Tatiana Amorimii
RESUMO
i
Professor titular e pesquisador do departamento de Ciências Humanas para a graduação e do Núcleo de Estudos
em Ciências do Consumo da Pós-Graduação da ESPM-SP. Doutorando em Psicologia pela USP, mestre em
Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM, é conferencista e consultor pela NeuroVox. pfurtado@espm.br
ii
Professora e pesquisadora pelo Espaço Ética, diretora acadêmica do Projeto Ética Para Todos, é doutoranda em
Ciências Sociais pela PUC-SP e mestre em Comunicação e Práticas de Consumo pela ESPM-SP.
tatiana@eticaparatodos.org
IV Simpósio Internacional de Administração e Marketing 2
VI Congresso de Administração da ESPM
São Paulo, 14 e 15 de outubro de 2009
MÉTODO
As bases metodológicas necessárias para um devido posicionamento da ética dentro de
suas particularidades como uma dimensão fundamentalmente filosófica levaram-nos a uma
revisão bibliográfica da produção ética dentro da filosofia, a fim de, primeiramente, situar a
ética dentro dessa dimensão e, finalmente, deitar as bases teóricas para a devida análise dos
discursos éticos na obra de Philip Kotler. Valeremo-nos, para isso, de historiadores da
filosofia e dos próprios filósofos que compõem a história da filosofia desde seu berço em
Sócrates – trazendo para o trabalho apenas aqueles que, frente às questões suscitadas pelo
problema de pesquisa, se mostrarem pertinentes.
Os discursos das obras de Kotler serão analisados a partir da técnica de pesquisa de
Análise de Discurso, segundo os pressupostos de Mikhail Bakhtin (2006), Michel Foucault
(2005; 2006; 2007a; 2007b), Maria Baccega (2007) e autores afinsii. Justificamos tal postura
pela particularidade do tema da ética e pela singularidade do objeto de pesquisa dentro da
produção no campo da administração, de modo que um olhar meramente descritivo ou
alicerçado em uma análise de conteúdo, por exemplo, seria insuficiente para abarcar os
problemas que ensejamos responder. Segundo Martins e Theóphilo:
A AD [Análise de Discurso] permite conhecer o significado tanto do que
está explícito na mensagem quanto do que está implícito – não só o que se
fala, mas como se fala. Permite também identificar como se dá a interação
entre os membros de uma organização: as manifestações de poder, a
participação e o processo de negociação. (MARTINS e THEÓPHILO, 2007,
p.97)
São Paulo (USP). Essa relevância teve como critério o volume de obras de Kotler em seus
acervos: selecionamos aquelas que, numericamente, estavam mais presentes.
Seguimos, então, primeiramente debatendo a questão da ética como dimensão
filosófica (1). A seguir, investigaremos a ética em Philip Kotler sob duas ópticas:
primeiramente, segundo aquilo que ele mesmo diz ser a conduta ética do profissional de
marketing, ou seja, o que ele define como ética nos capítulos de suas obras destinados
especificamente a questões éticas. Como veremos, no entanto, a ética é a ciência da conduta
humana – além dos capítulos e segmentos específicos referentes à ética na obra de Kotler,
analisaremos os discursos de suas obras focando a ética na totalidade de sua produção
discursiva, e não pontualmente nos capítulos que a ela se destinam. Buscamos identificar se,
ao longo de sua produção, o autor apresenta uma perspectiva consoante ou dissonante daquilo
que ele mesmo determina, especificamente, como agir ético (2).
Pretendemos, assim, responder aos seguintes problemas: qual é, segundo Kotler, o
papel da ética na administração de marketing? A partir da filosofia moral, qual perspectiva
ética efetivamente se faz presente nos discursos de Kotler? Há consonância ou dissonância
entre aquilo que Kotler apresenta como ética em sua obra e o que, efetivamente, pode-se
entender como sua perspectiva ética?
