Do governo por leis à governança por números: breve análise do Trade in Service
Agreement (TISA)..........................................................................................................338
Jânia Maria Lopes Saldanha, Rafaela da Cruz Mello e Têmis Limberger
Resumo
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
identificados, de acordo com estudiosos da filosofia e
transnational law, which possibility of existence has
ciência do direito, formaria a “global law”, ou o direito
been the target of skeptics attacks, mainly supporters
global, nascido “(…) com base nas periferias sociais, a
of a monistic theory of law, for which state law and
partir das zonas de contato com outros sistemas sociais,
law tend to be understood as synonymous. Thus, this
e não no centro de instituições de Estados-nações ou de
article aims to show that, despite the now consolida-
instituições internacionais” 2.
ted monistic theory among most Brazilian jurists, a his-
torical-sociological analysis shows that law has always A questão central que se põe é a seguinte: é possível
existed, regardless of any State. This way, the theory conceber a existência de normas jurídicas não estatais
of legal pluralism appears, with critical notes made by emergidas além das fronteiras de um Estado soberano
Gunther Teubner, as ground theory for the conception e deste independente? Melhor dizendo, é possível con-
of transnational law. Further, the article demonstra- ceber a existência de uma ordem jurídica transnacional?
tes that attempts to theorize the global law legitimacy Em caso positivo, quais são as condições para validação
based on state legal systems (methodological nationa- dessa concepção?
lism) are doomed to failure, for which presents the Lars Hodiernamente, no mundo ocidental, há grande
Viellechner’s solution, for whom the legitimacy and li- descrença na concepção de um sistema jurídico ou de
mits of transnational law find scope on the horizontal uma ordem legal além do Estado e dele independente.
effects of fundamental rights. Isso porque Estado e Direito são tidos como conceitos
Key-words: Transnational law. International Private complementares, quando não são usados até mesmo
Law. Global Law. State-centrism. Transnational Legal como sinônimos.
Pluralism. Nesse contexto, a jurisdição é, tradicionalmente,
concebida como prerrogativa essencial do Estado-na-
ção e este, por sua vez, não seria possível sem a organi-
1. Introdução zação conferida pelo Direito. Logo, o ceticismo, quanto
à transnacionalidade, é agravado por um nacionalismo
Com o surgimento da globalização e das relações metodológico, pela vinculação entre Estado e Direito,
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
sem um Estado e, de outro, os partidários da teoria de
As doutrinas baseadas no “contrato social”, funda-
que o direito prescinde qualquer Estado soberano.
mentadoras da criação do Estado, justificam o surgi-
Dessa forma, o presente artigo utiliza o método mento deste na necessidade de criação de uma institui-
hipotético dedutivo para, a partir de ponderações e da ção ou de um corpo institucional garantidor da ordem e
apresentação da teoria insurgente no contexto atual — dos direitos dos seus contratantes, que passam, então, a
o pluralismo jurídico transnacional —, demonstrar que ser cidadãos providos da suposta segurança advinda de
é possível conceber a existência de normas jurídicas um sistema jurídico4.
transnacionais surgidas para fora das fronteiras e regu-
No entendimento contratualista, as sociedades são
lações de ordenamentos jurídicos estatais.
pensadas como recipientes, que surgem e são sustenta-
Em um primeiro momento, apontar-se-á a tradição das na esfera de influência estatal5. O Estado é, portan-
do nacionalismo metodológico, até então vigente, de to, o criador, controlador e, simultaneamente, garanti-
acordo com o qual o Estado é a única associação legíti- dor das sociedades6.
ma de criação, interpretação e execução do direito.
Denota-se que, como bem define o sociólogo ale-
Trazendo para o campo da ciência jurídica argumentos mão Ulrich Beck, com base nessas concepções, a visão
históricos e sociológicos, será apontada, de forma crítica, estado-centrista foi estabelecida como limite da percep-
a necessidade de superação da referida tradição, com base ção sociológica, sendo possível se falar de um naciona-
na ideia de que o direito nunca foi monopólio do Estado lismo metodológico (“methodological nationalism”).
