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Contra Capa

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João Sette Camara

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Caminhos da intolerância no mundo ibérico do Antigo Regime


[livro eletrônico] / organização de Daniela Buono Calainho.
– Rio de Janeiro : Contra Capa, 2012.
2.472 Kb ; ePUB.

ISBN 78-85-7740-120-8 (e-book)

1. Península Ibéria - História 2. Inquisição - Ibérica,


Península (Espanha e Portugal) - História. I. Calainho,
Daniela Buono

CDD 946.908

2012
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SUMÁRIO

PARTE I – INQUISIÇÃO: ÍCONE DA INTOLERÂNCIA

Uma visitação fora de seu tempo? O Santo Ofício no Grão-Pará pombalino


(1750-1774)
Yllan de Mattos

A Inquisição injuriada: Os insultos contra a “limpeza de sangue” dos familiares


do Santo Ofício no século XVIII
Aldair Carlos Rodrigues

Feitiçaria no Arcebispado de Braga: confissões e denúncias à visitação


inquisitorial de 1565
Juliana Torres Rodrigues Pereira

Mulheres bígamas: a busca por novas trajetórias


Michelle Trugilho Assumpção

A comunidade cristã-nova de Leiria: criptojudaísmo e intolerância religiosa em


Portugal, século XVII
Alex Silva Monteiro

Da tolerância à intolerância: os sodomitas da Igreja e seus parceiros sob o olhar


das instituições portuguesas e da sociedade colonial
Veronica Gomes

PARTE II – CLERO E INTOLERÂNCIA

Guerra e heresia: Anchieta e os “luteranos” da França Antártica


Luiz Fabiano de Freitas Tavares

Aspectos de culturas políticas durante o processo de formação da Congregação


beneditina (Portugal, c. 1560 - c. 1590)
Jorge Victor de Araújo Souza

As duas missões diplomáticas do padre Antonio Vieira e o “Papel forte”


Thiago Groh

PARTE III – A INTOLERÂNCIA NO ORIENTE

Jesuítas e dojukus nas missões do Japão: infortúnio como reflexo de uma


mediação etnocêntrica (1549-1587)
Jorge Henrique Cardoso Leão

Destruição de pagodes e conversão de gentios: transformações culturais e


sociais da população hindu na Goa Quinhentista
Eduardo Borges de Carvalho Nogueira
Convento Real de Santa Mônica de Goa e a Câmara Municipal: uma análise do
conflito na Goa Dourada
Rozely Menezes Vigas Oliveira

PARTE IV – INTOLERÂNCIA, PODER, SOCIEDADE E REPRESENTAÇÕES

A construção da nobreza no Pará setecentista


Rafael Ale Rocha

Fidelidade secreta: comentários sobre as cartas e o processo de d. Duarte de


Bragança (1641-1649)
Gustavo Kelly de Almeida

Da sedução à sedição: as mulheres e o discurso político da rebelião na América


portuguesa
Alexandre Rodrigues de Souza

Relatos reais, relatos fantásticos: considerações acerca da Ilha Encoberta no


Portugal seiscentista.
Filipe Duret Athaide

O caso de Antônio Isidoro da Fonseca. Reflexões sobre a ausência de imprensa


tipográfica na América portuguesa
Jerônimo Duque Estrada de Barros

Aos pés de sua soberana: A intolerância como estratégia de um senhor e um


apelo escravo a tolerância real (1781-1813)
Mariana Guglielmo

Índios, africanos e cristãos-novos na Guanabara: relações interétnicas no


universo cristão - século XVIII.
Denise Vieira Demetrio
Apresentação

Caminhos da intolerância no mundo ibérico do Antigo Regime é fruto do III Seminário


de Pós-graduandos em História Moderna promovido pela Companhia das Índias –
Núcleo de História Ibérica e Colonial na Época Moderna, que se realizou em 2011 na
Universidade Federal Fluminense. Os trabalhos destes jovens pesquisadores, oriundos
de várias instituições no Brasil, dedicaram-se a discutir o tema da intolerância nas suas
várias vertentes no mundo moderno.
Na primeira parte, “Inquisição: ícone da intolerância”, o Santo Ofício foi tema
escolhido para se analisarem diversos aspectos da intolerância que marcou fortemente
esta instituição. Cristãos-novos, feiticeiros, bígamos e sodomitas, hereges que lotaram
os cárceres inquisitoriais, foram alvo de estudo dos respectivos artigos. Em “Clero
e intolerância”, segunda parte do livro, são examinadas as tensões entre a Igreja e as
demais estruturas de poder. Na terceira parte, intitulada “A intolerância no Oriente”,
privilegia-se o espaço oriental para se discutir o embate cultural que marcou a presença
portuguesa na região, temperada por múltiplas perseguições religiosas. E, por fim, na
última parte, chamada “Intolerância, poder, sociedade e representações”, o leque de
análise é mais amplo, e abarca questões relativas a processos de ascensão social, ao
discurso sobre a mulher nas rebeliões na América Portuguesa, ao papel da imprensa etc.

Daniela Buono Calainho


Companhia das Índias, novembro de 2012
PARTE I
INQUISIÇÃO: ÍCONE DA INTOLERÂNCIA

Uma visitação fora de seu tempo?


O Santo Ofício no Grão-Pará pombalino (1750-1774)

Yllan de Mattos1

Precisamente, eu desejaria não copiar meus


antecessores. Não por gosto gratuito pelo paradoxal
e pelo novo: porque sou historiador, simplesmente,
e o historiador não é aquele que sabe. É aquele que
procura. E, portanto, que repõe em discussão as
soluções estabelecidas, que revisa, quando é preciso,
os velhos processos.
Lucien Febvre2

Em um livro magnífico, Lucien Febvre problematizou a História como filha de seu tempo. Filha
do tempo dos historiadores, mas também filha de seu contexto. Diz ele: “não há pensamento
[...] que não seja colorido em sua massa pela atmosfera de uma época”.3 Isto não quer dizer,
de forma alguma, que, para estudar um evento, devemos isolá-lo dos demais acontecimentos
de sua época. Pelo contrário, a idéia é colocá-los em relação a fim de evitar “o pecado dos
pecados – o pecado entre todos imperdoável: o anacronismo”.4 Portanto, seguindo esta idéia,
será que algum evento de uma determinada época pode ser considerado anacrônico? Como
um acontecimento pode apresentar idéias que não faziam parte de seu tempo?
Nosso objetivo, neste artigo, é repensar as motivações que levaram Giraldo José de
Abranches ao estado do Grão-Pará, como visitador do Santo Ofício, entre os anos de 1763 e
1769, colocando em discussão as soluções estabelecidas pelos historiadores que estudaram este
acontecimento. Antes, alguns apontamentos sobre as visitações levadas a cabo pela Inquisição
portuguesa.
Em Portugal, as visitas de distrito são fortemente centralizadas pelo Conselho Geral do
Santo Ofício. Este fato, segundo Francisco Bethencourt, talvez explique o minguado número de
visitações, sua concentração e sua simul­taneidade. Sabemos que durante todo o seu período de
funcionamento, foram tomadas 34 visitas pelos quatro tribunais de distrito: Lisboa, Coimbra,
Évora e Goa. Essas visitas concentraram-se entre os anos de 1542 e 1637, incluindo aquelas
realizadas na Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro, Angola, Malaca etc. Os anos derradeiros
das visitas do Tribunal espanhol coincIdem com o caso português. Coincidência? Pensamos
que não! O quantitativo das visitas, bem como a amplitude de extensão da ação inquisitorial
1 Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no século XVI: a religião de Rabelais. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p. 29.
3 Idem, p. 32.
4 Idem, p. 33.
realizam-se em plena dominação filipina.5 Após esse período, cessam-se as visitas. Por quê?
Ronaldo Vainfas afirma que
[...]o quase total desaparecimento das visitas inquisitoriais
ao Brasil na segunda metade do século XVII não significou,
contudo, [um] decréscimo das atividades do Santo Ofício na
Colônia, nem foi fenômeno exclusivamente colonial. [...] Em
Portugal e nas ilhas se interromperam definitivamente as visitas
desse gênero após 1637, o que [...], resultou parcialmente do
estado de guerra vivido pelo Reino na sequência da Restauração
até 1660 e dos encargos crescentes que tais visitas representavam
numa conjuntura financeira difícil.6

Dessa forma, não foi o mecanismo centralizador da Inquisição portuguesa que impediu
a realização de visitas nas demais áreas do mundo ultramarino. Após a Restauração portuguesa
(1640), a máquina inquisitorial já estava bem azeitada, com oficiais – nomeadamente
familiares e comissários –, e a estrutura judiciária das dioceses – já em fins do século XVII –
mais refinada, a ponto desta funcionar como mecanismo complementar daquela, dispensando,
assim, as visitas de distrito.
Fora deste período, só há uma única visita, realizada no século XVIII ao estado do Grão
Pará. É certo que, como sublinhou Vainfas, esta visitação pertence ao ocaso do Santo Ofício
e, por isso, suas motivações distanciam-se das primeiras incursões inquisitoriais na América
portuguesa.7. E, mesmo para essas, já amplamente estudadas, não há consenso. Enquanto,
para Anita Novinsky, a origem das visitações deve-se à ampla presença de comerciantes e
senhores de engenho que praticavam o judaísmo na Bahia,8 para Sônia Siqueira, o objetivo
era integrar ao universo cristão ocidental o Novo Mundo, investigando a quantas andava
a fé dos colonos.9 Já o historiador português Francisco Bethencourt defende que o Santo
Ofício português pouco havia feito pelo seu ultramar, e que as visitações não demonstravam
nenhum interesse especial, além da integração das colônias mais importantes à Inquisição
portuguesa.10
Seja como for, as hipóteses levantadas para explicar as primeiras visitações não dão
conta de elucidar o caráter ímpar dos estertores da Inquisição no Grão-Pará – “uma visita
excepcional sob todos os pontos de vista”, como sublinhou Bethencourt.11
Na Universidade Federal do Pará, algumas monografias colocam em relação ação
inquisitorial e domínio colonial. É o caso de Arison Marques,12 para quem a visitação se
relaciona com a tentativa de controle pombalino por intermédio da vigilância e da punição

5 BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 215.
6 VAINFAS, Ronaldo. Trópicos dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p. 225.
7 VAINFAS, Ronaldo. “Visitações do Santo Ofício”. In: Dicionário do Brasil colonial (1500–1808). Rio
de Janeiro: Objetiva, 2000.
8 NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: a Inquisição no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1992, p.
109-111.
9 SIQUEIRA, Sônia. A inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978, p. 184.
10 BETHENCOURT, Francisco, op. cit., p. 51-66.
11 Ibidem, p. 215.
12 MARQUES, Arison. Purgatório amazônico: sexualidade e inquisição no Grão-Pará (1763-1769).
Monografia (Graduação em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Pará, Belém. 2002.
dos transgressores. Juan Jambert Dias13 segue o mesmo caminho, pensando que, através do
medo, a visitação garantiria um domínio sobre o imaginário e o comportamento da população.
Ezilene Silva14 percebe a visitação como forma de consolidar a disciplina promulgada após o
Diretório dos índios. Juliana da Mata Cunha afirma que “esta visita certamente ultrapassou os
limites de uma investigação religiosa sobre desvios de crença”.15 De fato, a explicação da visita
ao Grão-Pará mantém profunda relação com o projeto civilizador pombalino. Porém, essa
relação entre os poderes não serviu para punir os transgressores, muito menos para efetivar
maior “domínio sobre o imaginário”. Ronaldo Vainfas lembra que Giraldo José de Abranches
foi pouco rigoroso se comparado ao inquisidor da Bahia quinhentista, Heitor Furtado de
Mendonça, e menos pragmático que Marcos Teixeira, visitador em Pernambuco (1618).
Completa: “em vivo contraste [...], a visita do Pará nos indica o quão apartados estavam da
heresia e a moralidade popular no entender dos últimos inquisidores”.16
José Roberto do Amaral Lapa – que encontrou os manuscritos na Torre do Tombo, na
década de 1970, e foi responsável por sua publicação – aponta algumas motivações para a
visitação setecentista, São elas: a) instrumento para atemorizar e controlar a prosperidade dos
cristãos-novos; b) periódico e rotineiro revigoramento da fé; c) repreensão ao relaxamento do
clero e da população; d) sondagem do subconsciente da sociedade colonial.17 Convido-os a
pensar cada uma destas motivações. A pecha de cristão-novo, por exemplo, já era poente a
essa época, não havendo acusações diretas aos judaizantes. Na denúncia feita contra Thomaz
Luiz Teixeira, percebemos esta situação. Ao ver passar uma procissão de meninos cantantes
da escola que “carregavam um andor muito bem ornamentado com velinhas de cera e uma
imagem perfeita do Senhor crucificado”, lançou de sua “janela um vaso cheio de imundícies
fedidas e asquerosas”. Com o ímpeto da pancada e do peso, o andor foi ao chão, quebrando
e ficando “maculado de imundícies humanas” que se espalharam, respingando em todos e
na imagem. Thomaz pôs-se com sua família para dentro, logo ouvindo a criançada injuriada
clamar contra ele: – Judeu!18
Neste caso, a preocupação central do denunciante é a blasfêmia, e não o judaísmo,
que, aqui, é apenas detalhe. Vale lembrar que a distinção entre cristãos-novos e velhos só
desapareceu do império português em 1773 e, mesmo antes, já estava praticamente finda.
As idéias de que as visitações ao ultramar faziam parte de um periódico e rotineiro
revigoramento da fé e de uma sondagem ao subconsciente da sociedade colonial são, de fato,
bem aceitas, não fosse a malha de oficiais inquisitoriais que se estendia por todo o mundo
colonial. A partir de meados do século XVII e, especialmente, no século XVIII, uma extensa
rede de comissários e familiares do Santo Ofício se formou garantindo o funcionamento da
instituição. A esta rede bem trançada, e após o sínodo que promulgou as Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia (1707), uniram-se as visitas diocesanas e/ou devassas eclesiásticas

13 DIAS, Juan Jambert. A Inquisição no Pará: um estudo sobre o imaginário religioso. Monografia
(Graduação em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará,
Belém. 1997.
14 SILVA, Ezilene. Cultivando o pecado e dando escândalos: devassas civis e religiosas no Grão-Pará
do século XVIII. Monografia (Graduação em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pará, Belém. 2001.
15 CUNHA, Juliana da Mata. Vicissitudes de um servidor do Santo Ofício no estado do Grão-Pará
(1763-1772). Monografia (Graduação em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pará, Belém. 2001, p. 27.
16 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados..., op. cit., p. 298-299.
17 LAPA, José Roberto do Amaral. A visita oculta. In: Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição
ao Estado do Grão-Pará. 1763–1769. Apresentação de José Roberto do Amaral Lapa. Petrópolis:
Vozes, 1978. p. 26-27.
18 Ibidem, p. 168-171.
como mecanismo auxiliar à Inquisição.19 Foram essas peças que, sem prejuízo de sua ação,
constituíram a engrenagem da máquina inquisitorial, justificando, talvez, o desaparecimento
de visitas às terras brasílicas desde a primeira metade do século XVII.
Já as queixas de relaxamento do clero e da população são constantes em praticamente
todos os tempos e espaços, sejam eles coloniais ou metropolitanos. Aliás, o movimento
reformador, antecipado no mundo luso pelos jesuítas, conheceu, somente no século XVIII, por
meio das medidas implementadas pelo episcopado, expansão, solidificação e reforma do clero
ultramarino – “pré-requisito indispensável para a moralização dos costumes da população
e homogeneização das práticas religiosas”, como bem explicou Lana Lage da Gama Lima20.
O clero colonial estava, paradoxalmente, “estreitamente comprometido com [os] padrões
morais que devia combater”, pois “quanto maior era a participação dos sacerdotes na vida
profana, maior era o relaxamento moral de seus costumes”.21 Portanto, era este imiscuir de
sagrado e profano que conferia certo desregramento ao clero. Contudo, em análise do Livro
da visitação, observamos que pouquíssimos padres foram citados por praticarem heresias, das
mais diversas.
Uma outra hipótese conflui para um dos maiores inimigos da prosperidade do Estado
português, segundo o Pombal: os inacianos. A eles se atribuiu, como é sabido, a formação de
um “estado dentro do Estado”. Pombal os havia expulsado de todo o Império em 1759; quatro
anos depois, 1763, chega a visitação, pronta a liquidar os resquícios de sua sobrevivência
material, espiritual e política, como apontou o historiador José Roberto do Amaral Lapa. Rita
Heloísa de Almeida, enfatizando esta hipótese de Lapa, aduz que a visitação pauta-se na Carta
Régia que expulsa a Companhia de Jesus e confisca seus bens, datada de setembro de 1759. É
nesse sentido que a ação da mesa é utilizada como mecanismo para medir a influência dos
inacianos sobre os índios e o restante da população. Todavia – a historiadora recompõe a
argumentação –,
[...] os processos e o que ali se registra não deixam explícita
a vinculação ideológica dos depoimentos dos índios com o
interesse do Estado português em investigar melhor o poder
político e econômico dos jesuítas nessa parte norte do Brasil.
Em verdade, esses missionários são apenas citados na rotina
das vidas pessoais dos depoentes para que assim pudessem
sustentar e legitimar suas declarações a respeito de matrimônios
e batismos.22

Nesta mesma linha de argumentação, Blenda Cunha Moura propõe que “o bispo [frei
João de São José Queirós] deve ter sido o mote que desencadeou a visitação do Santo Oficio
ao Pará”, pois “suas atitudes teriam levado Sebastião José a tomar medida mais enérgica com
relação à presença da Igreja na Amazônia Portuguesa”.23 A “comparação de Queirós com os
jesuítas” era a atitude que colocava em xeque a permanência do bispo e a que “rendeu as maiores

19 BOSCHI, Caio. As visitas diocesanas e a Inquisição na Colônia. Revista Brasileira de História, v. 7,


n. 4, mar.-ago. 1987.
20 LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial. Tese
(Doutorado em História). Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1990, p.
739.
21 Ibidem, p. 741.
22 ALMEIDA, Rita Heloísa de. O diretório dos índios. Brasília: Edunb, 1997. p. 297.
23 MOURA, Blenda Cunha. Intrigas coloniais: a trajetória do bispo João de São José Queirós (1711-
1763). (Mestrado em História) Departamento de História, Universidade Federal do Amazonas.
Manaus: Ufam, 2009, p. 163.
dores de cabeça a Sebastião José”.24 Então, segundo seu entendimento, foram as aproximações
de Queirós com a prática jesuítica o motivo central para a visitação. Conforme a afirmação de
Rita Almeida e a análise dos processos que se seguiram à visitação e da correspondência, não

24 Ibidem, p. 155.
há nenhuma correlação entre Inquisição e prática jesuítica. Salta aos olhos, como demonstra
sua pesquisa sobre a trajetória do bispo, a relação entre jesuitismo e a ação do prelado, mas
esse fato pouco manteve de vínculo com a Visitação. Contudo, para o caso de Abranches ter
sido nomeado como administrador interino do bispado, sua posição de deputado do Santo
Ofício – tribunal zeloso da fé, adversário dos jesuítas e domesticado por Pombal – muito deve
ter contribuído para sua escolha.
Pedro Pasche de Campos, em sua dissertação de mestrado intitulada Inquisição, magia
e sociedade, afirma que o objetivo central da visitação ao Grão-Pará foi a substituição dos
modelos de catolicismo, do jesuíta tridentino para o regalista de Pombal.25 De fato, o Santo
Ofício representava um acentuado instrumento de coerção que Pombal articulou segundo
seus interesses, a ponto de colocar seu irmão, Paulo de Carvalho e Mendonça, à frente do
Conselho Geral do Santo Ofício no ano de 1760, e publicar o Alvará que concede ao Santo
Ofício o estágio de Tribunal Régio, em 1769. Portanto, é impossível desvincular a ação do
Santo Ofício da política pombalina. Contudo, o que seria o “modelo de catolicismo regalista”
implementado por Pombal? A Inquisição, por meio da visitação ao Grão-Pará, teria como
modificar este modelo de catolicismo tridentino para um modelo regalista? A Inquisição,
mesmo sob a ótica da reforma pombalina, não seria, ainda assim, uma instituição tridentina
em seu trato religioso? Por fim, como o Santo Ofício poderia substituir um novo modelo de
evangelização pautado no regalismo?
Pasche de Campos constrói a hipótese sem, contudo, problematizar ou mesmo
responder as questões, e chega, inclusive, a classificar esta visitação como “anacrônica para
o século XVIII, devido ao grande peso simbólico e opressor que uma visitação inquisitorial
ainda possuía sobre o povo”.26 E, nesse argumento, não esteve sozinho, Evandro Domingues
embarca na mesma idéia, embora procure contextualizar e relacionar com mais cuidado a
atuação de Abranches no Pará.27
O problema nesta caracterização é que a pertinência desta questão pré-concebida
torna-se estrutura e amarra da argumentação central de suas obras.28 Explico de outra forma:
25 CAMPOS, Pedro Marcelo Pasche de. Inquisição, magia e sociedade: Belém do Pará, 1763-1769.
Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em História, Universidade
Federal Fluminense, Niterói: UFF, 1995, p. 111-115.
26 Ibidem, p. 116.
27 DOMINGUES, Evandro. Para o remédio das almas: a visitação do Santo Ofício à Colônia no
período pombalino. In: XXIII Simpósio Nacional da Anpuh: História: Guerra e Paz, 23. Anais...
Londrina: Editorial Mídia, 2005, p. 5. Assim como Pasche de Campos, Evandro Domingues estudou,
em sua dissertação de mestrado, as práticas mágicas relativas à visitação do Grão-Pará. Enquanto
o primeiro lançou luz sobre a descrição e a análise dos casos que colocavam em pauta a relação
entre magia e sociedade no Grão-Pará, o segundo historiador procurou compreender a construção
do caráter desviante (estigma) das práticas culturais face à norma católica (ver CAMPOS, Pedro
Marcelo Pasche de, op. cit.; DOMINGUES, Evandro. A pedagogia da desconfiança: o estigma da
heresia lançado sobre as práticas de feitiçaria colonial durante a visitação do Santo Ofício ao estado
do Grão-Pará (1763-1772). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em
História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2001. Outro trabalho que procurou lançar
luz sobre a religiosidade no Grão-Pará foi a tese de Almir Diniz de Carvalho Júnior. Nela, o autor
procura demonstrar como “os índios de diversas etnias, inseridos na nova ordem colonial que
se instalou na Amazônia portuguesa, foram se incorporando àquele novo mundo como cristãos,
entre meados do século XVII e a segunda metade do século XVIII, através do processo de sua
evangelização” (CARVALHO JÚNIOR, Almir Diniz. Índios cristãos: a conversão dos gentios na
Amazônia portuguesa (1653-1769), p.1. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-graduação
em História, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.
28 O historiador Ronaldo Vainfas propõe uma saída mais interessante, ao afirmar que a visitação do
Grão-Pará foi extemporânea... “Dissemo-la extemporânea por três razões básicas”, explica: “1) a
ao pensarem as reformas pombalinas de maneira essencialmente progressistas, quando não
iluministas, e relacioná-las com o fim das visitas inquisitoriais, estes historiadores, além de
pensarem a História como evolutiva, encarceram-na teleologicamente. Sua argumentação só
ganha relevo se pensarmos Pombal como um iluminista, e, em regra, a reforma pombalina é
menos abstrata, e mais pragmática.
Por outro lado, mesmo reconhecendo que os jesuítas, expulsos em 1759, eram os
baluartes da reforma católica, e que, em 1757, após a promulgação do Diretório que submetia a
cristianização dos índios sob a jurisdição do bispado e tutelado, por meio dos diretores das vilas,
ao poder secular, houve pouca mudança na forma de catequização, pois outras ordens, como
os carmelitas, não perderam de todo a ação evangelizadora.29 A particularidade fez-se, talvez,
no uso do português como língua de educação e evangelização, e mesmo esta foi colocada em
questão quando frei Manuel da Penha do Rosário, mercedário, escreveu, em 1773, defendendo
a evangelização em língua geral. As Questões apologéticas foram escritas com a intenção de
que “em nada peca o pároco que na língua vulgar dos índios o instrui espiritualmente, não
sabendo eles nem entendendo a portuguesa, que por ordem real, se lhes deve introduzir”.30
Trata-se de assunto contrário às determinações pombalinas e deveras associado aos jesuítas,
assunto defendido por ninguém menos do que Giraldo José de Abranches. Diz ele:
[...] seus admiráveis cadernos das suas Questões apologéticas,
que gostosamente li uma vez, porque não tive sossego para
outras mais. Eles contêm matérias de suma importância e de
admirável disciplina eclesiástica, e toda bem fundamentalmente
estabelecida, sendo dignas de irem às mãos de todos, para com
elas ficarem instruídos.31

Portanto, o tal “modelo de catolicismo regalista de Pombal” não se faz presente, ao que
se observa, nem para seus agentes. Contudo, não podemos afiançar cabalmente esta última
ponderação, pois – continua Abranches – “tenho [...] de pedir, como peço, eficazmente, a
Vossa Reverendíssima, que de nenhuma forma entre nesse erudito papel meu nome, porque
lhes diminuirá a sua preciosidade. E o desejo totalmente desconhecido, como nome que não
merece ser lembrado”.32 Humildade ou dissimulação? Poderia o visitador estar armando um
embuste para cima do mercedário?
Seja como for, o Santo Ofício, àquela época, contava com uma rede de agentes formais,
civis e eclesiásticos, conhecidos como comissários e familiares. Daniela Calainho, em trabalho
Inquisição portuguesa havia muito abandonara esse expediente em todos os domínios lusitanos
quando enviou o visitador ao Pará; 2) a máquina inquisitorial era, então, uma pálida lembrança
da poderosa instituição que fora até o início do século XVIII, diluiu-se no Estado reformado do
marquês de Pombal, e ficou limitadíssima em suas funções; 3) a razão de ser do Santo ofício, isto
é, a distinção entre cristão-velhos e novos, estava em vias de desaparecer, o que ocorreria em 1773”.
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados..., op. cit., p. 242-243.
29 Miguel de Bulhões e Sousa confiou, em 15 de julho de 1758, a administração paroquial das povoações
dos rios Negro e Solimões aos religiosos da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, “pela obediência e
retidão ao alvará de 7 de Junho de 1755 junto das povoações dos índios do estado do Pará”. Arquivo
Histórico Ultramarino (AHU), (Projeto Resgate), Pará, Cx. 43. Doc. 3955.
30 ROSÁRIO, frei Manuel da Penha do. Questões apologéticas de Manuel da Penha do Rosário. In: SILVA,
José Pereira da (ed.). Língua e Inquisição no Brasil de Pombal. Introdução e notas de José Pereira da
Silva. Rio de Janeiro: Eduerj, 1995. p. 3. Lembrando Bakhtin: “[...] duas línguas são duas concepções
do mundo [...] não abstratas, mas concretas, sociais”. Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade
Média e no Renascimento. Brasília: Editora UnB, 1996, p. 410; 415.
31 Ibidem, p. 51.
32 Ibidem.
sobre os familiares do Santo Ofício, demonstra que a rede de agentes inquisitoriais estava,
apesar de bem diminuta, se comparada ao restante da América portuguesa (2,3% dos agentes),
azeitada no norte da colônia. Entre os anos de 1721 e 1740, bem como no período da visitação,
entre os anos de 1761 e 1781, tem-se o maior número de familiares no estado do Grão-Pará e
Maranhão33.
Portanto, podemos inferir que, à época em que Abranches chegou ao Grão-Pará, a malha
do Santo Ofício já estava bem tecida. Contudo, se era este o caso, o que fez a Inquisição enviar
uma visitação ao Grão-Pará em um período em que este expediente não era mais utilizado?
Esta visitação relaciona-se intimamente com o contexto que forjou o projeto pombalino.
A experiência diocesana de Giraldo José de Abranches em São Paulo e Mariana, suas “letras
canônicas” e as constantes queixas dos erros e permanências das práticas jesuíticas no norte da
Colônia estão entre as razões explícitas nas cartas para enviá-lo a estas terras.34
Entretanto, Abranches foi, antes, enviado para algumas diligências eclesiásticas a mando
d’el-rei, e somente depois, pelo Santo Ofício. Por tudo isso, a explicação da visitação do Santo
Ofício ao estado do Grão-Pará relaciona-se à subserviência deste tribunal e do visitador ao
projeto pombalino. A Inquisição era um instrumento privilegiado de normatização da fé e
dos costumes, mas também expediente ímpar e profundo para o conhecimento das relações
sociais. Esse foi seu objetivo, encarnado em Abranches: auxiliar a administração pombalina e
conhecer as gentes e as terras do Pará.
É certo que, como visitador, Giraldo José de Abranches foi pouco eficaz e quase não
se relacionou – pelo menos de forma pacífica – com os outros poderes. Se fez a mesa da
visitação funcionar bem durante os primeiros meses, quiçá nos dois primeiros anos (1763 e
1764), no restante, sua ação foi mesmo irregular. Ao que tudo indica, alguma outra ocupação
haveria de ter lhe tomado o tempo, caso contrário, o que justificaria o número decrescente das
apresentações à mesa da visitação?
Ambas, administração eclesiástica e visitação inquisitorial, tomavam muito tempo.
Na primeira, repousava toda a burocracia diocesana e o zelo com as pastorais, com a
evangelização, e com a jurisdição eclesiástica; quanto à segunda, o visitador teria que ouvir
denúncias e confissões, inquirir testemunhas, abrir processos, e remetê-los à Lisboa. Porém,
uma e outra deveriam estar em conformidade com os planos pombalinos – o que tornava
a tarefa deveras árdua. Assim, a correspondência administrativa e o expediente do tribunal
enunciam a inclinação do inquisidor sobre o cotidiano da administração eclesiástica em
prejuízo da própria Inquisição. Dedicou-se fartamente aos assuntos do monarca e de Pombal,
sem, contudo, olvidar de todo a causa inquisitorial. Finalmente, executou uma diligência
eclesiástica interessada na administração do bispado e na consolidação do projeto pombalino
nestas terras. Por isso, a visitação do Santo Ofício manteve relação visceral com este último e
foi, pelo mesmo motivo, secundária e subserviente.
Em pesquisa recente – apresentada após a defesa deste trabalho –, Maria Olindina de
Oliveira afirmou que a atuação da mesa do Santo Ofício permaneceu ativa em detrimento
do registro no Livro da visitação. Fato de monta, estes casos servem para demonstrar que
Abranches continuou a exercer a função de visitador por mais tempo do que aquele indicado
por nossa investigação. Essa constatação leva a autora à seguinte conclusão:
[...] esse fato contradiz o que alguns autores afirmaram acerca
da atuação do visitador Giraldo Abranches, ou seja, que teria se
dedicado mais aos assuntos do bispado e descuidado das funções
33 CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: familiares da inquisição portuguesa no Brasil Colonial. Bauru:
Edusc, 2006, p. 177-178.
34 Toda a argumentação que se segue foi desenvolvida em nossa dissertação de mestrado: MATTOS,
Yllan de. A última Inquisição: os meios de ação e funcionamento da Inquisição no Grão-Pará
pombalino (1763-1769). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-graduação em
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
inquisitoriais, justificando assim o declínio das denúncias no final
do período da visitação. O que certamente não concordamos.35

Doravante, quando analisa os dados de sua pesquisa, a autora se coloca uma questão
fulcral – sem, contudo, enfrentá-la: “com a queda do número de denúncias, a partir de 1765”,
afirma, “torna-se difícil perceber a partir daí a existência de um padrão acerca da natureza dos
delitos praticados pela população paraense, ficando os números de denunciados/delitos quase
que equilibrados entre si”.36 Em outro momento, aduz: “a partir de 1765, se compararmos
com os dados anteriores, verificamos que ocorre uma queda nos números absolutos”.37 O
que justificaria tal decréscimo quantitativo? Seria, pois, a importância dada por Abranches à
administração eclesiástica – objetivo primeiro que fez dom José I enviá-lo ao Grão-Pará – e
ao conhecimento local.
Esta finalidade é facilmente percebida se colocada em relação com as devassas conduzidas
pelo ouvidor-geral Feliciano Ramos Nobre Mourão nas vilas e povoações de Monçarás,
Salvaterra, Monforte, Colares, Cintra, Bragança, Vila Nova del Rei, Ourém e Soure,38 e com a
visita pastoral efetuada pelo vigário-geral José Monteiro Noronha na capitania do Rio Negro.39
Tanto as devassas inquisitoriais e pastorais quanto as civis concorriam e complementavam-se
para o melhor conhecimento do estado do Grão-Pará. Todos esses agentes estariam integrados,
intimamente, com o projeto pombalino. Noronha tornou-se eclesiástico em 1754 e homem de
confiança de Miguel de Bulhões. Quando é criada a Vigairaria Geral do Rio Negro, logo após
a expulsão dos jesuítas, é imediatamente creditada a ele essa imensa jurisdição eclesiástica.
Nobre Mourão foi eleito magistrado, no cargo de juiz de fora e provedor da fazenda, em julho
de 1758; dois anos depois (1760), já experimentava as funções de ouvidor-geral da comarca do
Pará. Em 1767, tornar-se-ia desembargador. Ambos eram pares deste projeto; não sem razão,
fizeram carreira meteórica nestas terras.
A Inquisição, por seu turno, contribuía e integrava essa verdadeira rede coercitiva de
informações. Mesmo agindo pouco, auxiliou na tarefa de conhecer as gentes e as terras do
Grão-Pará. Estas três inspeções, três esferas de poder, complementaram-se, imprimindo novas
cores e formas ao rearranjo do que era lide no processo de colonização.
Todavia, servindo a este projeto pombalino, a Inquisição agiu, doravante, conforme seu
ritmo, ouvindo denúncias, abrindo inquéritos, processando, admoestando e, ocasionalmente,
enviando a Lisboa. Sua lógica não podia ser outra, embora não tenha sido tão rigorosa como
fora outrora. Nos seis anos de visitação, quarenta e seis pessoas se apresentaram à mesa
inquisitorial, e pouco mais de nove foram remetidas a Lisboa. Do Conselho Geral, os pareceres
ajuizavam “diferente conhecimento das coisas da religião”, “rusticidade e falta de instrução”
dos moradores do Cabo Norte, escamoteando a subordinação da Inquisição ao Estado e
sua filiação ao projeto pombalino, cujo objetivo, no norte da América portuguesa, era criar
alianças com os chefes indígenas, mantendo o território definido no Tratado de Madri (1750)
e demarcado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, além de garantir mão de obra livre
e de baixo custo para as atividades econômicas dos moradores do Grão-Pará, incentivando o
35 OLIVEIRA, Maria Olindina Andrade de. Olhares inquisitoriais na Amazônia portuguesa: o Tribunal
do Santo Ofício e o disciplinamento dos costumes (XVII-XIX). Dissertação (Mestrado em História).
Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2010, p. 72.
36 Ibidem, p. 75 (grifo nosso).
37 Ibidem, p. 74.
38 Arquivo Público do Estado do Pará (Apep). Secretaria da Capitania do Governo do Pará, cód. 145.
Correspondência de diversos com o governo. Esses documentos encontram-se transcritos nos
“Autos de devassa” dos Anais do Arquivo Público do Pará (v. 3, tomo 1, Belém, Secult/Apep, 1997, p.
9-211).
39 NORONHA, José Monteiro de. Roteiro da viagem da cidade do Pará até as últimas colônias do sertão
da província (1768). Introdução e notas Antonio Porro. São Paulo: Edusp, 2006.
comércio e introduzindo escravos africanos.
Por outro lado, o Santo Ofício utilizou-se da determinação régia que enviou Giraldo José
de Abranches para “algumas diligências no Pará”, e somente depois solicitou que “o Conselho
[Geral] à Vossa Majestade lhe queira dar licença para nomear o mesmo doutor (...) visitador
daqueles Estados”.40 A correspondência do visitador e vigário capitular e o próprio expediente
do tribunal indicam-nos que Abranches, de fato, sobrevalorizou o cotidiano da administração
eclesiástica em detrimento dos assuntos inquisitoriais. Não se esqueceu do Santo Ofício, mas
é manifesto que se deteve amplamente nos assuntos d’el rei e de seu ministro. Foi, ao fim e ao
cabo, uma diligência eclesiástica interessada na administração do bispado, na evangelização
do rebanho, e na consolidação de um projeto que teve início com Mendonça Furtado e Miguel
de Bulhões. A visita inquisitorial – secundária, subserviente e manifesta – manteve íntima
relação com este objetivo. Última Inquisição e, ainda sim, pertencente ao seu tempo!

40 AHU (Projeto Resgate), Pará, Cx. 54. Doc. 4938. Carta nomeando Giraldo José de Abranches
visitador do Pará e adjacentes, 17 de junho de 1763.
A Inquisição injuriada:
Os insultos contra a “limpeza de sangue” dos familiares do santo ofício no século
XVIII

Aldair Carlos Rodrigues1

Os estatutos de limpeza de sangue: contexto e problemáticas

Entre o final do século XV e início do século XVI, a península Ibérica, que era habitada há
séculos por povos seguidores das três religiões monoteístas (judaica, muçulmana e cristã),
assiste à formação de unidades políticas profundamente identificadas com a fé católica. Os
momentos mais dramáticos desse processo são a expulsão dos judeus da Espanha (1492) e de
Portugal (1495), e a posterior conversão forçada de uma parte considerável do grupo (pelo
batismo forçado de Lisboa, ocorrido em 1497). Com base principalmente no argumento de
que os conversos continuavam praticando a lei de Moisés em segredo, os monarcas de ambos
os reinos conseguiram do papa as bulas para o estabelecimento da Inquisição (em 1478, no
caso espanhol, e em 1536 em Portugal) com o intuito principal de perseguir os cristãos-
novos que praticassem o criptojudaísmo.2 As monarquias ibéricas, calcadas na unidade da fé,
passaram a não tolerar dissidências religiosas em seus domínios.
Nesse contexto, as diversas instituições que estruturavam a ordem social do Antigo
Regime passaram a adotar os estatutos de limpeza de sangue como um dos principais critérios
para a admissão de alguém em seus quadros, sobretudo no caso daquelas que ofereciam
distinção social aos seus membros, entendida aqui como capital simbólico.3
O Estatuto de Toledo, de 1449, que impedia a ocupação de cargos municipais pelos
recém-convertidos à Fé Católica – considerados de “sangue infecto” –, é considerado o
precursor dos estatutos de limpeza de sangue na península Ibérica.4 Por ser nesta época a
“marca genealógica mais odiada e temida”, 5 a ascendência judaica era certamente a mais visada.
Em Portugal, não podemos precisar quando tais estatutos foram estabelecidos. É certo
que, aos poucos, eles passaram a ser adotados pelas instituições, tendo sido as ordens regulares,
no século XVI, as primeiras a tomarem iniciativas de incorporar a “limpeza de sangue” ao seu
sistema de recrutamento.6 Foram adotados em 1570, por meio da bula Ad Regie Maiestatis,
1 Doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Sobre a expulsão e conversão forçada dos judeus, ver: Azevedo, João Lúcio. História dos cristãos-novos
portugueses. 3. ed. Lisboa: Clássica Editora, 1989; SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-
novos. Lisboa: Estampa, 1985. Sobre o estabelecimento da Inquisição, consultar: HERCULANO,
Alexandre. História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa: Europa-América,
s. d. 3 v.; BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições: Portugal, Espanha e Itália, séculos
XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; PAIVA, José Pedro de Matos. Baluartes da fé: o
enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011.
3 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
4 OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de
Estudos Sefarditas, n. 4, p. 151-182, 2004.
5 Idem. As ordens militares e o Estado moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789).
Lisboa: Estar, 2001. p. 283. Sobre o “problema dos conversos” (cristãos-novos) e estatutos de limpeza
de sangue em Portugal, ver também: NOVINSKY, Anita. Cristãos-novos na Bahia. São Paulo:
Perspectiva, 1972. p 23-55; SARAIVA, Antônio José. Inquisição e cristãos-novos. Lisboa: Estampa,
1985; CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial em Portugal e Brasil Colônia. 3.ed. São
Paulo: Perspectiva, 2005. p. 29-178.
6 OLIVAL, Fernanda. Rigor..., op. cit., p. 154.
expedida pelo papa Pio V, conforme solicitação da Coroa. Segundo Olival, isso aconteceu
num contexto em que havia interesse em configurar as ordens militares como um espaço de
elite. A referida bula impunha também a limpeza de ofício como condição para a entrada nas
ordens, ou seja, quem trabalhava com as mãos para sobreviver – “portadores do defeito de
mecânica” 7 –, ficava excluído da instituição.
Apesar de tantas polêmicas envolvendo os cristãos-novos, o Santo Oficio, diversas
autoridades e a Coroa, os estatutos foram penetrando nas instituições portuguesas, e a limpeza
de sangue, aos poucos, passou a compor, junto com outros elementos, os códigos de distinção
social.
Segundo Olival, as questões relacionadas à pureza de sangue alcançaram o seu período
de auge entre o último quartel do século XVII e as três primeiras décadas do século seguinte.
As explicações que a autora apresenta são: a chegada do infante d. Pedro ao trono em 1667 e
o consequente reforço do poder nobiliárquico; “as reações ao sacrilégio de Odivelas de 1671;
e os boatos sobre o perdão geral e as tensões decorrentes da suspensão do Santo Ofício entre
1674 e 1681”.8 Ainda segundo a mesma autora,
[...] o campo de aplicação dos estatutos era apesar de tudo
restrito: para ingressar no serviço militar, diplomático ou na
universidade não era necessário provar a qualidade do sangue.
As exigências só se punham na concorrência por muitos dos
degraus posteriores, para além do hábito, familiaturas e dos foros
da Casa Real: obtenção do grau de licenciado e doutor; entrada
nos colégios maiores de S. Pedro e S. Paulo; acesso a muitos
benefícios eclesiásticos; habilitação aos lugares “de Letras” da
Coroa. Mesmo assim, cada instituição aplicava os estatutos à sua
maneira.9

Quando os familiares ganharam destaque nos regimentos do Santo Ofício, os requisitos


básicos para alcançar tal posto eram os mesmos dos outros agentes inquisitoriais. Segundo o
Regimento de 1640, vigente até 1774, os ministros e oficiais do Santo Ofício deveriam ser
[...] cristãos-velhos de sangue limpo, sem a raça de Mouro, Judeu,
ou gente novamente convertida a nossa santa Fé, e sem fama em
contrário; que não tenham incorrido em alguma infâmia publica
de feito ou de direito, nem forem presos, ou penitenciados pela
Inquisição, nem sejam descendentes de pessoas, que tiverem
algum dos defeitos sobreditos, serão de boa vida e costumes,
capazes de se lhe encarregar qualquer negócio de importância
e de segredo; e as mesmas qualidades concorrerão na pessoa,
que o Ordinário nomear para assistir em seu nome ao despacho
dos processos das pessoas de sua jurisdição. Os oficiais leigos,
convém a saber, Meirinho, Alcaide, e todos os mais saberão
ler e escrever; e, se forem casados, terão a mesma limpeza suas
mulheres e os filhos que por qualquer via tiverem.10

No regimento de 1640, o cargo de familiar foi contemplado com um título específico,


7 Ibidem, p. 156-157. Neste contexto, os estatutos de limpeza de sangue tiveram impacto também no
mercado matrimonial. Cf. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito Racial ..., op. cit., p. 110-116.
8 OLIVAL, Fernanda. Rigor..., op. cit., p. 159.
9 Idem. As ordens..., op. cit., p. 344-345.
10 Regimentos do Santo Ofício (séculos XVI-XVII). Regimento de 1640, livro I, título I, §2º.
o qual deixava claras as funções e exigências para a ocupação do cargo, que antes aparecia
diluído na legislação inquisitorial.
De todos os requisitos para que alguém se tornasse familiar, a exigência de os
candidatos serem “cristãos-velhos de sangue limpo, sem a raça de Mouro, Judeu, ou gente
novamente convertida a nossa santa Fé, e sem fama em contrário”11 era, sem dúvida, o mais
importante. Quem conduzia as diligências do processo de habilitação no Santo Ofício dava
atenção especial à limpeza de sangue do candidato.
A habilitação no Santo Ofício, pela própria vocação persecutória inquisitorial contra
os cristãos-novos, era reputada entre os coevos como a mais rigorosa na seleção dos seus
agentes. Eram realizadas diligências nos locais de nascimento dos habilitandos para verificar a
sua limpeza de sangue e a de seus ascendentes, e investigava-se qualquer rumor ou fama que
pudesse colocar em dúvida a pureza de sangue da geração do candidato ao cargo do Santo
Ofício. Aqueles que conseguiam se habilitar na Inquisição, passavam a possuir uma espécie de
atestado público de limpeza de sangue, ou seja, tratava-se de uma pessoa comprovadamente
cristã-velha.
Certamente foi a busca pela distinção social oferecida pelo “atestado de limpeza de
sangue” representado pela familiatura12 que levou milhares de pessoas a procurarem o título
de familiar do Santo Ofício durante o século XVIII, principalmente os grupos em processo de
mobilidade social ascendente – sobretudo os comerciantes –, como demonstraram José Veiga
Torres,13 Daniela Calainho,14 James Wadsworth,15 e o prório autor deste trabalho.16
Apesar da eficácia social e da grande expectativa em relação à familiatura, seu capital
simbólico começou a ser questionado ao longo do século XVIII, mostrando os limites da
insígnia como uma certidão pública de limpeza de sangue. Nos cadernos do promotor,
encontramos uma grande variedade de casos que envolvem insultos e injúrias contra os
familiares em que estes são acusados de serem portadores de “sangue infecto”. O intuito
deste trabalho é trazer à luz esses episódios, mostrando esta faceta pouco conhecida do
enraizamento social dos estatutos de limpeza de sangue no mundo luso-brasileiro setecentista.
É preciso investigar as contradições do processo no qual a Inquisição procura alargar sua base
de apoio atendendo à demanda social pela familiatura. O eixo principal da análise considerará
as curvas de expedição das cartas de familiar e a recorrência das injúrias contra a limpeza
de sangue dos familiares ao longo do tempo. Qual era o protótipo dos insultos? Por quem
eram proferidos e quais os tópicos mais comuns acionados pelos injuriantes? Como o tribunal
do Santo Ofício reagia aos ultrajes contra seus agentes? De que maneira os ataques contra
a reputação da limpeza de sangue dos familiares revela, numa dimensão maior, um ataque
contra o próprio tribunal da Inquisição?

11 Ibidem.
12 Além da prova pública e oficial de limpeza de sangue, outros dois elementos de menor impacto
contribuíam para tornar a familiatura um símbolo de distinção social: os privilégios inerentes ao
título, e o fato de os familiares serem representantes e servidores em potencial de uma instituição
metropolitana do porte da Inquisição.
13 TORRES, José Veiga. Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instância
legitimadora da promoção social da burguesia mercantil. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 40, p.
109-135, out., 1994.
14 CALAINHO, Daniela Buono. Agentes da fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil colonial.
Bauru: Edusc, 2006.
15 WADSWORTH, James. Agents of Orthodoxy: Honor, Status, and the Inquisition in Colonial
Pernambuco, Brazil. Boulder (CO): Rowman & Littlefield, 2006.
16 RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e Inquisição em Minas colonial: os familiares do Santo
Ofício. 2007. Dissertação (Mestradoem História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007.
As injúrias contra a limpeza de sangue dos familiares

Na maioria das ofensas relacionadas à limpeza de sangue dos familiares predominam afirmações
de que eles tinham sangue judeu. Em menor proporção, encontramos menções a sangue
mulato e indígena. No ano de 1734, o familiar Antônio Fernandes de Carvalho, mercador,
habilitado em 1709,17 viveu momentos dramáticos dentro da corveta Nossa Senhora de Penha
de França e Almas quando seguia em viagem de Lisboa para o Rio de Janeiro. Frei Brás, da
Ordem de Santo Agostinho, descompôs o dito familiar “chamando lhe Judeu e cachorro”18, o
qual obviamente reagiu dizendo que era familiar do Santo Ofício. Este argumento não impediu
o prosseguimento dos impropérios, agora sob a afirmação: “índio, índio, que bem podia ser
índio sendo familiar”19. O ápice dos insultos foi quando o frei se referiu à medalha de familiar
do Santo Ofício que Antônio trazia ao peito como sendo “penduricalho, que não valia nada”20.
Em outro caso, a persistência da fama de sangue cristão-novo após a habilitação no
Santo Ofício quase levou Domingos Álvares de Azevedo a perder seu título de familiar. A
diferença deste fato em relação aos demais é que naqueles os próprios familiares, convictos
de sua pureza de sangue, escreverem ao tribunal reclamando providências contra quem
lhes proferiam opróbrios. Portanto, os denunciados eram os injuriantes. Já neste episódio
envolvendo o familiar Domingos, foi um terceiro quem denunciou o caso na Inquisição,
levando o Santo Ofício a reabrir seu processo de habilitação, fato raríssimo.
Domingos Álvares de Azevedo era barbeiro e cirurgião em Lisboa, e, por volta de
1710, foi para a freguesia de Bento Rodrigues, termo de Mariana, Minas Gerais, onde atuou
como homem de negócios. Iniciada em 1728, sua habilitação foi aprovada em 1732. No ano
seguinte, um outro familiar e um comissário do Santo Ofício, ambos moradores da mesma
freguesia de naturalidade do habilitando – São Gonçalo de Vilas Boas, Comarca de Chaves
–, o denunciaram à Inquisição, com a acusação de que ele havia se habilitado apesar de ser
afamado de cristão-novo.
De acordo com a denúncia, as testemunhas do processo de habilitação eram parentes
do habilitando e também tidas como cristãs-novas, daí a origem da fraude. Para sustentarem a
afirmação de que Domingos tinha sangue judeu, os elementos apresentados pelos denunciantes
foram que “já nesta família houveram [sic] duas injúrias por lhes chamarem judeus e sempre
eles pagarão as custas”, e que “um parente desta família, infamado pela mesma via, pretendera
há tempos ser familiar e que só se tirarão informações e senão passará a mais”21.
A justificativa para a denúncia era o “escândalo que há nesta muito e dizem os rústicos
lavradores: hoje quem quer pode ser familiar, pois quando o chegou a ser Domingos Alvres de
Azevedo”22.
Assim que soube do fato, a Inquisição pediu diligências na terra natal do familiar para
verificar se as testemunhas do seu processo de habilitação eram realmente cristãs-novas
e parentes do habilitando, e qual a origem daquela “fama”. As constatações foram vagas e
contraditórias. Verificou-se que o rumor havia surgido de um filho bastardo nascido naquela
família havia mais de duzentos anos, cujo pai era um rendeiro cristão-novo. Outro fato
averiguado na investigação foi que havia “uma sentença antiga do Núncio em que julgava
aquela família por cristã velha”23.
17 Instituto dos Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (doravante IANTT), Habilitações do Santo
Ofício (HSO). Antônio, mç 52, doc. 1122.
18 IANTT, Inquisição de Lisboa (doravante IL). Cad. Promotor. Liv. 292, fl 10.
19 Ibidem, fl 10.
20 Ibidem, fl 11.
21 IANTT, HSO, Domingos, mç 27, doc. 518.
22 Ibidem, (grifo nosso).
23 Ibidem.
Em 1746, com as novas diligências, o Conselho Geral do Santo Ofício decidiu não “fazer
caso algum da denúncia”, pois, para que fosse retirado o título de uma pessoa já habilitada, “era
necessária uma prova muito legal, e não o que há”24. A fama de cristão-novo foi considerada
controvertida, sem fundamentos claros.25 Portanto, nem sempre o regimento do Santo Ofício
era seguido, posto que este exigia que os familiares fossem “cristãos-velhos [...] sem fama
em contrário”. Percebemos nestes e em outros casos citados que era possível se habilitar com
“fama em contrário”, mas, nestes casos, foi decisiva a opinião favorável do Conselho Geral
sobre a falta de “fundamento” dos rumores.
Era muito difícil para o Santo Ofício, em plena expansão das familiaturas, verificar
a origem dos rumores de “sangue infecto” quando já fazia centenas de anos que os judeus
tinham sido forçosamente convertidos ao catolicismo. Nesta época de maior procura pela
familiatura, o Conselho Geral ia passando a aprovar habilitações mesmo no caso de candidatos
em que surgiam dúvidas sobre sua ascendência cristã-velha durante a habilitação, sendo que
nos períodos anteriores, de maior aperto, a simples fama era suficiente para interromper uma
habilitação.26
Na década de 1770, período prenhe de episódios em que familiares aparecem sendo
insultados de cristãos-novos, podemos citar o caso em que a mulher de Custódio Ferreira
Duarte, familiar do Santo Ofício preso na cadeia da Corte, foi insultada de ser mulata por
José de Carvalho Peixoto Guimarães, encarcerado junto com o referido familiar. Segundo a
denúncia, as testemunhas do ocorrido repreenderam o dito José de Carvalho para que “não
dissesse semelhantes barbaridades27” porque o marido da suposta mulata era familiar do
Santo Ofício, assim como seu pai, Crispim José de Almeida, também o era. O argumento não
convenceu José de Carvalho, pois, para el,e o título de familiar não era garantia de limpeza
de sangue. Ainda foi mais longe, dizendo “com admirável ira que nem que o abrissem cria no
Santo Ofício e que conhecia muitos marotos e sacerdotes e judeus serem familiares do Santo
Ofício”.28

Injúrias e subornos

O estribilho que ecoa de boa parte das injúrias é o de que aqueles familiares vituperados tinham
se habilitado mediante suborno. Em 1722, na freguesia lisboeta de Nossa Senhora dos Olivais,
Manoel Rodrigues afirmava que Bento Rodrigues Faria tinha conseguido a familiatura “por
muitas moedas de ouro que dera”.29 Ainda em Lisboa, no ano de 1743, Francisco Muniz de
Aguiar e seu irmão viviam “chamando judeus aos habilitados por ele [Santo Ofício], dizendo
que por dinheiro fora feito familiar um Baltazar da Costa Machado”.30 A lisboeta Luiza Maria
dizia que Manoel de Almeida e seu irmão eram mulatos e que “o dinheiro que os suplicantes
possuía fora poderoso para conseguirem o honorífico que logravam de familiares”.31 Em
Minas Gerais, na freguesia de Guarapiranga, os vizinhos do familiar Antônio Rodrigues de
Souza insultavam-no de mulato e chegavam, nas palavras do próprio familiar, à “temeridade
de dizer e publicar que alcancei o ser familiar por peitas de dinheiro que dei, e empenhos que

24 Ibidem.
25 O caso que acabamos de relatar foi baseado em IANTT, HSO, Domingos, mç 27, doc. 518.
26 Sobre os rumores de “sangue infecto” durante as habilitações no século XVIII, ver o capítulo 3 de
RODRIGUES, Aldair Carlos. Sociedade e..., op. cit.
27 IANTT, IL, Cad. Promotor. Cad. 130, liv. 319. fl. 295.
28 Ibidem, fl. 295v.
29 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 283, fl. 433.
30 Idem, IL, Cad promotor, livro 309, fl. 377.
31 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 282.
meti para o conseguir”.32
Na perspectiva dos injuriantes, o Santo Ofício era uma instituição permeável ao
dinheiro, a instituição oferecia “atestado de limpeza de sangue” e “honorífico” em troca de
moedas de ouro. É provável que muitos dos insultos analisados fossem proferidos por vizinhos
que invejavam a consagração da mobilidade social recém-alcançada (sobretudo por meio da
ocupação mercantil) e orgulhosamente ostentada pelos seus próximos. Viam na mobilidade
social uma ameaça ao status quo da sociedade estamental do Antigo Regime. Outra hipótese é
a de que eles realmente acreditavam que os injuriados não eram “limpos de sangue” e estavam
corrompendo o tribunal que devia zelar pela ortodoxia da fé, e pela separação da sociedade
entre cristãos-velhos e cristãos-novos; daí a indignação. Mas o que é certo em todos os casos
analisados neste texto é o aumento do descrédito na Inquisição e na sua “retidão” ao habilitar
seus agentes.

Expansão das familiaturas e descrédito na Inquisição

O aumento do número de casos de familiares sendo difamados por terem sangue cristão-novo
aumenta na proporção em que acontece o incremento estrondoso na expedição de familiaturas
no século XVIII. Este aumento pode ser explicado pela busca de maior apoio social pela
Inquisição após a suspensão das suas atividades entre 1674 e 1681, e também essa era uma
maneira de atender aos interesses dos grupos em processo de ascenção social.33 Na medida
em que cada vez mais gente consegue a familiatura, há uma relativa diminuição do seu capital
simbólico, e cresce uma revolta na boca daqueles que não possuíam a insígnia. Considerando
intervalos de 50 anos, observamos que, no período que vai de 1671 a 1720, a quantidade
de familiaturas expedidas pelo Santo Ofício aumentou de 2.285 – referente ao meio século
anterior (1621-1670) – para 6.488. Depois desse grande salto, assistimos, no recorte que vai
de 1721 a 1770, ao auge da expedição das patentes: 8.680 familiares habilitados. Após atingir
seu pico, o meio século subsequente, 1771-1820, apresenta uma queda brusca no número de
habilitações de familiares, que passou de 8.680 para 2.746 patentes.34
Tal queda está relacionada à diminuição da capacidade repressiva do Santo Ofício e,
principalmente, à abolição por Pombal da distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos em
1773. A gestão dessa clivagem social – separando do lado positivo os cristãos-velhos e limpos
de sangue e, do lado negativo, os cristãos-novos e descendentes das “raças infectas” – era o
principal instrumento que permitia à Inquisição atuar de forma relevante nas estratégias de
distinção social.35 Os ventos da Ilustração que sobraram a partir da segunda metade dos
setecentos também ajudaram a diminuir o vigor do tribunal inquisitorial. Acreditamos que a
decadência da capacidade repressiva, aliada à inflação da expedição de familiaturas, ajudava
a compor um cenário de diminuição na credibilidade da instituição ou, pelo menos, dava
mais coragem para as críticas serem pronunciadas. No caso deste trabalho, observamos este
fenômeno no que diz respeito à ramificação capilar do tribunal: os familiares.

Injúrias pós 1773

Como sabemos, os estatutos de limpeza de sangue foram abolidos por Pombal em 1773,36
32 Idem, IL, Cad. Promotor. Cad. 130, Liv. 319, fl. 378. Este familiar foi habilitado em 1744.
33 TORRES, José Veiga. Da repressão..., op. cit., p. 117.
34 Ibidem, p. 127.
35 Ibidem.
36 Sobre a abolição dos estatutos de limpeza de sangue por Pombal e a persistência do mesmo em
algumas instituições e na sociedade, ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito..., op. cit., p.
mas, apesar disso, em 1776, na Ilha da Madeira, encontramos um familiar que escreve ao Santo
Ofício para denunciar uma série de pessoas que o injuriavam de judeu. O familiar argumenta
que ele e muitos de seus ascendentes tinham sido habilitados no Santo Oficio e, por isso, pedia
providências contra aqueles que questionavam a “retidão” da Inquisição:
A este retíssimo Tribunal do Santo Ofício denuncia Antônio
Roiz Pereira, médico aprovado pela Universidade de Coimbra
e familiar deste Santo Tribunal, vivendo no estado de celibato,
filho de João Roiz Pimenta, naturais da ilha da Madeira, cidade
do Funchal, que sendo a sua geração limpíssima como sempre
se tem conhecido pelos muitos familiares que nela tem havido
e de presente há, pois, por todos os quatro lados, tem atuais
familiares e um secretário [...]. depois do exposto, atreveu-se
e tem-se atrevido por várias vezes João Roiz [...] a infamar a
família do denunciante de judeus e de infecta nação, isto tanto
em público como em particular.37

Mesmo após a abolição dos estatutos de limpeza de sangue, o familiar em questão ainda
tinha a expectativa de que o título de agente do Santo Ofício o protegesse dos ataques a sua
honra (leia-se: honra com base na “pureza” de seu sangue).
Seria importante saber se este familiar da Madeira foi habilitado antes ou depois do
decreto de Pombal, mas não tivemos oportunidade de consultar seu processo de habilitação.
Suspeitamos que ele entrou para a Inquisição depois de 1773, pois o comissário do Funchal que
passou sua denúncia ao Santo Ofício afirmou que ele era um dos familiares “modernamente
habilitados”.
Independente de ter se tornado familiar antes ou depois de 1773, as habilitações de sua
família certamente foram expedidas anteriormente ao referido decreto; portanto, as injúrias
proferidas questionavam o crédito no rigor do Santo Ofício ao selecionar seus agentes. O
familiar em questão afirmava ter ascendentes habilitados dos quatro lados da sua geração.

A frustração dos familiares injuriados

Quando os familiares procuram o Tribunal do Santo Ofício para denunciar os opróbrios


contra sua limpeza de sangue, não escondem a frustração decorrente do fato de o título de
familiar não lhes ter garantido uma inquestionável prova de ascendência cristã-velha, e pedem
providências contra quem lhes desonrava. O familiar de Guarapiranga, Minas Gerais, que
tinha se habilitado em 1744, afirmou indignado:
Dois motivos me obrigaram a procurar o cargo de Familiar do
Santo Ofício; um a honra e vontade de servir ao santo Tribunal;
outro o querer deste modo livrar-me e a minha família das
calúnias de vizinhos mal dizentes. Destes dois motivos consegui
o primeiro pela mercê q vossas senhorias me fizeram da carta
de familiar; o segundo não; porque não obstante este público
abono, que me deu o Santo Tribunal, não me livro de que João
Alvares, homem solteiro, morador no arraial de Guarapiranga
[...] e Miguel Ribeiro d’ Andrade, morador na mesma freguesia
[...] me ponham publicamente de mulato.38
170-206.
37 IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 319, fl. 146.
38 Idem, IL, Cad. Promotor. Cad. 130, Liv. 319, fl. 378, grifo nosso.
Os familiares Manoel de Almeida e seu irmão José de Almeida, moradores próximos
ao chafariz de Arroios, em Lisboa, quando procuraram o Santo Ofício para se defenderem da
injuriante Luiza Maria, que os insultava de mulatos, aduziram que ela bem sabia da limpeza de
sangue dos dois, pois “era suficiente o serem familiares a fim de neles se não considerar mácula
de infecta nação”.39
As denúncias que viemos analisando receberam atenção do Santo Ofício porque
a “retidão” do tribunal na condução dos processos de habilitação de seus agentes estava,
consequentemente, sendo questionada, junto com a limpeza de sangue dos familiares.
Portanto, a própria Inquisição, por meio de sua ramificação capilar, estava sendo injuriada.
Era nessa linha de argumentação que os promotores trabalhavam ao apresentar tais denúncias
na mesa inquisitorial. O promotor do tribunal de Lisboa, em 1722, quando pediu punição aos
que haviam injuriado o familiar Bento Rodrigues Faria, alega que “se dê o castigo a quem se
anima a falar mal da retidão deste supremo tribunal e limpeza do sangue dos que por ele são
examinados e aprovados”.40 Em 1743, contra os que insultaram o familiar Baltazar da Costa
Machado, o promotor alegou que eles “infamam o reto procedimento do Santo Ofício”.41
No ano de 1752, os inquisidores resolveram tirar sumário contra Manoel Lourenço Olhudo,
da vila de Trancos, visto que ele dizia em praça pública que o familiar Bartolomeu Vicente
Rosa não tinha sangue puro. Na denúncia apresentada formalmente à mesa da Inquisição, o
promotor afirmou: “porque estas injúrias ofendem ao tribunal enquanto debilitam o crédito
de suas diligências e diminuem o grande conceito de seus familiares”.42
Nestes casos, o trabalho do promotor se baseava no título XXI do livro III do Regimento
da Inquisição de 1640 que discutia e estabelecia penas para os que “impedem e perturbam o
ministério do Santo Ofício”. Aqui ficavam abrangidos os casos de injúrias, maus-tratos e até
assassinatos de agentes inquisitoriais. Da mesma maneira, os próprios ministros do Santo
Ofício podiam ser enquadrados neste item quando chantageavam suspeitos e/ou denunciados,
revelavam segredos de processos e diligências, dentre outros delitos.

***

Os casos analisados neste trabalho não invalidam a tese de que a familiatura oferecia distinção
social por causa do atestado de pureza de sangue que representava para a sociedade coeva. Não
temos dúvida de que o principal motivo que levava alguém a procurar a familiatura era o status
oferecido pela insígnia, e essa distinção provinha justamente da capacidade que a Inquisição
teve de separar a sociedade entre cristãos-velhos e cristãos-novos, segregando drasticamente
estes últimos, perseguindo-os e estigmatizando-os. A demanda pela familiatura evidencia o
peso que os estatutos de limpeza de sangue assumiram nos critérios de classificação social do
reino português e de seus domínios.
No entanto, os episódios de injúria contra a ascendência cristã-velha dos familiares revela
uma faceta nova do enraizamento dos estatutos de pureza de sangue no mundo luso-brasileiro.
A familiatura não era uma “certidão” inquestionável de “sangue puro”, embora oficialmente
ela garantisse a origem cristã-velha dos familiares, pois eles jamais teriam problemas para
aceder a outras instituições que adotassem tal critério como um dos requisitos para admissão
de alguém. Nenhuma instituição coeva ousava questionar o processo de habilitação do Santo
Ofício. Encontramos vários familiares de Minas Gerais que, depois de se habilitarem no Santo
Ofício, deram entrada em processos de habilitação na Ordem de Cristo, declarando, com
ênfase, a sua aprovação na Inquisição. As informações aparecem da seguinte maneira: “tido
39 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 282 (1719-1720).
40 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 283, fl. 433.
41 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 309, fl. 377
42 Idem, IL, Cad. Promotor, livro 307, fl. 403.
e havido por cristão-velho de limpo sangue, sem fama ou rumor em contrário; tanto assim
que é familiar do Santo Ofício”;43 “habilitado por cristão-velho pelo Tribunal do Santo Ofício
desta cidade, como consta da certidão”;44 “é bem reputado na sanguinidade, familiar do Santo
Ofício”;45 “seus pais são legítimos e inteiros cristãos-velhos, tanto assim que o justificante é
familiar do Santo Ofício”.46 Segundo Fernanda Olival, “não se conhece, por ora, nenhum caso
de familiar que tivesse reprovado nas ordens militares por questões de sangue”.47
A complexidade do fenômeno estudado neste trabalho está relacionada também à
maneira como ele se comporta ao longo do tempo, ou seja, o aumento da expedição da insígnia
acarretava aumento na contestação da sua eficácia social. Foi esse o preço que a Inquisição
pagou ao atender a demanda por familiatura dos grupos em processo de mobilidade social
para obter um maior enraizamento na sociedade, principalmente após a suspensão das
atividades do tribunal entre 1674 e 1681. Em vários episódios, ela acabava sendo injuriada.

43 Idem, HOC – Habilitação da Ordem de Cristo, Letra J, mç. 40, doc. 04, grifo nosso.
44 Idem, HOC, Letra M, mç. 23, doc. 13, grifo nosso.
45 Idem, HOC, Letra M, mç. 19, doc. 13.
46 Idem, HOC, Letra M, mç. 10, doc. 97, grifo nosso.
47 OLIVAL, Fernanda. Rigor..., op. cit., p. 166.
Feitiçaria no Arcebispado de Braga: confissões e denúncias à visitação inquisitorial
de 1565

Juliana Torres Rodrigues Pereira1

Após o Sínodo Diocesano da Arquidiocese de Braga, realizado em 1564, o arcebispo


Bartolomeu dos Mártires escreveu à rainha d. Catarina e pediu ao inquisidor-geral cardeal d.
Henrique que enviasse um inquisidor a Braga para averiguar crimes contra o concílio. Assim,
Pedro Álvares de Paredes partiu de Lisboa em direção a Braga tendo como objetivo principal
inquirir os membros do Cabido da Sé, que faziam forte oposição à aplicação dos decretos do
Concílio de Trento.2
A visitação ao arcebispado de Braga durou aproximadamente 3 meses e meio, e
concentrou-se em três pontos: as cidades de Braga, Viana do Foz de Lima e Vila do Conde.
O visitador chegou a Braga a 14 de janeiro de 1565, e ali permaneceu até aproximadamente
o dia 13 de março. Em seguida, foi para Viana do Foz de Lima, sendo o édito de fé publicado
a 25 de março. Nesta localidade, a estada do Visitador foi mais curta, até o dia 18 de abril.
Já a 23 do mesmo mês, teve início a visitação à Vila do Conde, que durou até o dia 1o de
maio. O diferente tempo de permanência do visitador em cada uma das localidades pode ser
relacionado à importância socioeconômica de cada local. Viana e Vila do Conde eram cidades
portuárias de grande tráfego; no entanto, Braga tinha um maior peso populacional e grande
importância religiosa.3 A visitação foi conduzida por Pedro Álvares Paredes, licenciado em
Cânones, investido como inquisidor em Évora a 5 de setembro de 1541, e em Lisboa a 19 de
agosto de 1552.4
Dentre as 156 denúncias feitas ao visitador nas três localidades, 21 delas foram
classificadas no Livro da visitação como “feitiçaria”, “bruxaria”, “culto ao demônio” ou “devoção
ao diabo”. 5 Apesar de o objetivo original da visitação ser a averiguação de crimes contra a
aplicação dos decretos tridentinos, o delito de feitiçaria teve uma grande expressão no número
total de denúncias.6 Por meio das denúncias é possível analisar as práticas e crenças mágico-
diabólicas no recorte espaço-temporal em questão. No entanto, é necessário fazer aqui alguns
esclarecimentos gerais.
As práticas mágicas ou de feitiçaria observavam uma lógica, transmitida por tradição,
que respeitava tempo e espaço apropriados, bem como o significado de cada elemento presente
nos rituais. Essas observâncias remetiam a uma lógica simbólica, que mesclava tradições
1 Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2 MARCOCCI, Giuseppe. Il governo dell’arcidiocesi di Braga al tempo di Bartolomeu dos Mártires
(1559-1582). Riflessioni e documenti sull’episcopato portoghese nell’etá del Concilio di Trento.
Archivio Italiano per La storia della Pietá, v. 15, p. 81-150, 2003.
3 BRAGA, Isabel. A visita da Inquisição a Braga, Viana do Castelo e Vila do Conde em 1565. Revista
de La Inquisición, n. 3, p. 29-67, 1994.
4 MEA, Elvira. A Inquisição de Coimbra no século XVI: a instituição, os homens e a sociedade. Porto:
Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, 1997, p. 107-108.
5 Liuro da visitação que se [a Inquisição] fez na Cidade de Braga e seu Arcebispado. Porto: Arquivo
Histórico Dominicano Português/Movimento Bartolomeano, 1974 [1565]. A partir desta nota, esta
publicação será referida como Liuro da visitação.
6 Este número pode ser considerado realmente expressivo ao se levar em conta que a feitiçaria era um
delito pouco valorizado pelo Santo Ofício português. Cf: BETHENCOURT, Francisco. O imaginário
da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004; PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas. Lisboa:
Editorial Notícias, 2002.
antiquíssimas a práticas e conhecimentos novos em constantes interações e reelaborações.
Os rituais de feitiçaria podem ser percebidos como expressões de contextos diversos,
da interação entre tempo curto e tempo longo. As crenças e imagens que afloravam nesses
rituais representavam o substrato de uma cultura arcaica, resquícios de religiosidades pagãs
imiscuídos a crenças católicas, constantemente reelaborados à luz de diversos fatores como,
por exemplo, as ideias criadas e divulgadas pelo movimento repressor da Igreja (como o pacto
demoníaco, ideia-chave para a compreensão da mudança da perseguição à bruxaria) e os
problemas cotidianos, que, muitas vezes, estimulavam a busca por uma solução sobrenatural.
Carlo Ginzburg, em História noturna,7 procurou demonstrar como, para a formulação do
estereótipo do sabá, confluíram as ideias dos inquisidores e juízes laicos a respeito do complô
contra a cristandade e elementos antiquíssimos da cultura xamânica, fortemente presentes no
cotidiano europeu. Como ressaltou o historiador italiano, “história e morfologia não estão
justapostas [...], mas entrelaçadas: duas vozes que se alternam, discutem e por fim buscam um
acordo”.8
James Frazer, no clássico O ramo de ouro, afirmou que a magia tem base em princípios
lógicos, leis que fundamentam suas crenças e rituais:
[...] primeiro, que o semelhante produz o semelhante, ou que
um efeito se assemelha à sua causa; e, segundo, que as coisas
que estiveram em contato continuam a agir umas sobre as
outras, mesmo à distância, depois de cortado o contato físico.
Ao primeiro princípio podemos chamar lei da similaridade,
ao segundo, lei do contato ou contágio. Do primeiro desses
princípios, a lei da similaridade, o mago deduz a possibilidade
de produzir qualquer efeito desejado simplesmente imitando-o;
do segundo, que todos os atos praticados sobre um objeto
material afetarão igualmente a pessoa com a qual o objeto estava
em contato, quer ele constitua parte de seu corpo ou não.9

As ideias de Frazer foram fundamentais para os estudos sobre o tema da magia e da


feitiçaria, e boa parte dos que se dedicaram a pesquisar a respeito – fossem eles da área de
antropologia ou de história – se basearam na teoria de Frazer.
O antropólogo Marcel Mauss acrescentou aos dois princípios mágicos apresentados por
Frazer a lei do contraste, que consiste na crença de que “o contrário agre sobre o contrário”.10
Mauss observou que todas as três leis poderiam ser denominadas leis de simpatia, uma vez que
todas, até mesmo a da contrariedade, são fundamentadas na identidade e na simultaneidade.
Os rituais descritos nas denúncias à visitação ao arcebispado de Braga apresentaram
exemplos riquíssimos do funcionamento dessa lógica. Inúmeros foram os depoimentos em
que se pode perceber a aplicação dos três princípios descritos acima. Analisaremos aqui as
denúncias feitas a Ana Álvares, de alcunha do Frade, como representativas das práticas de
feitiçaria relatadas ao visitador.
Ana Álvares, cristã-velha, viúva, foi também denunciada várias vezes à visitação de
1565. Ana do Frade, como era conhecida, foi inclusive denunciada nas três cidades visitadas.
Manuel da Costa, cônego da Sé de Braga, 50 anos, declarou que encontrou Ana do
Frade a caminho do mosteiro de Beturinho das Donas, e que ela teria espontaneamente dito a
ele coisas que viriam a acontecer algum tempo depois:
Vindo ele, declarante, de Lisboa, passando de caminho pelo
7 GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
8 Idem. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 310.
9 FRAZER, James. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1982, p. 34.
10 MAUSS, Marcel. Sociologia a antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 99-110.
mosteiro de Beturinho das Donas, encontrou com a dita Ana do
Frade e, repreendendo-a do seu mal viver, a dita Ana do Frade
disse a ele, declarante; Que, em chegando a Braga, havia de ser
preso. E o marido da dona a que ele, declarante, ia a falar ao dito
mosteiro havia de ir caminho da Índia e nunca mais havia de vir
a este reino. Como defeito, ele, declarante, foi preso em chegando
a esta cidade e o marydo da dona a que ele, denunciante, foi falar,
que era piloto da carreira da Índia, foi caminho da Índia e lá
morreu, e não tornou mais a Portugal. De maneira que tudo que
lhe disse a dita Ana do Frade, que é o acima dito, passou assim e
como lho ella disse, pelo que ele, declarante, há tem por grande
feiticeira e que falava com o demônio.11

Infelizmente, o relato não ofereceu maiores detalhes a respeito das práticas divinatórias.
No entanto, é interessante observar que o acerto de Ana do Frade foi automaticamente atribuído
à comunicação com o diabo – o que pode estar relacionado ao fato de que o denunciante era
um cônego, talvez familiarizado com o estereótipo do pacto demoníaco.
A denúncia de Manuel da Costa trouxe também uma informação muito interessante.
Ele disse que Ana do Frade “foi presa por feiticeira e esteve à porta da Sé desta cidade, e
foi castigada em tempo deste arcebispo dom Bertolameu”,12 e acrescentou ainda que outra
mulher, aparentemente amiga de Ana do Frade, Branca Annes, também foi presa e condenada
à exposição na porta da Sé e ao degredo.
Inês da Fonseca, casada, mais de 50 anos, suspeitava que sua filha, Guiomar de
Figueiredo, casada com Diogo Lopez, o surdo, havia sido enfeitiçada. Assim, Inês a levou
à casa de Elena Gonçalves, cristã-velha, viúva, que tinha fama de feiticeira – de acordo com
a denunciante, Elena já havia inclusive sido presa por feitiçaria, mas, infelizmente, não há
maiores informações sobre isso na denúncia. O procedimento realizado pela feiticeira teria
sido o seguinte:
[...] a dicta Elena Gonçalvez lhe pediu um vintém, E ela lho deu.
E, então, abriu hum livro e o meteu dentro. E, então, começou a
ler pelo livro. E, despois de ler pelo dito livro, lhe disse: Que sua
filha fora enfeitiçada e que uns dos feitiços lhe deram a comer, e
outros lhe puseram no soar, que é a entrada da porta, e, como
passou, logo lhos tiraram. E que em uma camisa dela lhos deram
também, nomeando-lhe as mulheres que lhos fizeram, e que
eram duas cunhadas suas e uma criada da dita sua filha, que se
chama Inês Gonçalvez, que é em Lisboa, nomeando-lha a dita
feiticeira por seu nome e como se chamava. E assim lhe nomeou
os nomes da cunhada da dita sua filha, dizendo-lhe que uma se
chamava Clara de Azevedo e Maria Lopes, as quais estão casadas
com dois irmãos do dito seu marido. E que tudo isto lhe disse
a dita feiticeira de si mesmo, sem ela Inês da Fonseca, lhe dizer
cousa nenhuma destas, por ela declarante, o não saber.13

