baden-Baden.


Michael Pilcher, em seu texto sobre Groddeck, escreve:

[...] Julgava-se parcial demais a designação de Clube de Debates


Trabalhistas, posto que os membros em Baden-Baden provinham,
essencialmente, dos círculos burgueses e, assim, a nova associação
recebeu o nome de Clube de Debate e de Educação Popular de Baden-
Baden. [...] O Clube de Debates, como foi chamado abreviadamente, servia
ao esforço comum de discutir, nas suas reuniões, todas as questões da
vida social, fora de religião e política; [...] Uma vez por mês devia realizar-
se uma reunião, aberta não só aos membros do Clube, mas também a
todos aqueles que quisessem participar do entendimento entre as camadas
da população. [...] A escolha do tema sempre era muito interessante. Em
todas as reuniões era feita uma rápida exposição sobre um tema
determinado. Depois – e isso era o mais importante – seguia-se uma
discussão detalhada que muitas vezes durava até meia-noite. [...] O Clube
de Debates tornou-se o local certo para o cultivo da tolerância e para a
prática das boas relações. (PILCHER, in GRODDECK, 1994, p. 396)

Groddeck participou ativamente dessas discussões e fez deste Clube seu


espaço para a apresentação, sempre muito prestigiada, de várias palestras.103 Além
da participação no Clube de Debates, Groddeck tinha o projeto de organizar uma
cooperativa de consumo, da construção e da habitação.
Em função do verão quente e de uma seca excessiva, os preços dos gêneros
alimentícios de primeira necessidade tiveram uma grande alta e, em 14 de outubro
de 1911, uma assembléia de protesto contra esse aumento foi convocada e:

[...] foi eleita uma comissão com a tarefa de levar ao prefeito as decisões
da reunião e exigir que a cidade pelo menos adquirisse no atacado batatas
e legumes e vendesse a preço de custo à população menos abastada.
Quando apresentei ao prefeito Fieser as nossas reivindicações, ele se
mostrou bastante sensível ao problema da população, porém afirmou que
era impossível a cidade ocupar-se com o comércio de batatas e legumes,
e, dirigindo-se a mim, disse: “O Senhor conhece os meios de combater
melhor os especuladores, “fundem uma cooperativa de consumo”. Quando
comunicamos ao doutor os nossos esforços na prefeitura, ele disse: “Mas
isso é esplêndido, também já pensei nisso”. (PILCHER in GRODDECK,
1994, p. 399)

Nesta mesma assembléia,XIX Groddeck apresenta uma palestra que tem


como tema a questão do encarecimento, o aumento de preço, Die Teuerung.104

103
. Para uma apresentação, comentários e referência a algumas destas palestras ver MARTYNKEWICZ, 2005,
p. 212- 215
104
. Para um comentário da palestra de Groddeck, feita por Agnes Koch e publicada no Badener Tagblatt, ver
GRODDECK, 1996, p. 255, 256.
117

Finalmente, em 7 de dezembro de 1911, uma assembléia foi convocada para


a constituição da cooperativa. Depois de muita discussão e várias tentativas por
parte dos comerciantes de impedir o seu estabelecimento, a Cooperativa de
Consumo foi fundada com 135 membros. Groddeck foi eleito presidente do conselho
fiscal.

[...] Na primavera de 1912, a Cooperativa de Consumo, da qual se pode


105
dizer que é obra do Dr. Groddeck, abriu a primeira loja . Os alicerces para
uma existência real deviam ser bem reforçados, pois os círculos de
comerciantes tudo faziam para impedir todo progresso da cooperativa. O
Doutor sempre conhecia um caminho, e o tomava com sua solidez
característica. Foi então desenvolvido um método novo, mas muito eficaz
de propaganda. O Doutor anunciou um ciclo de conferências sobre o tema:
106
“O homem sadio e o doente”. [...] Quando o ciclo terminou, depois de
umas doze conferências, ouvia-se um pesar geral por ter chegado ao fim.
[...] O que o Doutor explicava teoricamente nestas conferências, ele
também punha em prática sistematicamente na sua atividade médica. [...]
Para o Doutor era importante convencer o paciente a ter confiança em si
mesmo, nas forças curativas, que existem em todos os seres humanos;
pois somente quando o doente também atua no tratamento, quando
acredita nas forças curadoras da natureza, o médico terá êxito no seu
tratamento. (PILCHER in GRODDECK 1994, p. 400, 401)

Groddeck fala dos mais variados temas ligados a questões de saúde e usa a
linguagem mais simples e compreensível possível. Ao final de 1912, prepara os
manuscritos destas conferências para a publicação. O tradutor de Nasamecu para o
francês, P.S. Vilain, faz o seguinte comentário:

Esta obra não tem nada de um tratado científico: ela é o resultado de um


ciclo de conversas populares, que Groddeck [...] realizou diante de um
público modesto, em benefício da associação cooperativa, quando foi um
animador despretensioso. O autor se contentou em revê-las brevemente
com o propósito de publicá-las sob a forma de um livro. Assim colocado, o
leitor não se surpreenderá de reencontrar em diferentes capítulos, de forma
repetitiva, os temas favoritos deste clínico geral. [...] A definição do homem
doente, o papel e o poder do médico, a admiração diante do milagre do
organismo humano; ele não se surpreenderá de encontrar, por exemplo, no
capítulo que trata dos ossos, um desenvolvimento dos nervos da pele, ou,
naquele que é dedicado aos músculos, as idéias de Groddeck acerca da
informação sexual, [...] ele se esforça em ver o homem que sofre dentro do
conjunto de suas condições de existência e considerar os elementos do
corpo humano em suas interdependências (VILAIN in GRODDECK 1980,
107
p. X)

105
. Büttenstrasse 11.
106
. Der gesunde und der kranke Mensch.
107
. Cet ouvrage n’a rien du traité scientifique : il est l’aboutissement d’un cycle de causeries populaires que
Groddeck [...] a faites, devant un public modeste, au bénéfice de l’association coopérative dont il fut l’animateur
désintéressé. L’auteur s’est contenté de les remanier légérement afin de les publier sous la forme d’un livre.
Aussi bien le lecteur ne s’étonnera-t-il pas de retrouver dans les differents chapitres, de façon répétitive, les
thémes favoris de ce médecin généreux [...] la définition de l’homme malade ; le rôle et le pouvoir du médecin ;
118

Esta breve advertência de Vilain servirá como um guia para auxiliar a


caminhada pelos meandros deste livro significativo de Groddeck; mas antes disso é
importante assinalar que no final de maio de 1913, Nasamecu é publicado e
dedicado ao seu mestre SchweningerXX e tem como epígrafe a sugestão de
Groddeck: “Que todos os humanos sejam médicos; Que todos os médicos sejam
humanos!”.

14. Nasamecu

Logo após a publicação do livro, Schweninger: “[...] em 30 de maio o


cumprimentou com um telegrama pelo “livro inigualável”. [...] Todas as críticas da
época estão de acordo com o fato de que se trata bem mais do que uma simples
obra de medicina”. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 218) 108
O título do livro é uma fórmula abreviada, Natura sanat, Medicus curat, a
mesma é a ordem inversa de uma sentença medieval: Medicus curat, Natura sanat.
E qual é o sentido etimológico dos termos contidos nesta sentença? No Novíssimo
Dicionário Latino-Português109 vamos encontrar os termos:

Natura: a natureza personificada, o princípio criador, a inteligência divina.


Leis da natureza, ordem estabelecida pela natureza, curso ordinário das
coisas; presente, dom, obra, efeito da natureza. O complexo dos seres
criados, o universo. Essência das coisas, substância.
Sanat: cura; Sanativus: própria para a cura; Sanator; oris; o que cura.
Medicus: tratar de um enfermo, medicar, aplicar remédio.
Curat: aplicação, tratamento; cura, curae cuidado, diligência;
curate: com cuidado, com diligência; curator, curatoris: o que tem
cuidado.

Poderíamos traduzir então esta sentença como: A Natureza cura, O Médico


cuida. A sentença aparece três vezes ao longo do livro, sendo inclusive a última
frase do livro; na primeira vez em que é mencionada, Groddeck explica exatamente

l’admiration devant le miracle de l’organisme humain. Il ne sera pas davantage surpris de rencontrer, p.e., au
chapitre traitant des os, un développement sur les nerfs du pied, ou, dans celui qui est consacré aux muscles, les
idées de Groddeck sur l’information sexuelle ; [...] il s’efforce de voir l’homme soufrant dans l’ensemble de ses
conditions d’existence et d’envisagerles éléments du corp humais dans leur interdépendance.
108
. [...] Che il 30 maggio ringrazia com um telegramma per il “libro ineguagliable”[...] Tutta la critica
dell’epoca è concorde sul fatto che si tratti bem più che di una semplice opera di medicina.
109
. Novíssimo Dicionário Latino-Português: L. Quicherat (Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 11a edição, 2000).
119

qual é o seu significado: “Natura sanat, medicus curat. É a natureza que cura e não
mais o médico, que, cuida”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 106) 110
E atribui ao paciente um papel responsável neste processo, pois sem essa
responsabilidade, a natureza não pode realizar o seu esforço de cura; do paciente
se espera que crie as condições de vida necessárias, as mais simples e claras
possíveis, como: “[...] nos casos de diarréia, a dieta total; ou, no caso de pneumonia,
a transferência para o hospital, aonde o doente levará uma vida regular; ou ainda a
prescrição de regras de vida precisa”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 106) 111
Este compromisso, se não cumprido, dará condições ao médico de
reconhecer onde ocorrem situações que impedem a natureza de agir de forma
curativa e o que é possível fazer para minimizar o nível de sofrimento do paciente
até limites suportáveis.
A segunda menção a esta sentença ocorre no contexto em que Groddeck está
atribuindo ao médico a função de sempre se colocar a serviço da natureza: “[...] e
nós, os médicos, consideramos este serviço como uma honra. Natura sanat,
medicus curat”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 143) 112
Mas o que significa exatamente este servir à natureza? A resposta que
Groddeck dá a esta pergunta é bem singela: servir é procurar imitar de forma
artificial suas formas de manifestação.
A terceira menção surge no final do livro, com Groddeck dizendo que nada é
mais nobre neste mundo do que ser médico e: “[...] de viver, e de morrer com esta
113
verdade, Natura sanat, medicus curat”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 238). E é
com esta declaração de princípios que o livro acaba.
Apesar de estar sempre procurando reconhecer e valorizar o diálogo entre o
médico e a natureza, Groddeck privilegia a segunda parte da frase, ou seja, a
posição e o valor do médico. O conceito de natureza, apesar de estar presente, não
é tão analisado e explicitado, mas isso vai ficar mais claro na medida em que a
análise do livro for sendo ampliada.
De acordo com Chemouni, o livro de Groddeck pode ser visto como um
prolongamento e um desdobramento do livro de Schweninger Der Arzt: “[...] com o

110
. Natura sanat, medicus curat. C’est la nature qui guérit et non pas le médecin, qui,lui, soigne.
111
. [...] dans le cas de diarrhée, la diète totale ; ou, dans les cas de pneumonie, le transfert à l’hôpital, où le
malade trouvera une vie régulière ; ou encore la prescription de règles de vie précises.
112
. [...] et nous autre médecins, nous considérons ce service comme un honneur. Natura sanat, medicus curat.
113
. [...] de vivre, et de mourir avec cette vérité : Natura sanat, medicus curat.
120

Nasamecu nós estamos no coração dos ensinamentos e do pensamento de


Schweninger, tudo o que é específico nesta obra [...] nós o encontramos na obra de
Schweninger e em particular na sua obra intitulada Der Arzt”. (CHEMOUNI, 1984, p.
21)114
Chemouni estabelece uma filiação intelectual que vai da filosofia médica de
Schweninger ao Nasamecu. E conforme vimos anteriormente, o foco principal de
Schweninger é falar da soberania do médico, do seu poder sobre o paciente;
superioridade que vai permitir o exercício da medicina considerada como arte, ou
seja, a percepção do médico visto mais como um artista do que como um cientista.
Ao paciente nada resta do que se submeter e obedecer às decisões tomadas pelo
médico. A relação médico-paciente existe somente neste sentido e nunca no sentido
inverso paciente-médico.
Inspirado por esta imagem do médico, seus desdobramentos e implicações,
Groddeck escreve seu pequeno, porém substancioso tratado de medicina popular.
Para ele: “Este livro trata do homem saudável e do homem doente. Ele reproduz
minhas opiniões pessoais, sem a pretensão de ser uma obra de nível científico”.
(GRODDECK 1913, 1980, p. 7)115
Usando uma linguagem bem concreta e muito próxima da realidade,
Groddeck faz uma análise do ser humano usando uma lente anátomo - fisiológica,
116
e, aliado a isso, fornece uma série de conselhos médicos; mas o Nasamecu
também tem outro aspecto didático, até mesmo profilático, mas não no sentido
médico, mas intelectual e não só para os médicos como também para os leigos, o
que revela bem seu espírito crítico. Escreve Groddeck:

[...] é bem por isso, e em função da grande ignorância das pessoas, que eu
escrevi este livro. É tempo de elas adquirirem algum conhecimento a fim de
não mais se comportarem na vida como uma criança. O médico, sem mais
razão, necessita de conhecimentos, mas ele estará mal colocado, se estes
conhecimentos forem exclusivamente de ordem médica. (GRODDECK
117
1913, 1980, p. 230)

114
. [...] Avec Nasamecu nous sommes au coeur de l’enseigment et de la pensée de Schweninger ; tout ce qui est
significativ dans cet ouvrage [...] nous le retrouvons dans l’ouvre de Schweninger et em particulier dans son
ouvrage intitulé Der Arzt.
115
. Ce livre traite de l’homme bien portant et de l’homme malade. Il reproduit mes opinions personelles sans
prétendre au niveau d’um ouvrage scientifique.
116
. Cada capítulo é dedicado a um aspecto do corpo humano: os ossos, as articulações, os músculos, os nervos,
a respiração, a circulação do sangue, o sistema vascular, os nervos simpáticos, os olhos, os cinco sentidos e
considerações sobre a alimentação e sobre o comer e o beber, além de uma introdução e uma conclusão.
117
. [ ... ] C’est bien pour cela, c’est à cause de la trop grande ignorance des gens que j’ai écrit ce livre. Il est
temps qu’ils acquiérent quelque savoir, afin de ne pas se comporter dns la vie comme des enfants. Le médecin, à
121

Na introdução, Groddeck adverte o leitor para que não se esqueça de três


ideias básicas e que serão essenciais para a leitura do livro e mais do que isso, será
útil no estudo do sujeito humano:

[...] o ser humano jamais está completo, mas sempre em construção e


condicionado pelas circunstâncias do meio ambiente; não consiste de uma
unidade, mas uma associação; contém componentes masculinos e
118
componentes femininos. (GRODDECK 1913, 1980, p. 11)

Analisando essas sugestões é possível subdividir a perspectiva adotada por


Groddeck em três modelos:
1) Visão dinâmica
2) Visão sistêmica, tanto no plano interpessoal quanto intrapessoal
3) A bi-sexualidade natural do ser humano

Visão dinâmica: o homem está sempre mudando, porém sempre é o mesmo.

[...] O homem não é nunca um ser completo, mas sempre um vir a ser, ele
muda de um segundo a outro, hoje ele é diferente do que foi ontem,
amanhã ele será diferente daquilo que é hoje. Sem descontinuidade, pela
absorção do alimento, por sua respiração, por suas sensações, por seus
pensamentos, pelo seu modo de viver, ele transforma uma parcela do seu
meio ambiente em uma parcela de ser humano e, da mesma maneira sem
interrupção, por suas secreções, por suas palavras, por seus gestos, pelo
seu modo de viver, ele transforma uma parcela do ser humano em uma
119
parcela do meio ambiente. (GRODDECK 1913, 1980, p. 7)

Visão sistêmica inter-pessoal: “[...] jamais perder de vista a relação


indissolúvel que existe entre o homem e seu meio ambiente, esta confluência entre o
homem e o mundo”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 7)120.

plus fort raison, a besoin de connaissances. Mais il serait bien mal loti, si ses connaissances étaient
exclusivement d’ordre médical.
118
.[...] que l’être humais n’est jamais achevé, mais toujours en devenir et conditionné par les circonstances
environnabtes ; qu’il no constitue pas une unité, mais une association ; qu’il comporte des composants mâles et
des composants femelles.
119
. [...] L’homme n’est jamais un être accompli, mais toujours en devenir ; il change d’unes econde à l’autre,
aujourd’hui il est diffèrent de ce quil était hier, domain il sera différent de ce quil est aujourd’hui. Sans
discontinuer, par l’absorption de nourritore, par sa respiration, parses sensations, par ses pensées, par son mode
de vie, il transforme une parcelle de son environnement en une parcelle d’être humais et, de même maniére, sans
interruption, par ses sécrétions, par ses paroles, par ses gestes, par son mode de vie, il transforme une parcelle
d’être humais en une parcell d’environnement.
120
.[...] jamais perdre de vie la relation indissoluble qui existe entre l’homme et son environnement, cette
confluence entre l’homme et le monde.
122

Após esta observação, Groddeck aplica este raciocínio sistêmico ao


tratamento médico:

[...] no mundo médico assim como também no leigo, o tratamento


individualizado tem apenas o valor de um slogan. A expressão é assim, na
medida do possível, inadequada. É suficiente conhecer sua tarefa para
saber que não se trata nunca de um ser humano em sua existência
individual e autônoma; mas sempre de um conjunto de condições de vida
que não cessam de atuar sobre o homem, de formá-lo e modificá-lo. Quem
quer que lide com doentes, seja ele médico ou não, sabe que em sua
terapêutica tanto quanto em seu diagnóstico, é conveniente levar em
consideração os hábitos, o meio ambiente e, sobretudo o contexto familiar.
121
(GRODDECK 1913, 1980, p. 7, 8)

A partir destas colocações, Groddeck justifica o seu modelo de trabalho, como


clínico geral, não ambulatorial, mas privilegiando o internamento por um período de
tempo, em um espaço terapêutico: “[...] O sucesso que obtêm os hospitais122, as
estações termais, etc., se explica em grande parte pela mudança mais ou menos
bruta e brusca de todas as condições de vida do paciente”. (GRODDECK 1913,
1980, p. 8)123
E diante desta situação, Groddeck faz um comentário fundamental sobre a
posição do médico, a de ser sempre subjetivo124, de agir sempre a partir de si
mesmo: “O médico trata uma fatia da vida, e nunca uma personalidade. Mas ele
trata de maneira pessoal, isto quer dizer que ele mesmo, o médico [...] deve ser
subjetivo no mais alto grau, procurando agir a partir de uma vasta experiência e
apreciar o caso particular de vários pontos de vista diferentes”. (GRODDECK 1913,
1980, p. 8)125

121
. Dans le monde médical aussi bien que dans le public, le traittement individualisé a pris valeur de slogan.
L’expression est aussi inadéquatt que possible ; car il suffit me connaître som métier pour savoir que l’on ne
traite pas un être humain dans son existence individuelle et autonome, mais toujours un ensemble de conditions
de vie qui ne cessent d’agir sur l’homme, de le former et de le modifier. Quiconque a affaire aux malades,
qu’ilsoit médecin ou non, sait que, dans sa thérapeutique, voire dans son diagnostic, il convient de tenir compte,
des habitudes, de l’environnement et, surtout, du contexte familial.
122
. Uma descrição literária bem precisa deste modelo de atendimento, com seus personagens, seu cotidiano, a
ação médica, as doenças e as questões e angústias presentes na Europa, pode ser lida no romance A Montanha
Mágica, de Thomas Mann.
123
. [...] Les succés qu’obtiennent les hôpitaux, les stations thermales, etc., s’expliquent en grand partie par le
changement plus ou moins brutal et brusque de toutes ces conditions dans la vie du patient.
124
. É importante sempre lembrar que para Groddeck não existe possibilidade do sujeito ser objetivo: [...] isto é
totalmente impossível; todo homem é subjetivo, ninguém pode abstrair-se de si mesmo, mas dever-se-ia tentá-lo
e quem o tentou, mesmo por um momento apenas percebe-se imediatamente como isto é infinitamente difícil.
(GRODDECK, 2001, p. 28)
125
. Le médecin traite une tranche de vie, et nullement une personalité, mais il la traite de façon personelle, ce
qui vent dire qui lui même, le medecin, doit avoir de la personalité, doit être subjectif au plus haute degré, tout en
agissant à partir d’une large experience et en appréciant le cas particulier de mille points de vue différent.
123

A visão sistêmica intra-pessoal seria: “[...] Mesmo em sua própria pele, o


homem não é unidade, ele se compõe de inumeráveis corpúsculos vivos que
certamente formam uma unidade estreita e que se encontram constantemente em
relação recíproca intensa”. (GRODDECK 1913, 1980, p. 8)126

E sobre a bi-sexualidade natural do ser humano, escreve Groddeck:

[...] não se pode absolutamente esquecer quando se ocupa do ser humano


saudável ou doente, é que os dois sexos, o homem e a mulher, não são
assim diferentes como a aparência nos faz perceber e que é mais certo
dizer que todo indivíduo carrega em si, separadamente, elementos
masculinos e elementos femininos. A única diferença é que, no homem
dominam os elementos masculinos e, na mulher, os elementos femininos.
Mas [...] não existe um só homem que seja exclusivamente homem e
também uma só mulher que seja toda feminina (GRODDECK 1913, 1980,
p.11)

A visão dinâmica - sistêmica e a bi-sexualidade natural do ser humano são


temas que estarão presentes ao longo de toda a obra posterior de Groddeck e serão
desenvolvidos a partir das “Conferências”. Porém, neste momento o que interessa é
explorar e aprofundar a leitura do Nasamecu. Neste caminhar, as longas análises
médicas, as explicações anátomo - fisiológicas e as orientações médicas não serão
consideradas e o foco será colocado não numa análise linear privilegiando capítulo
por capítulo, mas numa abordagem temática.
Para o interesse deste trabalho abordaremos os seguintes temas:
1) O médico
2) O doente e o conceito de doença
3) A terapêutica

A imagem do médico como pensada por Groddeck é muito semelhante à


imagem proposta por Schweninger, ou seja, o médico é soberano, deve ser múltiplo,
sem perder sua identidade e ter mobilidade na sua perspectiva médica:

O médico deve dominar seu paciente. [...] O dom inato de dominar é mais
indispensável que todo o resto e é seu dever desenvolver este dom. O
médico deve dispor de uma personalidade, reunir em sua pessoa
numerosas personalidades. [...] Ele deve conhecer as inúmeras facetas das

126
. [...] Même dans son propre pedu, l’homme n’est pas une unité, il se compose d’innombrables corpuscules
vivants qui, certes forment un union étroite et se trouvent constamment das des relations reciproques intenses.
124

constituições possíveis do caráter humano. (GRODDECK 1913, 1980, p.


127
84)
[...] A superioridade psíquica do médico sobre o paciente é a condição
primordial de toda terapêutica e que a personalidade do médico conta bem
mais que o método terapêutico escolhido. [...] é indispensável que o médico
128
consiga dominar o paciente. (GRODDECK 1913, 1980, p. 102)
129
A base da arte do médico é o de saber impor sua autoridade (idem)
Em última análise, é a personalidade do médico que possibilitará as
130
soluções desses problemas. (GRODDECK 1913, 1980, p. 107)
[...] a tarefa do médico é outra: ele é chamado a dominar, a dirigir este mini-
universo que se chama um ser humano que se mete em seu caminho,
dizendo: “ajude-me, caso, eu esteja doente”. (GRODDECK 1913, 1980, p.
131
230)
[...] nós somos orgulhosos de estar a serviço da natureza, [...] é nulo agir
em oposição à natureza (GRODDECK 1913, 1980 p. 15)

Nestas citações sobre a natureza do médico é possível perceber que os dois


verbos preferidos por Groddeck para definir a ação do médico são: dominar e dirigir;
e que a conjugação destes verbos não é algo que se aprende, é como um dom
inato. Para Groddeck, a personalidade do médico é o principal elemento da relação
médica, ocupando um papel preponderante sobre seus conhecimentos científicos e
o método terapêutico escolhido. Outra característica é a ação do médico como arte.
O exercício dessa arte faz com que o médico fique a serviço da natureza (vida) e
não possa agir em oposição a ela.
Além da capacidade de se impor, a sua personalidade, uma das outras
qualidades: [...] primárias e essenciais do médico é sua discrição (GRODDECK
1913, 1980 p. 54). 132
Groddeck recomenda: [...] cuide da tua língua, atenção às conseqüências de tuas
palavras! (idem).133 Essa sugestão se dirige principalmente ao que ele chama de: [...]
134
a mania dos diagnósticos (idem). E à sua dúvida: [...] em que o diagnóstico ajuda
ao paciente? (idem). 135