e, sim, prerrogativa de diferentes associações e grupos so- Neste contexto, é possível falar de um ‘nacionalismo
ciais, tal como demonstra a Tradição Jurídica Ocidental. metodológico’, o que significam presunções
explícitas e implícitas de que o Estado-nação é o
Em um segundo momento, será destacada a crítica de recipiente de processos sociais, e que a nação fornece
Gunther Teubner, para o qual a adoção da Teoria do Plu- a ordem fundamental para a análise dos processos
sociais, econômicos e políticos. É exatamente este
ralismo Jurídico clássico deve ser adotada com base em
Estado nacional, a priori das ciências sociais, que é
uma reformulação de suas concepções, fazendo-se ne- cada fundamentalmente questionável no âmbito da
cessário fundamentar o pluralismo não mais em grupos e pluralização das fronteiras. 7
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
Hans Kelsen — do monopólio de criar, dizer e executar objetivo “emancipar o clero do controle dos impera-
o direito. dores, reis e senhores feudais, diferenciando, de forma
nítida, a Igreja como entidade política e jurídica da po-
Assim, a ordem jurídica resta, constantemente, assi-
lítica secular”12.
milada como uma ordem institucional estabelecida por
uma autoridade soberana, um Estado, sob a ameaça de Esse movimento originou o “Novo Direito Canôni-
um poder coercitivo. E, portanto, a construção de um co” da Igreja Católica, o primeiro sistema jurídico oci-
sistema legal e a asserção de uma ordem política sobe- dental. A Igreja passou a ser concebida, além de uma
rana vêm sendo, historicamente, compreendidas como organização espiritual e doutrinária, como uma institui-
dois lados (conhecimento e poder) da mesma moeda ção estruturada e dotada de poderes legislativo e juris-
real8. dicional13.
Segundo o jurista americano Harold Berman, esse Como consequência da divisão entre esfera eclesiás-
paradigma da vinculação monogâmica entre direito e tica e não eclesiástica, surgiu uma gama de sistemas ju-
Estado, que leva à compreensão por demais estreita rídicos seculares, que conviveram entre si, em harmonia
do direito, “como um conjunto de leis, procedimentos, e competição, em uma mesma comunidade. Havia, na
normas administrativas e técnicas válidas em um deter- Tradição Jurídico Ocidental, portanto, uma dualidade e
minado país”9, não subsiste a um estudo histórico da coexistência de jurisdições, com a marcante caracterís-
Tradição Jurídica Ocidental. tica de pluralidade de jurisdições e sistemas jurídicos:
Para falar da Tradição Jurídica Ocidental, é O pluralismo jurídico originou-se na distinção entre a política
necessário postular um conceito de Direito que seja eclesiástica e as políticas seculares. A Igreja declarou a sua
diferente de um conjunto de regras, que o veja como liberdade do controle secular, a sua jurisdição exclusiva em
um processo, como um empreendimento no qual as certas matérias e concorrente em outras. Leigos, apesar de
regras só têm valor num contexto de instituições e governados no geral pelo Direito secular, estavam
procedimentos, valores e modos de pensar. Desse sujeitos ao Direito eclesiástico e à jurisdição dos
ponto de vista mais amplo, as fontes do Direito tribunais eclesiásticos no que se referia a questões
ultrapassam a vontade do legislador, para abranger sobre casamento e relações familiares, Direito
também a razão e a consciência da comunidade e os sucessório, crimes espirituais, relações contratuais
seus usos e costumes.10 onde a fé era invocada, entre outros assuntos.
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
às cortes eclesiásticas em um tipo de causa, à corte do rei transpassou para sua politização. O domínio eclesiástico
em outro, à corte de seu senhor em um terceiro, a uma corte deu lugar ao “primado da política”, transformando o direito
senhorial em um quarto, à corte da cidade em um quinto e a em um produto político. Assim teria surgido o positivismo
uma corte de mercadores em um sexto. 14 (Grifou-se) jurídico, o qual se desvinculou do voluntarismo teológico do
final da Idade Média e inverteu a validade jurídica para a
Também, o professor alemão Lars Viellechner, autor Natureza e Vontade. (Grifou-se)18.
de “Transnationalisierung des Rechts”, explica que a Igreja
Eis, portanto, que, em que pese a aparente insupe-
Católica foi a primeira a concretizar a ideia de estado-
rabilidade do paradigma monista de um nacionalismo
-direito. Ela não apenas adotou a forma de um Estado,
metodológico, a história e sociologia do direito parecem
mas também o programa da regra jurídica no âmbito
demonstrar que, a princípio, nem o ato de legislar e nem
de um Estado de direito, no qual os governantes não
a administração da justiça competiam, pelo menos não
apenas regulam por meio do direito, mas a ele estão vin-
exclusivamente, ao Estado19.
culados15.