A tentativa de desvendar o oculto pela leitura de um livro pode ser considerada indício
de como as práticas letradas também encontravam uma representação na religiosidade
popular. O livro estava presente no ritual como continente da verdade, da informação que se
11 Liuro da visitação..., op. cit., p. 22.
12 Ibidem, p. 22.
13 Ibidem, p. 23.
desejava obter.
Era muito comum se misturar feitiços – tanto para causar o amor quanto o ódio e
a doença – a bebidas e comidas para que o indivíduo alvo as ingerisse, o que garantiria a
consumação do feitiço. Já a prática de colocar feitiços no soar da porta tinha um simbolismo
mais específico: ela representava lugar de passagem, de mudança de estado; no caso, do estado
são para o enfermo, no momento em que a enfeitiçada passou pela porta.
O uso de peças de roupas, tanto em malefícios quanto em feitiços de benquerença e
cura era extremamente comum, como se pode perceber pelo corpus documental analisado.
Esse tipo de prática respeitava a lei do contato, uma vez que se considerava que qualquer coisa
que fosse feita à roupa tinha efeito sobre o indivíduo que a havia usado.
Após ter obtido as informações de Elena Gonçalves, Inês procurou outra feiticeira, Isabel
Gonçalves, para tentar curar sua filha. Isabel pediu a Inês uma peça de roupa de Guiomar para
fabricar remédios. Mais uma vez, a utilização de peças de roupa apareceu nas denúncias; no
entanto, com o sentido de produzir não a doença, mas a cura. A declarante não informou se
levou ou não as roupas da filha para Isabel, mas o fato de ter procurado ainda outra feiticeira
pode indicar que não. Inês acrescentou ainda que Isabel Gonçalvez estava, em 1565, presa por
feitiçaria.
A terceira feiticeira procurada foi justamente Ana do Frade, que pediu que Inês levasse
uma galinha preta viva para poder curar sua filha:
[...] a dita Ana do Frade, assim viva a galinha, presente ela, lhe
quebrou as asas e arrancou o pescoço. E então, estando a galinha
ainda bolindo, com uma agulha enfiada em uma linha, metia
pela galinha e tirava, como que cozia pela galinha. E acabado
de fazer isto, lhe disse como sua filha era enfeitiçada, dizendo
quem lha enfeitiçara e quem a ferira, conformando em tudo com
a primeira feiticeira, dizendo-lhe: Que lhe levasse uma peça do
corpo da dita sua filha e que ela lha desenfeitiçaria.14

Os galos negros eram muito comuns em malefícios. Segundo Francisco Bethencourt,


os frangos negros eram identificados com o satanismo devido à sua lubricidade.15 Daniela
Calainho, em estudo sobre a religiosidade africana em Portugal, observou que os frangos
negros, bem como seus corações, eram muito utilizados pela população africana em suas
práticas religiosas, e que esse costume era difundido por quase toda a África negra.16 Assim,
é possível pensar que, pela presença de africanos na metrólope lusa,17 as religiosidades negra
e europeia se influenciaram mutuamente:
Todas essas tradições foram transmigradas com os negros
no processo de escravização que sofreram a partir de meados
do século XV, associando-se a elementos do cristianismo e,
evidentemente, assumindo especificidades em função da região
de onde vieram e de onde foram se assentar. Os negros em
Portugal frequentaram à farta as encruzilhadas.18

14 Ibidem, p. 24.
15 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário..., op. cit., p. 154.
16 CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa
no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. p. 82.
17 Segundo Calainho, a população aproximada de escravos na região de Entre-Douro-e-Minho era de
2.730, e se concentrava no litoral. Ibidem, p. 54, anexo 1, tabela 2.
18 Ibidem, p. 87.
No entanto, a galinha foi utilizada no ritual descrito acima com uma finalidade diferente
da usual: o conhecimento das coisas ocultas.
A declarante disse que não voltou à Ana do Frade por ter ficado assustada com o que
vira, e acrescentou que a feiticeira havia lhe pedido um ferrolho e uma fechadura para desfazer
os feitiços colocados na entrada da porta. A relação não poderia ser mais clara; de acordo
com a lei do contraste, para desfazer os feitiços colocados na porta, Ana do Frade iria utilizar
os elementos que têm justamente o poder de abri-la ou fechá-la, invertendo o sentido do
malefício para a cura.
Não satisfeita, Inês procurou ainda outra feiticeira, Leonor Gonçalves, que repetiu o
que as outras três já haviam dito após ter feito algumas medidas em uma trança, repetindo o
nome da enfeitiçada. Infelizmente, não é claro na denúncia de que material era feita a trança
utilizada pela feiticeira. No entanto, o principal elemento da prática divinatória era a repetição
do nome da suposta enfeitiçada para que se pudesse saber como curá-la. Como afirmou Marcel
Mauss, “o encantamento oral completa, especifica o rito manual, que ele pode suplantar.”19
A realização dos rituais respeitava uma lógica simbólica da qual fazia parte também a força
atribuída à palavra. Segundo José Pedro Paiva:
É sabido como no quadro da mentalidade mágica nomear uma
coisa é já dominá-la e mais, dizer é já fazer. A palavra e o que ela
representava eram o mesmo. Além disso, no quadro das culturas
de tradição cristã como a que se analisa, a ideia de que Deus
havia criado todas as coisas dando apenas uma ordem vocal,
não só devia tender a aumentar o fascínio que certas palavras
teriam, como até podia ser utilizado como justificação para o
seu emprego.20

A denúncia de Inês da Fonseca possibilita diversos questionamentos. Em primeiro lugar,


o motivo pelo qual ela teria procurado tantas feiticeiras para resolver o problema de sua filha.
É possível que o trabalho de cura das feiticeiras não tivesse funcionado ou que, simplesmente,
Inês não acreditasse nelas. A segunda questão diz respeito ao mercado de feiticeiras disponíveis
para consulta. A denunciante procurou quatro mulheres que, ao que tudo indica, eram
conhecidas pela comunidade como feiticeiras, e algumas delas já haviam sido presas por esse
tipo de delito. Por fim, a terceira questão diz respeito ao fato de todas terem dito a mesma coisa
à denunciante, o que poderia indicar que havia contato entre as denunciadas, ou até mesmo
uma espécie de rede de feiticeiras no arcebispado.
O caso de Inês foi um bom exemplo de como a recorrência à magia se dava, muitas
vezes, por representar uma possibilidade de resolução imediata das questões cotidianas, uma
espécie de tentativa de coerção das forças sobrenaturais quando a prece a Deus não apresentava
resultados. Consta que a declarante “promete a Nosso Senhor de nunca mais buscar feiticeiras,
se não socorrer a Nosso Senhor em suas necessidades.”21 Infelizmente, a denunciante não
declarou se seguiu ou não alguma das orientações recebidas para curar sua filha.
É necessário acrescentar que algumas das mulheres denunciadas já tinham sido presas
pelo delito de feitiçaria, mas não deixaram de ser procuradas – talvez porque as consequências
não recaíssem sobre aqueles que as procuravam, mas somente sobre as supostas feiticeiras.
Já em Viana do Foz de Lima, Ana Roiz, cristã-velha, casada, 30 anos, por não conseguir
engravidar, procurou Ana do Frade. Ela disse que Ana estava ligada – tornada frígida ou estéril
por efeito de malefício –, e que um clérigo havia realizado o feitiço, juntamente com sua mãe e
mais outra mulher que ela não havia conseguido identificar. No caso, o clérigo seria João Pires,
19 MAUSS, Marcel. Sociologia..., op. cit., 2003, p. 93
20 PAIVA, José Pedro. Bruxaria..., op. cit., p. 135.
21 Liuro da visitação, op. cit., p. 24
que, alguns anos antes, quando ainda não era padre, havia tentado se casar com Ana Roiz, mas
a família da moça foi contra a proposta. Ana do Frade voltou à casa da denunciante, alguns
dias depois, com os objetos supostamente utilizados pelo clérigo para ligar Ana Roiz:
[...] tornando terceira vez a sua casa, dela, trouxera a dita Ana
do Frade um coração como de galinha, mirrado, e lhe disse: Que
o cortasse. E ela, declarante, o cortou com uma faca, fazendo
pedacinhos dele. E a dita Ana do Frade, despois de cortado,
lhe disse: “Que o enterrasse”. Como defeito, ela, declarante, o
enterrou em um buraco, no chão. E lhe deu uma semente,
dizendo-lhe: Que a bebesse e que logo haveria crianças.22

O uso de corações de animais era muito comum nos malefícios, principalmente os de


frangos, cuja imagem era associada ao demônio. O ato de cortar o coração simbolizava o fim
dos efeitos do malefício e a cura. É preciso acrescentar ainda que, segundo José Pedro Paiva “a
faca, como muitos outros objetos cortantes, tem o princípio de atuar sobre matéria passiva e de
afastar influências maléficas”.23 A prática de enterrar os feitiços concluía o procedimento de
findar seus efeitos mágicos definitivamente. Além disso, deve-se considerar a crença no poder
da terra como geradora de frutos, símbolo de vida e de renascimento. Por fim, a ingestão da
semente como propiciadora de fertilidade é um claríssimo exemplo da lei da similaridade.
Pela ingestão da semente, que na terra fertilizada gera vida, acreditava-se ser possível produzir
efeito semelhante na mulher, e torná-la também fértil.
Segundo Ana do Frade, era ainda necessário clamar pela intervenção dos santos
católicos – procedimento bem diferente dos outros realizados por ela, como será apresentado
a seguir –, e rogar para que eles desfizessem os feitiços. Como afirmou Laura de Mello e
Souza, os portugueses tinham com os santos uma relação de afetividade e materialidade, e
consideravam que era possível obter seus favores pelo que a historiadora chamou de economia
do toma-lá-dá-cá, que consistia em oferecer ao santo algo em troca da realização de um
pedido.24
Ainda em Viana do Foz de Lima, Maria Gonçalves, a Colaça, cristã-velha, viúva, 60 anos,
declarou que Ana do Frade havia sido chamada à sua casa para curar o marido de sua filha
que estava doente, e, como acreditavam, enfeitiçado. O corpo humano era concebido como
um microcosmo vulnerável às influências dos mundos terreno e espiritual, e, por isso, sujeito
às forças ocultas. Assim, a doença era compreendida como consequência de uma agressão
mágica, da influência de espíritos, ou como castigo divino.25 No entanto, antes que a feiticeira
fosse à sua casa, Maria Anes, filha da Colaça, mandou à casa de Ana do Frade um homem para
tentar desfazer os feitiços, que voltou com o seguinte recado:
Que dizia a dita Ana do Frade: Que o dito seu marido era
enfeitiçado. E que fossem debaixo de uma escada de sua casa
e ali os acharia. E a dita sua filha lhe disse: Que buscara no dito
lugar da escada e que achara, em um colorete de uma sua saia, os
ditos feitiços.26

Alguns dias depois, Ana do Frade foi à casa da Colaça e contou que fora “com todos os
22 Ibidem, p. 74.
23 PAIVA, José Pedro. Bruxaria..., op. cit., p. 134.
24 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 109.
25 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário…, op. cit, p. 73-74.
26 Liuro da visitação, op. cit., p. 75
diabos, à meia-noite”27 buscar os feitiços feitos a seu genro:
Que era um coração de um galo negro amarrado com linhas. E
que ela, Ana do Frade, desfizera os feitiços E, desfeito, daí por
diante, o dito seu genro dizia: Que se não achava tão afadigado
do coração como dantes, por que, até então, se queixava muito
do coração. [...] Que mandaram um picado branco à dita sua
filha, em que vinha misturado uma maçaroca de uma mulher
morta. Que lhe mandaram o picado a ela por ela querer mal a
seu marido. E ela, não sabendo que eram feitiços, o deu a comer
ao dito seu marido.28

A Colaça declarou que tudo havia se passado da exata maneira como Ana do Frade disse.
Mais uma vez, apareceu nas denúncias o coração de galo negro, mostrado por Ana do Frade
aos supostos enfeitiçados como elemento que teria sido utilizado para realizar o malefício.
No caso, o coração estava amarrado com linhas, em clara similaridade aos efeitos que teriam
sido causados pelo feitiço. Objetos que tivessem tido contato com defuntos, ou até mesmo
partes de seus corpos, eram também muito utilizados em malefícios, como ocorreu neste caso.
De acordo com Francisco Bethencourt, era muito forte a crença de que as almas dos finados
permaneciam muito ligadas ao mundo terreno e estavam, por isso, sujeitas à manipulação pela
magia.29
Segundo Jacques Le Goff, a crença na possibilidade (a até mesmo necessidade) de ser
solidário com os mortos por meio de orações e sufrágios, que se enraizou entre os séculos
IV e XI, foi fundamental para o aparecimento da ideia de purgatório. A consolidação de um
terceiro lugar conectado ao mundo dos vivos possibilitou a difusão de crenças a respeito da
influência dos espíritos dos mortos no mundo terreno.30
Isabel de Barros, casada, 50 anos, procurou Ana do Frade para curar seu marido, que
estava “enfeitiçado e fora de seu juízo”.31 Para retirar os feitiços, Ana do Frade pediu a Isabel
um crastão.32 A declarante sugeriu que fosse utilizado um crastão que ela tinha “de dízimo de
uma renda de uma igreja”, ao que a feiticeira negou, pois “não havia de ser de cousa dizimada
a Deus se não comprada por dinheiro”.33 Isabel alegou ter ficado assustada e com a impressão
de que o crastão era para ser oferecido ao diabo, mas deu o dinheiro para que a feiticeira o
comprasse. Alguns dias depois, Ana do Frade voltou com objetos que seriam os utilizados no
feitiço contra seu marido, afirmando:
Que os feitiços lhe fizera uma sua mulata cativa, que andava com
o dito seu marido. A qual mulata estava, neste tempo, vendida
na cidade de Lisboa, ao amo do marquês de Villa Real, que se
chama Pero Annes. E ela, declarante, a mandou vender pola
achar com o dito seu marido. E que era verdade que a dita
mulata tinha os feitiços em uma arca de castanho. E que ela, Ana
do Frade, encantara a fechadura da dita arca, onde os feitiços
estavam, para que a não pudessem fechar e lhos tirara. Os quais
27 Ibidem, p. 75.
28 Ibidem.
29 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário…, op. cit., p. 148.
30 LE GOFF, Jacques. O nascimento do purgatório. Lisboa: Estampa, 1993. p. 164-165.
31 Liuro da visitação, op. cit., p. 91.
32 De acordo com Félix Alves Pereira e Fernando Braga Barreiros, crastão significa carneiro. Cf:
BARREIROS, Fernando. Vocabulário barrosão. Revista Lusitana, v. XX, p. 137-174, 1917; PEREIRA,
Félix. Glossário dialetológico dos Arcos de Valdevez. Revista Lusitana, v. XX, p. 239-256, 1917.
33 Liuro da visitação, op. cit., p. 91.
mostrou logo a ela, declarante, que eram: Duas mãos de toupeira,
a seu ver atados os dedos polegares, e um coração de galo, e um
paninho cru cosido com muitos pontos com liços de tecedeira.34

A denúncia de Isabel indicou, mais uma vez, a presença de escravos na região, e


sua possível influência no mundo das práticas mágicas em Portugal. A referência ao uso
de toupeiras em malefícios é rara; entretanto, deve-se atentar para o fato de que o animal
apresentado tinha os dedos polegares atados. Esse detalhe pode ser compreendido de acordo
com o princípio da similaridade, como uma tentativa de causar mal ao marido de Isabel ao
atar os dedos da toupeira, que os utiliza para cavar os túneis subterrâneos nos quais vive e
procura seu alimento – e que são, portanto, fundamentais para sua sobrevivência. Da mesma
forma, os polegares amarrados do animal e o pano costurado parecem ter sido empregados de
acordo com um mesmo princípio: simbolizar o enlace da força e da vida da pessoa atingida
pelo feitiço.
Ana do Frade disse ter desfeito o malefício, e aconselhou Isabel a jogar o suposto feitiço
em uma lagoa que nunca secasse. Deve-se considerar aqui o poder de purificação que se
atribuía à água. A declarante afirmou que após perceber que seu marido havia melhorado
rapidamente, resolveu confirmar a história que Ana do Frade lhe contara, e escreveu à ama do
marquês de Vila Real. A resposta recebida por Isabel confirmava que a mulata possuía, então,
uma arca que desaparecera pouco tempo antes, o que suscitou muitas reclamações por parte
da escrava.
Outra denúncia contra Ana do Frade foi feita por Maria Pires, casada, 55 anos, que a
teria procurado para saber notícias de seu marido, que havia partido para o Maranhão havia
9 anos. Ana do Frade pediu a Maria meio vintém, e o colocou em uma bacia cheia de água.
Ao entregar o meio vintém, Maria quis testar seus poderes, e contou a ela uma mentira: “Que
o dito seu marido fora em uma nau com um seu irmão, dela, e que não sabia se era vivo,
se morto!”.35. A declarante confessou a Pedro Álvares de Paredes que seu irmão não havia
partido junto com seu marido, e ela sabia que ele estava vivo, apenas não sabia onde estava. Na
manhã seguinte, a feiticeira deu a resposta a Maria:
Que ela lhe mentira e que seu marido era vivo e que a nau era
desfeita e que tinha manceba e filhos. E ela, declarante, lhe disse:
Que seria alguma negra! E a dita feiticeira lhe tornou: Que era
mais formosa que ela – o que lhe disse, tirando de um cabaço
um papel o olhando ao sol, por que então. Dizendo-lhe mais:
Que vinha ela já tarde para o ela fazer vir, por que estava já
muito inarniçado na terra, que seria mal de vir. E, porém, que
se ela, declarante, desse dinheiro para um cabrão grande, que
maridasse bem as cabras, que ela o faria vir. E, porém, que ela
havia de furtar o bode. E que despois o havia de pagar a seu
dono do dinheiro que ela, denunciante, desse. Por que aquele
cabrão o queria ela para o dar a trezentos e sessenta e seis diabos.
Pedindo-lhe mais farelos para eles, por que ela havia de mandar
aqueles diabos onde o dito seu marido estava, a buscar os feitiços,
que uma mulher lhe lá tinha feitos, para que lhos trouxesse.36

Dois meses depois, Ana do Frade procurou Maria com aquilo que seriam os feitiços,
trazidos do Peru, onde estaria seu marido, pelos diabos que comeram o cabrão oferecido. Os
34 Ibidem.
35 Ibidem, p. 92.
36 Ibidem.
feitiços consistiam em:
[...] hum bisalho, cosido e metido em uma barça de copo de
vidro. No qual bisalho vinham unhas, cabelos de barbas e um
pedaço de jaqueta e de camisa e um pequeno de ceroula e um
coração pequeno muito mirrado e de muito tempo e cosido com
fio com que cozem as velas os mareantes.37

Ana pediu que Maria cortasse os feitiços em pedaços bem pequenos, e disse que depois
os deixaria em um atoleiro, acrescentando ainda que seu marido estava rico e que, em breve,
voltaria para buscá-la. Mais uma vez. pode-se observar aqui como a denunciante parecia
querer afirmar a eficácia do ritual realizado por Ana do Frade, e contou a Pedro Álvares de
Paredes que, depois de algum tempo, seu marido regressou.
O método utilizado por Ana do Frade para saber o paradeiro do marido de Maria foi
a hidromancia, a adivinhação pela água. Já foi dito anteriormente que a água era considerada
elemento purificador, mas também era utilizada em rituais de adivinhação, pois, devido à sua
transparência, acreditava-se que permitia ver o que estava oculto. Note-se que para que algo
fosse revelado à feiticeira, foi necessário antes colocar na bacia d’água meio vintém, como uma
forma de compensação para se obter a resposta desejada.
O outro método de adivinhação utilizado pela feiticeira consistiu em olhar para um
papel em direção ao sol nascente, o que pode ser compreendido pelo poder que se creditava a
esse momento em que a luz solar vencia as trevas da noite. Além da simbologia relativa à luz
do dia, deve-se considerar a ideia de que os astros e suas disposições tinham grande influência
na vida humana, além de serem comumente identificados como a morada de espíritos.38
Ao oferecer a possibilidade de trazer o homem de volta, Ana do Frade fez aparecer a
figura do bode, outro animal muito utilizado para feitiços maléficos devido à sua identificação
com o demônio. O animal era associado à luxúria e à depravação sexual, características
demoníacas por excelência. Esta relação fica ainda mais clara quando se considera que Ana
deixou explícito que Maria deveria furtar um bode “que maridasse bem as cabras” para ser
oferecido a trezentos e sessenta e seis diabos. O número de diabos para os quais o animal
seria oferecido também não era aleatório. O número 3, o mais utilizado em rituais de
feitiçaria, simbolizava a perfeição, a unidade divina; já o número 6 simbolizava a ambivalência
decorrente do caráter imperfeito das criaturas no sexto dia da criação – ambivalência que
poderia pender tanto para o bem quanto para o mal.39 Daniela Calainho ressaltou, em seu
trabalho anteriormente citado, que a oferenda de animais aos espíritos constituía também
uma prática muito comum na África.40 Assim, somando-se a oferenda do bode à constante
presença de corações animais nos rituais realizados por Ana do Frade, pode-se considerar a
influência da religiosidade africana em suas práticas.
O ato de furtar o bode pode ser considerado como parte formal do ritual, uma vez
que a declarante deveria pagar o prejuízo posteriormente. Pela oferta do bode, a feiticeira
tentava fazer com que os diabos,41 ainda muito suscetíveis às coisas terrenas, e, por isso,
manipuláveis, trouxessem os feitiços feitos ao marido da declarante. Os feitiços que Ana do
37 Ibidem, p. 93.
38 BETHENCOURT, Francisco. O imaginário..., op. cit., p. 143.
39 Ibidem, p. 136.
40 CALAINHO, Daniela Buono. Metrópole..., op. cit., p. 86.
41 Segundo José Pedro Paiva, as almas dos mortos foram progressivamente assimiladas, “num processo
que não é cronologicamente datável” (PAIVA, José Pedro. Bruxaria..., op. cit., p. 140-141) a diabos ou
demônios. Tal identificação teria sido primeiramente elaborada pela cultura erudita e pelos agentes
do movimento de repressão às práticas de religiosidade popular, e posteriormente difundidas pela
população.
Frade apresentou a Maria consistiam em unhas e cabelos (considerados elementos de grande
poder mágico, pois acreditava-se que continuavam a crescer depois da morte), pedaços de
roupas, que muito provavelmente Maria acreditou que fossem de seu marido, além de um
coração animal, que poderia ser compreendido, de acordo com a lei da similaridade, como
elemento que simbolizava o coração do homem que sua manceba desejava prender, o que
pode ser conjugado ao fato de ter sido costurado com fios dos mais resistentes: o coração
estaria preso.
Mais uma vez, foi citada nas denúncias a prática de cortar os objetos que constituíam
o feitiço, para pôr fim a seus efeitos mágicos e, depois, entregá-los à natureza. De certa forma,
pode-se perceber que Ana do Frade seguia uma lógica, uma espécie de padrão. Muitos foram
os elementos e atos simbólicos que se repetiram nas diversas denúncias, o que permitiu um
melhor entendimento de suas práticas.
Ana do Frade foi presa pelo Tribunal de Coimbra a 24 de dezembro de 1566. Ela foi
condenada a abjurar de veemente suspeita na fé, e a permanecer no cárcere pelo tempo que
considerassem necessário para que fosse doutrinada. Ana foi solta a 15 de dezembro de 1567.
Mulheres bígamas: a busca por novas trajetórias

Michelle Trugilho Assumpção1

No início do cristianismo, o casamento era visto apenas como uma espécie de remédio contra
o desejo desregrado, além de ser um ato doméstico, raramente realizado com a intervenção do
clero. Entretanto, com o fortalecimento da Igreja no decorrer da Idade Média, tal instituição
passou cada vez mais a controlar as uniões conjugais, buscando transformar o casamento em
algo sagrado. Foi assim que, no IV Concílio de Latrão, em 1215, o matrimônio foi elevado à
categoria de sacramento, entendido como monogâmico, indissolúvel e fundado sob o mútuo
consentimento.2
O Concílio de Latrão acentuou o caráter público da cerimônia nupcial, condenando os
casamentos realizados sem a chancela eclesiástica, e determinando a necessidade da presença
de testemunhas e da publicação dos banhos e proclamações, a fim de se descobrir possíveis
impedimentos. O homem e a mulher que se casassem sem observar essas normas estariam
pecando gravemente, mas suas uniões poderiam ser legitimadas na Igreja, mesmo depois
de consumadas. Aos olhos desta instituição, portanto, tais indivíduos eram pecadores, não
obstante fossem marido e mulher. Dessa maneira, apesar das novas exigências, continuavam
considerados válidos, tanto pela Igreja quanto pelo poder temporal, os casamentos que não
fossem realizados in facie eclesie.
Foi durante o Concílio de Trento (1545-1563), eixo da Contrarreforma, que a Igreja se
empenhou na elaboração de uma nova política matrimonial. Seu objetivo, dentre outros, era
combater as crescentes objeções do protestantismo em relação, por exemplo, à sacramentalidade
do matrimônio e, consequentemente, à sua indissolubilidade. Embora próximo ao modelo
definido em Latrão, o matrimônio tridentino acrescentou-lhe uma nova disciplina, que fazia
da cerimônia eclesiástica o único e verdadeiro casamento cristão. Em Trento, a Igreja se
preocupou, portanto, em uniformizar as normas para a celebração do matrimônio, bem como
as punições para os párocos e fiéis que delas se desviassem.3
Compreendido como sacramento instituído e abençoado por Deus, o casamento
não podia ser desfeito, e tampouco seguido de um novo enlace matrimonial. Nesse sentido,
aqueles que praticavam a bigamia cometiam não simplesmente um pecado, mas um grave
delito, uma transgressão social e religiosa, por colocarem em causa o valor sacramental do
matrimônio. Não foi à toa que o Concílio de Trento se preocupou em reafirmá-lo e em criar
medidas que dificultassem a prática da bigamia. Assim, se antes era fácil contrair novas
núpcias sem ser descoberto, após a entrada em vigor das determinações tridentinas – que
exigiam o registro do casamento em livro próprio e a presença de testemunhas –, foi necessário
rebuscar as táticas para se casar novamente estando vivo o primeiro cônjuge. Apesar das
novas dificuldades, muitos indivíduos ousaram incorrer no referido delito, sendo, no Império
português, perseguidos pelas justiças Eclesiástica, Civil e Inquisitorial.
Para pôr em prática o audacioso projeto moralizante definido em Trento – que tinha,
entre suas metas, a defesa do sacramento do matrimônio frente às críticas protestantes, e
o combate às uniões que se estabeleciam em dissonância com as determinações firmadas
durante o concílio –, foram utilizadas diferentes estratégias, entre as quais podemos destacar a
1 Mestre em História Social pela Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
2 BRAGA, Isabel. A bigamia em Portugal na Época Moderna. Sentir mal do sacramento do matrimônio?
Lisboa: Hugin, 2003. p. 20.
3 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997. p. 23.
confissão sacramental, as visitas pastorais e as visitações inquisitoriais. Por meio da confissão
e dos manuais de confessores escritos para orientá-la, os indivíduos eram aconselhados, por
exemplo, sobre como escolher os futuros cônjuges, e sobre como se comportar dentro do
casamento, inclusive no leito conjugal.4 As visitas pastorais, por sua vez, visando ao combate
de todos os “pecados públicos e escandalosos”, dedicaram-se principalmente à perseguição dos
indivíduos que viviam amancebados e afrontavam, deste modo, o “verdadeiro casamento”.5 Já
as visitações inquisitoriais combateram, entre tantas outras atitudes consideradas heréticas, a
bigamia, tida como a maior ofensa ao sacramento do matrimônio.6
Percebemos, assim, que, apesar da sua vocação antissemita, que fez dos cristãos-novos
judaizantes suas principais vítimas, a Inquisição portuguesa acabaria se transformando num
poderoso instrumento da Contrarreforma, cuja ação também esteve voltada para a defesa
do catolicismo no plano moral e familiar, não só no território continental do reino, mas no
além-mar. Tal instituição se empenhou, portanto, na defesa de ideais importantes, como
a indissolubilidade do matrimônio, a primazia da castidade, e a limitação do sexo ao leito
conjugal destinado à procriação. Desse modo, embora estivesse preocupado, sobretudo, com
o combate aos desvios de fé, o Santo Ofício também se dedicou, com menor intensidade,
à perseguição de determinados “crimes morais” que, de alguma forma, pudessem estar
relacionados a desvios de doutrina.7 Entre estes, o mais combatido pela Inquisição portuguesa,
durante todo o seu período de vigência, foi a bigamia.8
No Império português, os bígamos foram perseguidos principalmente pela Inquisição,
que os considerava verdadeiros “suspeitos na fé”, e era, no geral, intolerante a qualquer tipo
de argumento apresentado em sua defesa. Tais indivíduos eram vistos como os maiores
transgressores do matrimônio, por desrespeitarem o seu caráter indissolúvel e forjarem o
próprio sacramento, enganando os ministros da Igreja, a comunidade e, muitas vezes, os
cônjuges. Apesar da perseguição, os bígamos estiveram presentes nas diferentes partes deste
vasto território, contando com a intensa mobilidade característica da colonização para a
realização do delito. Não por acaso, os homens, especialmente os menos afortunados, foram
os indivíduos mais acusados pela prática da bigamia, por terem suas vidas marcadas por maior
instabilidade e mobilidade espacial.9
Para estender a sua atuação por territórios tão extensos, a Inquisição portuguesa,
conforme afirmado, recorreu, entre outros mecanismos, à realização das visitações, tal como
a que foi destinada à Bahia, Pernambuco e adjacências, entre 1591 e 1595. Na documentação
produzida nesta ocasião, apuramos 37 indivíduos implicados na prática da bigamia, entre os
quais 30, ou seja, 83,8%, eram homens. A realização do delito acabava vitimando as esposas
de ambos os casamentos. De acordo com Ronald Ramos, no entanto, elas eram vítimas em
graus e de maneiras diferentes. A primeira esposa, ao ser abandonada, arcava, sobretudo, com
a perda social e econômica, ao passo que a segunda, considerada pelo autor como a mais

4 ALMEIDA, Ângela de. O gosto do pecado. Casamento e sexualidade nos manuais dos confessores
dos séculos XVI e XVII. Lisboa: Rocco, 1994.
5 FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São
Paulo: Hucitec, 1997. p. 131.
6 Bethencourt contabilizou 33 visitações inquisitoriais realizadas em diferentes partes do Império
português entre os séculos XVI e XVII, além da que fora destinada ao Grão-Pará no século XVIII.
O autor nos fala, ainda, da realização de outras duas visitações, direcionadas a Malaca e Macau, mas
sem data precisa. Ver BETHENCOURT, Francisco. História das inquisições – Portugal, Espanha e
Itália (séculos XV-XVI). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 215.
7 Cf. VAINFAS, Ronaldo. A teia da intriga. Delação e moralidade na sociedade colonial. In: ______
(org). História e sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986. p. 41-66.
8 Idem. Trópico..., op. cit., p. 256.
9 Ibidem, p. 105.
prejudicada, sofria a perda no sentido da honra.10
Na documentação produzida durante a visitação quinhentista ao Brasil, variadas
referências são feitas às mulheres vítimas da bigamia, cuja honra e reputação haviam sido
comprometidas quando se uniram em matrimônio sem saber que os maridos já eram casados.
Entretanto, depois de revelada a farsa, muitas delas não aceitavam o destino que lhes havia sido
imposto, e, sabendo da nulidade de suas uniões conjugais, casavam-se novamente. Exemplo
disto foi o que aconteceu com a jovem Margarida Pinta, que denunciou o próprio marido,
Antônio de Araújo, ao visitador Heitor Furtado de Mendonça. Segundo a denunciante, ambos
haviam se casado em Lisboa quando ela ainda era moça, sendo ele “já naquele tempo barbado
e viúvo”.11 Todavia, logo se descobriu que a sua primeira esposa havia ficado viva em Coimbra.
Ao ter o seu segredo descoberto, Antônio fugiu e não mais deu notícias. Desse modo, a zelosa
mãe da denunciante tomou a frente da situação e conseguiu testemunhas que comprovaram
o caso, de maneira que Margarida conseguiu dispensa para, aos 18 anos, casar-se novamente
com Antônio Rodrigues.
No que tange propriamente às mulheres bígamas, a maior parte das que foram
encontradas na documentação cometeu o delito após ter sido abandonada havia anos
pelos maridos, dos quais deixavam de receber notícias. Dessa maneira, acreditando terem
ficado viúvas, mas sem poder verdadeiramente comprová-lo, elas forjavam documentos ou
testemunhas para que pudessem voltar a se casar. Foi o que aconteceu, por exemplo, com
Maria Simões. Ela havia se casado em Lisboa com o soldado Belquior Fernandes, que, depois
de três anos, partiu para uma guerra na África. Maria contou ao visitador que chegara a
receber uma carta do marido na qual ele afirmava que havia ficado doente, e depois deixara de
ter notícias dele. Assim, por acreditar, segundo seu depoimento, que havia ficado viúva, e por
desejar se casar novamente, desta vez com Antônio da Costa de Almeida, ambos conseguiram
uma testemunha falsa que afirmou ter visto Belquior ser capturado e morrer no cativeiro.
Desse modo, Maria conseguiu licença do vigário para se casar pela segunda vez, buscando, por
meio desse artifício, reconstruir sua vida. Ainda consoante a sua confissão, Antônio descobriu,
posteriormente, que, na época do novo enlace matrimonial, seu primeiro esposo ainda vivia.12
De qualquer modo, tanto no que diz respeito às mulheres vítimas da bigamia que se
casavam novamente quanto àquelas que cometiam o delito depois de serem abandonadas
pelos maridos, suas histórias nos fornecem valiosos exemplos de mulheres audaciosas que
buscaram reescrever suas trajetórias, não obstante todas as dificuldades de se viver em
uma sociedade altamente misógina. Todavia, os casos de bigamia feminina geralmente são
destacados como consequência do abandono dos maridos, tal como escrito por Nizza da
Silva, para quem a prática da bigamia feminina foi sempre consequência do comportamento
masculino de abandono do lar, ao passo que os homens que praticavam o mesmo delito o
faziam por razões próprias, movidos pela aventura, pela maior mobilidade geográfica, e pelo
desejo de obter um segundo dote.13
Na contramão desta interpretação, podemos afirmar que também existiram situações
em que as mulheres, por diversas razões, protagonizaram o abandono dos seus lares e, mesmo
cientes de que não estavam viúvas, buscavam apagar o passado e recomeçar suas vidas por
10 RAMOS, Donald. Bigamia e valores sociais e culturais no Brasil colonial: o caso de Manuel Lourenço
Flores e o seu contexto histórico. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (org). Sexualidade, família e
religião na colonização do Brasil. Lisboa: Horizonte, 2001. p. 122.
11 PRIMEIRA Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações da Bahia (1591-93). Prefácio de Capistrano de Abreu. São Paulo: Paulo Prado, 1925. p.
434.
12 MELO, J. A. Gonçalves de (org.) Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo
licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões de Pernambuco. Recife: Universidade Federal
de Pernambuco, 1970. p. 126-128.
13 SILVA, M. B. N. Bígamas e seduzidas em Portugal e no Brasil. As faces de Eva, v. 1, n. 2, p. 37, 1999.
meio de novos laços matrimoniais. Neste sentido, convém destacar os casos de Antônia de
Barros, Catarina Morena e Martha Fernandes, recolhidos da documentação inquisitorial
quinhentista referente ao Brasil. Embora sejam mais exceção do que regra, suas histórias
nos enriquecem com variadas demonstrações da agência feminina na sociedade colonial,
revelando que diferentes mulheres, quando insatisfeitas, agiam por conta própria a fim de
modificar seus destinos, mediante, por exemplo, a prática da bigamia, desafiando não só os
maridos, mas as autoridades civis, eclesiástica e inquisitorial.
Em relação a Antônia de Barros, é interessante destacar que já era uma senhora de
70 anos quando compareceu à Mesa do Santo Ofício na Bahia para confessar ao visitador
Heitor Furtado de Mendonça o delito da bigamia. Este havia sido cometido cerca de trinta
anos antes, o que revela o clima de terror e desconfiança que se estabelecia diante da presença
da Inquisição. Antônia havia sido acusada por adultério em Portugal pelo marido Álvaro
Chaveiro, o qual era pescador e barqueiro, sendo sentenciada pela Justiça Secular a cumprir
cinco anos de degredo no Brasil.14
Segundo sua confissão, ela havia se amigado no reino com Henrique Barbas, vindo com
ele para Porto Seguro, onde, então, casaram-se após o mesmo negociar testemunhas falsas que
juraram que ele era solteiro e ela, viúva. Ambos viveram como casados por aproximadamente
quinze anos, quando Antônia decidiu fugir de casa devido ao fato de o marido lhe “dar açoites
e pancadas e muito má vida”15. Este caso é um brilhante exemplo da agência feminina no
contexto estudado, posto que Antônia arriscara a vida traindo o marido, veio degredada com
o amante para o Brasil, casou-se com ele cometendo, assim, o delito da bigamia, e dele se
afastou por não suportar os maus tratos sofridos.
Além de confessar a prática da bigamia ao visitador, Antônia foi denunciada duas vezes
pelo mesmo delito, em uma delas, inclusive, por Maria Barbosa, que havia sido escolhida
como madrinha para o seu segundo casamento.16 Acabou, assim, processada, mas, por ter
se apresentado no tempo da graça – período de até trinta dias, em que os confitentes ficavam
livres de punições mais severas – e feito boa confissão, foi sentenciada apenas a abjurar de leve
suspeita da fé na própria Mesa inquisitorial, além de cumprir penitências espirituais e pagar
as custas do processo.17
O caso de Antônia, bem como outros encontrados na documentação, mostra-nos,
portanto, a forma cruel por meio da qual diversas mulheres eram tratadas pelos companheiros.
Todavia, apesar de, muitas vezes, enclausuradas, controladas e espancadas, muitas reagiam
ao sofrimento e às pressões masculinas. Rompiam uniões indesejáveis, fugiam e, às vezes, até
contraíam novos laços matrimoniais, fingindo-se solteiras ou viúvas. Foi o que aconteceu, por
exemplo, com Catarina Morena, uma castelhana, filha de lavradores, também denunciada a
Furtado de Mendonça.
Além de delatada, Catarina também compareceu à Mesa inquisitorial no período da
graça para confessar o delito da bigamia. De acordo com o seu depoimento, ela havia se
casado na Espanha com o estalajadeiro Francisco Durán, com quem viveu por cerca de seis
meses, quando, então, decidiu fugir com o castelhano Francisco de Burgos para o Brasil. A
decisão de se afastar do marido, segundo ela, foi consequência do fato de ele lhe tratar mal e
estar sempre embriagado. A confitente acrescentou que, depois de estar vivendo havia algum
tempo no Brasil, na “conversação” com Francisco de Burgos, afastou-se do mesmo e seguiu
para Pernambuco, inovando na tática utilizada para cometer a bigamia ao escrever uma carta
dizendo que o seu marido havia morrido e mostrá-la, em seguida, para muitas pessoas.
Desse modo, fazendo crer que era viúva, Catarina se casou com o português e mestre-
de-açúcar Antônio Jorge numa igreja em Pernambuco, na presença de muitas testemunhas.
14 VAINFAS, Ronaldo (org). Confissões da Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 146-149.
15 Ibidem, p. 148.
16 PRIMEIRA visitação... Denunciações da Bahia ..., op. cit., p. 456-457; 470-471.
17 Arquivo Nacional da Torre do Tombo/Inquisição de Lisboa (ANTT/IL), processo 1.279.
Seu segundo casamento durou cerca de quinze meses, até que Catarina, alegando peso na
consciência, decidiu se confessar a um padre da Companhia de Jesus, que, escandalizado,
cuidou de recomendar ao segundo marido que se afastasse dela, posto que seu casamento não
era legítimo. Catarina, então, mudou-se para a Bahia, visto que, depois de ter decidido fugir do
marido que a maltratava, teve que se afastar do homem que escolhera para reconstruir sua vida,
o qual, aliás, fez questão de defender diante do visitador, afirmando que ele acreditava que ela
realmente fosse viúva e, com essa boa intenção, casara-se com ela.18 De qualquer modo, por
ter se afastado do segundo marido e se confessado no período da graça, foi sentenciada apenas
a abjurar de leve suspeita na fé na própria Mesa do Santo Ofício, cumprir penas espirituais e
realizar confissões extras. Além disso, foi advertida para que não voltasse ao lugar onde vivia
Antônio Jorge, com quem se casara pela segunda vez, embora curiosamente não tenha sido
forçada a voltar a viver com o primeiro marido, respeitando-se talvez o fato de ele, segundo
suas palavras, “ser homem de ruins manhas e lhe dar mau trato”.19
Tamanha tolerância do visitador não foi dispensada a Marta Fernandes – mulher parda,
filha de um lavrador com sua escrava angola –, embora ela, sagazmente, também tivesse
realizado a confissão no período da graça. Além disso, Marta foi denunciada duas vezes durante
a visitação por ter se casado na ilha de São Miguel com Fernão Gonçalves, “trabalhador da
erva pastel” (anil), voltando a se unir em matrimônio com um mancebo em Pernambuco,
depois de ter sido expulsa da referida ilha.20
A análise do processo movido contra Marta nos revela toda a sua ousadia e criatividade,
visto que chegou a montar quatro versões diferentes a fim de se livrar da culpa de bigamia e
dos castigos inquisitoriais. Durante a confissão feita no tempo da graça, por exemplo, contou
ao visitador que o primeiro marido havia partido na jornada del rei d. Sebastião para a África
e nunca mais havia dado notícias, razão pela qual ela teria ido para Pernambuco e se casado na
igreja com o marinheiro André Duarte, acreditando ser viúva. Sua confissão, no entanto, em
muito se diferenciava das denúncias apuradas contra ela, o que levou o promotor a concluir
que “usou a dita Marta Fernandes de simulação e malícia na confissão que fez nesta Mesa do
Santo Ofício posto que fosse dentro do período da graça”.21
A ré foi, então, admoestada a revelar toda a verdade, o que estimulou a elaboração de
uma segunda versão para sua história. Nesta, ela tentou invalidar o seu primeiro casamento,
o que a livraria da culpa de bigamia. Para tanto, disse que ela e Fernão Gonçalves “não deram
as mãos nem disseram palavras de presente nem clérigo nenhum lhes deu as mãos nem esteve
com sobrepeliz nem com estola nem lhes disse as palavras de matrimônio nem na igreja nem
em casa”. Acrescentou que “nunca teve cópula carnal com o tido Fernão Gonçalves e que
nunca esteve com ele de uma porta adentro e que ele nunca entrou em casa dela nem ela em
casa dele e que nunca coabitaram como casados porque nunca o foram”.22
Marta parecia conhecer bem as exigências tridentinas para a validade das uniões
conjugais, o que só foi possível porque, conforme ela mesma confessou, era amásia do padre
Francisco Fernandes, de quem também era escrava, e do qual estava grávida na época do
casamento, já tendo com ele uma filha. Ainda de acordo com a sua segunda versão, ele a
forçou a se casar com Fernão – embora o casamento tivesse sido realizado de forma irregular
– para se livrar de qualquer acusação, temeroso de que o bispo procedesse contra ele. Marta
acrescentou que só viu Fernão nesta ocasião, e que continuou vivendo na casa do padre por
seis anos, quando, com ciúmes do seu senhor, feriu o rosto de uma mulher com um vidro e
18 VAINFAS, Ronaldo (org.). Confissões..., op. cit., p. 140-141.
19 ANTT/IL, processo 1.287.
20 PRIMEIRA visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações de Pernambuco (1593-95). Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo: Paulo Prado,
1929. p. 26-27; 267-268.
21 ANTT/IL, processo 10.745.
22 Ibidem.
precisou fugir da ilha de São Miguel.
A nova história contada por Marta, no entanto, não convenceu o visitador. Desse modo,
já no dia seguinte, ela foi convocada para uma nova sessão, na qual afirmou que ela e Fernão
chegaram a juntar as mãos e jurar sobre o livro, embora tenha insistido que o vigário presente
na cerimônia estivesse sem estola e sobrepeliz. O visitador destacou, então, as contradições
presentes nos seus depoimentos, e a repreendeu por causa de tantas mentiras, de maneira que,
para se defender, a ré afirmou que “disse mentiras e falsidades na sua confissão na graça por ser
mulher fraca e simples cuidando [que] com dizer estas mentiras fazia o seu caso mais fácil”.23
O processo já se arrastava por quase dois anos, e Marta continuava sem convencer o
visitador e seus colaboradores. Por esta razão, acabou sendo presa e levada “ao cárcere das
mulheres desta visitação”. Foi, então, que ela contou sua derradeira versão. Admitiu, enfim,
que havia se casado com Fernão na igreja, consoante as determinações tridentinas, e que com
ele tinha coabitado e tido cópula carnal, “como legítimos casados que eram”. Acrescentou que
o marido a tratou bem por seis meses, ao fim dos quais começou a se ausentar e se envolver
em furtos, chegando a ser preso. Foi nessa época que ela teria ferido a moça por causa dos
ciúmes que sentira do seu senhor e amante, de quem, mesmo depois de casada, engravidou
mais “algumas duas vezes do qual pariu três filhos e mais uma filha que já dele tinha antes de
casar”.24 Veio, então, para o Brasil, e conseguiu testemunhas falsas que juraram que ela era
solteira, o que lhe possibilitou casar-se com André Duarte. Disse, ainda, que jamais contara
toda essa história aos confessores por temer que eles a afastassem do segundo marido, com o
qual parece ter se unido por vontade, e por quem parecia nutrir bons sentimentos.
Convencido, enfim, da história contada por Marta, mas não da sua inocência, o visitador
deu o seu parecer final. Ao contrário do que acontecera com Antônia de Barros e Catarina
Morena, admoestadas e repreendidas na própria Mesa do Santo Ofício, Marta foi condenada
a ir ao Auto Público nas condições humilhantes que eram de praxe (descalço, cingido com
corda e uma vela acesa na mão), fazer abjuração de leve e cumprir penas espirituais. Além
disso, deveria ser açoitada publicamente e degredada para o Reino de Angola. Tais penas
foram acrescidas de outra que talvez tenha sido a mais dolorosa: nunca mais regressar ao lugar
em que estivesse André Duarte, seu segundo e não legítimo marido.
Margarida, Maria, Antônia, Catarina e Marta. Suas histórias, como tantas outras,
fornecem-nos exemplos de solidão e sofrimento. Algumas com finais menos dolorosos,
outras com destinos mais trágicos. De qualquer modo, essas mulheres têm em comum o fato
de – auxiliadas por familiares, ou agindo por conta própria, abandonadas pelos maridos, ou
protagonizando o abandono de seus lares – reescreverem suas próprias histórias, em busca
de novos relacionamentos e de novas trajetórias. Para tanto, fizeram uso de diferentes táticas,
aproveitando habilmente a relativa facilidade de se casar in facie eclesiae na Colônia. Não
pretendiam, com isso, negar a sacramentalidade do matrimônio, mas viver de acordo com a
moral instituída, mesmo que, para isso, precisassem burlar as normas impostas. De qualquer
modo, homens e mulheres praticantes da bigamia eram, em linhas gerais, vistos pelos olhares
intolerantes da Inquisição como “suspeitos na fé”, os maiores “transgressores do matrimônio”,
sacramento que, por meio de diferentes estratégias, a Igreja, auxiliada pelo Santo Ofício e pelo
poder civil, empenhou amplos esforços para defender.

23 Ibidem.
24 Ibidem.
A comunidade cristã-nova de Leiria: criptojudaísmo e intolerância religiosa em
Portugal, século XVII

Alex Silva Monteiro1

Por toda a sua tradição judaica no medievo com uma ativa comuna sefardita2 em seu território;
após a conversão forçada da comunidade judaica por meio do édito de d. Manuel I, em 1496,
e a consequente formação do grupo social cristão-novista, a cidade de Leiria3 apresenta-se
como um cenário mais do que propício para o estudo do criptojudaísmo e da intolerância
religiosa em Portugal no século XVII. Para tal, analisamos 46 processos da Inquisição de
Lisboa contra cristãos-novos leirienses na primeira metade dos Seiscentos.

Unidos na “Lei de Moisés”: os encontros coletivos

Entre os verões de 1620 e 1625, os leirienses de ascendência judaica realizaram seguidas


reuniões para celebrar a fé na “Lei de Moisés”. Um desses encontros foi relatado à Mesa
Inquisitorial, em 9 de agosto de 1629, por Manuel Pinto Losa, cristão-novo, solteiro, de cerca
de 22 anos de idade. Segundo o confitente, no verão do ano de 1620, 27 pessoas, das famílias
cristãs-novas da cidade, fizeram-se presentes à “sombra das casas de Leiria nas olhalvas de
Nossa Senhora da Encarnação, [...] de Leiria donde os chamou ao pé a olhalva de Fernão
Rodrigues”.4
Estando, segundo o confitente, “todos sentados […] de baixo de latadas5 e árvores
cantaram os ditos mataens e Thomé de Fontes [...] disse que queria cantar só e cantou a viola
o seguinte é muito certo opinião testemunhas mais de dez que todo o novo cristão vive na
Lei de Moisés”.6 A palavra “mataens” provavelmente era a corruptela de “matán Torá” ,7 que
significa a doação da lei por Deus a Moisés no monte Sinai. Assim, “os ditos mataens” talvez
fossem um hinário de louvor à “Lei de Moisés”. A música agradou aos presentes, obviamente,
pela mensagem que trazia, pois Fernão Rodrigues pediu que Thomé voltasse a cantar. Findado
o bis, ele fez questão de proclamar para todos ouvirem “que a Lei de Moisés era boa e que a
Lei de Cristo era falsa e que os cristãos-novos todos criam na de Moisés e ele nela cria e logo
ele confitente e todas as mais pessoas sobreditas que estavam presentes gabaram a dita Lei de
Moisés”.8 Parece que a música levou a uma catarse coletiva.
Logo em seguida, Gaspar Dias tomou a palavra e pediu ao confitente que ele expusesse
perante o grupo os ensinamentos cerimoniais que havia recebido de Agostinho Cardoso.
Obedecendo, Manuel, que, à época, tinha mais ou menos 13 anos de idade, prontamente
1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Sefarditas: judeus de língua e cultura ibérica.
3 Ver GOMES, Saul António. A comuna judaica de Leiria das origens à expulsão – Introdução ao
seu estudo histórico e documental. Lisboa: Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” da
Universidade de Lisboa, 2010. (Série Monográfica Alberto Benveniste, v. 2).
4 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa (IL), processo número 10.557,
fl. 27 (Leonor de Fontes de Miranda), e proc. n. 1.800, confissão, (Manoel Pinto Losa).
5 Era o tecido formado pelos ramos da parreira, e de outras plantas, travados entre si, que fazia sombra.
Ver SILVA, Antônio de Morais. Dicionário da língua portuguesa. Lisboa: Typ. Lacérdina, 1813.
6 ANTT/IL, proc. n. 10.557, fls. 28-29, e Proc. n. 1800.
7 “Donación de la ley por Dios a Moisés en el monte Sinai”, ver COHN-SHERBOK, Dan. Breve
enciclopedia del judaísmo. Madri: Istmo, 2003. p. 83; 152.
8 ANTT/IL, proc. n. 10.557, fls. 28-29, e Proc. n. 1800.
proclamou para todos que as ditas cerimônias consistiam em
[...] vestir camisas lavadas ao sábados e guarda-lo começando
da sexta a tarde e deixar azeite na candeia com torcidas novas
limpando a jejuar às segundas e quintas sem comer nem beber
até sair a estrela e jejuar às sextas-feiras de fevereiro a Ester e
guardar as três páscoas de setembro e a maior a quatorze da lua
de março rezar o Padre Nosso sem Amém Jesus. E a mortalhar
com mortalha nova os defuntos podendo ser ainda que fosse com
mortalha velha por cima para mor do mundo e deixar a outra
que houvesse em casa fora – não comer lebre nem coelho, nem
toucinho, nem peixe de pele comer pão ázimo especialmente nas
páscoas botar azeite frito com cebola na panela da carne e lavá-
la em muitas águas quando vem do açougue e não comer aves
afogadas.9

Para além dessa aula de preceitos criptojudaicos, Manuel, mesmo com tão pouca idade,
ainda fez uma observação moral afirmando que não se devia “crer em cousa nenhuma dos
cristãos e todas as vezes que pudesse enganar a qualquer cristão velho enganá-lo e se pudesse
ser cada dia que seria melhor e todas as ditas pessoas o gabarão dizendo que toda a lei de Moisés
ele tinha na cabeça”.10 Sem a menor dúvida, Manuel agradou ao grupo com suas palavras.
Contudo, a exortação de ele ter declamado toda a “Lei de Moisés” em parte foi um exagero,
pois ele sequer falou das orações judaicas, entre tantas outras coisas. Contudo, dizemos em
parte, uma vez que podia sim ser toda a dita lei, a por eles conhecida ao tempo e ao lugar. Ao
término de sua palestra, todos afirmaram que já faziam as ditas práticas no cotidiano, além de
transmitirem-nas às demais pessoas sempre que tinham oportunidade.
Desta forma, Manuel relata, nove anos depois do ocorrido, uma reunião em que, entre
outras coisas, a “Lei de Moisés” foi cantada, declamada e comunicada. Na prática, tratou-se de
uma cerimônia criptojudaica coletiva, quiçá uma “sinagoga leiriense”. Apesar de, nos processos,
em momento algum ter sido usada a palavra sinagoga, ou mesmo sua derivação popular,
“esnoga”,11 como era de praxe na época, esses encontros não deixavam de transformar o local
da realização de suas cerimônias em uma espécie de “sinagoga clandestina”. Lá estiveram
presentes pessoas de várias famílias que compunham a comunidade de cristãos-novos da
cidade. Entre os participantes, destacamos um religioso católico: o cônego Pedro Estaco de
Macedo,12 que, no relato, não aparenta qualquer constrangimento pelos fatos ocorridos.
Faz-se necessário, entretanto, ressaltar que o religioso em questão, no relato de Manuel,
não era um frei ou mesmo um clérigo comum, mas um cônego, ou seja, um membro superior
na hierarquia eclesiástica, sendo inerente ao cargo possuir rendas ligadas à Catedral, além do
notório saber canônico.13 Logo, o cônego era pleno conhecedor do significado e dos riscos
9 Ibidem.
10 Ibidem.
11 Esnoga, exnoga, synoga, sinoga ou senoga: termos usados em Portugal para designar a sinagoga,
templo judaico; lugar onde se reúnem os judeus para celebrar seus ofícios religiosos; assembléia
de fiéis de crença judaica. Ver LIPINER, Elias. Santa Inquisição: terror e linguagem. Editora
Documentário: Rio de Janeiro, 1977, 67-68.
12 Não conseguimos encontrar qualquer vestígio de ter sido o referido cônego processado pela
Inquisição.
13 No caso de ser um cônego doutoral, seria ele o intérprete das leis a serviço do bispo, atuando, assim,
como jurisconsulto; já no caso de ser um cônego magistral, seria o mestre no ensino da moral. Ver
BLUTEAU, D. R. Vocabulário português e latino. Coimbra: No Colégio das Artes da Companhia
Jesus, 1712. p. 254.
de estar praticando a velha lei. Além disso, é de ressaltar a possível influência que poderia
ter um homem com tais conhecimentos e acessos a uma gama variada de literatura, sem
que isto pudesse despertar suspeita nos defensores da ortodoxia da fé cristã, em meio a uma
comunidade de cristãos-novos.
Era comum na comunidade de cristãos-novos leirienses a presença de membros da
família na carreira eclesiástica, normalmente sabedores e coparticipantes das práticas da
“Lei de Moisés”: frades, padres, cônegos, freiras, entre outros, fato que não era exclusivo das
famílias cristãs-novas de Leiria, como bem têm demonstrado alguns autores,14 mas que dava
mostras de como tais famílias transitavam nas duas confissões religiosas.
Por mais arriscadas que fossem as reuniões coletivas para judaizar em pleno século XVII,
em que a Inquisição já estava bem estruturada e em ascensão na sua atividade persecutória,
não era algo raro na comunidade cristã-nova de Leiria. Leonor de Andrade, que tinha parte
de cristã-nova, casada com um carcereiro, aos 46 anos de idade, relatou à Mesa, em 5 de
abril de 1630, que, no verão de 1625, “a sombra das casas de Leiria vindo de uma festa de
Nossa Senhora do Monte que fica sobre as Cortes e encontrando-se no caminho se achou ela
confitente em uma vinha de Francisco D’Andrade indo a uma casa que ali tem e é cristão-novo”
.15
Desta vez, o grupo reuniu-se em uma vinha nos arredores da cidade, e 32 pessoas
participaram do encontro. A maior parte dos participantes do “ajuntamento” estava
retornando à cidade, vindos de uma festa religiosa católica, quando, no caminho, realizaram o
referido. Primeiro, tiveram que “contemporizar com o mundo”, como afirmavam os próprios
judaizantes em seus processos, ao dizerem com que ímpeto praticavam os ritos católicos;
depois, aproveitaram a oportunidade de estar ocorrendo na cidade o deslocamento de um
grande número de pessoas pelos arredores para praticar a fé dos seus ancestrais, mantida
pelas novas gerações em segredo. Uma questão a ser pensada é como se deu a organização do
encontro. Consta, no relato, que o anfitrião ia chamando aqueles que passavam em direção à
cidade para dentro de sua propriedade. Contudo, pensemos que, sendo um caminho de volta
para a cidade para os que vinham da dita festa católica, não passariam ali somente cristãos-
novos, mas também cristãos-velhos. Logo, em um ambiente de perseguição, tais aglomerações
feitas somente por cristãos-novos eram muito arriscadas e, por si, demonstram a necessidade
que o grupo tinha de estar junto para poder praticar a “Lei de Moisés”.
Na comparação entre os dois momentos relatados anteriormente, vemos a participação,
em ambos, de apenas duas pessoas: o casal Gaspar Dias Pestana e Ana de Oliveira. Mas somente
no segundo encontro fizeram-se presentes as filhas do casal. Contudo, a análise de parentesco
e relacionamento entre os participantes mostra que os encontros foram realizados por um
mesmo grupo, ou, ainda, que todos os presentes nos dois encontros se conheciam. Assim,
se, no primeiro encontro, Fernão Galvão se fez presente, no segundo, mesmo se ausentando,
estavam presentes sua esposa e algumas de suas filhas, que não haviam participado do
primeiro. Já algumas ausências são facilmente explicáveis: Fernão Rodrigues, um dos líderes
no primeiro encontro, que não participou do segundo, juntamente com sua esposa e filhos,
não o fez pelo fato de ter sido preso pelo Santo Ofício, em 1621, um ano após a data do
primeiro ajuntamento. O mesmo se repetiu com os irmãos Simão de Fontes e Manuel de
14 Sobre o assunto, ver SANTOS, Georgina Silva dos. Isabel da Trindade: o criptojudaísmo nos
conventos portugueses seiscentistas. In: VAINFAS, Ronaldo; SANTOS, Georgina Silva dos; NEVES,
Guilherme Pereira das (org.). Retratos do Império. Trajetórias individuais no mundo português nos
séculos XVI a XIX. Niterói/RJ: Eduff, 2006. p. 333-356; Idem. A face oculta dos conventos: debates
e controvérsias na mesa do Santo Ofício. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes
(org.). Império de várias faces. Relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo:
Alameda, 2009. p. 141-150; ANDRADE, João Manuel. Confraria de S. Diogo. Judeus secretos na
Coimbra do séc. XVII. Lisboa: Nova Arrancada, 1999.
15 ANTT/IL, proc. n. 2.469, fls. 42-43v. (Maria Danta).
Fontes; em 1621, caíram nas malhas do Santo Ofício, e também seus familiares próximos não
participaram do segundo encontro.
Na soma dos dois encontros, temos a participação de 57 pessoas diferentes, das quais
duas usavam hábito religioso católico: um cônego e uma freira. Estes dois exemplos de atos
coletivos servem bem para caracterizar o espírito de vivência de crenças e ritos criptojudaicos
na comunidade cristã-nova leiriense.
O que caracterizava esta prática coletiva do judaísmo nesta cidade? A este respeito,
algumas hipóteses podem ser colocadas. A primeira é ressaltar o trânsito de pessoas de Leiria
pelas cidades vizinhas e pelo exterior, no período analisado. Em seguida, relacionar a prática
judaica leiriense a uma trajetória que viesse desde os tempos em que os judeus gozavam
de liberdade religiosa. Por último, mas não menos importante, é ponderar a possível força
motivacional que o perdão geral de 1605 pode ter dado a esta comunidade.
O século XVII se iniciou com a decretação, pelo papa Clemente VIII, de um perdão
geral,16 publicado, em janeiro de 1605, nas cidades inquisitoriais portuguesas, libertando
centenas de cristãos-novos dos cárceres do Santo Ofício.
Analisemos a primeira hipótese. Para tal, faz-se necessário aprofundarmo-nos no
processo do jovem Manuel Pinto Losa, o mesmo que havia tomado a palavra no encontro
de 1620, quando ainda era menino. Este, ao informar como havia sido doutrinado na “Lei de
Moisés”, disse que foi quando tinha 11 anos de idade, na época em que se iniciava no estudo
do Latim, juntamente com outros meninos da mesma faixa etária. As aulas eram ministradas
por Agostinho Cardoso, cristão-novo, filho de Filipa Cardoso, parente dele em grau muito
remoto. O dito professor, segundo Manuel, estava ou em Lisboa ou em Roma porque, quando
viu prisões em Leiria, se ausentou.17
Dessa forma, Agostinho aproveitava as suas aulas de Latim para ensinar não somente a
língua culta: fazia do grupo de meninos seus discípulos no judaísmo. Manuel relata que, logo
na primeira aula que tiveram, estando presente, além dele, os demais seis alunos, o professor
lhes disse que andavam errados se criam na Lei de Cristo, pois que nada dela haviam de fazer
senão para aparentar bons cristãos, ou seja, para contemporizar com a sociedade cristã-velha.
Disse também que deviam seguir a lei que Moisés tinha dado, pois esta era a verdadeira. No
mais, segundo o professor, todos os familiares deles faziam o mesmo”.18
Estas aulas foram ministradas mais ou menos entre os anos de 1617 e 1619, pouco mais
de uma década após o perdão geral. Agostinho mostrava-se muito mais do que um mero
conhecedor das práticas elementares a que muitos cristãos-novos ficariam reduzidos em meio
à perseguição inquisitorial e aos olhares aguçados dos cristãos-velhos; uma vez que o mesmo
chegou a afirmar a seus alunos que “havia outras orações das quais referiu algumas e que as
rezavam os judeus deste Reino com muitos dos quais se tinha declarado em diversas partes
[...] todavia, bastava o dito padre nosso e salmos porque não acertassem de rezar onde fossem
ouvidos de cristãos velhos”.19 Mas onde ele havia tido conhecimento dessas práticas judaicas?
De acordo com o relato de Manuel, Agostinho afirmara que
[...] se tivessem alguma dúvida naquilo que lhes ensinava lhes
daria pessoas doutas que não nomeou e que lha tirassem e que
isto lhe ensinara em Roma Diogo Lobo filho de Henrique da
Cunha e da sua primeira mulher letrado de Leiria que se foi pra
Roma três ou quatro anos depois do último perdão geral.20

16 Ibidem, p. 406-407.
17 Idem, proc. n.1.800, fl. 331v. (Manuel Pinto Losa).
18 Idem, fls. 331v.-332.
19 Ibidem.
20 Ibidem, fl. 332 v.
Assim, Agostinho relatava ter sido ensinado, em Roma, por Diogo Lobo, filho de
Henrique da Cunha. Esta informação é importante para correlacionarmos o grupo a uma
das famílias mais tradicionais da cidade de Leiria: a família Cunha, a que pertencia o famoso
poeta, cristão-novo português, Rodrigues Lobo. De acordo com o historiador Daniel Lacerda,
Henrique da Cunha morreu nos cárceres do Santo Ofício em dezembro de 1622, sendo
considerado pela Mesa culpado de práticas de judaísmo e de ajuda à fuga de cristãos-novos.
Homem de recursos, Henrique conseguiu enviar para o exterior a maior parte de seus filhos,
entre eles o mais velho, Diogo Lobo, licenciado em Direito Canônico, que partira para Roma
em 1612, onde se tornara professor.21 Lembremos que sair do Reino português, na época,
requeria não só muitos recursos, como bons relacionamentos, pois não era permitida a saída
oficial de cristãos-novos sem licença especial. A outra maneira seria a fuga.
Continuando a análise do relato do jovem Manuel, afirma ele que, logo em seguida
ao ensinamento que recebera de Agostinho, ou seja, ainda antes de 1620, esteve em casa de
Fernão Rodrigues, onde também se encontrava presente Gaspar Dias Pestana, dois dos mais
influentes cristãos-novos da comunidade de Leiria. Lá, Fernão Rodrigues “lhe perguntou em
que lei ele confitente cria, e então lhe contou tudo sobre o que o dito Agostinho Cardoso lhe
dissera e ensinara”.22 Logo, o dito Fernão afirmou que o professor o ensinou muito bem, “e
que a benção houvesse de Deus”,23 pois que na dita lei também criam seu pai e tio, Simão
de Fontes e Manuel de Fontes, respectivamente, já que ele mesmo os tinha doutrinado. Em
seguida, Gaspar Dias Pestana tomou a palavra, disse que também cria na dita lei, e que, junto
com Fernão, fazia as referidas cerimônias com exceção dos salmos, pois não sabiam o latim,
e o mesmo caminho era traçado por todos os parentes e amigos. Assim, ficamos sabendo
porque, no encontro do verão de 1620, Gaspar Dias Pestana encarregou o menino Manuel de
ensinar as práticas do judaísmo ao povo lá presente. Gaspar bem sabia que o moço havia sido
doutrinado pelo professor de latim.
As idas e vindas do mestre de latim, Agostinho Cardoso, de Roma para Leiria, e a
sentença proferida contra Henrique da Cunha pelo Santo Ofício, por ser ele cúmplice nas
fugas de cristãos-novos da cidade, e a própria saída dos seus filhos para outras regiões da
Europa mostram que havia um trânsito de cidadãos leirienses pela Europa, o que justifica uma
das hipóteses que levantamos para a formação de grupos de discussão na “Lei de Moisés” na
referida cidade, em pleno século XVII.
Desta forma, o criptojudaísmo praticado na comunidade, adaptado à perseguição,
possivelmente sofria fortes influências desses contatos. Entre os próprios alunos do mestre
Agostinho, temos relatos de que António Soares e o próprio Manuel Pinto Losa, na década
de 1620, passaram uma temporada estudando em Salamanca ou em Alcalá e em Coimbra,
respectivamente.
Outra pista para entendermos a manutenção de uma prática coletiva do criptojudaísmo
na cidade de Leria, para além do trânsito de pessoas, é a tradição lá existente desde os tempos
em que seus participantes tinham liberdade de culto. Por mais que, na maioria dos processos
analisados, os réus afirmassem terem sido doutrinados após o perdão geral de 1605, e mesmo
que alguns dos mais velhos do grupo só relatassem fatos ocorridos após esta data, pois os
anteriores deixavam de ser relevantes para o Santo Ofício, a tradição judaica de Leiria não
pode ser minimizada. Peguemos o exemplo de Fernão Rodrigues, senhor de 81 anos de idade,
rendeiro, viúvo de Francisca Galvão, também cristã-nova. Fernão era cristão-novo famoso na
comunidade de Leiria, sendo apontado em diversos processos como um dos líderes da região,
citado por muitos como seu agente doutrinador. Foi processado pelo Tribunal de Lisboa no
21 LACERDA, Daniel, Cristãos-novos de Leiria perseguidos pela Inquisição nas primeiras décadas
do século XVII. Rodrigues Lobo, crente judaico; o processo de Manuel Lobo. III Colóquio sobre a
História de Leiria e da sua região. Leiria: Câmara Municipal de Leiria, 1999. V. 2, p. 61-62.
22 ANTT/IL, proc. n.1.800, fl. 334.
23 Ibidem.
ano de 1621, e sentenciado em auto de fé em 5 de maio de 1624.24 Devido ao estado de
conservação de seu processo, infelizmente não conseguimos saber sua sentença.
A opção de seguir os passos de Fernão Rodrigues, para além do que já foi anteriormente
citado, se dá pelo fato de ele ser, entre os réus por nós pesquisados, o mais velho. Tendo 81
anos quando foi preso, em 1621, presumidamente haveria de ter nascido por volta de 1540, em
uma época em que os cristãos-novos ainda tinham uma estrutura ampla de culto organizado,
mesmo que já posto na clandestinidade, com a utilização de livros litúrgicos e a existência de
verdadeiros rabinos, uma vez que a Inquisição ainda estava se organizando institucionalmente.
Sabemos, pelo relato de Manuel Pinto Losa, em conversa com Fernão Rodrigues, e por
meio da confissão do próprio, em seu processo, que ele não sabia bem latim, por isso não
realizava a leitura dos salmos, fato que não atrapalhava a capacidade deste cristão-novo de
transitar pelas diversas casas e famílias, comunicando a “Lei de Moisés”. Não sabia bem o
latim, entretanto, sabia ler e escrever o português. Inclusive, diz em seu processo que sabia
encadernar livros. Logo, tinha acesso a certas literaturas, corroborado pela reconhecida
tradição leiriense na tipografia desde séculos anteriores.25 Mas a que tipos de livros Fernão
teve acesso não sabemos, não aparecem nos autos analisados, provavelmente por não ser esta
a sua atividade principal. Além disso, o inventário de seus bens, constante de seu processo,
mostra que era homem de vários negócios, que envolviam terras, arrendamentos, acordos
comerciais, mas não cita livros.
Em 27 de maio de 1621, ao começar a confessar à Mesa, disse que fora educado
no judaísmo pelo pai, antes do perdão geral, sem, contudo, precisar em que tempo, e que
continuara na crença na “Lei de Moisés” desde então. Provavelmente, praticava o judaísmo
desde a juventude, ou seja, desde meados do século XVI. Havia sido doutrinado em família
por uma geração que, certamente, ainda tinha laços muito fortes com as práticas tradicionais
do judaísmo. Em suas idas à Mesa, não relevou muito aos inquisidores, nada falou do encontro
no verão do ano anterior (1620), ou mesmo de quaisquer encontros coletivos realizados na
comunidade de Leiria. Limitou-se a denunciar a família: mulher, já defunta, e filhas, além
de sobrinhos, que estavam presos, e poucas outras pessoas. Dos participantes dos encontros
coletivos, além das filhas, só mencionou os irmãos Simão de Fontes e Manuel de Fontes,
ambos também presos em 1621. Entretanto, só o fez depois de muita pressão por parte dos
inquisidores, mediante a publicação de provas de justiça e a realização de tortura.
Após três anos de idas e vindas à Mesa, Fernão conseguiu livrar-se do processo, sem,
contudo, denunciar amplamente a comunidade de cristãos-novos de Leiria, apesar de ele
aparecer, por diversas vezes, nos processos que se seguiram ao seu, como sendo o agente
doutrinador de muitos dos cristãos-novos da cidade. Logo, se faz mais do que evidente a sua
participação ativa, aos 81 anos de idade, na comunidade de cristãos-novos leiriense, praticante
do criptojudaísmo. Além disso, fica-nos claro, pela análise de seu processo, que, em Leiria, a
tradição criptojudaica se iniciara nos tempos do decreto de d. Manuel I.
Outra hipótese para se pensar a força herética comunitária em Leiria foi o impacto
do perdão geral sobre a população cristã-nova da cidade. Logo, o período de nossa análise é
marcado por uma vitória da comunidade cristã-nova lusitana sobre a sistemática perseguição
empreendida pelo Tribunal do Santo Ofício. Esta vitória foi obtida mediante o pagamento ao
papado de uma grande quantia em dinheiro, a título de indenização (um milhão e setecentos
mil cruzados). Não temos como mensurar o quanto o perdão geral influenciou a prática da
“Lei de Moisés” entre os cristãos-novos de Leiria, mas não podemos deixar de considerá-lo
24 Ibidem, proc. n. 12.495 (Fernão Rodrigues).
25 Foi em Leiria, na tipografia do judeu Abraham Samuel d’Ortas, que se publicou a versão em latim
do Almanach Perpetuum (Hajibbur Hagadol), obra do famoso médico, rabino e matemático Abraão
Zacuto traduzida por José Vizinho, físico do rei e matemático. Ressalte-se que esta obra foi um
dos quatro primeiros livros impressos em Portugal. Ver os verbetes “medicina” e “judaísmo” em
MUCZNIK, Lúcia Liba et al. Dicionário do judaísmo português. Lisboa: Editorial Presença, 2009.
como uma variante importante na análise, principalmente porque a libertação dos cristãos-
novos, prisioneiros da Inquisição portuguesa, repercutiu de forma imediata na sociedade
lusitana. Várias foram as manifestações de cristãos-velhos em hostilidade aos libertos.26
Assim, por um lado, o perdão geral serviu para criar um ambiente mais hostil nas
relações entre cristãos-novos e velhos, exacerbando, no meio da população, a intolerância
religiosa e as distinções sociais hierárquicas, impostas pelo estatuto de limpeza de sangue; mas,
por outro lado, o fato de o perdão geral ter representado uma clara vitória da comunidade
cristã-nova portuguesa frente à perseguição inquisitorial parece ter aumentado a coragem
dos leirienses, e a dos cristãos-novos em geral, de se exporem, de comunicarem entre si os
costumes ancestrais, de se reunirem em grupos, e de acreditarem que seria possível, mais do
que antes, cultuar o “judaísmo” em meio à perseguição, haja vista a formação, em Coimbra, da
Confraria de São Diogo,27 logo em seguida ao perdão geral.
Não só este perdão pode ter dado um ânimo a mais ao culto secreto do judaísmo no
reino e, mais especificamente, em Leiria, como fez com que alguns acreditassem que outro
estava na eminência de ocorrer, por volta do ano de 1625. Daí, talvez, entender-se porque este
ano foi tão propício aos encontros coletivos. Em um deles, em que estavam presentes nada
menos do que 26 pessoas, nas vinhas de António Soares, em meio às práticas da “Lei de Moisés”,
Fernão Galvão perguntou a Manuel Pinto Losa – o mesmo que fora o orador em 1620, ainda
menino – se ele tinha algum recado de seu primo, Thomé de Fontes – um dos protagonistas
do encontro de 1620 – , que estava em Lisboa, acerca de um novo perdão. Manuel respondeu,
para todos os presentes ouvirem, que Thomé lhe havia escrito dizendo que “estava quase feito
o dito”.28 Francisco Soares, ouvindo a boa notícia, logo “disse que seria grande bem para o
reino e para a gente de nação, porque a Inquisição não fazia mais [do] que acabar [com] a dita
gente”.29 Contudo, para infelicidade de Francisco e dos demais presentes, o novo perdão não
se efetivaria nos moldes do de 1605, quando os presos foram libertados e o Tribunal do Santo
Ofício ficou um ano sem poder fazer novas prisões; nos anos de 1627 e 1630, houve perdões,
mas seus benefícios foram apenas temporários e pouco efetivos.30 Assim, Leiria permaneceu,
na época, sob uma intensa ação inquisitorial.