127
. Le médecin doit dominer son patient. [...] le don inné du dominateur lui est plus indispensable que tout le
reste et il est de son devoir de développer ce don. Le médecin doit disposer d’une personalité, réunir en sa
personne de nombreuses personalités.
128
. [...] la supériorité psychique du médecin sur le patient est la condition primordiale de toute thérapeutique et
que la pernalité du médecin compte bien plus que la méthode do traitement choisi. [...] Il est indispensable que
le médecin réussisse à dominer le patient.
129
. La base de l’art du médecin est de savoir imposer son autorité.
130
. En dernière analyse, c’est la personnalité du médecin qui trouvera les solutions à ces problemes.
131
. Le métier du médecin est tout autre: il est appelé à dominer, à diriger ce mini-universe qui s’apelle un être
humain et qui se met en travers de son chemin, disant : Aide-moi, car je suis malade.
132
. L”une des qualités premières et essentielles du médecin est sa discrétion.
133
. [...] garde ta langue, regarde les consèquences de ta parole !
134
. [...] la manie des diagnostics
135
. [...] em quoi le diagnostic regarde-t-il le patient ?
125

Antes de explorar a questão do diagnóstico, seus limites, função e como ele


deve ser pensado, gostaria de me deter um pouco mais no médico e na definição de
medicina proposta.
Como é a noção de medicina proposta por Groddeck? [...] A medicina é a
ciência experimental por excelência; ela repousa sobre as experiências que a vida
nos expõe, e nós procuramos interpretar e imitar na medida do possível (idem, p.
230),136 segundo ele também: [...] a ação médica é o fundamento da ciência.
(idem)137
Diante destas duas citações é importante salientar que Groddeck não advoga a
inutilidade dos conhecimentos, bem ao contrário, pois segundo ele: [...] o médico tem
fortes razões, de necessitar dos conhecimentos. Mas eles serão bem mal situados,
se estes conhecimentos forem exclusivamente de ordem médica. (idem)138
Ao exercer uma atividade prática, mas que supõe um amplo conhecimento, não
só da medicina como também de amplos aspectos da vida e que será temperado
pela discrição, ao médico groddeckiano será exigido o que ele chama de “bom
senso”:
[...] O termo ‘bom senso’ não implica negativamente que ele deve se
permitir ignorante; o bom senso não visa nunca à criação do saber, mas o
seu emprego. Ele implica que se possa converter em atos a quantidade de
saber de que se dispõe. [...] O que importa é a capacidade de transformar
em ação seu saber. Não é nunca benéfico abordar as coisas práticas com
os instrumentos de uma erudição excessiva. (GRODDECK 1913, 1980, p.
139
231)

Dentre os vários aspectos da vida e por extensão da vida do doente, que o


médico deve conhecer, Groddeck inclui a preocupação com as questões sociais e
econômicas, incluindo desde a moradia até a alimentação, pois segundo ele:

[...] a profissão médica está indissoluvelmente ligada a todos os problemas


sociais. [...] Os verdadeiros médicos estão de qualquer maneira a serviço
do trabalho social: não por razões humanitárias – detesto esta expressão,
porque ela é profanada pela tagarelice – mas pela necessidade, pelo amor

136
. La médecine est la science expérimentale par excellence : elle repose sur les expériences que la vie fait
devant nous, et que nous chechons à interpréter et à imiter aussi bien que possible.
137
. [...] l’action médicale est le fondement de la science.
138
. [...] Le médecin, à plus forte raison, a besoin de connaissances. Mais il serait bien, mal loti, si sés
connaissances étaient exclusivement d’ordre médical.
139
. [...] Le terme de « bon sens » n’implique nullement qu’il soit permis d’être ignorant ; le bon sens ne vise pas
à la création du savoir, mais à son emploi. Il implique que l’on puisse convertir en actes la quantité de savoir
dont on dispose. [...] Ce qui compte, c’est la capacité de mettre en oeuvre son savoir. Ce n’est pas toujours
bénéfique que d’aborder les choses pratiques avec les moyens d’une érudition excessive.
126

à nossa profissão. Neste momento, os problemas sociais são ainda parte


integrante da medicina de nossos dias. (GRODDECK 1913, 1980 p. 64,
140
65)

Com estas exigências e para que o médico, na sua ação de cuidar e não de
curar, tenha da vida uma visão multifacetada e se preocupe com o doente e não
com a doença, é que se oferece a crítica de Groddeck a respeito do peso e da
importância do diagnóstico, pois ele em nada ajuda: as denominações médicas
pouco informam a respeito da etiologia, da evolução e do estado atual da doença e
não dão grandes subsídios para a terapêutica a qual ele considerava fundamental.
Ao considerar o sujeito dentro da totalidade da sua vida é possível perceber uma
sutileza que para Groddeck funciona como uma explicação para o processo do
adoecer: [...] o ser humano é o produto da sua existência. São seus hábitos que o
adoecem (GRODDECK 1913, 1980, p. 35).141 O diagnóstico deveria então:

[...] considerar o conjunto da situação e das condições de existência do


doente. Somente o conhecimento completo desses elementos permitirá as
conclusões para o tratamento e a tarefa do médico consiste em cuidar e
142
não dar diagnósticos. Nil nocere: não fazer o mal! (idem, p. 55)
[ ...] O diagnóstico não deixa dúvida do problema, mas este não é o que
conta, é a terapêutica. Teremos bom estudo sobre o tratamento dessas
doenças, através dos livros, que digo, volumes inteiros e bibliotecas
completas, isso não servirá de nada. Se, ao contrário, decidimos estudar
não os livros, mas o homem em si, e todas as condições da vida do
paciente, seria bem possível que descobríssemos a terapêutica adequada
143
( GRODDECK 1913, 1980, p. 223)

Dentro desta visão sistêmica, o que é uma doença e qual a sua relação com a
saúde? Qual é o sentido da doença, aqui entendida como direção, propósito, e
também como significado?

140
. [...] La profession médicale est indissolublement liée à tous les problèmes sociaux, [...] tous les vrais
médecins sont de quelque manière au service du travail social: non pas pour des raisons humanitaires – nous
détestons cette expression, parce qu’elle est profanée par les bavardages – mais par nécessité, pour l’amour de
notre métier. Pour le moment, les problèmes sociaux sont encore partie intégrante de la médecine de tous les
jours.
141
. [ ... ] l’être humain est le produit de son existence. Ce sont ses habitudes qui le rendent malade.
142
. [ ... ] embrasser l’ensemble de la situation et des conditions d’existence du malade. Seule la connaissance
complete de ces éléments permet des conclusions pour um traitement. Et le métier de médecin consiste `traiter et
non à donner des diagnostics. Nil nocere : ne pas faire de mal!
143
. [ ... ] Le diagnostic ne pose sans doute pás de problème, mais ce n’est pas lui qui compte, c’est la
thérapeutique. On aura beau étudier, sur le traitement de cettes affection, des pages et des pages dans les livres,
que dis je, des volumes entiers et des bibliothèques compl`tes, cela ne servira à rien. Si, au contraire, on se
décidait à étudier non pas les livres, mais l’homme que l’on devant soi, et toutes les conditions de la vie du
patient, il serait bien possible que l’on découvre la thérapeutique adéquate
127

[...] a saúde e a doença não são contrários. Eles não estão separados por
qualquer linha além dela ou aquém dela aonde se possa dizer: aqui o
sujeito é saudável e a partir de lá ele é doente.
144
(GRODDECK 1913, 1980, p. 21)
[...] cada época é assim tanto saudável quanto não-saudável, da mesma
maneira que cada ser humano é simultaneamente sadio e doente.
145
(GRODDECK 1913, 1980, p. 88)
[...] o erro antigo que considera que a doença é um agente externo que
agride o homem desde fora. [...] é bom admitir que a doença não é jamais
um elemento externo ao corpo, mas um processo da vida [...] que o
elemento decisivo para a evolução da vida no sentido da saúde ou da
doença, não é o bacilo, mas o próprio homem. (GRODDECK 1913, 1980,
146
p. 94-95)
[...] Falamos de doenças, mas não temos certeza, o termo “doença” implica
que imagine-se um adversário, um inimigo que ataca-nos do externo. Idéia
bem pueril. O estado patológico, parte integrante da vida, é a tentativa da
vida mesma de procurar adaptar-se a condições novas. [...] Nós nos
adaptamos às condições que a vida oferece. (GRODDECK 1913, 1980, p.
147
235)
[...] As tendências de cura estão incluídas na própria doença. Existem
mesmo no câncer, mesmo na morte; a vida persegue a sua ação
ordenadora, procura curar e trazer à saúde, criar, mesmo quando as
condições são más, a melhor existência possível: ela comove a
148
sensibilidade do doente. (GRODDECK 1913, 1980, p. 236)
[...] Quer estejamos doentes ou bem, portanto, a vida é uma aposta na
ordem. Sem se cansar ela diz ao homem: “coloque ordem” [...] porque o
caos está em você mesmo, aqui está a doença que tem a missão de
149
colocar a ordem no teu caos. (GRODDECK 1913, 1980, p. 236)
[...] Mas realmente, a herança, a doença e a morte estão no seu serviço
para “ornar e concluir”. É necessário render-se a esta evidência: no caos
reside o germe da cura. A própria vida cura: isso é precisamente o que os
150
homens e os médicos devem saber (GRODDECK 1913, 1980,p. 237)

144
. [ ... ] La santé et la maladie ne sont pas des contraíres, elles ne sont pás séparées par quelque ligne au-delá
ou en deça de laquelle lón pourrait dire : junqu’ici le sujet est bien portant, à partir de là il est maladie.
145
. [...] Plus ou moins, chaque époque est aussi bien saine que malsaine, de même que chaque être humais est
simultanément bien portant et malade.
146
.[...] L’ancient erreur qui veut que la maladie soit un agent étranger qui agresse l’homme ;[ ... ] bien admettre
que la maladie n’est jamais un élément étranger au corps, mais un processus de la vie même de ce corps ; [...]
que l’élément décisif pour l’évolution de la vie dans le sens de la santé ou dans celui de la amaldie n’est pas le
bacille, mais l’homme lui-même.
147
.[...] Nous parlons de maladies, mais nous avons bien tort, le terme « maladie » impliquant que l’on songe à
un adversaire, un ennemi qui nous agresse de l’extérieur. Idée bien puérile. L’état pathologique, parte intégrant
de la vie , n’est que la tentative de la vie même de chercher à s’adapter à des conditions nouvelles. [...] Nous
nous adaptons aux conditions qui la vie offre.
148
. [...] Les tendances de guérison sont includes dans la maladie même. Elles existent même dans le câncer;
même dans la mort, la vie poursuit son action ordonnatrice, cherche à guerir et à ramener à la santé, à créer,
même quand les conditions sont mauvaises, la meilleur existence possible : elle émousse la sensibilé du
moribond.
149
. [...] Que l’on soit malade ou bien portant, la vie est une mise en ordre.[...] Sans se lasser, elle dit à homme :
mets d el’ordre, et si tune le peux, parce que le chaos est en toi-même, voici la maladie qui a mission de mettre
de l’ordre dans ton chaos.
150
. [...] Mais en réalite, l’hérédité, la maladie et la mort sont à son service pour la parer et la parachever. Il faut
se rendre à cette évidence : dnas le chaos gît le germe de la mise en ordre, et dnas la maladie, le germe de la
guérison. La vie elle-même guérit : c’est justement ce que les hommes et les médecins doivent savoir.
128

A doença não é considerada por Groddeck como algo que se opõe à saúde,
mas que a complementa. Desta forma, fica difícil estabelecer exatamente em que
momento uma doença tem seu começo. Também deve - se considerar a sua função
de tentar, através dos seus próprios recursos, ir além de alguma situação caótica na
vida; a doença buscando o restabelecimento da ordem. Mas não podemos perder de
vista que o foco do pensamento de Groddeck não é a doença e sim o doente; não é
a doença que dá nexo ao doente e sim o doente que oferece a lógica da doença:

[...] o doente não é o produto da sua doença, mas a doença é o produto do


doente, ainda que se deva saber que toda afecção provoca repercussões
151
no paciente, transformando-o ( GRODDECK 1913,1980, p. 107)

Vamos então estudar este importante personagem: o doente. Como Groddeck


o define ou mesmo, diante de todas as considerações anteriores, se é possível
defini-lo.