Conforme esclarece o sociólogo Eugen Ehrlich, na
Essa influência do sistema jurídico eclesiástico, não
obra “Fundamentos da sociologia do direito”:
estatal, torna-se, ainda, mais clara quando se atenta
para o fato de que, por um longo tempo, inclusive a muito depois da administração judiciária estatal
aparece o direito estatal. Em primeiro lugar, o
compreensão da vinculação do rei às suas próprias leis Estado, naturalmente, produz a sua própria ordem,
estava diretamente ligada a fundamentos teológicos- o direito público, e quando cria ordens, seja de
-jurídicos16. que tipo forem, prescreve sua competência, seu
funcionamento, às vezes também seu procedimento.
Somente com a posterior centralização da ordem Muito cedo o direito passa a ser redigido por
jurídica para a instituição estatal, usurpando esta toda pessoas privadas incumbidas pelo Estado ou então
este reconhece o direito já redigido, especialmente
e qualquer jurisdição autônoma, o positivismo-monista compilações de normas, pelos quais os tribunais
retirou do direito a característica e fundamento divino agem e decidem. 20
de sacralização da lei, que o Direito Canônico lhe havia
Dessa forma, a despeito do corte traçado a partir
concedido17, para dar lugar à primazia da política:
do nacionalismo metodológico, o paradigma do estado-
-centrismo, instaurado com a centralização do poder es-
14 BERMAN, Harold. Direito e Revolução, p. 21.
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
Em verdade, as doutrinas baseadas no nacionan- também uma mudança na economia e na sociedade. Quando
as mudanças jurídicas são arbitrárias e tais que a
lismo metodológico serviram para fundamentar e sus- economia não pode adaptar-se a elas, destrói-se sua
tentar o monopólio do direito e da jurisdição por parte ordem interna sem que haja um substitutivo.23
do Estado, em um momento em que este necessitou
Partindo dessa concepção de que o direito não
usurpar tais prerrogativas de diversas jurisdições autô-
é sinônimo de Estado e de que os sistemas jurídicos
nomas. E, durante a ascensão e consolidação do Estado
decorrem de ordens internas de determinadas associa-
como única autoridade formal a requisitar e praticar a
ções sociais, que evoluem e se modificam ao longo do
prerrogativa de criar, dizer e executar o direito, as teo-
tempo, compreende-se que a concepção de um direito
rias sociológicas baseadas no contratualismo-monista
transnacional somente é possível por meio da quebra do
mostraram-se suficientes para a ciência jurídica, no que
paradigma do estado-centrismo e do positivismo jurídi-
tange à justificação e legitimação do direito e do orde-
co. Dessa forma, passa-se à apresentação da nova teoria
namento jurídico21.
insurgente, do Pluralismo Jurídico Transnacional.
Ocorre que, com a crescente transnacionalização
das relações jurídicas, atores não ligados a qualquer au-
toridade ou grupo político estatal iniciam uma árdua
empreitada pelo reconhecimento de seus atos e regras 3. O direito global sem estado e a teoria do
como jurídicos, reivindicando legitimidade e capacidade pluralismo jurídico transnacional
normativa transnacional, de forma que o positivismo
estado-centrista aparenta não mais fornecer uma res- A partir da globalização das atividades sociais e eco-
posta lógico satisfatória para a ciência jurídica e para nômicas e da transnacionalização de relações, surgem,
os estudiosos desse novo ramo insurgente no direito nas sociedades transnacionais, diversos atores em es-
internacional. truturas globais altamente especializadas que, em meio
às suas redes de atividades e funções desvinculadas a
Nesta toada, torna-se necessário o abandono da si-
qualquer ordenamento jurídico estatal, criam uma iden-
nonímia dos conceitos de Estado e Direito e o retorno à
tidade global, produzindo o que hoje são chamados os
Tradição Jurídica Ocidental, a fim de fundamentar a le-
UNO’s (“unidentified normative objects”).
