A voz na psicanálise
Jean-Michel Vivès
Tradução: Paulo Roberto Ceccarelli
Transcrição: Leda Beirão
Resumo
O texto propõe trabalhar sobre a importância da voz nos processos de subjetivação. A partir da
clínica das psicoses, o autor retoma a hipótese de Lacan de que existem armadilhas ao olhar,
dizendo que existem igualmente armadilhas para a voz, e a música é uma delas. Da mesma
forma que o quadro é armadilha para o olhar, o canto é uma armadilha para a voz. Para o autor,
o canto é uma mistura do real articulado ao simbólico, enquanto o grito da sereia seria o puro
real, não ligado ao simbólico. Com esses elementos, o autor trabalha a questão da voz da mãe
endereçada ao bebê.
Palavras-chave
Voz, Canto, Psicose, Real.
É uma honra estar aqui com vocês. Muito chama de objeto da demanda e de objeto
obrigado ao Círculo pelo convite para falar do desejo. O seio e as fezes são objetos da
dessa questão que eu trabalho há anos: a demanda. O olhar e a voz são objetos do
voz na psicanálise. desejo. A origem do meu interesse pela
Muitos teóricos se debruçaram sobre questão da voz, eu penso, foi exatamente a
a questão da voz. Entretanto, a meu ver, mesma origem do encontro de Lacan com
muitas das implicações que dizem respeito a psicose, foi o encontro com os pacientes
à introdução da voz, no campo tanto da psicóticos.
clínica quanto da psicopatologia, ainda Quando eu era um jovem psicólogo,
não foram devidamente exploradas. É fiquei impressionado de ver pacientes que
nesse sentido que se dirige meu interesse, passavam o dia com um transistor colado
e hoje eu gostaria de trabalhar com vocês no ouvido. Atualmente, eles não têm
os aspectos clínicos e metapsicológicos, e mais um rádio no ouvido, têm um iPod.
também as implicações da voz nos cami- Isso não ajuda muito, porque, naquela
nhos do tratamento. época, quando a gente via um paciente
Como vocês sabem, Freud não traba- com rádio na orelha, a gente sabia que
lhou muito a questão da voz. Foi preciso se tratava de um psicótico. Atualmente,
esperar os anos 1960, quando, graças a todo mundo tem um iPod na orelha, e
Lacan, a voz foi identificada como objeto, não sabemos quem é psicótico e quem
a partir das alucinações, particularmente, não é psicótico.
nos casos de paranoia. Rapidamente Lacan É interessante notar que os psicóticos
vai deixar de trabalhar a voz apenas no tentam encontrar uma solução para tratar
campo da psicopatologia e vai introduzir a das vozes que os invadem. Esse tratamento
voz na dialética das pulsões. Ele vai iden- das vozes é uma questão que me interessa
tificar dois tipos de objetos, aos quais ele muito, como também me interessam as
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A voz na psicanálise
soluções que esses pacientes tentam achar No Seminário 11, Lacan fala do quadro
para lidar com problema da voz. como uma armadilha para o olhar. Por que
Naquela época, um texto de Büshner, se deve domar ou fazer uma armadilha
que eu li, foi muito importante para mim. para o olhar? Pela razão de que esse olhar
Georg Büshner foi um autor alemão do é essencialmente persecutório. O olho é
século XIX, que escreveu a novela Lenz. relacionado ao mau-olhado. Não há bom
Lenz era um psicótico que escutava vo- olhado.
zes. Em dado momento, ele pergunta às Podemos compreender isso a partir
pessoas que o cercavam, se elas não escu- da situação na qual o bebê é mergulhado
tavam os gritos que as envolviam, gritaria quando ele vem ao mundo. Quando a
eles chamam de silêncio. Eis aí uma bela criança nasce, ela é traspassada pelo olhar
intuição artística. Büshner percebe, então, do mundo. De todos os lados a olham,
que o psicótico escuta coisas que o neuró- sem que ela saiba de onde ela é olhada.
tico não escuta mais. Portanto, essa dimensão persecutória do
É interessante, para mim, a ideia de olhar é imediata e originária.
que o neurótico seria aquele capaz de, A tal ponto que o teórico inglês Ben-
em um momento dado, se tornar surdo tham, no fim do século XVIII, inventou
ao real sonoro, algo que o psicótico não um dispositivo de encarceramento que
consegue fazer. Uma forma de reencon- ele chamou de um dispositivo total: o
trar o que Lacan dizia: o psicótico tem o panóptico. No panóptico, o prisioneiro
objeto pequeno a em seu bolso ao passo sabia que estava sendo visto o tempo
que o neurótico o deixou pelo caminho. O todo, de todo lado, sem saber de onde ou
psicótico guarda uma proximidade maior por quem. Seria o dispositivo perfeito do
com o objeto. Esses encontros clínicos me encarceramento.
levaram pouco a pouco a elaborar o que Pois bem, a criança, quando chega ao
eu denominei um ponto surdo. mundo, entra em um espaço panóptico.