1. ÉTICA E MORAL
o homem: a busca pela vida boa, pela melhor vida possível nas condições em que o mundo se
encontra. “Com efeito, o que pode existir de mais valioso na vida, quer dos indivíduos, quer
dos povos, senão alcançar a plena felicidade?” (COMPARATO, 2006, p.17)
Assim, os sistemas éticos serão produções refletidas e críticas cujo objeto é a ação
humana. Há um elemento de valoração intrínseco à ética: ela trata de valorar a conduta, ou
seja, afirmar qual é o bom agir e, por conseqüência, qual é o mau. A questão do valor,
portanto, é inseparável da reflexão ética. Refletir a partir da filosofia ética é refletir sobre qual
é a melhor vida que os homens podem – e devem – conduzir.
Esse valor pode ser dado a partir de diversos modos de ação. Em outras palavras,
haverá autores que valorarão a boa conduta a partir da boa intenção – tal como Kant –, ou
então da boa conseqüência – tal como Maquiavel ou Stuart-Mill –, ou mesmo da própria
natureza da ação. É imperativo compreender, no entanto, que ao afirmar “boa” intenção ou
“boa conseqüência”, a filosofia ética sempre trará as reflexões, a inteligência, a lógica, enfim,
a razão por trás dessa valoração. É importante, ao mesmo tempo, a consciência de uma
diversidade do modo de ação sobre o qual a valoração ética se dá.
Investigaremos, a seguir, qual é a perspectiva ética de Kotler segundo sua própria
obra, ou seja, qual modo de ação recebe o caráter de boa conduta segundo aquilo que, em sua
obra, é tratado como ética. Em seguida, investigaremos se, efetivamente, aquilo que é
denominado ética dentro da obra de Kotler condiz com a perspectiva ética observada, a partir
de uma análise de discurso e considerando os pressupostos teóricos da filosofia ética e moral.
visão crítica da ética em sua produção. Ao observar a totalidade dos discursos presentes nas
obras estudadas, percebe-se que o recurso a um aparente modelo de ética utilitarista tem, por
trás de sua operação, um sistema de valoração da conduta diferente do utilitarismo.
A ética, como apontamos, é a ciência da conduta humana. Todo discurso que tem por
objeto a ação humana, com vistas a propor a melhor ou pior conduta em determinada
circunstância, é um discurso com implicações éticas. As obras consultadas de Philip Kotler
contêm orientações de conduta para o profissional de marketing obter sucesso – conduzem,
portanto, à boa ação desse profissional. Lê-se, na capa do Administração de marketing: “a
bíblia do marketing”. Restringir a análise do discurso ético de Kotler aos momentos que ele
dedica, isolada e pontualmente, a questões éticas, não é suficiente. Por se tratarem de
discursos cujo objeto é a boa conduta profissional, a análise do discurso ético deve
compreender toda a conjuntura dos discursos das obras selecionadas.
O marketing, segundo Kotler, “supre necessidades lucrativamente” (2005, p.4). Em
todas as obras analisadas, esse suprir necessidades é caracterizado como uma entrega de valor
para os clientes. Essa entrega tem, certamente, um objetivo: a lucratividade; o resultado
positivo no final de cada trimestre. Mesmo no setor público Kotler ressalta que os resultados
positivos devem ser perseguidos (2008). Essa entrega de valor que tem por fim a manutenção
ou aumento dos resultados financeiros da empresa suscita duas análises.
Primeiramente, ao tratar de uma “troca de valores” – ou seja, a empresa entrega um
tipo de valor aos seus clientes a fim de obter, por seu lado, outro tipo de valor –, o trabalho de
marketing já tem, em si, implicações éticas diretas. Como apontamos, a ética trata da
valoração da ação humana. Uma relação de troca de valores, por certo, envolve capitais que,
para as partes envolvidas, merecem ser perseguidos e, portanto, orientam a conduta.
Em segundo lugar, se considerarmos a empresa como sujeito moral de sua açãoiii,
percebemos, a partir dos discursos de Kotler, que o valor da ação não reside em um princípio
de utilidade. A utilidade é, na verdade, instrumento da verdadeira conseqüência boa: a
lucratividade, os resultados, a manutenção da política de poder financeiro que sustenta as
corporações.