21 “The predominance of law’s institutionalisation in the state 23 EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito, p. 47.
during the Nineteenth and Twentieth centuries casts a long shadow 24 “Em outras palavras, pode-se afirmar que o (sub)sistema ju-
over our present attempts to imagine law.” ZUMBANSEN, Peer C. rídico (co)evolui com racionalidades diferentes (relacionadas a out-
Defining the Space of Transnational Law: Legal Theory, Global Gov- ros sistemas sociais), num cenário em que o Estado não representa
ernance & Legal Pluralism. Disponível em: <https://www.wzb.eu/ mais a única esfera donde a normatividade emana. Emerge, assim,
sites/default/files/u273/zumbansen_2012_defining_the_space_ uma pluralidade de atores sociais diferenciados em papéis e cul-
of_transnational_law_wzb_hu.pdf>. Acesso em 23 jun 2016. p. 19. turas redunda numa pluralidade de fontes normativas e de sujeitos
22 Em importante crítica, Ralph Michaels esclarece que, apesar de direitos merecedores de proteção especial (consumidores, refu-
da suma importância em estabelecer esse novo pluralismo, super- giados, hipossuficientes, etc.).” FORNASIER, Mateus de Oliveira;
ando o estado-centrismo; visão esta que será melhor demonstrada FERREIRA, Luciano Vaz. A regulação das empresas transnacionais
no próximo capítulo. entre as ordens jurídicas estatais e não estatais. In: Revista de Direito
151
Dessa forma, transpõe-se um dos principais argu- em grupos e comunidades, mas, sim, para discursos e
mentos de oposição ao reconhecimento de um direi- redes de comunicação27.
to global, no sentido de que um sistema jurídico global
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
Claramente, o mundo da vida de diferentes grupos
seria inconcebível por não derivar de Estados-nação e comunidades não é a principal fonte do direito
(direito estatal) ou de tratados internacionais ratificados global. Teorias de pluralismo jurídico terão que
reformular seus conceitos fundamentais, mudando
por meio de relações políticas entre Estados-nações (di- seu foco de grupos e comunidades para discursos
reito internacional) 25. e redes de comunicação (ver Teubner, 1992:.
1456ff). A fonte social do direito global não é o
Isso porque é, exatamente, a quebra do paradigma mundo da vida das redes pessoais globalizados,
do nacionalismo metodológico e do positivismo jurídi- mas o proto-direito de redes especializadas,
co a condição necessária para a concepção do direito organizativa e funcional que estão formando uma
identidade global, mas fortemente limitado. O
transnacional. Assim, torna-se imperioso retornar às novo direito vivo do mundo é alimentado a partir
teorias pluralistas do direito. da auto-reprodução contínua de altamente técnica,
altamente especializada, muitas vezes formalmente
A adoção da Teoria do Pluralismo jurídico para jus- organizadas e bastante restritas, redes globais
tificação do direito global, porém, deve ser realizada a de natureza económica, cultural, académica ou
partir de uma reformulação de suas bases, como explica tecnológica.28
Gunther Teubner, em seu artigo “Global Bukowina: Legal A fonte social do direito global, portanto, pode ser
Pluralism in the World-Society”. encontrada no “proto-direito” de redes especializadas,
No referido estudo, o consagrado jurista demons- formalmente organizadas e funcionais, de modo estrita-
tra que, em contraposição à visão de Immanuel Kant, mente setorial, em auto reprodução contínua.
para o qual a globalização do direito só é possível por Nesse contexto, para o pluralismo jurídico transna-
meio da codificação da política internacional26, a ideia cional, não mais as mudanças na sociedade ou em gru-
da Bukowina global de Eugen Ehrlich, demonstra-se pos sociais acarretarão a mudança do direito global, mas
em maior conformidade com o que se observa da cons- a mudança nos discursos e nas formas de comunicações
tituição de um ordenamento jurídico global. de redes especializadas, tais como os discursos, comuni-
Explica o autor que a Teoria do Pluralismo jurídico
deve ser adotada de forma repaginada, para embasar a 27 Apesar de grandes críticas tecidas à teoria de Teubner, Ralph
Michaels concorda que o pluralismo jurídico global não mais pode
existência do direito global. De acordo com Teubner,
ser embasado a partir da ideia de direito surgido na comunidade.