[...] eu não vejo nenhuma possibilidade de definir cientificamente o termo


“doente”.[permitir] dizer minha definição pessoal. É doente, no meu
significado, o indivíduo diminuído em seus desempenhos e que se credita
como tal. Para mim, todos os outros são saudáveis, pouco me importa que
a Faculdade os tenha declarado gravemente doente. (GRODDECK 1913,
152
1980, p. 23)
[...] Qualquer um que se sinta doente, é conveniente se considerar doente,
mesmo que o exame não descubra nada de patológico sobre ele ou nele.
153
(GRODDECK 1913, 1980, p. 23)

O melhor resumo do que foi dito até agora sobre a doença, a relação dela
com a saúde, a dificuldade em delimitar a diferença entre as fronteiras exatas com a
saúde, a relativização da doença e a questão colocada acima sobre a escolha
pessoal do doente em definir ou não seu estado como patológico, encontramos em
Jacquy Chemouni:

Desde esta época, Groddeck se esforça em estabelecer uma distinção


justa entre o normal e o patológico, entre a saúde e a doença. Parece-lhe
impossível traçar uma linha de demarcação idêntica para todos os
indivíduos entre o domínio da doença e o da saúde. Depende da liberdade

151
. [ ... ] le malade n’est pas le produit de sa maladie, mais la maladie est le produt du malade, encore que l’on
doive bien admettre que toute affection a des repercussions sur le patient en le transformant.
152
. Je ne vois aucune possibilite de définir scientifiquement le terme « malade » ; [ permettre ] de dire ma
définition personnelle. Est malade, à mon sens, l’individu diminué dans son rendement et qui se croit tel. Pour
moi, tout les autres sont bien portants, peu m’importe que la Faculté les ait déclares gravement malades.
153
. [ ... ] Quand quelqu’un se sent malade, il convient de le traiter en malade, même si l’examen ne découvre
rien de pathologique sur lui ou en lui.
129

de cada um de filiar-se à categoria dos seres indispostos ou àquela dos


saudáveis. Em resumo, definir o normal e o patológico é necessário referir-
se não à doença, qual seja a gravidade, mas à pessoa doente. [...] Mas a
doença existe mesmo assim. Ela não se define por nenhuma norma, ou
capacidade a se adaptar a normas: ela é verdadeira apenas no relativo,
não no absoluto. A cada indivíduo correspondem critérios que permitem
determinar ou não a existência de uma patologia. (CHEMOUNI, 1984, p.
154
34)

E esta avaliação subjetiva do doente implica o reconhecimento do aspecto


psicológico. E a perspectiva adotada no Nasamecu, e em toda sua obra, é a de
considerar o sujeito em sua totalidade:

[...] é por isso bem difícil dizer se certos processos são mais de ordem
física ou psíquica, pois os dois estão ligados indissoluvelmente.
155
(GRODDECK in CHEMOUNI 1984, p. 89)

Vale salientar que Groddeck não tinha uma teoria do psíquico, tanto em seus
aspectos estruturais quanto dinâmicos. A sua noção de inconsciente era pensada
dentro do espírito romântico como desconhecido, um aspecto oculto da natureza e
do sujeito, material sem estrutura que se expressa principalmente na poesia, nos
sonhos e na enfermidade mental. Como clínico geral, Groddeck, nesse primeiro
momento, situa o inconsciente e faz seus comentários a respeito dele, como o
desconhecido das funções somáticas:

[...] então compreenderia, de repente, como a razão e a vontade


desempenham na nossa existência um papel subordinado, em que ponto
uma boa parte de toda vida humana, abrigada em certa medida no
subterrâneo, não atravessa o limiar do consciente. Quem, por conseguinte,
tem consciência deste grande, desta maravilhosa “estação de
bombeamento que, a cada segundo, fornece ao nosso corpo e à nossa
inteligência um alimento novo? Proclamamos orgulhosamente que
sabemos nos dominar, enquanto nós não somos mesmo capazes de
acalmar o menor músculo num vaso sanguíneo, bem mais, nós não
percebemos mesmo, não temos nenhuma possibilidade de perceber a
modificação que conhece a nossa pupila a cada olhar. Não somos mesmo

154
. Dès cette époque, Groddeck ser efuse à établir une franche distinction entre le normal et le pathologique,
entre la santé et la maladie. Il lui semble impossible de tracer une ligne de démarcation identique pour tous les
individus entre le domaine de la maladie et celui de la santé. Il depend de la liberté de chacun de s’affilier à la
catégorie des êtres souffrants ou à celle des bien portants. En un mot, définir le normal et le pathologique
nécessite de se référer non à la maladie , quelle qu’en soit la gravité, mais à la personne malade. [ ... ] Mais la
maladie existe tout de même. Elle ne se définit par aucune norme, ou capacité à s’adapter à des normes : elle
n’est vraie que dans le relatif, non dans l’absolu. A chaque individu correspondent des critères permettant de
déterminer ou non l’existence d’une pathologie.
155
. [ ... ] il est parfois bien difficile de dire si certains processus sont plutôt d’ordre physique ou d’ordre
psychique, puisque les deux sont indissolublement liés.
130

os mestres de nossa própria musculatura e bem menos ainda de nossos


156
pensamentos. (GRODDECK 1913, 1980, p. 41)

Esta localização, ainda que parcial, já mostra uma tentativa de Groddeck de


relativizar as funções da consciência, tirando muito da sua substância. Segundo seu
relato retrospectivo, foi a partir de 1909 que começou a perceber e a pensar os
aspectos simbólicos nas expressões humanas e, por extensão, a sua presença nas
doenças orgânicas; isto o conduz a começar a pensar e a explorar o aspecto
psíquico do inconsciente, e, nessa ampliação é necessário que se desloque sua
perspectiva do Romantismo para a Psicanálise conforme pensada por Freud.
Este contato leva Groddeck a fazer um movimento temático fundamental: de
apenas reconhecer, sem nomear de forma exata e precisa, a presença do
inconsciente na doença, para uma hermenêutica da doença. Esta atitude
hermenêutica nos remete a Freud, com sua afirmação de que os sintomas tinham
um significado e eles tenderiam a desaparecer depois que fossem interpretados e
compreendidos pelo paciente. Com essa postura, Freud inaugura um novo capítulo
na história da psiquiatria e por extensão certamente na história da medicina. A partir
deste instante e diante da eficácia dos resultados clínicos obtidos, os psicanalistas
se distanciam do modelo médico da doença e se aproximam do procedimento
hermenêutico.
Simultaneamente a este movimento, mas sem um conhecimento direto do
mesmo, Groddeck descobre de forma independente alguns dos conceitos e
procedimentos fundamentais da Psicanálise. Um deles é a relação médico-paciente
e as considerações de Groddeck acerca do tema ainda estão centradas na herança
intelectual de Schweninger. Esta relação é vista de forma literal, presa ao real e não
inclui, ainda, as questões metafóricas e psíquicas da relação, como já estava sendo
pensado pela Psicanálise. A construção e o significado dessa relação terapêutica é
o que vai ser considerado a seguir e não tanto os procedimentos terapêuticos

156
. [ ... ] alors il comprendrait soudain à quel point raison et volonté jouent dans notre existence un rôle
subordonné, à quel point une bonne partie de toute vie humaine, demeurant en quelque sorte souterraine, ne
franchit pas le seuil du conscient. Qui donc a conscience de cette grande, de cette merveilleuses station de
pompage que, à chaque seconde, fournit à notre corps et à notre intelligence un aliment nouveau ? [ ... ] Nous
proclamons fièrement que nous savons nous dominer, alors que nous ne sommes même pas capables de calmer
le moindre muscle dans un vaisseau sanguin, bien plus, nous ne percevons même pas, nous n’avons aucune
possibilité de percevoir la modification que connaît notre pupile à chaque regard. [ ... ] Nous ne sommes même
pas les maîtres de notre propre
musculature et bien moins encore de nos pensées.
131

sugeridos, pois [...] a regra fundamental é: essencial não é o tratamento prescrito,


mas a maneira de aplicá-lo. (GRODDECK 1913, 1980, p.124)157. E como se inicia
esta relação? Os dois personagens envolvidos estão atentos a quê? E com que
propósito? [...] O início da terapêutica consiste na apreciação recíproca das forças
morais de que dispõe respectivamente o médico e o paciente. (GRODDECK 1913,
1980, p. 110).158 Esta apreciação inicial,159 que Groddeck considera como uma pré-
condição para a eficácia do tratamento e sugere que o médico não perca de vista
este propósito, deve caminhar lentamente para uma submissão do doente à vontade
de seu médico, pois essa atitude cria as condições para que o paciente instale em si,
aquilo que segundo Groddeck, ele mais necessita: a esperança.

Queremos a esperança da cura. Bem mais, no fundo, não esperamos,


desde o primeiro momento, a ajuda, mas a certeza da cura. Não se sabe
mais apreciar a sua situação, perdeu-se a confiança em si. Essas duas
coisas espera-se do médico. Não nos deixamos induzir ao erro pelas fortes
palavras do paciente que exige a verdade, apenas a verdade. Este quer
ainda, ter esperança, certeza da cura, mas nunca a verdade. (GRODDECK
160
1913, 1980, p.110)

A relação terapêutica é individual e específica para cada paciente, com


detalhes e sutilezas que só podem ser totalmente entendidas dentro das sutilezas de
cada relação. É isso que aproxima esta prática de uma arte. E:

[ ... ] O médico, sem dúvida, existe para todos os que sofrem, e ele deve
dar ao seu tratamento a forma mais simples possível, a fim de que todo
mundo, ricos e pobres, possam aproveitar; diante do médico, todos os
homens são iguais, ele age sem considerar a pessoa (GRODDECK
1913, 1980, p. 108)161

157
. [...] la règle fondamentale est: l’essentiel n’est pas le traitement prescrit, mais la manière de l’appliquer.
158
. [...] Le début de la thérapeutique consiste dans l’appréciation réciproque des forces morales dont disposent
respectivement le médecin et le patient.
159
. [...] o primeiro encontro é decisivo, e se, neste momento, o médico não perde de vista este objetivo, ele
atenderá a maior parte dos casos (idem, p.102) { [ ... ] sur ce point , la première rencontre est decisive, et si, à ce
moment-là, le médecin ne perd pas de vue cet objectif, il l’ atteindra dans la plupart des cas, }
160
.[...] On veut l’espérance de guérir. Bien plus, au fond, on n’attend pas, dès le premier moment, le secours,
mais la certitude de la guérison. On ne sait plus apprécier sa situation, on a perdu la confiance en soi. Ce deux
choses, on les attend du médecin. Ne nous laissons pas induire en erreur par les fortes parelos du patient exigeant
la verité, rien que la vérité. C que’il veut toujours, c’est l’esperance, la certitude de l guérison, mais jamais la
verité
161
. [...] le médecin, n’est ce pas, existe pour tous ceux qui souffrent, et il doit donner à sa thèrapeutique la forme
la plus simple possible, afin que tout le monde, riches ou pauvres, puisse en profiter, devant le médecin, tout les
hommes sont égaux, il agit san considération de la personne.
132

Resumindo, a relação está centrada em uma perda - a confiança em si - e


uma busca - a esperança de cura. Para tanto, duas atitudes de base são
necessárias: a do médico, em saber impor sua autoridade e a do paciente, de se
submeter a esta autoridade. Para Groddeck, a terapêutica é essencialmente de
ordem psíquica e [...] o tratamento psíquico se coloca no início mesmo de todo
tratamento. (GRODDECK 1913,1980 p. 102)162
Mas que tratamento psíquico Groddeck está propondo? Certamente não é
nenhum tratamento baseado em métodos e técnicas psicanalíticas, mas sim um
procedimento bastante comum encontrado nesta época no meio médico: a sugestão
ou [ ... ] a superioridade psíquica do médico sobre o paciente é a condição primordial
de toda terapêutica. (GRODDECK 1913, 1980, p. 102)163
Antes da Psicanálise se estabelecer como modelo terapêutico hegemônico na
Europa e na América, a hipnose e a sugestão eram os procedimentos terapêuticos
dominantes. Foi Liébault quem estabeleceu a doutrina da sugestão terapêutica.
Segundo ele, a sugestão tinha a idade do mundo e a novidade estava na aplicação
sistemática à terapia.XXI
Outro aspecto importante da terapêutica consiste em uma preocupação com o
ambiente no qual está o doente; uma forma de intervenção seria o de colocar o
sujeito em um sanatório, mas esta nem sempre é uma solução possível. E diante
desta impossibilidade, aparece a família do doente e suas possibilidades de
cooperar ou atrapalhar o atendimento. A solução proposta por Groddeck é de
também submeter a família à autoridade do médico, senão:

[...] Os membros da família, mesmo quando estão de boa vontade e


sobretudo em função das suas boas intenções, constituem um obstáculo
ao tratamento. Todo mundo, desde a infância, gosta de brincar de médico,
e quando um membro bem querido da família fica doente, ficando
desamparado, você socorre dando conselhos a torto e a direito e, em seu
zelo excessivo, você acaba atrapalhando. (GRODDECK 1913, 1980 p.
164
109)

162
. [...] Le traitement psychique se place au début même de tout traitement.
163
.[...] la supériorité psychique du médecin sur le patient est la condition primordiale de toute thérapeutique.
164
. [...] Les membres de la familie, même quand ils sont de bonne volonté et sourtout à causa de leurs bonnes
intentions, constituent un obstacle pour la thérapeutique. Tout le monde,dès l’enfance, aime à jouer au toubib, et
quand un membre bien cher de la famille vous tombe malade, alors, désemparés, vous ramassez à droite et à
gauche les conseils les plus absurdes et, dans votre zèle excessif, vous faites des malheurs.
133