As corporações e seus departamentos de marketing estão inseridas na sociedade como
elementos centrais da dinâmica de consumo sobre a qual todas as instâncias sociais se
alicerçam. Essa perspectiva é consequencialista, pois ainda reside na conseqüência boa o
valor da boa conduta. Muda, no entanto, o critério de valoração dessa conseqüência. Não se
trata da felicidade dos indivíduos, mas da manutenção e aumento do capital financeiro da
empresa, e conseqüente manutenção e aumento do poder que a empresa exerce na sociedadeiv.
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Denomina-se egoísmo moral a perspectiva segundo a qual o valor de uma ação está no
aumento do poder ou felicidade do agente da própria ação. O filósofo florentino Nicolau
Bernardo Maquiavel é um dos grandes nomes do egoísmo moral. Sua filosofia trata do
egoísmo em uma dinâmica de poder que cremos ser adequada à análise realizada dos
discursos de Kotler.
Encontramos, em Maquiavel, uma ética em que o poder – a ação sobre a ação do outro
– é elemento presente a priori nas relações humanas. Os seres humanos vivem em regimes de
poder; o poder é inescapável porque é elemento constitutivo das relações humanas. Age bem
aquele que, dentro desses regimes, obtém como conseqüência de sua ação a elevação do
próprio poder (MAQUIAVEL, 1979). O poder não merece críticas ou tentativas de anulá-lo.
Ele existe como fato social, condição sobre a qual as relações humanas se dão. O esforço para
anulá-lo é infrutífero, pois busca uma impossibilidade. Quando Maquiavel coloca a luta, o
combate, a busca pelo poder como princípio, ele “passa adiante sem nunca o esquecer”
(MERLEAU-PONTY, 2006, p.238).
Mas não se trata de um poder fisicamente violento, coercivo, agressivo, visceral. “O
poder é da ordem do tácito” (Ibid., p.239), ou seja, ele opera subjacente às relações e
instâncias sociais. Não há coação, nem mesmo persuasão – ao contrário do que muitos críticos
das práticas do marketing e da comunicação mercadológica afirmam. O poder seduz. “Nem
puro fato, nem direito absoluto, o poder não coage, não persuade: ele alicia – e alicia melhor
apelando à liberdade do que aterrorizando” (Ibid.).
A ação de marketing, segundo Kotler, envolve “criar, conquistar e dominar mercados”
(2002). As estratégias competitivas e as dinâmicas mercadológicas ocorrem em um cenário de
combate, de luta, de guerra. Assim entendemos o surgimento de jargões como “marketing de
guerrilha” (LEVINSON, 1989). A administração de marketing participa de uma guerra em
que cada agente – no caso, cada corporação – busca o aumento do próprio poder na forma do
aumento do capital financeiro – representado, por exemplo, pelo valor das ações da
corporação no mercado. A satisfação de todos os indivíduos envolvidos é uma ferramenta que
serve a esse fim. A conseqüência boa, final, última da boa conduta do profissional de
marketing é o aumento do poder da empresa. Mas tudo isso ocorre na total liberdade dos
mercados de capitais. Essa liberdade é justamente aquilo que permite, como aponta
Maquiavel e Merleau-Ponty, um regime de poder eficiente.
Convive, então, por trás do discurso ético aparentemente utilitarista de Kotler, uma
ética mais densa, mais sedimentada e estruturada do profissional de marketing: o
maquiavelismo, ou seja, o egoísmo moral com base no aumento do próprio poder.
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A sedução operada pelas práticas do marketing é uma ação que possui efeitos diretos
sobre a ação dos consumidores, na forma, especialmente, do consumo e suas conseqüências
socioculturais. Mas não é uma via de mão única. A ação do consumidor também exerce
influências sobre a ação da empresa. Em um regime de poder em que a ação de cada agente
tem efeitos sobre a ação do outro. Sem violência física ou coerção. Os jogos de poder são
tácitos e aliciadores, mas necessariamente presentes nas relações humanas (MERLEAU-
PONTY, 2006, p.237).