Leiria sob o jugo inquisitorial

Uma atividade coletiva tão viva não ficaria por muito tempo livre da perseguição inquisitorial.
Logo Leiria foi devassada pelo Santo Ofício, nas décadas de 1620 e 1630.
Uma hipótese para o estopim desta devassa inquisitorial em Leiria foi-nos dada por
Francisco Soares – cristão-novo, sirgueiro,31 de 64 anos de idade – quando foi preso, em
1627. O réu fez sua confissão somente três anos após sua prisão, e após terem sido publicadas
as provas de justiça contra si, ou seja, dava mostras de que não queria colaborar com a Mesa.
Assim, ao começar a relatar como se iniciou na fé herética, disse que “a verdade era que tendo
ele ouvido os editais das visitações do ordinário na Sé de Leiria no ano de 1620 pouco mais ou
menos nos quais se contêm cousas da Lei de Moisés”.32
Assim, a informação do réu de que a cidade de Leiria sofreu, no início da década de
1620, “visitações do ordinário”, ou seja, visitações do bispo, e que, nos editais desta, constavam
26 Ver ANDRADE, João Manuel. Confraria..., op. cit, p. 61.
27 Ibidem.
28 ANTT/IL, proc. n. 11.135, 6ª testemunha, Manuel Pinto Losa, fls. 10v-12 (Fernão Galvão).
29 Ibidem.
30 ROTH, Cecil. História dos marranos – Os judeus secretos da península Ibérica. Porto: Civilização
Editora, 2001. p. 77.
31 Oficial que faz cordões de seda, franjas. Ver BLUTEAU, D. R. Vocabulário..., op. cit., p. 662.
32 ANTT/IL, proc. n. 11.045.
as práticas criptojudaicas que deveriam ser denunciadas, pode ser uma das explicações para a
devassa que a Inquisição impôs à cidade nas décadas seguintes. Nas visitações, que realizavam
nas partes de sua diocese, os bispos se encarregavam de, entre outras coisas, levantar os casos
de heresia e apostasia que poderiam ser destinados ao Tribunal Inquisitorial. E Leiria era
nada mais, nada menos, do que a sede episcopal desde meados do século XVI. Cabe ressaltar
também que, a partir de 1618, foram organizadas visitas inquisitórias aos distritos de Coimbra
e de Lisboa, num momento em que o Santo Ofício recrudescia suas práticas e buscava
sistematizar sua atuação. Desta forma, a dita visita do ordinário também poderia ter sido uma
visita inquisitorial.
Contudo, tanto fosse uma visita do prelado ou uma visita inquisitorial, teria deixado um
rastro de denúncias, inclusive de cristãos-velhos. No entanto, nos processos em que analisamos,
não há qualquer menção a denúncias que não fossem frutos de outros processos inquisitoriais
contra cristãos-novos, ou seja, todos os que constam como testemunhas de acusação dos réus
foram anteriormente ou concomitantemente a eles processados pela Inquisição por judaísmo.
Logo, a hipótese mais viável para a devassa é que ela tenha sido fruto das investigações
iniciadas na cidade de Coimbra com o desbaratamento da “confraria de São Diogo”. Houve,
em Leiria, prisões anteriores à deflagração ocorrida na Universidade de Coimbra, mas as
décadas de 1620 e 1630 foram muito mais violentas para os cristãos-novos de lá.
Entre os réus que analiso, os primeiros a caírem na malha inquisitorial foram Fernão
Rodrigues e os irmãos Simão de Fontes e Manuel de Fontes, todos no ano de 1621, o que
corrobora que o referido ano foi um marco para o fortalecimento da empreitada inquisitorial
na cidade. No processo de Simão de Fontes, só constam três testemunhas acusatórias:
Francisca da Cruz – freira no Convento de Santa Maria de Celas,33 da cidade de Coimbra,
perseguida pela Inquisição coimbrã em meio à devassa realizada na “Confraria de São Diogo”
– e Simão Gomes, primos do réu, moradores em Coimbra, e o seu irmão, citado anteriormente,
todos presos no ano de 1621. O mesmo ocorreu no processo de Fernão Rodrigues, pois o
primeiro testemunho contra ele, que motivou a sua prisão, foi o de sua sobrinha, Maria Gomes,
meio cristã-nova, também de Leiria, presa, assim como o tio, no ano de 1621. Os demais
testemunhos também foram de pessoas presas após 1620. Entre os familiares daqueles que
pesquisamos, encontramos poucos presos antes desta data, casos dos irmãos cristãos-novos
Paulo de Lena,34 médico, e Estevão de Lena,35 advogado, cunhados de Manuel de Fontes.
Ambos caíram nas malhas inquisitoriais, saindo em auto de fé por culpas de judaísmo em
1621 e 1624, respectivamente. Contudo, nenhum dos dois aparece como testemunha nos casos
referidos, apesar da comprovada ligação entre eles. Assim, o que aparenta é que o Santo Ofício
lisboeta agiu na cidade de Leiria, logo após o perdão geral de 1605, contudo, num ritmo lento
até a década de 1620, quando esta ação se tornou mais efetiva.
Após as prisões de 1621, os processos passam a ganhar maior volume e um número
maior de testemunhas; uma vez que o Tribunal continua a processar na cidade. Iniciava-se,
desta forma, a engrenagem persecutória do Santo Ofício na região. Assim, em duas décadas, a
comunidade cristã-nova leiriense sofreu a perseguição sistemática da Inquisição.
Outro dado que mostra como a cidade de Leiria, no século XVII, passou a ter uma
maior vigilância por parte da Inquisição é o da multiplicação de familiares no seu território.
Segundo Elvira Mea,36 na passagem do século XVI para o XVII, Leiria contava apenas com
dois familiares a serviço do Santo Ofício. Mais tarde, em 1693, este número saltara para
vinte. Esse aumento do número de pessoas a serviço do Tribunal não foi um fenômeno
33 Sobre a devassa inquisitorial nos conventos de Coimbra, ver SANTOS, Georgina Silva dos. A face,
op. cit.
34 ANTT/IL, proc. n. 11.444 (Paulo de Lena).
35 Idem, proc. n. 13.181 (Estevão de Lena).
36 MEA, Elvira Cunha de Azevedo. A Inquisição de Coimbra no século XVI: a instituição, os homens e
a sociedade. Porto: Fundação Engenheiro António de Almeida, 1997. p. 183-185.
exclusivo da região, pois o século XVII foi marcado pelo processo de aumento da estrutura,
da institucionalização e da ação persecutória inquisitorial portuguesa. Contudo, cabe um
destaque a respeito do número de familiares em Leiria em fins dos Seiscentos. Entre as cidades
sob a jurisdição do tribunal lisboeta, era ela a segunda em número de homens neste serviço,
ficando atrás apenas de sua sede. Entre todas as cidades portuguesas (situadas na Europa) que
contavam com familiares, Leiria só perdia para Évora e Coimbra, ambas com cinquenta; Porto,
com quarenta; e a já citada Lisboa, com cem familiares. Deste modo, entre as cidades que não
eram sede de tribunais do Santo Ofício, Leiria só ficava atrás do Porto, empatada, contudo,
com Elvas, Portalegre, Viseu, Braga e Viana, todas com vinte familiares. Desta forma, fica
notório que, no século XVII, Leiria passa a ter uma maior atenção por parte da Inquisição de
Lisboa.
E os leirienses sabiam que o cerco contra eles se estava fechando após as prisões de 1621.
Mostrando apreensão quanto ao futuro, João Lopes, em um encontro na casa de João Rabelo,
por volta do ano de 1625, ao qual estavam presentes 16 pessoas, ao falar na “Lei de Moisés”,
disse que “não desanimassem se vissem muitas prisões em Leiria que Deus proveria, e que
cressem e perseverassem na dita lei de Moisés, e referiu todas as ditas cerimônias dizendo que
as fizessem e que ele as fazia e cria na dita Lei”.37 João estava mais do que certo, as prisões se
seguiriam.
Como que seguindo as palavras de João Lopes, muitos leirienses resistiram e não
confessaram o criptojudaísmo no primeiro momento; negaram ou omitiram fatos, tentando
(acreditando que seria possível) proteger familiares, amigos e a si próprios. Alguns só o fizeram
mediante o tormento.
Nos 45 processos em que tivemos acesso às sentenças, excluindo, desta forma, o de
Fernão Rodrigues, por estar ilegível, pudemos fazer a seguinte análise da relação de penas
impostas aos leirienses.

Quadro 1
Penas impostas pela Inquisição de Lisboa aos cristãos-novos de Leiria em
suas sentenças (1624-1638)38

Penas Totais Percentagens


Abjuração em forma acompanhada de algum tipo de cárcere e
39 86,7
hábito penitencial, além de instruções na fé
Relaxamentos (em carne e em ossos/estátua) 4 8,9
Enterro com sepultura eclesiástica 2 4,4
Galés 1 2,2
Confisco de bens 45 100
Fonte: ANTT, IL, Processos 452; 879; 1800; 1939; 1941; 2469; 3176; 3390; 3395; 3502; 3603; 3704; 3715; 3717; 3744; 3750; 3831;
3869; 4294; 4925; 4996; 5261; 5440; 5443; 6130; 6723; 6735; 6920; 6921; 7234; 7582; 7709; 8402; 8854; 9876; 9885; 10288; 10557;
11045; 11135; 11312; 11534; 11807; 11819 e 12565.

Entre os 39 que foram reconciliados, encontramos a seguinte distribuição das penas de


cumprimento de cárcere e de uso do hábito penitencial.

37 ANTT/IL, proc. n.11.135, fl. 16 (mf. 27).


38 Cabe esclarecer que a soma das sentenças não corresponde ao número de processos, pois o réu era
sentenciado a mais de um tipo de pena, ou seja, a um conjunto de punições. Contudo, a percentagem
foi tirada em relação ao total de processos, assim, quando dizemos que 8,9% dos sentenciados foram
relaxados ao braço secular, estamos tomando como base o universo de 45 processados.
Quadro 2
Tipos de cárcere e hábito penitencial entre os cristãos-novos de Leiria
reconciliados vivos pela Inquisição de Lisboa

Tipos de cárcere e hábito penitencial Totais Percentagens


Ao arbítrio dos inquisidores 12 30,8
Perpétuo 24 61,5
Perpétuo sem remissão 2 5,1
Perpétuo sem remissão e com insígnia de fogo 1 2,6
39 100
Fonte: ANTT, IL, Processos 452; 879; 1800; 1939; 1941; 2469; 3176; 3390; 3395; 3502; 3603; 3704; 3715; 3717; 3744; 3750; 3831;
3869; 4294; 4925; 4996; 5261; 5440; 5443; 6130; 6723; 6735; 6920; 6921; 7234; 7582; 7709; 8402; 8854; 9876; 9885; 10288; 10557;
11045; 11135; 11312; 11534; 11807; 11819 e 12565.

Levando em consideração que todos os réus pesquisados foram processados pela


primeira vez, o elevado índice de sentenças, que incluíam penas perpétuas ou o relaxamento,
31 das 45 analisadas, ou seja, 68,89% demonstram que grande parte do grupo pesquisado
não estava propenso a colaborar com o tribunal, pelo menos na medida em que satisfizesse
às denúncias. Com exceção de Filipa Lopes, que faleceu nos cárceres dos Estaus39, 18 meses
depois de ser presa, sem confessar suas culpas, todos os demais pesquisados, mais cedo ou
mais tarde, confessaram-se, e, por isso, o elevado número daqueles que foram sentenciados a
abjurar em forma. No entanto, a maior parte só o fez depois de um período inicial de negativas.
A maioria só veio a colaborar com a Inquisição depois dos libelos acusatórios ou mesmo
das provas de justiça. Alguns chegaram ao ponto de nomear testemunhas para a sua defesa,
mantendo-se no discurso de “nada saber”. Maria Danta, por exemplo, chegou a fazer 153
contraditas em sua defesa.40 Declarou-se inimiga de vários dos cristãos-novos, participantes
dos encontros coletivos realizados nos verões de 1620 e 1625. Outros, aproveitando-se das
provas de justiça, que eram os relatos dos casos em que os réus estavam sendo acusados, e
que omitiam os nomes dos envolvidos, limitaram-se a confessar o necessário para poderem se
livrar do processo, e a não mencionar mais pessoas do que o necessário, correndo o risco de
serem também acionadas. Foi o que fizeram Manuel de Fontes e Fernão Rodrigues. Limitaram-
se a denunciar as pessoas que já estavam falecidas ou presas, neste caso, por saberem que já
os podiam ter delatado. Manuel sequer denuncia a esposa ou seus filhos como cúmplices nas
práticas judaicas. Este réu em particular, homem letrado, licenciado em Direito Canônico em
Coimbra, soube, como ninguém, lidar com seu processo, pois esperava o inquisidor fazer as
insinuações das informações de comunicações que outros judaizantes tinham contra ele, para
poder confessá-las. Muitos sequer confessaram todos os atos de que foram acusados, tendo
que passar pela tortura para terem os processos finalizados, e uma entre todos foi levada em
carne à fogueira. Maria Danta, filha de pai cristão-velho e mãe cristã-nova, foi relaxada ao
braço secular em 21 de setembro de 1632, entre outras coisas, como consta em seus autos, por
negar-se a denunciar seu irmão como cúmplice nas práticas criptojudaicas.41

Considerações Finais

Ainda há muito para ser revelado sobre os cristãos-novos de Leiria, pois poucos trabalhos se
39 Paços reais situados no Rossio, em Lisboa, edificados durante a regência de Afonso V (1432-1481)
e que serviram depois de sede ao Santo Ofício. Ver os verbetes “estaos, estaus” em LIPINER, Elias.
Santa Inquisição: terror e linguagem. Rio de Janeiro: Editora Documentário, 1977, p.69.
40 ANTT, IL, Proc. n. 2469 (Maria Danta).
41 Idem.
debruçam sobre este tema.42 Neste artigo, buscamos mostrar que os leirienses de ascendência
judaica, por tudo o que demonstram os processos, realmente se organizavam e viviam
coletivamente. Não somente devido aos encontros em que se reuniam para praticar a fé na
“Lei de Moisés”, mas nas falas e nas atitudes, buscavam sempre unir, integrar e proteger os que a
sociedade ampla, formada por cristãos, porém cristãos-velhos, denominava também cristãos,
mas cristãos-novos. Cristãos de categoria inferior, maculados pela ascendência, mesmo que,
em muitos casos, fosse muito remoto o sangue judeu.
Para o cristão-novo, o estigma de ter sangue “impuro” significava discriminação,
exclusão, que forçava a necessidade de formar uma comunidade, de se integrar aos seus
“iguais”. Assim, eles se uniam tanto por vontade própria quanto por imposição do ambiente de
intolerância religiosa da sociedade cristã-velha.43
Em Leiria, fica clara a necessidade que os cristãos-novos tinham de se afirmarem como
tais, fosse apegando-se aos resquícios de religião judaica, internalizada no crer e no viver
na “Lei de Moisés”, fosse na origem comum, que adviria do próprio ethos cristão-novo. Daí
a formação de verdadeiras “sinagogas clandestinas” na cidade em pleno momento em que
a Inquisição se mostrava mais feroz em sua atividade persecutória. A própria perseguição
reforçava a necessidade de estarem em grupos, pois sabiam que precisavam uns dos outros
para poder manter-se fortes frente à intolerância étnico-religiosa.

42 Cito os artigos de LACERDA, Daniel. Cristãos-novos, op. cit; e MONTEIRO, Alex Silva. Conventículo
herético de moças: hierarquia social e transmissão criptojudaica no Portugal seiscentista. In: TAVARES,
Célia C. da S.; RIBAS, Rogério de O. (org.) Hierarquias, raça e mobilidade social. Rio de Janeiro: Contra
Capa, 2010. p. 107-124.
43 SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. O sangue que lhes corre nas veias – Mulheres cristãs-novas do
Rio de Janeiro, século XVIII. 1999. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999. p. 304.
Da tolerância à intolerância: os sodomitas da Igreja e seus parceiros sob o olhar das
instituições portuguesas e da sociedade colonial

Veronica de Jesus Gomes1

Em nenhum Autor se lê, que tenha cometido o


pecado nefando, prova evidente de que é torpeza
tão enorme, que até o demônio a aborrece.
padre Rafael Bluteau

Embora apresentassem muitas diferenças entre si, as sociedades europeias da Época Moderna
aparentemente convergiram num ponto: compartilharam uma pedagogia moralizadora,
que tinha como principal objetivo disciplinar os indivíduos e transformar seus costumes e
comportamentos. Tal vigilância não deixou de se mostrar intolerante perante certas práticas
sexuais vistas como desviantes, dentre elas a sodomia, designada como uma forma de luxúria,
que, dentro de uma nova classificação de pecados capitais proposta pelos autores e pregadores
da Igreja, no século XVI, saiu do sétimo e último lugar na lista de transgressões da Idade
Média, e passou a ocupar o terceiro, atrás somente do orgulho, que continuou no topo, e da
avareza, também promovida.2
A luxúria apareceu em terceiro lugar na lista dos pecados mortais de algumas
constituições diocesanas portuguesas quinhentistas,3 que não mencionaram diretamente
a sodomia, referindo-se somente aos chamados “casos reservados”.4 Um deles era a quebra
do voto de castidade, cuja absolvição pertencia ao papa. Entretanto, no fim do século XVII,
pelo menos uma constituição diocesana portuguesa afirmou que os sodomitas, eclesiásticos e
leigos, mereciam a pena capital, determinando que seus praticantes fossem entregues à justiça
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 BOSSY, John. A Cristandade no Ocidente (1400-1700). Lisboa: Edições 70, 1985. p. 54. As críticas
protestantes à maioria dos sacramentos católicos, entre eles o do matrimônio, certamente
influenciaram, e muito, a nova ordenação dos pecados. Os reformados foram vistos pela
Contrarreforma como suspeitos de serem partidários da fornicação, uma das razões mais do que
suficientes para que se buscasse conter o movimento. Afinal, a perspectiva de que os protestantes
eram defensores da fornicação, e que colocavam em xeque a “santidade do casamento”, era uma
questão que poderia prejudicar e ruir os propósitos católicos (vale lembrar que, mais tarde, Lutero e
Calvino acabaram caracterizados, por padre Antônio Vieira, como “sensuais” e adeptos desenfreados
de “vícios e pecados”). Graças a esses fatores, a luxúria ganhou importante notoriedade. VAINFAS,
Ronaldo. Trópico dos pecados. Moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1997. p. 202-203.
3 As seguintes constituições eclesiásticas portuguesas do século XVI, consultadas na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, não mencionaram o pecado de sodomia: Constituições do Bispado de
Évora, 1534 e 1565; Constituições do Arcebispado de Braga, 1538; Constituições Sinodais do Bispado
de Miranda, 1565; Constituições Sinodais do Arcebispado de Lisboa, 1588; Constituições Extravagantes
Primeiras do Arcebispado de Lisboa, 1588; Constituições Extravagantes Segundas do Arcebispado de
Lisboa, 1588.
4 Boswell afirma que, já ao longo do século XIII, a sodomia havia se convertido num “pecado
reservado”, e de sua absolvição ficava encarregado o papa ou um bispo delegado. BOSWELL, John.
Cristianismo, tolerancia social y homosexualidad. Los gays en Europa occidental desde el comienzo
de la Era Cristiana hasta el siglo XIV. Tradução de Marco Aurelio Galmarini. Barcelona: Muchnik,
1998, p. 313.
secular.
O Estado português também atentou para a questão, estipulando, nas Ordenações
régias, as penas a serem dadas aos infratores. Ao intentar levar a cabo a homogeneização
de comportamentos e de crenças, criou, no século XVI, o Tribunal do Santo Ofício, esfera
responsável pela manutenção da ortodoxia moral e religiosa dos súditos. A influência das
proposições tridentinas, que lembraram as afirmações do apóstolo Paulo, que assinalou a
exclusão de efeminados e sodomitas do reino de Deus,5 atingiu a Inquisição, que não se voltou
apenas contra os erros de fé, tendo recebido a incumbência de julgar certos desvios morais,
isto é, pecados/crimes que, até então, estavam sob jurisdição civil e eclesiástica, dentre eles, o
chamado pecado nefando.
A despeito de toda a legislação existente contra a prática da sodomia, vários clérigos e
leigos cometeram o delito. Ainda que houvesse uma moral especial para os eclesiásticos, que
deveriam agir como espelhos perante os fiéis, esses homens da Igreja ousaram transgredir as
regras a eles impostas, e se entregaram ao pecado de Sodoma. Embora a falta fosse vista com
ojeriza também pela sociedade cristã, que, muitas vezes, agiu de maneira intolerante contra
os transgressores, ela também foi capaz de manter laços de amizade e de solidariedade com os
sodomitas da Igreja e seus parceiros, questão que demonstra toda uma complexidade na tensa
teia de relações sociais existentes na Colônia nos tempos inquisitoriais.
Este artigo, fundamentado na documentação do Santo Ofício de Lisboa, analisa a
intolerância das instituições portuguesas, a saber, a Igreja, o Estado e a Inquisição, com relação
aos eclesiásticos sodomitas e seus parceiros. Procura, ainda, observar atitudes indulgentes e
intolerantes da sociedade colonial diante desses homens adeptos do pecado que não podia
sequer ser mencionado.

A luxúria e a demonização dos prazeres da carne na teologia católica

O Ocidente, na Época Moderna, foi atingido por um intenso empenho de normatização de


costumes e de comportamentos, em que uma maior inquietação com o decoro corporal se
manifestou, e os “sistemas de valor religioso, moral e social da cultura europeia tradicional”
destinaram ao corpo uma posição subordinada à mente.6 Uma variedade de manuais, tanto
religiosos quanto civis – e até estes estavam impregnados de valores religiosos –, ditou regras
sobre o comportamento adequado do indivíduo com relação ao seu corpo, questão que, na
Europa quinhentista, produziu “grandes estoques sobre a submissão e a obediência do corpo,
e sobre o cultivo das boas maneiras, da decência e do decoro”.7
Um grande número de regras moralizadoras, que pregavam o pudor e o decoro, buscando
o domínio e a autorregulação no manuseio e nos cuidados com o corpo, foi incansavelmente
definido. A associação entre educação e controle corporal buscava defender tanto uma melhor
ordenação social quanto uma ordenação moral-religiosa, o que dá razão à Foucault, quando
disse que “o discurso da sexualidade não se aplicou inicialmente ao sexo, mas ao corpo, aos
órgãos sexuais, aos prazeres [...], às relações interindividuais”.8
5 Concílio Ecumênico de Trento. Sessão VI, de 13 de janeiro de 1547. Decreto sobre a Justificação.
Capítulo 15, p. 10-11. Disponível em: http://www.montfort.org.br. Acesso em 1o fev. 2009.
6 PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história. Novas perspectivas.
São Paulo: Unesp, 1992. p. 310.
7 Ibidem, p. 302.
8 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993, p. 259. Ainda que o termo
sexualidade tenha nascido somente no início do século XIX, cremos que seria impossível não
mencioná-lo ao caracterizar a condição daquilo que é sexual noutros períodos anteriores. Como
assinalou Foucault, o termo marcou algo diferente, um remanejamento de vocabulário, mas,
obviamente, não marcou “a brusca emergência daquilo a que se refere”. Idem, História da sexualidade
Mesmo com fins procriativos, o sexo foi visto como um ato pecaminoso. As demais
práticas sexuais, mesmo dentro do casamento, caíam no domínio da luxúria, sendo classificadas
como fornicação. Tanto os penitentes medievais quanto os manuais de confissão da Época
Moderna deram especial atenção às faltas de natureza sexual, inserindo-as nas considerações
sobre o 6º (não fornicarás9) e o 9º (não cobiçarás a mulher do próximo10) mandamentos da
Lei Divina, bem como no pecado da luxúria. Segundo Lana Lage Lima,11 baseada em Le Goff,
essa classificação corresponde às noções básicas destacadas pelo historiador francês para a
construção de uma perspectiva unificada dos pecados da carne.
Em Portugal, o Tratado de Confisson, obra anônima publicada em Chaves, em 1489,
deu especial atenção aos vícios da carne, agrupados sob a designação da luxúria, e estabeleceu
as respectivas penas para os delitos, constituídas especialmente por jejuns. As praticantes da
sodomia feminina, caso utilizassem algum instrumento penetrante, deveriam passar sete
quaresmas de jejum. A pena recrudesce no caso dos homens: vinte e uma quaresmas sem
alimentos. Para a prática da masturbação, sete quaresmas.12
No século XVI, Martim Azpilcueta Navarro defendia que aqueles que se entregavam
às variações de posição durante a cópula eram piores do que os animais, visto que estes
tinham no coito seu modo natural. Práticas sexuais que objetivassem maior deleite, incitando
a sensualidade e o erotismo, eram condenadas, muito embora fossem menos rigorosamente
punidas do que as que buscavam evitar a procriação. No Manual de confessores e penitentes
(1552), o canonista situava a sodomia masculina e feminina, as relações anais heterossexuais,
as medidas contraceptivas, a molície ou masturbação, e a bestialidade na categoria dos pecados
contra naturam13.
Quase dois séculos mais tarde, o padre jesuíta Alexandre Perier, missionário da
Província do Brasil, em sua obra Desengano de Pecadores, de 1724, equiparava o luxurioso à
besta insaciável, “que quanto mais come, tanto mais se mostra faminta”.14 O religioso também
assinalou os quatro diferentes graus das penalidades a eles impostas no inferno:
[...] a primeira é uma escuridão, como uma tempestade noturna, em que todos gritam,
e blasfemam, sem verem, ou saberem outra coisa, se não, que para sempre serão atormentados
[...]. A segunda é uma desordem perpétua, é uma confusão horrorosa [...]. A terceira é um
cativeiro cruelíssimo, não só do corpo, mas da alma, até perderem o seu livre alvedrio [...].
A quarta é o remorso da consciência mais terrível que o mesmo Inferno, pois é um bicho
intrínseco, que nunca dorme, e sempre rói.15

– o uso dos prazeres. Rio de Janeiro/São Paulo: Graal, 2006, p. 9.


9 ANDERSON, Ana Flora; GORGULHO, Gilberto da Silva; STORNIOLO, Ivo (coord.). A Bíblia de
Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1973. Nela, assinala-se o 6º mandamento como “Não cometerás
adultério” (Êxodo, 20:14).
10 É importante mencionar que o 9º mandamento (Êxodo, 20:17) não se referia somente à cobiça da
mulher do próximo, mas à cobiça de maneira geral: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não
cobiçarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento,
nem coisa alguma que pertença a teu próximo”. ANDERSON, GORGULHO E STORNIOLO
(coord.). A Bíblia..., op. cit., p. 135.
11 LIMA, Lana Lage da Gama. A confissão pelo avesso: o crime de solicitação no Brasil Colonial. 1990.
Tese (Doutorado em História), Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo.
1990.
12 Ibidem, p. 169-170.
13 Ibidem, p. 170, 174
14 PERIER, Alexandre. Desengano de pecadores necessário a todo gênero de pessoas, utilíssimo aos
missionários, e aos pregadores desenganados, que só desejam a salvação das almas. Roma: Na Officina
de Antonio Roffis na via do Seminario Romano, MDCCXXIV. p. 241-242.
15 Ibidem, p. 242.
Imagem 1

Fonte: PERIER, Alexandre. Desengano de pecadores necessário a todo gênero de pessoas,


utilíssimo aos missionários, e aos pregadores desenganados, que só desejam a salvação das almas.
Roma: Na Officina de Antonio Roffis na via do Seminario Romano, MDCCXXIV.

Para tais pecadores, praticantes de uma falta gravíssima, eram destinadas as mais terríveis
penas, para sacrifício não apenas do corpo, mas também da alma, e viveriam numa eterna
atribulação no inferno. O livro de Perier,16 obra composta de discursos morais, assinalava
ainda que, de todos os sentidos, o mais pernicioso e perigoso para a salvação da alma era o
tato. Equiparado a um capitão-general, o toque mais facilmente fazia prevaricar uma alma e
precipitá-la no inferno, o que vinha ao encontro do esforço de normatização da época, que
prezava não apenas o distanciamento dos corpos, adotando severas medidas para proibir o
contato físico, em consonância com uma atmosfera que buscava uma disciplinarização das
almas por meio do domínio do corpo.

Imagem 2

16 Ibidem, p. 133.
Fonte: PERIER, Alexandre. Desengano de pecadores necessário a todo gênero de pessoas,
utilíssimo aos missionários, e aos pregadores desenganados, que só desejam a salvação das almas.
Roma: Na Officina de Antonio Roffis na via do Seminario Romano, MDCCXXIV.

A sodomia em face das instituições portuguesas modernas

A Igreja considerou a sodomia uma das mais importantes expressões da luxúria, causa de
inquietação e de intolerância, posto que foi vista como uma transgressão capaz de atrair
perigosos castigos divinos. Por sua prática, as cidades de Sodoma e de Gomorra foram
destruídas por Deus, conforme crê o cristianismo, naquilo que Boswell17 considerou uma
interpretação distorcida da tradição judaica.
Em Portugal, as Constituições do Arcebispado de Braga, de 1697, não só afirmaram que
era um crime que violava a Lei Divina e também a própria natureza, devendo ser, em todo o
tempo, castigada com a pena de morte, como especificaram as penas a que eclesiásticos e leigos
estavam sujeitos, caso fossem convencidos no delito, devendo ambos serem entregues à justiça
secular.18 Anos mais tarde, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, no
Título XVI, ao tratar dos delitos da carne, foram claras quanto à forma de se proceder contra
os sodomitas, que deveriam ser remetidos ao Santo Ofício, juntamente com seus sumários de
testemunhas.19
Para Boswell, 20 grande número de historiadores assinala que o marco da intolerância
contra as diferentes minorias, entre elas os sodomitas, se deu a partir dos séculos XIII e XIV,
quando tais atos deixaram de ser consentidos na maior parte da Europa, e passaram a merecer
a pena capital em quase todos os códigos legislativos da época. Até então, uma infinidade de
comportamentos e uma variedade de crenças eram muito bem aceitas e toleradas pela sociedade
da Alta Idade Média. A questão foi também sublinhada por Richards, que, embora tenha
diferente perspectiva, visto que assinala que o cristianismo sempre foi “fundamentalmente
hostil à homossexualidade”, ressalta o deslocamento da tolerância para a intolerância na Época
Medieval, comparando o recrudescimento das penalidades: “no período inicial da Idade
Média, a punição era a penitência; no período posterior, a fogueira”.21
17 A etimologia da palavra sodomia está ligada ao episódio bíblico da destruição de Sodoma por Deus,
narrado no livro Gênesis, no Antigo Testamento. No entanto, para Boswell, a possível investida dos
homens da cidade contra os anjos, hóspedes de Lot, não tem uma conotação homossexual, envolve
apenas traços de inospitalidade. BOSWELL, John. Cristianismo..., op. cit., p. 117-119. Cf. VAINFAS,
Ronaldo. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo: Ática, 1986, op. cit., p. 64-
65. Contudo, vale notar a passagem bíblica (Gênesis 19:4-8), quando a narração diz que todos os
homens de Sodoma, tanto os moços quanto os velhos, todo o povo sem exceção, chamaram por Lot
e lhe disseram: “Onde estão os homens que vieram para tua casa esta noite? Traze-os para que deles
abusemos”. Ao que Lot retrucou: “tenho duas filhas que ainda são virgens; eu vo-las trarei: fazei-lhes
o que bem vos parecer, mas a estes homens, nada façais, porque entraram sob a sombra de meu teto”.
ANDERSON, GORGULHO E STORNIOLO (coord.). A Bíblia..., op. cit., p. 55 (grifos meus).
18 Constituições do Arcebispado de Braga, 1697, apud AGUIAR, Asdrúbal António de. Crimes e delitos
sexuais em portugal na época das ordenações. (Sexualidade anormal). (Contribuições para a
história da medicina legal em Portugal). Arquivo de Medicina Legal. Lisboa: Instituto de Medicina
Legal. Separata dos números 1 e 2 do v. III (março e junho de 1930), p. 12-13.
19 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo illustríssimo, e reverendíssimo
senhor d. Sebastião Monteiro da Vide, 1707. Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de
Jesus, título XVI, MDCCXX.
20 BOSWELL, John. Cristianismo..., op. cit., p. 289-290; 312.
21 RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação. As minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1993. p. 152.
Em Portugal,22 a penalidade máxima foi confirmada pelas leis posteriores, quando
houve melhor sistematização e recrudescimento das regras penais. As Ordenações manuelinas
(1514/1521) mantiveram a fogueira para os transgressores, condenaram seus filhos e
descendentes à infâmia, proibindo-lhes a ocupação de cargos públicos, e incitaram os súditos
à delação. Equipararam o crime de sodomia ao de lesa-majestade, ou seja, quem cometesse um
ato sodomítico sofreria as mesmas sanções de quem traísse a pessoa do rei ou o seu real estado,
tendo seus bens confiscados.23 As regras valiam também para a sodomia feminina, que, a
partir de então, passou a configurar-se como um crime julgado pelas ordenações régias.24
As Ordenações filipinas (1603) mantiveram o estabelecido no código legislativo anterior,
e apresentaram inovações. O discurso persecutório às práticas homoeróticas recrudesceu,
e é notável a introdução da tortura no título referente à sodomia. A molície entre pessoas
do mesmo sexo, que não constava nas duas primeiras ordenações, passou a ser punida
gravemente com a pena do degredo para as galés “e outras penas extraordinárias, segundo o
modo e perseverança do pecado”.25
Duas testemunhas de diferentes atos de molície eram requeridas para que o delito fosse
provado, e o legislador se preocupou com a identidade das testemunhas, que teriam ou não
seus nomes revelados segundo o arbítrio do julgador. Até então, não havia preocupação quanto
às carícias homoeróticas por parte da legislação régia. As Ordenações afonsinas observaram
apenas os atos sodomíticos em si, e as Ordenações manuelinas incluíram as mulheres, a
bestialidade (praticada por ambos), além do uso de roupas de homens por mulheres e vice-
versa. Nos Códigos filipinos, ainda que os tocamentos desonestos não fossem o bastante para
comprovar o delito, passaram a ser gravemente punidos com o degredo para as galés ou outras
penas, dependendo da contumácia e pertinácia do indivíduo.
As três Ordenações não foram os únicos códigos legislativos portugueses que censuraram
e penalizaram sodomitas e praticantes da molície.26 As chamadas Leis extravagantes também
tiveram o mesmo objetivo. Em 9 de março de 1571, uma delas, promulgada por d. Sebastião,
condenou os praticantes de molície às galés e a outras penas extraordinárias, segundo a
22 Já no século XV, as Ordenações afonsinas (1476/1477) seguiram a tradição que associava pecados e
castigos divinos. Ao assinalarem que, pela prática da sodomia, Deus enviara o dilúvio sobre a Terra,
reformando o mundo, e que os Templários haviam sido destruídos, condenaram seus adeptos à
fogueira para que nada restasse de suas memórias. Ordenações Afonsinas. Reprodução fac-símile da
edição feita na Real Imprensa da Universidade de Coimbra, no ano de 1792. Livro V, Título XVII, p.
53-54.
23 Ordenações Manuelinas. Lisboa: Reprodução fac-símile da edição feita na Real Imprensa da
Universidade de Coimbra, no ano de 1797. Livro V, Título XII, p. 47.
24 Aguiar nos informa que a primeira lei secular sobre a sodomia feminina apareceu na Determinação
Régia de D. Manuel, de 20 de dezembro de 1499, em resposta às dúvidas quanto às penas prescritas
nas Ordenações e sua aplicação nesses casos. Desse modo, “um conselho de letrados que presentes
erãam determinou que houvesse a mesma pena que haveria o homem que tal pecado com outro
macho cometesse segundo forma de sua ordenação. E isto se entende assim naquela que for como
homem como naquela que consente como mulher”. AGUIAR, Asdrúbal António. Crimes..., op. cit.,
p. 15.
25 Ordenações Filipinas. Livro V, Título XIII. Disponível em: http://www.ci.uc.pt/ihti/ proj/filipinas/
ordenacoes.htm. Acesso em: 1o de fev. de 2009.
26 Ancorada em Arlindo Camillo Monteiro, Bellini declarou que a obra de Gama Barros, História da
administração em Portugal nos séculos XII a XV, se referiu ao pecado nefando como um dos quatorze
crimes graves, cujos transgressores, até a primeira metade do século XV, eram impedidos de ter
asilo nas igrejas. Aos sodomitas, a partir de 1436, não era permitido desfrutar de imunidades nos
chamados coutos de homiziados, isto é, nos locais onde criminosos eram asilados sem que a justiça
régia – de Portugal, do Algarve e de Ceuta – pudesse incidir sobre eles. BELLINI, Lígia. Mulher,
Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1987, op. cit., p. 77.
contumácia no pecado.27 A lei foi, em 1606, ratificada pelo rei Felipe II.28
Crime de foro misto, a sodomia, que se encontrava sob as alçadas eclesiástica e civil,
passou à jurisdição inquisitorial após o arcebispo de Lisboa, d. Fernando de Meneses Coutinho
e Vasconcelos, em 1o de setembro de 1552, expedir uma comissão aos inquisidores lisboetas,
conferindo-lhes poder de atuação contra os transgressores. Sabendo que em Lisboa havia
casa ou casas e pessoas envolvidas com o pecado, d. Fernando atribuiu poderes ao senhor d.
Rodrigo Pereira e ao senhor Pedro Álvares de Paredes para que, juntos ou individualmente,
procedessem contra os sodomitas.
Além do Alvará régio expedido em 1553,29 confirmado em 30 de maio de 1560, que dava
inteira jurisdição aos inquisidores para atuarem contra os sodomitas, agindo em consonância
com as disposições presentes nas Ordenações régias, outros também foram publicados. Vale a
pena ressaltar ainda a Comissão do cardeal infante d. Henrique, endereçada aos inquisidores
de Lisboa para que conhecessem do crime nefando e contra natura, em 24 de maio de 1555.30
A despeito de toda uma série de documentos régios e papais, que permitiam a atuação
do Santo Ofício contra os sodomitas, o primeiro regimento inquisitorial a tratar da questão
foi o de 1613, que, além de afirmar a jurisdição sobre leigos e clérigos, condenava os réus às
penalidades definidas pelos inquisidores e às que constavam nas Ordenações do Reino, até serem
relaxados à justiça secular. Entretanto, o regimento de 164031 foi muito mais sistematizado
e dedicou maior espaço ao assunto, demonstrando o agravamento da intolerância perante as
práticas sodomíticas, ainda que o alvo principal da Inquisição fosse o sodomita inveterado,
incorrigível, devasso, considerado com poucas possibilidades de emenda. Ou seja, a instituição
“tinha como alvo não qualquer praticante eventual desses atos e relações, senão os contumazes
e escandalosos, [...], aqueles que em sua conduta pública ostentavam a preferência sexual
proibida, desafiando os valores da comunidade e as ameaças do Santo Ofício”.32 Daí que
27 Cf. SILVA, José Viríssimo Alvares da. Introdução ao Novo Código, ou dissertação crítica sobre a
principal causa da obscuridade do nosso Código Autêntico. Lisboa: Regia Officina Typographica,
1780. p. 176-177.
28 MOTT, Luiz. Justitia et misericordia: a Inquisição portuguesa e a repressão ao nefando pecado
de sodomia. In: CARNEIRO, M. Luiza Tucci; NOVINSKY, Anita (org.). Inquisição: ensaios sobre
mentalidade, heresias e arte. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1992, p. 706.
29 PEREIRA, Isaías da Rosa. Documentos para a História da Inquisição em Portugal (século XVI).
Lisboa: Cáritas Portuguesa, 1987, v. 1, p. 47. Isabel Braga afirma que essa permissão de d. João III
quanto à atuação persecutória da Inquisição aos sodomitas ainda não tinha o aval do papa, o que só
teria acontecido na década de 1570, quando a autorização papal abrangia não apenas os membros
das Ordens Militares, como também os do clero secular. BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond.
Os Estrangeiros e a Inquisição Portuguesa – séculos XVI e XVII. Lisboa: Hugin, 2002, p. 329. No
entanto, um documento redigido em 30 de maio de 1560 não só confirmava o Alvará régio de 10 de
janeiro de 1553, como autorizava os inquisidores a procederem contra os que tivessem hábito das
Ordens de Cristo, Santiago e Avis.PEREIRA, Isaías da Rosa. Documentos, op. cit., p. 48-49.
30 Ibidem, p. 29.
31 O último regimento inquisitorial, de 1774, de autoria do cardeal da Cunha, confirmou as penalidades
mais enérgicas aos sodomitas incorrigíveis e devassos. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos
Reinos de Portugal – 1613, 1640 e 1774. In: ASSUNÇÃO, Paulo de; FRANCO, José Eduardo. As
metamorfoses de um polvo. Religião e política nos regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos
XVI – XIX). Lisboa: Prefácio, 2004. O projeto de um novo regimento, de autoria de Pascoal José
de Melo, que não chegou a entrar em vigor, foi claro: a Inquisição – que “não [conhecia] deste
crime pela sua instituição, mas por leis posteriores que o autorizaram” – só se preocuparia com
sodomitas públicos e escandalosos. A pena capital foi abolida, e aos sodomitas eram destinadas as
galés (de cinco até dez anos), “com hábito particular que os distinga dos outros”. Ibidem, p. 515. Caso
houvesse juízo secular conhecido no crime, o Santo Ofício não deveria intrometer-se no caso.
32 VAINFAS, Ronaldo. Homoerotismo feminino e o Santo Oficio. In: DEL PRIORE, Mary. (org.).
havia uma tolerância com os menores de 25 anos, os confitentes espontâneos, os sodomitas
esporádicos, e os que haviam sido forçados a cometer tal delito.
Assim, ao compararmos as medidas previstas nas Ordenações e as disposições
inquisitoriais, fica a impressão de que a atmosfera disciplinadora régia pretendia impor-se de
forma mais rígida do que a prática inquisitorial. Num contexto em que a crença era a de que
o monarca deveria reunir virtudes e qualidades, entre elas a castidade, a justiça, a manutenção
e a defesa da lei – “quando governa a lei, governa Deus”33 –, os códigos legislativos do Reino
português procuraram detalhadamente cercear a vida sexual dos súditos, atentando não
apenas para os atos consumados de sodomia, mas também para a molície, ou os tocamentos
desonestos, para todo um conjunto de práticas sensuais que poderiam ser preliminares de atos
mais graves.
Desse modo, a campanha moralizadora que se abateu sobre o Ocidente, caracterizada
por uma sucessão de medidas normativas prescritas tanto pela Igreja quanto pelo Estado,
procurou civilizar e, ao mesmo tempo, cercear o indivíduo e a sua sexualidade. Assim,
preocupou-se com o toque, demonizou os prazeres, revestindo-os de pecado, além de restringir
o sexo ao espaço conjugal e à procriação. E o ordenamento sociopolítico português do Antigo
Regime, com características fundamentalmente religiosas, até o fim do século XVIII, teve suas
bases eminentemente católicas. Desse modo, “o poder, naquilo que tinha de mais essencial,
apresentava uma fortíssima significação cristã”.34 Tal contexto nos permite perceber que o
ordenamento sociocultural também estava impregnado de valores cristãos, refletindo que
nada era completamente desprovido de um sentido religioso.

Os sodomitas perante a sociedade colonial

Ainda que não se refira aos sodomitas, o antropólogo Fredrik Barth fez referência às minorias
e aos párias, que, por não respeitarem certos “tabus básicos”, se constituem como grupos
marginalizados e excluídos pela sociedade majoritária. Esses grupos periféricos, embora não
formem um grupo étnico, não são bem vistos pela sociedade abrangente porque apresentam
“comportamentos ou características que são claramente condenados”.35
Conforme já assinalado, a sodomia foi vista como um dos mais horrorosos pecados, um
dos que mais causava ojeriza, cuja prática se acreditava que fosse capaz de promover as mais
terríveis tragédias, comprometendo toda a comunidade. Assim, a sociedade colonial rejeitou
alguns sodomitas da Igreja e seus amantes, atuando de diferentes maneiras, que iam desde a
repugnância até as manifestações de violência explícita, mas também agiu de maneira pacífica
e tolerante.
Os eclesiásticos sodomitas violaram não só os códigos de conduta estabelecidos pela
sociedade majoritária, mas também infringiram a ética moral/religiosa a eles imposta, ficando
expostos aos critérios de avaliação e de julgamento de seus comportamentos por parte da
sociedade mais ampla. Lana Lage Lima36, baseada nas pesquisas de Delumeau (1973), afirmou
que os fiéis se preocupavam mais com o não cumprimento de suas atividades eclesiásticas do
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Unesp, 1997. p. 120.
33 BARROS, João de, apud Magalhães, Joaquim Romero. As estruturas políticas de unificação. In:
MATTOSO, José (org.). História de Portugal. No alvorecer da Modernidade. Lisboa: Editorial
Estampa, 1993. p. 61.
34 CARDIM, Pedro. Religião e ordem social. Em torno dos fundamentos católicos do sistema político
do Antigo Regime. Revista de História das Ideias, Coimbra, 2001, p. 135.
35 BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In: LASK, Tomke (org.). O guru, o iniciador e
outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 56- 57.
36 LIMA, Lana Lage da Gama. Sexo e sacerdócio na Igreja Católica. In: ______. et al. (org.). História &
religião. Rio de Janeiro: Mauad, 2002, p. 279-280.
que com a quebra do celibato, desde que os sacerdotes não se excedessem e se mantivessem
dentro dos padrões morais estabelecidos aos leigos. Perspectiva compartilhada por Torres-
Londoño, , para quem a compreensão da sociedade com relação aos sacerdotes transgressores
“desaparecia quando o padre faltava a seus compromissos, negando-se a celebrar os sacramentos
e cumprir suas funções, ou quando o vínculo do padre com a mulher ou as mulheres se tornava
incômodo para as pessoas”. 37
Entretanto, os autores se referiram às relações de padres com mulheres. E quais foram
as atitudes da sociedade colonial perante os homens da Igreja, cujas ações deveriam servir
de exemplo, mas que se envolveram com indivíduos do mesmo sexo? Será que foram vistos
apenas como praticantes “do mais odioso e imundo pecado”, sendo completamente excluídos?
Ou teriam conseguido construir algum tipo de vínculo afetivo com os paroquianos? Por
intermédio dos fragmentos encontrados em algumas denúncias e confissões, percebemos
que, malgrado os diferentes tipos de discriminação sofrida pelos protagonistas do nefando
– manifestações de indignação, violência, repugnância, entre outras –, pelo menos um
eclesiástico sodomita parece ter protagonizado certos laços de amizade e de afetividade na
Colônia.
Foi o caso do padre Frutuoso Álvares, que, em 1591, se viu face a face com o inquisidor
para confessar seus envolvimentos homoeróticos e sodomíticos. Seu contexto denota que, não
obstante seu comportamento nada exemplar, foi tratado amigavelmente. Ainda que se tenha
relacionado com mais de quarenta mancebos, que fosse fama pública na Bahia quinhentista
que viera degredado por sua “vida nefanda”, e tenha sido denunciado à justiça eclesiástica
daquele bispado por algumas testemunhas, Álvares, que lá estava havia quinze anos, não
parece ter causado grande escândalo.
Nas entrelinhas da confissão de seu parceiro Jerônimo Parada, irmão do cônego Manoel
Viegas, percebemos que, apesar de sua vida transgressora e errante – foi degredado para as
galés e, por não cumprir a penitência, foi para Cabo Verde, de onde foi preso para Lisboa e,
de lá, condenado ao degredo perpétuo no Brasil –, o sacerdote não parecia ser inimigo nem
mesmo dos membros da Igreja, como o próprio cônego.
Ao revelar ao inquisidor seus contatos homoeróticos, Parada deixou entrever a amizade
que o padre tinha com as pessoas de sua família, como quando, na Páscoa, foi à casa de
Álvares “por ter amizade com seu pai e com seu irmão”, ou ainda quando o padre se abrigava
na casa de sua avó: “muitos dias aconteceu que veio o dito Frutuosso Álvares a esta cidade esse
agasalhou em casa da avó dele confessante”. É impossível que os seus familiares não soubessem
das atitudes do sacerdote, cuja fama de sodomita circulava em Salvador, visto que o próprio
Parada admitiu que “ouviu que o dito Frutuosso Álvares era amigo de fazer estas torpezas com
moços e já por isso viera degradado do Reino”.38 Contudo, ele parecia ser uma pessoa muito
próxima de sua família, e acredita-se que suas transgressões não causavam tanta estranheza ou
um sentimento de exclusão, demonstrando uma significativa tolerância.
Mas nem tudo decorreu de maneira pacífica e amigável. A sociedade também agiu
de maneira negativa perante os indivíduos desse grupo periférico, marginalizando-os e
estigmatizando-os. Um dos casos mais ricos e relevantes, no que tange à conflituosa relação
entre a sociedade e o sodomita, é o do clérigo de epístola e capelão do terço da Bahia, Amador
Amado Antunes, no século XVII. Apontado pelas pessoas que “em o vendo nas ruas de
Salvador, muitos diziam: lá vai o somítigo [mesmo que sodomita], e chegando um estranho
na cidade logo lhe diziam que tivesse cuidado com o padre”, Antunes foi acusado de acometer
seu criado, que deixou de servi-lo. O denunciante de tal comportamento foi Rui Gomes Bravo,

37 TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família. Concubinato, Igreja e escândalo na Colônia. São


Paulo: Loyola, 1999. p. 83.
38 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa (IL), Processo (Proc.) 5846.
Doravante: ANTT, IL, Proc.
que andava excomungado por lhe ter “desferido uma cutilada”39, cujo motivo do ato violento
não foi possível saber. Teria Padre Antunes acometido também a Rui Gomes para o nefando?
O clérigo, infamado por manter um relacionamento com um jovem, por muito pouco
não foi lançado ao mar durante a travessia que fez em direção ao reino. Ao acometer “dois
rapazes para o mau fim”, eles gritaram e nada aconteceu, mas um soldado ouviu alguém
declarar: “Este padre é mau”. Antunes também enfrentou a repugnância do capitão Damião
Andrade, que se recusava a lhe dirigir a palavra. Ao ser perguntado pelo próprio Antunes
qual o motivo que o levava a agir dessa maneira, o capitão retrucou: “Não falo com V. Mercê
porque dizem que é somítigo [...]”. Em seguida, o clérigo “se abanou frouxamente como pessoa
[culpada] em alguma coisa”.40
Em 1646, foi denunciado não apenas por sua inveterada prática do “nefando” e por
exercer atos de violência sobre quem se negasse aos seus apetites, mas também por não rezar
o ofício divino e por omitir metade das palavras da missa. Talvez essa fosse, de fato, uma
das situações que mais revoltasse os fiéis, a exemplo – ainda que não se tivesse envolvido
com a sodomia – do vigário de Campo Alegre, no rio Paraíba, citado por Londoño. O padre,
além de não cumprir seus compromissos eclesiásticos, ainda tratava mal os paroquianos,
era negociador de tabernas e andava de hábitos seculares. Não foi perdoado pelos fiéis:
“desagregado de sua comunidade pelo não cumprimento de suas funções de pároco, o padre
João Antunes Cordeiro viu seu concubinato vir à tona. Sem condições de defesa, fugiu”.41
Natural de Portugal e morador na Bahia, padre Antônio Guerra, expulso da Ordem dos
Carmelitas Descalços, e denunciado no século XVII por sua fama de sodomita, tanto perpetrou
atos violentos contra seus amantes quanto foi atingido por eles. Durante uma viagem da Bahia
para Portugal, “acometera a uns marinheiros para o pecado nefando e, por isto, ataram os pés
e mãos do clérigo para o botar no mar, acudindo-lhe uns homens honrados que o salvaram”.42
Padre Antonio de Souza, que fora comparado ao diabo pelo negro Domingos, com quem
tentou cometer atos sodomíticos, sentiu a repugnância de d. Pedro César, ex-governador de
Angola e dono do escravo, que, revoltado com sua atitude, proibiu a entrada do sacerdote em
sua casa.43
A grande amizade entre pessoas do mesmo sexo era um elemento que chamava a
atenção da sociedade, podendo suscitar a intolerância e levar à delação. Foi o que aconteceu
com o ermitão Antonio Oliveira Ramos, denunciado pela escrava Juliana, que destacou a
“muita amizade” que ele tinha com o soldado Francisco de Brito, ou ainda padre Antonio
Guerra, que, segundo seus denunciantes, era “muito amigo de rapazes”. Relações escandalosas,
públicas, notórias e com um caráter permanente, que infamavam os sodomitas, como o
amancebamento de padre José Pinto de Freitas com o familiar do Santo Ofício, que, mais
tarde, recebeu o hábito dos carmelitas descalços, Domingos Soares da França, também eram
censuradas. Ainda que não tenha sido possível captar as percepções da família quanto aos
membros sodomitas, é interessante destacar a atitude do pai do familiar, que recebeu uma
carta informando-o de sua má fama pelo concubinato que mantinha com o padre Freitas. A
partir daí, o embarcou imediatamente para Lisboa, a fim de “evitar piores danos”.44
Nesse contexto, não nos poderíamos esquecer da sátira moralizante do poeta seiscentista
Gregório de Matos, o Boca do Inferno, que, por meio de seus versinhos debochados, não
poupou clérigos e frades, a quem chamava de “sodomitas” e “fodinchões.45 Numa de suas
39 Ibidem.
40 MOTT, Luiz. Homossexuais da Bahia. Dicionário biográfico (séculos XVI-XIX). Salvador: Grupo
Gay da Bahia, 1999, p. 53.
41 TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família..., op. cit., p. 83.
42 MOTT, Luiz. Homossexuais da Bahia..., op. cit., p. 54.
43 Ibidem, p. 56.
44 Ibidem, p. 65, 79.
45 MOTT, Luiz. Desventuras de um Português no Brasil Seiscentista. Mensagem recebida por
sátiras, Matos compara a Bahia às cidades de Sodoma e Gomorra, ambas destruídas por Deus
no episódio bíblico, exatamente pela prática do “pecado nefando”:
Tão queimada e destruída
Te vejas, torpe cidade,
como Sodoma e Gomorra
duas cidades infames.
Que eu zombo de teus vizinhos etc.46

E, num poema dedicado a certo frade que, querendo sair de Salvador, furtou um cabrito,
o poeta satiriza a sua “conversão”: de “fornicário” se fez ladrão, e de lascivo amante de mulheres,
tornou-se um grande “fodinchão”:
De fornicário em ladrão
se converteu Frei Foderibus
o lascivo em mulieribus,
o mui alto fodinchão:
foi o caso, que um verão
tratando o Frade maldito
de ir da cidade ao distrito,
querendo a cabra levar,
para mais a assegurar,
embarcou logo o cabrito.47

De acordo com Hansen, Gregório foi visto por uns como um indivíduo liberal-libertino-
libertário,48 mas, em sua perspectiva, sua sátira possui uma conotação moralista, estando,
portanto, em consonância com os ditames da política católica do império português, não se
desvencilhando das hierarquias sociais tão prezadas pelo Antigo Regime, que ainda apreciava
as noções de ordem e de bem comum. Assim, mesmo utilizando-se, muitas vezes, de um
vocabulário chulo, a sátira de Gregório de Matos não está contra a moral, mas, sim, de
acordo com o padrão de racionalidade de corte. Aplaude as ações intolerantes do Tribunal
da Inquisição em sua busca por hereges e desviantes morais, ratifica e defende o ideal da
masculinidade, além de ser absolutamente contrária aos escândalos dos conventos, onde
floresceram inúmeros amores homoeróticos.
Os parceiros dos sodomitas da Igreja também passaram por situações que, atualmente,
designaríamos como preconceituosas. O alcaide Luiz Martins de Siqueira,49 que teve pelo
menos três frades residentes em conventos de Lisboa como amantes no século XVII, teria
vindo degredado para a Bahia, e foi muito mal visto pela fama de ter sido processado pela
Inquisição por sodomia. A tensão foi tamanha a ponto de retornar a Lisboa para buscar a
mulher, com quem voltou à Bahia, acompanhado do filho. Fez tudo em busca de destruir a
imagem negativa que o cercava pela prática do nefando.
O cirurgião Lucas da Costa Pereira também sentiu as manifestações de reprovação por
veronicagomes_07@yahoo.com.br em 11 de julho de 2007.
46 AMADO, James (org.). Obras completas de Gregório de Matos e Guerra (Crônica do viver baiano
seiscentista). Salvador: Janaína, 1968, v. II, p. 429 e 434.
47 Literatura brasileira. Textos literários em meio eletrônico. Gregório de Matos. Crônica do viver
baiano seiscentista. Disponível em: http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/nossase.html#36.
Acesso em: 19 de janeiro 2009.
48 HANSEN, João Adolfo. Floretes agudos e porretes grossos. Folha de S. Paulo, São Paulo, 20 out. 1996.
Caderno Mais! Também disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/jah01.html.
49 MOTT, Luiz. Homossexuais..., op. cit., p. 83.
parte da população, nesse caso, da região das Minas. Pereira, que viveu na Bahia, foi amante de
alguns eclesiásticos e sodomizou vários cativos em diversas partes por onde andou. Um deles,
o “mulatinho” José, de 14 anos, que teria ficado enfermo segundo uma testemunha, o capitão
Joaquim Caldeira. Mas foram suas tentativas frustradas que deram o que falar. Segundo dois
denunciantes, entre eles um familiar da Inquisição, quando vivia na Freguesia do Rio das
Contas, tentara levar um mulato e um moleque feitor de um clérigo para o mato. As pessoas
se revoltaram e “quiseram dar [nele] naquele lugar”. Sua fama era pública e notória e, por
“quererem Lá espantar pelo tal vício”,50 o cirurgião acabou fugindo.

Considerações finais

A documentação analisada nos permite afirmar que, embora a sodomia fosse considerada
um dos pecados contra a natureza, que “subvertia” a ordem natural das coisas, cuja prática
privada acreditava-se que tivesse consequências públicas, ainda assim, era possível que,
dependendo das circunstâncias atenuantes apresentadas, o Tribunal do Santo Ofício agisse
de maneira tolerante, punindo mais rigorosamente apenas os sodomitas devassos. Afinal, não
nos podemos esquecer que o principal alvo da Inquisição portuguesa foi os cristãos-novos
judaizantes.
Desse modo, quando comparados os números de sodomitas sentenciados pelo Santo
Ofício lusitano e os condenados pelas justiças civis, tanto do México colonial quanto departes
da Europa, percebe-se que o poder cível se mostrou muito mais intolerante perante tais
transgressores.51 Como já sublinhado, o Estado português buscou cercear a vida sexual dos
súditos de maneira bem mais contundente do que propriamente a Inquisição, quando atentou
para um conjunto de práticas sensuais, dentre elas a molície, que não constavam na lista de
transgressões sob jurisdição inquisitorial. Quanto aos protagonistas do nefando, vale destacar
a sentença, de 18 de maio de 1528, de um mouro, queimado pela justiça de Goa muito antes
do tribunal inquisitorial ter sido ali instalado. O réu teve seus bens confiscados e seus filhos
infamados por ter cometido o pecado de Sodoma com seu escravo, que, além de receber
alforria, não recebeu pena alguma, por ser menor e ter sido forçado a cometê-lo.52
A questão perpassa ainda a tolerância e a intolerância inquisitorial perante eclesiásticos
e leigos. Numa perspectiva comparativa, suas punições indicam que, ainda que houvesse uma
distinção entre ambos e os religiosos professos tivessem certos privilégios, as penalidades se
assemelharam. Tanto os sodomitas da Igreja quanto seus parceiros leigos, considerados sem
possibilidade de recuperação, receberam as penas de confisco de bens, degredo e galés, e, pelo
menos oito homens da Igreja foram relaxados à justiça secular.
Quanto à perspectiva da sociedade colonial perante os sodomitas da Igreja, encontramos
atitudes de indulgência, como no caso de padre Frutuoso Álvares. Entretanto, fica claro
que, ainda que fossem eclesiásticos, os fiéis não titubearam em exercer atos de violência e
50 ANTT, IL, Proc. n. 205.
51 Vainfas ressalta que, no México, entre 1652 e 1673, cento e vinte e três sodomitas foram incriminados
pela Real Sala del Crímen, e não pelo tribunal inquisitorial, ali existente desde 1570. O historiador
também sublinhou que, na Genebra calvinista, a justiça civil condenou à morte trinta sodomitas,
entre os sessenta processados pelo Consistório, entre 1555 e 1662. VAINFAS, Ronaldo. Trópico..., op.
cit., p. 291; 304-305.
52 “Sentença que pela justiça de Goa se proferiu contra um mouro condenando-o a morte
natural e queimado...”. Além das informações já fornecidas, vou acrescentar o site onde está a
documentação. Corpo Cronológico, Parte II, maço 148, n. 87. Disponível em: http://ttonline.
dgarq.gov.pt/dserve.exe?dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve.ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=show.
cl&dsqDb=Catalog&dsqPos=3&dsqSearch=%28%28text%29=%27sodomia%27%29. Acesso em 10
de abr. de 2011
de repulsa contra esses homens, a exemplo de padre Antônio Guerra e do clérigo Amador
Amado Antunes. Membros da comunidade quiseram atirá-los ao mar, bem como ansiaram
espancar o cirurgião Lucas da Costa Pereira, amante de clérigos, evidenciando, em ambas
as ocasiões, que, dependendo das circunstâncias, não havia espaço para a tolerância e, ainda
que fossem pastores, mereciam ser julgados por suas atitudes nefandas, recebendo tratamento
semelhante aos de suas ovelhas praticantes do pecado que não podia ser mencionado sem
causar vergonha.
PARTE II
CLERO E INTOLERÂNCIA

Guerra e heresia: Anchieta e os “luteranos” da França Antártica

Luiz Fabiano de Freitas Tavares1

O homem de coração largo é tolerante.


Lao-Tsé

“Movidos de furiosa audácia, usurpam reinos alheios, fundam fortaleza possante, cingida com
armas em altos rochedos. Mais ainda, com coração infeccionado pela heresia e com mente
opressa pelas trevas do erro, se afastam do reto caminho da fé e, assim dizem, procuram
induzir os ignorantes e míseros povos índios a perversos dogmas”.2 Com essas palavras, José
de Anchieta definia os franceses que dominaram a Baía de Guanabara, em estreita cooperação
com os nativos tupinambás, constituindo a empresa colonial conhecida como França Antártica,
entre os anos de 1555 e 1567.
Ao longo desses doze anos, a colônia foi duas vezes arrasada pelos portugueses. O
primeiro ataque, em 1560, desmantelou o estabelecimento francês; mas, em pouco tempo, os
franceses recuperaram seu espaço, o que motivou nova incursão portuguesa e um conflito de
dois anos, entre 1565 e 1567, que levou, finalmente, à definitiva derrota francesa e à fundação
da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, para prevenir novas investidas.3
Em sua breve existência, a França Antártica abrigou gauleses de diversas confissões,
como católicos, huguenotes e moyenneurs. Como pontuam os relatos franceses,4 essa
diversidade religiosa motivou inúmeras controvérsias entre os colonos, o que provocou sérios
1 Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 ANCHIETA, José de. De gestis Mendi de Saa. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1958. v. 2.321-2.331.
Embora a edição seja bilíngue, optamos por utilizar nossas próprias traduções, visto que o tradutor
original, Armando Cardoso, teve maior preocupação com a manutenção da métrica, ao passo que
nos interessa mais o conteúdo. Além disso, o tradutor “cristianiza” certas referências de sabor pagão,
tão caras à cultura renascentista, que preferimos manter fiéis ao original.
3 Sobre o relato geral dos conflitos entre franceses e portugueses e das dissidências internas da França
Antártica, remetemos, entre outros, a Mariz, Vasco e Provençal, Lucien. Villegagnon e a França
Antártica. Rio de Janeiro: Bibliex-Nova Fronteira, 2000; Knauss de Mendonça, Paulo. O Rio de Janeiro
da pacificação. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esporte, Departamento
de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1991; GUEDES, Max Justo (org.).
História naval do Brasil. Rio de Janeiro: Serviço de documentação geral da Marinha, 1975. V. 1, t. 2;
LESTRINGANT, Frank. Le Huguenot et le sauvage. Genebra: Droz, 2004.
4 Especialmente CRESPIN, Jean. Histoire des choses memorables advenues en la terre du Brésil. In:
GAFFAREL, Paul. Le Brésil français au seizième siècle. Paris: Maisonneuve, 1878; THEVET, André.
Cosmographie universelle. Paris: Guillaume Chaudière, 1575; LÉRY, Jean. Histoire d’un Voyage faict
en la terre du Brésil. Paris: Le livre de poche, 1994.
conflitos internos. Ainda com a primeira esquadra francesa, em 1555, vinham colonos de
diversos credos, como o piloto Nicolas Barré, huguenote, ou o cosmógrafo franciscano André
Thévet, que rezaria a primeira missa da colônia. Em março de 1557, chegava uma comitiva
de huguenotes de Genebra, convidados pelo almirante Coligny e selecionados pelo próprio
reformador João Calvino.
A princípio, as relações entre esses grupos foram harmoniosas, mas, em abril de 1557, se
iniciaram sérias desavenças a respeito das diferentes concepções sobre a Eucaristia, o que opôs
principalmente o chefe da colônia, o cavaleiro de Malta Nicolas de Villegagnon, e os membros
da comitiva de Genebra, além de Jean Cointa, estranho personagem a que retornaremos mais
tarde. O mais importante, contudo, é observar que a colônia não era composta exclusivamente
por seguidores da Reforma, sendo católicos muitos de seus habitantes, além de alguns
moyenneurs.5
A experiência da França Antártica deu origem a inúmeros documentos e relatos em
verso e prosa, desde cartas a livros e panfletos, em ambos os campos, português ou francês.
Entre as narrativas nascidas de pena lusitana, encontramos alguns escritos do jesuíta José
de Anchieta, como o fascinante poema latino De gestis Mendi de Saa ou Dos feitos de Mem
de Sá, além dos manuscritos Breve informação do Brasil e História da Companhia de Jesus
no Brasil, que constituem o objeto de estudo do presente trabalho. De fato, a primeira parte
do texto analisa esses documentos e a imagem que apresentam sobre a presença francesa no
Novo Mundo; a segunda parte realiza seu cotejo com outras fontes portuguesas da época,
buscando especificamente contextualizar as informações empregadas por Anchieta em seus
relatos e o modo como as obteve; a última parte propõe a interpretação desses relatos a partir
da noção de linguagem política. Prevenimos que se trata de viagem complicada, que exige
alguns desvios, mas, ao fim, chegaremos a porto seguro.

***

Iniciemos nossa análise pelo poema De gestis Mendi de Saa, longo épico, com 3.054 versos,
inspirado na poesia virgiliana. O texto foi impresso em 1563, na cidade de Coimbra, pelo
tipógrafo régio João Álvares, em tiragem da qual apenas um exemplar conhecido ainda existe,
na Biblioteca de Évora.6 Além desse exemplar impresso, a obra também subsistiu num códice
manuscrito, guardado durante séculos pela família do missionário, em seu solar na Espanha.7
O texto foi certamente elaborado entre 1560, data dos últimos eventos narrados no poema, e
1563, ano de sua impressão.
Como explicita o título, o poema canta as realizações e proezas do governador-geral Mem
de Sá nas terras brasileiras, especialmente seus feitos militares contra indígenas e franceses,
consagrando-o como um “Eneias brasílico”. De fato, a narrativa principia pela chegada do
herói a Salvador, passando a suas gloriosas campanhas contra os “selvagens” do Espírito Santo,
onde heroicamente morre Fernão de Sá; a seguir, passa ao relato do confronto com o chefe
5 Os moyenneurs eram um grupo minoritário então existente na França que preconizava que católicos
e reformados estabelecessem um credo comum a partir do debate, restabelecendo, assim, a concórdia
no reino ver JOUANNA, Arlette (org.). Histoire et dictionnaire des guerres de religion. Paris: Robert
Laffont, 1998. p. 1134-1136.
6 Segundo conjecturas de Hélio Abranches Viotti, o livro teria sido impresso em uma tiragem muito
pequena, apenas para ser distribuído entre os familiares e amigos de Mem de Sá, devido ao pequeno
volume da obra (um in 8º com apenas 49 folhas), hipótese que nos parece um tanto arbitrária, ou até
improvável ver VIOTTI, Hélio Abranches. Anchieta, o apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1966. p.
311.
7 Por grande sorte, o Arquivo Nacional fez cópia em microfilme desse manuscrito em 1938, pois,
poucos anos depois, em 1940, ocorreria um incêndio no solar da família que destruiria o original.
Curupeba e à bem-sucedida instalação de uma política de aldeamentos pelo governador-geral;
por fim, narra as lutas contra os indígenas da região de Ilhéus e a vingança pela morte do bispo
Sardinha, e finalmente atinge seu clímax com a expedição à Guanabara e a vitória sobre os
franceses, que ocupa o último terço do poema, cerca de mil versos.
Principiemos analisando as cinco forças que dinamizam o poema, três delas pertencentes
ao mundo sublunar, e duas, ao universo sobrenatural. Entre as primeiras, encontramos Mem
de Sá e os colonos portugueses, os indígenas insubmissos e os franceses da Guanabara; entre
as últimas, percebemos a atuação de Jesus Cristo e dos demais agentes da Providência, oposta
à ação das forças infernais conduzidas pelo Príncipe das Trevas. Esses cinco elementos se
encontram sobrepostos e divididos em dois campos: de um lado, os portugueses secundados
pelas potências celestiais; de outro, indígenas e franceses, agindo sob influxo das potestades
infernais. Vejamos melhor como essas personagens são caracterizadas e o modo como
interagem na narrativa.
Centro do relato, os portugueses são apresentados de forma heróica: os escassos colonos
lutam bravamente contra os numerosos indígenas que os cercam de maneira ameaçadora, e
atacam com valentia o forte dos franceses, que, na voz do poeta, “erguia soberbamente a cabeça
às estrelas”.8 Em suma, os lusitanos sempre vencem em condições extremamente adversas;
nesse sentido, é interessante observar que são sempre auxiliados pela Providência. De fato, os
portugueses da epopeia agem movidos pelo desejo de expandir a fé, dando papel secundário
ao Império: não cobiçam as riquezas do Oriente, mas levar o nome de Cristo “a todas as gentes,
em cada clima da terra”.9 Mem de Sá condensa essas qualidades em sua figura: é belo, forte, e,
principalmente, tem alma pura; traz o rosto ornado de majestosa barba branca, mas “a fé em
Cristo fervente no íntimo do peito”.10 Deve-se destacar também Fernão de Sá, piedoso filho
do governador-geral, morto em combate contra os indígenas do Espírito Santo. O poema
compara o jovem guerreiro ao próprio Cristo; enquanto um morreu para garantir a salvação
das almas, o outro sacrificou a vida pela segurança dos colonos da capitania.11 Contudo, é
importante destacar que, em certos momentos, o poeta rompe essa imagem; movido pela
garantia da estrutura narrativa, se vê ocasionalmente forçado a apresentar os lusos em papéis
de covardia ou egoísmo; ainda assim, esses episódios são usados pelo autor para engrandecer
as figuras de Fernão ou de seu pai.12
A seu turno, os indígenas são retratados de forma bastante ambígua: por vezes, são
selvagens brutais; por outras, as novas rezes do rebanho católico. Em seu aspecto negativo,
são tratados por miseráveis, soberbos, cruéis, vorazes, ferozes, entre outros termos negativos.
Destaca-se especialmente a prática antropofágica, e os selvagens figuram constantemente
comparados a animais. Mais ainda, “seguiam o horrendo exemplo do regente do Érebo”, gente
“submissa ao jugo do tirano infernal”.13 Por outro lado, os indígenas “pacificados”, reduzidos
a aldeamentos e cristianizados, são representados sob traços positivos: “aprendem o amor a
Deus, curvam-se às leis do Trovejante, bebem a santa doutrina” 14; em especial, abandonam
8 summa superbum Nuper ad astra caput tollebant. ANCHIETA, José de. De gestis..., op. cit., v. 2.928-
2.929.
9 ad omnes [...] gentes, quae climata terrae. Ibidem, v. 1.701-1.716.
10 fides Christi, fervensque sub imo pectore. Ibidem, v. 164-177.
11 Ibidem, v. 580-685; 700-740.
12 Bons exemplos são o abandono de Fernão por seus soldados (Ibidem, v. 555-575) ou os protestos
dos colonos contra a política catequética de Mem de Sá (Ibidem, v. 950-1.025).
13 immanibus atri Regnatorem Erebi, [...] sponte sequens factis; Gens fuit australis, saevi subiecta tyranni
colla iugo. Ibidem, v. 131-145.
14 hic discit amorem femina virque Dei, superique colenda Tonantis iussa, salutaris doctrinae et perbibit
undas. A curiosa identificação do Deus cristão como o “Trovejante” ecoa um costume comum na
poesia renascentista, sobrepondo atributos e epítetos do Júpiter romano à divindade cristã. Ibidem,
v. 1.235-1.270; 1.676-1.700.
os costumes antropofágicos e poligâmicos. Em suma, o índio é visto negativamente enquanto
mantém uma postura ativa e resistente face à ocupação e catequese; convertido aos valores
cristãos pela força ou pelas palavras, torna-se figura passiva, apresentado como mero
receptáculo do modelo de vida instigado pelos missionários.
Ao contrário dos indígenas, os franceses são representados sem ambiguidade: são
figuras de pura malícia. Diferentemente dos portugueses, mais preocupados com a salvação
dos gentios do que com as riquezas, os gauleses são venais: têm apenas interesse no comércio
com os nativos, obtendo “a lenha rubra que tinge vestes, a acre pimenta, variadas aves, animais
que imitam gestos humanos”. 15 Mais ainda, traem os direitos lusitanos, usurpando suas terras,
e poluem a alma do índio com heresias. Mais gravemente, conquistada a fortaleza franca,
não são encontrados objetos devocionais católicos, como cruzes ou imagens de santos; pelo
contrário, abundam livros perversos, de Lutero, Brêncio, Melanchton e, principalmente, de
Calvino, descrito como dragão túmido de veneno, arrotado das profundezas do Tártaro.16
No campo sobrenatural, se opõem as forças de Cristo e Satã. A ação da Providência
irrompe ainda no início da epopeia, quando envia Mem de Sá, “herói do Ártico, que vingasse
os crimes infames e [...] acalmasse as almas ferozes”.17 De fato, o governador-geral é mais
tarde representado impondo leis cristãs aos indígenas, punindo-os quando as desrespeitassem;
segundo o poeta, tal iniciativa levaria júbilo aos anjos no Céu.18 O motivo providencial se
desenvolve ao longo do relato, desdobrando-se em inúmeros episódios que evidenciariam
a intervenção divina a fortalecer e proteger as ações lusitanas: uma baleia ataca as canoas
dos índios em perseguição naval aos portugueses; uma fagulha provoca incêndio no paiol
francês; Deus orienta Mem de Sá em sua estratégia de ataque na Guanabara; um anjo espalha
o medo entre os franceses, provocando sua fuga e capitulação do forte... não faltam exemplos
no poema.19
Mas Lúcifer também possui seus soldados humanos. As terras austrais são seu milenar
domínio, onde os índios vivem na “escura cegueira da idolatria”;20 como já vimos, é o senhor
dos nativos, “infernal tirano da região austral”.21 Liderados por Mem de Sá, os lusitanos
ameaçam o poder infernal, mas, a estes, Satã opõe os franceses, hereges que obram pela
perversão dos indígenas. De fato, o poema salienta mais de uma vez o destino comum aos
inimigos europeus e americanos tombados em combate: suas almas seguem imediatamente
para o inferno, em condenação instantânea.22
Nos superlativos versos, portugueses, indígenas e franceses são tropas de uma guerra
cósmica, em que o equilíbrio sagrado do mundo está em jogo; o universo cindido entre dois
príncipes, Cristo ao norte, Mefisto ao sul, deve ser unido sob a coroa do Senhor celeste. É,
principalmente, uma guerra pela libertação das almas dos indígenas. Essa tensão percorre
todo o poema, e atinge seu ápice na violenta batalha da Guanabara, combate apocalíptico
em que os disparos das armas de fogo se equiparam a convulsivas forças da natureza: “o troar
medonho acompanha o fogo incessante, trovejam os céus e geme o imenso Olimpo, o fragor
horrendo e estridente machuca a terra, muge o mar fremente em feio murmúrio, dir-se-ia que

15 rubra reportant ligna verecundo quae vestimenta colore inficiunt, atque acre piper pictasque volucres,
humanos et quae referunt animalia gestus. Ibidem, v. 2.314-2.331.
16 Hic quocque (quam Stygia nuper ructavit ab unda Tartarus, illuvie foedam, multisque tumentem quae
vomuit quondam colubrorum turba venenis). Ibidem, v. 2.874-2.909.
17 Misit ab Arctois ultorem criminis oris, criminis infandi ultorem [...] feros animos mulcens. Ibidem, v.
150-175.
18 Ibidem, v. 903-1.025.
19 Ibidem, v. 1.545-1.575; 2.380; 2.585-2.588; 2.810-2.837.
20 Obtenebrata diu barathri caligine caeci gens fuit australis. Ibidem, v. 131-132.
21 australi Stygium regione tyrannum. Ibidem, v. 107-108.
22 Ibidem, v. 522-523; 1.512; 2.383-2.385.
o céu saltara dos eixos”.23
Ao fim, os portugueses vencem, impulsionados pela Providência. Derrotados os
heréticos franceses, Anchieta louva Mem de Sá, que sujeitara as terras brasileiras a Cristo,
compelindo os selvagens a venerar seu santo nome; mais do que o domínio da Guanabara, a
vitória sela a conquista das almas indígenas.24 Celebra-se na Guanabara a eucaristia católica,
purificando a terra, triunfante sobre a teologia de Calvino.25
O jesuíta conclui a obra com longo hino a Jesus Cristo, apresentado-o como senhor
do universo, da História e das almas. Derrotados os inimigos, as terras austrais submetem-se
à lei divina, como fazem os astros, os mares, os ventos, as terras, restituindo a ordem sacra
do mundo. Ao mesmo tempo, a derrota dos franceses pelas armas lusitanas ecoa as antigas
vitórias celestiais sobre Satanás; em seu fracasso, os franceses são comparados a Lúcifer,
aos construtores de Babel, ao faraó, aos habitantes de Jericó, aos filisteus – sacralizada, a
História se repete; torna-se mero retorno de antigas profecias, inserida que está na sagrada
ordem universal. Por fim, príncipe das almas, seu nome se estende aos confins do universo,
conquistando os “Japões” ou o “mundo austral” da gente brasílica.26
Neste cântico final, o poema estabelece estreita relação entre natureza, história e
sacralidade, por meio de uma noção de tempo que é simultaneamente profética e circular,
regida pela Providência divina. Segundo a interpretação aí elaborada por Anchieta, a derrota
francesa é determinada pela Providência, como o foram todos os acontecimentos da história
sagrada, assim como também são regidos por ela todos os elementos e fenômenos da natureza.
Essa cosmovisão apresenta como princípio estruturante a noção de intolerância, uma vez que
não há meio termo entre a ortodoxia católica, de origem divina, e a heterodoxia indígena ou
reformada, de origem infernal.
Contudo, faz-se necessário comparar o poema a outro escrito de Anchieta, a Breve
informação do Brasil, manuscrito redigido no ano de 1584. Segundo Viotti, o trabalho foi
feito com a finalidade de fornecer subsídios ao historiador jesuíta João Pedro Maffei, que fora
encarregado pelo cardeal dom Henrique (então rei de Portugal) a escrever em latim uma
história dos feitos ultramarinos lusitanos. O autor solicitaria esse auxílio a Anchieta, que era
então provincial do Brasil, e sua contribuição seria incorporada à obra, publicada em 1588,
sob o título Historiarum Indicarum Libri XVI.27
Curiosamente, o texto apresenta noções muito diferentes a respeito dos franceses da
Guanabara. Nesta nova versão dos fatos, o jesuíta esclarece que “a maior parte dos franceses
desta fortaleza e povoação eram hereges de diversas seitas, e os principais eram uns ministros
de Calvino que pregavam e ensinavam”.28
Ou seja, esclarecendo que a “maior parte” dos franceses eram huguenotes, estabelece,
por contraste, que pelo menos parte deles era constituída por católicos. De modo mais direto,
define Villegagnon de forma positiva, como “católico e muito douto e grande cavaleiro”,
destacando que o mesmo castigava com rigidez os colonos que “pecavam com índias pagãs”,
e afirmando também que o cavaleiro de Malta se preocupava em resgatar os portugueses
capturados pelos tamoios; relata, ainda, que Villegagnon teria retornado à França, por
23 Horrendumque tonans, crebris micat ignibus; alti intonuere poli, latusque gemiscit Olympus; stridet
et horrendo tellus contusa fragores, immanique fremens immugit murmure pontus. Dissiluisse putes
divulsum a cardine caelum. Ibidem, v. 2.632-2.642.
24 Ibidem, v. 2.861-2.873.
25 Sob esse aspecto, é importante lembrar que a eucaristia era um dos temas que mais afastava as
opiniões de católicos e “calvinistas”. Ibidem, v. 2.910-2.916. Cf. JOUANNA, Arlette. Histoire et
dictionnaire des Guerres de Religion. Paris: Robert Laffont, 2000, op. cit., p. 1.261-1.262.
26 Ibidem, v. 2.917-3.054.
27 VIOTTI, Hélio Abranches. Introdução geral In: ANCHIETA, José de. Textos históricos. São Paulo:
Loyola, 1990.
28 ANCHIETA, José de. Textos..., op. cit., p. 46.
convocação de seu monarca, para “as guerras contra os hereges, em que morreu”.29
Mais à frente, discorrendo sobre os frades vindos ao Brasil antes e depois da Companhia
de Jesus, menciona sete ou oito frades franceses “de hábitos brancos”, ou seja, cistercienses,
vindos depois da destruição do forte da Guanabara em 1560. Segundo Anchieta, os mesmos
teriam sido enviados por influência de Villegagnon, que, “tornando à França trabalhou de
mandar religiosos ao Rio de Janeiro, assim para redução dos hereges como para conversão do
gentio”. Anchieta conclui relatando que os mesmos cistercienses tinham vivido na Guanabara
em recolhimento, afastados dos demais franceses, realizando seu trabalho missionário. Contudo,
como Villegagnon, sabendo do ataque português ao forte, não retornara à Guanabara, os ditos
frades ficariam desamparados, sendo perseguidos pelos hereges, terminando por retornar à
França após o incêndio acidental de sua casa.30
Também é digno de nota certo trecho em que o jesuíta trata da aliança entre franceses e
tamoios, “os quais, sendo dantes muito amigos dos portugueses, se levantaram contra eles por
grandes agravos e sem-justiças que lhes fizeram, e receberam os franceses, dos quais nenhum
agravo receberam”.31 Dessa maneira, os franceses aparecem sob nova luz, catequizando
os indígenas e tratando-os mais dignamente do que os portugueses, o que, sob a pena de
Anchieta, parece ser um elogio, dadas as suas constantes críticas aos embaraços que os maus-
tratos infligidos pelos colonos lusitanos traziam à empresa missionária.
Anchieta fala ainda particularmente do personagem “Joanes de Bolés”, herege que teria
fugido com medo de ser punido por Villegagnon, devido a suas heresias. Chegando a São
Vicente, “começou logo a vomitar a peçonha de suas heresias”,32 sendo, então, mandado preso
à Bahia e dali enviado a Portugal e, subsequentemente, à Índia. É interessante observar que
esse breve relato reforça a ortodoxia de Villegagnon.
Curiosamente, Breve informação do Brasil não aprofunda o relato sobre a segunda
campanha lusitana contra os franceses da Guanabara, comandada por Estácio de Sá, da qual o
próprio Anchieta participara, entre 1565 e 1567. Por sinal, ao abordar o tema, destaca apenas
que, durante esse período, foram expulsos alguns navios franceses, especialmente uma nau
cujos tripulantes deixou partir em paz “por serem mercadores e, ao parecer, católicos”.33
A comparação entre as obras se torna muito elucidativa, uma vez que a caracterização
dos franceses sofre mudanças significativas entre ambas. Enquanto, no poema de 1563, os
colonos da França Antártica são representados exclusivamente como hereges huguenotes,
agentes de Satanás no Novo Mundo, o texto de 1584 os apresenta de modo mais complexo:
embora fossem, em sua maioria, considerados hereges, o jesuíta esclarece que havia exceções,
a principiar pelo próprio chefe da colônia. Mais ainda, os frades cistercienses enviados
posteriormente aparecem como duplos gauleses dos próprios missionários ibéricos, em última
instância concedendo-lhes a posição de agentes da Providência, que, em De gestis Mendi de
Saa, era atribuição exclusiva dos portugueses. Em suma, o novo texto de Anchieta se afasta da
visão de mundo expressa vinte anos antes em seu poema épico.
Contudo, a complexa relação intelectual do jesuíta com os colonos da França Antártica
teria outros desdobramentos, como se vê em sua História da Companhia de Jesus no Brasil,
escrita entre 1591 e 1596. Trata-se de manuscrito jamais publicado, que foi aparentemente
copiado em dois exemplares, guardados em Coimbra e Roma, os quais foram extraviados no
século XVIII, tendo sido arduamente procurados em vão por Capistrano de Abreu e Hélio
Abranches Viotti. Felizmente, subsistiram alguns fragmentos da obra, citados em obras dos
séculos XVII e XVIII, compilados por Abreu. Segundo Viotti, Anchieta redigiu a obra em seus
29 Ibidem, p. 46.
30 Anchieta observa que o cavaleiro de Malta também solicitara auxílio à Companhia de Jesus, mas
não foi bem-sucedido. Ibidem, p. 47.
31 Ibidem, p. 45.
32 Ibidem, p. 46. Retornaremos à história de Bolès, aliás Jean Cointa, na segunda parte do trabalho.
33 Ibidem, p. 40; 42-43.
últimos anos de vida, em suas horas vagas, com intenção de enviá-la a Roma, como esclarecia
em carta a seu amigo Manuel Viegas.34
Nenhum dos fragmentos atualmente conhecidos menciona a jornada de Mem de Sá
contra os franceses da Guanabara em 1560. Por outro lado, dispomos ainda de longa narrativa
das operações comandadas por Estácio de Sá entre 1565 e 1567, por sinal, mais detalhada do
que em Breve informação do Brasil. Neste relato, pouquíssimo se fala sobre os franceses, exceto
que os numerosos tamoios contavam com a ajuda de “alguns franceses luteranos”, em evidente
contradição com o que escrevera em 1584.35
Também convém observar que o texto reata vigorosamente com os aspectos
providencialistas do poema de 1563, exaltando o auxílio divino que teria garantido constantes
vitórias contra os inimigos, apesar da desvantagem numérica das forças portuguesas. Esse
discurso se torna especialmente evidente no relato de um combate que opôs cinco canoas
lusitanas a cento e oitenta embarcações inimigas, milagrosamente vencido devido a um incêndio
provocado por pólvora, que teria assustado os tamoios, levando-os a recuar. Segundo o autor,
alguns dos tamoios teriam avistado São Sebastião, perguntando-se “quem era um soldado que
andava armado, muito gentil-homem, saltando de canoa em canoa, que os espantara e fizera
fugir?”.36
Como se pode observar, o discurso de Anchieta sobre os franceses da Guanabara oscila
ao longo dos anos: em 1563 e 1591-1596 são exclusivamente luteranos, hereges a serviço de
Satã; em 1584, são um grupo heterogêneo, composto por hereges e bons católicos, dividindo
com os lusitanos a ação missionária. Como intepretar essa diversidade de opiniões? Avançando
nessa busca, analisemos que contatos o jesuíta manteve com os franceses ao longo desses anos.