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
Eis, portanto, que, na elaboração desses discursos,
lação de sistemas jurídicos inter-relacionados31. Somen-
surgem novos atores, que se relacionam e se comuni-
te por meio das lentes da Teoria do Pluralismo Jurídico
cam formando as referidas redes especializadas na esfe-
transnacional torna-se possível conceber a existência do
ra transnacional. Assim, os Estados-nação são forçados
direito global ou direito transnacional.
a se comportarem como coatores, sem divisão hierár-
quica de papeis. No entanto, cumpre esclarecer que a mera adoção da
Teoria do Pluralismo Jurídico transnacional por parte da
Nesse sentido, na esfera transnacional, de acordo
comunidade acadêmica internacional não tem cunho de
com Benoit Frydman, em “A Pragmatic Approach to Glo-
embasar completamente a existência do direito transna-
bal Law”, os Estados perdem, de certa forma, sua so-
cional, tornando-se forçoso que se estabeleçam traba-
berania:
lhos interdisciplinares também em relação à filosofia e
Em um mundo sem um soberano, os Estados
são obrigados a se comportar como atores, entre
sociologia do direito.
os demais. O Estado, soberano (até certo ponto) Isso, porque, apesar do reconhecimento da necessi-
no seu próprio território, perde toda a soberania
(apesar do que diz o direito internacional público) dade de ruptura do paradigma do nacionalismo meto-
assim que atravessa fronteiras e deve comprometer- dológico, as tentativas de definição e fundamentação de
se com outras forças. Estas forças são de outros um direito transnacional continuam tomando o Estado
Estados, é claro, mas também de outros tipos
de atores da sociedade do mundo, como as
como figura central. É dizer, o direito transnacional,
organizações internacionais e as organizações não- ainda, é definido como direito além do Estado, ou direi-
governamentais, ou empresas de transição e suas to não estatal; seu conceito tem, no Estado, um critério
redes. 29
de referência negativo.
Esses novos atores podem ser exemplificados por E isto é um dos pontos de crítica de Ralph Michaels,
organizações não governamentais, associações de redes segundo o qual a tendência em contrapor o pluralismo
especializadas, movimentos sociais de alcance interna- jurídico ao estado-centrismo, reconhecendo o primeiro
cional, empresas transnacionais — entre outros , que como mais factível que o segundo (e a ele superior),
possuem não apenas relevância normativa, mas tam- torna-se uma mera representação da realidade jurídica.
bém deslocam a resolução de eventuais conflitos da ju-
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
sistemas jurídicos nacionais, como os lastreados nos
conceitos da sociologia clássica do direito: de norma,
4. Direito transnacional e a tentativa sanção e controle social.
de formulação de critérios de aferição
O direito global (não: “inter-nacional”!), nesse
próprios sentido, é um ordenamento jurídico sui generis que
não pode ser avaliado segundo os critérios de
aferição de sistemas jurídicos nacionais. Não se
Pelo fato de a existência do direito global ou direito trata, como muitos supõem, de um direito atrasado
transnacional somente ser passível de ser justificada a no seu desenvolvimento, apresentando ainda, em
partir de uma teoria pluralista, seus critérios de averigua- comparação com o direito nacional, determinados
ção de validade, eficácia e legitimidade não podem estar déficits estruturais. Muito pelo contrário, esse
ordenamento jurídico, já amplamente configurado
fundamentados com base nos critérios de aferição dos nos dias atuais, distingue-se do direito tradicional dos
sistemas jurídicos nacionais. Estados-nações por determinadas características,
que podem ser explicadas por processos de
De acordo com Gunther Teubner, as normas de di- diferenciação no bojo da própria sociedade mundial.