A hipótese metapsicológica, que eu Ela é olhada o tempo todo, sem que ela
tento sustentar, é que o recalque originá- saiba de onde ela é olhada. Para que a
rio, o momento em que o sujeito advém, criança comece a ter prazer em olhar, é
seria ligado à necessidade de poder manter preciso que ela esqueça que o olhar do
a distância o real sonoro primordial. Essa outro pesa sobre ela. É o que o psicótico
hipótese, nós podemos sustentá-la a partir não consegue fazer. O psicótico sente que
de uma hipótese que já está em Freud, nos algo o olha — e ele tem razão — o olham,
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. o olham desde Marte, da televisão... Algo
Freud, trabalhando sobre a pulsão do o olha. O neurótico consegue manter esse
conhecimento, a pulsão epistemofílica, diz olhar a distância através de dispositivos,
que, de fato, esse desejo do conhecimento por exemplo, o quadro — que é uma ar-
teria origem na vontade de completar madilha para o olhar.
uma imagem que seria incompleta devi- Outro dispositivo que podemos des-
do ao fato de que os órgãos sexuais estão crever e que é mais comum é o desenho.
escondidos da vista. É porque falta um Por que as crianças têm tanto prazer em
pedaço da imagem que nós vamos tentar desenhar conosco? Ora, quando se é psicó-
completá-la. logo, interpretamos os desenhos dizendo:
Lacan terá uma interpretação um papá, mamã, cacá, pipi, etc.
pouco diferente dessa questão, essencial- Quando tentamos ser psicanalistas —
mente no Seminário 11, no desenvolvi- e não é fácil — podemos tentar entender
mento que ele faz justamente da questão o desenho não em termos de significações,
referente ao olhar. e sim como ele vem fazer uma armadilha
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para o olhar do clínico. Porque enquanto pelo rochedo das sereias. Ele tinha sido
olhamos para o desenho que a criança está advertido de que, se escutasse a voz das
fazendo, nosso olhar não pesa sobre ela. sereias, ele se perderia. Ele morreria. A
Nosso olhar é enganado pelo pequeno tra- feiticeira Circe lhe ensinou como con-
balho que nos fornece a criança, enquanto tornar o problema. Ela lhe disse que ele
olhamos o desenho. podia escutá-las, desde que se amarrasse
Sobre esse modelo de armadilha ao no mastro do navio. Devia também tapar
olhar, do qual vocês compreenderam a o ouvido dos remadores para que eles não
importância, eu lanço a hipótese de que se perdessem e pudessem levá-lo para casa.
somos obrigados também a pensar que Ele faz isso e escutou a voz das sereias.
essa voz primordial deva, ela também, ser O que é muito interessante é que
mantida a distância. Homero, o poeta que descreveu essa pas-
A dificuldade é que essa voz é essen- sagem na Odisseia, fala de voz das sereias,
cial para que o sujeito advenha. Então, e não do canto. Essa diferença entre o
existe uma ambivalência essencial do canto e a voz é muito importante e eu vou
objeto voz. Ao mesmo tempo que ela não explicar por quê.
falta, porque há alguém que se endereça à Eu leio um pouco de grego antigo e
criança, e ela, então, vai poder falar, mas fui à fonte, auxiliado por uma colega da
se a criança é capturada e presa por essa universidade, para me certificar de que
voz, ela será incapaz de desenvolver uma eu tinha entendido corretamente o ter-
linguagem subjetiva. mo usado para a voz das sereias. O termo
Eis aí a dificuldade em relação à voz, que Homero utiliza é phthloggos, que diz
porque ela é necessária, mas pode ser respeito ao inarticulado, ao grito. Quando
também aterrorizante. Diria que essa é eu li, me perguntei se seria isso mesmo,
a paisagem metapsicológica da posição porque há uma crença de que a voz da
extraordinária da voz, que faz com que a sereia seria algo maravilhoso. As pessoas
voz seja um objeto, me parece, um pouco se suicidavam para seguir as sereias. A voz
diferente dos outros objetos da pulsão. tinha que ser magnífica. Mas não.
Pensar a voz nessa perspectiva traz con- Minha colega de grego antigo me
sequências clínicas e terapêuticas. antecipou mais surpresas, porque, no epi-
De fato, Freud já havia percebido que sódio de Ulisses com os ciclopes, Homero
os psicóticos desenvolviam mecanismos utiliza exatamente a mesma palavra. O
para manter a voz a distância. Quando ele ciclope também é phthloggos. Tanto em um
trabalha com as memórias de Schreber, ele caso como no outro, a expressão remete
observa que, quando Schreber é invadido ao inarticulado, ao indistinto, de onde se
pelas vozes, ele arruma estratégias como deduz que a voz da sereia não tinha nada
dizer que vai tocar piano, recitar poesias, de bonito ou melodioso, mas sim um apelo
enfim, coisas que seriam armadilhas para incondicional. Um apelo que diz: Venha!
a voz. Venha a você o saber absoluto. E o saber
Eu parto da hipótese de Lacan de que absoluto para o psicanalista corresponde
existem armadilhas ao olhar e digo que ao gozo.
existem igualmente armadilhas para a voz. Vemos bem que nessa questão da
A música é uma dessas armadilhas. Nós voz, onde o sujeito se perde é nesse apelo
temos uma ilustração bastante clara desse incondicional ao gozo infinito. Estamos,
fenômeno na mitologia grega a partir do aí, além do princípio do prazer. Essa é a
célebre episódio das sereias. matriz em relação às sereias.
Vocês devem se lembrar de que Ulis- Há outro episódio na mitologia grega
ses, para voltar para casa, devia passar muito interessante, porque dá a solução
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A voz na psicanálise
Referência
VIVÈS, J.-M. A voz na clínica psicanalítica. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2012.
SOBRE O AUTOR
Jean-Michel Vivès
Psicanalista. Membro da Association Insistance
(Paris). Professor de Psicopatologia Clínica na
Universidade de Nice Sofia-Antipolis, autor de La
voix sur le divan (Paris: Aubier, 2012), organizador
de Les enjeux de la voix en psychanalyse dans et hors
la cure (Grenoble: PUG, 2002). É também músico
e dramaturgo.