***

Primeiramente, faz-se necessário observar que participação Anchieta teve nas campanhas
militares empreendidas contra os franceses na década de 1560. Segundo Viotti, o padre
não participou da operação comandada por Mem de Sá em 1560, ele chegou à Guanabara
pela primeira vez em 1564, junto com Manuel da Nóbrega e Estácio de Sá.37 Dessa forma, é
importante perceber que sua narrativa em De gestis Mendi de Saa fôra baseada no testemunho
de terceiros, ou seja, o jesuíta não tivera, então, contato direto com os franceses da Guanabara.
Contudo, antes da publicação da obra em 1563, esteve envolvido no escandaloso caso do
francês “João de Bolés”, já mencionado. Trata-se de curiosíssimo personagem, cujas aventuras
são analisadas detalhadamente por Bicalho e Knauss.38 João chegou ao Novo Mundo em
1557, na segunda leva de colonos da França Antártica. Afirmava ser fidalgo e doutor pela
Sorbonne, embora parecesse indeciso quanto a seu nome: segundo Jean de Léry, em ocasiões
diversas declinou seu nome como “Hector”, “Jean Cointac” ou “Jean de Bolès”, pelo qual ficaria
conhecido entre os lusitanos. O pretenso doutor se envolveu na querela eucarística, inicialmente
ao lado de Villegagnon, mas, gradativamente, afastou-se das concepções teológicas do chefe
da colônia. Por fim, fugiu do forte Coligny, misturando-se aos índios.39
Por meio das fontes portuguesas, conhecemos o resto de sua trajetória americana. Na
34 Os fragmentos restantes se encontram especialmente registrados nas obras de Simão Vasconcelos,
Antônio Franco e Baltasar Telles ver VIOTTI, Hélio Abranches. Introdução..., op. cit., p. 12-22.
35 ANCHIETA, José de. Textos..., op. cit., p. 127.
36 Ibidem, p. 128-129.
37 VIOTTI, Hélio Abranches de. Anchieta..., op. cit., p. 115.
38 KNAUSS DE MENDONÇA, Paulo. O Rio..., op. cit.; BICALHO, Maria Fernanda. A França Antártica,
o corso, a conquista e a “peçonha luterana”. In: FRANÇA, Jean Marcel de Carvalho (org.). Dossiê
França Antártica. São Paulo: Unesp, 2008. v. 27.
39 LÉRY, Jean. Histoire…, op. cit., p. 175-176; CRESPIN, Jean. Histoire…, op. cit., p. 447-459.
virada de 1558 para 1559, o mesmo teria acompanhado uma expedição indígena à capitania
de São Vicente, aproveitando o ensejo para se juntar aos portugueses, onde foi inicialmente
bem recebido, frequentando as pessoas mais importantes da colônia, como Estácio de Sá,
Manuel da Nóbrega, Mem de Sá, entre outras. No entanto, parece que Bolés sentia verdadeira
compulsão pelas discussões teológicas, o que motivou Luís da Grã, provincial da Companhia
de Jesus, a organizar uma devassa, em 1560, que culminaria em 1563 com o envio do francês
ao Santo Ofício em Lisboa, que o libertaria. Sua pista, então, torna-se obscura. Publicaria
em Lisboa um livro (sobre teologia!) em 1566.40 Posteriormente, seguiria para Goa, onde
cairia novamente entre as malhas do Santo Ofício, desta vez sendo supliciado, “por culpas de
luteranismo”, no ano de 1572.41
Seu caso nos interessa pelo contato mantido entre Bolés e Anchieta, durante sua estadia
em São Vicente; o jesuíta chegou mesmo a testemunhar a devassa inicial convocada em janeiro
de 1560 pelo provincial.42 Os registros da investigação relatam inúmeras ocasiões em que o
francês teria exposto opiniões consideradas heréticas a habitantes da capitania, especialmente
a membros da Companhia de Jesus.
Espalham-se nessa documentação inúmeras afirmações de que o conjunto dos franceses
da Guanabara era composto exclusivamente por hereges.43 Contudo, há duas passagens
que devem ser destacadas pela sutil dissonância que apresentam. Uma delas faz parte do
testemunho de Luís da Grã, em que o provincial cita as palavras do réu, que teria lhe explicado
que “no Rio de Janeiro eram três seitas de que ele [Bolés] era cabeça de uma, e da outra
Monsior de Villaganhão [sic], e da outra eram dois ministros que mandara Joam Calvino
[sic], de Janevra [Genebra], e que todos três se chamam uns aos outros hereges, por algumas
diferenças que eles haviam nas opiniões”.44 O trecho nos interessa por desmentir o caráter
homogêneo atribuído à “heresia” francesa na maioria da documentação lusitana da época.
Ainda mais esclarecedor é o relato dado por Manoel da Nóbrega, que ouvira do réu que,
no Rio de Janeiro, havia ceias (ou seja, celebrações da eucaristia), das quais todos participavam,
inclusive os “papistas”, ou seja, católicos. Dessa forma, o próprio provincial reconhecia
indiretamente a existência de católicos na França Antártica, ou, pelo menos, atesta que Bolés
abordara o tema, mostrando que esse fato não era de todo ignorado no campo português.45
Também convém destacar que havia grande número de franceses escapados da
Guanabara vivendo entre os lusitanos nessa época, especialmente em Salvador e na Capitania
de São Vicente. Como Bolés, alguns foram alvo de investigações religiosas; ao contrário
destes, outros tantos viviam tranquilamente, sem se envolver em querelas religiosas; podemos
imaginar queaparentassem ser bons católicos, sendo deixados em paz pelos eclesiásticos da

40 BOLÉS, João de. Católica e religiosa admoestação a sujeitar o homem e seu entendimento à obediência
da fé com breve e clara e douta exposição do Símbolo dos Apóstolos, pelo senhor de Bolez. Lisboa:
Marcos Borges, 1566.
41 Sobre as investigações contra Bolés em São Vicente e, posteriormente, na Bahia, e seu ulterior
destino, ver VIOTTI, Hélio Abranches. Introdução..., op. cit., p. 84-85.
42 Os resultados dessa devassa foram registrados em Santos, em 22 de abril de 1560, no documento
“Petição do Provincial Luís da Grã e depoimentos de diversos padres da Companhia de Jesus em
defesa da fé católica no processo do francês fugitivo João de Bolés”, contido em LEITE, Serafim
(org.). Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de
São Paulo, 1954.
43 Seria ocioso registrar todas as afirmações nesse sentido, havendo muitas no dito documento. Ibidem,
p. 178; 181; 182; 185; 186.
44 Ibidem, p. 181-182.
45 Ibidem, p. 183. A transcrição deste trecho da petição nos autos do processo de Bolés parece muito
confusa. Ver Processo de João de Bolés e justificação requerida pelo mesmo. In: Anais da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Oficina Tipográfica da Biblioteca Nacional, 1904, p. 226.
colônia.46
Até que ponto Anchieta conhecia essas informações ou conviveu com essas pessoas é
extremamente difícil determinar. Todavia, temos significativa evidência em sua carta ao geral
da Companhia, Diego Laynes, datada de 1º de junho de 1560. Reitera a ideia de que todos
os franceses da Guanabara eram hereges.47 Contudo, ao relatar o caso de Bolés, supõe que
fugira “por miedo a su capitán, que tenía diversa opinión”.48 Também afirma que, tomada a
fortaleza, não se encontrou “cruz o alguna imagen de Santo o señal alguna de católica doctrina”,
mas sim “grande muchedumbre de libros heréticos”.49 A carta mostra claramente a já citada
heterogeneidade de opiniões entre os colonos da França Antártica, embora classifique todos
como hereges. Ainda assim, se afasta do poema escrito dois anos depois, no qual o padre
apresentaria os franceses como um grupo homogêneo.
Saltando no tempo, em 1565, Anchieta teve convívio mais próximo com os gálicos,
durante os meses que passou como refém entre os tamoios na aldeia de Iperuí. Curiosamente,
em carta posterior ao geral Diego Laynes, o jesuíta não os caracterizaria como hereges ou
“luteranos”. Pelo contrário, suas críticas a esses franceses se voltavam contra seus hábitos
“selvagens”, não contra sua heterodoxia cristã. O padre os recriminava, sobretudo, por andarem
seminus entre os indígenas, amancebados com índias, por vezes usando plumagens e pinturas
corporais. Segundo ele, chegavam a participar das execuções rituais de inimigos, embora, para
seu alívio, não consumissem carne humana.50
Por fim, é importante registrar certa experiência do jesuíta, ocorrida em 1567, após
a derrota definitiva dos franceses na Guanabara, com a tomada dos fortes de Uruçumirim
e Paranapuam. Mem de Sá condenaria nove franceses capturados em Uruçumirim à forca,
sendo um deles “fanático huguenote, que lhe foi [a Anchieta] entregue para que o preparasse
para a morte, reconciliando-o com a Igreja”,51 e os demais, considerados católicos. O padre
e o francês se comunicariam em latim, pois o primeiro não dominava a língua francesa. O
episódio seria mencionado pelo próprio jesuíta em outra missiva ao geral da Companhia.52
Dessa forma, é importante notar que, entre a edição do poema De gesti Mendi de Saa e a
46 Havia grande quantidade de franceses residentes em São Vicente e Salvador, citados ao longo do
processo inquisitorial de Bolés, além de outros que testemunharam a seu favor na justificação
requerida pelo réu, na maior parte dos casos tendo seus nomes grosseiramente aportuguesados,
como Guilherme da Porta (tecelão), Cantim Fernandez (provavelmente “Quentin”, a crer pela grafia
de Bolés), Oliveiras Pinel (bretão, tecelão, provavelmente “Olivier”), Pedro de Villa Nova, Oliveira
Francês (cirurgião de Villegagnon, supostamente fugido junto com Bolés), João Torudo (antigo
criado de Villegagnon), Dinis Francês (criado de Bolés, provavelmente “Dénis”), entre outros
franceses não identificados nominalmente. Processo de João de Bolés e justificação requerida pelo
mesmo (Ibidem, p. 219; 225; 247-251; 303-308).
47 ANCHIETA, José de. Do irmão José de Anchieta ao padre Diego Laynes, Roma. In: LEITE, Serafim.
Cartas..., op. cit., p. 264.
48 Ibidem, p. 264.
49 Ibidem, p. 268.
50 O jesuíta ficou como refém na aldeia de Iperuí, pois algumas tribos indígenas tinham se armado
contra Piratininga; enquanto Manuel da Nóbrega e um líder indígena retornavam à cidade para
negociações, Anchieta permaneceu entre os indígenas como caução. Ver VIOTTI, Hélio Abranches.
Anchieta..., op. cit., p. 131; QUINTILIANO, Aylton. A guerra dos tamoios. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2003. p. 147-181. É importante observar que, embora bastante datada em muitos aspectos,
especialmente em sua interpretação marxista da cultura tupi, a obra de Quintiliano é rica em
preciosos dados factuais.
51 VIOTTI, Hélio Abranches. Anchieta..., op. cit., p. 125.
52 Esse episódio foi aproveitado de forma distorcida e descontextualizada, pela historiografia protestante
brasileira no início do século XX, como forma de atacar a imagem de Anchieta, responsabilizando-o
pela execução do “mártir”, em evidente anacronismo. Ibidem, p. 131-132.
redação da Breve informação do Brasil e de História da Companhia de Jesus no Brasil, Anchieta
teve contatos mais próximos e diretos com os franceses da Guanabara, e pôde comprovar que
a França Antártica não era colônia exclusivamente composta por hereges “luteranos”, mas que
contava com católicos em suas fileiras, como Villegagnon ou os frades cistercienses citados
pelo próprio autor, além dos franceses “tupinizados” com que conviveu em Iperuí. Ao que
parece, essa experiência teria grande impacto na redação de Breve informação do Brasil, em
1584, em que o jesuíta apresentava uma imagem menos artificial e mais precisa da colônia
francesa, ao mesmo tempo se afastando do esquema narrativo providencialista sobre a guerra
contra os franceses.
Contudo, anos mais tarde, o pêndulo faria o movimento contrário, e a imagem dos
colonos franceses voltaria a ser homogênea, semelhante à do poema, na História da Companhia
de Jesus no Brasil, elaborada na década de 1590. Por outro lado, o discurso providencialista
em torno da rivalidade luso-francesa retorna em grande forma, especialmente na sugestão
da presença corpórea de São Sebastião na batalha das canoas. Trata-se de aguda contradição
interna no discurso do jesuíta e, mais ainda, irremediável divergência entre sua experiência e
seus relatos. Como seria possível interpretar tamanhas incoerências?

***

Seria possível analisar a questão a partir do conceito clássico de ideologia ou de propaganda


ideológica, ou seja, vendo os textos de Anchieta como construção deliberadamente planejada
para denegrir a imagem dos colonos franceses, com a finalidade de justificar a ação guerreira
dos lusitanos. Contudo, a nosso ver, essa abordagem empobreceria a problemática, além de
não ser compatível com os próprios escritos do jesuíta, especialmente a Breve informação do
Brasil, que apresenta um olhar mais nuançado a respeito dos franceses, como já vimos.
Dessa forma, buscaremos avaliar o discurso de Anchieta sobre a França Antártica
a partir de outro prisma, empregando a noção de linguagem política, aqui entendida no
sentido elaborado por Pocock e Skinner. Segundo esses autores, grupos específicos elaboram
linguagens próprias pelas quais expressam suas concepções políticas, selecionando valores e
orientações para sua atuação. Essas linguagens constituem conjunto articulado, significativo
para aqueles que as compartilham.
De acordo com Pocock, essas linguagens são perceptíveis pelas particularidades de
estilo, terminologia, conceitos, argumentos, problemas e valores que mobilizam. Dessa forma,
cada linguagem oferece seu próprio paradigma de compreensão da política e das questões a
que se relaciona.53
O historiador ainda observa que somente torna-se possível analisar as intenções de
qualquer autor a partir da identificação da linguagem e dos termos que tinha à disposição para
articular seu discurso na época em que escrevia.54 A identificação dessa linguagem permite
perceber tanto as potencialidades quanto as limitações do vocabulário político com que o autor
teve de lidar, como sinaliza Skinner: “é evidente que a natureza e os limites do vocabulário
normativo disponível em qualquer época dada também contribuirão para determinar as vias
pelas quais certas questões [políticas] em particular virão a ser discutidas”.55 Pois é justamente
a partir da linguagem política articulada por Anchieta, e pelas limitações de seu vocabulário
normativo, que analisaremos seus escritos.
Antes de tudo, convém relembrar a visão de mundo expressa pelo jesuíta em De gestis
53 Cf. POCOCK, J.G.A. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2003. p. 31-32.
54 Pocock atribui essa constatação aos trabalhos desenvolvidos por Skinner nos anos 1960. Ibidem, p.
27-28.
55 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 11.
Mendi de Saa, que é, ao mesmo tempo, cosmologia e linguagem política, ou, mais precisamente,
como uma linguagem política baseada em uma cosmologia. Como vimos antes, o conflito entre
portugueses (católicos) e franceses (hereges “luteranos”) era, ali, representado como faceta
mundana de um embate sobrenatural entre as forças demoníacas e a ação da Providência,
rivais pela posse das almas indígenas, e, em sentido mais amplo, das terras meridionais. A
intolerância é parte integrante e necessária dessa linguagem política, na qual não há espaço
para a alteridade religiosa; não há lugar para índios pagãos ou hereges franceses, na colônia ou
em lugar algum no universo. A coroa lusitana representa na Terra o poder do Senhor celestial,
e deve esmagar as heresias, mesmo as fabricadas; afinal, sob a pluma de Anchieta, a plural
França Antártica torna-se reduto exclusivo de reformados.
Faz-se necessário salientar que não se trata de linguagem exclusiva de Anchieta,
até porque as linguagens políticas são construídas coletivamente e usadas de modo
compartilhado.56 É amplamente conhecida a importância do discurso providencialista na
construção da monarquia ibérica, especialmente a partir da elaboração do mito do milagre de
Ourique. A noção da missão cristianizadora do povo português levando o catolicismo a todos
os climas da Terra se elabora nesse mesmo registro.57 O combate ao demônio envolvido nessa
tarefa também tem sido bastante analisado.58
Também convém destacar a adesão do clero regular, inclusive da Companhia de
Jesus, a esse programa e a sua linguagem. Como sugere Boxer, haveria entre os missionários
ibéricos aguda consciência do papel da missão como instituição de fronteira na colonização,
“pacificando” as populações locais. Segundo o autor, os mesmos costumavam dizer que se
encontravam “a serviço de duas majestades”, 59 a Igreja e o rei. De fato, Palomo também
aponta a importância da atuação do clero regular na consolidação política do império colonial
lusitano, equiparando seu papel ao das estruturas episcopais e inquisitoriais.60 Apenas a título
complementar, é interessante citar o exemplo do dominicano Gaspar da Cruz, missionário
na China que, em 1569, falaria da expansão ibérica em termos providencialistas muito
semelhantes aos de Anchieta, mostrando o quanto essa terminologia era difundida entre os
missionários.61
É interessante lembrar aqui algumas observações de Schwartz a respeito desse universo
político ibérico. Segundo o historiador, ao contrário de outros impérios, como o romano, o
chinês ou o otomano, as coroas ibéricas, na Época Moderna, encontraram na intolerância seu
fator de integração e coesão, expresso na fórmula “uma fé, uma lei, um rei”. Nesse sentido, como
56 Como destaca Skinner, as linguagens políticas criam condições de mútua inteligibilidade entre os
autores e membros de determinada comunidade política. Ibidem, p. 12.
57 Sobre o tema da missão evangelizadora lusitana, ver PALOMO, Federico. A Contrarreforma em
Portugal, 1540-1700. Lisboa: Livros Horizonte, 2006, p. 18. Hermann e Lima também fazem
interessante análise da questão, especialmente no que diz respeito aos posteriores desenvolvimentos
da temática. Ver HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 24-25; LIMA, Luís Filipe Silvério. Entre o Quinto Império e a monarquia universal. In:
MELLO E SOUZA, Laura de; FURTADO, Junia Ferreira; BICALHO, Maria Fernanda (org.). O
governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009, p. 550.
58 Ver, por exemplo, MELLO E SOUZA, Laura de. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p.33-117.
59 BOXER, Charles R. A Igreja e a expansão ibérica. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 92-98.
60 PALOMO, Federico. A Contrarreforma..., op. cit., p. 25-26; 53.
61 “Deus ordenou as descobertas feitas pelos espanhóis no Novo Mundo e as dos portugueses na
navegação da Índia. Por estes meios, Deus, através dos seus servos, tem convertido muitos povos
recém-chegados à fé e assim continuará e os irá convertendo, até (como diz o apóstolo S. Paulo)
que chegue o transbordar dos povos; Israel salva pela conversão judeus e gentios num só rebanho, e,
deste modo, formarão o seio de uma só Igreja, santa e católica, sob um só Pastor, como diz Cristo”.
CRUZ, Gaspar da. apud BOXER, Charles R. A Igreja..., op. cit., p. 137.
afirma o autor, “as heterodoxias e as dissidências, no que tange à religião, foram facilmente
percebidas como política e teologicamente perigosas”.62 A postura de Anchieta quanto aos
“luteranos” da França Antártica se enquadra claramente nesse discurso.
Por sinal, a imagem dos franceses no mundo ibérico quinhentista não era das mais
favoráveis. Como observa Palomo, a coroa francesa não era bem vista por seus vizinhos
ibéricos por suas reticências e resistência em aplicar plenamente as determinações do Concílio
de Trento.63 O próprio povo francês seria frequentemente visto como propenso a heresias,
particularmente o luteranismo, como depreende Schwartz da documentação inquisitorial
ibérica, especialmente a partir da primeira metade da década de 1560, justamente o período
em que se dão os conflitos da Guanabara.64
Como vimos, não espanta que Anchieta se expressasse nesses termos em alguns
momentos, como em seus escritos de 1563 e da década de 1590. Contudo, isso não explica
a oscilação de seu discurso, especialmente em sua representação dos franceses na Breve
informação do Brasil, de 1584.
É justamente aqui que evocamos as limitações impostas pelo vocabulário normativo,
destacadas por Skinner. Parece-nos instigante pensar que as oscilações do discurso do jesuíta
estejam justamente em sua dificuldade em lidar com os limites de sua linguagem política,
tornando complexa sua relação com o conflito franco-lusitano da Guanabara. Afinal de contas,
nesta linguagem política providencialista só há dois lados: o divino ou o demoníaco. Sendo
os franceses exclusivamente hereges “luteranos”, seria simples enquadrá-los no lado satânico
do discurso.
Contudo, ao longo dos anos, Anchieta conviveu com esses franceses de modo mais
ou menos próximo, tornando cada vez mais difícil enquadrá-los nesse paradigma, à medida
que lhe ficava patente sua heterogeneidade. Que lugar o jesuíta destinaria aos católicos da
Guanabara? A resposta lógica seria situá-los no campo dos agentes da Providência. No entanto,
essa também seria uma medida problemática, que negaria à ação bélica portuguesa seu caráter
de guerra justa contra a heresia luterana no Novo Mundo. Em última análise, seria uma empresa
unicamente justificada pelos interesses mundanos da coroa, que aproximaria, talvez, a imagem
do conflito da noção de “razão de Estado”, tão abominada por seus contemporâneos.65
Assim sendo, é lícito imaginar que o jesuíta se encontrava ante uma grave aporia quanto
ao status religioso dos colonos franceses. Seria extremamente difícil enquadrar de modo
coerente a experiência vivida na linguagem política empregada pelo padre. Aparentemente, ao
longo de trinta anos, Anchieta tentou, sem sucesso, resolver a questão, evidenciando a difícil
ou talvez impossível articulação da pluralidade por um discurso intolerante.

62 SCHWARTZ, Stuart B. Impérios intolerantes: unidade religiosa e o perigo da tolerância nos impérios
ibéricos da Época Moderna. In: VAINFAS, Ronaldo; MONTEIRO, Rodrigo Bentes. Império de
várias faces – relações de poder no mundo ibérico da Época Moderna. São Paulo: Alameda, 2009. p.
26-28.
63 PALOMO, Federico. A Contrarreforma..., op. cit., p. 28-30.
64 Schwartz ainda observa que a vizinhança francesa além dos Pirineus era constantemente percebida
como perigosa, devido a uma potencial aliança entre mouriscos e “luteranos” franceses; da mesma
forma, os franceses residentes em território ibérico seriam vistos com grande desconfiança. De
certo modo, o próprio caso de Bolés é exemplar dessa perspectiva. Ver SCHWARTZ, Stuart B. Cada
um na sua lei. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 46-48; 77; 104; 124-125; e, especialmente,
136-138.
65 Sobre o discurso ibérico contrário à “razão de Estado” por parte dos filósofos políticos tomistas
ibéricos, em sua maioria jesuítas, ver SKINNER, Quentin. As fundações..., op. cit., p. 421.
Aspectos de culturas políticas durante o processo de formação da Congregação
Beneditina (Portugal, c. 1560 - c. 1590)

Jorge Victor de Araújo Souza1

Tolerância: também às vezes tolerância é uma


certa conveniência, ou dissimulação de coisas não
permitidas. Comumente o mesmo que paciência.
Raphaeu Bluteau

O presente artigo é uma tentativa de traçar as condições político-eclesiásticas em que os


beneditinos no Reino estiveram envolvidos no período em que a Ordem expandiu suas
atuações além-mar, momento em que as tolerâncias tinham seus limites testados.
Para os monges de São Bento, em território português, o século XVI foi marcado por
uma inflexão – a criação da Congregação beneditina. A reunião dos vários mosteiros dispersos
ao redor de uma única abadia, e o estabelecimento de estatutos comuns foram instrumentos
eficazes na busca pela homogeneização dos comportamentos, inventando novas formas de
pertencimento à comunidade religiosa.
Na península Ibérica, no século X, estavam dispersas “verdadeiras ilhas monásticas que
observavam a regra beneditina e conheciam pelo menos alguns aspectos do monaquismo
carolíngio”, 2 destaca José Mattoso. No século XII, duas ordens oriundas dos preceitos do
patriarca São Bento, a de Cister e a de Cluny, estavam presentes em Portugal. Entretanto, o
estudioso da vida monástica beneditina, Geraldo Coelho Dias, afirma que a “benetinização”
monástica da Península, ao contrário do que já foi promulgado por antigos cronistas, foi
obra dos monges cluniacenses.3 Esta afirmação é confirmada por José Mattoso, para quem
os costumes da conhecida abadia borgonhesa serviram como modelo para os mosteiros
beneditinos da congregação portuguesa até o século XIX.4 A presença dos mosteiros
beneditinos em Portugal, notadamente de influência cluniacense, dominou a região Norte
daquele país e influiu profundamente em diversos aspectos socioeconômicos. Os mais
importantes mosteiros beneditinos fundados em Portugal durante a Idade Média foram os
de Paço de Sousa (antes de 994), Santo Tirso (século X), Vairão (século X), Pendorada (antes
de 1054), Tibães (antes de 1071), Pombeiro (antes de 1102), Travanca (antes do século XII)
e Cucujães (século XII).5 Durante os séculos IX e XII, perdeu-se a tradição do sistema de
congregações monásticas, o que garantia certa observância entre as casas, um maior controle
e poder decisório mais bem distribuído.6 As casas monásticas estavam mais independentes.
Durante o século XIII, houve um processo de “senhorialização” dos abades, ou seja,
tais autoridades eclesiásticas ganharam maior autonomia no concernente à administração dos
1 Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 MATTOSO, José. Religião e cultura na Idade Média portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1982. p.
81.
3 AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). Dicionário de história religiosa de Portugal. Rio do Mouro: Centro
de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2001. p. 381-385.
4 MATTOSO, José. Religião..., op. cit., p. 57.
5 Os detalhes de cada casa monástica podem ser consultados em SOUSA, Gabriel. Beneditinos.
In: ANDRADE, António Alberto Banha de. Dicionário de história da Igreja em Portugal. Lisboa:
Editorial Resistência, 1983. p. 341-407.
6 MATTOSO, José. Religião..., op. cit., p.181.
bens temporais. Com isto, o cargo de prior tomou certa relevância no governo espiritual das
casas. Em relação à organização, durante o final da Idade Média, os mosteiros beneditinos
mantinham-se rigorosamente autônomos, embora houvesse uma pífia comunicação entre
as casas. De acordo com José Mattoso, nomeadamente na diocese do Porto, o modelo de
Cluny foi responsável por um aumento do nível de vida, graças a novos comportamentos e a
um incremento na administração fundiária, além da “atenção prestada aos edifícios e à sua
decoração monumental; elevação do abade ao nível social de ‘senhor’; introdução de novas
formas de sufrágio pelos defuntos, com influência no sentimento religioso popular”.7
É correto afirmar que, durante a Idade Média, a região Norte de Portugal apresentou
um desenvolvimento que ocorreu em grande medida graças à ação dos mosteiros beneditinos,
e que os vínculos com a nobreza foram fundamentais para esta configuração. Todavia, ao
final deste período, sobretudo a partir da segunda metade do século XIV, os monges já não
contavam tanto com o esplendor econômico e social de antes. Uma crise de autoridade se
instalou entre os beneditinos portugueses, afetando sobremaneira o poder outrora exercido
pelos religiosos, e aumentando ainda mais o isolamento de suas casas monásticas.8 Tal situação
era disseminada em toda a península Ibérica. Em meados do século XIV, algumas abadias
beneditinas simplesmente desapareceram da Espanha, varridas por problemas financeiros e
por constante desprestígio dos religiosos.9
Entre os anos de 1566 e 1590, os mosteiros beneditinos de Portugal sofreram uma
profunda reforma.10 O movimento de reformação deu-se, principalmente, a partir de três
visitações.11 As mudanças, na esteira das tridentinas (1545-1563), foram implementadas por
bulas do papa Pio V (1504-1572). Estas bulas tentaram reforçar a observância à Regra de São
Bento, e executaram a união dos cenóbios em uma congregação.12 O mosteiro de Tibães, na
região de Braga, ficou sendo o centro da recém-criada congregação portuguesa. No primeiro
Capítulo Geral, realizado nesse mosteiro em 1570, confirmaram-se as bulas papais, reafirmando
a eleição trienal de abades para os mosteiros. Os capítulos gerais eram grandes assembleias
da congregação que se realizavam de três em três anos com a presença do abade geral, abades,
priores, definidores, visitadores e procuradores. Esses capítulos foram responsáveis pela
consolidação e renovação da vida monástica no Reino. Eram neles que se elegiam os abades e
demais cargos. Os registros de tais reuniões se encontram nos denominados “bezerros”.
É interessante notar que o início da restauração da Ordem em Portugal foi incumbência
de monges oriundos do Mosteiro de Montserrat, na Catalunha, região que foi pouco afetada
pela crise monástica.13 Cerca de cem anos depois, o cronista beneditino frei Leão de São
Tomás narrava o acontecido:
Era d. Antonio da Silva fidalgo de tanta virtude e zelo que logo
7 Ibidem, p.72. (Grifo nosso.)
8 Ibidem, p. 226-227.
9 GONZALO, Maximiliano Barrio. El clero en la España moderna. Córdoba: CSIC; Cajasur, 2010. p.
325.
10 Deve-se levar em consideração que a sessão XXV do concílio tinha como título “Dos regulares e das
freiras”. Seus vinte e dois capítulos ditavam diretrizes ao modo de vida dos regulares. Cf. O sagrado,
ecumênico e geral Concílio Tridentino em latim e português. Lisboa: Officina de Antonio Rodriguez
Galhardo, 1808.
11 Sobre aspectos gerais da reformação dos religiosos ver DIAS, José Sebastião da Silva. Correntes
do sentimento religioso em Portugal. Coimbra: Universidade de Coimbra/Instituto de Estudos
Filosóficos, 1960.
12 Os mosteiros da congregação em Portugal eram: Arnóia, Bustelo, Cabanas, Carvoeiro, Cucujães,
Ganfei, Miranda, São Romão, Neiva, Paço de Sousa, Palme, Pendorada, Pombeiro, Refojos de Basto,
Rendufe, Santo Tirso, Travanca, São Bento de Coimbra, São Bento da Saúde, Nossa Senhora da
Estrela, São Bento da Vitória, São Bento dos Apostolos e Tibães.
13 GONZALO, Maximiliano Barrio. El clero…, op. cit., p. 325.
procurou por um efeito a reformulação de seu mosteiro e para
este fim pediu cartas à rainha d. Catharina [que por morte de
d. João III, seu marido, governava naquele tempo Portugal, em
nome de seu neto o rei d. Sebastião, que tinha, então, 4 anos de
idade]. Pediu como digo cartas à rainha para sua nora a princesa
Joanna mãe del rei d. Sebastião, que naquele tempo governava
o reino de Castela por ausência de seu irmão el rei Felipe, o
prudente, que estava em Inglaterra com sua mulher, a rainha d.
Maria, nas quais cartas a rainha lhe pedia que desse ordem para
virem de lá dois religiosos de São Bento, quais convinha para
Reformadores de um mosteiro grave de São Bento em Portugal.14

“Virtude” e “zelo” são qualificativos atribuídos pelos religiosos aos membros da fidalguia,
pelo fato de se envolverem nos negócios da reforma monástica. Atendendo aos pedidos, foram
enviados os monges frei Pedro das Chaves, nascido em Estremadura em 1514, e frei Pedro
de Vilalobos, nascido em Lisboa em 1527. Ambos haviam tomado o hábito beneditino em
Montserrat. Os religiosos deste mosteiro haviam também passado por uma reforma instituída
pelos castelhanos no início daquele século. Tratou-se de um empreendimento encabeçado
pelo prior García Jiménez de Cisneros, cujo livro Exercitatório de vida espiritual serviu como
modelo para o fundador da Companhia de Jesus, Inácio de Loyola. A reforma empreendida
pelos monges de Castela criou uma situação de crise das autoridades, pois os monges catalães
acharam-se preteridos no que tangia à ocupação do cargo de abade. Em 25 de outubro de 1586,
a pendenga entre os monges de Montserrat foi resolvida: em um triênio, o abade seria oriundo
da Catalunha e, no seguinte, seria um “filho de Castela” e vice-versa.15
No emaranhado de nomes oriundos da realeza presente na narrativa de frei Leão,
é possível perceber que a coroa portuguesa se envolveu de forma incisiva na reforma dos
mosteiros de São Bento em suas terras, apelando ao reino de Castela, onde a Ordem já se
encontrava em vias de restauração. José Mattoso explica a colaboração desse estrato elevado
da sociedade portuguesa nas questões religiosas por meio da reciprocidade entre a nobreza
e a liturgia monástica: “A relação privilegiada que sustenta com os monges acentua a sua
superioridade social. Liga-a aos espíritos que regem o mundo, assegura-lhes uma certa forma
de dominarem o tempo, de superarem a degradação da morte e a sucessão das gerações que
a perpetuação da família, por intermédio da estrutura linhagística, traz consigo”.16 O autor
aponta a existência de vínculos entre o temporal e o espiritual, baseados em uma relação de
reciprocidade. Em sua afirmação, é perceptível uma tradição que une memória monástica e
distinção social.

Conveniência e dissimulação em um manuscrito

O monge Pedro das Chaves, no ano de sua morte, 1584, produziu um manuscrito intitulado:
“Breve história ou lembrança dos princípios e sucessos da reformação de nossa Ordem de
São Bento neste reino de Portugal”.17 Suas “lembranças” começam em setembro de 1558,
na primeira visitação, e destacam as “contrariedades que este negócio de reformação se

14 SÃO TOMÁS, Frei Leão de. Benedictina Lusitana. Lisboa: s.n., 1644. V. 1, p. 411-412.
15 Cf. LAPLANA, Josep de C. Montserrat: mil anys d’art i història. Paris; Barcelona: Angle Editorial,
2001.
16 MATTOSO, José. Fragmentos de uma composição medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1987. p. 186.
17 Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo (IANTT), Mosteiro de São Bento da Saúde. Livro
9., parte segunda, fol. 1- 63 v.
ofereceram”,18 mas que foram sendo superadas, pois justificou: “Deus costumava fazer obras
grandes com meios fracos, e deste costume usou em a reformação da nossa Ordem do reino de
Portugal que não era coisa fácil senão muito dificultosa, por que era obra em que se havia de
mudar costumes mal inclinados”.19 Frei Pedro destaca as tensões identitárias que perpassavam
as relações na península Ibérica, e que se complicaram ao longo da dominação filipina, mas
que, mesmo em período anterior, se faziam presentes, pondo em xeque as atuações de uma
instituição que tendia para a extraterritorialidade: “Findava também a esta dificuldade ser eu
castelhano e trazer companheiro português por que como os deste reino não se conformam
bem com a nação castelhana parecia trazer comigo dissenção”.20 Hierarquicamente, frei
Pedro das Chaves, castelhano, era superior aos seus irmãos de hábito portugueses em relação
às ações de “reformação”. Era a autoridade que clamava a obediência aos estatutos da Ordem,
pois estava a serviço da própria nobreza. Sua estratégia para superar as tensões geradas por
sua condição foi, como recordou, fazer-se “português entre os portugueses”, seja lá o que
isto significasse, pois somente deixou claro que, desta forma, “amansou com eles”. Escrito
em momento delicado nas tensões político-eclesiásticas, o documento deixa claro que a
Congregação beneditina portuguesa devia sua organização a monges oriundos da Espanha.
Não obstante, também expõe, em forma de conselho, uma estratégia de negociação. A tática,
eficaz em 1558, teve seu limite testado no princípio da monarquia dual.

Visitações: foco de conveniências, dissimulações e paciência

Na verdade, os visitadores enfrentavam mais do que “costumes mal inclinados”, pois se


intrometiam em importantes fontes de renda.21 Uma das questões fundamentais das mudanças
dizia respeito ao posto de abade. Antes da reforma dos beneditinos portugueses, os mosteiros
eram governados por comendatários. Estes eram superiores nomeados pelo rei ou pela Santa
Sé, apesar de não serem membros da comunidade e, algumas vezes, nem mesmo clérigos. Em
Portugal, eles foram responsabilizados pelos cronistas beneditinos por uma crise econômico-
social que assolou os mosteiros durante os séculos XIV e XV. O eco desta conjuntura pode ser
notado décadas depois do início da reforma, no final do século XVI, nos versos de frei Mauro
da Vila do Conde:
Ver a senhora das gentes
Ordem dos frades benitos
Ante angustias tão patentes
Ruída por infinitos
Lobos, cães, ursos, serpentes

Porque estes comendadores


Indignos de nome tal
Que são senão roedores?
E puros arruinadores deste sacro cabedal?

18 Ibidem, f. 3.
19 Ibidem, f. 3.
20 Ibidem, f. 3v.
21 Um exemplo das tensões que foram geradas pelo visitador pode ser analisado na correspondência
que enviou a Rainha em outubro de 1561, dando conta do sumiço de escrituras importantes na
Comarca de Santo Tirso. IANTT. Mosteiro de Santo Tirso. Corpo cronológico, parte I, mç. 105, n.
41. “Carta de frei Pedro de Chaves, prior do Convento de Santo Tirso, pedindo à rainha mandasse ao
corregedor daquela comarca, devassar de Cristovão Leitão e Estevão Garcez, pelo furto que fizeram
no cartório do dito convento, de várias escrituras de muita importância”.
Isto mui bem o calara:
Mas são a religião
Um castelo e uma vara
Que quem nos sete chamara
Cabos de escorpião

Tudo será fenecido


Quarde-os Deus dos demônios
Não tenham algum partido:
Para haverem de destruído
A São Bento o patrimônio22

Sobre a situação, vale destacar que a sessão XXV do Concílio de Trento clamou que
“Os mosteiros se deem aos Regulares. As cabeças das Ordens a ninguém se dê em Comenda”,
preceito que encerra uma clara tentativa de impedir que o governo das comunidades religiosas
fosse exercido por leigos, como vinha ocorrendo em Portugal. Isto demonstra a dimensão da
problemática, que extrapolava o âmbito local.
A segunda visitação, no intuito da reformação da Ordem de São Bento, também foi
empreendida por monges castelhanos, entre 1562 e 1565.23 Frei Alonso de Zorrilha, nascido
em Espinosa de los Monteros, em 1508, doutor em teologia, foi o responsável por esta ação
entre os beneditinos portugueses. A situação dos mosteiros foi informada ao cardeal Alberto,
dando conta de pormenores de cada casa, incluindo as questões das finanças. Nas dezesseis
casas beneditinas, incluindo os imponentes mosteiros de Tibães e de Santo Tirso, o cenário
traçado por frei Zorrilla era de desolação. Alguns monges estavam completamente fora do
claustro, ou eram tratados como escravos pelos comendatários. Além disso, os bens das casas
haviam sido dilapidados, segundo o visitador. O mosteiro em pior situação, ainda de acordo
com a opinião de Zorrilla, era o de São Romão de Neiva, “porque tres muy malos monges
estaban em compañia de um muy viejo y tollido prior, y estos, allende que tenían sus mancebas
y sus hijos públicos, se iban de noche y de dia por las ventas y tabernas de toda la tierra a jugar
y putear, a beber hasta de ordinário se envedoar (sic)”.24 Manuel Fernande Florín, filho do
abade comendatário do referido mosteiro, pedia 100 ducados de pensão por ano para entregar
o cenóbio a fim de implementarem a reformação. Frei Zorrilla termina seu relatório inferindo
que o “melhor remédio” para os beneditinos portugueses seria a extirpação dos comendatários,
mesmo que, para isso, fosse necessário recorrer a favores de particulares. Suas últimas linhas
dão conta de que forma as diversas jurisdições estavam amalgamadas no período. O religioso
aconselhou que fossem oferecidos benefícios e privilégios aos comendatários em troca das
casas monásticas, e concluiu que tal negócio deveria ser rapidamente solucionado, por ser
muito delicada a questão das autoridades.25
Para sanar imediatamente a situação em pelo menos um mosteiro, frei Zorrilla sugeriu
uma possível solução: “Está vago el oficio de juez de Alfándega de Viana de Foz de Lima, que
se puede dar al doctor Manuel Fernándes Florín, lego, porque alargue la pensíon de St. Román
de Neiva”. Interesses de ordem temporal estavam em jogo e envolviam poderes locais que
haviam sido ocupados pelos tais comendatários. O visitador deixa entrever que o “negócio da
22 Arquivo Distrital de Braga (ADB). Ms. 178. Regula Benedicti – Clavícula sobre a perfeitíssima regra
de São Bento. S.l.:s.n., 1570. f. 36.
23 A relação da segunda visitação, que se encontra no Arquivo Histórico Nacional de Madri, seção
do clero, pasta 946, doc. 1, foi transcrita pelo beneditino Ernesto Zaragoza Pascual e publicada em
Bracara Augusta: Revista Cultural da Câmara Municipal de Braga, v. 35 , n. 79-80, p. 275-290, jan./
dez. 1981.
24 Ibidem, p. 286.
25 Ibidem, p. 290.
reformação” era assunto delicadíssimo, por isso: “Há su Alteza sea de dar uno de sus escribanos,
que sea muy de confianza y muy secreto, por cuyo medio se despachen todas las cosas de la
reformación, así las de Roma como las de aça”.26
Em 1570, foi abolido o posto de abade comendatário e estipulado um regime trienal
para quem fosse governar qualquer mosteiro beneditino a partir daquele momento. Além dos
abades trienais, foram concebidos os postos de “visitadores” e de “definidores”, numa iniciativa
que visava incrementar a rede administrativa da congregação. Os visitadores deveriam visitar
os mosteiros e relatar o estado em que se encontravam, enquanto os definidores deveriam
assessorar o abade geral em suas decisões. Em 10 de setembro daquele ano foi reunido o
primeiro capítulo geral com a presença de representantes de Rendufe, Tibães, Refojos de Basto,
Colégio de Coimbra e São Romão de Neiva.
O visitador castelhano Alonso Zorrilla apontava, já em 1565, a importância do
“aumento y acrecentamiento” 27 no processo de reformação da Ordem. No próprio território
português, ocorreu a estratégia de restauração/expansão: “todo o movimento de restauração
da ordem em Portugal foi guiado pelos vetores do fenómeno urbano, tirando-a do rincão
minhoto e levando-a a criar mosteiros novos em Coimbra, Lisboa, Santarém e Porto”.28 Neste
movimento, vale destacar que o primeiro mosteiro beneditino em Lisboa foi fundado em 1573,
pouco antes de os monges partirem para a América portuguesa.
Devemos atentar para o fato de que as preocupações proeminentes nas primeiras
juntas da congregação, a expansão da Ordem beneditina além-mar estava intrinsecamente
ligada à reforma empreendida pela mesma no reino. Sendo mais específico, as suas práticas de
territorialização no espaço americano constituíram dispositivos fundamentais nas estratégias
de afirmação de seu status perante a política imperial, sobretudo à época dos filipes.29
Em 1583, na esteira de pactos que vinham sendo efetuados, Filipe II reafirmava
posições que tinham sido definidas dois anos antes nas Cortes de Tomar.30 Segundo Jean-
Frédéric Shaub, as principais medidas visavam à garantia de privilégios concedidos pela
instituição régia aos membros mais bem situados na sociedade.31 Nestas negociações,32 o rei
não descurou de um importante aliado, o braço eclesiástico: “Que todas as prelazias, abadias,
benefícios e pensões se darão a portugueses”.33 Apesar de tal demonstração de tolerância,
alguns meses antes da realização das Cortes de Tomar, o núncio apostólico, Alexandre Riário,
lançou um monitório, que merece particular atenção:
Entendendo, não sem grande dor e desprazer de nossa alma,
26 Ibidem.
27 Ibidem, p. 289.
28 DIAS, Geraldo Coelho. Os beneditinos portugueses e a Missão. Bracara Augusta, v. 38, fasc. 85-86
(98-99), 24 p., jan/dez 1984. Separata.
29 Sobre a política filipina para o clero português, ver PALOMO, Federico. Para el sosiego y quietud
del reino. Em torno a Filipe II y el poder eclesiástico en el Portugal de finales del siglo XVI. Hispania,
LXIV/1, n. 216, p. 63-94, 2004. Sobre as estratégias de territorialização e ação das ordens religiosas
em outra região do Império português, ver: XAVIER, Angela Barreto. A invenção de Goa: poder
imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: ICS, 2008.
30 Sobre aspectos gerais do período filipino, ver: SHAUB, Jean-Fréderic. Portugal na monarquia
hispânica (1580-1640). Lisboa: Livros Horizonte, 2001.
31 Ibidem, p. 22.
32 As negociações possuíam limites, um fato que está sendo explicitado pela atual historiografia,
principalmente com a contribuição de Rafael Valladares. Mesmo assim, o peso dos pactos,
principalmente os feitos com os eclesiásticos, ainda é muito destacável na documentação do período.
Sobre os limites das negociações, ver VALLADARES, Rafael. A conquista de Lisboa – violência
militar e comunidade política em Portugal, 1578 – 1583. Lisboa: Texto editores, 2010.
33 Patente das mercês, graças e privilégios de que El Rei dom Filipe Nosso Senhor fez mercê a estes reinos.
Lisboa: Antonio Ribeiro, 1583. f. 1v.
que muitos religiosos, frades e clérigos, assim seculares como
regulares, sem temor de Deus e em grande grave dano e perigo
de suas almas e escândalo de muitos destes reino de Portugal dos
Algarves, saindo de seus mosteiros e igrejas, tomaram em armas
e muitos deles, com deixar seu hábito regular, assistiram nas
guerras, e perturbações deste reino, em favor de d. Antonio, prior
do Crato, e ainda agora andam vagabundos, e alguns, estando
em seus conventos, assistem e acompanham ao dito d. Antonio,
dandolhe ajuda e favor com que as ditas guerras e perturbações
podem perseverar para atalhar aos escândalos, que podem
suceder, e ao prejuízo das consciências dos ditos religiosos.34

Ao final do monitório, é avisado que os clérigos, regulares e seculares, que tomassem


o partido de d. Antonio, estariam excomungados sob a autoridade papal. Tal trecho expõe
a dimensão da crise de autoridade que afetou, inclusive, os espaços claustrais. No mesmo
ano em que foi fundado o primeiro mosteiro beneditino na América portuguesa, esta era
a situação político-eclesiástica mais delicada no reino. A questão sucessória extrapolava as
intrigas palacianas, colocando em atuação religiosos que, pelo menos em tese, não deveriam
se intrometer nas disputas pelo poder régio.
Rafael Valladares destaca que, no cenário da peste que assolou Portugal na segunda
metade do século XVI, os clérigos, nomeadamente os regulares, foram os únicos que “não
abandonaram a nau”, ganhando ainda mais a confiança da população de uma forma generalizada.
Isto, dentre outros fatores, teria acarretado na formação de um grupo eclesiástico instigador
político entre a população, uma situação de confiança mútua. Nesse sentido, para Valladares,
uma questão válida não é “o porquê” de muitos clérigos terem seguido d. Antonio, mas o que
“seus seguidores eclesiásticos viram de tão rejeitável na realeza de Filipe II”.35 Ainda de acordo
com o historiador, a Igreja em Portugal sofreu uma fissura. Um pequeno grupo considerou
os Áustrias um problema menor, mas um grupo numericamente mais expressivo concluiu
que a aceitação do rei d’Espanha era mais um “gesto de abandono de responsabilidade para
com seus fiéis”. 36 Em tal contexto político-eclesiástico, com toda tolerância possível, disputar
as fidelidades era condição sine qua non para os religiosos darem azo aos seus intentos de
reformação e manutenção de seus privilégios.
Uma das fontes da preocupação dispensada por Filipe II ao clero regular fica bem
clara no trecho citado do monitório de Alexandre Riário. Como afirmou Federico Palomo, as
instituições portuguesas do clero regular, incluindo suas políticas de expansão e evangelização
de novos territórios, foram basilares na configuração do poder filipino, sobretudo durante o
vice-reinado do legado pontifício, cardeal Alberto.37
Nesta conformação de tensões políticas, obter o controle das hierarquias eclesiásticas
era uma estratégia articulada com minúcia, pois controlar abades significava controlar
instituições religiosas, um dos focos de poder mais significativos no Antigo Regime,38 e é
nesse sentido que deve ser entendida a visitação empreendida pelo espanhol frei Álvaro de
Salazar aos mosteiros beneditinos portugueses entre 1588 e 1589. Sua “relación secreta y

34 IANTT, Corpo cronológico, parte I, mç. 111, n. 91. Monitório de Alexandre Riário, núncio apostólico.
Dada em Elvas, em nossa Corte, aos onze dias do mês de fevereiro de 1581.
35 VALLADARES, Rafael. A conquista..., op. cit., p. 229.
36 Ibidem.
37 PALOMO, Federico. Para el sosiego..., op. cit., p. 75.
38 Sobre instituições religiosas como foco de poder no Antigo Regime, ver ATIENZA, Ángela. Tiempos
de conventos. Una historia social de las fundaciones en la España moderna. Madri: Marcial Pons,
2008.
particular” foi escrita em Lisboa, em 24 de abril de 1589, para alcançar o cardeal Alberto.39
Frei Álvaro deixa claro que sua visita fora ordenada pelo rei por meio de seu braço
direito. Além de notícias relativas aos bens temporais da Congregação, o religioso desvendava
a existência de parcialidades entre os beneditinos portugueses: de um lado, os “martinetes”,
monges que se reuniam em São Martinho de Tibães; e, no lado oposto, os “nicolaítas”, monges
que se agregavam na casa de Coimbra.40 O principal ponto das discórdias era o controle do
posto de abade em diversos mosteiros. Frei Plácido Vilalobos, abade que enviou a primeira
leva de monges para a América portuguesa, foi apontado como líder dos “martinetes” e, como
tal, era acusado de ter sido eleito abade geral duas vezes de forma desonesta, ou seja, fez uso
de parcialidades em sua eleição. Entre os “nicolaítas”, frei Álvaro denunciou a presença de
partidários do prior do Crato, d. Antônio.41 Esmiuçando as ações dos “bandos”, o visitador
indicou uma estratégia que os religiosos acionavam em seus movimentos – a mudança de
nome: “Mande V. A. que los monjes no se llamen fulano de Jesús, de Stª María, de la Cruz, de los
Angles etc., ni muden de nombre de pila, y si por humildad no quisieren usar del nombre, digo
sobrenombre, de su linaje, se llamen del pueblo de donde son para que sean conocidos” .42 A
manipulação do nome era uma tática eficaz em sociedades que ainda não haviam constituído
mecanismos precisos de identificação pessoal, sendo o caso de Martin Guerre um exemplo
extremado.43 Não obstante o apelo de frei Álvaro, os beneditinos portugueses continuaram
a usar nomes retirados de suas devoções particulares, ficando cada vez mais difícil, ao longo
do século XVII, encontrar um sobrenome como “de Braga” ou “do Porto”, e, cada vez mais
comum, “da Cruz”, “de São Bento” etc.
Para “sossego do reino”, frei Álvaro sugeria o afastamento dos abades e o envio deles
para Castela o mais rápido possível, principalmente os que outrora haviam apoiado d. Antônio.
Aconselhava também que o controle da Congregação beneditina portuguesa deveria ser dado
a um abade espanhol, como ocorrido quando a congregação esteve sob o comando de frei
Pedro das Chaves no começo do movimento de reforma. O visitador acreditava que, com isso,
todos os abades e demais monges ficariam “quietos e discretos”, e que o rei agiria “como um
cirurgião piedoso a curar a Ordem”.44
O cardeal Alberto fez uso das informações e, em 1590, empreendeu esforço para intervir
diretamente na eleição dos abades. Em sua correspondência com o arcebispo Agostinho de
Jesus45, depositada no Arquivo Distrital de Braga (ADB), podemos traçar, de maio a agosto
de 1590, as movimentações efetuadas em prol da escolha do abade geral da Ordem e demais

39 O documento, intitulado “Relación secreta y particular que por mandado del sereníssimo príncipe
cardenal Alberto le hizo fr. Álvaro de Salazar, abad de St. Millán, de lo que allaron el y su compañero
fr. Sebastián de Villoslada, visitando la Congregación del glorioso padre San Benito, en este reyno de
Portugal, por mandado de sua majestad y de sua alteza, año de 1589” está depositado na Biblioteca
Nacional d’Espanha e foi transcrito integralmente pelo monge Ernesto Zaragoza Pascoal. PASCOAL,
Ernesto Zaragoza. Reforma de los benedictinos portugueses (1588-1589). Theologica. Revista de
Ciencias Sagradas, série 2, v. 17, fasc. 1-4, p. 143-218, jan/dez de 1982. Braga: Instituto Superior de
Teologia de Braga.
40 Os nicolaítas receberam esta designação porque os estudantes beneditinos de Coimbra pediam
esmolas em nome de São Nicolau.
41 PASCOAL, Ernesto Zaragoza. Reforma..., op. cit., p. 150.
42 Ibidem, p. 155.
43 DAVIS, Natalie Zemon. O retorno de Martin Guerre. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
44 PASCOAL, Ernesto Zaragoza. Reforma..., op. cit., p. 153.
45 José Pedro Paiva destacou que frei Agostinho de Jesus era protegido da irmã de Filipe II, o que
influiu na sua escolha para ocupar posto eclesiástico de enorme prestígio. PAIVA, José Pedro. Os
bispos de Portugal e do Império, 1495-1777. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006.
p. 378.
postos.46 Uma das cartas, escrita em 14 de julho, resume os principais pontos de tensão: para
o cardeal, “convinha ser eleito um dos três religiosos castelhanos que foram nomeados”,47
se nenhum dos três fosse escolhido, “folgaria que fosse o padre frei Gonçalo de Moraes”,48
e, por fim, a autoridade exigia que os monges fossem persuadidos “a elegerem em Abade do
Mosteiro de São Bento desta cidade de Lisboa ao dito frei Sebastião de Villoslada”.49
Em 22 de julho, frei Gonçalo de Moraes foi eleito abade geral, sendo o monge da
Congregação portuguesa que mais agradava aos interesses castelhanos, pois fora inclusive
apontado como um defensor da causa filipina no imbróglio da sucessão.50 A prática não era
novidade. No ano de 1584, o enviado do rei a Roma, doutor Antônio Pinho, notou que, “das
abadias tem Vossa majestade muita necessidade para gratificar pessoas bem merecidas em seu
serviço”.51 Tal conselho foi seguido.
Frei Gonçalo, “filho de gente destacável” 52 da região transmontana, foi abade geral
por seis anos, ocupando em 1596 o abaciado em Lisboa. Em 1602, por conta do prestígio
que angariou junto aos filipes, este beneditino alcançou um cargo eclesiástico de imensa
honra, tornando-se bispo do Porto.53 O religioso morreu em 1617, o que significa que era a
autoridade eclesiástica mais destacada no foco do poder beneditino, exatamente no momento
em que se consolidavam as bases da Ordem na América portuguesa.
Na correspondência de 14 de agosto, fechando a questão das eleições, o cardeal escreveu
ao arcebispo: “E muito bem considerado e acertado foi o que fizestes e ponderastes da eleição
do abade da casa desta cidade”.54 Frei Sebastião de Villoslada foi eleito abade para o mosteiro
de Lisboa. Por indicação direta do cardeal Alberto, o monge espanhol que acompanhou frei
Álvaro de Salazar, em sua visitação de 1588 e 1589, passou a governar o mosteiro beneditino
que se encontrava mais próximo dos centros decisórios. Também noviciado da congregação
portuguesa, gozava o mosteiro de grande prestígio, sendo, por isto, estratégico no controle
almejado pelas autoridades castelhanas. O fato de Sebastião Villoslada ser escolhido como seu
abade arranhava o compromisso que Filipe II firmara com seus súditos anos antes, em 1583.
Esbarrava, portanto no limite das tolerâncias.

Considerações finais

A intervenção de outros agentes da Coroa de maneira alguma pode ser considerada


paradigmática no processo de escolha de abades; entretanto, demonstra o quanto a ordem
de São Bento estava inserida na pauta política filipina, e enfatiza de que forma questões
46 Arquivo Distrital de Braga. Gavetas das cartas. Doc. 170 - Carta escrita pelo cardeal Alberto ao
arcebispo de Braga (Agostinho de Jesus) em 1º de maio de 1590; Doc. 172 – Carta escrita pelo
cardeal Alberto ao arcebispo de Braga, em 14 de junho de 1590; Doc .181 – Carta escrita pelo
cardeal Alberto ao arcebispo de Braga, em 14 de agosto de 1590.
47 Idem. Gavetas das cartas. Doc. 178 – Carta escrita pelo cardeal Alberto ao arcebispo de Braga, em 14
de julho de 1590.
48 Ibidem.
49 Ibidem.
50 Arquivo Geral de Simancas (AGS), Secretarías provinciales, Portugal, Libro1480, f. 88.
51 Arquivo Geral de Simancas (AGS). Roma, 15 de junho de 1584. Secretarías provinciales, n. 1.549, f.
20.
52 ENDRES, José Lohr. Catálogo dos Bispos, Gerais, Provinciais, Abades e mais cargos da Ordem de São
Bento do Brasil, 1582 – 1975. Salvador: s.n., 1976. p. 227-228.
53 Sobre a interferência da política filipina na escolha deste beneditino, ver: PAIVA, José Pedro. Os
bispos..., op. cit., p. 390.
54 Arquivo Distrital de Braga. Gavetas das cartas. Doc. 181 – Carta escrita pelo cardeal Alberto ao
arcebispo de Braga Lisboa, em 14 de agosto de 1590.
governativas em mosteiros podiam ser atravessadas por poderes que estavam além dos muros
dos claustros. Ficam claros os limites da negociação político-eclesiástica em situações que
envolviam o controle das governanças no reino.
Em Portugal, os beneditinos necessitavam demonstrar fidelidade ao novo governo.
Careciam prestar serviços. A oportunidade além-mar foi importante nesse sentido. A Coroa
necessitava de uma expansão eclesiástica para reequilibrar os poderes entre os detentores do
controle espiritual e disciplinar do Império. Os beneditinos podiam corroborar sua lealdade
ao se empenharem nos domínios ultramarinos, afastando desconfianças, primordial condição
para se obter tolerância.
As duas missões diplomáticas do padre Antonio Vieira e o “Papel forte”

Thiago Groh de Mello Cesar1

Nascido em Lisboa no dia 6 de fevereiro de 1608, Antonio Vieira mudou-se para o Brasil aos 8
anos de idade, onde viveu até 1641. Retornou à sede do reino para tentar desfazer o que seria
provavelmente o maior imbróglio de sua vida. No Dia de Reis do ano de 1641, pouco mais de
um mês depois da Restauração de Portugal, Vieira havia pregado, na capela do Colégio Jesuíta
da Bahia, um sermão enaltecendo a União Ibérica. O jesuíta jurou fidelidade ao rei Filipe IV
d’Espanha. Contudo, vale lembrar que as notícias da aclamação de d. João IV não haviam
chegado ainda ao Brasil.
Chegando na Bahia em 1616, Antonio Vieira entrou para o Colégio Jesuíta. Ali, ele
se formou, iniciou sua carreira de orador, e ganhou a fama primeira dos púlpitos. Nessa
época, também começou a ensaiar seus primeiros voos políticos, aproximando-se das mais
importantes autoridades locais. Sua saída para a metrópole em situação delicada foi convertida
logo nos primeiros encontros com o novo soberano português, conquistando a simpatia e
confiança dele. Em pouco tempo, o jesuíta se tornaria um dos principais conselheiros de
d. João IV, e, por isso, também receberia o encargo de representar o rei no exterior como
diplomata nos anos de 1646-1648.
Em 1624, o jovem Vieira teve seu segundo ano de noviciado interrompido pela primeira
tentativa de ocupação da Bahia por parte dos holandeses, que, em pouco tempo, dominaram a
cidade, abandonada por seus moradores. Na Carta Ânua, de 1626, escrita por Antonio Vieira
e enviada ao Superior Geral da Companhia Jesuíta em Portugal, relativa aos anos de 1624-
1625, podem-se observar suas primeiras impressões sobre os holandeses, após um primeiro
contato nada amistoso.
Nas linhas e entrelinhas dessa carta, observa-se não apenas o medo que tomou a
população da capital colonial, como também o espanto do jesuíta com o poderio militar dos
holandeses. Vieira interpreta o evento como um castigo de Deus sobre o povo pecador de
Salvador, que sofria de carências materiais e espirituais, de acordo com o inaciano.
Preparam-se com não menor cuidado as almas para a morte que
os corpos para a guerra. Aqui tiveram fim ódios muito antigos,
descobriram-se pecados encobertos com o silêncio de muitos
anos, e, na verdade, foi tal a mudança presente que, só por razão
dela, pareceu a muitos conveniente dar Deus este castigo.
Com a luz do dia seguinte apareceu a armada inimiga, que
repartida em esquadras vinha entrando. Tocavam-se em todas
as naus as trombetas bastardas a som da guerra, que com o
vermelho dos paveses vinham ao longe publicando o sangue.2

Atentava o jesuíta nesse documento para a heresia e o desrespeito do inimigo no tocante


à religião católica e à própria Igreja. É sobretudo com base nesse fato que, no ano de 1640, o
jesuíta constrói sua argumentação no sermão do “Bom sucesso das Armas de Portugal contra
as de Holanda”, reivindicando a misericórdia divina para os portugueses, com base no passado
de fé e lutas em nome de Deus e de sua Igreja.
Pois, é possível, Senhor, que hão de ser vossas permissões
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 VIEIRA, Antonio. Cartas. In:______. Cartas do padre Antônio Vieira (Coordenadas e anotadas por
João Lúcio D’Azevedo). Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925. 3 v.V.1, p. 13
argumentos contra vossa fé. É possível que hão de ocasionar
de nossos castigos blasfêmias contra vosso nome? Que diga o
herege – que treme de o pronunciar a língua –, que diga o herege
que Deus está holandês? Oh! Não permitais tal, Deus meu, não
permitais tal, por quem sois. Não o digo por nós. Que pouco
ia em que nos castigásseis; não o digo pelo Brasil, que pouco
ia em que o destruísseis: por vós o digo, e pela honra do vosso
santíssimo nome, que tão imprudentemente se vê blasfemado:
Propter nomem tumm. Já que o pérfido calvinista, dos sucessos
que só lhe merecem nossos pecados, faz argumento da religião e
se jacta insolente e blasfemo de ser a sua verdadeira, veja ele na
roda dessa mesma fortuna, o que desvanece, de que parte está a
verdade. 3

Antonio Vieira foi testemunha de todas as tentativas dos Países Baixos de invadir a
capital colonial. O jesuíta experimentou não apenas a capacidade militar do inimigo, como
a força do povo de Salvador na luta e resistência contra os holandeses. Ele conhecia as
estratégias dos dois lados e as competências das partes, o que o tornava, por assim dizer, um
especialista na questão da presença holandesa no Brasil. Isso se revela, basicamente nos três
sermões relativos aos momentos da presença holandesa na Baáa de Todos os Santos: o sermão
de “Santo António”, de 16384; o sermão da “Visitação de Nossa Senhora”, de 1638; e o sermão
do “Bom sucesso das Armas de Portugal contra as de Holanda”, de 1640.
Nesse sentido, o seu conhecimento da causa holandesa no tocante ao Brasil, do
comportamento da população da colônia com seus sentimentos, e de capacidade militar,
coligados com sua reconhecida capacidade intelectual e pronta lealdade ao rei d. João, de
quem era conselheiro, tornam o padre Antonio Vieira, se não a pessoa mais indicada, ao
menos um dos mais fortes candidatos de que o rei dispunha no momento para ir a Paris e a
Haia e retornar com informações precisas e consistentes sobre o andamento das negociações
diplomáticas. Para João Lúcio de Azevedo, no entanto, o motivo para a escolha do jesuíta foi a
“sedução de um espírito para tudo apto, de tudo apaixonado e em tudo raro”. 5
A primeira passagem de Vieira pela Holanda, em 1646, não teve função outra que
recolher informações para d. João e observar in loco o andamento das negociações. Seu retorno,
em 1648, como observará mais adiante, depois de passar por Paris para tentar acordar o
casamento do Infante d. Teodósio com mademoiselle de Montpensier, é no sentido de negociar
a compra de navios para Portugal e auxiliar Francisco de Sousa Coutinho nas negociações de
paz. O jesuíta participa ativamente das negociações e faz contatos com a comunidade judaica
portuguesa ali estabelecida. Para seus críticos, esse retorno apenas serviu para que o jesuíta
mostrasse sua habilidade em comprar navios.
O contato com a comunidade judaica em Haia tinha suas razões políticas e econômicas.
Essa relação foi necessária porque o capital controlado pelos judeus financiava substancialmente
as missões diplomáticas por meio de envios ao rei.6 A afinidade do jesuíta Antonio Vieira com
judeus ou cristãos-novos, apesar de pouco exposta em suas correspondências, como bem nota
Pedro Cardim,7 foi bastante estreita, sendo notória a sua defesa desse povo e de seu retorno
a Portugal. Conhecida também foi a sua intercessão junto a D. João IV pelos negócios dos
3 Idem. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1858. 24 v. V. 5, p. 318.
4 Esta datação é estabelecida por Margarida Vieira Mendes, pois o sermão não se encontra datado. Cf.
MENDES, Margarida Vieira. A oratória barroca de Vieira. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.
5 AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antonio Vieira. Lisboa: Clássica Editora, 1992. V. 1, p. 83.
6 CARDIM, Pedro. Entre Paris e Amsterdão. António Vieira, legado de D. João IV no norte da Europa
(1646-1648). Oceanos, n. 30/31, p. 134-154, set. 1997.
7 Ibidem, p. 137.
judeus no reino. As relações com a comunidade sefardita eram importantes no momento em
que a Inquisição de Portugal passava a agir com maior veemência contra esses homens, e a
Insurreição Pernambucana mostrava-se irreversível, ferindo seus interesses nas companhias
e no Brasil. Vieira, conhecedor da necessidade do dinheiro desses homens para o reino e para
que d. João IV pudesse dar continuidade à sua missão de reerguer o reino e legitimar sua
dinastia, buscava meios para que os judeus não se afastassem do reino e deixassem de fiar suas
ações.
De certo modo, a primeira missão diplomática do jesuíta marca o início de seu contato
com a comunidade sefardita, que tinha interesses não apenas no Brasil, mas também na
situação de muitos familiares que ainda permaneciam no reino, e nos seus negócios que ainda
mantinham em Portugal. O encontro com os judeus tinha, de certa maneira, para Vieira,
um aspecto particular no tocante ao seu messianismo, no qual Portugal era o reino eleito
por Deus,8 seguindo a tradição messiânica-milenarista inaugurada no “mito fundador” do
milagre de Ourique, que fora construído a partir do final do século XV, segundo Luis Filipe
Silvério de Lima.9
Por esse viés, a carta remetida por Antonio Vieira aos judeus de Ruão, em 20 de abril de
1646, é cercada por declarações de aproximação e de cordialidade, além de promessas sobre a
melhora na relação entre o reino português e os judeus, os quais respondiam com afabilidade
ao inaciano, revelando suas esperanças no seu remetente. “O crisol da amizade é a ausência. Se
V.M.cê, não nos havendo conhecido nem visto, nos defendia em Portugal, acutilando êmulos
com o estoque da fé, que muito que nos ame havendo-nos visto, que muito que o amemos
havendo-o tratado?”10
Por fim, Antonio Vieira partiu do reino em 1o de fevereiro de 1646 rumo a Paris,
levando consigo instruções para os embaixadores de Paris e Haia e papéis que garantiam sua
idoneidade e função na missão.11 O jesuíta chega à capital francesa 20 dias depois, após uma
viagem em barco pequeno e em época de chuvas, o que fazia a jornada mais cansativa.12 Ali,
deveria se encontrar com o marquês de Nisa. Nessa época, o conde da Vidigueira ainda se
inteirava sobre todas as negociações em andamento e a situação das embaixadas. Contudo, o
embaixador não se encontrava em Paris, ficando o residente da embaixada, Antonio Moniz
de Carvalho, responsável por tratar com o inaciano dos negócios. A Moniz de Carvalho não
poupou Vieira de lhe tecer elogios em missiva enviada ao marquês.13
8 A ideia do Quinto Império, ou seja, de uma quinta monarquia eleita por Deus, é baseada no capítulo
2 do livro do profeta Daniel, que narra o sonho do rei babilônico Nabucodonosor: “Tu, rei, viste
uma visão: uma estátua gigantesca e de brilho extraordinário; seu aspecto era impressionante. Tinha
a cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro e os
pés de ferro misturado com barro. [...] tu és a cabeça de ouro. Um reino de prata, menos poderoso,
te sucederá. Depois, um terceiro reino, de bronze, que dominará todo o orbe. Virá depois um quarto
reino, forte como o ferro. Como o ferro destroça e esmaga tudo, assim destroçará e triturará a
todos. Os pés e os dedos, de ferro e misturado com barro de oleiro, representam o reino divino”
(Dn, 2, 31-33; 38-41). É a partir da interpretação do sonho revelado por Deus ao rei babilônico
que religiosos de diferentes credos, desde o século XVI, buscavam nesse texto bíblico justificativas
para a esperança da existência de um reino divino terrestre. Cf. LIMA, Luís Filipe Silvério de. Padre
Antonio Vieira: sonhos proféticos, profecias oníricas e o tempo do Quinto Império nos sermões de
Xavier Dormindo. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2004. p. 35.
9 Ibidem, p. 34-35. Segundo o autor, a ideia do Quinto Império ganha força dentro do sebastianismo
gestado durante os anos filipinos.
10 AZEVEDO, João Lúcio de. História... op. cit., v. 1, p. 86.
11 Ibidem, p.88.
12 Ibidem, p. 83.
13 VIEIRA, Antonio. Cartas..., op. cit., v. 1, p. 79, nota 3. Antonio Moniz de Carvalho era doutor em
leis, desembargador da Casa da Suplicação. Antes da França, serviu nas embaixadas da Dinamarca,
Em primeiro de abril, saiu o jesuíta Antonio Vieira de Paris rumo a Haia, nos Países
Baixos, parando em Ruão antes para buscar créditos com a comunidade judaica ali existente.
Após uma viagem nada agradável pelo mar do Norte, chegou o inaciano em Haia a 18 de abril,
instalou-se na residência de Francisco de Sousa Coutinho, e trocou a vestimenta religiosa pela
civil para evitar conflitos na terra dos hereges.
Na sua primeira passagem pelos Países Baixos, pôde logo perceber a desconfiança mútua
existente entre as duas nações, e as influências da Insurreição Pernambucana nos rumos das
negociações diplomáticas. De Haia, o jesuíta escreve apenas uma carta destinada ao residente
da embaixada de Paris, dando conta de sua chegada e das atribulações vividas ao longo da
viagem. Durante sua estada nos Países Baixos, o jesuíta descobriu a venalidade dos holandeses,
e verificou que as negociações não passavam por um momento favorável para Portugal.14
De Francisco de Sousa Coutinho, ouviu reclamações sobre a demora de Lisboa em
mandar notícias e decidir sobre os negócios. A princípio, acolheu Vieira com pouca simpatia,
situação essa que rapidamente se alterou, segundo João Lúcio de Azevedo, pela lábia do
inaciano.15 Com todas as informações em mãos, o jesuíta pôde retornar ao reino e tratar com
o rei das questões diplomáticas para o sucesso da política externa portuguesa.
Por outro lado, a missão de 1647-1648 foi mais delicada e ousada do que a primeira.
O padre Vieira passaria, desta vez, uma temporada maior novamente por França e Países
Baixos. A restauração de Pernambuco teve grande influência sobra a diplomacia lusitana
na Europa, sobretudo nos Países Baixos durante o momento em que por ali se encontrava o
padre Antonio Vieira. Quando d. João IV convocou novamente o inaciano para desempenhar
missão diplomática, desejou dele que fosse à busca não de informações, mas de resultados
práticos para a delicada situação do reino às vésperas do Congresso de Vestfália (1649).
Portugal ainda não tinha conseguido o direito de ser representado como Estado, e observava
uma aproximação entre Países Baixos e Espanha. Ao mesmo tempo, o jogo de dissimulação de
d. João IV a respeito da guerra contra os holandeses no Brasil já não surtia tanto efeito sobre os
Países Baixos, se é que em algum momento foram de fato ludibriados pelo monarca português
e seus enviados. A guerra, por sua vez, desenvolvia-se lentamente, e ainda invadiria parte da
década posterior.
Nessa conjuntura, em agosto de 1647, partiu Vieira rumo a Paris, a cidade que, em
seus dizeres, era considerada um mundo abreviado,16 para apresentar a ousada proposta de
casamento entre o príncipe d. Teodósio e a mademoiselle de Montpensier, na qual, o rei d.
João IV abdicaria do trono em favor de seu filho. Este evento na França, no qual se empenhou
com as forças que lhe foram permitidas, buscando apoio e formas de convencer o cardeal
Mazarino,17 leva à reflexão sobre dois importantes aspectos. Seriam as condições de Portugal
Suécia e Inglaterra como secretário. Foi autor de inúmeros escritos sobre seus cargos diplomáticos e
em favor de d. João IV.
14 AZEVEDO, João Lúcio de. História..., op. cit., v. 1, p.88-89.
15 Ibidem, p. 90.
16 Ibidem, p. 84.
17 A ideia de união matrimonial entre o príncipe de Portugal D. Teodósio e a infanta francesa,
estabelecendo uma união diplomática e monárquica entre as duas nações teve sua origem na missão
de Luis Pereira de Castro a Paris, em 1643. (Cf. PRESTAGE, Edgar. As Relações diplomáticas de
Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640 a 1668. Trad. Amadeu Ferraz de Carvalho.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928. p.12-13). Essa proposta evidenciava a necessidade Lusa
de conseguir uma aliança diplomática com a França, e por sua vez, o Padre Antonio Vieira, levou
a questão a patamares extremos, quando novamente passa pela França em 1647 e propõe a união
matrimonial de D. Teodósio com a mademoiselle, em reunião secreta com o cardeal Mazzarino e a
regente Ana d’Áustria, nos seguintes termos: consumado o casamento do herdeiro português com
a princesa francesa, D. João IV abdicaria do trono, retirando-se para os Açores, onde continuaria
rei das ilhas e dos Estados do Grão-Pará e Maranhão na América, entregando Portugal e os demais
tão graves e insuperáveis para que tal proposta fosse levada a cabo, deixando o reino em
mãos estrangeiras novamente, posto que d. Teodósio e mademoiselle de Montpensier não
tinham idade para assumir as responsabilidades do trono? Não! Portugal já havia passado
anteriormente por momentos de maior insegurança e ameaça à consolidação da Restauração.
A revolta dos nobres fiéis contra Castela em 1641, liderada pela Casa de Vila Real, colocou
o futuro da monarquia brigantina em cheque, não apenas por ser uma revolta dentro do
reino contra um rei recém-coroado, mas também pelo fato de os exércitos espanhóis ainda
não se dividirem sobre as várias frentes de batalha que marcariam a decadência da Casa de
Habsburgo.18
A proposta de casamento entre os dois infantes foi, sem dúvida, constrangedora para
ambos os lados; porém, nenhuma das partes vetou qualquer atitude de Vieira no sentido da
união matrimonial, sendo ele recebido em algumas ocasiões pelo cardeal Mazarino para a
exposição da questão. Pelo lado francês, pode-se especular que o cardeal talvez desejasse
verificar até onde iria a ousadia do jesuíta português e, ao mesmo tempo, ganhar argumentos
para adiar a formalização de uma liga. Quanto a Portugal, o que se pode imaginar é que
grande capacidade de argumentação e sedução que Vieira exercia sobre d. João IV se devia à
fragilidade política do rei, que se tornara soberano sem desejá-lo.
A crise instalada no reino, a presença holandesa nos territórios da Ásia, África e
América, e a situação econômica de Portugal em 1641 faziam que o futuro da monarquia
brigantina fosse muito mais duvidoso e incerto do que em 1648, às vésperas da paz entre
Países Baixos e Espanha e do Congresso de Vestfália. Vieira foi criticado por esta empreitada e
abandonado por seus pares, mas não se pode deixar de destacar a audácia do jesuíta ao propor
principalmente a abdicação do rei e a liga com a França. Sem dúvidas, esta foi pensada dentro
da perspectiva da ideia do Quinto Império, na qual haveria um reino maior e mais poderoso
do que o reino terreno daquele momento esperando por d. João IV e pelos portugueses.
Além desta controversa passagem do padre Antonio Vieira, sua atuação diplomática na
década de 1640 merece destaque por êxitos conseguidos, sobretudo, na comunidade judaica,
da qual se aproximou e com a qual manteve estreita relação. Esse fato era inédito, de certa
forma, entre os representantes diplomáticos de d. João IV no exterior. CTambém coube ao
jesuíta a defesa dos cristãos-novos e dos judeus no reino de Portugal. Outra questão relevante
foi a parceria formada com Francisco de Sousa Coutinho nos Países Baixos e na defesa do
projeto do negócio do Brasil.
A proposta de entrega do Nordeste não foi uma ideia do jesuíta e de seu parceiro
embaixador nos Países Baixos. Ela já figurava na corte como uma possibilidade de resolução
com os holandeses desde o impasse criado pelo acordo de 1641. Porém, somente com Vieira
e Sousa Coutinho essa ideia ganhou força e foi levada adiante, sobretudo após a eclosão da
revolta colonial pernambucana.
No exterior, Antonio Vieira não foi um simples diplomata. Era voz presente em todas
as negociações e, de certo modo, atuou como uma espécie de “olhos e ouvidos” do rei, na
medida em que tinha com o soberano um canal estreito de comunicação pelas cartas, e
conhecia os planos políticos traçados pelo rei para a solução do imbróglio, principalmente
porque muitos desses planos foram traçados pelo próprio jesuíta, como afirma Ronaldo
Vainfas.19 Controverso, ousado, audacioso, inúmeros são os adjetivos que podem compor a
caracterização do diplomata Antonio Vieira, mas não se pode afirmar, em nenhuma hipótese,
territórios aos franceses. D. Teodósio, já agraciado com o título de príncipe do Brasil, herdaria os
demais territórios ao sul da colônia americana e o trono português. Essa foi a ousada e polêmica
proposta do jesuíta ao franceses. Cf. PRESTAGE, Edgar. As Relações. Op. cit. p. 40 e CABRAL,
Evaldo. O Negócio do Brasil. Op. cit. p. 101-102
18 VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal: guerra e Restauração, 1640-1680. Trad. de
Pedro Cardim. Lisboa: Esfera dos Livros, 2006. p. 57-63.
19 VAINFAS, Ronaldo. Antonio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.76; 96.
que o jesuíta se omitiu de tomar partido nas questões estrangeiras e de apontar resoluções para
estas, mesmo que polêmicas, como na maioria das vezes.
O acordo firmado por Mendonça Furtado em 1641 com os Países Baixos, seguido pelas
ações da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (ou WIC, sigla holandesa para West-
Indische Compagnie), na prática transformou o tratado em papel morto. Deixou Portugal em
situação delicada, pois a expectativas de que as frentes de batalha diminuíssem, pelo menos
momentaneamente, naufragava. A esperada aliança com os franceses não progredia. No reino,
os oposicionistas da restauração pegavam em armas para enfrentar o rei. Nas fronteiras, o
temor espanhol aumentava. Nesse contexto, forjava-se a ideia do negócio do Brasil.
A primeira ideia consistia, grosso modo, na compra das ações
da WIC e, assim, na retomada dos territórios ocupados por ela
na Ásia, na África e na América. Para tanto, Portugal valer-se-ia
do dinheiro obtido com a venda do açúcar e do sal de Setúbal,
principalmente. Ideia aparentemente simples e que evitava uma
indenização aos colonos holandeses do Nordeste do Brasil. Mas
ignorava a lógica capitalista e política que regia a Companhia
Holandesa do Ocidente, cujo capital era mantido pelas províncias
dos Países Baixos, sobretudo pela província de Holanda, como já
colocado, a maior acionista.20