Groddeck reitera que [...] Só um pode ser o mestre, e este só pode ser o médico,
pois ele é quem cuida. (GRODDECK 1913, 1980, p.109)165
Estas intervenções do médico, a aceitação do paciente e da sua família dos
atos autoritários do médico, as sugestões terapêuticas, estão na realidade a serviço
de uma autoridade maior: a Natureza ou a Vida. Para que ela aja de forma curativa é
necessário que as condições curativas sejam criadas. Deixemos o próprio Groddeck
nos falar sobre isso:

[...] Supomos que, a partir de agora, nós dispomos de todo o conhecimento


que a humanidade acumulará nos milênios que virão; nós não seríamos
capazes de curar um simples resfriado: nunca poderemos fazer mais do
que tratar. Este mesmo tratamento, que é a nossa única tarefa e privilégio
só nosso, será sempre limitado pelo poder da própria vida. A vida tolera
com rigor que tiremos uma articulação doente, por exemplo, do joelho,
substituindo-a por outra; mas ainda, é possível pensar que ela nos
permitirá um dia transplantar de um indivíduo a outro, a fim de substituir os
órgãos deficientes, o rins, os ovários ou os olhos saudáveis. Mas, sempre,
ela se reservará o direito de fazer viver ou não esses órgãos, se eles serão
recebidos ou não dentro da unidade do corpo humano. (GRODDECK 1913,
166
1980, p. 228)

[...] Levavam, pelo contrário, mais profundamente inscrito no seu coração


que nós não fazemos, esta verdade, essencial do exercício do médico: a
saber que somente a vida tem o poder de curar, o fato mesmo de estar
167
vivo, é o verdadeiro médico. (GRODDECK 1913, 1980, p. 229)

[...] Este é um erro fundamental crer que o médico deva ou possa reparar o
homem que apresente defeitos, o recoloque em funcionamento, como
fazemos com uma máquina enguiçada; este trabalho é reservado à própria
vida humana, a esta vida que, única, dispõe dos conhecimentos e dos
meios necessários para curar, a vida que é melhor do que qualquer
168
engenheiro. (GRODDECK 1913, 1980, p. 30)
[...] Assim é o médico. Dirige as forças da vida, confia na vida. Em todos os
momentos, o conhecimento da vida lhe é indispensável. (GRODDECK
169
1913, 1980, p.131)

165
. [ ... ] Um Seul peut être le maitrê, et cela ne peut être que le médecin, celui qui soigne.
166
. [ ... ] Supposons que, des maintenant, nous disposions de toutes les connaisances que l’humanité accumulera
dans les millénaires à venir; nous n’en serions pas plus capables de guérir un simple rhume: nous ne pourrons
jamais faire autre chose que traiter. Et ce traitement lui-même, qui est notre seule tâche et notre seul privilège,
sera toujours limité par le pouvoir de la vie elle-même.La vie tolère, à la rigueur, que nous ôtions une articulation
malade, par example celle du genou, pour la remplacer par une autre ; bien plus, il es permit de penser qu’elle
nous permette un jour de transplanter d’un individu à l’autre, afin de remplacer des organes déficients, des reins,
des ovaires os des yeux normaux. Mais, toujours, elle se réservera le droit de faire vivre ou non ces organes, d
eles faire recevoir ou non dans l’unité du corp humain.
167
[ ... ] Ils portaient, au contraire, plus profondément inscrite en leur coeur que nous ne faisons, cette vérité,
essentielle dans le métir de médecin : à savoir que seule, la vie a le pouvoir de guérir; que la vie, le fait même
d’être vivant, est le véritable médecin.
168
. [ ... ] C’est une erreur fondamentale de croire que le médecin doive ou puisse réparer l’homme qui présent
des défauts, le remettre en marche, comme on fait d’une machine détraquée : cet office est réservé à la vie
humaine elle-même, à cette vie qui,seule, dispose des connaissances et des tours de main nécessaire pour guérir,
à la vie qui est vraiment meilleur ingénieur que n’importe qui.
169
[ ... ] Tel est le médecin. Il dirige les forces de la vie, il fait confiance à la vie. A tout moment, la connaissance
de la vie lui est indispensable.
134

[...] A vida ela mesma cura: é precisamente o que os homens e os médicos


devem saber. Este é o conhecimento essencial do qual tem necessidade, a
base fundamental do seu saber, do seu pensamento e da sua ação. A vida
assemelha-se ao fogo: muito tempo antes que qualquer um tivesse idéia de
o analisar cientificamente, o homem conhecia seu poder benéfico, sabia
dominá-lo e o orientar, sabia derreter os metais e construir ao redor do fogo
seu lar. E a vida doma-se, sem dúvida, como o fogo. (GRODDECK 1913,
170
1980, p. 237)
[...] Não é necessário crer, não é permitido acreditar que um médico nunca
tenha curado tal ou qual: ele não tem o poder; é a natureza quem cura, o
171
médico cuida. (GRODDECK 1913, 1980, p. 237)
[...] Como nós fizemos ontem, como nós fazemos hoje, descobriremos
amanhã e ao longo de nossa vida os meios e os métodos de cura que a
natureza produz [...] A nossa recordação é infinita, e bem mais ainda a
nossa gratidão, por tudo isso que ela opera em nosso nome (GRODDECK
172
1913, 1980, p. 238)

15. Primeira Guerra Mundial

Um fato histórico marcante vai definir o mundo e principalmente a Europa, a


partir do segundo semestre de 1914. Um assassinato que será o estopim, mas não a
causa de uma guerra que irá envolver vários países. O Arquiduque Franz Ferdinand
sabia que sua primeira visita oficial a Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina seria
perigosa. Essas províncias gêmeas faziam parte da Sérvia. Sarajevo tinha se
transformado num centro de nacionalismo pan-sérvio. Mesmo defendendo maior
autonomia para a região, o Arquiduque, herdeiro do trono austro-húngaro, era
odiado. No dia 28 de junho, ao entrar na cidade em carro aberto, alguém jogou uma
bomba contra ele. Ferdinand empurrou o artefato para perto de outro veículo. Sua
sorte não durou muito. Após comparecer a uma recepção na prefeitura, o
Arquiduque foi visitar os feridos do atentado. O estudante bósnio Gavrilo Princip
avançou em direção a seu carro e disparou três tiros, matando Franz Ferdinand e

170
. [ ... ] La vie elle-même guérit: c’est justement ce que les hommes et les médecins doivent savoir. C’est la
connaissance essentielle dont ils ont besoin, la base fondamentale de leur savoir, de leur pensée et de leur action.
La vie resemble au feu : bien longtemps avant que quelqu’un ait eu l’idées de l’analyser scientifiquement,
l’homme connaissait son pouvoir bienfaisant, savait le maîtriser et l’orienter, savait fondre les métaux et fonder
autour du feu son foyer. Et la vie se dompte, n’en doutons pas, comme le feu.
171
. [ ... ] Il ne faut pas croire, il n’est pas permis de croire qu’un médecin ait jamais guéri, un tel ou un tel : il
n’en pas le pouvoir : C’est la nature qui guérit, le médecin, lui, traite.
172
. [ ... ] Comme nous l’avons fait hier, comme nous le faisons aujourd’hui, nous découvrirons demain et tout au
long de notre vie des moyens et des méthodes de guérison que la nature produit comme en se jouant. Notre
recueillement est infini, et bien plus encore notre gratitude, pour tout ce qu’elle opère en notre nom.
135

sua mulher, Sophie. Esse ato, que agitou as engrenagens de alianças nacionais,
alimentadas por nacionalismo e temor, foi o estopim da Primeira Guerra Mundial. 173
A partir daí tudo aconteceu de forma muito rápida. Em meados de julho, um
investigador austríaco vinculou a conspiração ao grupo terrorista Mão Negra,
baseado na Sérvia. (Mais tarde descobriu-se que ele tinha sido auxiliado por oficiais
sérvios que queriam fazer da Bósnia-Herzegovina parte de uma Grande Sérvia). No
dia 23 de julho o governo imperial deu um ultimato: a Sérvia deveria colocar fim
(dentro de 48 horas) às intrigas que constituíam uma ameaça à tranquilidade da
monarquia. Viena exigiu que Belgrado censurasse publicações antiaustríacas e
prendesse ativistas antimonarquistas. A Sérvia rejeitou essas exigências, aceitou
outras e pediu uma arbitragem internacional. As autoridades austríacas, decididas a
subjugar os sérvios, recusaram a interferência externa.
A Sérvia era apoiada pela Rússia, França e Grã-Bretanha, seus parceiros na
Tríplice Entente. A Alemanha, com reservas, apoiou sua aliada austríaca. Mas os
diplomatas não conseguiram resolver o impasse e, no dia 28 de julho, a Áustria-
Hungria declarou guerra à Servia. No dia seguinte, a Rússia mobilizou suas tropas
para defender a Sérvia e a si própria da Áustria-Hungria. A Alemanha, temendo uma
ameaça à sua fronteira oriental, declarou guerra à Rússia em 1° de agosto 174 e, dois
dias depois, à França. As forças do Kaiser invadiram Luxemburgo e anunciaram que
marchariam através da Bélgica a caminho da França, o que levou a Grã-Bretanha a
declarar guerra à Alemanha no dia 4 de agosto. Em um mês, Montenegro lutava ao
lado dos sérvios, o Japão junto à sua aliada britânica e a Turquia em defesa dos
germânicos. Dois meses após o incidente em Sarajevo, 17 milhões de soldados de
oito países e suas distantes colônias foram mobilizados.
E o que acontece com Groddeck neste período inicial da guerra? Ele é
convocado, não para atuar no front, mas para ser o diretor-médico do Hospital Militar
da Cruz Vermelha em Badischer Hof.
Em um primeiro momento, o hospital abriga um número relativamente
pequeno de pacientes (cerca de 90), e, na medida em que as ações militares se
tornam mais intensas, o número aumenta para 100 soldados e 50 oficiais. Groddeck

173
. Para uma apresentação, causas, implicações e desdobramentos políticos e culturais da Primeira Guerra
Mundial, ver: A Sagração da Primavera, Modris Eksteins. Rocco, Rio de Janeiro, 1991; principalmente:
“Primeiro Ato: II. Berlim” (p. 81- 129).
174
. O clima na Alemanha, e principalmente em Berlim, nos dias antes e no dia da declaração de guerra à
Rússia, é descrito de maneira bem clara e com boa documentação por Modris Eksteins
(EKSTEINS, 1991, p. 81–92)
136

trabalha com o seu método básico de tratamento, ou seja, massagem e banho


quente associado à ginástica, chegando mesmo, em algumas situações, a usar com
militares o método da análise: [...] que o ferido ou a fratura óssea reagem à análise
do Isso, tão bem quanto a nefrite, a insuficiência cardíaca ou mesmo a neurose.
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 221) 175
De acordo com Wolfgang Martynkewicz, esse procedimento de tratamento não
é o usual no hospital militar, ainda mais em um período de guerra.

[...] Os seus métodos de cura, todavia são bastante insólitos no hospital


militar. Os soldados deveriam readquirir a forma o mais rápido possível
para retornar ao campo, mas Groddeck, depois de haver tratado os feridos,
programa uma verdadeira cura. Àquele acima do peso ordena uma dieta de
emagrecimento, massagem cotidiana e ginástica, para eliminar a barriga
176
em excesso (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 222)

Sendo fiel ao seu projeto de trabalho, Groddeck não consegue se adaptar às


pressões do tempo, imposto pelas exigências próprias de uma guerra e muito menos
se adequar às características próprias de um hospital para militares feridos. Como
consequência, acabou tendo problemas com o restante do corpo clínico.

[...] Aqueles dois outros colegas do Badischer Hof assumiram uma posição
completamente diversa e logo em pouco tempo renunciam a colaborar
naquele projeto de cura. A sua atividade está sendo considerada de modo
crítico mesmo pelas autoridades médicas sanitárias. (MARTYNKEWICZ,
177
2005, p. 222)

Estas críticas ao trabalho de Groddeck, não ao método em si, mas à


inadequação temporal, faz com que as autoridades médicas fixem um limite de
permanência ao paciente.