reito global ou transnacional produzem um ordenamen- Porque, por um lado, se o direito global possui
to jurídico sui generis, sobre o qual o jurista formula três pouco respaldo político e institucional no plano
mundial, por outro, ele está estreitamente acoplado
importantes teses. a processos sociais e econômicos dos quais recebe
os seus impulsos mais essenciais. 34
A primeira tese já se encontra apresentada neste tra-
balho, no sentido de que o direito global só pode ser No estudo do direito transnacional, os adeptos de
interpretado por meio de uma Teoria do Pluralismo uma teoria monista, por vezes, formulam questiona-
Jurídico e de uma teoria das fontes também pluralista, mentos tais como: de que forma poderia um direito
concentrada nos processos espontâneos de formação autêntico emergir espontaneamente em escala transna-
do direito33. cional sem a autoridade do Estado, com o seu poder
Nessa toada, uma Teoria do Direito Global deve sancionatório ou controle político e sem a legitimação
focar-se nos processos espontâneos de formação, que, dos processos democráticos? Qual seria a norma fun-
hoje, podem ser encontrados nos discursos das redes damentadora do ordenamento jurídico transnacional?35
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
Nesse ato de criação, importante notar qual seria o
mente estipulado e munida de força coercitiva, perde
critério de aferição de legitimidade e validade das nor-
a posição estratégia que ocupa, nas teorias positivistas,
mas jurídicas transnacionais, uma vez que, como já
como sendo elemento-chave do direito. Os elementos
mencionado, a elas não se aplicam os mesmos critérios
do ordenamento jurídico passam a ser, durante a trans-
impostos às normas jurídicas estatais.
formação da “estrutura” em “processo”, os eventos co-
municativos e atos jurídicos. Em seus estudos acerca do regime transnacional de
regulação da internet e o registro de domínios, o pro-
Também, a noção de sanção passa a ter relevância
fessor Lars Viellechner produziu a obra “Transnationa-
secundária, não sendo pressuposto necessário da norma
lisierung des Rechts”,a qual, de forma minuciosa, procura
jurídica, mas como apoio simbólico da normatização,
desenvolver critérios específicos de aferição da validade
sendo irrelevante de onde vem tal apoio simbólico, seja
e legitimidade das normas jurídicas transanacionais.
de instituições locais ou nacionais.
Consoante Viellechner, o direito transnacional deve
Por fim, a terceira tese consiste no fato de que, em
ser entendido como direitos (1) transfronteiriços, ainda
que pese se tratar hoje de um direito desvinculado de
que não se refiram necessariamente a questões globais,
qualquer política (diferente do direito internacional, por
(2) tanto às relações de indivíduos como também de
exemplo), o direito transnacional é passível de ser poli-
objetos regidos pelo interesse comum, pelo qual geral-
tizado. No entanto, possivelmente, o será por vias pelas
mente se restringem a áreas individuais (Sachbereiche),
quais o direito mundial se acople estruturalmente a dis-
e (3), predominantemente, mas não exclusivamente, é
cursos especializados, isolados.
definido por atores não-estatais em forma de contrato.
A relativa distância à política internacional e ao
Transnationales Recht ist dann als Recht zu verstehen,
direito internacional não preservará o “direito
das (1) grenzüberschreitende, wenn auch nicht
mundial sem Estado” de uma repolitização. Muito
notwendigerweise weltumspannende, Sachverhalte
pelo contrário: justamente a reconstrução de (trans)
betrifft, (2) sowohl die Beziehungen der Einzelnen
ações sociais e econômicas como atos jurídicos
als auch Gegenstände von allgemeinem Interesse
globais solapa o caráter apolítico do direito global e
regelt, wobei es sich regelmäßig auf einzelne
fornece dessarte o fundamento da sua repolitização.
Sachbereiche beschränkt, und (3) überwiegend,
Ela, porém, ocorrerá previsivelmente sob novas
wenn auch nicht ausschließlich, durch nicht-
Assim, o direito transnacional identifica uma ter- No conceito de fontes do direito transnacional, para
ceira categoria de ordem jurídica autônoma, além das Viellechner, estão abarcadas instituições ou associações
tradicionais categorias de direito nacional e direito in- não estatais que, por meio de contratos transnacionais,
ternacional37, para a qual não se aplica a lógica jurídica se efetuam como atores e para as quais são empregados
mecanismos de resolução de conflitos próprios.
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
tenham, em seu efeito horizontal, um direito
(público)39. positivo de participação ou, pelo menos, de proteção
de interesses. Sob condições de transnacionalidade,
Viellechner defende que a combinação da globaliza- isto significa a obrigação de “responsabilidade”,
ção com a privatização da legislação finalmente quebrou portanto, a obrigação de tomar os interesses dos
terceiros no cálculo da decisão.42
a cadeia de legitimidade do direito baseada no modelo
de Constituição de Estado40. Assim, as teorias de legi- Nesse sentido, por meio da teoria de que, também,
timação do ordenamento normativo transnacional que as relações particulares devem ser regidas pela eficácia
se baseiem nos exemplos de vontade do mundo estatal (horizontal) dos direitos fundamentais, a legitimidade e
estão fadadas ao fracasso. os limites da legislação transnacional encontram-se de-
Também as teorias de legitimação baseadas no con- finidos por tais direitos, a fim de evitar que a assimetria
senso contratual, no sentido de que os diversos atores de poderes cause danos a envolvidos, bem como a ter-
do campo jurídico transnacional, agrupados em redes ceiros, sejam eles indivíduos ou instituições.