A segunda proposta de negócio com os holandeses abandonava as tentativas de retomada


dos territórios na Ásia e centrava-se na retomada o Nordeste brasileiro; considerava também a
possibilidade de indenização dos colonos holandeses estabelecidos no Brasil e dos acionistas
da WIC. Essa proposta passou a ser ventilada com mais força com a chegada do embaixador
Francisco de Sousa Coutinho aos Países Baixos em 1643. Padre Antonio Vieira concentrou-
se nessa questão em sua primeira missão diplomática, na qual sondou as possibilidades de
sucesso dessa nova proposta, principalmente junto à comunidade judaica.
As duas propostas, contudo, enfrentavam alguns problemas em comum, como a
desconfiança sobre a capacidade financeira de Portugal de arcar com os valores que propunha
tanto para a “simples” compra das ações da WIC quanto para uma compra seguida de
indenização. Portugal não tinha muito além do capital sefardita e das expectativas sobre a
produção açucareira, que crescia no Rio de Janeiro com a crise no Nordeste, e o sal de Setúbal,
cujo valor oscilava muito.21
Outra questão pouco explorada nesse aspecto é o posicionamento da comunidade
sefardita nos Países Baixos em relação às propostas de retomada do Nordeste do Brasil,
principalmente na medida em que os rumos tomados poderiam afetar significativamente
seus negócios. Nesse aspecto, Vieira foi bastante astuto e precavido ao buscar com d. João
IV liberdade de comércio e de proteção contra os largos braços da Inquisição. As incertezas
deixavam os judeus apreensivos e temerosos em arriscar suas economias na causa portuguesa,
apesar de todo o esforço do jesuíta para convencê-los.
Contudo, a grande monta de prisões de cristãos-novos e judeus realizadas pelo
Santo Ofício da Inquisição portuguesa, no final da década de 1640, e o avanço da guerra
restauracionista pernambucana afastaram a comunidade sefardita holandesa da causa
portuguesa e até mesmo da “comunidade” de cristãos-novos de Portugal, pelo seu apoio à
20 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 3. ed. Rio
de Janeiro: Topbooks , 2003. p. 71; 90-91
21 Para verificar a variação do preço do sal de Setúbal em Portugal, ver MAURO, Frédéric. Portugal,
o Brasil e o Atlântico: 1570-1690. Trad. de Manuela Barreto. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. V.
1, Apêndice. Para o caso da variação do preço do sal nos Países Baixos, ver os gráficos ao final do
volume 2 da mesma obra de Mauro.
guerra colonial, sendo que este último fato acabaria por marcar, talvez, um divorcio político,
comercial e financeiro definitivo. Tratava-se de um golpe crucial para a economia do reino.22
Contra qualquer sucesso da monarquia portuguesa dentro e fora do reino estava o Santo
Ofício liderado pelo inquisidor-geral d. Francisco de Castro, que se mantinha filipino (fiel ao
rei Filipe IV d’Espanha) mesmo após o fracasso da insurreição de 1641 e sua prisão até 1643.
O inquisidor não deixou de instrumentalizar a Inquisição para perseguir os cristãos-novos e
atrapalhar o desenvolvimento das ações políticas de d. João IV e Antonio Vieira. Perseguia
impiedosamente os cristãos-novos e os judeus, e demorava a responder às consultas do rei.
O golpe mais duro que deferiu contra a política externa de d. João IV foi a prisão de Duarte
da Silva em 1648, que deixou praticamente sem crédito algum com os mercadores judeus
os diplomatas portugueses. Para João Paulo Costa, o Santo Ofício e a diplomacia travavam
uma batalha surda, que se refletia principalmente nas medidas que se referiam à proteção dos
cristãos-novos e à participação destes nos negócios do reino.23
A Inquisição de Portugal, pelo menos até a morte de d. Francisco de Castro, manteve-se
filipina, na medida em que no período desses reis acabou por conhecer sua maior autonomia
e prosperidade, diferentemente do que ocorria no período joanino, quando seus poderes
acabaram de certo modo cerceados pelo Estado, no tocante, principalmente, aos cristãos-
novos. Outro aspecto que se pode considerar para a oposição do Santo Ofício diz respeito à
questão da aclamação de d. João IV, feita pelo “povo” e não pela vontade divina, como pregava
a Igreja após Trento.24
No negócio do Brasil, o Santo Ofício teve um oponente ímpar, o padre Antonio Vieira.
Este procurou todos os modos para cercear os poderes da Inquisição, principalmente no
tocante aos judeus e aos cristãos-novos. O jesuíta valeu de sua influência com o rei para
conseguir benefícios aos hebreus e evitar ações contra eles e seu capital, que era de grande
importância para a economia da Restauração. Vieira dava sua vida por Portugal e pela causa
do Quinto Império, enquanto o Santo Ofício tomava vidas em nome da causa religiosa e do
medo.
Nos Países Baixos, as negociações corriam lentamente, e as urgências de Portugal eram
cada vez maiores. Francisco de Sousa Coutinho gastava muito do dinheiro que lhe era enviado
pelo rei para fazer subornos e obter apoios para a causa lusitana no negócio do Brasil.25 Mas,
a eclosão da inssurreição pernambucana e a proximidade do Congresso de Münster alteraram
todas as negociações e abriram espaço para o inaciano Antonio Vieira elaborar e fazer a ousada
proposta de entrega do Nordeste.
Na corte, em Lisboa, alguns conselheiros do rei temiam por uma guerra atlântica após
a recusa holandesa da proposta de 3 milhões de cruzados feita pelo embaixador Francisco
de Sousa Coutinho, e dos rumos que tomavam as negociações para o fim da Guerra dos
22 VAINFAS, Ronaldo. Antonio Vieira... op. cit., p. 102. Sobre o papel dos cristãos-novos como
financiadores da campanha da luta pela retomada de Pernambuco, ver NOVINSKY, Anita. Cristãos-
novos na Bahia: a Inquisição. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. p. 66-68. Segundo Anita
Novinsky, no século XVII, o número de cristãos-novos na Bahia variou entre 10 e 20% da população
branca, e possuía cerca de 60% dos engenhos. Dessa população, 31% eram de mercadores e homens
de negócios, 20% donos de engenho e lavradores, 11% funcionários administrativos, 10% artesões,
8% bacharéis, licenciados, advogados, 7% militares, 5% pequenos comerciantes, 4% cirurgiões e
boticários, 2% religiosos, e 1% homens de mar. Idem. Consideraciones sobre los criptojudíos
hispano-portugueses: el caso de Brasil. In:______. Judíos, sefarditas, conversos: la expulsión de
1492 y sus consecuencias. Ponencias del Congresso Internacional celebrado em Nueva York em
noviembre de 1992. Nova York: Ambito, 1995. p. 516-517.
23 COSTA, João Paulo. O Império e os diplomatas da Restauração. Studia, Lisboa, n. 48, p. 315, 1998.
24 TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra: Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra, 1981. V. 1, p. 20-21; 88-95.
25 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio..., op. cit., p. 85.
Trinta Anos entre Espanha e Países Baixos. Esses conselheiros levaram o embaixador nos
Países Baixos a cogitar uma cartada final, oferecendo 8 milhões de cruzados à causa. Isso foi
desaconselhado pelo padre Antonio Vieira, que considerava a quantia de 3 milhões justa para
a proposta de retomada do Brasil, de Angola e de São Tomé.26 Conscientes do desespero
português, que perdia rendimentos com a guerra levantada pelos colonos brasileiros contra
seus territórios, e talvez conhecedores das dificuldades militares que enfrentavam, e das
derrotas que amargavam muito antes de as notícias chegarem aos ouvidos de Sousa Coutinho
e Vieira, os Países Baixos apresentaram, em 1648, um plano de paz que, se aceito por Portugal,
era no mínimo humilhante, além de ofensivo para os colonos e seus esforços de guerra.27
A proposta holandesa, que foi apresentada em julho pelos comissários dos Estados
Gerais a Francisco de Sousa Coutinho, reivindicava os territórios entre o Maranhão e o
rio Real no Sergipe, além da entrega da costa meridional da África, entre o cabo de Lopo
Gonçalves e o da Boa Esperança, incluindo São Tomé e o morro de São Paulo, localizado no
litoral baiano, como caução. Além disso, juntamente com o pagamento de indenização pelos
colonos da Bahia e do Rio de Janeiro, mil vacas, duzentos cavalos e trezentos carneiros em um
prazo de três anos; mais de mil caixas de 20 arrobas de açúcar por ano , sendo metade branco
e outra metade, mascavo, por dez anos. A proposta contemplava ainda a reconstrução dos
engenhos queimados ou danificados durante a guerra, e exigia que os colonos luso-brasileiros
nada levassem dos territórios restituídos, deixando ali escravos, estoques de açúcar, animais e
equipamentos agrícolas e fabris, e, por fim, o pagamento das dívidas deixadas pelos colonos que
abandonaram o Brasil holandês durante a guerra, e uma faixa de 10 léguas (aproximadamente
60 quilômetros) entre as fronteiras, para se criar, aí, uma espécie de terra de ninguém onde
Portugal não poderia erguer nenhuma fortificação.28
A proposta era absurda, e acabaria com qualquer possibilidade de Portugal se reerguer
economicamente e se estabelecer como uma potência política. Essa saída agradava ao rei, que
temia pela sua coroa, e acreditava mais na possibilidade de uma guerra atlântica contra os
holandeses que se iniciaria com o bloqueio do Tejo. Conhecedor dos desejos e das vontades
reais, o embaixador Francisco de Sousa Coutinho acabou aceitando a proposta mediante
alguns breves ajustes que expressou em uma contraproposta, em cuja escrita teve o auxílio
de Vieira e de seu secretário Feliciano Dourado, que apresentou ao Conselho dos Estados
Gerais.29
Sousa Coutinho, na sua contraproposta, concordou com a maioria das exigências dos
Estados Gerais, com exceção da neutralidade do Ceará e da devolução de escravos e bens
materiais retirados da região na guerra, oferecendo em troca indenizações a serem feitas dentro
de um prazo de reivindicação, como indenização à população da Bahia e do Rio de Janeiro.
Propôs também que comissários nomeados pelos governos do Recife e de Salvador avaliassem
as infrações ao tratado, pediu garantias sobre a liberdade religiosa no Brasil holandês, e o
congelamento do status quo dos territórios de Angola e São Tomé. Foi sobre a proposta inicial
apresentada e a contraproposta portuguesa que os Estados Gerais se reuniram para debater a
questão e formular um acordo final, que não garantiria, contudo, uma paz geral e definitiva

26 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira e o “negócio do Brasil”: derrotismo pragmático e estratégia


política. In: AZEVEDO, Silvia Maria de; RIBEIRO, Vanessa Costa (org).Vieira: vida e palavra. São
Paulo: Edições Loyola, 2008. p. 16
27 Para as perdas no preço do açúcar holandês, ver MELLO, José Antonio Gonçalves de. Fontes para a
história do Brasil holandês: a economia açucareira. Organização e estudo introdutório de Leonardo
Dantas da Silva. Recife: Cepe, 2004. p. 246-247.
28 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio..., op. cit., p. 132. Segundo Evaldo Cabral, há outra versão do
acordo, na qual Portugal cederia a área entre Rio Grande e Sergipe, e o Ceará tornar-se-ia uma terra
de ninguém. Ver VAINFAS, Ronaldo. Antonio Vieira e o “negócio do Brasil”..., op. cit, p. 17.
29 Ibidem, p. 133.
entre as partes.30
Além da apresentação de uma contraproposta que buscava dar a Portugal uma saída
mais digna do conflito e manter a coroa de d. João IV, o embaixador financiou uma série de
panfletos em prol da causa lusitana e em busca de sustentação para sua posição e em benefício
do rei e de sua soberania. No reino, as notícias do acordo que se debatia nos Países Baixos
chegaram com grande repercussão, despertando os ânimos dos “valentões”, entre os quais
estavam d. Manuel da Cunha, bispo de Elvas, e Pedro Fernandes Monteiro, procurador da
Fazenda.31 Os “valentões” constituíam um grupo muito interessante dentro da oposição
política a d. João IV: alguns eram apoiados pela oposição que desejava o retorno de Filipe
IV ao trono, outros tinham propósitos pessoais, como Manuel de Barros, um valentão de
última hora que buscava a graça real.32 Ou seja, era um grupo pouco homogênio cercado por
paradoxos, como a cumplicidade ao inimigo hereditário de forma consciente, ou não.33
Implacáveis com Vieira e Sousa Coutinho, os “valentões” lançaram dezenas de panfletos
contra os dois, ao mesmo tempo que as agitações na corte aumentavam e d. João IV temia por
perder sua coroa. O negócio do Brasil invadia as discussões políticas da corte, e o rei convocou,
então, uma espécie de conselho ad hoc, formado pelo marquês de Montalvão e por Matias de
Albuquerque, general da resistência, em busca de soluções para a formatação final do acordo
com os Países Baixos que Francisco de Sousa Coutinho negociava. Em meio ao debate que
se realizava, os colonos obtiveram valorosa vitória em Guararapes, o que deu novo rumo à
guerra e renovou os ânimos, tal como a chegada da notícia na corte lisboeta, que provocou
grande euforia.34
O Conselho de Estado se reuniu munido dos pareceres do Conselho Ultramarino e de
Francisco Ferreira – parente de Gaspar Dias que fazia a ligação deste com Sousa Coutinho
e o conde de Nassau nos Países Baixos –, para, então, deliberar sobre o encerramento das
negociações em Haia. O conselho decidiu pela não entrega do Nordeste, pois acreditava que,
com a vitória de Guararapes, os colonos jamais cederiam ao embate. Exigiu também o pronto
retorno de Francisco de Sousa Coutinho e de Vieira. Segundo Evaldo Cabral de Mello, o rei
d. João IV ficou aparentemente sensibilizado com os argumentos do conselho ou, pelo menos,
fingiu esse sentimento.35 O certo é que o conselho tinha alguma razão quanto aos colonos,
pois como o rei iria convencê-los a desistir da guerra após sua maior gloria até então?
Deste controverso episódio Vieira e Sousa Coutinho saíram tachados com a alcunha
de “Judas do Brasil”; o jesuíta era ainda acusado de entregar Portugal aos judeus e, pelos
seus excessos de sutilezas, de complicar os negócios públicos. O embaixador, por sua vez, era
acusado querer de entregar o Nordeste aos hereges, de falta de experiência diplomática, de
desconhecimento das questões ultramarinas, de viver nos Países Baixos à custa da Fazenda
Real, quando os outros diplomatas valiam-se de suas próprias economias para sustentar as
missões e, por fim, era acusado de não ter resistido ao ouro dos holandeses.36 Este evento
ainda renderia debates, muitos anos depois, quando o conde da Ericeira publicou sua obra
Portugal restaurado. Este, ao creditar a Vieira uma responsabilidade maior do que o próprio
acreditara ter na questão, ouviu a narrativa desse evento diretamente de Sousa Coutinho, que,
assim, seria poupado dos dissabores causados pelo fracasso dessas negociações na obra do
conde. Já idoso e vivendo em Salvador, o jesuíta responde a Ericeira corrigindo-o sobre os
30 Ibidem, p.133.
31 VAINFAS, Ronaldo. Antonio Vieira e o “negócio do Brasil”..., op. cit., p. 17.
32 Ibidem, p. 17; Idem, VAINFAS, Ronaldo. Traição: Um jesuíta a serviço do Brasil holandês processado
pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.318-319.
33 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio..., op. cit., p. 148.
34 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira e o “negócio do Brasil”..., op. cit., p. 17; MELLO, Evaldo Cabral
de. O negócio..., op. cit., p. 138-139.
35 Ibidem, p. 139-140.
36 Ibidem, p. 141.
fatos em cartas nos anos de 1688 e 1689. O problema entre Vieira e Ericeira foi, segundo
Evaldo Cabral, melhor analisado e percebido pelo historiador maranhense do século XIX,
João Francisco Lisboa, na obra intitulada A vida do Padre Antônio Vieira.37
O ano de 1648 foi trágico para Vieira, Sousa Coutinho e D. João, que tiveram de aceitar
o triunfo dos “valentões” nas questões do reino, juntamente com o avanço das negociações
entre os Países Baixos e a Espanha para um acordo de paz. Foi também um ano trágico para
Portugal e suas perspectivas europeias de sucesso: a única vitória do reino fora na América,
com os colonos, mas esta, como já afirmado, não foi creditada no saldo das ações positivas,
visto que nem o próprio rei parecia convencido das capacidades de seus súditos no ultramar.
Para o padre Antonio Vieira, o negócio do Brasil era imprescindível para o seu plano espiritual
do Quinto Império, e não à toa, durante esse período que culmina com o escrito do “Papel
forte”, ele retoma os elementos do sebastianismo que havia transformado, nos seus primeiros
anos de corte, em joanismo. Para o jesuíta, os possíveis prejuízos com a perda do Nordeste do
Brasil seriam recuperados em um tempo futuro de acordo com o plano divino, que elevaria
Portugal ao posto de maior e único reino do mundo.38
Provavelmente por temer ver o plano divino para Portugal frustrado pelo inimigo
herege, Vieira propôs a entrega do Nordeste e defendeu-a como pôde no “Papel forte”. O
temor do poderio militar holandês, ou mesmo da incapacidade dos luso-brasileiros na luta
pela restauração de Pernambuco, soa estranho se desconsiderado esse lado espiritual da ação
do jesuíta, na medida em que ele devia ter informações privilegiadas sobre as ações no Brasil,
e seu irmão e seu cunhado estavam diretamente envolvidos na ação.
D. João IV foi obrigado a aceitar a posição do Conselho de Estado e recuar nas
negociações em Haia; viu também Duarte da Silva, o principal financiador da campanha
lusitana no exterior, cair nos braços da Inquisição. Os “valentões” e o Santo Ofício triunfaram
no ano de 1648. Nesse ano, a diplomacia portuguesa apenas tinha conseguido evitar o envio de
socorro para o Brasil por parte dos holandeses, quando ainda era possível salvar os interesses
na América da WIC, e reverter o quadro de vitórias dos colonos, que, com o atraso do auxilio
militar, conseguiram abrir ampla vantagem no “placar” da guerra e ocupar posição de grande
favorecimento. Esse atraso deve ser creditado aos esforços de Francisco de Sousa Coutinho,
que, com sua coragem e talento, conseguiu prorrogar a partida da armada holandesa rumo ao
Brasil enquanto não houvesse uma posição clara sobre os termos do acordo que negociavam.39
Escrito entre os anos de 1648 e 1649, o “Papel que fez o padre Antonio Vieira a favor da
entrega de Pernambuco aos holandeses” foi alcunhado pelo rei d. João IV de “Papel forte”. Essa
alcunha se deveu ao peso da argumentação elaborada pelo jesuíta frente à opinião majoritária,
em favor da negociação com os Países Baixos, para a retomada da Capitania de Pernambuco
e o estabelecimento de um acordo de paz definitivo entre as duas nações.40 Nesse período,
diversos textos sobre a questão da negociação com os holandeses circulavam pelo reino
anonimamente ou autografados.41
No dito “Papel forte”, Vieira expõe detalhadamente a situação do reino e de suas
colônias, pensando no império como um todo, e apontando para as mazelas financeiras de
Portugal e sua incapacidade militar de defesa do reino e das colônias. O modo como o jesuíta
constrói seus argumentos demonstra o profundo conhecimento que tinha de todo o Império
Português e do inimigo holandês. Este fato, para S. J. Avelino,está ligado ao amplo contato
de Antonio Vieira com os holandeses; mais do que isso, o mesmo acredita que o “Papel forte”
37 Ibidem, p. 163-164. VIEIRA, Antonio. Cartas..., op. cit., v. 3, p. 568-569; 572-587.
38 VAINFAS, Ronaldo. Antônio Vieira e o “negócio do Brasil”..., op. cit., p. 19.
39 PRESTAGE, Edgar. As relações diplomáticas de Portugal com a França, Inglaterra e Holanda de 1640
a 1668. Trad. de Amadeu Ferraz de Carvalho. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1928. p. 232.
40 VIEIRA, Antonio. Escritos históricos e políticos. Organização e prefácio de Alcir Pécora. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2002. p. XLII-XLIII.
41 MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio..., op. cit., p. 143.
representa o amadurecimento do pensamento político-teológico do inaciano.42
Sua argumentação no escrito é pautada por quatro pontos, que se subdivIdem em
tópicos nos quais o autor explora, por meio da retórica, cada um dos argumentos que constrói,
rebatendo as opiniões contrárias à sua posição, e detalhando todos os problemas e meios que
deviam ser utilizados para a solução; incluem-se aí seus sermões, em que o autor prende o leitor,
capturando sua atenção. Esses pontos são anunciados logo no começo do texto pelo seu autor.
No primeiro, buscou descaracterizar a argumentação dos “valentões” sobre a recuperação de
Pernambuco e a guerra que os colonos travavam contra os holandeses, defendendo o tratado
elaborado por ele e Francisco de Sousa Coutinho; no segundo ponto, talvez o mais polêmico,
abordou a situação de Pernambuco na negociação com os holandeses, mostrando que somente
haveria duas saídas para a paz definitiva: entregar ou comprar; para Vieira, não havia dúvidas,
o melhor seria entregar. No terceiro ponto, o jesuíta mostra que o mais conveniente a Portugal,
em quaisquer das situações, é a paz, e não a guerra. No último ponto, o quarto, mostra em
pormenores os impedimentos que tem Portugal para não fazer a guerra.
O “Papel forte” mostrava um reino enfraquecido a mercê de seus inimigos, cuja a única
saída parecia ser entregar o que havia de mais valioso ao adversário mais temido, e direcionar
suas forças para a luta contra o vizinho espanhol. Tratou-se de um grande engano de Vieira,
que viu seu parecer derrotado no conselho, mas também viu sua proposta de criação de
uma companhia de comércio sair do papel. Nesse texto do jesuíta, também observamos, de
modo mais evidente, sua tolerância com os judeus e cristãos-novos, e sua intolerância com os
holandeses.
Vieira tornou-se o grande defensor dos judeus em Portugal no século XVII, observando
estes não como seres inferiores, nem de maneira benevolente, mas como iguais merecedores
dos mesmos direitos dos cristãos-velhos.43 O jesuíta não desejava, assim, simplesmente a
tolerância real, mas a igualdade, indo além da aceitação de uma convivência pacífica. Esse
esforço que tanto desempenhou, transpassou suas ações como diplomata e conselheiro do rei,
tal como colocou em lado oposto a Inquisição, a qual acusava de “fabricar judeus”.

42 Ver AVELINO, S. J. Vieira: trilogia literária na luta contra o holandês. Verbum, v. 16, 1959.
43 NOVINSKY, Anita. Uma luta pioneira pela justiça dos judeus: padre Antônio Vieira. In: AZEVEDO,
Silvia Maria de; RIBEIRO, Vanessa Costa (org). Vieira: vida e palavra. São Paulo: Edições Loyola,
2008.
PARTE III
A INTOLERÂNCIA NO ORIENTE

Jesuítas e dojukus nas missões do Japão: infortúnio como reflexo de uma mediação
etnocêntrica (1549-1587)

Jorge Henrique Cardoso Leão1

De acordo com a periodização ocidental, no século XVI, em plena Época Moderna, o


Japão passava por um período conturbado de sua história, que já durava quase um século.
O enfraquecimento do bakufu2 de Ashikaga deu início a uma guerra civil conhecida como
Sengoku-Jidai. Aproveitando o desequilíbrio político no país, os principais daimyôs3 de
Kyushu e de Honshu se envolveram em uma violenta disputa pelo poder.4
Livres do alcance da autoridade do xogum,5 alguns daimyôs de Kyushu tentaram
investir no comércio com a China, que havia adotado uma política de isolamento.6 Ao
mesmo tempo em que a dinastia Ming fechava o Império do Meio à influência estrangeira, os
mercadores portugueses avançavam sobre as águas do Oceano Pacífico. De Malaca, guiados
por marinheiros e piratas chineses, os lusitanos passaram a frequentar o litoral chinês e, em
1543, chegaram ao Japão, na ilha de Tanegashima, localizada ao sul de Kyushu. De 1544 a 1548,
alguns episódios diplomáticos serviram de base para o estabelecimento das primeiras relações
luso-nipônicas. Seguindo os passos dos mercadores, os jesuítas Francisco Xavier, Cosme de
Torres e João Fernandes desembarcaram na região de Kagoshima em agosto de 1549.7
Na tentativa de pregar o Evangelho no Japão, assim como nas demais regiões do império
asiático português, os inacianos se depararam com várias barreiras culturais constituídas pela
complexidade das sociedades que habitavam a região. No caso do Japão em especial, Francisco
Xavier percebeu a importância de se criar um corpo de cristãos autóctones que viessem a
servir de intérpretes e de auxiliares para os jesuítas, chamados, mais tarde, de dojukus.
Para Juan Ruiz de Medina, mais do que uma função, ser dojuku era um estilo de vida.
Alguns jesuítas chegaram a questionar se eles deveriam ou não incorporar, ao seu modo de
vida, alguns hábitos comuns ao clero cristão, como o voto de castidade, por exemplo. Para
o padre jesuíta Gaspar Vilela, “havia no Japão alguns mancebos que queriam fazer voto de
castidade. Porém, não os consentimos pelo perigo de depois o demônio pudesse persuadi-

1 Mestre em História Social pela Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do


Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
2 Governo militar do xogum.
3 Aristocracia guerreira japonesa possuidora de terras, privilégios e exército privado.
4 HALL, John W. The Muromachi Age in Japanese History. In: ______; TYOYODA, Takeshi (org.).
Japan in the Muromachi Age. Berkeley: University of California Press, 1977. p. 2-7.
5 Líder militar supremo do Japão.
6 SEABRA, Leonor Diaz de. Macau, a China e o Japão: uma relação histórica – séculos XVI-XVII.
Revista de Cultura, Instituto Cultural do Governo de Macau, n. 6, p. 41, 2003.
7 BOXER, Charles Ralph. The Christian Century in Japan (1549-1650). Berkeley: University of
California Press, 1951. p. 37.
los contra a castidade e a vida perfeita”.8 Diante do fato, fica claro que, pelo menos para o
século XVI, os dojukus cristãos não eram obrigados a seguir um modelo de vida sacerdotal.
Como regra fundamental, os jesuítas exigiam que esses auxiliares fossem primeiramente do
sexo masculino, que frequentassem a catequese, que fossem batizados, e que soubessem ler e
escrever, pelo menos no alfabeto vulgar do Japão – hiragana.9
Os dojukus cristãos podiam realizar tarefas das mais variadas, como a de intérpretes, a
de tradutores de catecismos, a de pregadores na ausência dos padres, a de ajudar a promover
os rituais funerários cristãos, a de pregar nas procissões e nas festas públicas, a de prestar
auxílio nos hospitais, e a de cuidar da formação dos novos catecúmenos.10
De acordo com Juan Ruiz de Medina, um dos possíveis estímulos que levavam os
japoneses a entrar para o corpo de dojukus residia no fato de essa função ser remunerada.11
Todavia, diante do que foi consultado nas Cartas de Évora12 de 1598, não foi encontrada
nenhuma referência sobre o pagamento desses indivíduos. Apesar das fontes analisadas
manterem certa cronologia referente à vida dos padres, as informações sobre os dojukus
aparecem de forma desconexa e esporádica. Em geral, esse fato dificulta, ou até mesmo
impossibilita a construção de um quadro prosopográfico. Pelas poucas informações que se
têm a respeito da origem de cada um deles, sabe-se ao menos que, no século XVI, podiam ser
recrutados dentro das mais variadas hierarquias da sociedade japonesa.13
Grosso modo, os vários nomes de batismo que eram dados aos dojukus cristãos tinham
a ver com a origem dos santos católicos, podendo ser acrescentado como sobrenome o local
de nascimento ou, simplesmente, o termo Iapão – ou japonês. No período proposto para a
análise, a maioria das pessoas escolhidas para a função de dojukus encontrava-se no início de
sua idade adulta.14 Por causa da ausência de seminários específicos no Japão para instruí-los
até 1579,15 a idade de recrutamento estava associada ao grau de experiência que tinham em
relação à cultura japonesa e o domínio sobre o idioma falado e escrito.
Por mais que no século XVI o conceito de dojuku fosse flexível, tendo em vista a
formação desses indivíduos e a natureza múltipla de suas funções, isso não desmereceu o grau
da importância que tiveram na atuação da Companhia de Jesus no Japão. Foi inicialmente
pela utilização dessa categoria como mediadores culturais que os padres tentaram dar, ao seu
modo, os primeiros passos para interpretar a cultura japonesa.16
Com base no papel exercido por esses auxiliares, o presente artigo procura analisar as
8 FIRANDO, Gaspar Vilela de. Carta de Gaspar Vilela de Firando, 29 de outubro de 1557. In: GARCIA,
José Manuel (ed). Cartas... V.1, p. 58.
9 RUIZ DE MEDINA, Juan. Dojuku. In: O’NEILL, Charles E.; DOMINGUEZ, Joaquim Maria (dir.).
Diccionario histórico de la Compañia de Jesús. Madri: Universidad Pontifícia de Comillas, 2001. V.2,
p. 1.133-1.134.
10 TURNBULL, Stephen R. The Kakure Kirishitan of Japan: A Study of Their Development, Beliefs and
Rituals to the Present Day. Nova York: Routledge, 1998. p. 71.
11 RUIZ DE MEDINA, Juan. Dojuku, op. cit., p. 1.134.
12 Nome simplificado dado às cartas da Companhia de Jesus da China e do Japão, por terem sido
compiladas pela primeira vez na cidade de Évora.
13 HIGASHIBABA, Ikuo. Christianity in Early Modern Japan: Kirishitan Belief and Pratice. Leiden:
Brill, 2001. p. 24-25.
14 RUIZ DE MEDINA, Juan. Dojuku, op. cit., p. 1.133.
15 LABORINHO, Ana Paula. A questão da língua na estratégia de evangelização: as missões do Japão.
In: CARNEIRO, Roberto; MATOS, A. Teodoro de. (dir.). O século cristão do Japão: atas do colóquio
comemorativo dos 450 anos de amizade Portugal-Japão 1543-1993. Lisboa: Barboza e Xavier Ltda.,
1994. p. 379.
16 GINZBURG, Carlo. Os pombos abriram os olhos: conspiração popular na Itália do século XVII.
In: ______; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo (org.). A micro-história e outros ensaios. Lisboa:
Difel Editorial, 1989. p. 131.
tentativas de mediação desenvolvidas pelos dojukus e pelos jesuítas no período compreendido
entre 1549 e 1587.17 Outro ponto a ser tocado por este trabalho reside no fato de se tentar
compreender as ações que levaram à aproximação dos padres à sociedade japonesa, e,
principalmente as estratégias que deram errado e acabaram gerando conflitos e intolerância
entre ambas as partes.
Tendo estado pela primeira vez em Portugal a serviço da Companhia de Jesus no ano de
1540, o missionário Francisco Xavier partiu para o Estado da Índia um ano depois, chegando à
cidade de Goa em maio de 1542. No tempo em que permaneceu na capital e nos seus arredores,
esteve atento para questões sensíveis e úteis ao trabalho catequético. Em Goa, por exemplo,
denunciou aos seus superiores a existência de uma cristandade deficiente, fruto, segundo ele, da
incapacidade missionária das ordens religiosas anteriores à Companhia de Jesus. Observando
a complexidade cultural da civilização indiana, Francisco Xavier incentivou os jesuítas a
instruírem e a batizarem alguns autóctones acostumados com a presença portuguesa na região
para servirem de intérpretes e de auxiliares. Ainda no subcontinente indiano, o missionário
aproveitou a existência de uma estrutura física eclesiástica para fundar o Seminário de Santa
Fé, oferecido na Igreja de São Paulo. Durante boa parte do século XVI, este seminário tornou-
se ícone de referência na formação de auxiliares cristãos autócontes, inclusive de alguns que
seguiram para o Extremo Oriente e para o Japão.18
Contida no território do qual João Paulo de Oliveira e Costa considerou como zona
de influência, Goa foi palco das primeiras ações ortodoxas por parte dos jesuítas. Em suas
pregações nas comunidades de conversos, Francisco Xavier SJ usou os auxiliares e os intérpretes
para incitar os autóctones cristãos a lutarem contra os monges da terra e a destruírem os
templos dos seus antigos deuses, considerados pagãos.19
Entre 1543 e 1545, o padre esteve em missão na costa do Malabar. Utilizando sua
experiência de aprendizado com o concani e com o sânscrito em Goa, aplicou a mesma
metodologia com o tâmul. Pelo fato de o Malabar estar afastado da capital, Francisco Xavier
não pôde usar de métodos ortodoxos de evangelização no início. Entretanto, à medida que o
entendimento sobre a cultura malabar e as conversões progrediam, o missionário passou a
atuar com maior rigidez sobre as práticas de idolatria entre a população convertida.20 Para
corrigir os desvios dos malabares, o jesuíta insistiu no uso de batismos forçados, nos batismos
infantis, e na criação do clero cristão autóctone. Com essas atitudes ortodoxas, esperava-se
tecer uma rede de cristãos no Malabar capazes de denunciar os ditos pagãos e estimular a
perseguição contra eles.
Rumo ao Extremo Oriente, em 1545, Francisco Xavier teria feito uma pequena parada
no estreito de Malaca. De acordo com Maria Odete Martins, a evangelização no local era
complicada. Malaca “era uma cidade de passagem, uma cidade de forasteiros e de mercadores,
um grande centro cosmopolita, com todas as consequências que daí advinham”.21 Foi por essa
17 O corte cronológico justifica-se da seguinte maneira: a análise tem início em 1549, data oficial de
chegada dos primeiros jesuítas ao Japão, e se encerra no ano de 1587, quando Toyotomi Hideyoshi
decretou o édito anticristão de Hakata, coibindo a presença dos cristãos no centro do país.
18 SOUSA, Ivo Carneiro de. São Francisco Xavier no Sudeste Asiático: evangelização, solidão e obras
de misericórdia. Revista de Cultura, Instituto Cultural do Governo da R.A.E. de Macau, n. 19, p. 34-
52, 2006.
19 ALVEZ, Jorge Manuel dos Santos. Portugal e a missionação no século XVI: o Oriente e o Brasil.
Lisboa: Imprensa Nacional da Casa da Moeda, 1997. p. 27.
20 ZUPANOV, Inês G. Do sinal da cruz à confissão em Tâmul: gramáticas, catecismos e manuais de
confissão. Missionários na Índia meridional (séculos XVI-XVII). In: HESPANHA, Antônio Manuel
de (dir.). Os construtores do Oriente português. Porto: Comissão Nacional para as Comemorações
dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 156-157.
21 MARTINS, Maria Odete Soares. A missionação nas Molucas no século XVI: contributo para o estudo
da ação jesuítica no Oriente. Lisboa: Centro de História do Além Mar, 2002. p. 71.
característica que decidiu seguir mais a frente até atingir as Molucas, em 1546.
Para driblar as dificuldades do idioma na região, preferiu utilizar o malaio para pregar
e para se comunicar com os nativos, assim como escolheu usar apenas os auxiliares autóctones
que compreendessem bem a língua.22 Apesar de sua importância econômica para os negócios
lusitanos, as Molucas estavam localizadas na zona de rejeição do império português. Nesta
época, suas ilhas eram governadas por sultanatos muçulmanos orientalizados. Valendo-se
da popularidade dos comerciantes portugueses, os jesuítas logo trataram de se aproximar
dessas lideranças, e tentaram implementar um sistema de conversão de cúpula. Porém,
foram hostilizados pelos sultões a partir do momento em que começaram a interferir e a
combater a prática do casamento poligâmico, muito utilizado entre os malaios como meio de
sacramentarem alianças diplomáticas, comerciais e militares.
Aos olhos dos jesuítas, sem grandes sucessos, Francisco Xavier teria deixado o
arquipélago e retornado para Malaca em meados de 1547. De volta ao estreito, o padre foi
apresentado ao japonês conhecido por Anjirô. Tendo tomado as devidas informações sobre
o Japão, Francisco Xavier entusiasmou-se a retornar para Goa, onde instruiu pessoalmente
o japonês na doutrina cristã, dando-lhe o nome de Paulo de Santa Fé, em homenagem ao
seminário aonde estudou. No decorrer de 1548, o missionário decidiu retornar ao Extremo
Oriente; porém, seu destino era outro: queria chegar ao Japão.
Pela falta de compreensão dos idiomas entre ambas as partes, Francisco Xavier e
Anjirô inicialmente comunicaram-se pelo pidgin,23 mesclando elementos do português e do
japonês. De acordo com o jesuíta, ainda em Goa, Anjirô chegou-lhe a confessar que “não
entendia a língua em que eram escritas as leis de sua terra [...]. Por esta razão, não soube
dar a informação completa das leis escritas, nos seus livros impressos”.24 A partir da suposta
confissão, o missionário alertou os demais padres que fossem ao Japão para ter cautela com as
coisas que eram ditas pelos intérpretes e pelos auxiliares.
No caminho para o Japão, em uma escala na cidade de Malaca em junho de 1549,
Francisco Xavier indagou Anjirô a respeito das práticas religiosas dos japoneses. Como
resultado da soma do discurso jesuítico carregado de julgo de valores com a deficiência na
comunicação com o seu auxiliar, Xavier reduziu erroneamente o princípio xintoísta dos
kamis25 a uma espécie de culto animista pagão. Segundo a fala do padre, Paulo de Santa Fé
teria dito que os japoneses “adoravam como deuses as criaturas que Deus criou para serem
postas a serviços dos homens [...] como adoravam o sol e a lua”.26 E ainda acrescentou que os
bonzos27 pregavam nas ruas “um inferno pintado, assim como os tormentos, e que mostravam
aquelas figuras ao povo”.28
Anjirô ainda informou que os padres deviam evitar conflitos com as autoridades
religiosas de seu país, que eram muito poderosas. Para isso, aconselhou os jesuítas a adotarem
algumas posturas comuns ao clero japonês, como a de não comer carne e a de se vestir com
22 Na visão de Maria Odete Martins, o malaio era considerado uma espécie de língua franca nas
Molucas. Pela experiência comercial com o arquipélago, os europeus residentes em Goa já estavam
familiarizados com o malaio. No Seminário de Santa Fé, por exemplo, eram oferecidos aos jesuítas
e seus auxiliares cursos sobre a língua. Ibidem, p. 33.
23 Língua compósita, nascida do contato entre falantes de inglês, francês, espanhol, português etc. com
falantes dos idiomas da Índia, da África e das Américas, e que servia apenas como segunda língua
para fins limitados, especialmente comerciais.
24 XAVIER, Francisco. Carta de Francisco Xavier de Goa, 20 de janeiro de 1549. In: GARCIA, José
Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 1.
25 Conceito xintoísta utilizado para definir a essência das coisas físicas e sobrenaturais.
26 XAVIER, Francisco. Carta de Francisco Xavier de Malaca, 22 de junho de 1549. In: GARCIA, José
Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 5.
27 Nome genérico dado pelos ocidentais aos sacerdotes japoneses.
28 XAVIER, Francisco. Carta de Francisco Xavier de Malaca, 22 de junho de 1549, op. cit., p. 7.
roupas de seda.29 Francisco Xavier mencionou que, além de Paulo de Santa Fé, outros
japoneses “foram doutrinados em nosso Colégio de Santa Fé em Goa, onde aprenderam a ler, a
escrever e fizeram os Exercícios Espirituais com muito recolhimento, havendo o nosso desejo
de aproveitá-los”.30 Com a atitude de instruir outros auxiliares japoneses em Goa, Francisco
Xavier, Cosme de Torres e João Fernandes deram o primeiro passo para a criação do futuro
corpo de dojukus cristãos destinados a atuarem no Japão.
Depois da longa escala em Malaca, os primeiros jesuítas chegaram ao Japão, em agosto
de 1549, no porto de Kagoshima, cidade natal de Anjirô, localizada na província de Satsuma,
em Kyushu.
Por intermédio de Paulo de Santa Fé, os jesuítas realizaram uma visita ao daimyô
Shimazu Takahisa. Francisco Xavier pensou que a única maneira de tê-lo como aliado seria
estimulando sua conversão ao cristianismo.31 Sem sucesso, o missionário decidiu partir
para a capital imperial do Japão, Miyako (atual Kyoto). Assim que deixou Satsuma, em 1550,
o daimyô local decidiu romper as relações diplomáticas com os jesuítas. No caminho para
Miyako, os padres fundearam a ilha de Hirado, na província de Hizen. Lá, foram recebidos
por Omura Sumitada, que tinha aproximadamente 17 anos de idade. Aproveitando-se da
inexperiência do daimyô, Cosme de Torres conseguiu facilmente uma autorização para pregar
o Evangelho na região. Entretanto, a atitude de Omura Sumitada desencadeou nas ruas de
Hirado um conflito entre os missionários e os bonzos japoneses.32
Em novembro de 1550, acompanhado de Anjirô e Cosme de Torres, Francisco Xavier
chegou a Yamaguchi, na província de Suô, levando consigo alguns ícones religiosos e pequenos
catecismos escritos no idioma da terra. Após ter pregado durante dias para os parentes de
Ouchi Yoshitaka, os jesuítas foram ao templo mais importante da cidade para debater com os
bonzos. Segundo o historiador Jurgis Elisonas, o encontro foi um desastre.33
Para tentar explicar a origem de Deus, Francisco Xavier usou equivocadamente o
conceito japonês do dainichi. De acordo com a História do Japão, do jesuíta Luís Fróis, a certa
altura, Francisco Xavier perguntou aos bonzos “se eles tinham para si, ou também pregavam”34
a Santíssima Trindade. Porém, “os bonzos estavam tão inocentes disto que tudo lhes parecia
fábulas ou sonhos, e riam do que ouviam”.35
Influenciada pelas correntes budistas Amitaba e Nichiren, a doutrina Zen dividia seu
plano espiritual em cinco vibrações, sendo cada uma delas um tipo de manifestação de Buda.36
A mandala da flor de lótus, a qual representava os cinco budas da meditação, tinha ao centro
o dainichi. Partindo dessa premissa, Francisco Xavier associou respectivamente a mandala da
flor de lótus e o dainichi ao mistério da Santíssima Trindade e à figura monoteísta de Deus.37
Francisco Xavier voltou-se para João Fernandes e pediu que ele “pregasse pelas ruas
que os japoneses não adorassem mais o dainichi e nem que o chamassem pelo nome de Deus,
29 Ibidem, p. 7.
30 Ibidem, p. 5.
31 LÓPEZ-GAY, Jesús. Saint Francis Xavier and the Shimazu Family. Bulletin of Portuguese/Japanese
Studies,Universidade Nova de Lisboa, v. 6, p. 93-106, 2003.
32 TORRES, Cosme de. Carta de Cosme de Torres de Yamaguchi, 20 de setembro de 1551. In: GARCIA,
José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 17.
33 ELISONAS, Jurgis. Christianity and the Daimyo. In: HALL, John Whitney (dir.). The Cambridge
History of Japan: Early Modern Japan. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. V.4, p. 307-
310.
34 FRÓIS, Luís. História do Japão (edição anotada por José Wicki) Lisboa: Biblioteca Nacional deLisboa,
1976-84. v. 1 p.40.
35 Ibidem, p. 41.
36 YUSA, Michiko. Religiões do Japão. Lisboa: Edições 70, 2002. p. 54.
37 ELISON, George. Deus Destroyed: The Image of Christianity in Early Modern Japan. Cambridge:
Harvard University Press, 1973. p. 33-34.
sendo antes de tudo uma lei falsa, enganosa e do demônio”.38 Ainda segundo a fala do padre,
“dali por diante, nunca mais os bonzos daquela seita nos quiseram ver nem nos admitir em seus
mosteiros; e começaram a criar ódio pelas coisas de Deus”.39 Por conta desse equívoco, os
jesuítas foram encarnados e humilhados publicamente pelos bonzos e pela população gentia.
Apesar dos conflitos em Yamaguchi, Francisco Xavier deixou os irmãos Cosme de
Torres e João Fernandes em Hizen, e partiu com Paulo de Santa Fé para a capital do país,
no arquipélago de Honshu. A passagem do padre pela capital foi breve. O jesuíta chegou à
cidade de Miyako em janeiro de 1551. Nesta época, o auge da guerra civil e o enfraquecimento
político do imperador colocaram o xogum Ashikaga Yoshiteru em uma situação complicada.
No intento de preservar a divindade do imperador do Japão, o xogum negou a Francisco Xavier
a tal sonhada embaixada.
Naquele mesmo ano, Francisco Xavier foi requisitado por seus superiores para retornar
à capital do Estado da Índia. No caminho de volta para Goa, passou novamente por Yamaguchi
e, junto com Paulo de Santa Fé, chegou a Funai, na província de Bungo, onde foi recebido
pelo daimyô Otomo Yoshishige. Foi a partir deste ponto que a história de ambos seguiu por
rumos distintos. No momento em que o padre regressava para a Índia, Paulo de Santa Fé foi
deixado aos cuidados dos outros dois jesuítas que foram para o Japão com ele em 1549. Assim
que chegou a Goa, o missionário tratou de solucionar suas obrigações institucionais com a
congregação, e iniciou sua viagem de volta para o Japão. Em dezembro de 1552, numa escala
realizada na cidade de Sanchoão, o jesuíta veio a falecer no dia 3 de dezembro, vítima de uma
grave doença.
Após a morte do padre, a vida de Paulo de Santa Fé se tornou um mistério. Devido
à escassez de fontes, um dos poucos testemunhos deixados informou que o primeiro auxiliar
japonês cristão teria abandonado os missionários para, depois, se aventurar na vida ao mar,
atuando como intérprete para os mercadores e vindo a falecer em um curto espaço de tempo,
devido aos ataques dos wakos40 entre o mar do Japão e mar da China.41
Depois de Paulo de Santa Fé, é comum encontrar nas fontes portuguesas menções
a outros auxiliares. Nesta primeira fase, o nome dojuku não chegou a ser utilizado pelos
primeiros jesuítas para evitar um conflito ainda maior com os japoneses. Na verdade, a função,
que já existia nas hierarquias shintos, teve sua nomenclatura aproveitada pelos inacianos
somente em 1579, com o padre Alessandro Valignano.42 Antes disso, eram chamados apenas
de moços, raspados ou auxiliares.
Ainda no tempo em que esteve no Japão, Francisco Xavier instruiu um auxiliar
japonês chamado Lourenço de Hizen. Apesar de deficiente visual, Lourenço foi aproveitado
pelo fato de saber cantar e tocar instrumentos musicais. Isso despertou nos padres o interesse
em compor canções religiosas para serem cantadas por ele. Em uma correspondência de 1555,
o padre jesuíta Baltazar Gago, que estava no Japão desde 1552, escreveu de Firando uma carta
dizendo que os missionários instruíram outros auxiliares e, entre eles, estava Paulo de Bungo.
Este, por exemplo, chegou a se revelar “um grande pregador do Evangelho, com que estes
cristãos se fizeram entender quando o ouviam falar que suas seitas eram coisas do demônio e
que a verdade estava na nossa Santa Fé, que ele entendia muito bem”.43
Apesar da suposta habilidade dos dojukus, deve-se estar atento à intencionalidade do
discurso jesuítico e às dificuldades que esses indivíduos tinham ao lidar com a soma dos idiomas
e das culturas cristã e japonesa. Durante as pregações, os auxiliares traduziam o discurso dos
38 FRÓIS, Luís. História do..., op. cit., v. 1, p. 40.
39 Ibidem, p. 40.
40 Nome dado aos antigos piratas japoneses.
41 FRÓIS, Luís. História do..., op. cit., v.1.
42 HIGASHIBABA, Ikuo. Christianity..., op. cit., p. 19.
43 FIRANDO, Baltazar Gago de. Cartas de Baltazar Gago de Firando, 23 de setembro de 1555. In:
GARCIA, José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 38–41.
padres de modo simplificado ou incompleto. Somado a isso, pelo pouco entendimento que os
próprios dojukus e os jesuítas tinham das crenças japonesas, ambos recorriam como analogia
aos elementos do cristianismo para explicar o pouco que conseguiam compreender da cultura
japonesa, gerando choques e conflitos com a população local, como no caso do dainichi
mencionado anteriormente.
Em 1556, o vice-provincial do Oriente, o jesuíta Belchior Nunes Barreto, chegou ao
Japão. Ao contrário do pioneirismo de Francisco Xavier, este padre contou com a experiência
dos missionários e de seus auxiliares, que estavam em atividade na terra desde 1549, para
traçar novas estratégias de evangelização. Como mecanismo de difusão do cristianismo, o
vice-provincial insistiu que os padres e os dojukus estimulassem as conversões de crianças.
Segundo o jesuíta Gonçalo Fernandes, acompanhado pelas ruas de Firando por um
auxiliar japonês chamado Guilherme, no início de 1560, o também jesuíta Gaspar Vilela
pregou para algumas crianças daquela cidade. Um deles, por exemplo, “foi à igreja pedindo ao
padre que o fizesse cristão. [...] Vendo sua boa vontade, logo tornou o menino cristão. Depois
de cristão, o garoto foi pregar para seu pai e sua mãe a palavra do nosso Senhor, e, assim,
converteu sua família”.44 De acordo com o depoimento de Gonçalo Fernandes, a estratégia
do vice-provincial era clara: esperava-se estimular a desagregação das famílias gentias com a
utilização de suas crianças como mensageiros dos jesuítas. Apesar disso, não se deve pensar
que as conversões familiares ocorriam de forma pacífica, tal qual foram descritas pelos jesuítas.
Um caso ocorrido com o padre Luís de Almeida na cidade de Hakata (atual Fakata), antiga
província de Shikuzen, atual Fukuoka, em outubro de 1565, demonstrou o contrário.45 Após
o assassinato do xogum Ashikaga Yoshiteru, os jesuítas foram obrigados a deixar a capital do
país. Na corte do daimyô cristão Omura Yoshiaki, ou d. Sancho, o jesuíta Luís de Almeida
deparou-se com um conflito familiar gerado pela disseminação dos valores cristãos entre as
famílias japonesas.
Mônica, a filha mais jovem do daimyô, havia sido prometida em casamento a um tio
mais velho, que era bonzo. Indignada com a decisão do pai, que era cristão, de arranjar o seu
casamento, a moça recorreu ao jesuíta para desfazer a promessa. Assim como as mikos,46 em
sinal de castidade e de vida sacerdotal, a jovem despiu-se de suas roupas elegantes e cortou
seus longos cabelos. Em defesa de Mônica, Luís de Almeida disse a d. Sancho que, sendo ele
cristão devoto, jamais poderia tolerar que sua filha viesse a se casar com um gentio, ainda
mais sendo ele um bonzo. Em réplica ao padre, o daimyô disse que perante os costumes locais,
não poderia recusar tal pedido. Novamente contra o argumento sustentado por d. Sancho, o
jesuíta disse que, segundo os princípios cristãos, aquela família que possuísse um filho ou
filha com vocação para o sacerdócio seria abençoada. Com receio de que se tomasse a atitude
errada fosse abalar a amizade que tinha com os padres e com os mercadores portugueses, d.
Sancho voltou atrás e negou o pedido de casamento do Bonzo.47 Em contrapartida à escolha
feita pelo aristocrata, o descontentamento dos bonzos gerou represália da população gentia
sobre algumas comunidades cristãs instaladas na província.
Para historiadores como Dauril Alden e Ikuo Higashibaba, as missões jesuíticas
tiveram um campo de atuação maior no Japão a partir da chegada dos padres jesuítas Luís
Fróis e Alessandro Valignano.48 No tempo em que esteve no Japão, entre 1563 a 1593, Luís
Fróis foi um dos que mais trabalharam a favor da qualificação dos dojukus e da capacitação
44 FERNANDES, Gonçalo. Carta de Gonçalo Fernandes de Goa, 1o de dezembro de 1560. In: GARCIA,
José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 72.
45 ALMEIDA, Luis de. Carta de Luis de Almeida de Fakunda, 25 de outubro de 1565. In: GARCIA, José
Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 162–163.
46 Nome dado às auxiliares femininas xintoístas.
47 ALMEIDA, Luis de. Carta de Luis de Almeida..., op. cit., p. 163.
48 Ver ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: the Jesuits in Portugal, its Empire and beyond,
1540-1750. Stanford: Stanford University Press, 1996; HIGASHIBABA, Ikuo. Christianity…, op. cit.
dos jesuítas no idioma da terra. De acordo com o padre, além de saberem falar a língua, os
missionários deveriam dominar as formas da escrita japonesa, por serem essenciais “para
entender suas seitas e para disputarem contra os que as seguem e os que iam a nossa casa. Isso
porque, se nós a ignorássemos, ou se não soubéssemos como consultar e nem como apontar os
seus erros, os japoneses desprezavam tudo o que lhe falávamos, e não faziam tanta impressão
do que ouviam”.49
Na tentativa de penetrar nas comunidades gentias, Luís Fróis transmitiu aos dojukus
pequenos catecismos que continham mensagens contra as religiões da terra. Para o missionário,
ao aprenderem esses textos, os auxiliares seriam capazes de saber “falar com o gentio facilmente
e fazer entender a raiz de seus erros”.50
Outra estratégia apoiada por Luís Fróis no Japão foi o uso do teatro jesuítico como
instrumento de conversão. Apesar dos vários estudos sobre sua importância nas outras áreas
do Império Ultramarino Português, no caso do Japão, a escassez de fontes impede que se faça
uma análise mais detalhada dessas atividades. Sabe-se ao menos que o missionário estimulou
participação dos dojukus na confecção dos autos teatrais. Observando o gosto dos japoneses
por festas e acontecimentos públicos, Luís Fróis permitia que os gentios frequentassem esses
espetáculos como forma de atrai-los para a conversão.51 Sem a aprovação dos padres, muitos
japoneses cristãos também participavam dos festejos promovidos pelo calendário xintoísta.
Com receio de perder a freguesia, os jesuítas puniam os transgressores, proibindo-os de entrar
nas igrejas para assistir às pregações por um determinado tempo, ou excluíam o indivíduo das
assistências mantidas pela congregação no país, como os hospitais, por exemplo.
Para evitar que os bonzos tentassem manipular os convertidos, Luís Fróis aventurou-
se pela primeira vez a traduzir e a compreender os pergaminhos sagrados das doutrinas
budistas Shingon e Amitaba. Em uma de suas cartas endereçadas ao Colégio de Goa, escrita
em abril de 1565, afirmou ter conseguido desvendar o mecanismo de funcionamento de
ambas as seitas, assim como o do seu calendário religioso e o de suas divindades. Mesmo
se for levada em consideração a experiência do padre com a escrita vulgar e com a fala do
japonês, deve-se duvidar que o tenha feito de maneira correta. Pois, para se aprofundar na
leitura dos pergaminhos religiosos, era necessário compreender os ideogramas dos alfabetos
kamji e katakana. No Japão daquela época, esse tipo de conhecimento era tão restrito que nem
a maioria dos dojukus cristãos e gentios chegava a tê-lo.
Dentre as várias formas de perceber as crenças japonesas, o caso mais curioso descrito
por Luís Fróis foi o da divindade budista Enma Dai Oh. Por conta da similaridade que sua
figura tinha com a do Diabo cristão, o padre o associou equivocadamente a uma espécie
de “juiz do inferno”.52 Perplexos diante da quantidade de fiéis que iam fazer oferendas no
templo, os jesuítas pediram que os gentios não entrassem naquele local. Sem saber explicar
aos missionários do que aquele culto se tratava na ótica budista, os dojukus nada puderam
fazer para ajudar os jesuítas, que foram atacados pelos bonzos do templo e por seus seguidores.
Entre a década de 1570 e 1580, o cristianismo floresceu no Japão devido à ascensão
política de Oda Nobunaga. Empenhado na destruição dos ikko-ikkis53, o sengoku-daimyô
estimulou a difusão do cristianismo como meio de combater os núcleos autônomos de poder
dentro de seus domínios.54 Além disso, agradando os jesuítas, o aristocrata conseguia mediar
49 FRÓIS, Luís. História do..., op. cit., v.2. p. 91.
50 Ibidem, p. 91.
51 FIGUEIREDO, Belchior de. Carta de Belchior de Figueiredo de Bungo, 27 de setembro de 1567. In:
GARCIA, José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 243.
52 FRÓIS, Luís. História do..., op. cit., v. 2, p. 29.
53 Ikko-Ikkis eram pequenas comunidades autônomas de monges guerreiros e de camponeses.
54 COSTA, João Paulo de Oliveira e. Oda Nobunaga e a expansão portuguesa. In: ______ (ed.). O Japão
e o cristianismo no século XVI: ensaios de história luso-nipônica. Lisboa: Sociedade Histórica de
Independência de Portugal, 1999. p. 110.
com mais agilidade as transações comerciais com os mercadores portugueses, que forneciam
pólvora e armas de fogo para seus exércitos. Envolvidos no jogo político de Oda Nobunaga,
os padres voltaram a frequentar o complexo de Honshu e a capital do Japão a partir de 1569.
Considerado “gentio protetor dos missionários”,55 Oda Nobunaga concedeu
autorização para que os jesuítas construíssem dois seminários, um em Arima e outro em Omi,
e uma igreja, a de Nossa Senhora de Assunção, no Miyako, em 1576. Um ano depois, ainda
sob a proteção de Oda Nobunaga, o padre jesuíta Organtino Soldo instruiu seus auxiliares a
incentivar os cristãos japoneses a destruírem os templos budistas e os santuários xintoístas
da capital. Propositalmente, os jesuítas escolheram outro templo dedicado ao culto de Enma
Dai Oh como alvo. Ao contrário do caso relatado anteriormente por Luís Fróis, em que os
missionários sofreram com os ataques dos bonzos, desta vez, os jesuítas decidiram agir de
um jeito mais radical. Segundo as pregações de Organtino Soldo na Igreja de Nossa Senhora
de Assunção, o templo que era “dedicado ao Diabo, pelo qual os japoneses possuíam muita
veneração”,56 deveria ser queimado pelos cristãos da terra. Após a destruição do templo, o
jesuíta mostrou-se desejoso em erguer no local uma igreja dedicada ao arcanjo Miguel como
símbolo da igreja militante e da luta dos exércitos de Jesus Cristo contra o mal.57
Requisitados corriqueiramente pelos jesuítas, os dojukus foram ganhando espaço
no projeto da Companhia de Jesus, principalmente após a chegada do jesuíta Alessandro
Valignano ao Japão. Nascido no antigo reino de Nápoles, Valignano entrou para a Companhia
de Jesus em 1566, e chegou ao Oriente na condição de visitador no ano de 1573. Desde cedo,
ainda enquanto noviço, assim como Luís Fróis, o jesuíta esteve atento para o peso do estudo
das línguas e dos idiomas extraeuropeus na formação de um missionário.58 Valignano esteve
no Japão em três momentos distintos: um de 1579 a 1582, o outro de 1590 a 1592, e o último
de 1598 a 1603. Entretanto, para o presente artigo, faz-se necessário estar atento apenas ao
primeiro momento.
Na primeira visitação do padre ao Japão, Valignano foi testemunha tanto da ascensão
quanto da queda de Oda Nobunaga. Em meados de 1579, junto com Luís Fróis, Organtino
Soldo e Lourenço Mexia, o visitador foi recebido pessoalmente pelo daimyô no castelo em
Azuchi, na província de Omi (atual Shiga).59 Nessa embaixada, os jesuítas tentaram converter
em vão Oda Nobunaga.
Ao retornarem do encontro com o novo senhor do Japão, Alessandro Valignano
concentrou-se nos preparativos da embaixada que levaria alguns fidalgos japoneses ao Estado
da Índia e à Europa. No período em que permaneceu na cidade de Arima, Valignano liderou
os preparativos da fundação de um seminário dedicado à instrução dos japoneses escolhidos
para realizar a embaixada e para os dojukus, em 1579.
Aproveitando a influência do visitador do Oriente, na cidade de Kuchinotsu, próxima
de Nagasaki, o jesuíta espanhol Francisco Carrião comunicou que tanto os padres quanto os
dojukus usufruíam
[...] de um seminário dos nossos em que estão lá, agora, cerca
55 COSTA, João Paulo de Oliveira e. Oda Nobunaga..., op. cit., p. 112.
56 SOLDO, Organtino. Carta de Organtino Soldo de Miyako, 1o de setembro de 1577. In: GARCIA,
José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 398.
57 Ibidem, p. 399.
58 LEITÃO, Ana Maria Ramalho Proserpeio. Biografias – Alexandre Valignano: um missionário
inovador no país do sol nascente. In: COSTA, João Paulo de Oliveira e (coord.). A influência
dos portugueses na história do Japão. Lisboa: Encontro Portugal-Japão/Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 29-35.
59 MONTEIRO, Sandra Amaral. A morte de Oda Nobunaga: causas e consequências (um retrato de
Luís Fróis). In: CARNEIRO, Roberto; MATOS, A. Teodoro de. (dir.). O século cristão do Japão: atas
do colóquio comemorativo dos 450 anos de amizade Portugal-Japão 1543-1993. Lisboa: Barboza e
Xavier Ltda., 1994. p. 449-450.
de quinze ou dezesseis estudantes aprendendo o idioma natural
da terra e aproveitaram em dois anos e tanto, o que dos padres
vieram nestes três anos e muito se confessam. Sendo que dois
irmãos já estão muito distantes e que entendem muito bem
os japoneses e poderão confessar se tiverem ordens e, ainda,
ajudarem mais. Porém, para que melhor se aproveitem, seguem
estudando a língua até agora com mais diligência e com maior
fervor do que nunca estudaram.60

Com os preparativos da embaixada finalizados, Alessandro Valignano partiu com os


fidalgos japoneses para a Europa no início de 1582, não chegando a assistir a morte de Oda
Nobunaga, no mês de junho do mesmo ano. Pouco tempo antes morrer, em reconhecimento
às suas conquistas militares, o daimyô ergueu um templo em homenagem a si mesmo na
cidade de Azuchi, o que gerou a ira dos padres, principalmente a de Luís Fróis. Segundo o
missionário, Nobunaga
[...] determinou finalmente romper conosco com temeridade
e insolência de Nabucodonosor, pretendendo ser por todos
adorado. Não como homem e mortal, mas como se fora
divino ou senhor da imortalidade. Para efetivar seu nefando e
abominável desejo, mandou construir um templo junto de seus
paços, em um monte próximo a sua fortaleza, onde registrou
a intenção de sua venenosa ambição. [...] Todavia como Oda
Nobunaga chegou à tamanha insolência e temeridade, querendo
para si usurpar o que só a Deus criador e redentor do mundo
se deve, não permitiu que o nosso Senhor que lhe desse muita
complacência porque desde aquela festa de adoração que se fez
em Azuchi, aos dezenove dias, seu corpo já estava feito em pó e
cinzas na terra, e sua alma sepultada no inferno.61

Após os cortejos fúnebres de Oda Nobunaga, de acordo com tradição religiosa japonesa,
seus generais se reuniram para discutir o destino do processo de unificação do Japão. Tendo
sido o guerreiro mais condecorado durante a expansão de Nobunaga, Toyotomi Hideyoshi foi
o escolhido para suceder o antigo daimyô. Entre 1584 e 1586, Hideyoshi consolidou seu poder
no arquipélago de Honshu derrotando os exércitos de Tokugawa Ieyasu. Em 1585, chegou
a assumir o título público de kampaku, ou seja, regente do imperador.62 Um ano depois, o
general iniciou sua escalada militar contra os daimyôs rebeldes de Kyushu. Em direção ao sul
do país, no caminho de Hideyoshi, estavam os missionários jesuítas. Acusados pelo kampaku
de estarem desestruturando a sociedade e a cultura japonesas, os missionários tiveram seu
campo de atuação reduzido às áreas de influência portuguesa no arquipélago de Kyushu após
a promulgação do Édito de Hakata, em 25 de julho de 1587.63
Nos meses em que se seguiram à publicação do édito anticristão, os bonzos, que, durante
60 CARRIÃO, Francisco. Carta de Francisco Carrião de Kuchinotsu, 10 de dezembro de 1579. In:
GARCIA, José Manuel (ed.). Cartas... V.1, p. 433.
61 FRÓIS, Luís. Carta de Luís Fróis de Kuchinotsu, 5 de novembro de 1582. In: GARCIA, José Manuel
(ed.). Cartas... V.2, p. 62.
62 PINTO, Ana Fernandes. Uma imagem do Japão: a aristocracia guerreira nipônica nas cartas
jesuíticas de Évora, 1598. Macau: Instituto Português do Oriente/Fundação Oriente, 2004. p. 23.
63 COSTA, João Paulo de Oliveira e. Japão. In: MARQUES, Antônio Henrique R. De Oliveira (dir.).
História dos portugueses no Extremo Oriente: de Macau à periferia. Macau: Fundação Oriente, 1998.
V. 1, t. 2, p. 403-405.
o período da ofensiva de Oda Nobunaga eram perseguidos pelos seus exércitos e pelos jesuítas,
sob a regência de Hideyoshi, sentiram-se confortáveis para investir contra as comunidades
cristãs no país. Mesmo assim, as missões não recuaram diante da repressão.
O visitador Alessandro Valignano retornou ao Japão após oito anos desde a sua longa
viagem para levar ao continente europeu a embaixada japonesa. No momento em que pisou
novamente no Japão, o visitador foi informado pelos jesuítas que a situação das missões no
país havia mudado. Devido à reclusão dos missionários no complexo de Kyushu, imposta
pelo Édito de Hakata, muitas comunidades cristãs foram destruídas ou simplesmente
abandonadas. Além disso, os inacianos foram forçados a aceitar a quebra do monopólio sobre
a evangelização do Japão, ainda em 1585, por ordem do papa Gregório XIII. Neste tempo, os
missionários franciscanos passaram a atuar com mais frequência nas áreas já cristianizadas
pelos jesuítas.64 Alessandro Valignano buscou reforçar as bases da Companhia de Jesus na
Terra do Sol Nascente lutando a favor da institucionalização dos dojukus, no ano de 1592.65
Apesar do interesse despertado pelo estudo do período posterior à publicação do édito de e
da formalização da função dos dojukus, este assunto está fora do escopo do presente trabalho.
A partir das ideias debatidas no decorrer do texto, conclui-se que o uso de auxiliares
autóctones não foi uma estratégia exclusiva apenas do caso japonês. Porém, observou-se
que, mesmo diante da má formação desses indivíduos, do pouco conhecimento que tinham
do seu próprio sistema cultural, assim como do seu idioma, os dojukus serviram de agentes
mediadores porque participaram diretamente do processo de evangelização no Japão, atuando
como intérpretes e auxiliares dos missionários.
No cotidiano da atuação dos padres, era visível a ocorrência de infortúnios causados
pela deficiência na comunicação entre os jesuítas e esses auxiliares. Se, por um lado, o
conhecimento dos dojukus era limitado, por outro, o produto final do trabalho missionário,
ou seja, a redução do gentio ao cristianismo, era um ato de imposição, como lembrou a
historiadora Célia Tavares.66 Carregado de valores etnocêntricos, os jesuítas foram capazes
de distorcer o discurso dos dojukus para compreender e associar, à sua maneira, os elementos
da cultura japonesa aos da cultura europeia. O resultado disso foram analogias mal feitas,
como nos casos do dainichi e da divindade budista Enma Dai Oh, que geraram choques com
os bonzos da terra.
No tempo em que Oda Nobunaga esteve no poder, os jesuítas gozaram de mais
autonomia para pregar no arquipélago. Instigados pelo jogo político de Nobunaga, os
missionários deram início à perseguição dos bonzos. Para isso, utilizaram os dojukus durante
as pregações como meio de incentivar os japoneses convertidos a aderirem à causa dos padres.
Após a morte de Nobunaga, a influência dos jesuítas sobre o Centro do Japão foi reduzida.
Mesmo assim, a ascensão de Toyotomi Hideyoshi, a publicação do Édito de Hakata em 1587,
e a retaliação dos bonzos às comunidades cristãs não foram suficientes para frear as missões.
Luís Fróis e Alessandro Valignano investiram tanto na capacitação dos missionários quanto
nas dos dojukus como meio de reduzir os erros de associações cometidos por ambas as
partes. A prova de que os auxiliares japoneses cristãos continuaram a se destacar na política
missionária foi a criação dos seminários no Japão a partir de 1579, e de sua institucionalização,
obtida, mais tarde, em 1592.

64 Idem. Em torno da criação do bispado do Japão. In: ______. O Japão e o cristianismo no século XVI:
ensaios de história luso-nipônica. Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1999.
p. 129-154.
65 BARROS, Cândida; MARUYAMA, Toru. O perfil dos intérpretes da Companhia de Jesus no Japão
e no Brasil no Sséculo XVI. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v. 4, p. 14, 2007.
66 TAVARES, Célia Cristina da Silva. Rotas da fé: inquisição e missionação no Oriente português. In:
FRAGOSO, J. ET AL. (org.). Nas rotas do Império: eixos mercantis, tráfego e relações sociais no
mundo português. Vitória: Edufes, 2006. p. 301.
Destruição de pagodes e conversão de gentios:
transformações culturais e sociais da população hindu na Goa Quinhentista

Eduardo Borges de Carvalho Nogueira1

Goa, a capital do Estado da Índia a partir do ano de 1530, foi o centro das ações portuguesas
no Oriente. Servindo como receptora e emissora das determinações metropolitanas, além de
possuir funções estratégicas tanto em nível local quanto em nível mais amplo nas disputas
comerciais e políticas com as demais nações ao seu redor, a cidade foi palco de profundas
alterações ao longo do século XVI. Tais alterações tiveram como objetivos principais a
transformação tanto do espaço físico da região sob domínio português quanto de sua variada
população, de modo a tornar a área um legítimo centro de poder lusitano em terras tão
distantes. Sobre a maioria local, os hindus goeses, detentores de terras, que tinham acesso
ao mercado asiático e aos poderes políticos locais, foram aplicadas medidas que alteraram
significativamente seus hábitos, práticas sociais e organização.
Para concretizar o projeto de transformação de Goa, a ação portuguesa teve como um
de seus principais alvos os chamados devullas,2 os pagodes ou templos das crenças hindus.
Locais de destacada importância para a estruturação da sociedade goesa nativa, foram tais
espaços um dos grandes focos extirpados desta área que, gradativamente, se transformou no
alter ego de Lisboa, e, para tal, não seria possível abrigar em si elementos dissonantes com
relação à política portuguesa da época.
Fazendo breve menção ao domínio anterior islâmico sobre Goa, e focalizando as ações
lusas entre o reinado de d. Manuel e d. João III, o presente artigo tem como objetivo apresentar
algumas das formas pelas quais a política portuguesa, sobretudo a partir de 1540, altera sua
relação com grupos locais de modo a estabelecer seu poderio de forma mais sólida, sendo tal
solidez assentada na homogeneização de todos aqueles que estivessem sob seus domínios, ou
seja, na transformação de todos os que estivessem sob o jugo português em súditos católicos
do rei de Portugal.

