Nilo Batista(**)
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A palavra suspeita, e provavelmente perigosa, é
segurança. Sabemos, pelos muitos sobrenomes que ostentou, que esta
senhora casou-se inúmeras vezes: segurança pública, segurança nacional,
segurança jurídica, segurança cidadã, segurança biológica, medidas de
segurança, segurança humana etc. Tantos casamentos apontam para sua
maleabilidade, para um caráter dúctil que historicamente a habilitou a tantas
parcerias, algumas descaradamente opressivas e violentas (alguém já se
esqueceu da segurança nacional?), outras apenas fraudulentas e enganosas
(como a segurança jurídica), e algumas escandalosamente contraditórias
(talvez nenhum dispositivo penal tenha alcançado níveis de insegurança tão
incontroláveis e arbitrários quanto as chamadas medidas de ... segurança).
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razão”. Por incrível que pareça, houve um tempo no qual em nome da
segurança não se torturava nem se matava e sim se protegia, ainda que em
nome de outras palavras se torturasse e se matasse intensamente.
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Poucas vezes os limites do liberalismo individualista na
governança dos conflitos sociais foram expostos com tanta nitidez e com
idêntica nitidez indicou-se o conceito de segurança como referência central da
reação a toda transformação nas relações sociais. A leitura dos
administrativistas contemporâneos só confirmaria a longevidade daquela
donzela feia à qual o direito posterior às revoluções burguesas, como assinalou
nossa homenageada Lola Aniyar de Castro, “encarregaria de fazer o trabalho
sujo do poder e servir aos interesses dominantes”. Falando realisticamente,
nas sociedades de classes a expressão “segurança pública” exprime uma bem
disfarçada contraditio in adjecto. Converter a segurança pública em “dever do
Estado” e “direito e responsabilidade” dos cidadãos, como fez a Constituição
brasileira (art. 144), é dar o giro fatal no garrote. Todo governante está
obrigado a preservar as relações sociais tais como as encontrou: trata-se afinal
de um dever do Estado. Em contrapartida, todo cidadão, seja um latifundiário
ou um pobre camponês sem-terra, dispõe de uma pretensão à incolumidade de
sua pessoa e de seus bens; trata-se afinal de um direito (pouco importando que
na realidade essa pretensão esteja sempre inexoravelmente frustrada para o
sem-terra). E afirmar que além de direito a segurança é uma responsabilidade
do cidadão, como entrou em moda, é algo que pode acabar mal para o
cidadão, assim colocado muito próximo da temível posição de garantidor da
segurança alheia.
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“A conceituação legal é inaplicável e perigosa, por ser
tautológica e sem conteúdo. Por outro lado, é imprópria e
perigosa, em se tratando de lei penal. É fórmula totalitária e
abrangente de elementos que nada têm a ver com os crimes
políticos, únicos que devem figurar numa lei dessa natureza”.
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respeitável, à sombra de cujo sobrenome busca inaugurar novo destino. Um
pouco disso acontece na expressão “segurança jurídica”.
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Peço desculpas por ter-lhes ocupado o tempo apenas
para desacreditar a palavra segurança. Mas é que não acredito em nenhuma
criminologia que se misture com ela. Toda criminologia que incorporou
segurança pública lançou-se ao positivismo e restringiu seu horizonte à
conservação da ordem. Como conciliar as técnicas da ordem com a
criminologia, que argutamente Virgolini percebeu como uma espécie de
“ciência da desordem”?! A palavra segurança constitui o eixo aglutinador de
todos os dispositivos daquela violência que Benjamin denominou precisamente
“conservadora”, para distingui-la da violência “fundadora”, que pode ser a
festejada parteira da história que remove tiranias e desigualdades, ou pode ser
a inauguração de um regime arbitrário e cruel. Para ser propositivo, se hoje me
tocasse exercer as mesmas tarefas que exerci no passado, encaminharia à
Assembléia Legislativa um projeto trocando a designação de Secretaria de
Segurança Pública para Secretaria das Garantias Individuais ou algo similar.
Muito obrigado.
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Referências bibliográficas (por ordem de entrada em cena)
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