Groddeck se irrita e manda rapidamente uma carta de protesto à


autoridade sanitária, na qual reivindica o “direito fundamental do médico”,
que mesmo na guerra deve poder curar “em seu critério” e não ser
“influenciado por alguma ordem”. A autoridade, segundo ele, não teria
direito de criticar de nenhum modo a sua ação médica ou de impor-lhe
regras; como médico ele afirma não se submeter às leis da guerra. [...] A

175
. “[...] Che le ferito o le fratture ossee reagicono all’analise dell’Es, non meno bene delle nefrti, o
dell’insufficienza cardiaca, o delle neurose”.
176
. [...] I suoi metodi di cura comunque sono già abbastanza inusuali nell’ospedale militare. I soldati dovrebbero
riacquistare la forma il più velocemente possibile per ritornare sul campo ma Groddeck, dopo aver trattato le loro
ferite, programma vere e proprie cure. A quelli sovrappeso ordina una dieta dimagrante, massaggi quotidiani e
ginnastica, per eliminare la pancia in eccesso.
177
. [...] Gli altri due colleghi del Badischer Hof assumono uma posizione completamente diversa e già dopo
poco tempo rinunciano a collaborare a questo progetto di cura. La sua attività viene guardata in modo critico
anche dalle autorità sanitarie militari.
137

autoridade militar não se deixa impressionar e intervém, depois de haver


tomado uma outra posição, [...] na metade de maio Groddeck é exonerado
do cargo de diretor médico do Badischer Hof. [...] O licenciamento
representa uma degradação oficial e uma declaração de incompetência.
178
(idem, p. 225, 226)

Além destas questões ligadas à sua atividade como médico de um Hospital


da Cruz Vermelha, dois fatos pessoais ocorrem neste período: em setembro de
1914, morre o “último Groddeck”, seu irmão Hans; outro fato acontece neste período,
mas que terá um efeito e desdobramentos significativos pelo resto da vida de
Groddeck: em maio de 1915 chega ao sanatório, uma viúva sueca, Emmy Martina
von Voigt. Fica pouco tempo na clínica como paciente e quando retorna em julho do
mesmo ano, Groddeck a convida para ser sua colaborada e assistente; em suas
memórias escreve: “[...] Quando, em 1915, conheci minha futura esposa. Isto me fez
progredir rapidamente.” (GRODDECK, 1994, p. 317)

178
. Groddeck è adirato e manda súbito uma lettera di protesta all’autoritàsanitaria, nella quale si richiama al
“diritto fondamentale del medico”, che anche in guerra deve poter curare “a sua discrezione” e non essere
“influenzato da acun ordine”. Le autorità secondo lui non avrebbero alcun diritto di criticare in nessun modo il
suo operato medico o di imporgli regole; come medico egli ritiene di non dover sottostare alle leggi di guerra.[...]
La autorità militari non si lasciano impressionare e intervengono, dopo aver preso un’altra volta posizione, [...] a
metà maggio Groddech viene esonerato dall’incarico di direttore medico di Badischer Hof.[...] Il licenziamento
rappresenta una degradazione ufficiale e una dichiarazione di incompetenza.
138

NOTAS

I
A admiração de Caroline por seu pai era tanta, que mesmo depois de anos da morte dele e de várias tentativas e
conspirações de Carl Groddeck e seus filhos para que ela usasse roupas coloridas, seguiu vestida de luto por todo
o resto de sua vida.
II
[...] No meio desse vivo movimento de estudantes inteligentes e muito sensíveis entrou de repente minha mãe,
atraente e gentil, não bonita o bastante para provocar confusão, nitidamente inteligente e sensível. Sobrepujava a
todos na educação em geral e experiência de vida, afetada o suficiente para se impor, sem cativar. No seu íntimo,
ocupava-se apenas com aquele que era considerado líder, digna de amor e amada e, o que era essencial,
ameaçada em sua felicidade (GRODDECK 1929, 1994, p. 326).
III
. No episódio do colapso, que antecede em alguns meses a morte de Carl T. Groddeck, é possível perceber a
extensão desse posicionamento herético em relação à medicina e à ajuda que os médicos poderiam oferecer. Para
uma apresentação detalhada, ver: (GRODDECK 1929,1994, p. 379-385).
IV
[...] Como médico termal trabalhava somente no verão, portanto, nesses meses não podia ocupar-se muito com
a família; no início do outono e no inverno, ao contrário, conseguia ter mais tempo. Neste período, a família era
mais unida, pelo menos era o que percebia Georg Groddeck. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 53). [...] Como
medico termale lavorava sollo 0mnella stagione estiva, pertanto in questi mesi non poteva occuparsi quase per
niente della famiglia; all’inizio dell’autunno e in invern invece riusciva ad avere più tempo. In questi período la
famiglia era più unita, cosi almeno avvertiva Georg Groddeck.
V
No momento do nascimento de Georg, a família tinha problemas econômicos. Com o passar do ano o espaço
da clínica era adequado ao tempo e notavelmente ampliado com a aquisição do prédio adjacente. Os Groddecks
tinham a intenção de pagar a dívida assumida com a chegada do verão. Em 1866 a temporada é interrompida. A
guerra da Prússia pelo controle da Germânia afasta os hóspedes, assustados. Em 1862, o prussiano Otto Von
Bismarck governa a Prússia e leva avante com meios belicosos a fundação do Reich. Depois da vitória da Prússia
em Königsberg, em 3 de julho, a situação se acalma, mas naquele ano os hóspedes das termas não vêm mais para
Kösen.
[ ... ] Nesta situação difícil, o pai é ajudado por um comerciante milionário, Georg Marchand, de quem já é
amigo há algum tempo. [ ... ] Na Família Groddeck todos ficam particularmente felizes quando Marchand se
torna padrinho de Georg. (MARTYNKEWICZ, 2005, p. 54, 55) {Al momento della nascita di Georg la famiglia
ha problema economico. Con il passare degli anni gli spazi della clinica erano stato adeguati ai tempo e
notevalmente ampliati con l’acquisito dell’edificio adyacente. I Groddeck hanna intenzione di pagare i debiti
contratti con le entrate regoare dell’estate. Nel 1866 peró la stagione viene interrotta. La guerra della Prússia per
il controllo della Germânia fa fugire gli ospiti, spaventati. Dal 1862 il prussiano Otto von Bismarck è al governo
della Prússia e porta avanti com mezzi bellicose la fondatione del Reich. Dopo la vittoria della Prússia a
Königsberg il 3 luglio, la situazione si calma, ma per quell’anno gli ospiti delle terme non vengono più a
Kösen”.[…] In questa situazione difficile il padre è aiutato da un comerciante plurimiliardario di stettino, Georg
Marchand, al quale da qualche tempo è legato da amicizia. […] Nella famiglia Groddeck sono tutti
particularmente orgogliosi quando Marchand divento il padrino di Georg} .
VI
Ele cumpriu primeiro em Brandenburg e depois em Weilburg, no Lahn. A razão principal pela qual Groddeck
não segue a sua carreira como médico é contada por ele em seu escrito autobiográfico: “[...] Em certo sentido, os
relatórios aos superiores foram a razão pela qual não continuei como médico militar; se eu não tivesse insistido
na minha demissão, poderia ter feito uma grande carreira; pelo menos o chefe na época do departamento
médico do exército tentou me convencer de que, se eu ficasse, me estaria assegurada uma cátedra. Posso, às
vezes, imaginar alegremente que papel eu teria desempenhado na cátedra. Mas eu tinha provas de que o meu
talento para a ciência era limitado, e não apresentava qualquer inclinação para o serviço militar, na medida em
que ele vinha acompanhado de relatórios”. (GRODDECK 1929, 1994, p. 291)
VII
O editor da correspondência, Jeffrey Mousaieff Masson, escreve a seguinte nota: “No dia 5 de setembro de
1896, Schweninger, o famoso médico de Bismarck, proferiu uma palestra sob a forma de diálogo, juntamente
com Maximilian Harden, na qual defendeu o niilismo médico. Atacou a especialização na medicina, teceu
comentários depreciativos sobre o valor do Raio X para o diagnóstico e confessou invejar os veterinários, pois os
pacientes deles não sabiam falar. O clímax de sua palestra foi a frase: “O mundo pertence aos bravos inclusive
os doentes corajosos”. (FREUD, 1986, p. 301/7)
139

VIII
Um personagem que estará presente em Weilburg e posteriormente participará, em certa medida, da história
profissional de Groddeck e que merecerá um comentário não muito auspicioso de Freud em uma carta a
Groddeck. É Egenolf von Roeder. Explicando melhor: a partir de 1895, a Escola de Oficiais passa a ser
comandada por von Roeder, oficial que possuía uma boa formação filosófica e com quem Groddeck logo
percebe uma série de afinidades e estabelece um relacionamento de amizade. Por muito tempo mantiveram
contato muito próximo. Mais tarde, por volta dos anos vinte, von Roeder escreverá no periódico editado por
Groddeck, Die Arche, e será hóspede do Marienhöhe. Groddeck envia a Freud o manuscrito de um ensaio
filosófico escrito pelo amigo e que recebe em uma carta (25 de março de 1923) o seguinte comentário de Freud:
“O ensaio aristotélico que o Sr. me enviou continuou bastante indigesto para mim. Para minhas pobres aptidões
filosóficas, uma frase como: “O em si mora no quê na medida em que esse mora naquele”, basta para tolher
permanentemente compreensão e julgamento. Estou reduzido à sua informação de que o trabalho de seu aluno
obteve uma certa comprovação. Sua própria exposição, também acho-a bastante obscura”. (GRODDECK,
1994, p. 53); apesar dessa avaliação o texto de Von Roeder, “Das Ding an sich. Analytische Versuche na
Aristoteles Analytik”, foi publicado em 1925 na revista Imago (vol.IX, no.3). Von Roeder foi o editor e o autor
dos textos de apresentação de cada capítulo da coletânea de textos de Groddeck: Psychoanalytische Schriften zur
Literatur und Kunst (Lines Verlag, Wiesbaden, 1964) [ver: Escritos Psicanalíticos sobre Literatura e Arte,
Editora Perspectiva, São Paulo, 2001]
IX
O termo “romance de formação” (Bildungsroman) foi utilizado pela primeira vez em 1810, por Karl
Morgenstern. O criador deste gênero foi Goethe, que, entre os anos 1795 e 1796, publicou a obra Wilhelm
Meister Lehrjahre (“Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”). [...] Com meios estéticos até então inéditos
na literatura alemã, Goethe empreendeu a primeira grande tentativa de retratar e discutir a sociedade de seu
tempo de maneira global, colocando no centro do romance a questão da formação do indivíduo, do
desenvolvimento de suas potencialidades sob condições históricas concretas. (Marcus Vinicius Mazzari, em
Goethe, 2006, p. 7, 8)
X
Três ciclos de conferências e a sua posterior compilação e publicação em forma de livro, constituíam neste
período (1909 – 1913) a produção teórica de Groddeck: Hin zu Gottnatur: ciclo de cinco conferências proferidas
no Sanatório de Baden-Baden em 1909 e editada por S. Hirzel; Tragödie oder Komödie? Eine Frage au die
Ibsenleser: ciclo de cinco conferências apresentadas no Sanatório em 1910 e posteriormente publicadas pela S.
Hirzel; Der gesunde und der kranke Mensch, ciclo de 12 conferências na “Associação de Consumo” de Baden-
Baden em 1912 e posteriormente publicadas em 1913 como Nasamecu: natura sanat, medicus curat. Der
gesunde und der kranke Mensch gemeinverständlich dargestellt editado pela S. Hirzel.
XI
Na construção do conceito do “Isso”, é possível perceber a presença de Goethe, de forma direta ou indireta, a
partir das seguintes obras ou trechos:
1. Na redação das conferências Hin zur Gottnatur:
a) Die Natur
b) O final do poema: Bei Betrachtung von Schillers Schädel
2. Na formulação do conceito do “Isso”.
a) Fausto II: Primeiro Ato: A Galeria Obscura (As Mães ! Mães ! a partir do verso 6218).
3. Seelensucher: Apesar do título do romance haver sido dado por Otto Rank, Groddeck, no primeiro capítulo,
faz uma pequena anedota com Goethe, quando conta que o herói do romance, Thomas Weltlein*, havia recebido
de Wolf Goethe, neto de W. Goethe, como prova de simpatia e amizade “[...] uma silhueta que o seu avô havia
esculpido de próprio punho. Sob um peso negro de carta de contornos nítidos se vê um homem que, sentado no
globo terrestre, sustenta na mão aberta uma minúscula figura de uma mulher nua, e ele com uma lupa examina
atentamente a zona crucial. August, entusiasmado faz emoldurar a pequena imagem e a batiza “O Investigador
de Alma”
(Seelensucher). Havia colocado em cima da sua escrivaninha de modo que, cada vez que levantava os olhos do
trabalho ou de um livro que estava lendo, o seu olhar não podia evitá-la. August amava aquela figura.
(GRODDECK, 2007, p. 14-15) { [ ... ] lgli aveva regalato una silhoutte che suono nono aveva fatto ritagliatto di
próprio mano. Su un pezzo di carta nera daí netti contorni si vedeva un uomo che, seduto sul globo terrestre,
reggeva nella mano aperta la minuscola figura di una donna nuda, di cui con una lente esaminava attentamente la
zona cruciale. August, entusiasta, fece incorniciare la piccola immagine e la battezzò Scrutatore d’anime.
L’aveva collocata sulla sua scrivania in modo che, ogni qual volta levava gli occhi dal lavoro o dal libro che
stava leeggendo, il suo sguardo non poteva non cadervi sopra. August amava que’ll immagine”.}.
*August Muller é como é chamado o personagem principal no começo do romance e posteriormente muda para
Thomas Weltlein.
140