Goa antes da chegada portuguesa

Assim, faz-se aqui breve recuo ao período imediatamente anterior ao domínio português,
marcado pela predominância do poderio muçulmano sobre a região. Tal recuo se faz necessário
pelo fato de a entrada portuguesa não ter sido a primeira a causar alterações significativas entre
os goeses hindus, pois a própria dominação islâmica já havia alterado sensivelmente a região
de Goa. Desde finais do século XV até 1510, Goa pertenceu ao sultanato de Bijapur,3 o qual
capturou a cidade outrora vassala do império hindu de Vijayanagara. Em meio a estas disputas,
motivadas pela possibilidade de domínio sobre o rico mercado hípico goês e pelo estratégico
acesso da região à península Arábica,4 Goa foi conquistada pelas forças bijapurenses. A partir
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 TAVARES, Célia. A cristandade insular: jesuítas e inquisidores em Goa (1540-1682). 2002. Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal
Fluminense. Niterói, 2002. p.57.
3 EMBREE, Ainslie T.; WILHELM, Friedrich. Historia del subcontinente desde las culturas del Indo
hasta el comienzo del dominio inglés. Madri: Siglo XXI, 1987. p. 194.
4 LOUREIRO, Rui Manuel. Os portugueses e o tráfico de cavalos no mar da Arábia. In: COSTA, João
Paulo Oliveira e; RODRIGUES, Vitor Luís Gaspar (ed.). O Estado da Índia e os desafios europeus
– Actas do XII Seminário Internacional de História Indo-portuguesa. Lisboa: Centro de História
disto, passaram a ocorrer transformações na cidade e em seus arredores, de maioria hindu, em
uma área notoriamente sob domínio muçulmano; neste momento, já eram derrubados seus
pagodes.5
Estes templos presentes nos cultos hindus goeses possuíam amplo destaque na prática
religiosa local. Remontando ao chamado “Período Clássico” da cultura hindu – entre 320 e
500 d. C. –, quando se tornaram centros ritualísticos de grande importância entre os hindus,6
os devullas eram considerados o local onde ocorreu a manifestação de uma divindade, que é
quem preside o templo. Com esmerada arquitetura, os pagodes eram estruturados de modo
a ter correlações com o cosmos, sendo sua área central a conexão com o eixo que suporta os
céus, ligando o mundo mortal ao divino.7 Este ponto central, denominado garbha-griha, a
“casa-ventre”, serve como moradia da divindade, representada na forma de ícone, ou murti, que
pode ter forma figurativa ou não.8 Junto a estes aspectos religiosos, o templo também poderia
servir como o destino de muitos peregrinos que nele buscavam a graça divina, sendo, por isso,
considerados “locais de travessia”, ou tirthas,9 entre a esfera divina e humana.
É importante frisar que os templos hindus em Goa não eram somente locais de culto e
adoração às divindades do panteão local, mas possuíam variadas e importantes funções para
a vida social dos goeses. A população rural, que representava grande parte dos hindus goeses,
tinha sua vida centrada nos pagodes; existiam cerca de quatro a cinco templos para cada aldeia,
além dos ídolos cultuados fora dos templos,10 devendo, por exemplo, serem iniciadas todas as
atividades do campo com ofertas aos deuses. Além disso, os templos serviam como arquivos
dos registros da aldeia, sobretudo quanto aos registros tributários. Serviam também como
espaço para serem tomadas decisões em casos de disputas de propriedades, para reuniões do
conselho da aldeia, para a organização de espetáculos dramáticos – denominados zagor – e
para a promoção da educação das crianças.11 As melhores terras das aldeias eram destinadas
à manutenção dos pagodes, de seus cultos e de seus sacerdotes e demais servidores, sendo-lhes
feitas várias doações em dinheiro e gêneros em diversas ocasiões.12
Vê-se, portanto, considerável relevância da presença dos pagodes na organização das
comunidades hindus goesas. No contexto de dominação muçulmana sobre a região, ocorreu
relativa desestruturação destas comunidades a partir da destruição de seus templos, assim
como conflitos entre as lideranças hindus locais e as muçulmanas que exerciam o controle
sobre a área. O cronista João de Barros, em sua obra Ásia, ao apresentar elementos do passado
de Goa antes da chegada dos portugueses, expõe fatos que demonstram possíveis atritos entre
estes grupos, afirmando que, durante o domínio islâmico, pesados tributos eram cobrados das
províncias goesas, o que levou muitos dos líderes das aldeias a organizarem ataques contra os
dominadores muçulmanos.13
Tais lideranças locais hindus, assim como a população hindu goesa, abrigavam diversas
Além Mar (CHAM) e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2010. p.
505.
5 TAVARES, Célia. A cristandade..., op. cit., p.71.
6 Em oposição, nos períodos anteriores da história hindu, mais especificamente no Védico, os rituais
não eram executados em templos, mas sim em altares de fogo erguidos para a realização do rito,
como o afirma Cybelle Shattuck em sua obra Hinduísmo (Lisboa: Edições 70, 1999).
7 Ibidem, p. 69.
8 Ibidem, p.67.
9 Ibidem, p.80.
10 SOUZA, Teotónio de. Goa medieval – a cidade e o interior no século XVII. Lisboa: Editorial Estampa,
1994. p. 87.
11 Ibidem, p. 87.
12 Ibidem, p. 88.
13 BARROS, João de. Ásia – da segunda década. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1974.
p.197.
e complexas divisões pautadas na organização aldeã, profissional e de castas. Esta última,
denominada jatti, exercia forte influência sobre as demais, determinando hierárquica e
hereditariamente funções sociais a serem seguidas pelos hindus de Goa. Localizadas nesta
hierarquia como superiores de acordo com a ideologia védica, estruturante deste sistema, a
elite dividia-se, genericamente, em dois grupos: os kshatryas (em Goa chamados maratas ou
cunebi-maratas,14 considerados como guerreiros) e os brâmanes (tradicionalmente ligados
às atividades sacerdotais, e, em Goa, exerciam também ofícios de contadores das aldeias e
professores).
Os grupos pertencentes à casta kshatrya eram detentores de privilégios em Goa por
conta de sua autoproclamada ascendência superior, pois eramdescendentes de nobres e de
guerreiros vindos da região próxima denominada Marata por volta do século VII d. C.,15
quando passaram a ocupar um estatuto superior em meio à sociedade goesa. Eram seguidores
da seita varkari, devotados ao culto ao deus Vithal; cultural e etnicamente, correspondiam
a expressiva parcela da população goesa, sendo entre esta difundida largamente a língua
marata.16
Os brâmanes goeses, também possuidores de privilégios, dividiam-se em grupos
ligados aos cultos das principais divindades adoradas na região e às atividades que exerciam na
sociedade goesa. Assim, estavam divididos em chitpavans, caradhés, padhês, zoixis e sarasvats.
Tanto os chitpavans quanto os caradhés e sarasvats teriam origens distantes de Goa, sendo os
primeiros provavelmente oriundos de outras regiões asiáticas (supostamente a Arábia e a Ásia
Central, respectivamente17). Os sarasvats, ou senvi-sarasvats, a partir de interpretações de
obras ortodoxas hindus, como o Sahyadri-khanda ou Skanda purana, seriam originários da
região de Bengala-Bihar, e chegaram a Goa, por volta do século IV d. C., a convite de um dos
reis que, naquela época, dominavam a região18.
Chitpavans, caradhés e padhês eram responsáveis pelas atividades relacionadas à
manutenção dos templos e cultos hindus, possuíam estreitas relações entre si, e evitavam
contatos com os zoixis (vistos como impuros pelos demais brâmanes por conta de suas
atividades relacionadas às práticas funerárias, consideradas como uma das formas de um hindu
se tornar relativa e provisoriamente impuro19) e com os sarasvats (vistos como inferiores por
se alimentarem de carne de peixe, enquanto os três grupos citados possuíam rígida dieta lacto-
vegetariana20). Estes, mais numerosos do que os demais e responsáveis por diversas funções
contábeis e educacionais nas aldeias, ainda dividiam-se segundo suas crenças e localização
geográfica: bardescares (da região de Bardez, ao norte da ilha onde ficava a cidade de Goa,
chamada Tisvadi); pednemcares (da ilha de Pednem, próxima a Tisvadi); cudaldescares (da
ilha de Kudal, também situada próxima a Tisvadi); e sasticares (de Salcete, província ao sul de
Tisvadi). Mais internamente aos grupos, dividiam-se em vishnuítas (devotos do deus védico
Vishnu) e shivaítas (devotos do deus védico Shiva) 21.
Os grupos brâmanes e kshatryas, ligados entre si por meio da elaboração e reelaboração
14 TAVARES Célia, A cristandade..., op. cit., p.58.
15 SOUZA, Teotónio de, Goa medieval..., op. cit., p.40.
16 Ibidem, p.40.
17 Tais informações baseiam-se na interpretação de lendas indianas antigas, como a de Parashurama
e a criação da costa do Concão, presente no Sahiadri-Khand, que é parte da epopeia clássica hindu
Mahabharata. Ver RENOU, Louis. O hinduísmo. Lisboa: Publicações Europa-América. 1979, p. 35.
18 SOUZA, Teotónio de, Goa medieval..., op. cit., p..55-56.
19 RENOU, Louis, O hinduísmo, op. cit., p.71.
20 FARIA, Patrícia. A conversão das almas do Oriente – franciscanos, poder e catolicismo em Goa:
séculos XVI e XVII. 2008. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-graduação em História,
Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2008. p.38.
21 BRAGANÇA. A. B. de. Etnografia da Índia portuguesa. Nova Deli: Asian Educational Services, 1991.
p. 26-31.
mútua de discursos que promoviam sua autorrepresentação como superiores entre as demais
castas,22 exerciam a liderança das aldeias goesas, e tinham preponderância nos conselhos
aldeães e em suas decisões. A partir das invasões e domínio islâmico, muitos se retiraram após
as conquistas das terras de suas aldeias. João de Barros diz que tais lideranças, por conta de
sua incapacidade de resistirem às forças de Bijapur, retiraram-se para as montanhas próximas,
de onde realizavam ataques esporádicos aos domínios que passaram ao jugo islâmico.23 Com
isso, à derrubada dos pagodes somou-se a retirada dos líderes locais hindus, o que agravou a
tensão entre a população nativa local e os governantes bijapurenses.

Os primeiros momentos do domínio português sobre Goa: o reinado de d.


Manuel I

A chegada portuguesa a partir das primeiras décadas do século XVI ocorreu justamente em
meio a estas tensões. Afonso de Albuquerque, renomado capitão português, partiu para a
tomada de Goa no contexto de expansão do poderio lusitano ao redor do Índico, quando
Portugal buscava obter mais um ponto de apoio para a sustentação da estrutura reticular da
sua presença na Ásia e na costa leste africana, de modo a fixar um local estratégico para suas
ações, tendo em mente o quadro de competições contra os muçulmanos presentes na região.24
E justamente quanto a este último ponto, as ações de Albuquerque buscaram aproveitar ao
máximo as condições tensas preexistentes em Goa com relação à presença islâmica na região.
Apresentando-se como “salvador” da população local contra a “tirania” muçulmana, o capitão
português obteve apoio das lideranças hindus, atacando e expulsando os representantes de
Bijapur e iniciando a implantação do poder da Coroa de Portugal sobre Goa.
Neste momento inicial de conquista portuguesa sobre o território goês, a política
implantada por Afonso de Albuquerque refletia as determinações de d. Manuel, rei de
Portugal, sobre as terras conquistadas. Com o objetivo de criar laços de vassalagem com
as populações das regiões sob domínio luso, e estabelecer uma suserania imperial sobre as
diversas áreas sob sua tutela,25 a política manuelina tinha, quando comparada à praticada
no reinado posterior, que será mais adiante abordado, uma postura mais tolerante quanto às
práticas e estruturas sociais locais. Por exemplo, Albuquerque, refletindo tal postura, instituiu
a política de casamentos mistos entre portugueses e mulheres nativas convertidas, de modo
a estabelecer nestas terras uma população fixa leal a Portugal. As lideranças hindus também
foram toleradas tanto em seus tradicionais postos aldeães quanto nos cargos públicos das
instituições portuguesas transplantadas para Goa. E, juntamente a isto, os templos hindus
foram reerguidos. Desta forma, a presença portuguesa obteve apoio da maioria local, e,
sobretudo, das lideranças nativas, favorecendo a sedimentação de seu domínio.
Neste período, além da preservação dos credos, também foram mantidas práticas
administrativas da população nativa, como é percebido a partir do Foral de usos e costumes, de
152626. Este documento, elaborado pelo vedor da fazenda Afonso Mexia, apresenta elementos
da organização das comunidades rurais goesas. Em Goa, os portugueses mantiveram, por
exemplo, os modos de tributação preexistentes ao domínio luso (tributos que, por sua vez,
passaram a ser destinados aos fundos da Coroa, que outrora eram utilizados pelos senhores
muçulmanos da região), as transmissões hereditárias de heranças, e as regras com relação aos
22 FARIA, Patrícia, A conversão..., op. cit., p.38.
23 BARROS, João de, Ásia..., op. cit., p.197.
24 THOMAZ, Luiz Filipe F. R. De Ceuta a Timor. Lisboa: Difel, 1994. p. 207.
25 Idem. A ideia imperial manuelina. In: DORÉ, Andréa; LIMA, Luís Felipe Silvério; SILVA, Luiz
Geraldo. Facetas do Império na história: conceitos e métodos. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 44; 45.
26 MEXIA, Afonso. Foral de usos e costumes. Apud: MENDES, A. Lopes. A Índia portugueza. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1886, v. 2.
pagamentos de dívidas contraídas pelos goeses, dentre outros elementos da administração
local.27
Ainda sobre a organização local, foram mantidos em seus postos os brâmanes
responsáveis pela contabilidade das aldeias e os líderes, também brâmanes e maratas, dos
conselhos aldeães, denominados ganvkars28 em concanim – a língua local de Goa – ou
gancares, como as fontes portuguesas os apresentam. Os gancares, além do poder decisório que
detinham, eram responsáveis pela arrecadação de impostos e pela concessão dos rendimentos
das terras, agindo como intermediadores entre o poder português recém-estabelecido e as
comunidades hindus, papel que, aliás, já desempenhavam mesmo antes da entrada europeia
em Goa. Com essa capacidade de circulação entre o meio português e o meio hindu, brâmanes
e maratas passam a ocupar cargos do aparelho político-administrativo luso, adquirindo, com
isso, certa relevância entre os portugueses, e mantendo alto status perante os demais hindus.
Percebe-se, então, que, durante os primeiros anos de domínio português sobre Goa, as
práticas de casamentos mistos e de tolerância aos hindus quanto às suas crenças e organização
permitiram, até certo ponto, um convívio relativamente calmo e tolerante entre portugueses e
goeses. Refletindo a política manuelina e os interesses do governo do Estado da Índia sobre a
sua capital,29 o relacionamento entre nativos e estrangeiros lusos permitiu o aprofundamento
destes sobre a região. Tal aprofundamento, no entanto, se torna ainda mais intenso a partir
das décadas de 1530 e 1540, quando uma nova lógica e novas práticas políticas passam a ser
executadas sobre os domínios portugueses com o sucessor de d. Manuel, d. João III.

O reinado de D. João III e Goa: imposições e resistências

A ascensão ao trono do filho do antigo monarca, a partir de 1521, iniciou um novo momento
nas relações entre hindus e portugueses. Ainda que, nos primeiros anos de seu reinado, d. João
III tenha mantido uma política próxima à de seu pai, a partir da década de 1530, mudanças
significativas são implantadas tanto no reino quanto no ultramar. De modo a exercer um
poderio mais enraizado territorialmente e remodelando seus domínios, o reinado joanino fez
de Goa a capital do Estado da Índia em 1530, e, com isso, a cidade passou a sofrer medidas
que a aproximavam cada vez mais da metrópole.30 Assim, os outrora estimulados casamentos
interétnicos, entre portugueses e mulheres hindus, passam a ser proibidos, membros dos
grupos brâmanes e kshatryas que atuavam como funcionários das instituições portuguesas
passam a ser expulsos, e, paralelamente a isso, foram iniciadas medidas incisivas para a
conversão da população hindu. Aplicando o princípio de cujus regio, illius religio31, todos os
que estivessem sob jugo português deveriam ter somente uma fé, sendo esta correspondente
à de seu monarca católico.32
A chegada de novas ordens religiosas a Goa, sobretudo a Companhia de Jesus, deu corpo
27 SOUZA, Teotónio de. Goa medieval..., op. cit. p. 60.
28 Ibidem, p.61.
29 Goa ganhou cada vez mais destaque ao longo da primeira metade do século XVI, sendo capital
do Estado da Índia com status a ela atribuído em 1516 no mesmo patamar do que Lisboa. Ver
BETHENCOURT, Francisco. Political Configurations and Local Powers. In: ______; CURTO, Diogo
Ramada (org.). Portuguese Oceanic Expansion, 1400-1800. Nova York: Cambridge University Press,
2007, p. 219.
30 XAVIER, Ângela. A invenção de Goa. Lisboa: ICS, 2008. p. 42.
31 Princípio jurídico oficializado em 1555 na Paz de Augsburgo referente à unidade confessional entre
o monarca e seus respectivos súditos. Deve-se ter em mente que, apesar de oficializado em meados
dos Quinhentos, sua prática já era presente em décadas anteriores na política de Estados europeus
marcados pela sua confessionalização, como Portugal sob o reinado joanino.
32 SOUZA, Teotónio de. Goa medieval..., op. cit., p. 88.
às ações que visavam conversões amplas que agiam de acordo com as determinações reais.
Acompanhando o empenho dos missionários em converter os goeses vieram as sucessivas
determinações reais para que os templos hindus fossem derrubados, como é explicitado em
diversas correspondências entre d. João III e os governadores e vice-reis do Estado da Índia,
como a de 8 de março de 1546, na qual recomendava ao governador, d. João de Castro, que
“destruísse a idolatria em Goa, desmantelasse os pagodes, proibisse as festas gentílicas e exilasse
os brâmanes, castigasse com penas graves todo aquele que fizesse algum ídolo de pau, pedra
ou metal.” 33
São visíveis, aqui, tanto a extirpação física dos locais de adoração hindu quanto a
expulsão daqueles que eram responsáveis pela manutenção do culto local, os brâmanes. Estes
sofreram perseguições severas para que ou abandonassem as terras goesas, ou se convertessem,
e eram vistos pelas autoridades eclesiásticas de Goa como entraves à evangelização plena dos
goeses. Assim, medidas de repressão econômica também foram tomadas contra brâmanes, de
modo a esvaziar também o poderio econômico que detinham.34
Quanto a este ponto, correspondências entre d. João III, membros do corpo eclesiástico
goês e demais autoridades portuguesas em Goa auxiliam na compreensão da postura de tais
grupos frente a estas lideranças hindus, como na carta do padre Miguel Vaz, de 1545, que
recomenda ao rei a determinação de retirar as rendas dos brâmanes, que seriam direcionadas
aos já convertidos, ou outra recomendação na correspondência supracitada entre o rei e o
governador d. João de Castro, na qual o rei exigia a transferência de bens, privilégios e cargos
de “gentios” aos convertidos.35. Com isso, eram substituídos, nos cargos públicos, os hindus
por cristãos conversos.
Tais substituições não se davam somente neste campo; também ocorria a substituição
dos brâmanes como professores das aldeias, sendo colocados padres católicos em seu lugar,
assim como no lugar dos pagodes derrubados eram erguidas majestosas igrejas, que tomavam
os lugares de culto anteriores e recebiam as rendas que a eles eram destinados.
Para este fim, aos gancares era dada a ordem de transferirem os rendimentos dos antigos
templos para a Igreja,36 facilitando o financiamento das ordens eclesiásticas que chegavam
a Goa, como a Companhia de Jesus, à qual, por sua vez, cabia exercer o grande zelo católico
sobre a ortodoxia que deveria servir como postura ideal para todos aqueles que comungassem
da fé católica. A entrada dos jesuítas em Goa, aliás, foi uma das principais ações, executadas
pela Coroa portuguesa, que introduziram em território goês o espírito da Contrarreforma,37
refletindo nela parte daquilo que ocorria na Europa naquele momento.38
As transformações de Goa neste contexto refletem em grande parte a política de d. João
III, que pretendia, com a uniformização religiosa e de costumes, uma uniformização política,
obtendo com a conversão e a criação de súditos leais.39 No entanto, tensões subjacentes a
esse processo ocorreram em vários de seus aspectos. Destaca-se aqui a oposição de um hindu
chamado Azunaique, de provável origem brâmane ou marata – o que é perceptível pelo sufixo
“-naique” em seu nome40 –, e não convertido. Em 18 de dezembro de 1549, enviou, em uma
carta a d. João III, sua opinião a respeito da incisiva política de conversões. Vê nela um mal,
pois considera o problema religioso como algo do “foro espiritual”, e e acha que não cabia
33 Fonte parcialmente publicada em: BAIÃO, António. A Inquisição de Goa. Lisboa: Academia das
Ciências, 1945. V. 1, p.25
34 CUNHA, Ana. A Inquisição no Estado da Índia – origens (1539-1560). Lisboa: Arquivos Nacionais/
Torre do Tombo, 1995. p. 85.
35 Ibidem, p. 86.
36 SOUZA, Teotónio de. Goa medieval..., op. cit., p. 88.
37 Ibidem, p. 88.
38 Ibidem, p. 41; FARIA, Patrícia. A conversão..., op. cit., p. 65-66.
39 CUNHA, Ana. A Inquisição..., op. cit., p. 104.
40 XAVIER, Ângela. A invenção..., op. cit., p. 360.
ao rei decidir a seu respeito: “nesta parte não tem Vossa Alteza necessidade de rogar nem
encomendar a ninguém isto porque cada um terá cuidado de olhar por sua alma”.41
Além disso, via nesta política um problema para as rendas do Estado, posto que muitos
eram aqueles que, negando-se ao batismo, fugiam dos domínios luso-indianos, perdendo-se,
com isso, súditos, e prejudicando a Fazenda,42
Azunaique representa uma dentre as várias vozes que se ergueram contra as intolerantes
medidas adotadas pela Coroa portuguesa a partir do reinado de d. João III contra as práticas
sociais e religiosas hindus, assim como contra seus locais de culto. São conhecidos vários
casos de aldeias que se revoltaram contra tais imposições, sendo um dos mais destacados o
ocorrido em Cuncolim, aldeia localizada em Salsete.
Conhecido como o “Martírio de Cuncolim”,43 este caso nos apresenta uma das formas
mais drásticas de reação dos hindus goeses, denominados como “gentios” pelas autoridades
eclesiásticas e civis de Goa. O autor jesuíta Francisco de Sousa, em sua obra Oriente conquistado
a Jesus Cristo,44 publicada primeiramente no início do século XVIII, por volta da década de
1710, narrou o fato a partir do viés de sua ordem, o que, apesar das interferências por isto
causadas no acesso aos fatos, permite uma compreensão, ainda que parcial, dos elementos
que motivaram o famoso massacre. A partir de seus escritos, sabe-se que o fato teria ocorrido
na década de 1580, já no reinado de Felipe I de Portugal, II de Espanha, quando a expansão
católica já estava relativamente consolidada na ilha de Tisvadi e passava a direcionar-se para
o sul, mais especificamente para a região de Salsete;45 suas causas resIdem na busca pela
conversão da região por padres inacianos, que iam à aldeia em busca de um local destinado
ao erguimento de nova igreja.
Lá, encontraram uma população razoavelmente hostil e que, liderada por um possível
sacerdote hindu – apresentado pelo autor como feiticeiro46 – iniciam dura perseguição aos
padres e àqueles que os acompanhavam, como soldados e brâmanes conversos que auxiliariam
na conversão. Da comitiva, cerca de dez teriam sido mortos pelos hindus de Cuncolim, dentre
eles cinco padres. Apesar da revolta, a aldeia foi severamente punida, sendo suas lideranças
envolvidas nas mortes executadas, suas terras tomadas pelo Estado e, enfim, sendo erguida a
igreja que ampliou a presença católica sobre a região.47
Percebe-se, tanto com a carta de Azunaique quanto com o exemplo do “Martírio de
Cuncolim”, que, apesar dos esforços contrários à propagação e imposição do cristianismo por
parte de certos grupos goeses hindus, não foi impedida a continuação das mudanças religiosas,
culturais, sociais e políticas empreendidas na Goa quinhentista.
Sucedendo a intolerância muçulmana, a intolerância portuguesa – a partir do reinado
de d. João III, e preservada por seus sucessores no trono português com relação aos credos
hindus em Goa – não deve ser restrita, no entanto, a uma análise que tenha como foco
apenas o seu sentido religioso. A religião, tanto para a sociedade portuguesa do século XVI
quanto para a sociedade hindu goesa daquele mesmo período, ainda que respeitando-se suas
diferenças intrínsecas, servia como um dos elementos fundamentais para a estruturação de
41 CUNHA, Ana. A Inquisição..., op. cit., p. 236.
42 Ibidem, p. 235-244.
43 Como Ângela Xavier apresenta em seu capítulo “O Martírio de Cuncolim e outras resistências”.
XAVIER, Ângela. A invenção..., op. cit., p. 333–380.
44 SOUSA, Francisco de. Oriente conquistado a Jesus Cristo. Porto: Lello & Irmão Editores, 1978.
45 O que não impediu que sua população não tivesse entrado em contato com as imposições da fé
católica, conhecida pelos goeses de Bardez, Salsete e Tisvadi desde a década de 1540. Ou seja, ao
ocorrer o martírio, os hindus já estavam sob profundas tensões relativas aos embates entre a Igreja
e os cultos locais. capítulo “O Martírio de Cuncolim e outras resistências” em XAVIER, Ângela. A
invenção..., op. cit.
46 SOUSA, Francisco de. Oriente..., op. cit., p. 971.
47 XAVIER, Ângela. A invenção..., op. cit., p. 350.
suas sociedades. Com as proibições impostas pela Coroa portuguesa, aliada à Igreja, sobre as
práticas religiosas hindus em Goa, rompia-se com grande parte de um conjunto de formas de
organização e de pensamento apropriado e elaborado pela população nativa hindu.
Apesar da dolorosa ruptura imposta, isto não eliminou totalmente a religiosidade
hindus goesa. Simples objetos caseiros eram utilizados em cultos domésticos entre famílias
hindus antes mesmo da dominação portuguesa48. Com a perseguição aos cultos hindus, esta
modalidade da religiosidade local, facilmente ocultada dos olhos lusos – ou incompreendida
por estes – pôde prosseguir ao longo dos séculos em algumas comunidade sob o domínio
lusitano.
Ironicamente, outras práticas, vistas pelos europeus como prosaicas, revelavam outras
manutenções da religiosidade hindu. Um exemplo disto, presente ainda hoje, é a ornamentação
com colares de flores dos santos das igrejas católicas de Goa. Isto nos permite, portanto,
perceber que, de certa forma, apesar das duras rupturas impostas às crenças hindus locais, os
goeses também influenciaram o culto católico, ainda que de formas sutis e, por conta disso,
perenes ao longo de séculos de perseguições.

48 PEREZ, Rosa Maria. Hinduísmo e cristianismo em Goa (II). Deuses clandestinos e devotos fiéis. In:
Oceanos. Culturas do Índico. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses. Abril/Junho, 1998, n. 34, p.179.
Convento Real de Santa Mônica de Goa e a Câmara Municipal: uma análise do
conflito na Goa Dourada

Rozely Menezes Vigas Oliveira1

A sociedade portuguesa, na vastidão e dispersão do seu Império, possuía duas instituições


de grande importância, a Santa Casa de Misericórdia, e o Senado da Câmara ou Câmara
Municipal, conceituadas pelo historiador Charles Boxer como os “pilares do império”,2 pois
exerciam uma influência determinante na vida social portuguesa e de suas colônias, no âmbito
municipal, como espaços de concretização de prestígio social e de deveres com relação à
sociedade colonial.
As santas casas de misericórdia foram as maiores representantes da virtude do amor ao
sofredor, a caridade. Criada em 1498 pela rainha d. Leonor de Lencastre, a Misericórdia foi uma
irmandade laica formada tanto por nobres quanto por pessoas de classes inferiores que eram
exemplos de vida e de virtude. Tinham como objetivo suprir as demandas da sociedade com
a caridade, acolhendo doentes, órfãos, mulheres e necessitados, alimentando e dando roupas
a prisioneiros.3 Segundo Isabel dos Magalhães Sá,4 baseadas nos 14 trabalhos espirituais
e corporais de misericórdia, as casas eram vistas como uma maneira lógica de caridade
organizada para os pobres. De acordo com Laurinda Abreu,5 encontramos no Oriente muitas
misericórdias fundadas no século XVI, entre elas a de Goa, fundada em 1519; a de Cochim
(1527); a de Diu (1535); a de Baçaim (1540); e a de Ormuz (1547). Esta rápida propagação
pelo império pode ser explicada pelo apoio régio, pois, em pouco tempo, “erguera-se uma
gigantesca rede de confrarias, protegidas pela Coroa e pela casa-mãe de Lisboa, que assumiu
as funções de arquiconfraria onde todas as ‘filiais’ iam buscar privilégios, poderes e estatutos”,6
adaptando-os às realidades locais dos diversos espaços coloniais.
Já a Câmara Municipal, como salienta Boxer, se preocupava com questões da vida
urbana, tais como a ordem e segurança pública, o cumprimento das leis, e a limpeza das
cidades.7 A de Goa, apesar de não haver registro de sua fundação, julga-se ser a mesma data
da conquista. Sua estrutura – como acontecia com as misericórdias – tinha como modelo a
da Câmara de Lisboa, porém sua autonomia – devido ao fato de todos os membros terem
direito ao voto – era quebrada pelo poder do vice-rei e do capitão da cidade de participarem
e votarem nas suas sessões.8
Ambas as instituições ao lado da Coroa, com muita frequência, financiavam outras
1 Mestre em História Social pela Faculdade de Formação de Professores (FFP) da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
2 BOXER, C. R. Portuguese society in the tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia e
Luanda (1580-1800). Cambridge: Hakluyt Society at University Press, 1965.
3 COATES, Timothy J. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português
1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos Descobrimentos Portugueses,
1998.
4 SÁ, Isabel dos Guimarães. “Charity, Ritual at Edge of Empire: The Misericórdia of Macau”. In:
BROCKEY, Liam Matthew. Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World. Empires and the
Making of the Modern World, 1650. Farnham: Ashgate, 2008. p. 149.
5 ABREU, Laurinda. “O papel das misericórdias dos lugares de além-mar na formação do Império
português”. História, Ciências, Saúde, v. 3, n. 3, p. 595, set.-dez. 2001.
6 Ibidem, p. 592.
7 BOXER, Charles R. Portuguese society..., op. cit., p. 28.
8 TAVARES, Célia Cristina da Silva. Jesuítas e inquisidores em Goa: a Cristandade insular (1540-1682).
Lisboa: Roma Editora, 2004. p. 81
instituições, como escolas, hospitais, orfanatos, conventos e mosteiros. E em Goa não seria
diferente, como foi o caso do financiamento de duas das instituições femininas existentes na
cidade: a casa de recolhimento para órfãs e a para mulheres arrependidas.
Estas instituições faziam parte de uma estrutura governamental que, juntamente com
uma estrutura eclesiástica, tinha o objetivo de garantir as rotas comerciais do oceano Índico
e de expandir e manter a fé cristã nos domínios portugueses. A centralização do poder se
dava em Goa, devido à sua posição estratégica na dominação do comércio asiático e no
abastecimento agrícola da região. A historiadora Célia Tavares explica de forma eficiente
a estrutura governamental da Índia, que tinha como principais componentes o vice-rei ou
governador – que era a autoridade máxima, representando o rei na parte oriental do império
–, e um Conselho de Capitães, chamado depois de Conselho de Estado, que servia de auxílio
ao vice-rei em seu governo. Havia também outras instituições, como:
[...] a Vedoria da Fazenda, responsável pela administração
da fazenda; a Casa dos Contos, que cuidava da fiscalização
financeira; o Tribunal da Relação, criado em 1550, cujo modelo
era a Casa de Suplicação de Lisboa. Havia também o Tribunal da
Alçada, criado em 1571, que deliberava em matérias de graça; e o
Tribunal da Mesa de Consciência e Ordens, fundado no Oriente
em 1570, cuja incumbência era administrar, vigiar e garantir a
defesa das questões da Igreja no Reino. [...] [Existiam ainda] o
ouvidor-geral da Índia, que cuidava dos feitos cíveis e o ouvidor-
geral do crime, criado em 1550, responsável por todos os feitos
crimes em Goa e nas fortalezas portuguesas.9

No âmbito religioso, criou-se, em 1534, a diocese de Goa, cuja jurisdição ia do Cabo


da Boa Esperança até a China. Em 1568, a diocese foi erigida em arquidiocese a partir da
aprovação de suas constituições. O Santo Ofício de Goa foi instalado, em 1560, com a mesma
abrangência da arquidiocese. Também existia uma forte presença de religiosos regulares,
os principais foram os jesuítas e os franciscanos, bem como dominicanos, agostinianos e
outros, que iam para o Oriente com intuito de “formar a vanguarda da Igreja militante e de
serem súditos leais às suas respectivas coroas”.10 Apesar de terem objetivos em comum, nem
sempre suas relações foram harmoniosas, havendo rivalidade entre franciscanos e jesuítas,
entre dominicanos e jesuítas etc. É importante ressaltar o papel estruturante do Padroado
nas relações eclesiásticas, determinando e autorizando as missões e viagens dos clérigos e
minimizando algumas vezes os conflitos entre eles.
No que concerne ao social, a cidade de Goa é vista pela historiografia como uma
“encruzilhada cultural”. Segundo o historiador indiano Sanjay Subrahmanyam,11 os portugueses
quando lá chegaram não encontraram uma realidade estática. A cidade era principalmente
habitada por hindus, mas havia também mulçumanos e judeus que conviviam em uma
certa harmonia, com a exceção de algumas áreas de conflito político. Com a chegada dos
portugueses, se juntaram também católicos e cristãos-novos, que acabaram por se aproximar
das práticas religiosas judaicas devido ao contato com os judeus locais.
Assim, podemos notar como a sociedade goesa era marcada por uma grande diversidade
sociocultural, o que a fez ser considerada, tanto por viajantes quanto pelos clérigos, uma

9 Ibidem, p. 81.
10 BOXER, C. R. A Igreja militante e a expansão ibérica: 1440-1770. São Paulo: Companhia das Letras,
2007. p. 9.
11 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O império asiático português – 1500-1700: uma história política e
econômica. Lisboa: Difel, 1995. p. 16.
sociedade desregrada e desvirtuosa. Em seu artigo, Propércia de Figueiredo12 nos mostra, a
partir dos relatos de viajantes como Garcia da Orta e João Huighens van Linschoten, a mescla
dessas culturas e a desmoralização da sociedade, inclusive da parte feminina. Também é
possível notar essas considerações num trecho da História do Real Convento de Santa Mónica
de Goa:
Era entre as mulheres daquele Estado muito grande a devassidão,
e também igual prejuízo, que dela resultava, não só ao serviço
de Deus, mas à República; vendo-se cada dia acabarem muitas
por adúlteras às mãos de seus maridos, e os maridos perecerem
às mãos daqueles que eram culpados no delito de suas mulheres,
para ficarem com elas mais soltos no seu pecado13.

Estas características sociais levam a entender o quão importante foi o papel do Convento
das Mônicas para a manutenção da fé católica, principalmente entre as mulheres, com a criação
de um modelo de virtude por meio dos exemplos de vida de suas religiosas.

A atuação de d. frei Aleixo de Menezes no Oriente

De origem nobre, frei Aleixo foi um agostiniano ilustre filho de d. Luiza de Noronha e de d.
Aleixo de Menezes – aio de d. Sebastião –, e neto de d. Pedro de Meneses, primeiro conde de
Cantanhede. Nasceu em Lisboa no dia 25 de janeiro de 1559, sob o nome de Pedro de Menezes.
Entrou na ordem agostiniana aos 15 anos de idade como noviço, e, no ano seguinte, professou
sob o nome de frei Aleixo de Jesus, em homenagem ao seu tio, d. frei Agostinho de Jesus – que
o iniciara na ordem e fora seu tutor – e ao seu pai. Aos 33 anos, foi eleito prior do Convento
de Nossa Senhora da Graça, em Lisboa. Foi para a Índia, em 1595, como arcebispo de Goa,
e, entre 1606 e 1609, ocupou o cargo de governador da Índia. Ao voltar, em 1610, a Portugal,
foi nomeado arcebispo de Braga. Em 1612, aceitou o cargo de vice-rei de Portugal, após o
consentimento do Papa Paulo V. Acumulou em sua vida também os cargos de capelão-mor
e presidente do Conselho de Portugal. Faleceu, em Madri, no ano de 1617, sendo sepultado
provisoriamente no Convento de São Felipe na mesma cidade, e, depois, trasladado para a
capela-mor da Igreja do Pópulo, em Braga, no ano de 1621.
A ascendência distinta e o convívio próximo com a corte, no
seio da qual foi criado (em estreita proximidade com o futuro
rei d. Sebastião, tendo partilhado alguns dos ensinamentos a
este ministrados pelo jesuíta p. Luís Gonçalves da Câmara), não
podiam augurar se não um futuro de serviço e fortuna.14

Assim, podemos perceber a proximidade de d. frei Aleixo de Menezes do poder político


e religioso, tendo sido beneficiado pela posição de seu pai na corte, e pela influência de seu
tio. Apesar de não ter concluído seus estudos no curso de Teologia e Filosofia em Coimbra,
nos acrescenta Carla Alferes Pinto, sua proximidade com a corte o permitiu galgar posições,
paulatinamente, na ordem. A caridade sempre foi uma característica essencial deste prelado,
12 FIGUEIREDO, Propércia Correia Afonso de. A mulher indo-portuguesa. Boletim do Instituto Vasco
da Gama, Nova Goa, n. 3, p. 6, 1928.
13 SANTA MARIA, fr. Agostinho de. História da fundação do Real Convento de Santa Mónica da
Cidade de Goa. Lisboa, 1699. p. 2.
14 PINTO, Carla Alferes. Notas para o estudo do mecenato de d. frei Aleixo de Meneses: os
recolhimentos da misericórdia de Goa. Anais de História de Além-Mar, v. 7, p. 280, dez. 2006.
que tinha como uma das finalidades o benefício de sua ordem. Ainda em Portugal, quando lhe
foram dados os cargos de prior nos conventos de Torres Vedras e da Graça de Lisboa, iniciou
várias obras neles e começou a escrever uma biografia do beato Gonçalo de Lagos (prior do
Convento de Torres Vedras no início do século XVI). Na viagem para Goa, tratou dos doentes
com sua botica e com sua provisão de galinhas.15
D. frei Aleixo de Menezes foi escolhido pelo rei Filipe III para ir ao Oriente com o
intuito de governar a arquidiocese e tentar equilibrar as expectativas dos diferentes religiosos e
as necessidades políticas e econômicas do Estado da Índia, amenizando os conflitos existentes
entre os poderes locais político e religioso. Ao chegar a Goa, viu na cidade uma sociedade
decadente. A mulher indiana era vista como imoral e indolente, e as de origem portuguesa,
suscetíveis a essa indolência.16 Alguns do clero encontravam-se presos por acusações referente
à volúpia e à usurpação de bens. Sendo assim, esta era uma oportunidade de realizar mais
ações caritativas e de ascender na ordem. Atuou lá como um reformador, um representante
das determinações do Concílio de Trento e de sua Ordem. Um de seus maiores feitos foi
a visita que fez ao Malabar, onde congregou os cristãos de São Tomé à fé católica romana,
firmando com o Concílio de Diamper (1599), que tentava sanar as deficiências da liturgia
das igrejas malabares por uma reforma litúrgica e do catecismo. Frei Aleixo foi pioneiro na
construção de instituições femininas no além-mar português. Francisco Bethencourt enfatiza
esse pioneirismo, mostrando que só foram fundados três conventos no século XVII: o das
Mônicas em Goa (1606), o das Descalças em Macau (1633), e o do Desterro na Bahia (1677).17
Já nas primeiras cartas dirigidas ao seu tio e tutor, frei Agostinho de Jesus, mostrou interesse
em construir recolhimentos para salvaguardar a honra das mulheres na cidade de Goa.
Realizou também outras ações, como visitas pastorais, fundações de colégios e igrejas, além
de mandar fazer um censo da população pobre da cidade e distribuir constantemente esmolas
para a mesma.
A historiografia tradicional18 exalta esta caridade do frei como demonstrações de mera
piedade e de desapego aos bens materiais; porém, após o texto divisor de águas de Sanjay
Subrahmanyam,19 é necessário vê-la também como parte do jogo de poder político e religioso,
posto que, nas cartas que trocou com seu tio, pode-se perceber sua intenção de ir para Goa a
fim de ascender na ordem, mas sem descartar seu regresso ao arcebispado de Braga.

O Convento Real de Santa Mônica e sua relação com a Câmara Municipal de Goa

O Convento de Santa Mônica, criado em 1606 na cidade de Goa, foi uma das três instituições
femininas fundadas por d. frei Aleixo de Menezes. Acompanhado pela Casa de Recolhimento
15 Ibidem, p. 285.
16 Essa imagem negativa da mulher de Goa é considerada por Boxer uma visão machista da sociedade
portuguesa que é também atribuída ao fato de as mulheres terem um contato maior com os escravos
no interior das casas. Ver BOXER, Charles. A mulher na expansão ultramarina ibérica. Lisboa:
Livros Horizonte, 1977. p. 99.
17 BETHENCOURT, Francisco. Os conventos femininos no Império português: o caso do Convento de
Santa Mónica em Goa. Lisboa: s.n., 1995.
18 Tem-se como historiografia tradicional a biografia escrita por Carlos Alonso (Alejo de Meneses,
O.S.A. (1559-1617), arzobispo de Goa (1595-1612): estudio biográfico. Valhadolide: Editorial Estudio
Agustiniano, 1992), e o texto de padre Avelino de Jesus da Costa. Ação missionária e patriótica de
d. frei Aleixo de Meneses, arcebispo de Goa e Primaz do Oriente. In: Anais do Congresso do Mundo
Português. Lisboa: s.n., 1940, v. 6, t. 1, p. 211-247.
19 SUBRAHMANYAM, Sanjay. Dom Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) et l’échec des tentatives
d’indigénisation du christianisme en Inde. Disponível em: http://www.persee.fr/. Acesso em: 20 fev.
2010.
de Nossa Senhora da Serra (para as órfãs) e pela de Santa Maria Madalena (para mulheres
pecadoras arrependidas), formaram, assim, um elo na trindade de instituições para mulheres
nobres solteiras e viúvas, que o fundador relacionou com a Santíssima Trindade. A casa da
Serra foi dedicada ao Pai; a de Santa Maria Madalena, ao Espírito Santo; e o convento que
recebeu o nome da mãe de Santo Agostinho, Santa Mônica, foi dedicado a Jesus Cristo.
No que tange à fundação do Convento de Santa Mônica de Goa, Margareth Gonçalves20
nos informa de um conflito existente entre o convento e a Câmara Municipal, que teria durado
desde os anos iniciais até meados de 1630. Entretanto, Thimoty Coates21 traz a informação de
que, a princípio, a Câmara apoiou a criação do convento em detrimento da recusa da Coroa,
pois considerava uma alternativa digna ao casamento para as mulheres e, assim, alcançaria
o objetivo das casas de recolhimento, de preservar e garantir a virtude feminina. Entretanto,
o autor diz não saber o motivo dessa primeira recusa da Coroa, sendo talvez o mesmo
apresentado pela Câmara posteriormente.22 Já Carla Pinto, em seu texto sobre o frei Aleixo,
apresenta que o motivo dessa recusa teria sido pelo fato de a coroa não achar relevante a
construção de um convento feminino, pois sua preocupação maior era bélica e comercial; mas
também, por alegar que, se os agostinhos construíssem um convento, outras ordens religiosas
também iriam querer fazer o mesmo, declarando, assim, falta de dinheiro para a fundação e a
manutenção de instituições desse tipo.23
Apesar das constantes recusas da Coroa, frei Aleixo solicitou novamente ao rei Filipe
II a autorização para a fundação de um convento e a conseguiu, em 1605, com a condição
de que o Conselho do Estado o apoiasse. Ao receber o cargo de governador de Goa no ano
seguinte, convocou o conselho, que lhe foi favorável. Em julho do mesmo ano, foi iniciada a
construção do Convento de Santa Mônica, que, em setembro, já recebia noviças. O convento
era um prédio amplo composto de três andares capazes de comportar aproximadamente 150
freiras, e sua obra foi concluída em 1627. Para uma análise do quantitativo de freiras e seus
dotes, vejamos a tabela a seguir, elaborada por Timothy Coates:24

Quadro 1
Número de freiras residentes e dotes acumulados obtidos pelo Convento de
Santa Mônica de Goa, 1610-1874

Ano Freiras residentes Dotes acumulados


1610 32 33
1630 100 152
1650 104 214
1670 67 262
1690 55 298
1710 53 339
1730 57 376
1750 43 396

20 GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé: andarilhas da alma na era barroca. Rio de
Janeiro: Rocco, 2005. p. 62.
21 COATES, Timothy J. Degredados…, op. cit., p. 270.
22 Ibidem, p. 270.
23 PINTO, Carla Alferes. Notas..., op. cit., p. 301.
24 COATES, Thimoty. The Convent of Santa Mónica of Goa and single women in the Estado da India,
1550-1700. Faces de Eva: estudos sobre mulher, n. 8, p. 67-81, 2002.
1770 51 435
1790 42 458
1810 40 479
1830 24 489
1850 10 493
1874 0 493
Fonte: António Francisco Moniz, Relação completa das religiosas do Mosteiro de
Santa Mónica, O Oriente Português, (primeira série) XV: 177-198, XVI. 284-294, 354-
363, XVII: 92-102, I88-197; (segunda série) II-III: 111-119.

Pode-se observar que o convento, que teve dezoito freiras já em setembro de 1606,
chegou ao número de cem freiras em aproximadamente vinte anos. A tabela também mostra
que o número de dotes, já no final do século XVII, passava dos trezentos. Muitos deles eram
bens de raiz. Outra tabela indica que, do número total de freiras que viveram no convento de
1607 a 1834 (661 mulheres), 93% eram provenientes das conquistas portuguesas em todo o
Estado da Índia – como Goa (principalmente, sendo 48% do total), Macau, Cochin, Malaca,
Ormuz e Bombaim –, 3,6% eram naturais de Portugal, e 3,7% eram naturais de cidades asiáticas
que não estavam sob o controle português. O que se pode perceber é que, logo nos primeiros
anos de funcionamento, o convento gozou de grande fama e de um crescimento econômico
intenso com a quantidade de dotes acumulados. Nota-se também que o convento exerceu uma
grande influência no universo feminino de todo o Estado da Índia, posto que houve entrada
de noviças provenientes de vários pontos do Oriente. Este rápido desempenho econômico do
convento foi de encontro com a situação inicial de decadência do Império português na Índia.
De acordo com Margareth Gonçalves, a fundação do convento “deu-se no lusco-fusco do
apogeu goense, que anunciava o declínio da parte oriental do já combalido Império português,
então parte do domínio filipino espanhol (1580-1640)”.25 Neste período, ingleses e holandeses
afrontavam o poderio dos portugueses e instigavam os reis locais a enfrentarem mais seus
colonizadores, o que fez com que as fortunas do império português entrassem em declínio.
Essa afronta se deu por causa do processo de fusão das coroas portuguesas e espanholas, a
União Ibérica (1580-1640), tendo Portugal adquirido os inimigos da Espanha.
Diante desta situação, a Câmara Municipal se voltou contra o convento, iniciando seus
ataques com duas principais acusações: a concentração de bens do convento, e por ser este
um grande atrativo para viúvas ricas e jovens portuguesas, sabotando, assim, os casamentos
na colônia. O matrimônio era muito utilizado na colonização como método de fixação e
permanência portuguesas nas áreas conquistadas, o que tornava-o muito necessário nesse
momento de crise, como se pode confirmar no trecho citado de uma carta da Câmara
endereçada ao rei, datada de 1620:
[...] este primeiro intento desta fundação foi muito bom, este
segundo que hoje milita é muito prejudicial porque esta cidade
convém ser muito povoada de casados para sua conservação
e defensão porque os soldados que militam andam sempre
espalhados pelas mais fortalezas e partes da Índia e já hoje os não
há e se houver um cerco ou necessidade os casados é o cabedal
para sua sustentação e defensão. Antes deste mosteiro havia
muitos porque todas estas que estão recolhidas e as que já são
mortas e se hão de recolher todas haviam de casar e assim a cada
ano. Antigamente havia mais de cem casamentos de soldados
que acrescentavam muito a terra, destes procediam muitos filhos
que depois vinham a militar que até o presente foram sempre
25 GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé..., op. cit., p. 61.
muitos.26

Nos trechos de uma carta do rei endereçada ao vice-rei Fernão de Albuquerque e à


Inquisição de Goa, este endossou o pedido da Câmara para que delimitassem o número de
freiras para quarenta.
[...] conviria muito ao bem daquele estado limitar-se no dito
Mosteiro o número de religiosas (pelas razões que a Câmara
aponta) e que este seja de quarenta, e menos de vinte, com
preferência das mulheres mais nobres em que [ilegível] lugar
aquelas que tiverem feito voto de castidade e Religião, e outras
que não tiverem cabedal para haverem de casar. E também se me
propôs que pelas mesmas razões que a Câmara aponta, se devia
extinguir o dito Mosteiro por morte das freiras que há nele, [...]
porque para conservarem virtude e recolhimento [das] pessoas
virtuosas era bastante meio casa de recolhimento.27

E mais:
[...] sempre se tivera por necessário para a conservação daquele
estado fora naturalizar nele a nação portuguesa valendo-se
de todos os meios possíveis para conseguir este fim e que
faltando mulheres portuguesas se trabalhou muito por efetuar
casamentos de soldados portugueses com as naturais da terra a
custa de minha fazenda, e depois se ajudou este intento com se
enviarem órfãs deste Reino (como ainda agora se faz) a que se
dão dotes por minha conta, [...] parece contra o bom governo
dar-se ocasião a se impedirem casamentos principalmente das
mulheres mais nobres e ricas, que são as que professam no dito
Mosteiro.28

Essas duas cartas fazem parte de uma série trocada entre a Câmara, o vice-rei e a Coroa.
Como é possível observar, as duas instituições intencionavam diminuir o quantitativo de
freiras, restringindo a entrada de noviças, ou mesmo extinguir o convento, o que deixaria
as mulheres livres para o casamento. Para os membros da Câmara, o convento atraía muitas
mulheres ricas e seus bens, impossibilitando-os de servirem aos propósitos do rei de defesa
das conquistas.
Como resposta aos constantes ataques da Câmara, frei Diogo de Santa Ana – mentor e
confessor das freiras após a volta de d. frei Aleixo de Menezes para Portugal – escreveu uma
carta endereçada ao rei, na qual contestava a Câmara e seus anseios. Em 1699, frei Agostinho
de Santa Maria escreveu, a partir de trechos do manuscrito de frei Diogo de Santa Ana, uma
obra intitulada História da fundação do Real Convento de Santa Mónica da Cidade de Goa,
redigida com o objetivo de divulgar e ressaltar os feitos dos agostinianos no Oriente. A obra
é composta por um relato da vida do fundador do convento, frei Aleixo de Menezes, e mais
quatro livros que versam sobre os trinta primeiros anos da instituição – pois, em 1636, o
convento ficou sob a proteção real –, as dificuldades encontradas pela instituição de se firmar
como um local sagrado, as experiências espirituais das freiras, e seus exemplos de vida. No seu
prólogo, exaltou as qualidades das mulheres que lá viviam.
26 INQUISIÇÃO de Goa. S.l.: s.n., 1620. Fundação Biblioteca Nacional, código 8, documento 129.
27 Ibidem, documento 128.
28 Ibidem.
Verdadeiramente a vida, os exemplos, as virtudes, e a santidade
das religiosas do Convento de Santa Mónica de Goa, são de forte,
que (como se verá em toda esta história) temos muito de que nos
admirar, e não pouco de que nos confundir os que vivemos na
Europa, vendo fácil aquilo, que se julgou por muito impossível
na Ásia.29

A fim de ressaltar a ação caritativa de frei Aleixo ao fundar ali um mosteiro feminino,
e valorizar sua imagem de bom servo de Deus preocupado com a moralização das mulheres
nobres de Goa, no primeiro livro de sua obra, Santa Maria denunciou a situação em que estava
a Índia:
Quando o Estado da Índia Oriental se via mais depravado pelas
torpezas, e arruinado pelos pecados, então dispôs Deus, como
amoroso, e misericordioso Pai, que conhece a nossa fragilidade,
e se não esquece de que somos pó, se nomeasse em Arcebispo de
Goa o Ilustríssimo D. Fr. Aleixo de Menezes, e que ele fundasse na
mesma Cidade, Metrópole da Índia, hum Mosteiro de Religiosas
da Ordem de meu Patriarca Santo Agostinho, para que pudesse
servir àquele perdido mundo [...].30

Estas não foram as únicas defesas das freiras; segundo Coates,31 a Inquisição de Goa
também as defendeu, mostrando o importante papel desenvolvido pelo convento na vida das
mulheres, e que os bens que possuía não eram tão prejudiciais à Coroa quanto a perda de uma
embarcação de mercadorias na viagem de volta a Portugal.
Como forma de harmonizar o conflito, a Coroa, após avaliar os protestos de cada lado,
buscou limitar o contingente de freiras – fixando a quantidade máxima em cem freiras, em
1634 – e defendeu a permanência do convento, dando-lhe o título de “real” em 1636. Isto
prova a necessidade de assegurar que as determinações tridentinas fossem também seguidas
no além-mar sem que fossem um estorvo aos interesses da Coroa e dos poderes políticos
locais.
Mesmo depois de o convento receber o título régio, os ataques continuaram, embora
agora amenizados e em ritmo decrescente. Os últimos ocorreram no início do século XVIII,
quando a Câmara acusou o convento de não incluir na lista de bens as propriedades das terras
do Norte. A partir de 1730, o Convento das Mônicas entrou em declínio. Os gastos do convento
eram maiores do que suas rendas, o que acarretou dificuldades financeiras constantes. Devido
a algumas restrições, como a não admissão de noviças e a diminuição dos gastos, a quantidade
de freiras foi reduzindo gradativamente até que, em 1878, só tinha restado a sóror Josefa do
Coração de Jesus, que viveu no convento até sua morte com funcionários suficientes para
manter o local. Atualmente, o prédio abriga um instituto de teologia cristã, denominado
Instituto Mater Dei.

Conclusão

Ao analisar o Império ultramarino português, pode-se ver os numerosos conflitos existentes


entre instituições religiosas, instituições governamentais régias, e entre estas e aquelas, em que
cada um se preocupava e defendia os seus próprios interesses.
29 SANTA MARIA, frei Agostinho de. História da..., op. cit., prólogo.
30 Ibidem, p. 2.
31 COATES, Thimoty. J. Degredados…, op. cit., p. 262.
A responsabilidade pela organização religiosa das terras
conquistadas obrigava a Coroa portuguesa a financiar as estruturas
eclesiásticas que se implantavam nos territórios ultramarinos,
dotando igrejas paroquiais e conventos, concedendo esmolas a
frades e a missionários, pagando o vencimento dos clérigos, do
meirinho e do pai dos cristãos.32

Essa estrutura organizada pela Coroa não se dava somente na esfera eclesiástica, mas
também na esfera do poder temporal, atribuindo ofícios e cargos civis e militares aos indivíduos
encarregados do governo nessas novas áreas, e dividindo esses cargos em jurisdições. O
problema estava no fato de, frequentemente, esses indivíduos não respeitarem os limites das
jurisdições de seu cargo e atuarem nas jurisdições de outros, o que ocasionava constantes
conflitos e querelas.
Este pequeno estudo de caso tentou demonstrar o conflito existente na cidade de Goa
entre a Câmara Municipal e o Convento de Santa Mônica, que se deu principalmente no
âmbito econômico devido à acumulação de riquezas deste num momento de decadência do
Império no Oriente, o que ocasionou uma intolerância com relação à existência do convento
por parte da Câmara. Como nos informa Coates,33 o convento teria sido vítima de seu próprio
enriquecimento e de sua fama.

32 ABREU, Laurinda. O papel..., op. cit., p. 595.


33 COATES, Thimoty. J. Degredados..., op. cit., p. 267.
PARTE IV
INTOLERÂNCIA, PODER, SOCIEDADE E REPRESENTAÇÕES

A construção da nobreza no Pará setecentista

Rafael Ale Rocha1

O presente artigo pretende abordar a ação de certo grupo da elite de Belém, durante a primeira
metade do século XVIII, para garantir o respeito aos privilégios adquiridos, a exclusividade
dos cargos camarários, e o alistamento privativo na companhia de ordenança da nobreza. Para
tanto, os homens do período adotaram princípios de nobreza próprios do Antigo Regime,
como o ideal guerreiro. Assim, determinado setor da elite de Belém argumentava pertencer
a “linhagens” de guerreiros que supostamente haviam lutado na guerra de expulsão dos
holandeses de São Luís (1644). Por tão importante serviço, esses homens chamaram a si a
condição de nobres ou cidadãos de Belém, e receberam do rei os privilégios dos cidadãos
da Cidade do Porto. Posteriormente, uma série de leis garantiu – ou já garantia, a exemplo
das Ordenações – aos homens principais da terra a exclusividade dos ofícios da Câmara e do
alistamento na companhia da nobreza. A essa altura, contudo, eles estavam relacionados aos
descendentes dos conquistadores de São Luís (ou aos próprios conquistadores). Entretanto,
apesar de a restauração do Maranhão ser o elemento ideológico principal da identificação
do grupo, os homens da época levavam em consideração as provas de nobreza típica do
Antigo Regime português, pois o defeito de sangue ou o defeito mecânico (entre outras provas
de nobreza, como o “viver à lei da nobreza”) poderiam macular a honra de determinadas
“linhagens” e os excluir dos postos da câmara e da companhia da nobreza. Em síntese, a
delimitação do grupo se fazia a partir da exclusão, ou intolerância, de indivíduos com
características que os “desqualificavam”, e da recorrência à Coroa para garantir e legitimar tal
exclusão. Para seguirmos na análise, portanto, é necessário comentar um pouco sobre a Coroa
como definidora das hierarquias e o ideal guerreiro típico da imagem da nobreza lusitana.

***

Como se sabe, durante o Medievo e a Modernidade, segundo os textos literários das duas
épocas, a ordem social estava representada de acordo com a imagem dos três estados ou
ordens. Tal imagem, apoiada na ideia do caráter natural da constituição social, inevitavelmente
relacionava-se com os direitos e os deveres de cada ordem. No caso da nobreza, tal
representação relacionava-se aos seus privilégios e à sua função social de defensora dos três
estados. Para Portugal, do ponto de vista jurídico-institucional, a confirmação pelo direito da
imagem tripartida e a função social das ordens estão consagradas nas Ordenações Afonsinas.2
1 Doutorando em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Sobre a imagem das três ordens e suas funções nas Ordenações Afonsinas, ver XAVIER, Ângela
Barreto; HESPANHA, António Manuel. A representação da sociedade e do poder. In: HESPANHA,
António Manuel (coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.
V. 4., p. 130-131.
Entretanto, apesar de essa imagem vigorar até fins do Antigo Regime, a realidade social se
apresentou de forma muito mais complexa. A evolução da nobreza portuguesa no decorrer
do Período Moderno exemplifica muito bem essa afirmação. De forma bastante resumida, tal
evolução pode ser entendida a partir das ações da monarquia e dos indivíduos que almejavam
a ascensão ou a manutenção da sua posição social.
No caso da atuação da Coroa portuguesa, esta se guiou na tentativa de monopolizar
a classificação social oficial (vocabulário) e, consequentemente, intervir na estruturação
da sociedade.3 Em parte, isto se deu por meio do uso de prerrogativas consagradas pela
tradição e pela literatura portuguesas: por conta dos papéis de liberal4 e de justiceiro (justiça
distributiva5) atribuídos aos príncipes. Esses princípios acabaram por definir as formas de
sociabilizar e de agir politicamente dos homens e da monarquia – sendo as ligações sociais e a
atuação política instâncias intimamente relacionadas. Tais formas de agir estavam baseadas na
relação entre os serviços prestados pelos súditos e a remuneração concedida pelo soberano.6
Para além desses princípios, a partir dos séculos XV e XVI, a Coroa procurou se utilizar de
diversos instrumentos legais para institucionalizar os títulos, as distinções e os privilégios.7
Nesse processo, a nobreza, mais do que uma função, tornou-se uma “qualidade” –
entendida como “qualidade de nascimento”, ou o estatuto alcançado por um indivíduo antes
mesmo de nascer. Nesse sentido, e ainda como parte do processo de institucionalização
3 Sobre o sistema de mercês, forma de atuação da Coroa na estruturação da sociedade, e o controle
do vocabulário social, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ethos nobiliárquico no final do Antigo
Regime: poder simbólico, império e imaginário social. Almanak braziliense, n. 2, p. 6, nov. 2005;
Idem. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: HESPANHA, António Manuel
(coord.). História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. V. 4, p. 333 e 334.
4 Sobre os autores que apontam a liberalidade como boa forma de governo, ver OLIVAL, Fernanda.
As ordens militares e o Estado moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa:
Estar, 2001. p. 15-18. Sobre a liberalidade como um ato calculado, ver XAVIER, Ângela Barreto;
HESPANHA, António Manuel. Redes clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (coord.).
História de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. V. 4., p. 388-389.
5 Segundo a literatura da época, o paradigma corporativo, termo usado por Antônio Hespanha e
Ângela Xavier para identificar a concepção de sociedade dominante até meados do século XVIII,
definia a sociedade como um corpo cujas partes trabalhavam com autonomia; a cabeça, função do rei,
deveria representar a unidade do corpo e garantir o funcionamento autônomo e harmônico de suas
partes. Isto equivalia, na verdade, ao papel de justiceiro conferido ao rei (jurisdicionalismo): atribuir
“a cada um o que lhe é próprio, [...] garantindo a cada qual o seu estatuto”. XAVIER, Ângela Barreto;
HESPANHA, António Manuel. A representação..., op. cit., p. 122. Isto salientaria o caráter natural
da organização social e das leis fundamentais do reino. Em outras palavras, uma das principais
atribuições do rei, segundo os autores do período, era garantir a paz e a ordem social (entendida
como natural); assim, deveria avaliar as culpas e os serviços dos vassalos para lhes garantir, com a
equidade devida, e não de forma espontânea, o prêmio ou o castigo. Ver OLIVAL, Fernanda. As
ordens..., op. cit., p. 19-28.
6 A expectativa do prêmio tornava evidente a não espontaneidade do ato de dar e de servir, pois,
mesmo quando representava uma relação entre desiguais, como na relação rei–vassalo, mediante
essas ações cimentavam-se as relações sociais e políticas que podiam trazer benefícios para o doador
e para o servidor. Se, para o rei, tal relação trazia legitimidade e autoridade ao seu poder, para os
vassalos, conforme Fernanda Olival, “servir a Coroa, com o objetivo de pedir em troca recompensas,
tornara-se quase um modo de vida para diferentes setores do espaço social português. Era uma
estratégia de sobrevivência material, mas também honorífica e de promoção.” OLIVAL, Fernanda.
As ordens..., op. cit., p. 21. Sobre a política baseada na relação entre serviço e mercê – relação
recíproca, embora, em alguns casos, assimétrica, e não espontânea –, ver XAVIER, Ângela Barreto;
HESPANHA, António Manuel. Redes..., op. cit.
7 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O ethos..., op. cit., p. 5-7; Idem. Poder senhorial..., op. cit., p. 333; 334.
das distinções e privilégios levado a cabo pela Coroa, a qualidade de nobre dos indivíduos
deveria ser provada a partir de determinadas regras. Tais provas de nobreza se difundiram na
península Ibérica por volta do século XVI. Ainda que algumas provas se resumissem a “viver
à lei da nobreza” – ter honra, na acepção de Maravall8 –, outras provas, como a da “pureza de
sangue”, eram difíceis de ultrapassar.9 É claro que a aristocracia do reino não ficou a assistir
todo esse processo, mas, na verdade, teve ativa participação na consolidação de uma fechada
nobreza de corte. Contudo, não cabe aqui descrever a ação desse setor. Basta afirmar que, tal
como no reino, a evolução da elite de Belém também vai ser possível por meio dos papéis de
liberal e justiceiro do rei e da busca, por parte dos locais, da consolidação das posições com
base em instrumentos jurídicos e institucionais. Essa busca, como veremos a seguir, ocasionou
conflitos diversos.

***

Vale ressaltar que a Coroa e os cidadãos de Belém, pelo Conselho Ultramarino, já haviam
tentado definir, por meios legais e institucionais, a hierarquia existente entre os moradores
da cidade do Pará. Existem três documentos de 1655 – a “Petição da Câmara”, a “Consulta
do Conselho Ultramarino” e a “Provisão do rei”10 – que mostram um grupo de indivíduos
que, inspirados nos cidadãos de São Luís (que receberam os privilégios dos cidadãos do Porto
como remuneração pela guerra de expulsão dos holandeses do Maranhão), procuraram o rei
para serem reconhecidos como portadores dos mesmos privilégios.. Em função do importante
serviço que prestaram, a ajuda na guerra de expulsão dos holandeses de São Luís sem o
dispêndio das rendas da fazenda real, foram devidamente assim reconhecidos pelo soberano.
A partir de então, os termos “cidadão” ou “nobre” de Belém passaram a ser relacionados com a
guerra da restauração e com os privilégios referidos. Uma lei de 1698,11 enviada ao governador
do estado, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, informava que ocupar cargos na
Câmara tornava um indivíduo isento do serviço como soldado nas ordenanças e nas tropas
pagas. Apesar de não informar a procedência dessa lei ou costume,12 o texto da legislação
apontava que as tropas estavam faltosas de soldados porque muitos indivíduos, em especial
soldados das tropas pagas e degredados, se instalavam na Câmara apenas para obter a referida
isenção. Portanto, ao lembrar as Ordenações, a legislação garantia a exclusividade dos cargos
da Câmara aos cidadãos ou nobres e aos seus filhos, ou seja, a essa altura, aos descendentes dos
restauradores do estado (ou aos próprios restauradores). Vale lembrar que os “principais da
terra” tinham o controle das eleições, conforme as Ordenações do reino, cabendo ao ouvidor
somente presidir as eleições. Contudo, para que esses indivíduos não se furtassem de servir ao
monarca, e não se misturassem aos demais moradores, o rei criou uma companhia específica
para alistar os cidadãos e seus descendentes – como, na verdade, era costume no reino e
em outras regiões do império. Vale informar que a lei criticava diretamente a ocupação dos
8 Sobre a honra, entendida como a forma de se apresentar e agir conforme o estado a qual se pertence,
ver MARAVALL, José Antônio. Poder, honor y elites en el siglo XVII. Madri: Siglo XXI, 1984.
9 MONTEIRO, Nuno Gonçalo. O Ethos..., op. cit., p. 6-8.
10 A petição é referida na Consulta do Conselho Ultramarino ao rei. Lisboa, 2 de junho de 1655 (AHU-
Pará, cx. 2, doc. 95). A Provisão do rei foi transcrita por FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem
filosófica ao rio Negro. Belém: MPEG/Museu Goeldi, 1983, p. 334.
11 A lei e a carta do governador constam no requerimento do procurador do Senado da Câmara, Roque
Bequiman e Albuquerque, ao rei d. Pedro II. Anterior a 3 de março de 1705 (AHU-Pará, cx. 5, doc.
403).
12 Não encontramos nenhuma lei anterior que, em seu texto, relacionasse a isenção em servir nas
ordenanças comuns como remuneração pela reconquista. Entretanto, tendo em mente que este
artigo representa uma pesquisa ainda em andamento, não descartamos essa possibilidade.
ofícios da Câmara por soldados e “mecânicos”. O governador, ordenando a execução de tal
ordem, ainda designava ao escrivão da Câmara “o cuidado de fazer presente esta ordem de
Sua Majestade em Câmara todas as vezes que houver eleição de pelouros e almotacés sob pena
de perdimento do ofício”. Três leis posteriormente promulgadas – uma de 1702, dirigida ao
capitão-mor do Pará, João Velasco de Molina, e duas de 1710, 13 enviadas respectivamente
ao governador do estado, Cristóvão da Costa Freire, e ao capitão da companhia da nobreza,14
João Ferreira Ribeiro – procuravam reiterar os referidos privilégios (exclusividades e isenções)
dos nobres ou cidadãos e garantir o serviço desses homens, pelo alistamento na companhia
da nobreza, e dos demais moradores, proibindo os não cidadãos de servirem na Câmara e
(caso servissem ilegalmente) de desfrutarem dos privilégios dos nobres. Por fim, ao reiterar
a existência da companhia da nobreza, uma lei de 171115 – enviada ao capitão mor do Pará
João de Barros Guerra – também procurava, a um só tempo, garantir o serviço dos nobres ou
cidadãos e seu status diferenciado e exclusivo. O texto dessa lei mostrava que esses homens
procuravam não servir em trabalhos que consideravam “vis”.
Quanto aos privilégios dos cidadãos do Porto, no entanto, o texto da provisão de 1655
não os tornou explícitos. Contudo, parecia claro – conforme costume já reconhecido e/ou um
texto de lei que tudo indica ter chegado ao Senado da Câmara (em data não revelada) – que os
referidos privilégios do Porto, mencionados na provisão de 1655, se referiam à provisão régia
de 1490 enviada à câmara da cidade do Porto. Um dos privilégios assegurados pela provisão
de 1490 garantia que os cidadãos do Porto não poderiam mais ser “metidos a tormentos, por
nenhum malefício que tenham feito [...] salvo nos feitos, e daquelas qualidades e nos modos
em que o devem ser, e são os fidalgos de nossos reinos, e senhorios”, ou seja, “não podem ser
presos por nenhum crime, somente sobre suas homenagens”16.
Em boa parte dos casos, é com base nessas leis que os embates em torno da salvaguarda
dos privilégios dos cidadãos do Porto, das eleições camarárias e do alistamento na companhia
da nobreza se desenrolaram. Em contendas locais, todos os privilégios (exclusividades e
isenções) aqui expressos foram ferrenhamente defendidos por certo grupo de cidadãos de
Belém. Tendo em mente que os embates aqui analisados ocorriam no âmbito do direito –
13 A lei de 1702 consta em anexo a carta dos oficiais da câmara de Belém ao rei D. João V. Belém, 28
de setembro de 1727. AHU-Pará, cx. 10, doc. 983. As leis de 1710 constam nos Anais da Biblioteca
Nacional: Imprensa Nacional, 1948, v. 67, p. 66.
14 As leis tratam a companhia da nobreza e a companhia dos privilegiados como a mesma companhia.
No entanto, num período não muito bem delimitado, a companhia da nobreza e a dos privilegiados
se tornaram duas companhias distintas. Ver, por exemplo, a explicação da Câmara sobre isso, em
representação ao rei de setembro de 1731, anexada na “Carta dos oficiais da Cao rei d. João IV”.
Belém, 25 de setembro de 1733. AHU-Pará, cx. 15, doc. 1436. Ver, também, “Mapa das ordenanças
de 1730”. AHU-Pará, cx.12, doc. 1142. Para evitar confusões, apesar de a legislação enviada a João
Ferreira Ribeiro o tratar como capitão da companhia dos privilegiados, optamos por designar o
posto de Ribeiro como capitão da companhia da nobreza.
15 A lei consta nos Anais da Biblioteca Nacional, v. 67, p. 93-94, 1948.
16 Na década de 40, os câmarários de Belém recorreram ao rei para barrar eleições consideradas ilegais
(em que os ocupantes dos cargos eram não cidadãos). Para tanto, os oficiais pediram ao escrivão
para trasladar uma série de leis régias registradas no livro da Câmara. Entre elas se encontrava a
provisão do rei à cidade do Porto de 1490. O escrivão não informava o ano em que os privilégios da
cidade do Porto foram registrados na câmara de Belém. Porém, revelava que o registro da provisão
de 1490 “se achava em um livrinho [...] letra redonda autenticada em pública forma por autoridade
de justiça”. O traslado das referidas cartas está anexado à carta do ouvidor-geral da capitania do Pará,
Timótio Pinto de Carvalho, ao rei d. João V. Pará, 20 de novembro de 1743. AHU-Pará, cx. 26, doc.
2461. Várias cidades do império receberam os privilégios dos cidadãos do Porto, principalmente
após a restauração de Portugal (1640) e a expulsão dos holandeses de diversas partes do ultramar
(Rio de Janeiro, em 1642, Salvador, em 1646, São Luis, em 1655 e Luanda, em 1662).
havendo a necessidade de recorrer ao arbítrio do monarca –, a estratégia utilizada por esses
homens foi relacionar legalmente tais exclusividades e isenções com a restauração, pois, ao
que parece, a reconquista do Maranhão representava um argumento forte o suficiente na luta
para garantir os referidos privilégios. Por um lado, como discutimos anteriormente, parte da
própria legislação relacionava esses privilégios à reconquista, mas, por outro, a elite de Belém
teve que habilmente “reinterpretar” algumas leis nesse sentido. Procuraremos demonstrar
que tal estratégia era guiada por interesses específicos: alcançar exclusividades e isenções
que os distanciassem de indivíduos considerados “desqualificados” – os não cidadãos ou
descendentes, e os identificados com as máculas do “defeito mecânico” e “sangue infecto” –,
como, por exemplo, não ser preso junto com os demais moradores, ocupar os cargos restritos
da Câmara, e não exercer os trabalhos “vis” próprios das ordenanças comuns.