A configuração das relações sociais humanas, a partir de uma perspectiva
maquiaveliana, não encontra lugar para um regime utilitarista senão quando ele for
instrumento do egoísmo moral dos agentes sociais. Como apontamos, Kotler sugere diversas
razões para adoção do marketing ético e socialmente responsável. Todas têm, no entanto, a
finalidade de manter ou aumentar os resultados financeiros das corporações.
Não se deve depreender dessa análise da obra de Kotler uma crítica negativa das
práticas da administração de marketing. Não há, nessa dinâmica, um grande “mau”, um
“demônio” a priori. A “demonização” das práticas do marketing é tão ingênua quanto a
tentativa de negação do poder na sociedade, como mostra Maquiavel. Se concordarmos com o
filósofo de Florença e admitirmos que o poder é uma condição a priori das sociedades
humanas – observação que Maquiavel faz a partir de extensivos estudos históricos de Roma e
da própria Europa renascentista –, resta aos profissionais de marketing indagar o que, nesse
regime, é efetivamente uma conduta eticamente responsável. Qual seria, a partir de uma
perspectiva refletida e crítica, o papel de políticas de sustentabilidade e responsabilidade
social, senão a simples manutenção e aumento do poder das corporações? Sob a perspectiva
maquiaveliana, pensar de maneira diferente significa repensar a própria estrutura constituinte
não só do sistema capitalista, mas de todo o regime relacional sobre o qual se erguem as
sociedades humanas há tantos séculos.
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ABSTRACT
This paper constitutes a critical analysis of the production of the renowned marketing
administration author, Philip Kotler. We investigated, from a philosophical perspective, the
ethical discourses contained in four of his books. We argue that Kotler supports marketing
administration ethics founded upon Utilitarism, while actually promoting a selfish ethics
model as proposed by the Italian philosopher Nicollo Machiavelli. The Discourse Analysis
method – based on the works of Bakhtin, Foucault and similar authors – was used to answer
the following problems: what is, according to Philip Kotler, the reasonable ethical model for
marketing administration professionals? What is, according to moral and ethical philosophy,
Kotler‟s actual ethical model? Is there consonance or dissonance between what Kotler states
as his ethical model, and what the Discourse Analysis shows as his actual ethical perspective?
REFERÊNCIAS
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BAKAN, Joel. The corporation: the pathological pursuit of profit and power. New York:
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COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
______. Coleção ditos e escritos II – Arqueologia das ciências e história dos sistemas de
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HADOT, Pierre. Philosophy as a way of life: spiritual exercises from Socrates to Foucault.
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LEVINSON, Jay Conrad. Marketing de guerrilha. Rio de Janeiro: Best Seller, 1989.
MATTAR NETO, João Augusto. Filosofia e Ética na Administração. São Paulo: Saraiva,
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IV Simpósio Internacional de Administração e Marketing 16
VI Congresso de Administração da ESPM
São Paulo, 14 e 15 de outubro de 2009
TEJON, José Luiz. Ética: a estratégia dos grandes vendedores. In: Revista da ESPM. São
Paulo: ESPM, 2008.
i
O termo em inglês é externalities.
ii
Não há uma absoluta consonância entre a perspectiva discursiva de Bakhtin e de Foucault, devido – entre outras
razões – às bases teóricas das quais partem ambos os autores. Não trabalharemos, aqui, com as singularidades de
cada um deles. Ao contrário, trouxemos ambos por crermos que há, em suas obras, um possível diálogo
complementar e adequado à nossa postura metodológica.
iii
Sujeito moral da ação é o sujeito responsável pela livre deliberação sobre a ação que toma.
iv
Entendemos o poder, aqui, como a ação (potencial ou efetiva) que um agente exerce sobre a ação de outro
agente, tal como propõe Michel Foucault.