XII
Deus sive Natura (“Deus, ou seja, a Natureza”). Essa noção proposta por Espinosa de que Deus e a Natureza
são uma só e mesma coisa, gerou algumas polêmicas e foram interpretadas de formas tão diversas e
aparentemente contraditórias. Marilena Chauí no livro Espinosa: Uma Filosofia da Liberdade, Editora Moderna,
2006, expõe de forma sucinta essa diversidade de interpretação e as suas mudanças ao longo de três séculos
dentro da história do pensamento. Citando a autora:
No século XVII, lida com a mais perniciosa forma de ateísmo por afirmar a identidade entre Deus e Natureza;
[...] No século XVIII, porém, a afirmação de Espinosa “Deus ou Natureza” leva a interpretar e a valorizar sua
obra como primeira doutrina sistemática do deísmo, ou religião natural, defendida pelo racionalismo da
Ilustração; [...] A partir do Romantismo, no entanto, o século XIX considerou Espinosa, nas palavras do poeta
Novalis, “o homem embriagado de Deus” e sua obra, a forma mais profunda do misticismo panteísta, porque,
identificando Deus e Natureza, prometeria a felicidade do sábio como fusão de nossa alma no seio do absoluto
divino. Espinosa não seria um naturalista, como pretendera a Ilustração, mas um espiritualista, e o maior de
todos. (CHAUÍ, 2006, p. 12, 13)
XIII
Die Natur. Fragmento publicado anonimamente no Tiefurter Journal (1782-1783). A autoria do ensaio é
atribuída a Goethe mas conforme ele explica em 1828 a von Muller: Eu não posso, de fato, me lembrar ter
composto essas considerações, mas elas refletem adequadamente as idéias para as quais minha compreensão
tinha então voltado. Paul Bishop, 2009, p. 186 n.16) {‘I cannot, in fact, remember having composed these
remarks, but they reflect accurately the ideas to which my understanding had then attained’} (Paul Bishop
escreve sobre o autor deste fragmento: Embora o texto ‘A Natureza’ não é mais visto como tendo sido escrito
por Goethe, e é atribuído ao teólogo suiço Georg Christoph Tobler (1757 – 1812),mesmo assim acredita-se que
ele sumariza as idéias iniciais de Goethe. (idem, p. 1). {“Although the text ‘On Nature’ is now thought not to
have been written by Goethe, and is instead usually attributed to the Swiss theologian Georg Christoph Tobler
(1757-1812), it is nevertheless believed to summarize Goethe’s early thinking”

XIV
Neste trabalho em que se está privilegiando a construção do pensamento de Groddeck, principalmente as suas
ideias no que poderíamos caracterizar como período pré-psicanalítico, é importante reconhecer quem foram os
seus principais interlocutores, a interferência e a participação desses na obra groddeckiana, seja por contato
pessoal direto, por cartas, sugestões, críticas ou por interferência indireta através da leitura de textos. Antes de
citar os interlocutores mais importantes, uma distinção se faz necessária, ou seja, distinguir entre aqueles que
podemos chamar de interlocutores imediatos e interlocutores mediatos. Os primeiros foram aqueles com quem
Groddeck teve conversas diretas, através de contato pessoal, cartas, críticas, co-autoria de textos, ou que
estiveram sob tratamento no Sanatório, enfim, interlocutores que participaram diretamente de sua vida pessoal e
intelectual. Os segundos foram aqueles com quem Groddeck teve um contato unilateral, somente através da
leitura da sua obra, sendo influenciado, mas não podendo influenciar, exatamente pelo descompasso temporal,
um no passado e o outro no seu momento presente. Os primeiros interlocutores imediatos de Groddeck foram
seu pai e Schweninger, posteriormente Freud, depois Ferenczi e por fim, no seu período pós-psicanalítico, o
Conde Hermann Keyserling. O interlocutor mediato mais significativo na obra de Groddeck foi Goethe.
XV
Ampliando um pouco mais o que foi dito anteriormente, a presença de Goethe também pode ser reconhecida
na relação que Groddeck estabelece entre o “Isso” e o trecho do Fausto II, “O Reino das Mães” (Primeiro Ato –
Galeria Obscura: GOETHE, 2007, p. 217 – 231). Marcus Vinicius Mazzari, que faz a apresentação, comentários
e notas da edição do Fausto (segunda parte) pela Editora 34 (Goethe, 2007) escreve a respeito desta cena um
longo e importante comentário que nos ajuda a situar este trecho dentro do contexto da obra e também nas
posteriores associações que se podem fazer com a teoria de Groddeck ou como Paul Bishop (BISHOP, 2008, p.
63–70) que faz uma analogia entre esta mesma cena e a construção do conceito de inconsciente tal como
proposto por Jung. Citando Mazzari:

Em anotações redigidas em 10 de janeiro de 1830, Eckermann expressa sua perplexidade ao ouvir,


em leitura do próprio poeta, esta cena “em que Fausto vai até as Mães”. “O novo, o inesperado
do assunto, assim como a maneira com que Goethe me apresentou a cena, tocaram-me de forma
maravilhosa, de tal modo que me senti transportado à situação de Fausto, que também se arrepia
ao ouvir a comunicação de Mefistófeles”. Mas em vez de elucidar os mistérios desta cena, Goethe
mirou seu interlocutor “com os olhos arregalados e repetiu as palavras: ‘Die Mutter! Die Mutter!

‘s klingt so wunderlich!’ ( literalmente, “As Mães! As Mães! – soa tão esquisito! )
141

O que Goethe tinha em mente com o Reino das Mães permanece até hoje um enigma para os
leitores da tragédia – o máximo que Eckermann conseguiu extrair do velho poeta foram as
palavras: “Eu não posso revelar-lhe nada além de ter encontrado em Plutarco a observação de
que, na Antiguidade Grega, faziam-se referências às Mães como divindades. Isto é tudo o que devo
à tradição, o resto é minha própria invenção”.
Conforme apontam comentadores do Fausto, no capítulo 20 de sua Descrição da Vida de
Marcellus, Plutarco refere-se a um antigo culto a “deusas que se chamam Mães”. Além disso, no
capítulo 22 de seu texto “Sobre a decadência dos oráculos” encontra-se a indicação de que
existem 183 mundos diferentes, ordenados segundo a configuração de um triângulo cósmico cujo
espaço interno designado como o “campo da verdade”, poderia ser visto como o silencioso reino
dessas “Mães Goethianas”, guardiãs e mantenedoras de todo o existente: “Neste campo ficam,
imóveis, os fundamentos, formas e imagens primordiais de todas as coisas que já existiram ou
ainda existirão. Tudo envolto pela eternidade, a partir da qual o tempo, como uma emanação,
adentra esses mundos”.
Nesta cena que antecede a incursão de Fausto ao Reino das Mães, vêm à tona concepções
fundamentais da visão goethiana do Mundo e da Natureza: é o que ocorre quando aquele exprime
a sua recusa a tudo o que leva ao “enrijecimento” (Erstarren) espiritual e proclama o
“estremecer” (Schaudern) – o espanto ou assombro que para os antigos gregos constituía o início
de toda filosofia – como o “bem supremo” da humanidade. Ou, ainda, quando Mefistófeles fala da
“formação” e “transformação” como “eterna atuação” do “eterno princípio”, em
correspondência íntima com o conceito de “metamorfose”, que Goethe vislumbrava em todos os
fenômenos da Natureza, formando-os e transformando-os”. (GOETHE, 2007, p. 214)

XVI
De acordo com Freud, ele decidiu estudar medicina depois de assistir a uma palestra pública, no final de seus
estudos secundários, onde ouviu uma apresentação do texto Die Natur feita pelo professor de anatomia
comparada, Carl Brühl (1820 – 1899). Em “Um Estudo Autobiográfico”, Freud escreve: “[...] e foi ouvindo o
belo ensaio de Goethe sobre a Natureza, lido em voz alta numa conferência popular pelo professor Carl Brühl,
pouco antes de eu ter deixado a escola, que resolvi tornar-me estudante de medicina”. (FREUD, 1969, p. 16).
Para uma visão mais ampla da presença da obra de Goethe nos escritos de Freud, ver PAUL BISHOP, 2009,
principalmente o capítulo 1: The reception of Goethe in the works of Freud (p. 9 – 33)

XVII
. O termo “Isso” irá reaparecer na Primeira Conferência (16 de agosto de 1916), em um contexto muito
semelhante a essa menção inicial, ou seja, o “Isso”, o Eu e as limitações da linguagem e a necessidade de se
explorar outras formas de expressão: “[ ... ] A força que nos governa e rege, o “Isso”, constroi o corpo, cria os
signos corporais do ser humano; nos dá os pés, mãos, os olhos e sua cor, o cabelo, um coração grande ou
pequeno, um estômago sadio ou doente e dá forma a nosso nariz: todas estas são criações deste ser incrível:
“Isso”, ser humano, Deus ou qualquer que seja o nome que queiramos dar.[ ... ] A linguagem é um instrumento
demasiado pobre para aprender a conhecer os outros, e por isso, eu trato de fazer-me compreender, mais do
que pela minha linguagem, pelo meu rosto, pela expressão dos meus movimentos corporais, etc. Também
expressamos coisas com o tom da voz e os movimentos. (GRODDECK, 2005, p.4). La forza che ci regge, infatti,
l’Es, edifica il corpo, crea i segni corporali dell’uomo. Ci fornisce i piedi, le mani, gli occhi, il colore degli occhi,
i capelli, un cuore grande o piccolo, uno stomaco sano o malato, dà forma al naso; tutto viene creato da questo
essere curioso: Es, uomo, Dio, o qualunque altro nome gli si voglia dare. [ ... ] Il linguaggio è um pessimo
strumento per impare a conoscere gli altri.Io cerco di farmi capire molto più com il viso e com i movimenti del
corpo che non con il linguagio. Molte cose si esprimono con il tono della voce, con i movimenti” {Na Segunda
Conferência (23 de agosto de 1916), há uma breve menção ao “Isso” e à relação com o pai e a ideia de Deus: [ ...
] O pai é o instrumento pelo qual o “Isso” se utiliza para introduzir a idéia de Deus nos seres humanos (idem,
p. 10). {“[ ... ] Il padre è lo strumento di cui l’Es si serve per introdurre l’ideia di Dio nell’uomo”} Após essas
duas menções, as próximas referências ao “Isso” só irão acontecer na Conferência 32 (28 de março de 1917), e
nessa retomada, o “Isso” vai dialogar com Goethe, agora autor do Fausto II, e o “Reino das Mães” (Fausto II,
Ato I, “Na Câmara Escura ): “[ ... ] o ser humano depende do “Isso” inconsciente, que faz dele aquilo que
deseja. O homem não faz aquilo que deseja, mas aquilo que deseja o “Isso”. Se puder influenciar o “Isso,
aprendendo a conhecê-lo, descendo até aquela força viva que somos nós, fazendo aquilo que vem sugerido na
cena-chave do Fausto, quando Mefistófeles dá a Fausto a chave com a qual pode penetrar no Reino das Mães –
o Reino das Mães é o inconsciente. Se um ser humano consegue penetrar [ ... ] entra no reino da harmonia e
considera a culpa com maior indulgência (idem, p. 234). { [ ... ] l’essere umano dipende dall’Es inconscio, che
fa di lui cio che vuole. L’uomo non fa quello che vuole, ma quello che vuole l’Es. Si può influenzare l’Es
142

imparando a conoscerlo, scendendo fino alle forze vive che sono in noi, facendo ciò che viene suggerito nella
scena chiave del Faust, quando Mefistofele dà a Faust la chiave con la quale portà giungere nel Regno delle
Madri – il Regno delle Madri è le inconscio. Se un essere umano vi penetra, [ ... ] entra nel regno dell’armonia e
considera le colpe com maggiore indulgenza.} A partir daí, as colocações a respeito do “Isso” se tornarão mais
freqüentes porém não muito constantes até a Conferência 90 (29 de maio de 1918) e as seguintes onde a teoria
do “Isso” será mais elaborada. Um dado importante a ressaltar é que no início dessa construção teórica, o tema
das “Mães” será retomado: “[...] o essencial para vós é separar o eu e de adquirir a compreensão pelo “Isso”.
Significativo a este respeito é que Fausto, no momento onde ele aspira à inteligência do fato universal, recebe
de Mefistófeles a chave com a qual pode descender ao Reino das Mães; para isso falta seguramente
compreender o “Isso”, e que existe um caminho que deve ser administrado. O fato também a ser assinalado que
ele não fala da Mãe, mas das Mães, no plural. O “Isso” é assim singular e plural simultaneamente.
(GRODDECK, 1981, p. 103) { [ ... ] L’essentiel pour vous est d’écarter le moi et d’acquérir de la
compréhension pour le ça. Significatif à cet égard est que Faust, au moment ou il aspire à l’intelligence du fait
universel, reçoit de Méphistophéles la clé avec laquelle il peut descendre dans le royaume des mères ; par quoi il
faut sûrement comprendre le ça, et qu’il y a un chemin qui y mène. Il faut aussi remarquer qu’il n’est pas dit la
mère, mais les mères, au pluriel. Le ça est aussi singulier et pluriel simultanément.}