***

O primeiro registro que encontramos sobre o desacato aos privilégios da cidade do Porto,
concedidos aos cidadãos de Belém, data de 1705. Entre fevereiro e março de 1705, o procurador
da Câmara de Belém, Roque Beckman, remetia à mesma Câmara dois requerimentos
que, em 3 de março do mesmo ano, foram deferidos pelos oficiais camarários. O primeiro
requerimento solicitava um traslado, registrado no arquivo da câmara, da Carta Régia de 10
de dezembro de 1698. Tratava-se da lei, mencionada anteriormente, enviada ao governador do
estado Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho. O segundo requerimento do procurador
requisitava da Câmara de Belém o traslado, também registrado no arquivo da mesma Câmara,
de uma sequência de documentos elaborados no ano de 1705: uma petição da câmara ao então
ouvidor do Pará, Manoel da Silva Pereira, o despacho do ouvidor em relação a tal petição, a
réplica da Câmara em relação a tal despacho e, por fim, outro despacho do ouvidor referente
a essa réplica.
O primeiro documento apontado, a petição da câmara ao ouvidor, informava que
“em cadeia pública onde só sabe devem ser [presos] os facinorosos, se acham presos alguns
nobres e privilegiados cidadãos dessa República por tão levíssimas culpas que consideradas
elas [as culpas] é nada”. Segundo a petição, tal prisão, ordenada pelo ouvidor Manuel da Silva
Pereira, era indevida, porque não obedecia à “notória” nobreza e aos privilégios “com que
Sua Majestade foi servido remunerar os serviços de seus vassalos”. Portanto, a prisão dos
cidadãos deveria ser realizada “conforme suas qualidades [dos cidadãos] como são e devem
ser os fidalgos”, ou seja, “devia vossa mercê [o ouvidor] vir prendê-los [os cidadãos] ou mandar
prender pelos juízes da cidade logo sob suas homenagens, e não mandar pôr seus oficiais
menores em cadeia pública”. Mesmo sem a citar diretamente, ao que parece, tratava-se de uma
referência à provisão régia de 1655. A petição ainda afirmava que o ouvidor fora devidamente
informado acerca dos privilégios dos cidadãos, mas, no entanto, o ministro tratou-os com
injúria; portanto, requisitava a obediência aos privilégios concedidos por lei, e a soltura dos
referidos cidadãos. O despacho do ouvidor fora favorável a tal petição, e informava que o
ministro estava tomando providências em relação ao ocorrido, ou seja, tinha “mandado
pensar as culpas” para “guardar” os privilégios referidos (as “homenagens”) e “já assim o
tenho deferido a alguns”17.
A réplica da câmara, assinada pelo procurador Bequiman, reconhecia o despacho do
ouvidor, mas, contudo, informava ser “repugnante e afrouxada seu devido efeito com a prática
e o estilo que vossa mercê [ouvidor] observa na detenção da virtude da real concessão”, pois
o ouvidor não diferenciou “mecânicos” e “nobres” quando prendeu os cidadãos. A réplica
17 A petição da Câmara e o despacho do ouvidor estão anexados ao requerimento do procurador do
Senado da Câmara, Roque Beckman e Albuquerque, ao rei d. Pedro II. Anterior a 3 de março de
1705. AHU-Pará, cx. 5, doc. 403.
lembrava ainda que muitos ministros enviados ao Pará “não praticavam a observação de dar
homenagem” e acusava o atual ouvidor de conhecer, “por publicamente se saber”, a “qualidade
dos presos que nenhum morador o ignora”. Segundo a réplica, caso houvesse dúvidas em
relação à qualidade dos presos, era obrigação do ouvidor se informar; além do mais, a referida
“homenagem” deveria ser auferida pelo ouvidor “sem que lhe fosse requerida quando é
manifesta”. A ação do ouvidor era ainda mais grave, segundo a Câmara, porque fora “pública a
captura, onde se aprendem todos e quaisquer gêneros de culpados e pessoas”. Por fim, a réplica
lembrava que os privilégios referidos representavam a remuneração aos serviços prestados
pelos pais e avôs dos cidadãos, e não considerar tal mercê seria uma injúria “a toda a república
em se não guardar as leis”. Ao pedir o acatamento dos privilégios (os cidadãos só podiam
ser presos mediante as “homenagens” e pelo próprio ouvidor, ou por juízes nomeados pelo
ministro, e não por oficiais “menores”), a Câmara não deixava de se referir a um juramento –
sem esclarecer a procedência de tal promessa – pelo qual o rei prometia “guardar” os privilégios
concedidos a seus “leais vassalos” pelos soberanos anteriores18.
Outra contenda, ocorrida na década de 1720, também envolveu um oficial régio e a
Câmara de Belém. Os cidadãos de Belém, por meio da Câmara, acusavam o governador do
estado, João Maia da Gama (1722-1728), de não obedecer aos seus privilégios, pois, em uma
viagem do governador a Belém, Maia da Gama mandou prender a “ferros” alguns cidadãos
por suspeitar de escravidão ilegal de índios. Ao defenderem os seus privilégios, os cidadãos de
Belém recorreram à sua ascendência (os conquistadores de São Luís) e, de forma implícita, à
provisão de 1655.19
Em outro conflito com o mesmo governador, a Câmara de Belém voltou a se utilizar dos
privilégios dos cidadãos do Porto. Além de citar diretamente a provisão de 1655, os oficiais
camarários relacionavam as isenções concedidas pela provisão régia de 1702, enviada ao capitão-
mor do Pará, João Velasco de Molina (lei anteriormente citada), a outros privilégios conferidos
aos cidadãos do Porto. Nesse caso, a provisão de 1702 foi usada para se furtar ao alistamento
nas ordenanças e nas tropas pagas. Os cidadãos paraenses consideravam tais serviços um peso
insuportável, pois, ao que parece, lhes aproximavam dos demais estratos sociais. Tal ponto
de vista esteve expresso em uma carta dos oficiais da Câmara enviada a d. João V. Datada de
28 de setembro de 1727, a carta acusava o governador do estado, João Maia da Gama, de não
respeitar alguns privilégios concedidos aos cidadãos de Belém. Ao citar as provisões de 1655
e 1702, a correspondência afirmava que elas (provisões) se complementavam, pois, segundo a
argumentação dos camarários, a lei de 1702 possuía referência remota a certos privilégios dos
cidadãos e oficiais camarários do Porto: esses indivíduos, conforme decreto de 1642, deveriam
ser alistados “em companhias separadas da nobreza” e, conforme decreto de 1650, haveriam
de permanecer “sem sujeição aos capitães das ordenanças ordinárias e os filhos, e netos dos
ditos cidadãos gozam dos mesmos privilégios de cidadãos e como tais votam nas eleições e
são ocupados nos atos honrosos”. Esses privilégios, conforme a argumentação dos camarários,
18 A réplica está anexada ao requerimento do procurador do Senado da Câmara, Roque Beckman e
Albuquerque, ao rei d. Pedro II. Anterior a 3 de março de 1705. AHU-Pará, cx. 5, doc. 403.
19 Em representação ao rei, dizem os cidadãos de Belém: “Tanto que chegou o dito governador à
Cidade do Pará, logo despoticamente, com arrogância estranhável, foi descompondo de palavras
pesadas, e injuriosas, à maior nobreza daquelas Repúblicas, em público; sem para isso terem dado a
mínima causa; nem atender, a serem as colunas da República, e muitos homens já velhos; nem aos
que estavam servindo atualmente no Senado da Câmara; nem aos privilégios que gozam aqueles
cidadãos, sendo os mesmos das infansões, que gozam os cidadãos da Cidade do Porto, concedidos
ao Estado do Maranhão, pelo Serviço que os Pais, e Avós daqueles vassalos fizeram a Coroa de Vossa
Majestade, na expulsão dos holandeses da Cidade de São Luiz do Maranhão, estando de posse dela;
sacrificando as suas vidas, e fazendas, sem nenhuma despesa da Real”. Capítulos sobre os maus
procedimentos do governador João Maia da Gama, s.n.; s.d.. Biblioteca Nacional, localização: 06, 3,
010.
estavam “insinuados” na provisão de 1702. Em seguida, a câmara explicitamente relembrava
os privilégios dos cidadãos do Porto como remuneração pela expulsão dos holandeses do
Maranhão e afirmava que os cidadãos paraenses e seus filhos não deveriam ser alistados nas
ordenanças, nas quais “somente devem servir os homens do povo”. Entretanto, ainda segundo
a correspondência da Câmara, o governador João Maia da Gama mandou alistar os cidadãos
e seus filhos nas ordenanças, os mandara entrar em guarda “e fazerem os mais exercícios
militares privando-os da antiquíssima e imemorial posse em que estavam, e violando-lhes os
privilégios que Vossa Majestade se dignou deles conceder”. Os camarários, por fim, pediam ao
rei que ordenasse ao governador a obediência aos seus privilégios “não os compelindo a servir
nas ordenanças nem a entrar de guarda”.20
É importante destacar que, nessa correspondência da Câmara, o privilégio de não
servir nas companhias de ordenança comum foi diretamente relacionado aos privilégios dos
cidadãos do Porto e à provisão de 1655, ou seja, foram relacionados à conquista do Maranhão
pelos cidadãos. O texto da lei de 1702, no entanto, não explicita tal relação. Na verdade, a lei
de 1702 – tal como a lei de 1798, enviada ao governador Antonio de Albuquerque Coelho
de Carvalho, que criava a companhia da nobreza – referia-se a outra legislação que ainda
não encontramos. Portanto, não sabemos se a isenção de servir na ordenança comum estava,
legalmente, ligada ao serviço da reconquista. Mas podemos afirmar que a Câmara atuou
nesse sentido, pois, mediante o seu procurador, enviou requerimento à câmara do Porto para
averiguar quais eram os privilégios dos seus cidadãos (do Porto) em relação ao alistamento
militar. Como resposta, a câmara do Porto enviara à Belém os dois decretos régios acima
referidos (os decretos ao Porto de 1642 e 1650). Todos os documentos referidos – as provisões
de 1655 e 1702 e os decretos à cidade do Porto – estavam registrados nos arquivos da Câmara,
e foram anexados à carta que os oficiais camarários enviaram ao monarca. Enfim, a isenção do
alistamento nas companhias de ordenança comum e o alistamento privativo na companhia da
nobreza foram encarados pelos cidadãos como uma remuneração pelo serviço da restauração.
O início da carta da câmara esclarece essas questões:
Por provisão de vinte de julho de mil setecentos e cinquenta e
cinco copiada na certidão letra A. foi Vossa Majestade servido
fazer mercê aos cidadãos dessa cidade de que gozassem aos
mesmos privilégios concedidos aos da cidade do Porto em
atenção ao grande zelo e fidelidade, com que se houveram no
tempo que os holandeses entraram à cidade de São Luís do
Maranhão e entre os mais privilégios permitidos aos cidadãos do
Porto é um que não sejam alistados nas ordenanças, nem ainda
seus filhos por deverem gozar os mesmos privilégios concedidos
aos pais nos quais somente devem servir os homens do povo,
como melhor se mostra na certidão letra B [certidão do escrivão
da câmara do Porto sobre os decretos de 1642 e 1650]. E devendo
praticar-se o mesmo com os cidadãos desta cidade e seus filhos
como Vossa Majestade foi servido mandar insinuar ao capitão-
mor João Velasco de Molina no tempo em que governou esse
Estado em carta de dez de novembro de mil setecentos e dois
copiada na certidão letra C.21

20 A provisão de 1655, a Carta Régia de 1702 e os privilégios dos cidadãos do Porto referentes às
ordenanças constam na carta dos oficiais da Câmara de Belém ao rei, d. João V. Belém, 28 de
setembro de 1727. AHU-Pará, cx. 10, doc. 983.
21 Carta dos oficiais da Câmara de Belém ao rei, d. João V. Belém, 28 de setembro de 1727. AHU-Pará,
cx. 10, doc. 983.
Na década de 1730, a Câmara apresentou queixas relativas às intervenções de oficiais
“superiores” nas eleições camarárias. Essas intervenções, conforme o argumento dos oficiais
da câmara, explicavam a baixa “qualidade” dos homens que passavam a servir na Câmara, e
o baixo número de alistados nas companhias de ordenança. Em requerimento enviado ao rei
entre os anos de 1731 e 1732, os vereadores mais velhos, Antônio Furtado de Vasconcelos
e Antônio Faria Quevedo, solicitavam que não se admitissem na Câmara “pessoas que não
fossem da qualidade deles”. Assim, de acordo com o requerimento, não obstante a Câmara
ter solicitado anteriormente tal pedido – contenda que chegou à Casa da Suplicação e teve
sentença favorável à Câmara –, alguns eleitores continuavam a eleger “semelhantes pessoas
de que se tem seguido grande escândalo, e não menos que prejuízo às ordenanças pois [d]elas
se ficam livrando aquelas pessoas indevidamente aceitas na Câmara”. Sendo assim, de acordo
com a argumentação dos camarários, os filhos e netos de cidadãos se viam excluídos dos
ofícios da Câmara porque alguns eleitores votavam em pessoas fora desse círculo “por respeito,
e peditórios superiores”. Nem a câmara pôde “evitar semelhantes procedimentos temerosos de
que os superiores que pedem por tais sujeitos lhe possam fazer alguma violência”. Por fim, os
vereadores requisitavam do rei um alvará que ordenasse “riscar” dos livros do Senado aqueles
“sujeitos” que haviam indevidamente ocupado postos na Câmara, como, por exemplo, “dois
criados do governador que foi deste Estado Bernardo Pereira de Berredo [1718-1722] os quais
foram admitidos [na Câmara] por subornos”.22
Queixa idêntica teve lugar no ano de 1736. A câmara informava ao rei que os ouvidores
e governadores investiam esforços para eleger “pessoas indignas por conveniências próprias”.
Reclamavam que, em função de tais fraudes, as companhias de ordenança estavam com
reduzido número de alistados, e “daqui a pouco não haverá nesta cidade mecânico por que
todos se vão habilitando a serem nobres”. Citavam as leis de 1698 e 1702, pediam, como na
queixa anterior, que se “riscassem” dos livros da câmara os eleitos indevidamente, e, por fim,
lembravam que os seus privilégios (exclusividade e isenções) tinham por base a remuneração
pela expulsão dos holandeses de São Luís.23 Em resposta, no ano seguinte, o monarca ordenou
ao recém-empossado governador do Estado, João de Abreu Castelo Branco (1737-1747), que
entrasse em contato com a Câmara para elaborar uma lista dos eleitos ilegalmente. O monarca
também reiterava a proibição da intervenção do ouvidor ou do governador nas eleições
camarárias.24
Os cidadãos de Belém, por meio da Câmara, tornaram a requisitar a proteção dos seus
privilégios. Em carta ao rei de 15 de setembro de 1736, os oficiais camarários lembravam,
mais uma vez, os privilégios dos cidadãos do Porto que haviam adquirido. Afirmavam que
os governadores e ministros superiores (ouvidores), que deveriam ser os primeiros a garantir
as disposições de tais privilégios, eram os que os violavam. Sendo assim, “por qualquer leve
motivo”, prendiam sem as devidas “homenagens”, em calabouço ou na cadeia pública – onde
estavam presos “não só índios da terra, e do gentio da Guiné, mas também toda a variedade
de facinorosos” –, os cidadãos, seus filhos e netos. Além disso, mandavam sentar praça de
soldado pago, “por queixa de alguém [...] ou paixões próprias”, aos mesmos filhos e netos de
cidadãos. Pediam, portanto, a observância aos privilégios concedidos pelos reis antecessores,
confirmados pelo rei atual, e penas para quem os violasse.25
22 Requerimento dos veredores da câmara da cidade de Belém do Pará, Antônio de Faria Quevedo e
Antônio Furtado de Vasconcelos, para o rei, D. João V. Anterior a 20 de janeiro de 1733. AHU-Pará,
cx. 14, doc. 1351.
23 Carta da câmara da cidade de Belém do Pará ao rei, D. João V. Belém, 25 de setembro de 1736. AHU-
Pará, cx. 19, doc. 1798.
24 A carta do rei e a lista remetida pela Câmara estão anexadas na carta do governador e capitão
general do Estado, João de Abreu Castelo Branco, ao rei, d. João V. Belém, 18 de outubro de 1737.
AHU-Pará, cx. 20, doc. 1884.
25 Carta dos oficiais da câmara de Belém ao rei, d. João V. Belém, 15 de setembro de 1736. AHU-Pará,
Em carta da Câmara ao rei, de 8 de novembro do ano seguinte, os oficiais camarários
revelavam numerosos casos particulares de cidadãos que foram presos sem as suas devidas
“homenagens” por crimes leves (ou mesmo inconclusos). Segundo a correspondência, estavam
a responder uma carta do rei referente à súplica elaborada pela Câmara no ano anterior – o
monarca pedia aos camarários que citassem os casos de prisões indevidas. Assim, os oficiais do
Senado apontavam exemplos em que governadores e ouvidores mandavam prender, na cadeia
pública ou na fortaleza da Barra, os cidadãos, seus filhos e netos sem prestar as “homenagens”.
Foi o caso do cidadão José de Oliveira Pantoja, que foi “preso em ferros sem diferença de
índios da terra e pretos da Guiné, misturado com muitos facinorosos”. Os oficiais apresentavam
também casos de filhos e netos de cidadãos que foram obrigados a sentar praça na tropa
paga. Por fim, informavam que muitos desses governadores e ouvidores “são bem livrados nas
residências” porque “acabam protegidos de alguns moradores graves, e terem[têm] o favor dos
sindicantes”.26
Em requerimento elaborado na primeira metade de 1741, o sargento-mor das
ordenanças, Antônio Ferreira Ribeiro, se mostrava profundamente incomodado com a
entrada na Câmara de indivíduos de baixa “qualidade” e com os privilégios que, uma vez
na posição de oficiais camarários, esses homens alcançavam. Dessa vez, a acusação recaia,
contudo, sobre os próprios cidadãos. Enviando sua súplica ao rei, afirmava que boa parte
dos cidadãos que “andam na governança” costumavam “eleger para almotacés continuamente
homens de total incapacidade de o poderem ser, e outros para procuradores e vereadores”.
Essas transgressões, conforme a argumentação do sargento-mor, se faziam “por conveniências
próprias” e por meio de pagamentos. Transgrediam-se, segundo Ferreira Ribeiro, a lei régia
de 1698,27 enviada ao governador Antônio Albuquerque Coelho de Carvalho, e a de 1702,
enviada ao capitão-mor João Velasco de Molina, pois, segundo tais legislações, “todas
as pessoas que entrassem na Câmara sendo contra as leis, não lograssem de privilégios, e
tornassem a ser alistados nas companhias do que antes tinham sido”. Não obstante ambas
as leis estarem registradas na Câmara e serem lidas no início das eleições de almotacés e de
pelouros, conforme a exigência de Coelho de Carvalho em relação à lei de 1698, “nem assim
observam [...] e pelo contrário obram por serem corrompidos por dádivas que atualmente
recebem”. Citava o exemplo de Francisco Gonçalves, homem que fora “feito” almotacé apesar
de ter sido pedreiro, carpinteiro, não saber ler nem escrever, viver bêbado e, enfim, não “ter
princípio algum de nobreza”. Conforme Ribeiro, esse homem havia sido capitão da fronteira de
Joanes (Marajó), mas, ao saber da “qualidade do dito [Gonçalves] por queixas de que não tinha
sido soldado”, o rei o depôs e revogou todos os privilégios que a sua patente lhe assegurava. O
referido Francisco Gonçalves, segundo o sargento-mor, foi eleito almotacé após “corromper”
os oficiais da Câmara e o juiz ordinário mais velho, Domingos Serrão de Castro. Um neto
de cidadão tentou embargar a posse e o juramento de Gonçalves, mas, Serão de Castro, “por
meios extraordinários tão fraudulentos”, não admitiu os embargos e os agravos, e deu posse a
Francisco Gonçalves. O outro juiz ordinário não quis admitir isso. Já o vereador mais velho e o
restante dos camarários recorreram à intervenção do ouvidor para impedir que o escrivão da
Câmara registrasse a posse e o juramento de Gonçalves. Não obstante o despacho do ouvidor –
que proibia, sob a pena de “suspensão do ofício”, o escrivão de “escrever” a posse, o juramento e
os votos em Gonçalves –, o juiz Serrão e o vereador Mateus de Siqueira Chaves “todo o referido
procedimento [posse, juramento e escrita dos votos] o fizeram”. Posteriormente, segundo
o sargento-mor Ferreira Ribeiro, o “juiz mais moço” e o vereador mais velho desistiram de
cx. 19, doc. 1766.
26 Carta dos oficiais da câmara de Belém ao rei, D. João V. Belém, 8 de novembro de 1737. AHU-Pará,
cx. 20, doc. 1915.
27 No documento original, a lei é datada de 1688. Mas aqui parece ter ocorrido um erro de datas, pois
o governo de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi de 1690 a 1701. Talvez, portanto, a
referida lei de 1688 fosse, na verdade, a lei de 1698 que descrevemos páginas atrás.
sustentar a contenda, pois, ao que parece, pediram de Francisco Gonçalves o pagamento de
quatrocentos mil réis e dois rolos de pano para lhe permitir a sua posse e juramento. Ferreira
Ribeiro informava que o governador do estado “estranhou” esse procedimento; prática que
“ultrajava” os cargos da República “ocupados por homens indignos, e inscientes, que pela
tal razão padece a República e [...] o governo dela”. Além do mais, continuava Ribeiro, o
número de recrutas nas ordenanças e nas tropas pagas diminuía progressivamente – devido
ao “abuso”, por meio de subornos “tão públicos”, do uso indiscriminado dos privilégios “de
infansões e netos de senhores reis”. Revelava que havia até “mamelucos filhos de índias” que
arrogavam para si tais regalias e, portanto, solicitava que esses privilégios fossem concedidos
apenas àqueles “cidadãos antigos e seus condescendentes”. Ao se colocar como sargento-
mor e cidadão “descendente dos primeiros cidadãos [...] e conquistadores daquela cidade”,
requisitava a “extinção” desses outros cidadãos “criados” nas eleições – condição transmitida
aos filhos e netos dos “novos” cidadãos. Afirmava que havia cidadãos, seus filhos e netos de
reconhecida “nobreza”, que ainda não haviam ocupado ofícios na Câmara e, enfim, solicitava
que cada vereador que votasse em pessoas de “baixa qualidade” para almotacé pagasse uma
multa a ser investida nas “obras da Câmara”. A argumentação guiava-se no sentido de definir
que a “qualidade” de nobre e cidadão privilegiado, em oposição aos “plebeus” sem “qualidade”,
dependia mais do pertencimento à família de um tradicional servidor/conquistador do que
da condição de oficial camarário. Ao que parece, segundo a posição de Ferreira Ribeiro, o
exclusivo dos cargos camarários não definia a condição de cidadão, mas, no entanto, de tal
condição deveria derivar esse exclusivo28. O trecho final do requerimento do sargento-mor
explicita essas questões:
Em atenção ao referido recorre o suplicante a Vossa Majestade
como sargento-mor do terço das ordenanças e como cidadão
descendente dos primeiros cidadãos, e conquistadores daquela
cidade, para que Vossa Majestade prova de remédio por seu real
decreto a extinguir semelhantes cidadãos [os desqualificados], e
evitar a que não prossigam os vereadores eleitores na fatura de
criarem semelhantes pessoas, quando não há falta de cidadãos,
e seus filhos e netos, e homens de conhecida nobreza de seu
nascimento, para poderem ocupar os cargos da República, pois
se acha em grande numero de cidadãos para haver de governar
a República.
Para Vossa Real Majestade na atenção do referido seja servido
mandar por seu real decreto declarar, que semelhantes pessoas
não logrem os privilégios tão relevantes de infansões, que
foram adquiridos pelos antigos cidadãos a custa de suas vidas,
e fazendas, que em remuneração do qual foram concedidos os
ditos privilégios pelos senhores reis para lograrem os tais, e seus
filhos, e netos, e seus descendentes para agora abusarem outras
pessoas de diferentes qualidades sem nobreza alguma de seus
nascimentos, por plebeus.29

A queixa de Antônio Ferreira Ribeiro surtiu algum efeito, pois o rei, em carta de abril de
1742 ao governador João de Abreu Castelo Branco, ordenava a repreensão ao juiz Domingos
Serrão de Castro e ao vereador Mateus de Siqueira Chaves, e os proibia de servir novamente
nos cargos da República.
28 Requerimento do sargento-mor do terço da ordenança da praça da capitania do Pará, Antônio
Ferreira Ribeiro, para o rei, d. João V. Anterior a 9 de maio de 1741. AHU-Pará, cx. 24, doc. 2.237
29 Ibidem.
O sargento-mor Antonio Ferreira Ribeiro foi um personagem que se revelou
profundamente incomodado com essas questões. Já por volta do ano de 1735, o cidadão Miguel
Lopes Ferreira enviava requerimento ao rei pedindo o realistamento dos seus dois filhos na
companhia da nobreza. Segundo Lopes Ferrreia, seus filhos haviam sido retirados das listas
da companhia porque o pai fora acusado pela Câmara e pelo sargento -mor Antônio Ferreira
Ribeiro de exercer “oficio mecânico de ferreiro atualmente em sua tenda”.30 Vale informar que
esse não foi o único problema de pessoas com baixa “qualidade” na companhia da nobreza.
Na virada da década de 1730 para a década de 1740, um padre filho de cidadão, José Correia
da Guarda, solicitava o reingresso dos seus dois filhos na companhia da nobreza. Para tanto,
obteve do rei as cartas de legitimação dos filhos, o que possibilitava aos mesmos herdar os
bens e a nobreza do padre seu pai. Contudo, a Câmara investiu esforços para retirar os nomes
desses dois indivíduos da lista da companhia, sob o argumento de que ambos eram filhos de
uma índia chamada Anna. Embora o padre encarasse essa índia como forra (o que foi dessa
forma representado nas cartas de legitimação do rei), os camarários se valeram de uma lei
régia – datada de 20 de março de 1741 – pela qual o monarca garantia que a legitimação de um
indivíduo “vos não obriga [a câmara] a que aliste aqueles legitimados, que sam filhos de índias
escravas e mulheres que tem vileza”. A própria lei régia de 1741 fazia referência a uma carta de
1739 da Câmara ao rei, que, ao que parece, pretendia barrar alguns “filhos naturais de cidadãos
dessa cidade havidos de mulheres índias da terra, e algumas escravas, os quais pretendem ser
alistados na companhia da nobreza”.31 No ano de 1742, a Câmara, da qual agora fazia parte
Antônio Ferreira Ribeiro, solicitava permissão ao rei para poder impedir eleições de pessoas
“não nobres”. Os argumentos dos oficiais eram semelhantes aos explicitados em várias ocasiões
anteriores: relacionavam-se os serviços da reconquista à condição de nobre ou cidadão –
posição transmissível aos descendentes – e aos privilégios concedidos como remuneração.32
Em 1747, Ferreria Ribeiro chegou a “persuadir” seu sobrinho, Francisco Siqueira de Queirós,
a não participar da Câmara. Segundo os oficiais camarários, mesmo após ter sido eleito juiz
ordinário, Siqueira de Queirós recusou o cargo, porque Ribeiro, “se persuade, não há quem o
iguale; persuadiu também ao dito seu sobrinho, não quisesse servir o dito cargo, dizendo que
o juiz mais velho, Agostinho Domingues Serqueira, e os mais oficiais da Câmara, não eram
capazes de servir com ele”.33
Em outro conflito, a rejeição aos reinóis aparecia de forma explícita em uma carta
do ouvidor do Pará, Timótio Pinto de Carvalho, ao rei. Datada de 22 de janeiro de 1746, a
correspondência dissertava sobre o “empenho” dos “Respúblicos desta cidade, que dela são
naturais, é que não sirva na Câmara pessoa alguma do reino”. Segundo o ouvidor, mesmo
quando os reinóis eram “bons” ou “mais nobres” do que os locais, os “naturais”, quando não
tinham “interesse” na eleição ou “dependência” dos reinóis, procuravam “todos os meios, ou
para perturbar a eleição, ou para que sejam excluídos delas todos os que forem do reino”. O
ouvidor relatava um caso ocorrido no ano anterior, quando, após a eleição de um reinol (não
explicitava para qual cargo da Câmara), Pinto de Carvalho ouvira “histórias” “de que alguns
do reino não saíssem por eleitores, ou ao menos, de que seguissem nos votos as máximas
dos naturais”. O ouvidor informava que, na ocasião, os naturais da terra ficaram “sossegados”
quando perceberam que, a cada eleito do reino “que tem servido já muitas vezes na Câmara”,
30 Requerimento de Miguel Lopes Ferreira para o rei D. João V. Lisboa. Anterior a 3 de janeiro de 1735.
AHU-Pará, cx. 17, doc. 1.580.
31 As cartas de legitimação, a carta do rei e outros documentos sobre a matéria estão anexados ao
requerimento de Manuel de Souza e Pedro Correia de Souza, filhos do Padre João Correia da Guarda,
ao rei d. João V. Anterior a 7 de junho de 1743. AHU-Pará, cx. 26, doc. 2424.
32 Carta da Câmara anexada à Carta do ouvidor-geral da capitania do Pará, Timótio Pinto de Carvalho,
para o rei, d. João V. Pará, 20 de novembro de 1743. AHU-Pará, cx. 26, doc. 2.461.
33 Carta dos oficiais da Câmara de Belém ao rei, d. João V. Pará, 17 de novembro de 1747. AHU-Pará,
cx. 30, doc. 2.821.
“juntei outro da cidade”. Na mesma eleição, dois indivíduos tiveram o mesmo número de votos
para juiz dos órfãos: Manuel Pinheiro de Lacerda, sobrinho de Antônio Ferreira Ribeiro, e João
de Souza Monis. Segundo Pinto de Carvalho, ao se abrirem os pelouros, Pinheiro de Lacerda
e alguns oficiais camarários tentaram embargar a eleição – dando-a por nula –, afirmando
que um dos juízes ordinário e um dos vereadores eleitos, respectivamente os reinóis Aleixo
Soares e Amaro Paes de Andrade, não eram filhos ou netos de cidadãos. Isso apesar de ambos
“se tratarem à lei da nobreza”, do primeiro ser “bastante rico” e saber “a maior parte do povo
que, no reino, era pessoa grave, e de estimação” e do segundo ter casado com a filha de um
cidadão34.

***

Pontuamos aqui alguns motivos elucidados por certo grupo de cidadãos para barrar a entrada,
na Câmara e na companhia da nobreza, de indivíduos considerados “desqualificados”. Essa
“qualidade”, como vimos, comportava: a ausência do defeito de sangue ou mecânico e o
pertencimento ao grupo dos cidadãos descendentes dos conquistadores de São Luís. Nesse
último ponto, a ideia de “nobreza” ou “qualidade” ganhava sentido a partir de um acontecimento
local (a restauração do Maranhão). Na ótica de alguns cidadãos, para fazer parte da nobreza
de Belém, pelo menos até meados dos setecentos, não bastava ter sangue limpo, ausência de
defeito mecânico, se tratar à lei da nobreza, participar da Câmara etc. Haveria de pertencer
a uma linhagem de guerreiros que, com o sangue, vidas e fazendas, ajudaram a expulsar os
holandeses da cidade de São Luís do Maranhão. Entretanto, os estigmas mencionados (defeito
mecânico e de sangue, por exemplo) poderiam macular a “linhagem” e os excluir dos quadros
da Câmara e do alistamento na companhia da nobreza. Tendo em mente que indivíduos de
várias procedências visavam a participação nessas instituições – o que foi possível para alguns
–, logo surgiram embates entre cidadãos e autoridades régias e entre os próprios cidadãos. Já que
o rei deveria arbitrar os conflitos ocorridos no interior da sociedade, reiterando a sua posição
de centro ordenador e hierarquizador, os nobres de Belém viram a Coroa como um poder
que legitimaria as suas intenções e os ajudaria a se manterem distinto dos “desqualificados”,
por meio do privilégio de não ser preso como um homem comum – e juntos a índios, negros
e “facinorosos” – e da exclusão dos mesmos “desqualificados” dos ofícios da Câmara e da
companhia da nobreza.

34 Carta do ouvidor-geral do Pará, Timótio Pinto de Carvalho, para o rei, d. João V. Pará, 22 de janeiro
de 1746. AHU-Pará, cx. 28 doc. 2.686.
Fidelidade secreta: comentários sobre as cartas e o processo de d. Duarte de Bragança
(1641-1649)

Gustavo Kelly de Almeida1

Este artigo objetiva relacionar o processo jurídico aberto contra d. Duarte de Bragança, em
1645, ao tema da intolerância política no contexto do Portugal restaurado e da monarquia
Habsburgo. O irmão do novo rei português d. João IV foi preso em Viena por força de
Fernando III, imperador do Sacro Império, a pedido de Felipe IV d’Espanha, meses após o
1o de dezembro de 1640. Sem qualquer prova cabal de sua culpa na conspiração, o infante
português era, no entanto, um importante trunfo para Castela penalizar o rebelde duque de
Bragança.

A polêmica confissão

Em 18 de novembro de 1645, o preso foi avisado que seu confessor seria trocado. Ante a notícia,
d. Duarte ficou insatisfeito e enraiveceu-se, falando coisas que o comprometeriam bastante:
que daria cem mil vidas pela causa do irmão, e que seu pai, o velho duque d. Teodósio II, fora
mais bem tratado pelos mouros após Alcácer Quibir do que ele próprio estava sendo por
cristãos. Além disso, os guardas do castelo de Milão – para onde ele fora transferido – tinham-
no visto brindar à saúde do irmão rei, maldizendo Felipe IV.
Após o informe de todas essas impropriedades às instâncias de poder castelhanas,
iniciou-se o interrogatório do príncipe luso. Em 27 de junho do ano seguinte, um juiz do
processo perguntou ao infante se ele havia colaborado para o golpe de Estado separatista, o
que foi negado. Mas, em seguida, pedindo que os relatores não registrassem essa parte, d.
Duarte narrou sua visita a Portugal em 1638, quando foi abordado por alguns daqueles mais
tarde conhecidos como “aclamadores”. Embora tenha dito que rejeitou a proposta de sedição,
por entender que ela voltava-se contra ministros e não contra o rei de Castela, o estrago estava
feito. Naquele momento, o infante expôs-se perigosamente a seus juízes, conferindo-lhes a
prova fundamental de sua acusação.
Com os autos em mãos, o advogado do réu, marquês de Gallarati, redigiu um livro que
buscava anular esses ataques.2 Em resposta, outro juiz – Nicolas Fernandez de Castro – ficou
responsável por relatar todo o ocorrido a Filipe IV. O material final comporia um volume
dedicado a desfazer os argumentos brigantinos em torno de d. Duarte, que, naquele tempo,
por sua prisão, já era tido como herói da causa restauracionista.3
De fato, a publicística portuguesa na conjuntura da Restauração mostrou-se bastante
fértil, visto que era preciso legitimar a causa e angariar recursos e aliados para um luta contra
1 Doutorando do Programa Inter Universitário de doutoramento em História (PIUDH).
2 GALLARATI, Carlos. Juris allegationes quas as defensionem D. Eduardi de Portugal jussus a
DD. Judicibus a potent.mo rege nostro delegatis conscribebat Carolus Gallaratus, Marchio Cerrani
Mediolani ex collegio J. CC. Calendis Maii. Milão: s. n., 1648.
3 CASTRO, D. Nicolas Fernandez de. Portugal convencida con la razón para ser vencida con las
católicas potentísimas armas de don Filipe IV. El Pio N.S. emperador de las Españas, y del nuevo
mundo, sobre la justísima recuperación de aquel reino, y la justa prisión de don Duarte de Portugal.
Obra apologética, jurídico-teólogo-histórico-política, dividida en cinco tratados, que se señalan en la
página siguiente. En que se responde a todos los libros y manifiestos, que desde el día de la rebelión
hasta hoy han publicado los bergantistas contra la palmaria justicia de Castilla. Milão: Hermanos
Malatestas, 1648.
um inimigo muito mais forte. Entre sermões, elogios, manifestos e relatos de batalhas, o
“martírio” de d. Duarte servia para transformar em vilão o vizinho ibérico.4 Palavras como
“injustiça”, “tirania” e “perfídia” compunham o rol de argumentos. Os castelhanos eram
pintados como discípulos de Maquiavel, bem como o português Francisco de Melo, bandeado
para o lado Habsburgo, um dos artífices da prisão. Da mesma forma, Fernando III era acusado
de valer-se de uma “razão de Estado” que desrespeitava os valores cristãos, rompendo com
a liberdade característica do Sacro Império em relação a príncipes estrangeiros.5 Tais ideias
eram veiculadas nos folhetos impressos em rápidas tiragens que permitiam uma grande
circulação por Portugal e pelo resto da Europa.
Pelo tom das ofensivas praticadas por ambos os lados, notamos a magnitude que a
escrita, como arma, assumia no cenário político ibérico. Por ter noção da importância desta
batalha travada pela pena, Fernandez de Castro buscava, assim, compensar com sua extensa
obra a superioridade lusa neste quesito. Os pontos de acusação contra o infante lançados
pelo juiz a serviço de Castela em Milão resumiam-se a dois: a confissão evidenciara que ele
conheceu as articulações dos conspiradores em 1638, sendo, assim, omisso com o rei espanhol.
Demonstrou também complacência ao movimento de 1640, brindando à saúde do rei e
da rainha e, além disso, ofendendo a Filipe IV. Para Castro, os brindes e as palavras ácidas
passaram a configurar indícios de que o infante apoiava os planos da Restauração desde seus
primeiros passos.6
Por sua vez, o advogado de defesa considerava o processo instaurado nulo, porque seus
juízes não gozavam de jurisdição correspondente para avaliar o caso. Segundo esta lógica, d.
Duarte, cavaleiro professo e comendador da ordem de Cristo, não podia ser julgado por juízes
seculares. Afinal, ele deveria ser considerado pessoa eclesiástica, ficando isento de julgamento
pelo direito divino, pelas bulas apostólicas e por seus privilégios reais. Embora essas isenções
valessem apenas para delitos ordinários – e não para crimes considerados atrozes como os de
lesa-majestade –, a qualidade do réu permitiria resolver a objeção a seu favor. Ademais, ele
não deveria ser tratado como súdito de príncipe secular.
Como estratégia jurídica e discursiva, Castro começava por depreciar a habilidade do
oponente: “um tropeço nos põe à entrada o advogado de d. Duarte, ainda que tão fácil de
desviar para os que têm notícia do estilo e foro de Espanha, que sem impedimento poderíamos
facilmente entrar logo na disputa”.7 A partir daí, o juiz refutaria todos os pontos colocados por
Gallarati. Sobretudo, entendia que a comenda ostentada por d. Duarte tornava o seu crime
ainda mais grave.
A análise sobre a pena de lesa-majestade realizada por Castro permite apreender
a dimensão que o delito ocupava na sociedade da época. Acreditava-se que, quanto maior
fosse a qualidade da pessoa vitimada, maior seria a injúria. Entendemos, assim, porque era
considerado o pior dos crimes, somente sobrepujado pelo de heresia, qualificado como de
lesa-majestade divina – uma vez que o poder e a organização social eram concebidos como
provenientes de Deus. Assassinato, sodomia e até mesmo parricídio eram faltas menores. Aliás,
4 Muitos desses impressos são encontrados nos 144 tomos que hoje compõem a coleção Barbosa
Machado, depositada na Biblioteca Nacional do Brasil.
5 A título de exemplo, ver LOBATO, Roque Pinto. Canción a la prisión, y muerte del serenísimo señor
infante d. Duarte. Lisboa: Manoel Gomes de Carvalho, 1650; MACHADO, Diogo Barbosa (org.).
Elogios fúnebres dos reis, rainhas, e príncipes de Portugal. Lisboa: s. n., t. 1, p. 122-136, s.d. Sobre a
equivocada associação unívoca entre razão de Estado e maquiavelismo, ver MEINECKE, Friedrich.
La idea de la razón de Estado en la Edad Moderna. Madri: Centro de Estudios Constitucionales,
1993; SENELLART, Michel. Machiavélisme et raison d’Etat. Paris: Puf, 1989.
6 CASTRO, D. Nicolas Fernandez de. Portugal convencida…, op. cit., p. 40-41; 59-60.
7 “Un tropiezo nos pone a la entrada el abogado de don Duarte, aunque tan fácil de desviar para
los que tenemos noticia del estilo y fuero de España, que sin impedimento pudiéramos fácilmente
entrarnos de golpe a la disputa” (Ibidem, p. 41-43).
quem atentava contra a vida do príncipe, pai da pátria e ungido de Deus, pecava duas vezes,
uma por sacrilégio, e outra por parricídio.8 Tais crimes remetem a duas questões pertinentes à
Época Moderna: a intrínseca relação entre política e religião no período, e a noção do príncipe
como cabeça do corpo místico/político da monarquia.9
O autor também explorava os episódios recentes envolvendo o governo de d. João
IV. Contestando a argumentação de Gallarati, Castro citou como exemplo a conspiração de
1641 contra o rei Bragança, e o modo como ocorreu a respectiva punição. Sinalizava que os
principais conjurados – como o marquês de Villa Real e seu filho – eram, como d. Duarte,
cavaleiros da Ordem de Cristo, e, nem por isso, deixaram de sofrer a pena capital. Do mesmo
modo, também o inquisidor-geral foi preso e processado.10
Outra estratégia utilizada por Castro, e que guiou toda a construção da obra, era cercar
por todos os lados a base de sua argumentação. Em suma, o autor aceitava os pressupostos
apresentados pelo adversário para, em seguida, deslegitimá-los. Essa prática era corrente
aos que se aventuravam nos textos jurídicos. Francisco Velasco de Gouveia adotava a
mesma postura. O jurista português responsável pela mais importante obra legitimadora
da Restauração valeu-se deste artifício no manifesto publicado em 1652, após a morte de d.
Duarte.11 O documento respondia aos ataques de Castro no que tocava ao caso do infante, e
na defesa dos Braganças contra a tirania dos Filipes. Em princípio, Gouveia não considerava a
confissão extrajudicial de d. Duarte, pois esta teria sido feita a particulares, e não a juízes. Em
seguida, o embate passou a situar-se no campo das interpretações textuais sobre o conteúdo
do depoimento do príncipe, se ele agiu de forma acertada ou não.
Entretanto, não tencionamos apresentar todas as justificativas e detalhes técnicos dos
lados em disputa, e sim perceber em que medida o processo em torno do infante era algo
central na contenda luso-castelhana do período. Mais do que o julgamento da culpa ou da
8 Ibidem, p. 96-102, 139-140; 165; 203.
9 Sobre o assunto, ver KANTOROWICZ. Ernst H. Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia
política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; ALMEIDA, Gustavo Kelly de. O
senhor das sombras. Política e religião em torno de d. Duarte de Bragança (1641-1649). 2008. Tese
(Graduação em História) – Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói.
2008.
10 CASTRO, D. Nicolas Fernandez de. Portugal convencida…, op. cit., p. 44-45;1.080-1.081. Para uma
análise mais aprofundada sobre o tema, ver CUNHA, Mafalda Soares da. Elites e mudança política.
O caso da conspiração de 1641. In: PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil-Portugal: sociedades,
culturas e formas de governar no mundo português (séc. XVI-XVIII). São Paulo, Annablume, 2006.
p. 325-343; WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra d.
João IV. Lisboa: Colibri, 2007.
11 GOUVEIA, Francisco Velasco de. Justa aclamação do sereníssimo rei de Portugal dom João o IV.
Tratado analítico, dividido em três partes, ordenado e divulgado em nome do mesmo reino, em
justificação de sua ação. Lisboa: Lourenço de Anveres, 1644. De acordo com Luís Reis Torgal, a obra
foi considerada o escrito oficial da Restauração, posteriormente traduzida para o latim em 1645.
Cf. TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração. Coimbra, Biblioteca
Geral da Universidade, 1982. V. 2, p. 306; GOUVEIA, Francisco Velasco de. Perfidia de Alemania y
de Castilla, en la prisión, entrega, acusación, y proceso, del serenísimo infante de Portugal don Duarte.
Fidelidad de los portugueses, en la aclamación de su legítimo rey, el muy alto, y muy poderoso don
Juan, cuarto de este nombre, nuestro señor. Padre de la patria, Restaurador de la libertad. Contra los
pretensos derechos de la corona castellana. Respóndese a lo que errada, fatua, y escandalosamente
quiso escribir Don Nicolàs Fernandes de Castro, senador de Milán, y en Salamanca catedrático de la
cátedra pequeña de código. Obra que fundó sobre las doctrinas canónicas, legales, teológicas, filosóficas,
y políticas, el doctor Francisco Velasco de Gouvea: catedrático jubilado en cánones en la Universidad
de Coimbra, arcediano de Villanueva de Cérbera en la primaz iglesia de Braga, senador de agravios del
supremo tribunal de justicia en Portugal. Lisboa: Imprensa Craesbeekiana, 1652.
inocência do preso, o processo possuía fins políticos bem definidos. Herói ou traidor, vítima
ou vilão, d. Duarte, no cárcere, era apresentado como principal figura dos primeiros tempos
da Restauração.

O senhor das sombras

Num sermão de exéquias ao infante, o padre Antonio Vieira ajudava nessa construção,
pregando nos seguintes termos:
Na nossa prosperidade perdeu o infante a sua, da nossa
bonança se levantou a sua tormenta: ele morreu, porque nós
ressuscitamos; quebrou o reino venturosamente as prisões do
nosso cativeiro, e sem sabermos, o que fazíamos, as cadeias, que
tiramos das nossas mãos, passamo-las às vossas. Assim achou a
fortuna, com que nos fazer ingrata a liberdade.12

Vieira aludia ao destino desditoso de D. Duarte, de forma antitética ao sucesso da


Restauração. Neste sentido, D. Duarte personificava o sacrifício ao qual o reino se submetia
pela restauração do trono. Mais que os manifestos políticos, os sermões evocavam a carga
providencialista, indissociada da história de Portugal. O jesuíta Antonio Vieira era, nessa
época, o grande conselheiro de d. João IV. Tal como a ação do pregador, as referências ao caso
de d. Duarte misturavam, assim, a política e a religião, reproduzindo o universo da época. Seu
exemplo assemelhava-se ao caso anterior de d. Fernando de Avis, o infante santo que morreu
encarcerado em Fez, no Marrocos, em 1443. Não por acaso, nos manifestos ou na parenética
sobre o príncipe Bragança, as duas figuras encontravam-se vinculadas.13
Os muitos folhetos impressos que corriam neste tempo compunham um quadro
em que a propaganda escrita e visual desempenhava um papel fundamental no confronto
entre as partes. Nesse embate sem sangue disputado no papel, os opúsculos dinamizavam a
circulação de ideias, conquistando adesões dentro e fora do mundo ibérico. Desde a invenção
da imprensa no século XV, a linguagem escrita amplificava sua esfera de ação, acompanhando
os atos de ver, ouvir, ler e escrever.
Para Fernando Bouza Álvarez, não havia hierarquia definida entre as comunicações
escrita, visual e oral. A própria escrita procurava imitar vozes e imagens. Nos sermões, por
exemplo, era comum relacionar as figuras orais às respectivas cenas, representadas nas
paredes das igrejas ou em quadros que o pregador fazia aparecer. Ademais, depois, muitas
peças oratórias eram impressas em papel, ultrapassando sua função inicial ao ganharem
acréscimos.14 Portanto, o triunfo da escrita não se construiria sozinho, mas era um elemento
de suma importância no mundo das monarquias ibéricas da Época Moderna, com destaque
para a intensa produção tipográfica portuguesa no período da Restauração.
12 VIEIRA, Antônio. Sermão nas exéquias do sereníssimo infante de Portugal d. Duarte, que morreu
recluso no castelo de Milão a 3 de setembro de 1649, pregado pelo padre Antônio Vieira da Companhia
de Jesus e pregador de sua majestade. In: Machado, Diogo Barbosa (org.). Manifestos de Portugal.
Lisboa: s. n., p. 169 anverso, s.d.
13 CORREA, Jerônimo. A morte do sereníssimo senhor infante dom Duarte. In: MACHADO, Diogo
Barbosa (org.). Elogios..., op. cit., t. 1, p. 91verso, s.d.
14 ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Comunicação, conhecimento e memória na Espanha dos séculos XVI e
XVII. Cultura. Revista de história e teoria das ideias. Livros e cultura escrita. Brasil, Portugal, Espanha,
v. 15, p. 195-169, 2002. Para um estudo recente centrado no infante santo, ver AMARAL, Clínio de
Oliveira. O culto ao infante santo e o projeto político de Avis (1438-1481). 2008. Tese (Doutorado em
História Social) –, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2008.
D. Duarte também aparecia na documentação impressa comparado ao irmão rei.
Enquanto o soberano passou à história como lento e inseguro, o mais jovem aparecia como
guerreiro valoroso e ousado, tendo galgado postos importantes, durante a Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648), a serviço do imperador. Mas não somente. Um panegírico fúnebre de
1650, de Timóteo de Seabra Pimentel, reproduz uma sugestiva imagem gravada: na parte
superior, figura o rei, e na inferior, o irmão. Enquanto d. João IV segura na mão direita o cetro,
desfrutando em majestade dos raios solares que incIdem sobre ele, d. Duarte é representado
preso, envolvido pela sombra. Como o frade carmelita explicou ao monarca, tratava-se de uma
imagem exemplar e duplicada. A proximidade estampada entre os irmãos sugere o caráter
instável daquele tempo, quando, em 1638, o infante foi cogitado para ser o rei, ante a indecisão
do primogênito. Todavia, os dois destinos caminharam em sentidos opostos: enquanto um
foi aclamado no poder régio, o outro veio a falecer na prisão em 1649, envolvido numa aura
mística e de indignação.15
Mas foi em outra sombra – a do cárcere – que d. Duarte agiu estrategicamente. Pela
correspondência secreta que tecia, o infante inseria-se na rede diplomática dos primeiros
tempos brigantinos, coordenando os esforços para a sua liberdade. Afinal, acreditava que a
sobrevivência do Portugal restaurado era a sua única chance de sair da prisão. Por meio de
Francisco Taquet, um intermediário enviado a Veneza, ele travava contato com os principais
nomes da diplomacia lusa, palpitando sobre a inclusão portuguesa no congresso de Münster,
os destinos incertos de Tanger e Pernambuco, ou a necessidade de se responder aos ataques
escritos castelhanos.
Em termos práticos, dois criados do infante conseguiram a ajuda do capelão do castelo
de Milão. Durante a missa, o religioso trazia-lhe uma cadeira rasa e uma almofada, que ficavam
numa tribuna junto ao altar. O capelão depositava ali as cartas que chegavam de Veneza, e
levava as cartas de d. Duarte para além dos muros do castelo Sforzesco. O príncipe valia-se de
pseudônimos e de escrita cifrada para o sucesso da empresa. Essa atividade epistolar do cativo
nunca foi descoberta pelo governo castelhano. Curiosamente, em seu processo, d. Duarte
seria considerado culpado por silenciar sobre o projeto de sedição portuguesa. No entanto, ele
conseguiu escapar de provas bem mais concretas – como eram as missivas – da sua fidelidade
à causa brigantina.
De fato, as cartas especializavam-se em funções mais adequadas ao seu caráter. Enquanto
manuscritos, havia nelas uma suposta espontaneidade e uma veracidade natural maior do que
nos escritos tipográficos, mais relacionados à venda e à difusão. Por isso, elas encontravam um
nicho com maior reserva de intimidade e um relativo segredo. Sem desconsiderar a existência
de uma arte epistolar com regras e modelos, é inegável o perfil mais particular deste meio
de comunicação, fato que, se, por um lado, conferia uma fonte atualizada de informações,
por outro, podia comprometer a atividade, caso as cartas fossem parar em mãos erradas. A
vulnerabilidade deste meio era manifesta, e não raro a correspondência era interceptada ou
inspecionada.16 Entretanto, isso não ocorreu com as mensagens sigilosas travadas entre d.
Duarte e os legados de d. João IV na Europa. Esta documentação foi comentada pela primeira
vez por José Ramos Coelho ao final do século XIX, na única biografia produzida sobre a

15 PIMENTEL, Timóteo Seabra. Panegírico funeral em a morte do sereníssimo senhor dom Dvarte
infante de Portugal em as honras que se lhe celebrarão em o seu real convento do Carmo de Lisboa.
Dirigido ao muito alto, e poderoso rey dom João o IV deste nome seu irmão, que Deus guarde ...
Lisboa: Oficina Craesbeeckiana, 1650; MACHADO, Diogo Barbosa (org.). Sermões de exéquias dos
sereníssimos príncipes, infantes, infantas de Portugal. Lisboa: s. n., t.1, p. 95-127, s.d.
16 ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madri:
Marcial Pons, 2001. p. 20–21;142-143; Cardim, Pedro. Nem tudo se pode escrever. Correspondencia
diplomática e información “política” en Portugal durante el siglo XVII. Cuadernos de Historia
Moderna. Anejos, v. 4, p. 100-107, 2005.
história do infante.17
O drama de d. Duarte integrava-se às principais questões que moviam as relações
externas da nova dinastia régia dos Braganças, altamente dependente de sua diplomacia.
Como aponta Pedro Cardim, a correspondência era um meio de comunicação privilegiado
no mundo diplomático dos seiscentos, determinante para a configuração da “política” como
arte inseparável do ofício de embaixador. Em meio ao corpus literário que compunha o fazer
diplomático – campo ainda em construção no período –, os manuscritos e, especificamente, as
missivas representavam um meio mais prático e dinâmico que atendia à rapidez das negociações,
funcionando como elos entre os diversos embaixadores. Assim, “cartear-se” (termo da época)
deveria ser uma atividade tão intensa quanto possível para o bom desempenho da função.18
Na Europa ocidental extenuada por conflitos duradouros que envolviam várias frentes,
o congresso da paz geral, realizado entre 1643 e 1649 na Vestefália, abria um espaço de
discussão para a resolução em conjunto das diversas contendas bilaterais que animavam os
países envolvidos na Guerra dos Trinta Anos: de um lado, a casa de Áustria, e, de outro, Suécia,
França e República das Províncias Unidas. Devido à pressão espanhola, os plenipotenciários
portugueses não tiveram direito a assento no congresso, participando apenas como integrantes
das delegações aliadas. Assim, tentavam ter voz ativa pelos representantes franceses e suecos.
Nesse âmbito, o infante, por meio de cartas, incentivou a feitura de um memorial sobre o seu
caso a ser exposto no congresso para sensibilizar os príncipes do Sacro Império em 1643.19
Mas, aos olhos Habsburgos, o duque de Bragança não passava de um vassalo rebelde, tirano
e usurpador da coroa. Com o mesmo repúdio tratava-se o caso do infante. Os Áustrias não
queriam os nomes Portugal e d. Duarte “manchando” os acordos.20
Em relação ao problema com os neerlandeses pelos territórios americanos, d. Duarte, ao
que parece, posicionou-se antes do rei sobre a entrega de Pernambuco e das capitanias vizinhas
às Províncias Unidas.21 De acordo com a opinião de Antonio Vieira e outros, ele acreditava
que a conclusão da paz com as Províncias Unidas poderia evitar que o fim das hostilidades
hispano-neerlandesas se transformasse numa aliança defensiva contra Portugal. À semelhança
do célebre Papel forte, d. Duarte argumentava que, como Portugal e Castela não resistiram ao
avanço ultramarino neerlandês, de que modo o reino luso poderia suportar sozinho aos dois
inimigos em conjunto?22 Dessa forma, o infante diferenciava-se dos conhecidos valentões de
Portugal, que advogavam a guerra contra a ocupação neerlandesa no Brasil.
Como vimos, o juiz Nicolas Fernandez de Castro esmerou-se em provar a
responsabilidade do infante por meio de uma memória jurídica publicada primeiramente em
17 COELHO, José Ramos. História do infante d. Duarte. Irmão de el-rei d. João IV. Lisboa: Tipografia
da Academia Real das Ciências, 1889-1890-1920, 3 v.
18 CARDIM, Pedro. Embaixadores e representantes diplomáticos da coroa portuguesa no século XVII.
Cultura. Revista de história e teoria das ideias, v.15, p. 51-52, 2002; Idem, Nem tudo..., op. cit., p. 96-
98.
19 Biblioteca do Palácio Nacional d’Ajuda. Manuscritos, 49-X-24. D. Duarte de Bragança. Forma da
prisão do sereníssimo infante, o senhor Dom Duarte;Coelho, José Ramos. História do...,op. cit., v.2, p.
204-205, s.d.
20 Os embaixadores espanhóis referiam-se aos portugueses nesses termos. Ver: Arquivo Geral de
Simancas. Estado, leg. 2.348 apud CARDIM, Pedro. Os “rebeldes de Portugal” no Congresso de
Münster (1644-48). Penélope, n. 19-20, p. 106; 113-124, 1998.
21 AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda, 2008. V. 1, p. 159-186.
22 O Papel forte foi denominado assim pelo próprio d. João IV. Neste documento, Antonio Vieira
clamava pela cessão de Pernambuco, dos territórios reconquistados nos últimos anos, e de Angola
às Províncias Unidas. Cf. VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal. Guerra e Restauração
(1640-1668). Lisboa: A Esfera dos Livros, 2006. p. 86; MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil.
Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 124-127;
AZEVEDO, João Lúcio de. História de..., op. cit., v. 1, p. 183-184.
1648, e enviada ao rei em 1649, após a morte de d. Duarte. Embora não soubesse das cartas,
as referidas acusações foram mantidas. A função política do processo jurídico torna-se ainda
mais evidente pelo fato de Castro ter associado ao primeiro volume consagrado ao príncipe
Bragança um outro, mais geral, destinado a responder a várias questões sobre o direito
Habsburgo em Portugal.
De acordo com os interesses castelhanos, a função do processo não era soltá-lo, mas
definir a sua situação ante o congresso da paz geral, neutralizando as opiniões contrárias.23
Desse modo, d. Duarte nunca seria libertado. Desde o início de sua prisão, em fevereiro de
1641 em Ratisbona, Viena, sob as ordens de Fernando III, durante um interregno nas lutas
da guerra, o objetivo do rei castelhano era forçar sua transferência para Milão. O imperador
retardou esta medida, deslocando-o no mesmo ano para a fortaleza de Passau, na Baviera, e,
depois, ao palácio do arquiduque austríaco em Gratz. Somente em agosto de 1642, o infante
iria para o antigo e imponente castelo do duque Sforza. Paulatinamente, d. Duarte ia perdendo
regalias: menos criados, troca de confessor, e vigilância reforçada. A partir de 1643, só podia
sair dos seus aposentos para ir à igreja.
Ao que parece, a saúde do preso foi declinando progressivamente, estando ele por
diversas vezes doente ao longo de sua reclusão. Segundo consta, sua constituição física mudou
bastante desde os tempos de Passau, principalmente nos três primeiros anos. Em 20 de abril
de 1646, em resposta do governo do castelo de Milão a Filipe IV sobre a segurança em relação
ao príncipe, mencionou-se, junto à forte vigilância e a outros fatores, o peso de d. Duarte.
Argumentava-se que, “por sua gordura” e pela falta de agilidade, o infante não poderia fugir
saltando de um cárcere tão alto.24 A falta de atividade física para quem estava acostumado
a campanhas militares pode ter, aos poucos, contribuído para a sua morte. Em sua última
semana de vida, teve febre alta, enjoos, e sentiu “grande aperto e opressão do coração”, 25
sendo, então, medicado com purgantes, água de porco espinho, e várias sangrias. Sob a análise
de Xavier da Cunha, médico consultado por José Ramos Coelho no final dos oitocentos, o
infante parece ter morrido de problemas na região do fígado.26
Após o falecimento em 3 de setembro de 1649, d. Duarte teve seu corpo embalsamado
e colocado num caixão de chumbo, dentro de outro de madeira e forrado de veludo preto,
fechado a três chaves. No dia 20 do mesmo mês, realizaram-se as exéquias, sendo o caixão
depositado numa urna sepulcral na parede da igreja do castelo. Quatro anos depois, em
função da reforma da porta principal da igreja, foi transferido para o lado direito da nova
porta. Desde então, não há notícias sobre seu paradeiro. A última pesquisa, realizada em
fins do século XIX, não mostrou resultados.27 Devido a esta lacuna, a igreja dos Agostinhos
em Vila Viçosa dedica, junto a outros túmulos que guardam duques de Bragança e alguns
infantes, um jazigo vazio para d. Duarte.28 Em seu testamento, d. Duarte deixou pertences ou
dinheiro a figuras que o auxiliaram na prisão: seus criados Duarte Cláudio Huet e Simão Noé,
o capelão d. Francisco Portis – intermediário das cartas sigilosas –, o grão-chanceler de Milão,
d. Jerônimo Quixada, e o marquês Gallarati, seu advogado de defesa.29
23 Arquivo Geral de Simancas, maço 2.614, apud COELHO, José Ramos. História do..., op. cit., p. 329.
24 CUSANI, Francesco. D. Duarte di Braganza, prigioniero nel castello di Milano. Episodio storico del
secolo XVII. Estratto dal giornale La perseveranza. Milão: La Perseveranza, 1871. p. 71-72; RIBEIRO,
José Silvestre. Esboço histórico de d. Duarte de Bragança. Lisboa: s. n., 1876. p. 67.
25 Academia das Ciências de Lisboa. Relação da doença do infante d. Duarte. Série Azul, marquês de
Alegrete, códice 658, documento 7, p. 40-43 verso.
26 COELHO, José Ramos. História do..., op. cit., v. 2, p. 856.
27 CUSANI, Francesco. D. Duarte di..., op. cit., p. 95-102; 113-125; RIBEIRO, José Silvestre. Esboço
histórico..., op. cit., p. 88-89; 127-128.
28 COELHO, José Ramos. História do..., op. cit., v. 2, p. 866-867.
29 Ibidem, v.2, p. 631-632; CUSANI, Francesco. D. Duarte di..., op. cit., pp. 85-95; RIBEIRO, José
Silvestre. Esboço histórico..., op. cit., p. 149-150.
A notícia da morte do príncipe chegou a Portugal em 1o de novembro de 1649, gerando
grande consternação. D. João IV instruiu o Conselho de Guerra e os governadores das armas
responsáveis pelas fronteiras do reino a declararem luto. Igrejas e universidades também
demonstrariam suas condolências. Na corte, todos seguiram um regimento ditado pelo
secretário de Estado Pedro Vieira da Silva – personagem que se esforçara para retirar o infante
da prisão –, vestindo luto como a família real, até a véspera das exéquias, a 29 do mesmo
mês. Decorrida uma semana da cerimônia, os familiares só falavam aos servidores domésticos,
negando audiências públicas e atividades nos tribunais, aceitando apenas consultas privadas e
pêsames de cortesãos mais graduados. O luto da casa régia continuaria por um ano.30
O corpo de d. Duarte não retornou ao reino luso. Após as exéquias realizadas na capela
real, foi erigido um mausoléu, no qual foi pousada a coroa do infante. A ausência parece
ter aumentado o drama da situação, tornando o fato mais atraente para a causa brigantina.
No sermão de exéquias pregado por Antonio Vieira, o padre protestava: “nós esperávamos o
nosso infante vivo, e nem morto o temos [...] não termos a quem amávamos, nem ainda na
sepultura; vermos a sepultura, e carecermos do sepultado, é o rigor mais lastimoso de todos.”31
Aludindo à possibilidade que o príncipe teve de escapar ao ser avisado da aclamação do
irmão, Vieira ainda ressaltava o valor da personagem para o lado castelhano, destacando suas
virtudes: “[D. Duarte] morreu por muito temido; e morreu, porque não soube temer: o temor
alheio e o seu destemor o mataram.”32 Como vemos, o drama do irmão de d. João IV teve
repercussão imediata em seu tempo, fabricando uma imagem póstera: o príncipe injustiçado,
alvo da perfídia castelhana.33

Conclusão

Este breve estudo demonstrou como o caso do infante d. Duarte de Bragança foi utilizado
pelos lados castelhano e português no delicado contexto da Guerra de Restauração (1640-
1668). O processo iniciado contra ele em 1645 buscava enquadrá-lo como partidário da
rebelião de Portugal, mesmo que ele não tenha participado diretamente do movimento. Mas
uma confissão feita de modo informal acabou por conferir aos juízes a evidência de que o
príncipe conhecia os planos da conspiração, omitindo-os do soberano Habsburgo, a quem
deveria fidelidade. Entretanto, sua atividade epistolar travada por anos a fio junto à rede
diplomática lusa permaneceu incógnita ao conhecimento castelhano à época. Divulgadas
muito posteriormente, as cartas de d. Duarte nos fazem refletir sobre o papel ativo que o
infante desempenhou na cena internacional, opinando sobre vários temas que poderiam
assegurar o futuro da nova dinastia, sobretudo no tocante a sua liberdade.
Tratava-se, então, de uma fidelidade secreta, incompatível com os desígnios intolerantes
da monarquia Habsburgo. Nesse mundo ibérico que acabava de ser cindido pelo ousado passo
do duque de Bragança, seu irmão mais novo encontrava-se no lugar e no momento errados.
Mas é preciso notar que a intolerância também fazia parte do novo âmbito político português.
Ainda na década de 1640, vários foram os acusados de tramar a queda de d. João IV em
prol do soberano anterior. Durante 60 anos de união das coroas, bens, pessoas e interesses
circularam com desenvoltura pelos reinos peninsulares e possessões ultramarinas, sem
maiores constrangimentos. A partir de então, era preciso optar, pois a dupla fidelidade seria
insustentável. Nesse contexto, d. Duarte configurava uma peça bastante valiosa à monarquia
hispânica para ter o seu retorno ao Portugal brigantino tolerado.
30 COELHO, José Ramos. História do..., op. cit., v. 2, p. 677-679.
31 VIEIRA, Antônio. Sermão nas..., op. cit., t. 1, p. 168 anverso; p. 168 verso; p. 169 anverso.
32 Ibidem, p. 182 verso.
33 Sobre o tema da personalidade pública de uma personagem histórica, ver BURKE, Peter. A fabricação
do rei. A construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1994.
Da sedução à sedição: as mulheres e o discurso político da rebelião na América
portuguesa

Alexandre Rodrigues de Souza1

Os discursos médico, religioso, moral, jurídico e social convergiam para lembrar a figura
feminina da Época Moderna o terrível pecado que havia cometido no jardim do Éden.2 Mas a
relação entre a mulher e a transgressão vem de longe. Padre Antonio Vieira lembrou que, talvez,
se “Eva se contivera dentro do Paraíso que Deus lhe tinha dado por morada, e não quisera ver
mais mundo, ela se livrara dos encontros em que viu e ouviu o que não lhe convinha”.3 Porém,
a pecadora “quis sair e andar por fora, por amor do mundo, que fora melhor não ver, não
só perdeu o mesmo mundo, senão também o Paraíso, e a si a nós. E isto é que sucede cada
dia às filhas de Eva”.4 Essa associação está marcada como uma cicatriz nas representações
femininas. O que não faltou foi “oportunidade de lembrar às mulheres o terrível mito do Éden,
reafirmado e sempre presente na história humana”. Eva em seu contato “com as forças do mal,
personificadas na serpente”, acabou por introduzir na “própria natureza feminina algo como
um estigma atávico que predispunha fatalmente à transgressão.”5 Essa aversão ao mundo
feminino não é uma “invenção dos ascetas cristãos”, porém foi o cristianismo que “desde
muito cedo, o integrou, e, em seguida, agitou esse espantalho até o limiar do século XX”.6 O
incomodo em relação às filhas de Eva também atravessou o Atlântico e marcou as mulheres
brancas, negras e índias que habitavam o território colonial.7
Nessa mesma época, o ato sedicioso também não era bem visto aos olhos da autoridade
régia. O dicionário de época, escrito por Raphel Bluteau, caracterizava a “sedição” como um
“levantamento do povo contra a autoridade del-rey, ou dos Magistrados”.8 Era importante não
permitir que “criem raízes e afiguram seu principio; por que são como ribeiras, que quando
mais correm, mais crescem”.9
Apesar de ser tão perigoso, o ato de se rebelar por inúmeras vezes esteve presente nas
ações dos habitantes da América portuguesa. desse rebelavam contra uma multiplicidade
de tributos, o abuso das autoridades coloniais, e as dificuldades enfrentadas para se viver na
colônia. Além disso, os súditos ultramarinos viviam longe da proteção régia. As agitações
ameaçavam a tranquilidade do reino.10
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 DUBY, Georges; PERROT, Michelle (org.). História das mulheres no Ocidente: do Renascimento à
Idade Moderna. Porto: Afrontamento, 1993. V. 3.
3 VIEIRA, Antônio. Sermão XVII. In: _______. Sermões. São Paulo: Américas, 1957. V. 9, p. 431.
4 Ibidem, p. 431.
5 ARAÚJO, Emanuel. A arte da sedução: sexualidade feminina na Colônia. In: PRIORE, Mary del.
(org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 46
6 DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente (1300-1800). Trad. de Maria Lucia Machado. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 310.
7 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados. Rio de Janeiro: Campus, 1989. p. 147-183; PRIORE, Mary
del. (org.). História das mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004. p. 11-222. A s páginas
aqui selecionadas da obra de Priore trata especificamente sobre a condição feminina na colônia.
8 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. São Paulo: USP/Instituto de Estudos Brasileiros.
p. 544. Disponível em: http://www.ieb.usp.br/online/index.asp. Acesso em: 09 de abril. 2010.
9 Ibidem, p. 544.
10 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. Além de súditos: notas sobre revoltas e identidades
coloniais na América Portuguesa. Tempo, Niterói: UFF, v. 5, n. 10, p. 81-95, dez., 2000; Idem. Rebeliões
no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005; SOUZA. Laura de Mello e. Motines,
Diante do exposto, mulher e rebelião tornam-se uma mistura altamente sedutora. Ir
atrás da mulher amotinada também não é uma tarefa fácil, pois é preciso navegar um pouco
mais além e compreender “a partir de que mecanismos de falta e compensações o furor e o
gosto da morte existem naquelas que antes de tudo dão vida”.11 Nesse sentido, questiona-
se: será que as agitações, embaladas pelo discurso das autoridades coloniais, também não se
tornavam ainda mais perigosas quando aquela que, por natureza, já era rebelde está presente
no corpo político dos amotinados? Será dada ênfase aos discursos produzidos sobre elas, visto
que a preocupação maior do texto é perceber como uma sociedade tão intolerante ao mundo
feminino narra a presença das mulheres nas revoltas.
Não se pode esperar, é claro, que as mulheres participem das revoltas no mesmo
estilo masculino. Seu toque é diferente. Arlette Farge adverte que o trabalho com o “papel
das mulheres na revolta é, antes de mais nada, não nos espantarmos com esta evidência, é
saber que só a inversa seria surpreendente”. Às vezes também é necessário “inverter a questão,
perguntando-nos em nome de quê e porquê estariam elas ausentes quando a revolta alastra”.12
Nas massas sublevadas da Europa moderna, as mulheres estavam ali instigando a multidão.
E. P. Thomposon enfatiza a presença de homens e mulheres que engrossavam a aglomeração
“imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos costumeiros tradicionais”.13 Para
o autor, com frequência, eram elas as primeiras a começar as sublevações. Eram elas que
identificavam o aumento do pão ou a escassez de alimentos no mercado. Thompson ressaltou
a maciça presença de mulheres nos chamados “motins de fome”. Segundo o autor, elas eram
“as mais envolvidas com as negociações face a face no mercado, as mais sensíveis ao significado
dos preços, as mais experientes em detectar peso insuficiente ou qualidade inferior”.14 Jean
Delumeau também escreveu sobre os tipos de “palavras”, “ritos”, e “tumultos” que caracterizam
a presença feminina nas revoltas europeias da época moderna. As mulheres ganham espaço
nesse conflitos principalmente como “motores” das sedições, instigando seus maridos e filhos
a se rebelarem, se tornando verdadeiras “viragos” nos campos de batalha.15
A presença das mulheres nos motins é um fato que “ressalta de todos os estudos
relativos às violência coletivas”. Porém, dificilmente isso foi estudado. Arlette Farge destaca a
necessidade de se “questionar a partida, a revolta, as funções, os gestos e os sinais” da mulher
“no interior dessa revolta, mas igualmente o regresso do motim, que não é mais simples”, no
que se refere à participação das mulheres. A autora se diz aliviada, pois, com o passar dos
anos, a relação entre mulheres e motins foi se desfazendo da ideia de que a figura feminina só
estaria presente nos “motins de fome”. Farge fez uma análise da historiografia europeia que se
dedicou a estudar a violência das multidões e das “comunidades que se enfureceram entre os
séculos XVI e XVIII”, e pôde concluir que as mulheres não pensavam somente pela barriga.
Elas estiveram presentes tanto nos motins de fome quanto nos motins antifiscais, nas revoltas
religiosas e, ainda, nos conflitos de cunho político.16
Apesar de as mulheres defenderem “uma espécie de reflexo biológico, a vida de seus
filhos e a existência física de seu lar”, não se menospreza aqui a importância da mulher
como mantedora da vida, posto que, como foi observado, há uma maior participação da
revueltas y revoluciones en la América portuguesa de los siglos XVII-XVIII. In: TANDETER,
Enrique (org.) História general de América Latina. Paris: Ediciones Unesco/Editorial Trotta, 2002. V.
4, cap. 20.
11 FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. Trad. de Fátima Murad. São Paulo: Edusp. 2009. p. 44.
12 FARGE, Arlette. Agitadoras notórias. In: ______; DAVIES, Natalie Zemon (org.). História das
mulheres no Ocidente: do Renascimento à Idade Moderna. Porto: Afrontamento. 1991. p. 569.
13 THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional.
Trad. de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 152.
14 Ibidem, p. 184.
15 DELUMEAU, Jean. História do medo..., op. cit., p. 189-190.
16 FARGE, Arlette. Agitadoras..., op. cit., p. 553.
figura feminina nas revoltas ligadas à sobrevivência. Mas a atuação dessas agitadoras não se
resume a isso. Elas vão além, e estão presentes nos motins de cunho político. Entretanto, não
podemos deixar de dizer que, em alguns momentos, “as mulheres ficavam com medo antes
dos homens, quer se trate de pão, de impostos, de enclosures, de ladrões, de crianças ou de
religião”. Nessas situações, “elas que primeiro percebiam a ameaça, acolhendo e difundindo os
rumores; comunicavam a angústia a seu círculo e estimulavam, por isso mesmo, as decisões
extremas”. A conjuntura as instigava a “tomar a iniciativa dos gestos irreparáveis – dos gestos
que tranquilizavam, uma vez que deviam intimidar, ou mesmo aniquilar o adversário.17
Deste lado do Atlântico, elas também marcaram presença nas revoltas. Porém, na
América portuguesa, os estudos sobre mulher e rebelião ainda carecem de mais dedicação.
Grande parte das descrições sobre a mulher e sua relação com os conflitos foi narrada pela
memória dos cronistas e autoridades régias presentes na arena da revolta. Foram homens que
relataram a mulher amotinada ora como vítima, espirituosa e heroína, mas também como
furiosa e vingativa. Este texto acompanha alguns fragmentos sobre a mulher amotinada e os
discursos produzidos sobre o contexto nesse momento de ânimos instáveis. Não custa reiterar
que, das revoltas narradas, retirou-se apenas os indícios da presença feminina. Cada um dos
conflitos é fruto de uma conjuntura específica.
Em Olinda restaurada, Evaldo Cabral de Mello faz um painel sobre o nordeste
açucareiro, bem como sobre o período de dominação holandesa no Brasil (1630-1654). Em
tempos de instabilidade política, durante a Restauração Pernambucana, o autor descreve a
história de Gaspar Dias Ferreira, que seguiu com Nassau para os Países Baixos no ano de
1644, e deixou seus bens sob administração de dona Clara das Neves “e de seus filhos, que
continuaram na posse pacífica das propriedades após a revolta de 1645”. Dona Clara teria
ainda papel importante nas duas batalhas dos Guararapes, por sua “assistência prestada aos
soldados restaurados, cujos feridos sangrou e curou por suas próprias mãos, com a ajuda de
suas criadas, com grande caridade e dispêndio de fazenda”.18 A figura feminina aparece nesse
momento prestando socorro aos soldados. Essa função tem uma conotação de fidelidade real
característica dessa sociedade, visto que a mesma mostra sua lealdade à autoridade régia num
momento de crise política.
A participação de mulheres nos conflitos pernambucanos também foi destacada pelo
cronista Domingos Loreto Couto. No livro Desagravo do Brasil e glórias de Pernambuco, o autor
imprimiu seu olhar sobre a figura feminina ligada à reação aos invasores holandeses calvinistas.
O cronista narra, na passagem intitulada “Pernambuco ilustrado pelo sexo feminino”, um
discurso ilibado em memória das pernambucanas que participaram dos conflitos. Do mesmo
modo que “há homens cuja virtude mereceu glória superior à dos Anjos, assim há mulheres
que, com suas prendas, e excelência, sobrepujam os homens”. Durante o século XVII, elas
foram dignas de “honestidade, recolhimento, modéstia e recato tão vinculado das mulheres
de Pernambuco”. Essas mulheres ofereceram “muitas vezes, as gargantas aos alfanges, os peitos
aos punhais dos holandeses”. As mulheres são representadas como aquelas que “se sujeitaram
a um perpétuo degredo, e algumas tiraram a si mesmas a vida, quando de outro modo não
podiam resistir às bárbaras violências”.19 Essas “ilustres mulheres” pernambucanas
17 DELUMEAU, Jean. História do medo..., op. cit., p. 189-190.
18 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de
Janeiro: Forense Universitária; São Paulo: Edusp, 1975. p. 438
19 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco. Anais da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro.v. 25, p. 111, 1904. Para este estudo, consultamos os Anais, mas a obra
foi reeditada no Recife em 1981 pela Fundação de Cultura daquela cidade. Domingos Loreto Couto
foi monge beneditino, nasceu no Recife, em meados do século XVIII. Foi membro da Academia
Brasílica dos Renascidos (Bahia, 1759), e exerceu a função de visitador em Pernambuco. Sua “obra
manuscrita foi concluída em1757 e enviada a Pombal” (Kantor, I. De esquecidos e renascidos: a
historiografia acadêmica luso-brasileira (1724-1759). São Paulo; Salvador: Hucitec; Centro de
[...] se defendiam virtuosas, querendo antes perder a vida, que
sofrer a violência, tingiram no inocente sangue de quarenta e
cinco donzelas, e matronas, as suas afiladas espadas, com cuja
tirania se livraram as castas senhoras dos ardilosos laços do
demônio, e dos desprezos dos seus Ministros, voando almas
ao céu, para receberem as gloriosas palmas da virgindade, e as
resplandecentes coroas do martírio.20

Em tons teatrais, o cronista frei Manoel Calado, autor do livro O valeroso Lucideno
e triunfo da liberdade, obra datada de 1648, conta os acontecimentos ocorridos durante a
Restauração Pernambucana. É importante salientar que o autor foi testemunha ocular dos
fatos que relatou. Logo, tomou partido em muitas das ocorrências que narrou. Frei Manoel
Calado não deixou de imprimir a participação feminina na sua narrativa. Em uma passagem
em que “enquanto o governador João Fernandes Vieira se deteve com nossa gente” foram
espalhados “os do Conselho Supremo do Recife um bando, e tirano edital”.21 Segundo o autor,
o referido anuncio avisava
[...] que todas as mulheres dos moradores que se haviam retirado
com João Fernandes Vieira para os matos, fossem dentro em
cinco dias naturais próximos seguintes em busca de seus maridos
com seus filhos, e filhas, sob pena de morte, a fogo, e sangue, e
perdimento de seus bens, e que passado este termo de cinco dias
se não usaria de clemência, nem piedade com aquelas que, tendo
seus maridos, irmãos, ou filhos ausentes, se achassem em suas
casas.22

Frei Manoel Calado lamenta ao “pio leitor o que fariam as pobres e miseráveis mulheres,
vendo seus pais, maridos, irmãos, e filhos ausentes, sem saberem as paragens onde estavam,
vendos e sós”. Essas pobres mulheres estavam “desamparadas, e no meio do rigor do inverno,
sem mantimento para se sustentar entre as silvas hórridas dos matos”. Ainda segundo o autor,
essas pernambucanas viam “que a tirana espada do inimigo estava já ameaçando os seus
pescoços, e gargantas; umas se prostravam de joelhos, e com as mãos levantadas ao céu, e os
Estudos Baianos – UFBA, 2004. p. 148).
20 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos..., op. cit., p. 113.
21 CALADO, Frei Manoel. O valeroso Lucideno e triunfo da liberdade. 5. ed. Recife: Cepe, 2004. V.
1, p. 339.. Ronaldo Vainfas ressalta que, no tempo do governo de Nassau, “a partir de 1637, frei
Manuel Calado tornou-se frequentador do palácio do governo. Ao lado dos comerciantes Gaspar
Dias Ferreira e João Fernandes Vieira, integrava o trio que mais confraternizava com o governador
à mesa, em jantares no palácio de Vrijiburg. Manuel Calado procurou se utilizar dessa proximidade
com Nassau para obter favores para o culto católico em Pernambuco, a exemplo de autorizações
para festas e procissões”. Segundo Vainfas o frei Manuel Calado publicou sua obra em 1648
“louvando a ‘guerra da liberdade divina’ e a coragem de seu líder, João Fernandes Vieira”. Ainda
segundo o autor, um de seus intuitos “era neutralizar qualquer rumor sobre seu colaboracionismo
no tempo de Nassau”. Vainfas acrescenta ainda que a obra Valeroso Lucideno, embora ofereça um
“excelente testemunho da história das guerras pernambucanas de 1630, permite constatar o forte
antijudaísmo de frei Manuel Calado” (VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses
no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 190-191). Há uma análise mais
aprofundada da obra em: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Frei Manoel Calado do Salvador:
religioso da Ordem de São Paulo, pregador apostólico por Sua Santidade, cronista da restauração.
Recife: Universidade do Recife, 1954.
22 Ibidem.
olhos arrasados em lágrimas, pediam a Deus perdão e misericórdia”.23 Enquanto isso,
[...] outras, com rosários da Virgem Maria nas mãos, os passavam
uma, e muitas vezes, outras se abraçavam com os inocentes
filhinhos, e com soluços, e gemidos se despediam deles, outras
caíam desmaiadas em terra sem dar acordo de si, outras que nunca
haviam saído de suas casas, se não era no tempo da Quaresma,
ou nos dias das festas principais à igreja, e ainda então arrimadas
em pajens, por não caírem; vendo-se neste aperto, e estreitura,
arremetiam com o súbito temor a entrar por entre os matos, e
ali se punham a misericórdia de Deus, e a proteção, e amparo à
Virgem Maria, e aos Santos, de quem eram mais devotas; porque
de outra parte esperavam que não lhe pudesse vir socorro, nem
remédio.24

José Bernardo Fernandes Gama, em Memórias históricas da província de Pernambuco,


narra a indignação das mulheres que, durante a Guerra dos Mascates, permaneciam em suas
casas sozinhas, enfrentando o perigo eminente de ataque, por parte dos mestiços de Camarão
ou dos Tumb-cumbês, enquanto os homens de sua família ficavam escondidos pelos matos.25
Frei Manoel Calado também observou o mesmo acontecimento na Restauração
Pernambucana. Segundo o autor, os homens que
[...] se agregaram a João Fernandes Vieira, sendo os mais deles
casados, e ricos, desampararam suas fazendas, e deixaram suas
mulheres, e filhos, ao rigor do inimigo, como também o mesmo
João Fernandes Vieira, por não lhe ser possível retirarem-nos
para os matos; porque a muita pressa o inimigo deu em querer
prender os moradores depois que se lhe descobriu a conjuração,
não deu lugar a que os moradores se preparassem em forma,
como lhes era necessário.26