especializadas, consentem com as normas originadas Eis, portanto, que o direito transnacional não possui
nos diversos sistemas jurídicos transnacionais, encon- fundamento de legitimidade com base em qualquer or-
tram obstáculos. dem estatal ou dependente de seu reconhecimento. Por
A fundamentação supramencionada tem grave pro- este esse motivo, a jurisdição transnacional encontra-se,
blema de consolidação em razão da assimetria de pode- em princípio, em uma relação heterárquica para com os
res entre os envolvidos no campo jurídico transnacio- ordenamentos jurídicos estatais e o direito internacio-
nal, bem como nos efeitos negativos externalizados a nal. No âmbito de determinado ordenamento jurídico
terceiros — indivíduos e instituições. De certo, atores estatal, porém, eles se estruturam de forma hierárquica,
social ou economicamente mais poderosos poderiam pois geram normas secundárias e até mesmo normas
impor sua vontade por meio do uso de sua força, em constitucional.
detrimento do consenso e de direitos de atores com Assim, juntamenteo às normas dos Estados Mun-
pouca representação. diais, o direito transnacional forma um sistema jurídico
Para tanto, Viellechner encontra a resposta em uma global, cuja unidade não é causada pela coerência das
BARBOSA, Luiza Nogueira; MOSCHEN, Valesca Raizer Borges. O direito transnacional (“global law”) e a crise de paradigma do estado-centrismo: é possível conceber uma ordem jurídica
No contexto transnacional, diferentes atores do
mundo globalizado, estruturados em associações e Adota-se, então, a tese de Lars Viellechner, para o
redes especializadas de discursos, dão vida a uma in- qual a legitimidade e os limites da legislação transna-
contável quantidade de objetos normativos (ainda) não cional encontram-se definidos pela eficácia horizontal
identificados, denominados de “UNO’s” (“unidentified dos direitos fundamentais, segundo a qual, também, os
normative objects”). particulares, em suas inter-relações, devem manter uma
Para o reconhecimento desses UNO’s como direito, postura ativa de proteção aos direitos fundamentais.
torna-se imprescindível quebrar o paradigma monista Eis, portanto, que o direito transnacional não possui
do nacionalismo metodológico, por meio do qual ape- fundamento de legitimidade com base em qualquer or-
nas o Estado detém a prerrogativa de criar, dizer e apli- dem estatal ou dependente de seu reconhecimento. Por
car o direito. E, conforme demonstrado a partir da aná- esse motivo, a jurisdição transnacional encontra-se, em
lise da Tradição Jurídica Ocidental, esta essa sinonímia princípio, em uma relação heterárquica para com os or-
entre Direito e Estado — construída, mormente, por denamentos jurídicos estatais e o direito internacional.
teorias contratualistas — não possui qualquer respaldo
O direito transnacional, junto às normas dos Esta-
em uma perspectiva histórico-sociológica do Direito.
dos Mundiais, forma um sistema jurídico global, cuja
O pluralismo jurídico é, então, a lente pela qual se unidade não é causada pela coerência das normas, mas,
deve enxergar o direito global: não mais como uma or- sim, pela mera associação de operações jurídicas.
dem única de atores soberanos, mas como uma conste-
Conforme se demonstrou, as teorias de legitima-
lação de sistemas jurídicos inter-relacionados.
ção do direito transnacional não podem se usurpar da
Somente, através por meio das lentes da Tteoria do racionalidade lógica aplicada ao direito estatal, regido
Ppluralismo Jjurídico Ttransnacional, torna-se possí- pelo paradigma do nacionalismo metodológico. Assim,
vel conceber a existência do direito global ou direito torna-se necessário que o pluralismo jurídico transna-
transnacional, que emerge partir de discursos e redes cional supere a visão do Estado como ponto central, a
de comunicação especializadas, formalmente organi- fim de evitar estar à margem e à sombra do centralismo
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