XVIII
[...] No livro Der Arzt (1906) Schweninger diz também ‘Es heilt’ (‘Isso Cura’), se bem que Schweninger não
deduza alguma metafísica do “Isso” que deve curar, como o fará, por sua vez, um pouco mais tarde seu
discípulo Groddeck; no entanto, usa o conceito de modo muito semelhante. Com ‘Isso Cura’, Schweninger
entende uma força que pertence tanto ao saudável quanto ao doente. A natureza que cura está no homem, essa
não age desde fora sobre ele. De outro lado, até a morte é para ele só uma consequência natural do processo
vital, a morte não agride a vida de fora, mas como a doença, se encontra dentro do corpo vivo
(MARTYNKEWICZ, 2005, p. 102, 103). { [ ... ] Nel libro Der Arzt (1906) Schweninger dice anche Es Helt
(esso guarisce !). Sebbene Schweninger non deduca alguna metafisica dall’Es che deve guarire, come farà invece
piu tardi il suo allievo Groddeck, tuttavia usa il concetto in modo molto simile. Con Es Heilt Schweninger
intende una forza che appartienne tanto al sano quanto al malato. La natura che guarisce è nell’uomo, essa non
agisce dall’esterno su di lui. D’altro canto, anche lá morte è per lui solo una conseguenza naturali dei processi
vitali. La morte non aggredisce la vita dall’esterno ma, come la malattia, si trova dentro il corpo vivente.} Em
uma nota de rodapé, o autor explica o sentido em que o termo Es é utilizado por Schweninger: Trata-se do
“isso” como pronome neutro e não como substantivo ‘Isso”. Recentemente, o biógrafo encontrou no espólio
uma anotação em uma carta na qual Groddeck afirma que Schweninger, no livro ‘Der Arzt’, restringiu muito
sua afirmação. Outra carta testemunha porém que Schweninger não estava interessado no “Isso” de Groddeck.
O escrito de Schweninger, além de tudo, precede em alguns anos o surgimento do “Isso” de Groddeck (idem,
p.103). {“Si tratta di “es” come pronome neutro e non come sostantivo “Es”. Recentemente il biografo há
scoperto nel lascito um’annotazione in una lettera nella quale Groddeck afirma che Schweninger nel libro Der
Arzt ha ripreso molte sue affermazioni. Altre lettere testtimoniano però che Schweninger non era interessato
all”Es di Groddeck. Lo scritto di Schweninger oltretutto precede di qualche anno la comparsa dell’Es di
Groddeck”}).

XIX
Um pouco mais sobre a cooperativa de consumo e seu propósito podemos ler no periódico Satanarium ( VI –
13 de março de 1918 ) [...] Nesta reunião se falou também da questão de instituir em Baden-Baden uma
Associação de Consumo, uma instituição que existia há anos, com resultados esplêndidos em outras cidades
alemãs. Naturalmente, é sabido de todos que a Associação de Consumo na Alemanha é um grande organismo
econômico que não só conta com muitos sócios, mas dispõe também de um capital de muitos milhões e tem a
sede principal em Hamburgo, [ ... ] A Associação se ocupa da entrega de gêneros alimentícios e de qualquer
tipo de necessidade quotidiana. [ ... ] Ela opera magnificamente em toda a Alemanha e faz um grande trabalho
beneficente e que verdadeiramente em Baden-Baden algo do gênero faltava. De quando em quando se
manifestava o desejo de fundar uma seção nesta cidade da grande Associação de Consumo. Não é tão simples,
porque em um ambiente conservador como o de Baden-Baden, é preciso, naturalmente, contar com muito
preconceito. Mas a coisa de fato teve início. Alguns membros do Círculo de Discussão, entre eles também o
doutor, deram o primeiro impulso. [ ... ] A idéia na base do surgimento da Associação de Consumo é aquela de
comprar no atacado e vender no varejo. Adquirir grande quantidade custa menos; maior é a quantidade mais o
preço médio cairá... (GRODDECK,1994, p. 66 e 68) { [ ... ]In queste reunioni si parlò anche della questione di
istituire a Baden-Baden un’Associazione di Consumo, un’istituzione che esisteva da anni, con splendi risultati, in
altre città tedesche.[ ... ] Naturalmente è noto a tutti che l’Associazione di Consumo in Germania è un grande
organismo economico che non solo conta diverse migliaia di soci, ma dispone anche di un capitale di parecchi
143

milioni e ha la sede principale ad Amburgo, [ ... ]. L’associazione si occupa della consegna di generi alimentari e
di ogni sorta di necessità quotidiana. [ ... ] Essa opera magnificamente in tutta la Germania e fa grande opera di
bene. Qui a Baden-Baden una cosa del genere mancava veramente. Di quando in quando se manifestava il
desiderio di fondare una sezione cittadina della grande Associazione di Consumo. Non è stato semplice, perché
in un ambiente convenzionale come quello di Baden-Baden, bisognava naturalmnete fare i conti con molti
pregiudizi. Ma la cosa ha ugualmente avuto inizio. Un paio di membri del Circolo di Discussione, tra il quali
anche il dottore, hanno dato il primo impulso.[...] L’idea in base alla quale sorgono le Associazioni di Consumo
è quella di compare all’ingrosso e vendere al minuto. Acquistare grande quantità costa meno; più grande è la
quantità, più il prezzo medio calerà ... }).
XX
Schweninger é mencionado apenas três vezes no livro Nasamecu: 1) quando Groddeck escreve sobre as mãos
do médico como um fator importante no tratamento e sugere [...] reler as páginas que Schweninger consagrou
às mãos do médico (GRODDECK 1913, 1980, p. 66) ([...] relire les pages que Schweninger a consacrées aux
mains du médecin); 2) ao escrever sobre o início do processo terapêutico e da necessidade do paciente acreditar
na capacidade do médico ele lembra [...] das palavras que Bismarck disse a Schweninger: “Até o presente, fui eu
quem tratou meus médicos, você é o primeiro a me tratar”. (idem, p. 110) ([...] du mot que Bismarck a adresse à
Schweninger: » “Jusqu’à présent, c’est moi qui ai traité mes médecins ; vous êtes le premier à me traiter”); 3)
ao descrever um procedimento respiratório, que ele considera de grande eficácia, ele lamenta [...] não poder
pretender a paternidade desta idéia de gênio: ela é de Schweninger. (idem, p. 156) [...] ne pouvoir prétendre à la
paternité de cette idée de génie: elle est de Schweninger.
XXI
. [ ... ] Para Bernheim , [ ... ] hipnose era compreendida como estado de elevada sugestibilidade, próxima
a dormência. Ele definiu sugestão amplamente, como o ato pelo qual uma idéia é aceita no cérebro. Para
Berheim e a escola de Nancy, terapia de sugestão consistia na deliberada manipulação do crédito, fé e
expectativa sob a orientação da sugestão e auto-sugestão no tratamento de uma vasta gama de condições físicas
e psicológicas. Somado a neuroses funcionais, Bernheim reivindica que era efetiva em casos de paralisias,
contraturas, insônia, dor muscular, hemiplegia, paraplegia, reumatismo, anestesia, disfunções gástricas,
neuralgia e ciática. Para Bernheim, o fator comum ativo das curas religiosas assim como, em muitas práticas
terapêuticas, foi a sugestão. [ ... ] Apesar de "sugestão" ter sido apresentada como um conceito moderno,
racional e científico o que ambos, explica e desmascara terapias precedentes e contemporâneas e formas de
curas religiosas. (SHAMDASANI, 2004, p.85) [ ... ] For Bernheim , [ ... ] hypnosis was understood as a state of
heightened suggestibility, akin to sleep. He defined suggestion widely, as the act by which an idea is accepted in
the brain. For Bernheim and the Nancy school, suggestive therapeutics consisted in the deliberate manipulation
of credence, belief, and expectation under the rubric of suggestion and autosuggestion in the treatment of a wide
range of psychological and physical conditions. In addition to functional neuroses, Bernheim claimed that it was
effective in cases of paralyses, contractures, insomnia, muscular pain, hemiplegia, paraplegia, rheumatism,
anaesthesia, gastric disorders, neuralgia and sciatica. For Bernheim, the common factor active in religious
healing as well as, in many therapeutic practices was suggestion. [ … ] Thus “suggestion” was presented as a
modern rational scientific concept which both explained and unmasked prior and contemporary medical
therapies and forms of religious healing.(SHAMDASANI, 2004, p.85)
144

VI. CONCLUSÃO:

Darei inicio a esta conclusão, imaginando que algum leitor, esteja se


perguntando por que delimitar a obra de Groddeck? A resposta a esta pergunta
primeiramente é a constatação de que o estudo de uma obra tem sempre um
ponto de partida e em decorrência um ponto de chegada. Nesta pesquisa
temos como ponto de partida a influencia do Romantismo e seus pensadores,
como ponto de chegada reconhecer na obra, que é simultaneamente médica e
literária, uma teoria do humano: na medicina, no médico, no doente, na doença
e na vida. O instigante ao desenvolver uma pesquisa, neste caso sobre o início
da produção teórica de Groddeck, é perceber a existência de um novo ponto de
partida que é marcado pelo seu contato posterior com Freud e o movimento
psicanalítico, e para quem sabe ter um novo ponto de chegada.
No decorrer deste trabalho, percebo que, se é atribuível á Groddeck
uma paternidade, posto que é denominado “pai da psicossomática”, seria deste
primeiro Groddeck. Sem a influência da psicanálise e como clínico geral: a de
uma nova maneira ver o doente. Essa maneira implica em considerar o doente
em sua totalidade; pensada não só como mente/corpo, mas como a soma
disso a forma como o sujeito vive, se alimenta, se relaciona, e simultaneamente
como alguém que pertence a um contexto familiar, social e histórico. E este
doente pensado desta maneira só pode ser reconhecido por um médico que
tivesse como atributo profissional a capacidade de reconhecer a diversidade e
simultaneidade do sujeito.
Uma das originalidades de Groddeck, acredito eu, foi a critica a formação
do médico. Este deveria ter mais do que a racionalidade do cientista. Deveria
ter a sensibilidade do artista. Ao longo deste trabalho vemos que a medicina
em seu exercício é mais do que uma ciência: é uma arte. Com todo esse
conhecimento e crítica a medicina e seu agente primordial, que é o médico,
Groddeck parece considerar o doente como alguém que pela sua maneira de
viver cria maneiras e condições para que a doença se manifeste, não como
uma vitima dela.
Outra questão importante a ser respondida é referente a uma pergunta
levantada na introdução: É tempo para a obra de Groddeck? Penso que a
resposta a essa pergunta seja sim, é tempo para obra de Groddeck. Talvez
145

hoje, mais do que nunca, sua obra faça sentido. Um dos fatores que torna a
obra de Groddeck tão surpreendente é sua teoria ser análoga a um assunto
muito cotidiano: a humanização, ou medicina humanizada, atualmente
discutida em hospitais, por médicos, psicólogos e enfermeiros. Se dermos um
texto não identificado escrito por Groddeck para um estudante de medicina que
esteja lendo sobre Humanização, este possivelmente acreditará se tratar de um
texto contemporâneo, e não um texto escrito a mais de nove décadas.
Após este percurso pela obra de Groddeck, na busca pela sua
originalidade e genuinidade, percebemos a sua proposta de um
reconhecimento do doente como sujeito do atendimento médico. Da doença
que se constrói e se estabelece a partir deste sujeito e de um esforço da vida
para que se recupere a ordem humana; o médico como um servidor e
facilitador das manifestações curativas da natureza. Isso implica em que ele
reveja sua formação e por extensão sua função.
Inspirada nessas colocações concluo este trabalho repetindo e reiterando
as últimas palavras de Groddeck em seu livro Nasamecu: “Não existe nada
mais nobre do que ser médico e de viver e de morrer com esta verdade:
Que todos os médicos sejam humanos!”.
146

VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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