Rocha Pita descreveu a participação de mulheres na Guerra dos Emboabas de uma


forma mais ativa. Ao contrário dos cronistas anteriormente citados, mais preocupados com
a mulher que fica sozinha em casa e sem proteção durante os períodos de guerra, Rocha Pita
ressalta a crueldade feminina. Segundo o autor:
Os paulistas, pela ausência de d. Fernando Martins Mascarenhas,
vendo totalmente destituídos de poder e forças o seu partido, se
tinham retirado para S. Paulo, mas foram recebidos com desprezo
até pelas próprias mulheres, que, balsonando de Pentensileias,
Semíramis e Zenóbias os injuriavam por se haverem ausentado
das Minas fugitivos, e sem tomarem vingança dos seus agravos,
estimulando-os a volta na satisfação deles com o estrago de
forasteiros.27
23 Ibidem.
24 Ibidem, p. 339-340.
25 Ver GAMA, José Bernardo Fernandes. Memórias históricas da província de Pernambuco. Recife:
Arquivo Público Estadual , 1977. V. 4, p. 249; 271-275. A obra aparece no estudo de Evaldo Cabral
como fonte narrativa para estudo da Guerra dos Mascates. Cf.: MELLO, Evaldo Cabral de. A fronda
dos Mazombos. Nobres contra mascates, 1666-1715. 2. ed. ver. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 477.
26 CALADO, Frei Manoel. O valeroso..., op. cit., v. 1, p. 324.
27 “Semíramis foi uma bela rainha mitológica que, segundo as lendas gregas e lendas persas, reinou
Para Adriana Romeiro, não há nada que confirme a afirmação de Rocha Pita, que foi “o
primeiro a invocar o mito das mulheres paulistas que obrigam os maridos a se vingarem dos
emboabas”.28 Como bem destacou a autora, trata-se de palavras de inspiração na “mitologia
clássica, e depois incorporada[s] à memória do evento, [que] sublinha[m] a força e a dignidade
das mulheres paulistas, não é menos verdade que destaca[m] também a pusilanimidade dos
homens do planalto”.29 O tom de reparação invade o coração dessas mulheres. Rocha Pita
destaca ainda o caráter que “este fogo, soprado por aquele sexo em que se acha mais pronto o
furor vingativo, em que mais ardem os corações dos homens”.30 Segundo o autor cresceu nos
Paulistas a “consideração do crédito que deixaram ultrajado, e da fama que tinham perdido
(chama interior que os não abrasa menos pelos seus naturais brios), o fez juntar um numeroso
exército de paisano” O objetivo era “tornarem de novo à palestra com os seus contendores; e
elegendo por general, a Amador Bueno, pessoa entre eles de maior reputação no valor e na
prática das armas, marcharam para as minas”.31 Se as palavras de Rocha Pita forem mesmo
verdadeiras, o “furor vingativo” daquele sexo parece ter realmente servido, posto que os
paulistas ultrajados da guerra resolveram voltar.
Rocha Pita fez referência a mitologia clássica para destacar a presença feminina no
conflito emboaba. Quando se tratava de batalhas, os deuses pareciam realmente inteirados do
assunto. Frei Manuel Calado narra que, depois de um dos confrontos durante da Restauração
Pernambucana, os holandeses, que “escaparam com vida deste encontro, confessavam por suas
bocas que, no mais fervoroso e perigoso da bataria, viram andar entre os portugueses uma
mulher muito formosa, vestida de branco e azul, com um menino nos braços”. Segundo o autor,
“junto a ela um velho venerando, em hábito de ermitão, os quais davam armas, pólvora e balas
aos nossos soldados; e que era tanto o resplendor que a mulher, e o menino tinham, que os olhos
se lhe ofuscavam, e não podiam olhar para eles de fito a fito”. Esse acontecimento “lhes meteu
tanto temor e espanto, que lhes fez logo virar as costas, e retirarem-se descompostamente”.32
Segundo Calado:
Bem se mostra claramente que esta mulher era a Virgem Maria
Nossa Senhora Mãe de Deus, que acudiu a nos favorecer tanto
que a nossa gente implorou seu favor, e socorro, e a saudou,
dizendo em altas vozes com lágrimas nos olhos: Salve Rainha
Madre de Misericórdia. Bem mostrou a Virgem neste feito
sobre a Pérsia, Assíria, Armênia, Arábia, Egito e toda a Ásia, durante mais de 42 anos, foi fundadora
da Babilônia e de seus jardins suspensos. Subiu ao céu transformada em pomba, após entregar a
coroa ao seu filho, Tamuz. Na mitologia grega, Pentesileia foi uma rainha amazônica, filha de Ares
e Otrera, e irmã de Hipólita, Antíopa e Menalipe. Pseudo-Apolodoro diz como Pentesileia entrou
na Guerra de Troia: Pentesileia e sua irmã Hipólita estavam caçando quando esta acidentalmente
matou Hipólita com sua lança. O acidente causou tanta dor em Pentesileia que ela tinha vontade
de morrer, mas, como uma guerreira amazona, tinha que fazê-lo em batalha. Dessa forma, ela foi
facilmente convencida a entrar na Guerra de Troia. Zenóbia (Tibur, hoje Tívoli), foi uma rainha de
Palmira (Síria). Depois da morte do marido (Odenato), reinou em nome do filho (Vabalato) e fez de
Palmira uma brilhante capital no Oriente Médio. Foi vencida e reduzida ao cativeiro pelo imperador
romano Aureliano”. PITA, Rocha. História da América portuguesa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson,
1950. p. 412. História da América portuguesa foi publicado em Lisboa, pela Academia Real, no ano
de 1730. O autor procura relatar alguns acontecimentos ocorridos no Brasil desde o descobrimento
até o ano de 1724.
28 ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: ideias, práticas e imaginário
político no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 194
29 Ibidem, p. 195.
30 PITA, Rocha. História da América..., op. cit., p. 412.
31 Ibidem.
32 CALADO, Frei Manoel. O valeroso..., op. cit., vol 1, p. 15-16.
quebrando e fazendo em pedaços as suas santas imagens e de
seu bendito filho.33

Aqui, a obra do cronista da batalha da restauração se mistura ao pregador. Como


homem da Igreja, seus relatos combinam as artes da guerra e as figuras do mundo que lhe era
mais particular, fruto da mística religiosa de um frei. É claro que citar elementos sacros na sua
escrita também serve como retórica para a comprovação do que diz.
No intuito de justificar as ações e decisões do conde de Assumar tomadas durante a
Revolta de Vila Rica, motim que deflagrou a execução sumária de Felipe do Santos,34, Laura
de Mello e Souza, em seu Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve
no ano de 1720, traz os relatos de como a elite local também teria patrocinado as alterações
em Vila Rica. Segundo o texto do documento, a elite não agia pessoalmente. Os potentados se
mantinham ocultos, enquanto os homens e as mulheres saíam a público aos gritos de “Viva o
povo, senão morra”.35
A exemplo de Rocha Pita na Guerra dos Emboabas, o Discurso histórico... traz
novamente uma importante representação feminina na revolta: a vingança. Ao descrever as
insolências que Manuel Nunes Viana,36 “que no sertão dos currais da Bahia se estabeleceu, e
engrossou com a desgraça alheia e o dano dos terceiros”, relata, em tom de retaliação, o caso
das “viúvas que experimentam, padecem, choram a falta dos maridos, o amparo dos pais, a
perda do cabedal, nos incêndios, nos assaltos, nas mortes, de que ofendidas a entradas do rio
de São Francisco”. As mulheres desamparadas “estão atualmente pedindo vinganças, consta
que chegam suas vozes muito vivas aos tribunais; mas como lá – ou as afogam, ou lhes dão
ouvidos, vendo que nem ai deixam de chamar em deserto, apelam para Deus”. Essas mulheres
“cobram em lágrimas sem remédio e a satisfação que a justiça lhes deve em sangue”.37
A ira das mulheres qualificava o discurso político da rebelião. A representação feminina
da condolência e reparação é emprestada à arena do levante. Mas se, por um lado, o sentimento
de revanche dessas mulheres justifica a própria vingança, por outro, também condena as
atrocidades que Manuel Nunes Viana havia cometido.
Esses discursos veem a mulher sediciosa como uma:
Agitadora ativa, a mulher é-o integralmente: mas há mais. Os
contos, as narrativas e as crônicas descrevem-na furiosa, cruel e
sanguinária. É evidente que há que pôr as coisas no seu lugar; estes
textos são sempre escritos por homens; por isso, a observação
tenaz e obstinada da crueldade feminina é forçosamente
ampliada pela memória masculina. Podemos também perguntar
se o espetáculo da barbárie, festa mortal a rejeitar para o mais
longe de si, o objeto que o olhar, fascinado, afasta e ao mesmo
tempo contempla, não é uma parcela tão inominável do gosto
da morte que o homem a atire sobre “a outra”, a estranha
radicalmente outra, isto é, sobre a mulher, portadora de vida, de
33 Ibidem.
34 Ver FONSECA, Alexandre Torres. A revolta de Felipe dos Santos. In: RESENDE, Maria Efigênia;
VILLALTA, L. C. (org.). História de Minas Gerais: as Minas setecentistas. Belo Horizonte: Autêntica;
Companhia do tempo, 2007. V. 1, p. 549-566; e CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros:
“de como meter as Minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado” (1693-1737). São Paulo: USP,
2002. p. 214-259.
35 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no
ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994, p.143.
36 ANASTASIA, Carla Maria Junho. Extraordinário potentado: Manoel Nunes Viana e o motim da
Barra do Rio das Velhas. Locus, Revista de História, UFJF, v. 3, n. 1, 1997.
37 SOUZA, Laura de Mello e. Discurso histórico..., op. cit., p. 90.
malícia e de desastrosa agonia.38

Maria Odila Dias também destacou os conflitos das padeiras e quitandeiras da vila de São
Paulo no fim dos setecentos em resistência ao fisco. Como forma de protesto, em 1744 houve
uma “recusa formal das padeiras de São Paulo de apresentarem a dança tradicional, de que
estavam encarregadas na procissão de Corpus Christi, que era então a festa mais importante
do ano”. Segundo a autora, a “procissão de Corpus Christi era cuidadosamente organizada e
planejada pelas autoridades municipais em moldes tradicionais”. Era um “ritual de obediência
e vassalagem”. No ano de 1744, “uma grande seca atrapalhava a colheita, os atravessadores
entraram em cena, havia ameaça de fome, carestia, falta de gêneros alimentícios”.39 Essas
mulheres sabiam do seu papel como abastecedoras comunidade local. Conscientes das suas
habilidades de fazer pão e de sua responsabilidade pela procissão daquela data, elas retiram
do seu cotidiano a sua forma de protestar. Afinal, quando se trata do “mítico imposto sobre a
vida, são as mulheres, em primeiro lugar e, sobretudo, que creem nele”.40
A revolta acabou. Houve mortes, prisões e contenção dos rebeldes. O que fazer
agora? Os “homens retornam a seu trabalho e às suas atividades quotidianas”,41 enquanto
as mulheres “fazem a mesma coisa, mas não exatamente o mesmo, uma vez que voltam às
funções habituais de que parte civil e política está ausente”.42 Mas, para ela, a revolta não acaba
assim. Se os homens são os que mais sofrem com as punições, cabe à figura feminina ser a
nova administradora do patrimônio familiar. Sem falar nos dissabores que ela vai enfrentar,
caso os bens do seu marido seja confiscado.
Depois da Restauração Pernambucana, Evaldo Cabral conta que “os antigos proprietários
de terrenos no Recife, alguns dele poderosos, como a viúva de Matias de Albuquerque e a
Santa Casa de Misericórdia, haviam passado a reivindicá-los com as benfeitorias do domínio
neerlandês”.43 O autor também destacou o papel da viúva do conde da Ericeira, que pertencia
à casa da Pernaguião, sogra do mestre de campo e general de Pernambuco Francisco Barreto.
Esta senhora era dona do engenho de Moreno, localizado na freguesia de Jaboatão, e surge
no meio do conflito local ao vender sua propriedade para João de Barros Rego.44 A mulher
muitas vezes assume o papel de reinvindicação ou de proteção dos bens do marido durante e
depois da guerra.
Entretanto, durante a mesma guerra, algumas mulheres “buscaram no desterro da Pátria
o seguro da sua honra”. Loreto Couto parece muito preocupado com a castidade das mulheres
pernambucanas. O cronista diz que muitas delas largaram seus engenhos para assegurarem a
sua vida e a sua pureza frente às façanhas barbarescas dos holandeses. Essas nobres mulheres,
de que a “honestidade tivera sempre recolhidas, vendo-se expostas às tiranas violências, e
bárbaras torpezas dos holandeses, não atinavam a outro remédio”.45 As pernambucanas “se
viam rodeadas de filhos, detidas do amor por uma parte, e ameaçadas da violência, e da morte
por outra, nem tinham escolha para fugir nem para padecer”.46 As mulheres “buscaram as
brenhas, e montanhas, fiando das suas cavernas a defensa de suas honras, e a conservação
da sua honestidade; assim passavam dias, e noites em sumo desamparo, achando muitas nas

38 FARGE, Arlette. Agitadoras..., op. cit., p. 566-568.


39 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. 2. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1995. p. 72-73.
40 DELUMEAU, Jean. História do medo..., op. cit., p. 189.
41 FARGE, Arlette. Agitadoras..., op. cit., p. 571.
42 Ibidem, p. 571.
43 MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda..., op. cit., p. 442.
44 Ibidem, p. 402-403.
45 COUTO, Domingos Loreto. Desagravos..., op. cit., p. 112.
46 Ibidem.
garras das feras, e no veneno das serpentes, o estrago da morte”.47
Ainda foi pouco analisado pelos estudiosos como as sociedades se organizaram depois
dos conflitos. O estudo recente de André Figueiredo Rodrigues pode ser um bom ponto de
partida e exemplo. O autor mostrou as artimanhas criadas pelas famílias e mulheres dos
inconfidentes para que permanecessem com a posse dos bens dos conjurados mineiros. Não
deixa de ser também outro importante papel das mulheres na revolta. Segundo o autor, no
instante em que “eclodiram as prisões dos conjurados, dona Hipólita Jacinta Teixeira, esposa
do tenente-coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes, foi punida pelo governador, visconde
de Barbacena, com grande perda total de seus bens, sem direito à meação conjugal, pela sua
efetiva participação na rebelião”.48 André Figueiredo destaca que Hipólita Jacinta “soube agir
em defesa de seus interesses, no sentido de resguardar seus imóveis e bens semoventes, em
uma luta que durou uma década, até conseguir a efetiva partilha de seu patrimônio”. Segundo
o autor, Hipólita Jacinta “teria provavelmente subordinado o funcionário responsável para
omitir bens do sequestro”.49 O momento depois do conflito, ou o que gerou ele, geralmente
cabe à figura feminina. Segundo o autor, “mulheres frente da administração do patrimônio
confiscado, conseguiram reverter a situação de fracasso, de perda ou de punibilidade, em
situação de vitória”.50 Elas lutaram para preservar e até aumentar seu patrimônio. Bárbara
Heliodora, “mulher de temperamento forte, ampliou os negócios deixados por seu marido, o
poeta inconfidente Alvarenga Peixoto”51. O autor descreve que as mulheres dos inconfidentes,
Bárbara Eliodora e Hipólita Jacinta, fogem ao ideal de mineiras passivas e alheias aos planos
sediciosos de seus maridos.
A linguagem transgressora feminina mostrou-se mais complexa do que parece. A mulher
“indica, mostra e depois acalma o jogo”.52 Não custa reiterar que, das revoltas narradas acima,
retirou-se apenas os indícios da presença feminina, mas cada um dos conflitos são fruto de
uma conjuntura específica. Apesar disso, ficou claro que as mulheres e a prática política da
rebelião na América portuguesa estão muito próximas, mais até do que se imaginava. Quando
não esteve presente de corpo e alma na massa amotinada, ela marcou sua áurea no discurso
dos homens que narravam a ação das revoltas. O discurso tratou de usar seu corpo, sua
espiritualidade, a sua suposta ligação com o mal, a sua maternidade. Enfim, de diversas formas,
a mulher deixou seu toque durante as agitações. Diante desse conjunto de representações
femininas amotinadas, as palavras de Jean Delumeau são oportunas para conclusão, pois:
A atitude masculina em relação ao “segundo sexo” sempre foi
contraditória, oscilando da atração à repulsão, da admiração à
hostilidade. O judaísmo bíblico e o classicismo grego exprimiam
alternadamente esses sentimentos opostos. Da Idade da Pedra,
que nos deixou muito mais representações femininas do que
masculinas, até a época romântica, a mulher foi, de uma certa
maneira, exaltada. De início deusa da fecundidade, “mãe de seios
fiéis”, e imagem da natureza inesgotável, torna-se, com Atenas, a
divina sabedoria, com a Virgem Maria, o canal de toda a graça e

47 Ibidem.
48 FIGUEIREDO, André Rodrigues. A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos dos bens
dos conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010. p. 48-49.
49 Ibidem.
50 Idem. Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise dos sequestros de bens dos inconfidentes
da comarca do Rio das Mortes. São Paulo: USP/FFLCH, 2008. p. 302; ver também Idem. Mais que
confidentes. Revista de História da Biblioteca Nacional – RHBN, n. 50, p. 32-35, nov. 2009.
51 FIGUEIREDO, André Rodrigues. Mais que confidentes. Revista de História da Biblioteca Nacional,
n. 50, p. 32–35, nov. 2009.
52 FARGE, Arlette. Agitadoras..., op. cit., p. 559.
o sorriso da bondade suprema.53

53 DELUMEAU, Jean. História do medo..., op. cit., p. 310.


Relatos reais, relatos fantásticos: considerações acerca da Ilha Encoberta no Portugal
seiscentista.

Filipe Duret Athaide1

Os relatos acerca das viagens atlânticas constituem um gênero bastante comum da Época
Moderna, inaugurada quando do início do desbravamento do oceano Atlântico pelos
portugueses. Dentre as várias crônicas de viagem produzidas entre os séculos XVI e XVII,
destacam-se dois tipos de relatos que acabaram por se configurar como gênero narrativo: os
relatos de naufrágios, surgidos juntamente com os relatos que tratavam de travessias bem-
sucedidas. Esta última forma assumiu aspectos mais informativos sobre as terras novas e
populações desconhecidas, enquanto os relatos de naufrágio apresentam contornos mais
“fantásticos”. O desenvolvimento de uma “ciência” cartográfica fez com que o conhecimento
de partes distantes do orbe terrestre fosse divulgado de maneira crescente, alimentando ainda
mais tais elaborações.
Para a concretização da expansão marítima europeia, concorreram vários fatores
e, entre eles, o desenvolvimento tecnológico e científico assumiu posição relevante, senão
determinante. Este desenvolvimento, entretanto, são se mostrou suficiente para anular os
elevados riscos das travessias oceânicas. Nesse sentido, os naufrágios eram frequentes e, junto
com as expedições que obtiveram êxito, os reveses serviram de matéria-prima para a confecção
de vários relatos de viagens.
Na sociedade europeia do século XVII, fortemente marcada pela oralidade, os relatos de
naufrágios, impressos em pequenas brochuras, proliferaram de forma considerável. Lidos na
esfera privada ou em público, alguns chegaram a ter uma tiragem de cerca de mil exemplares,
feito considerável se levada em conta a situação de baixo letramento das sociedades europeias
nos séculos XV-XVII.2
Este “sucesso” editorial pode indicar como essas viagens eram importantes para
a sociedade portuguesa seiscentista. Tratando de sonhos, de superação, mas também de
derrotas, as narrativas de naufrágios podiam adquirir os mais diversos significados. Alerta ou
certa forma de entretenimento, mereceram destaque, quer por sua difusão, quer pela forma
como a narrativa se estruturava. Muitas podem ter sido as razões para a difusão dos relatos:
para os mercadores e nobres, forma de obter recompensas do rei; para os religiosos, difusão
de milagres e de seus poderes especiais; para os aventureiros, valentia e coragem. De todo
modo, chegar à publicação não era fácil; portanto, pode-se dizer que só uma pequena parcela
desses relatos conseguia ser publicado, o que não quer dizer que muitos deles não circulassem
manuscritos.3
A análise historiográfica dos relatos de naufrágio é bastante extensa. O tema não é
novo. Dentre as inúmeras hipóteses, destaca-se a defendida por Angélica Madeira4 e Giulia

1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


2 Cf. LANCIANI, Giulia. Uma história trágico-marítima. In: CHANDEIGNE, Michel. Lisboa
ultramarina: 1415-1580: a invenção do mundo pelos navegadores portugueses. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1992. p. 71.
3 Ver ALVAREZ, Fernando Bouza. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madri:
Marcial Pons, 2001.
4 Cf. MADEIRA, Angélica. Livro dos naufrágios: ensaio sobre a História Trágico-Marítima. Brasília:
Editora UNB, 2005.
Lanciani.5 Para ambas, os relatos de naufrágio se constituem como gênero literário, dentre
vários aspectos, pela estrutura narrativa apresentada. Para as autoras, os relatos seguem
determinados padrões: começam pela organização da expedição, ou já em sua partida. A partir
daí, segue-se a explanação sobre a travessia do Atlântico, em direção à África e à Ásia, sem que
se considere, na maioria dos casos, o naufrágio iminente. Nas proximidades do cabo da Boa
Esperança, as embarcações eram surpreendidas por tempestades que causavam estragos e, na
maioria dos casos, o naufrágio por completo das embarcações. No caso de haver sobreviventes,
estes chegavam à costa africana, onde o contato com os nativos era bastante tenso. A partir
daí, surgem variações na narrativa, mas, de modo geral, os sobreviventes conseguem retornar
à Europa. Dessa forma, com alguma ênfase em um desses aspectos, os relatos de naufrágios
acabam por seguir um modelo na estrutura narrativa: a) partida; b) travessia atlântica; c)
tempestade; d) naufrágio; e e) chegada à costa africana e retorno à Europa. Outro ponto
que merece destaque é a permanência da costa africana, principalmente a passagem pelo
antigo cabo das Tormentas, como o local mais perigoso da travessia atlântica. Nos relatos de
naufrágios, inclusive os publicados no século XVII, a maioria dos desastres se dava ao largo da
costa africana, mas principalmente nas proximidades do cabo da Boa Esperança.6
Assim, entre os vários relatos de naufrágio, alguns assumiram contornos mais descritivos,
dando notícia das novas terras descobertas, das populações que habitavam tais territórios,
narrando seus hábitos e costumes, além de descrever a natureza exuberante. Outros valorizavam
o maravilhoso, e, assim, informavam sobre seres mitológicos que habitavam as águas, ares e
terras, há muito conhecidos, mas não comumente vistos, tendendo estas narrativas sempre
para a valorização do onírico, no qual a marca do paraíso terreal se mostrou a sua principal
característica.
É desse horizonte predominantemente mítico, fantasioso, que emergem os relatos de
naufrágio, primeiro grupo de fontes analisados neste trabalho. Datados da segunda metade do
século XVII, tais relatos têm sua autoria atribuída a religiosos portugueses. Entretanto, o que
mais se destaca nessas narrativas, e que se relaciona com o aspecto “maravilhoso” dos mesmos,
é o encontro, por parte dos náufragos sobreviventes, da ilha encoberta; a tal dado, que por si já
justifica a especificidade destes relatos, soma-se que, segundo os náufragos, em tal ilha, estaria
encoberto d. Sebastião, –16o monarca português, que desapareceu em 1578, na célebre batalha
de Alcácer Quibir, abrindo caminho para a União Ibérica (1580-1640).
Os relatos de naufrágio em questão são: Carta em que se manifesta o descobrimento
de uma ilha nova, e que parece que deve ser aquella em que Deus tem guardado o sro rey d.
Sebastiam, a quem Deos conserve, para imperador universal de todo o mundo. Anno de 1669 e
Relação do sucesso que teve o Patacho chamado, Nª Sª da Candelária, da ilha da Madeira, o qual,
vindo da costa da Guiné, no ano de 1693, uma rigorosa tempestade o fez varar na ilha Incógnita.
Que deixou escrita Francisco Corrêa, mestre do mesmo Patacho, e se achou no ano de 1699,
depois de sua morte. Trasladada fielmente do próprio original. Pertencentes ao gênero que pode
ser denominado de “relatos de naufrágio”, tanto a “Carta” quanto a “Relação” não destoam do
todo, apesar de as partes da partida e da travessia atlântica estarem resumidas a poucas linhas.
O que as diferencia, e que serviu de recorte para a pesquisa aqui apresentada, é justamente
a chegada não à África, como de praxe, mas o encontro, após intenso nevoeiro e naufrágio,
da ilha Afortunada, e, para além disso, a informação de que, em tal ilha, estaria escondido
d. Sebastião, rei português desaparecido em 1578. A localização incerta da ilha Afortunada,
ou ilha Encoberta, e sua caracterização visivelmente edênica são outras características que as
distinguem de outras narrativas.
Lançado em 1999, o Dicionário de lugares imaginários, organizado por Alberto Manguel
e Gianni Guadalupi, lista, como o próprio título anuncia, os mais diversos lugares imaginários
das mais variadas épocas, origens e estilos. A seleção destes lugares, segundo os organizadores,
5 Ver LANCIANI, Giulia. Uma história..., op. cit.
6 Ibidem, p. 73.
tinha, inicialmente, um foco voltado para os lugares apresentados pelos escritos literários. O
arrolamento, que se projetava ao infinito, recebeu, então, outro corte: paraísos, infernos (como
o de Dante, em A divina comédia) e lugares futuros, tal como aqueles que teoricamente não
seriam localizados na Terra, seriam excluídos. Desta forma, coligiram cerca de dois mil lugares
imaginários, fictícios e aqueles descritos por exploradores e cronistas de todos os tempos. Para
Manguel e Guadalupi,
O universo imaginário é de uma riqueza e de uma diversidade
espantosa: mundos criados para satisfazerem um desejo urgente
de perfeição, utopias imaculadas como Cristianópolis ou Victória,
que mal respiram; outros, como Nárnia ou o país das Maravilhas,
inventados para dar um lar à magia, onde o impossível não entra
em choque com a vizinhança; outros ainda, como o reino dos
Sonhos, construídos para satisfazer os viajantes enfastiados com
a realidade; ou viajantes que praticam há muito tempo artes
tenebrosas e pouco ortodoxas, como na ilha de Noble.7

Sem problematizar o evidente “funcionalismo” pelo qual os organizadores entendem


o surgimento e a lógica dos lugares imaginários, o Dicionário traz uma grande compilação, e,
curiosamente, emerge dela um número considerável de sítios que têm as características físicas
e geográficas de ilhas imaginárias: ilha das Abóboras, Aiolia, ilha dos Animais, Avalon e, não
menos importante, as ilhas Afortunadas, isso só para elencar as que começam pela letra a. Fica,
dessa maneira, certo o quanto a imagem das ilhas fictícias ou fantasiosas, monstruosas ou
paradisíacas fazem parte do imaginário humano, contemporâneo ou passado.
O que desde já fica destacado é que relatos de naufrágio circulavam intensamente, e
tal circulação pode ficar evidente quando da leitura, por exemplo, do processo de Maria de
Macedo – denunciada, em 1665, ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, por divulgar suas
idas e vindas à ilha Encoberta e seus constantes encontros com d. Sebastião, na mesma ilha.
Talvez tenha lido, talvez escutado, ou ainda tenha tido contato com vários outros que a nós
não chegaram. As respostas que Maria de Macedo deu aos seus inquisidores mostram não
só a circulação dos relatos, mas também como, de modo mais livre, os indivíduos da Época
Moderna congregavam várias imagens, mitos, e arquétipos, e, com isso, criavam narrativas
próprias, repletas de significados.
Outro grande exemplo da circulação de relatos de naufrágio em Portugal no século
XVII é a coletânea intitulada História trágico-marítima, organizada por Bernardo Gomes de
Brito. Publicada em dois tomos entre os anos de 1735 e 1736, História trágico-marítima reúne
um conjunto de treze relatos de viagens atlânticas, marcadas, todas elas, por naufrágios com
desfechos geralmente trágicos.
Segundo Diogo Barbosa Machado, bibliófilo português do século XVIII, membro
da Real Academia de História, Bernardo Gomes de Brito (também membro da mesma
academia) pretendia publicar mais três tomos com outros relatos semelhantes, o que acabou
não acontecendo. Dessa forma, quer manuscritos, quer impressos, os relatos de naufrágios
tiveram ampla difusão na sociedade portuguesa da época. Conforme levantado por Giulia
Lanciani, o “Naufrágio que passou Jorge Albuquerque Coelho vindo do Brasil para este reino
no ano de 1565”, publicado no segundo tomo de História trágico-marítima, teve cerca de duas
mil edições em formato de opúsculo.
Em relação à autoria atribuída aos relatos de naufrágio que tratam da ilha Encoberta,
algumas informações devem ser consideradas antes da análise dos mesmos. No que diz
respeito à “Carta” muito pouco se sabe além dos nomes dos freis André de Jezus e Francisco dos
7 Ver MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. Dicionário de lugares imaginários. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003. p. VIII-IX.
Mártires, que “assinam” o relato. Fato curioso, uma vez que, entre os vários escritos que tem a
ilha Encoberta como tema central, a “Carta” é um dos mais conhecidos. Em obra clássica – A
evolução do sebastianismo8– João Lúcio de Azevedo faz menção a este relato, e a alguns outros
que relacionam a ilha Encoberta com d. Sebastião.
No que diz respeito à “Relação”, esta se encontra publicada em coletânea organizada
por João Palma-Ferreira, Náufragos, viagens e batalhas,9 editada em 1980. Nela, o organizador
aponta que o relato aqui estudado, atribuído a Francisco Correa, na verdade seria de autoria do
padre Victorino Jozé da Costa. Palma-Ferreira faz tal consideração tendo por base referências
de dois importantes autores portugueses: Diogo Barbosa Machado10 e Inocêncio Francisco
da Silva. 11
Segundo Inocêncio, o padre Victorino Jozé da Costa era “presbítero secular egresso
da Ordem dos Monges Beneditinos”. Ele teria nascido em Lisboa, sendo as datas de seu
nascimento e falecimento ignoradas. Sua produção literária começou enquanto ainda fazia
parte da Ordem dos Beneditinos, mas aumentou consideravelmente após sua saída da mesma.
A maioria de suas obras teria sido publicada com pseudônimos.12
Diogo Barbosa Machado lista, na Bibliotheca lusitana, as publicações de Victorino
Jozé da Costa, tanto as que saíram com o seu nome quanto as que foram publicadas por
pseudônimos. Das 47 obras listadas, consta a “Relação”, que foi impressa em Lisboa, em
1734, por Bernardino da Costa. Fica evidente, assim, que os relatos de naufrágio constituem
um gênero literário bastante comum em Portugal nos séculos XVI e XVII e, mais do que
isso, tinham ampla circulação entre os mais variados estratos sociais. Vale ressaltar ainda
que, naquele momento, o tema da “ilha Encoberta” assume, junto com outras imagens, papel
relevante na “bricolagem” executada quer por cartógrafos, quer pelos viajantes que escreviam
os relatos.13
É nesse contexto de ampla circulação de relatos de naufrágio, de viagens e de descobertas
cartográficas que as elaborações de Maria de Macedo acerca da ilha Encoberta devem ser
apreendidas. Cristã-velha, Maria de Macedo tinha, em 1665 – quando foi denunciada –, 44
anos.
A construção narrativa de Maria de Macedo, além de reunir a imagem da ilha Encoberta,
ainda a relacionava como o local no qual d. Sebastião estaria à espera do momento ideal para
retornar a Portugal, ao contrário dos relatos, que não fazem essa relação de forma direta e
imediata. Segundo o processo, Antônio de Souza Macedo, conselheiro da Fazenda e familiar do
Santo Ofício que recebeu a denúncia, não precisou esforçar-se para escutar as formulações da
própria Maria de Macedo, além de constatar facilmente a divulgação das histórias contatadas
por ela, que não demonstrava ter problemas ou pudores em contá-las a terceiros (conhecidos
ou não).
No processo, fica evidente a tentativa mais do que exaustiva dos inquisidores de
encontrar, na narrativa de Macedo, algum vestígio de pacto diabólico. Nessa tentativa, por
mais que não dessem importância à elaboração em si, legaram descrições das viagens de Maria
8 Cf. AZEVEDO, João Lucio de. A evolução do sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947.
p. 98, nota 1.
9 PALMA-FERREIRA, João. Naufrágios, viagens, fantasias e batalhas. Lisboa: Imprensa Nacional/
Casa da Moeda, 1980. p. 21-27.
10 Ver MACHADO, Diogo Barbosa. Biblioteca lusitana. Lisboa: Oficina de Ignácio Rodrigues, 1752.
Tomo III, p. 789-791.
11 Cf. SILVA, Inocêncio Francisco da. Dicionário bibliográfico português. Lisboa: Imprensa Nacional,
1862. Tomo VII, p. 444
12 Ibidem, p. 444
13 Cf. LESTRINGANT, Frank. Le Livre des îles: atlas et récits insulaires de la Genèse a Jules Verne.
Genebra: Droz, 2000. Ver, também, do mesmo autor: A oficina do cosmógrafo ou a imagem do
mundo no Renascimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
de Macedo que contêm detalhes muito mais densos e ricos dos que os presentes nos relatos de
naufrágio. Souberam assim que, certa feita, Maria de Macedo,
[...] estando sentada em uma janela viu um grande lagarto e
deitou a cabeça sobre seu regaço e estremecendo ele o que lhe
aconteceu com ela se converteu logo o lagarto na figura do dito
homem, e lhe disse se queria ela ir com ele, e respondendo-lhe
ela que não se havia de sair da casa de seu pai, de repente se
abriu uma grande porta na parede, por onde o homem foi, e ela
o seguiu e se achou com ele em praça que tinha três igrejas […]
e que ali estava um grande palácio que o mesmo homem disse
ser de um Rei, […] e que dissera que aquela era a ilha Encoberta
que era muito grande e fértil, e tinha muito ouro, que tiravam
somente o necessário, e que falavam o português.14

Além de ser levada à ilha Encoberta por um homem “vestido à moda de turco”15
transfigurado em lagarto, Maria de Macedo afirma e divulga que conheceu o rei da ilha, e que
o mesmo era d. Sebastião, e que o mesmo era casado e tinha filhos. Ela descreve, com detalhes,
o modo como d. Sebastião aportara na ilha Encoberta após a Batalha de Alcácer Quibir. É
Maria de Macedo que, aqui, nos indica a missão de d. Sebastião:
Havia de vir a este reino para reformar o mundo, conquistar os
mouros, turcos e converter os hereges e por tudo em razão e
justiça, e sendo imperador do mundo todo, e que havia de ir à
Terra Santa, onde depois de viver sobre 100 anos, mais de 20,
havia de falecer e sepultar-se junto ao sepulcro de Cristo16

Tendo sido inquirida por cerca de um mês, Maria de Macedo foi recolhida ao cárcere do
Santo Ofício de Lisboa, uma vez que a presunção da culpa da ré só fazia aumentar conforme os
interrogatórios se sucediam. Com contornos claramente messiânicos, a figura de d. Sebastião
assume aqui o papel não só de salvador do reino de Portugal, mas de defensor de toda a
cristandade. A divulgação de um rei português encoberto e messias (nos mesmos moldes do
divulgado por Antônio Vieira) não foi suficiente para livrar Maria de Macedo da presunção
de pacto diabólico. A tal pacto era relacionada a viagem à dita ilha Encoberta. Entretanto,
foi posteriormente considerada culpada por serem consideradas mentirosas as divulgações
de milagres que fazia em seus relatos, e por predizer o futuro. O que pesa, porém, para a
condenação de Maria de Macedo, ao contrário do que possa parecer, não é a construção
sebastianista, mas sim a possibilidade de estabelecimento de pacto diabólico por parte da ré.
O processo de Maria de Macedo emerge como uma pista – possível de ser seguida – da
disseminação da imagem da ilha Encoberta conjugada com o sebastianismo, pois, ao contrário
dos relatos de naufrágio, fixados em escrita (manuscrita ou impressa), a elaboração de Maria
de Macedo era essencialmente oral e só foi “fixada” graças à ação do Tribunal do Santo Ofício.
Se o Dicionário dos lugares imaginários não propõe uma discussão mais aprofundada
sobre os “lugares imaginários” (ilhas ou não), o que é determinado pela própria forma que um
dicionário assume, Antônio Carlos Diegues apresenta, em sua obra Ilhas e mares: simbolismo e
imaginário, uma apreciação mais focada nas imagens insulares e nos diversos significados que
as ilhas assumiram na cultura ocidental desde a Antiguidade Clássica até a contemporaneidade.
Baseado em pressupostos da antropologia e da psicologia analítica, Diegues acaba por
14 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisição de Lisboa (IL), processo 4404.
15 ANTT, IL, processo 4404.
16 ANTT, IL, processo 4404.
prescindir da historicidade da imagem das ilhas Afortunadas ou Encobertas, dando ênfase
somente às suas representações. Entretanto, o trabalho do autor indica pistas preciosas para a
análise da imagem das ilhas Encobertas, assunto principal do presente trabalho.
Assim sendo, a imagem da ilha é portadora de uma plasticidade que permite aplicações,
significados e análises múltiplas. O imaginário antigo e contemporâneo está repleto de
imagens referentes às ilhas, que se manifestam em forma de mitos, símbolos e outras imagens.
Em relação à trajetória cronológica da ilha Afortunada, Diegues toma como ponto de partida
a Grécia Antiga e a sua mitologia, que coloca a imagem da ilha em evidência: boa parte dos
seus deuses havia nascido em ilhas, dentre eles Zeus, Hera, Hermes e Apolo. Segundo o autor,
“para os gregos antigos, a ilha era lugar de refúgio, espaço de espera antes da ação decisiva”.17
Desta maneira, identifica a “Odisseia”, atribuída a Homero, escrita em fins do século VIII a.C.,
como a “mais grandiosa epopeia marítima da Grécia antiga”.18 Nessa obra, “o mar-oceano,
espaço ainda assustador e terrível, comandado pela divindade marítima Possêidon, era o reino
do desconhecido, dos monstros marinhos, das sereias perigosas”.19. Nesse sentido, o mar e as
criaturas míticas e fantásticas que o habitam se constituíam como os verdadeiros obstáculos
que Ulisses deveria enfrentar em seu retorno à ilha de Ítaca. Entretanto, nem todas as ilhas por
qual passa Ulisses em sua odisseia são maléficas e assustadoras.
A caracterização das ilhas oceânicas como local de refúgio remonta, então, à Antiguidade.
Segundo Mircea Eliade,20 nessas ilhas, paradisíacas, a existência se passava fora do tempo,
o homem era livre, feliz, belo e eternamente jovem. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão
do paraíso, indica que o paraíso fora também descrito, na Antiguidade, como o Horto das
Hespérides, e se converte como a base para o romantismo insular que invadiu a Europa a
partir dos descobrimentos marítimos modernos.21
Em relação ao imaginário medieval, permeado pela teologia cristã, as lendas acerca
de seres mágicos e fantasiosos, habitantes de ilhas e mares desconhecidos, estão claramente
presentes. Tal presença se estende até o período das grandes navegações e exercem, inclusive,
grande influência nas narrativas, fantasiosas ou não, acerca das viagens quinhentistas e
seiscentistas. Obra destacada produzida por volta de 1410, Imago mundi, de autoria atribuída
ao abade francês Pierre d’Ailly, antecipa a proposição de Copérnico sobre a esfericidade da
Terra, mas traz ainda uma grande influência do mágico e fantástico em seus escritos. Segundo
Ailly, as ilhas Afortunadas, ilhas míticas, que só teriam sido alcançadas uma única vez, e depois
desapareceram no horizonte, localizavam-se no Hemisfério Norte. Já em relação ao Hemisfério
Sul, seria este um lugar inóspito, morada do Demônio, habitado por terríveis monstros.22
Presente também em descrições de viajantes medievais, como Marco Polo, as ilhas aparecem
no Oriente, e são lugares de grande riqueza. Entretanto, independentemente da origem da
caracterização das ilhas Afortunadas na Idade Média, neste período, elas acabam por consolidar
uma de suas principais características: a localização incerta e mutável, geralmente em áreas
e oceanos desconhecidos, potencializando o maravilhoso e mítico medieval. Maravilhoso,
mítico, fantasioso que, na cultura medieval, não se diferencia ou separa da realidade.
Obra seminal na abordagem do onírico na época dos Descobrimentos, Visão do paraíso
permanece atual, e é impossível tratar da presença do maravilhoso na mentalidade europeia
ocidental da época sem levar em consideração as questões levantadas por Holanda.
Com erudição respeitável, o autor analisa, de forma magistral e inovadora, os motivos
edênicos na descoberta e colonização do Brasil. Para tal, recorre aos relatos de navegantes e
viajantes, a cartas cartográficas da época, às histórias recontadas por quem não viajou, mas
17 DIEGUES, Antônio Carlos. Ilhas e mares: simbolismo e imaginário. São Paulo: Hucitec, 1998. p. 136.
18 Ibidem, p. 137.
19 Ibidem, p. 138.
20 Cf. ELIADE, Mircea. Mythes, rêves et mystères. Paris: Galimard, 1992.
21 Ver HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso. 6. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 152.
22 DIEGUES, Antônio Carlos. Ilhas..., op. cit. p. 150.
escutou falar das aventuras além-mar, e as recontou, acrescentando suas expectativas e medos,
promovendo, assim, a re-significação de vários lugares míticos, como é o caso do Paraíso
terreal. Entretanto, Sérgio Buarque destaca a diferença entre portugueses e espanhóis em
relação a esse horizonte fantasioso: os portugueses, em suas relações de viagens e descrição
das novas terras, edenizaram o Novo Mundo em escala menor do que os espanhóis. Segundo
Sérgio Buarque,
De ilhas encantadas, fontes mágicas, terras de luzente metal, de
homens e monstros discrepantes da ordem natural, de criações
aprazíveis ou temerosas, com que os novelistas incessantemente
deleitavam um público sequioso de gestos guerreiros e fantásticos
sortilégios, rapidamente se foram povoando as conquistas de
Castela. E não é menos flagrante aqui o contraste que se oferece
entre elas e as regiões do mesmo continente destinadas à Coroa
lusitana.23

Entretanto, por mais que os portugueses, segundo Sérgio Buarque, se afastassem


gradativamente da geografia do fantástico, da cartografia do maravilhoso e das narrativas do
exótico, tais aspectos ainda se perpetuarão, mesmo que de forma mais discreta em Portugal,
durante os séculos XVI e XVII, como bem indicam os casos relativos à ilha Encoberta
analisados no presente trabalho.
Outra análise sobre a influência do onírico nas narrativas modernas é o trabalho de
Laura de Mello e Souza. No primeiro capítulo de O Diabo e a Terra de Santa Cruz, Laura de
Mello e Souza considera a relação entre o imaginário europeu na época das navegações – ainda
essencialmente medieval e maravilhoso – e as representações que os europeus vão estabelecer
em relação às novas terras descobertas. Segundo a autora, os navegadores, influenciados pela
leitura de obras como Livro das maravillhas, de Mandeville, e a já citada Imago mundi, de Pierre
d’Ailly, acabaram por mesclar elementos do imaginário medieval veiculado nessas obras ao
cenário desconhecido das terras d’além mar. Tal mescla é um dos exemplos primordiais do que
a autora vai indicar como sendo o regime das imagens, peculiar do Barroco, no qual o ouvir as
histórias dos viajantes medievais e os relatos dos viajantes modernos, testemunhas “oculares”
das maravilhas dantes descritas, delimitaram o “primado visual” tipicamente barroco.
Laura de Mello e Souza chama a atenção ainda para o quão frágeis são os limites do
real e do imaginário nos registros não só dos navegadores ibéricos, mas, principalmente, dos
viajantes e cartógrafos medievais. Para a autora,
As narrativas de viagens aliavam fantasia e realidade, tornando
fluidas as fronteiras entre o real e o imaginário: aventuras
fictícias como as de São Patrício continham elementos extraídos
do mundo terreno, aventuras concretas como as de Marco
Polo se entremeavam com relatos fantásticos, com situações
inverossímeis que, tendo ouvido de alguém, o mercador
acreditava ter vivido. 24

Se o limite entre real e imaginário apontado por Mello e Souza, por si só, já serve de
base para uma profícua análise das narrativas que versam sobre a ilha Encoberta no Portugal
seiscentista, pensar o deslocamento geográfico do paraíso terreal após os descobrimentos só
pode enriquecer a análise. A autora indica que
23 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão..., op. cit., p. 131.
24 SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no
Brasil colonial. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 37.
Parece lícito considerar que, conhecido o Índico e desmistificado
o seu universo fantástico, o Atlântico passará a ocupar o
papel análogo no imaginário europeu quatrocentista. […]. O
maravilhoso estaria fadado a ocupar sempre as fímbrias do
mundo conhecido pelos ocidentais: o mundo colonial americano
seria, pois, a sua última fronteira.25

Dessa maneira, Laura de Mello e Souza ilumina uma questão já levantada por Sérgio
Buarque de Holanda em Visão do paraíso, e também debatida por Jacque Le Goff em “O ocidente
medieval e o oceano Índico – um horizonte onírico”: qual não seria o peso da expectativa de
encontrar o paraíso terreal nas viagens dos marinheiros dos descobrimentos? Nesse sentido,
a expansão marítima ibérica propiciou uma fusão importante para o imaginário europeu da
época: articulou e recombinou as formulações europeias que versavam sobre o Purgatório,
o Paraíso terreal, e a função purificadora da travessia marítima e da ideia do degredo
como purgação.26 Porém, se, por um lado, o resultado dessa síntese foi a demonização dos
territórios coloniais nas narrativas dos viajantes,27 por outro, permaneceria, para o europeu
pós-descobrimentos, a existência de espaços ainda não descobertos e, portanto, edenizados,
míticos, mágicos e maravilhosos, dos quais as mais conhecidas encarnações seriam aquelas
que relatam sobre as ilhas Encobertas ou Afortunadas, presentes tanto nos relatos de naufrágio
que ainda circulavam em Portugal no século XVII quanto nas visões de mulheres como Maria
de Macedo.
Desse modo, pode-se presumir que, da tradição antiga e medieval, a imagem da ilha
Encoberta herdou a magia, fantasia, e a morada de monstros inimagináveis. Entretanto, foi da
tradição céltica que a ilha Encoberta herdou a característica de lugar de refúgio por excelência,
onde o tempo estaria em suspenso. As lendas celtas, extremamente populares durante a Idade
Média, também localizavam o paraíso nas ilhas oceânicas:
A transladação para o Atlântico de tão miríficos cenários, já
prenunciada com as tradições pagãs das ilhas Afortunadas ou
do jardim das Hespérides, e por elas de algum modo fertilizadas,
já ganhara alento, por sua vez, quando passaram a engastar-se
na mitologia céltica, principalmente irlandesa e gaélica, dando
como resultado várias obras que alcançaram vasta popularidade
durante toda a Idade Média.28

A transposição das Colunas de Hércules (estreito de Gibraltar), a navegação por mares


desconhecidos e o descobrimento de novas terras não anularam ou elimiaram do horizonte
cultural europeu as construções fantasiosas e mágicas, como a da ilha Encoberta. Ao contrário,
o fantasioso e o mágico constituem elementos fundamentais para se entender a época das
grandes navegações.
Mas apesar de todas essas referências, e da decorrência delas, as ilhas Afortunadas
foram gradativamente desaparecendo dos mapas e cartas náuticas, na medida em que os
conhecimentos científicos avançaram a partir dos séculos XVI e XVII. Não se apagaram, porém,
do imaginário europeu ocidental, no qual continuaram a existir como lugar de isolamento e
de grandes belezas naturais, apartadas da civilização.
25 Ibidem, p. 40.
26 Ibidem, p. 104. Ver também LEGOFF, Jacques. O Ocidente medieval e o oceano Índico: um horizonte
onírico. In:______. Para um novo conceito de Idade Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente.
Lisboa: Editorial Estampa, 1979.
27 Ver SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo..., op. cit., p. 117.
28 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão..., op. cit. p. 172.
É, portanto, neste contexto de sobrevivência das características antigas e medievais
das ilhas encobertas, que as narrativas analisadas neste trabalho se inserem, ainda que Sérgio
Buarque afirme que os navegadores portugueses edenizaram os novos territórios em escala
menor do que os espanhóis. Laura de Mello e Souza, por sua vez, também afirma que estes
mesmos portugueses viram poucos demônios em terras ultramarinas, e, consequentemente,
também viram muito pouco de paraíso nessas terras. Entretanto, é Sérgio Buarque que aponta
o caminho para a sobrevivência, mesmo que tênue, do onírico no horizonte cultural português.
Segundo o autor,
É lícito pensar ainda que certas ideias bem precisas, ou até
pragmáticas, servissem de reforço à simples devoção visionária
sempre aberta à possibilidade de raros portentos, feitos
maravilhosos, profecias, intuições divinatórias, transes, aparições,
levitações, ubiquidades, como os que se multiplicaram nas
páginas desses livros, pois o que inspira muitos de seus autores,
fiéis neste ponto ao espírito da era do barroco, é, sobretudo, o afã
de despertar os ânimos, ocupando os olhos.29

Dessa maneira, mesmo vendo pouco paraíso e poucos demônios, permaneceram estes
no imaginário português; ao se voltarem para as navegações, os portugueses promoveram
não só a sobrevivência desses aspectos fantasiosos, como também suas reelaborações, que
emergem, por exemplo, nas narrativas sobre a ilha Encoberta na segunda metade do século
XVII.
Assim, a pergunta que é posta após a breve observação dos relatos de naufrágio e do
processo de Maria de Macedo diz respeito à emergência, na segunda metade do XVII, de um
discurso sebastianista que, diferentemente daquele que se constituiu durante o período de
dominação Filipina, mescla não só aspectos judaicos – como a espera por um messias –, como
também aspectos da Antiguidade Clássica e da tradição celta – como é o caso da ilha Encoberta.
A conjugação da tradição edênica que envolve a ilha Encoberta com o sebastianismo ocorre
em um momento de aparente estabilidade política. Isso significaria, então, retomar o mito do
rei encoberto combinado com o da ilha Encoberta em um momento em que a Restauração já
havia sido concluída e pode ser considerada estável?
Para João Lúcio de Azevedo,
Não deve ser muito anterior à Restauração a ideia da ilha
Encoberta, onde d. Sebastião se encontrava. […]. A alguém
ocorreu compará-lo ao rei Artur, cuja tradição não se perdera
ainda. A semelhança era notável; idêntico o destino. D. Sebastião
deveria também ter sua ilha.30

Parece-me, até o momento, que a ligação de discursos sebastianistas e edênicos aqui


observados responde não a uma crise política específica, mas pode revelar a existência de
“ruídos” dentro da sociedade portuguesa do seiscentos. Esse ruídos, se não tem ligação direta
com a soberania de Portugal, podem indicar a sobrevivência de um mito – o sebastianismo
– dentro de uma chave mais complexa do que a crise política – explicação essa que permeará
boa parte dos estudos portugueses durante o século XX.

29 Ibidem, p. 135.
30 AZEVEDO, João Lúcio de. A evolução do sebastianismo. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1947. p.
95-96.
O caso de Antônio Isidoro da Fonseca.
Reflexões sobre a ausência de imprensa tipográfica na América portuguesa

Jerônimo Duque Estrada de Barros1

Em 1747, instalou-se no Rio de Janeiro uma oficina tipográfica. Antônio Isidoro da Fonseca,
proeminente tipógrafo em Lisboa, por alguma razão ainda não esclarecida, fechou sua tipografia
no Velho Mundo e seguiu determinado a imprimir na América portuguesa. Agradecemos ao
próprio Isidoro as únicas provas inegáveis de sua atuação no Rio, que, à época, vivia uma
evidente ascensão econômica, e ampliava sua importância política.2
Há tempos sabe-se que Isidoro da Fonseca teria impresso ao menos três obras:
Conclusiones metaphysicas... tese teológica em latim, impressa numa página e, segundo consta,
em seda. Este documento fazia parte de uma cerimônia de graduação no colégio jesuíta
do morro do Castelo. Podemos ler nesta obra a indicação “Flumini Januari. Ex secunda
Typographia Antonii Isidorii da Fonseca”. A segunda obra impressa por Antônio Isidoro
no Rio de Janeiro é Relação da entrada que fez o excelentíssimo e reverendíssimo senhor d. fr.
António do Desterro Malheiro, bispo do Rio de Janeiro. Composta por Antônio Rosado da Cunha,
contém a indicação “Rio de Janeiro. Na segunda Oficina de Antonio Isidoro da Fonseca. Ano
de 1747. Com licenças do senhor bispo”. Folheto de 22 páginas, a obra conta com frontispício
e, ao final, com uma página dedicada à licença para impressão, que foi concedida pelo próprio
bispo Malheiro, em janeiro do mesmo ano.3
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Não há muitas informações a respeito da vida de Antônio Isidoro da Fonseca. Era natural, segundo
documento da Inquisição, de São Miguel do Frexo da Espada à Cinta, arcebispado de Braga. Os
primeiros impressos conhecidos produzidos em sua oficina datam de 1735. O tipógrafo ostentou,
de 1737 a 1740, o título de “impressor do duque estribeiro-mor” – na época, d. Jaime de Mello –, e
publicou obras em Lisboa com regularidade até 1745. Em 1746, a Inquisição lavrou um documento
obrigando todos os impressores de Lisboa a não imprimirem textos que não fossem avaliados pelo
sistema de censura. Isidoro da Fonseca não figura nesta lista de assinaturas. Este fato pode indicar
que já estaria na América, ou que estivesse com seus negócios paralisados no reino. Seus trabalhos
seguintes conhecidos datam de 1747 e foram impressos, como indicam alguns de seus frontispícios,
no Rio de Janeiro. Ver RATTNER, Jair Norberto. Levantamento das obras impressas por António
Isidoro da Fonseca existentes na Biblioteca Nacional de Lisboa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa,
1990. p. 7; DINES, Alberto. Aventura e desventuras de Antônio Isidoro da Fonseca. In: ______ et
al. (org.). Em nome da fé. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 75-89; BELO, André (org.). MACHADO,
Diogo Barbosa, Biblioteca lusitana... Lisboa: Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1741. V. 1; e
MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura literária em Portugal nos séculos XVII e XVIII.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 2005. p. 915.
3 Conclusiones metaphysicas de Ente Reali, præside R. P. M. Fracisco (sic) de Faria Societatis Jesu. Lectore
defendas offert Francisco Fraga exprædicta societate aprobante R. P. M. Joanne Boregis studiorum
generalium decano. A grande “folha” de seda contendo as “Conclusões” de Frâncico de Faria acha-se
no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo; há uma cópia no arquivo do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, e uma versão fac-símile em Pacheco, Félix. Duas charadas bibliográficas. Rio de Janeiro,
Typographia do Jornal do Commercio, 1931. Cf. MORAES, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz.
Brasília/Rio de Janeiro: Briquet Lemos/Casa da Palavra, 1998. p. 158-159; LEITE, Serafim. História
da Companhia de Jesus no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. T. 8, p. 216; CUNHA, Luís Antonio
Rosado da. Relação da entrada que fez o excelentíssimo senhor d. fr. António do Desterro Malheiro, em
o primeiro dia deste presente ano de 1747... In: MACHADO, Diogo Barbosa (org.). Elogios oratórios
e poéticos dos cardeais, arcebispos, bispos e prelados portugueses. s. n. t. T. 2, p. 196-206.
Recentemente, foi descoberto nos Arquivos da Torre do Tombo outro documento
impresso no Rio de Janeiro por Antônio Isidoro. Trata-se de mais uma tese jesuítica ligada à
obtenção de grau acadêmico, intitulada Dissertationes theologicas de merito justi ad quaest. d.
thomae ii4. i. 2., e que também exibe em seu frontispício “Flumine januarii. / ex secunda typis
Antonii Isidorii da Fonceca /anno domini M.DCC.XLVII”. Apesar de impresso no Rio, é um
documento que remete a uma cerimônia realizada no colégio da Bahia. Essa constatação leva-
nos a repensar a dimensão alcançada por essa singular oficina, tanto em relação às possíveis
razões para sua instalação na América portuguesa, talvez associada ao funcionamento dos
colégios jesuítas, quanto ao próprio alcance da tipografia em termos geográficos, pela relação
evidente com outras cidades coloniais. Apesar de importante, este novo documento não altera
significativamente nossa proposta de análise. Observa-se, nessa tese jesuítica da Bahia – como
veremos –, a mesma metodologia de ação de Antônio Isidoro da Fonseca, ao explorar os limites
do sistema de controle de impressos no Império português. Ademais, nosso trabalho foca a
cidade do Rio de Janeiro como sede de uma oficina tipográfica. Ou seja, mesmo oriundo da
Bahia, o documento foi impresso no Rio de Janeiro, o que demonstra, inclusive, a construção
de uma certa prevalência desta cidade em relação à própria capital da América portuguesa na
época.4
O relato de entrada do bispo Malheiro e as duas obras jesuíticas, como vimos, estampam
em seus frontispícios a indicação de que foram impressas no Rio de Janeiro, naquela que
seria, depois de Lisboa, a “segunda oficina” de Antônio Isidoro. A quarta obra, Em aplauso do
execelentiíssimo e reverendíssimo senhor d. frei António do Desterro Malheiro. reúne algumas
formas poéticas em louvor ao mesmo bispo e, apesar de não possuir indicações de origem, seu
conteúdo não deixa muitas dúvidas de que diz respeito ao mesmo evento referido em Relação
da entrada... É possível, inclusive, que esse último folheto seja o conjunto de louvores poéticos
lidos em homenagem à autoridade eclesiástica durante a cerimônia, conforme descrito no
relato da entrada, comprovadamente impresso por Antônio Isidoro.5. Mas, em julho de 1747,
uma carta régia mandou que Gomes Freire de Andrada, então governador do Rio de Janeiro,
fechasse a oficina e remetesse as letras de imprensa ao reino.6
4 Dissertationes theologicas de merito justi ad quaest. d. Thomae II4. I. 2. Præside R. P. ac Sap.
magistro Valentino Mendes Societatis Jesu primario sacræ theologiæ professore, discutiendas offert
Franciscus da Sylveira Ejusdem Societatis Suo 2. Theologiæ anno In aula theologica Collegii Bahiensis
die hujus mensis, ac vespertinis scholarum horis: Approbante R. P. ac Sap. magistro Emmanuele de
Sequeira Sstudiorum [sic] Generalium Rectore. Quæstio Gratiosa Ex Theotocologia Deprompta:
Utrum Bma. Virgo Deipara nobis promeruerit omnes gratias excitantes, adjuvantes, ac dona omnia
supernaturalia justificationem subsequentia? Affirmative. Documento encontrado e descrito por
Paulo Leite, técnico da Divisão de Aquisições e Tratamento Arquivístico do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo. Encontra-se digitalizado e disponível em http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.
aspx?page=regShow&ID =4606412&searchMode=#a2. Ver também LEITE, Paulo. Um novo título
oriundo do prelo brasileiro de António Isidoro da Fonseca. Boletim do Património Arquivístico
Comum, Direção-Geral de Arquivos Portugueses, n. 12, jan.– mar. 2010. Disponível em http://dgarq.
gov.pt/files/2008/08/DGArqBolt-12.pdf.
5 Este folheto também faz parte da coleção Barbosa Machado, e encontra-se disposto logo após
Relação da entrada... de Rosado da Cunha. Machado, Elogios oratórios..., op. cit. Epigramas latinos é,
em nossa interpretação, uma das partes que integram os Aplausos poéticos já citados, mas também
é considerada por alguns autores mais uma obra impressa por Antônio Isidoro da Fonseca. DINES,
Alberto. Aventura..., op. cit., p. 75-89
6 As ordens régias são citadas de duas formas pela historiografia, com aparente discrepância de
datas entre vários autores. Alguns se referem à de 10 de maio de 1747, que determinava o envio de
ordens aos governadores do Brasil, e outros, à carta régia de 5 de julho de 1747, que comunicava
a determinação real ao governador do Rio de Janeiro. Compreendemos agora que ambos os
documentos fazem parte dum mesmo processo. São muito semelhantes, apesar das pequenas
Em março de 1749, ainda no Rio de Janeiro, Antônio Isidoro assinou um termo de
compromisso inquisitorial. Esse documento, também recentemente descoberto, e lavrado
a mando de José de Souza Ribeiro de Araujo, comissário do Santo Ofício que havia sido o
autor da denúncia de que “havia impressão na cidade”, constrói inclusive uma cronologia dos
fatos, atribuindo aos jesuítas a iniciativa de impressão na cidade. Essa teria sido a denúncia
que geraria a repressão do santo tribunal. No termo, destaca-se o fato de Antônio Isidoro
misteriosamente ter se apresentado como soldado. De acordo com o documento,
[...] o dito reverendo senhor comissário mandou notificar para
vir à sua presença; e posto nela o notificou da parte do Santo
Tribunal do Santo Ofício, para que não imprimisse mais, de hoje
em diante, os livros, conclusões, ou outros quaisquer papéis sem
proceder expressa licença do Santo Ofício, de que mandou fazer
este termo e ele dito Antônio Isidoro da Fonseca assinou.7

Em finais de 1750, de volta a Lisboa, o tipógrafo ainda fez uma petição junto ao Conselho
Ultramarino, em que suplicava permissão de retorno à América para, segundo o documento,
“assentar ali uma imprensa na qual imprimisse alguns papéis volantes e conclusões sem que
disso se seguisse prejuízo a terceira pessoa, ofensa às Leis de V. Majestade, mas utilidade
pública por não haver naquelas partes outra impressão”. Nessa petição, Isidoro da Fonseca
não esconde que já fora proibido de atuar no Rio de Janeiro, e que, justamente por isso, teria
recebido, “grande prejuízo, porque para outra vez se estabelecer na Corte, se não acha com
meios prontos, nem fáceis”. Reforçando o argumento de que não teria como objetivo ofender
as leis do reino, garantia-se no então governador, possivelmente Gomes Freire de Andrada, que,
segundo o tipógrafo, “sem dúvida não permitiria que o suplicante praticasse este exercício se
dele se seguisse consequência alguma prejudicial ao bem comum, e ainda particular e muito
mau ao serviço Real de V. Majestade”8. Ao fim da petição, pediu que
V. Majestade lhe faça mercê levantar-lhe a proibição que se
lhe pôs para efeito de que o suplicante possa estabelecer a dita
imprensa no Rio de Janeiro na mesma forma e para o mesmo
fim, de que […] dela ou na Cidade de Bahia, e se necessário for
fará termo com as penas que V. Majestade for servido impor-
lhe, de que não imprimirá livros sem licença de V. Majestade e
do Santo Ofício, nem outro algum papel de que se siga dano ao
Reino, ou a algum Vassalo dele.9

diferenças nos textos. Para a ordem régia de 10 de maio de 1747: Arquivo Histórico Ultramarino,
Rio de Janeiro, cat. 14.763, conforme http://www.ippar.pt/sitesexternos/bajuda/htm/opusc/nofbib.
htm. Ver também BRAGANÇA, Aníbal. António Isidoro da Fonseca, frei Veloso e as origens
da história editorial brasileira. In: FERREIRA, Sueli Mara S. P. (org.). Anais do XXX Congresso
Brasileiro de Ciências da Comunicação. São Paulo: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares
da Comunicação - Intercom, 2007. V. 1, p. 1-15. Para a carta ou provisão régia de julho de 1747, ver
os Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 50, 1936, p. 121.
7 Os documentos foram publicados pela primeira vez em Dines, Alberto. Aventura..., op. cit., p. 75-
89. Lavrado por José Ribeiro Araujo, comissário do Santo Ofício no Rio, por ordem do cardeal
inquisidor d. Nuno da Cunha Ataíde, o termo de compromisso tem assinatura do próprio Isidoro
da Fonseca e, logo após, igual documento foi produzido para a assinatura de Francisco da Costa
Galvão, personagem ainda obscuro, identificado apenas como “escrivão do Contrato do Tabaco”.
Ver: Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit.
8 Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, cat. 14.763.
9 Ver: Arquivo Histórico Ultramarino, op. cit., e DINES, Alberto. Aventura..., op. cit., p.75-89.
Mas seu pedido foi indeferido. Este é o último documento de que se tem notícia sobre
o impressor.10
O interesse pela história do livro e da leitura no Brasil vem de longa data. No entanto,
recentemente, a historiografia tem se renovado. De modo geral, podemos dividir as perspectivas
de investigação histórica que comentam a ausência de tipografia na América portuguesa em
duas vertentes: aqueles que avaliam as demandas por cultura letrada na sociedade colonial
– o que também envolveria escrita, leitura e instrução na sociedade colonial americana –, e
aqueles que fazem as afirmações acerca dos interesses da metrópole lusa em não incentivar, ou
mesmo reprimir, a produção de impressos na América.
A historiografia tradicional, gestada entre o final do século XIX e meados do século
XX, grosso modo, interpretava que, além da exploração agrícola e da escravidão, uma
das características da colonização portuguesa na América teria sido a ausência de duas
instituições fundamentais da cultura europeia pós-renascentista: a imprensa e a universidade.
A inexistência dessas instituições estaria ligada ao suposto “atraso” no nascimento e no
crescimento de grupos sociais letrados na colônia, aqui formados e instruídos, o que teria
gerado uma sociedade carente de bases fundamentais da cultura letrada e erudita, desprovida
de condições para pensar uma nação independentemente do binômio agrarismo/escravidão.
Ou seja, associava-se as condições econômicas e sociais às condições de cultivo de hábitos
letrados europeus, para negar a possibilidade de demandas sociais por cultura letrada e,
consequentemente, por imprensa tipográfica.11
Recentemente, autores comprometidos com a revisão histórica do tema demonstram
que a América portuguesa, como parte importante do império luso, não esteve totalmente
alienada das expressões letradas. A circulação de textos – mesmo que predominantemente
manuscritos, como destaca Ana Paula Megiani –, o ensino da língua (como analisa Luiz
Carlos Villalta), ou de eventos ligados a práticas escritas, como as academias literárias, tema
dos estudos de Íris Kantor, e ainda a produção de textos como inventários, relações e mapas
impressos, analisados por Ronald Raminelli, evidenciam que, na América portuguesa, a
prática escrita esteve presente e exerceu certas funções no processo colonial como um todo.12
Segundo Raminelli, em âmbito geral, a escrita e a circulação de informações textuais
foram essenciais à manutenção do poder central e da governabilidade monárquica nos impérios
coloniais ibéricos. Os textos seriam eles mesmos instrumentos de negociação entre súditos
e monarcas. Separados por continentes ou oceanos, os primeiros ambicionavam ascender
socialmente, aproximar-se do centro, e os outros, conhecer suas conquistas e vassalos para
garantir seus domínios e riquezas.13
Villalta ressalta, porém, que a valorização do ensino e da sociabilidade letrada teriam
10 O documento é acompanhado de várias rubricas e datas, dando a entender que a petição feita em
9 de novembro de 1749 foi recebida pelo Conselho Ultramarino em 12 de maio do ano seguinte e
indeferida entre 25 e 29 de maio de 1750. Ibidem.
11 MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e conhecimento do mundo: coleções de objetos, impressos e
manuscritos nas livrarias de Portugal e Espanha – séculos XV-XVII, In: ______; ALGRANTI, Leila
Mezan (org.). O império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico,
séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009. p. 177-178.
12 Ver RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distância. São
Paulo: Alameda, 2008; KANTOR, Íris. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-
americana (1724-1759). São Paulo: Hucitec, 2004; VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que
se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello e; NOVAIS, Fernando. (org.). História
da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. V. 1, p. 333-334; ALGRANTI,
Leila Mezan. Livros de devoção, atos de censura. Ensaios de história do livro e da leitura na América
portuguesa (1750-1821). São Paulo: Hucitec, 2004; e MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e..., op.
cit.
13 RAMINELLI, Ronald. Viagens..., op. cit., p. 17-60.
ocorrido de forma esparsa, descontinuada e pontual no tempo e no espaço americano português.
Destaca em seus trabalhos os estudos dessas manifestações nas Minas Gerais. Não obstante,
acreditamos que a tentativa de implementação da segunda oficina de Isidoro da Fonseca
marque a primeira metade do século XVIII no Rio de Janeiro como uma época de valorização
da cultura letrada. Esse contexto estaria ligado tanto a aspectos gerais, como o crescimento
econômico do setores urbano e comercial, quanto a necessidades específicas dos grupos que
compunham a elite social do Rio de Janeiro. Cremos que a oficina tipográfica de 1747 não teria
sido resultado dos caprichos de algum personagem politicamente poderoso, ou devaneio de
um impressor economicamente desesperado – como apregoam algumas interpretações –, mas
resultado de um contexto político e social que possibilitou a concretização dos interesses pela
reprodução de impressos naquela cidade.14
No entanto, o exemplo de Isidoro da Fonseca mostra que, apesar de poder ter sido
uma evidência de valorização e instrumentação no Rio de Janeiro setecentista para lidar e
cultivar hábitos letrados, sua oficina foi rápida e eficientemente reprimida pelos poderes
metropolitanos competentes. Isso fez com que o caso da efêmera tipografia fluminense
figurasse nos estudos sobre o controle da imprensa na América portuguesa. Essa perspectiva
pode ser encontrada até mesmo em Sérgio Buarque de Holanda, que afirma que a política
da administração lusitana opunha-se “ao desenvolvimento da cultura intelectual no Brasil”,15
visto que faria “parte do firme propósito de impedir a circulação de ideias novas que pudessem
pôr em risco a estabilidade de seu domínio”.16
Essa associação entre produção textual, desenvolvimento intelectual e risco de novas
ideias geradoras de instabilidade política, apesar de antiga, tem, de certa maneira, se mantido.
O caso de Isidoro da Fonseca foi pouquíssimo abordado pela historiografia como tema de
pesquisa. Na verdade, foi muito utilizado como prova evidente dessas interpretações. Ainda
hoje, pode-se encontrar comentários a respeito da introdução tardia da impressão de livros
no Brasil que continuam a contemplar esses conceitos, e que sofreram poucas revisões se
comparados aos estudos sobre as demandas por escritos e cultura letrada na sociedade
colonial. Nossa intenção é, portanto, problematizar essa perspectiva, mostrar que é preciso
apurá-la para não incorrer em anacronismo. Não pretendemos negar o interesse político por
trás do impedimento da reprodução de impressos na América portuguesa. Mas, pelo exemplo
ocorrido no Rio de Janeiro entre 1747 e 1749, demonstramos que é necessário tentar encontrar
uma explicação que contemple a dinâmica de funcionamento da sociedade lusa do Antigo
Regime e, consequentemente o papel político dos impressos nesse âmbito. Contemplamos,
assim, as necessidades e os modos de controle desses impressos pelo poder central, até
14 VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala..., op. cit. Para a evolução econômica e social da cidade do Rio
de Janeiro no século XVIII. Ver FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto:
mercado atlântico, sociedade agrária em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c. 1790 -
c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; Idem. Homens de grossa aventura: acumulação e
hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1998; e SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na encruzilhada do império. Hierarquias sociais e
conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
Jucá de Sampaio demonstra a ascensão de uma burguesia comercial e urbana na primeira metade
do século XVIII. Para uma análise política da administração, ver BICALHO, Maria Fernanda. A
cidade e o império. O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Além de analisar as consequências políticas da ascensão dos comerciantes nas disputas pelos cargos
da Câmara do Rio de Janeiro, Bicalho deixa evidente a importância dos chamados letrados nesse
contexto.
15 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 85.
16 Ibidem, p. 87. Um outro exemplo de abordagem clássica e marxista estruturalista pode ser encontrado
em: SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1966. p. 19-21.
a primeira metade do século XVIII. Deste modo, talvez possamos chegar mais perto das
intenções metropolitanas quando foi vetada a possibilidade de funcionamento de tipografias
na América no período.
Os próprios documentos impressos por Isidoro da Fonseca e o modo de atuação do
impressor, como já percebem alguns autores, parecem não confirmar a noção que estabelecia
o perigo de circulação de novas ideias como principal motivo para a repressão de sua oficina.
Os documentos impressos por ele – duas teses jesuíticas, uma relação de entrada e poemas
laudatórios – não representam de maneira alguma uma literatura subversiva. Isidoro da
Fonseca procurou, na verdade, revestir sua atividade de ares legais, não escondendo nos
frontispícios das obras o fato de terem sido impressas no Rio de Janeiro.
É possível que nosso tipógrafo tenha se valido de estratégia bem elaborada. Apesar do
rigoroso sistema de censura de impressos vigente em Portugal, aqueles documentos ligados
ao funcionamento interno dos colégios jesuítas, como Conclusiones methaphisicas, não
necessitavam de aprovação das instâncias censórias portuguesas. A medida, estabelecida pelo
cardeal-rei d. Henrique (1578-1580), afirmava:
Padres Prepósitos Provinciais da dita Ordem e Companhia de
Jesus, assim deste Reino como das ditas partes [Índia e Brasil],
que por si, e pelas pessoas da dita Ordem e Companhia de Jesus
que eles para isso deputassem e houvesse por idôneos, pudessem
emendar os livros e tudo o mais que era defeso no Catálogo do
Sagrado Concílio Tridentino e no nosso, sendo em coisas da dita
Companhia somente e do que assim se emendasse se poderia
usar.17

Quanto ao documento referente à cerimônia da Bahia, ainda há o reforço de um


pretenso exame de liberação para a impressão dos comissários do Santo Ofício de Salvador.
Esses comissários, de acordo com o sistema vigente no reino, poderiam examinar obras. Mas
a permissão de impressão caberia somente ao tribunal da Inquisição. A estratégia de Isidoro,
tanto neste caso quanto nos demais, não tornava suas obras regulares, mas fazia-as de acordo
a religião católica, livrando o impressor de punições mais severas.18
De maneira análoga, a licença concedida pelo bispo Desterro Malheiro, impressa ao final
da Relação de entrada..., ameniza os atos de Isidoro da Fonseca. A ilegalidade dessa segunda
obra fica evidente, pois, segundo o sistema censório português, os documentos impressos,
salvo exceções, deveriam apresentar, além da licença do bispo – ou do ordinário, como era
chamada –, uma licença da Inquisição e outra régia, ou do Paço. Ainda assim, com a licença
do bispo, Antônio Isidoro garantia que sua atividade não gerava a propagação de heresias,
ideias sediciosas ou prejudiciais ao bem comum, à religião ou à majestade. Mesmo com essa
estratégia, sua tipografia foi reprimida.
Constatamos o mesmo movimento na petição de 1750, feita ao Conselho Ultramarino.
Ela expressa a vontade de Isidoro da Fonseca de estabelecer-se legalmente na América. O
impressor mostrava-se disposto a restringir suas atividades a alguns tipos de documentos, a
não prejudicar terceiros, além de assinar, se preciso, um termo de compromisso. Argumentava
que sua atividade seria de utilidade pública, pois não havia outras tipografias na América,
afiançando-se ainda na possibilidade de ser controlado pela autoridade régia estabelecida (o
governador) para cumprir o que se propunha. O documento mostra que Isidoro da Fonseca
não objetivava a produção de obras proibidas ou ilegais, que contivessem ideias perigosas,
17 LEITE, Serafim apud MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura..., op. cit., p. 32.
18 Dissertationes theologicas... op. cit. Para a exclusividade da Mesa do Santo Ofício em termos de
aprovação de obras pela Inquisição ver MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura..., op. cit.,
p. 33-34.
mas o funcionamento regular de uma tipografia que imprimisse documentos consonantes
às normas legalmente aceitas.19 Ainda assim, seu pedido foi negado. Por sua vez, os textos
das proibições régias e inquisitoriais contra o funcionamento da oficina tipográfica no Rio de
Janeiro também não confirmam a repressão à imprensa como empecilho ao desenvolvimento
da cultura letrada na América.
Os documentos de repressão régios e o termo de compromisso inquisitorial assinado
por Antônio Isidoro, apesar de seus efeitos que impediram o estabelecimento da imprensa
na América portuguesa, não o fizeram em razão da condição “colonial” da cidade. Ambos
reforçaram a necessidade de que os papéis impressos deveriam – como nas demais partes do
reino português –, exibir todas as licenças para circularem legalmente. Apesar de a Inquisição
ter exigido a assinatura do termo, foram as ordem régias que coibiram não só a impressão sem
as licenças necessárias, mas o funcionamento dessa atividade no Rio de Janeiro. Mesmo assim
o texto régio é sinuoso ao exprimir que não seria conveniente, naquele tempo, a atividade
tipográfica no Estado do Brasil. Ou seja, parece não proibir explicitamente a impressão na
colônia americana, mas ligava a proibição a circunstâncias momentâneas. A coroa ainda lançou
mão dum argumento econômico – e não da condição política e cultural – para fundamentar
a inutilidade do ato: segundo a carta régia de 5 de julho de 1747, a atividade não seria útil,
em razão de os custos serem maiores na colônia do que no reino.20 A possível proteção do
mercado americano aos tipógrafos reinóis indica a importância do Brasil como consumidor
de impressos do reino, e nega a intenção política portuguesa de coibir a circulação de livros na
América. Entretanto, sobre a afirmação da carta régia a respeito dos custos que inviabilizariam
a produção de livros, não se deve perder de vista totalmente o seu caráter político, pois o
próprio Isidoro da Fonseca provava que talvez fosse possível produzir e lucrar com impressões
no Rio de Janeiro, e estava disposto a tentá-lo por seus próprios custos, o que representaria
pouco ou nenhum prejuízo econômico à Coroa. Como reforço a esse argumento, é preciso
lembrar que as mesmas proibições régias afirmavam que, do reino, “podem ir impressos os
livros e papéis ao mesmo tempo em que dele devem ir as licenças da Inquisição e do meu
Conselho Ultramarino”.21
Buscamos, então, para a problematização do tema, as contribuições da historiografia
contemporânea a respeito da expansão do livro e do hábito de leitura na América portuguesa
e na Europa moderna.
Os trabalhos de Ana Paula Megiani apontam para a necessária dissociação entre
ausência de tipografia e inexistência de práticas de escrita e leitura na sociedade colonial,
manifestações que seriam comprovadas em práticas culturais e políticas, e também na
estrutura administrativa do Império português, sob forma majoritariamente manuscrita. As
informações contidas nos textos de repressão régios nos levam a tentar estabelecer o mesmo
raciocínio proposto por Megiani, mas aplicado à investigação sobre a ausência de tipografia na
América, tendo por objeto a repressão à tipografia de Isidoro da Fonseca. Ou seja, procuramos
demonstrar a importância de se separar a evidente ausência de tipografias na América
portuguesa da impossibilidade de o vassalo americano ter acesso à impressão de obras e à
leitura de impressos.22
Devemos entender que essas medidas de repressão não teriam vedado aos portugueses
19 Requerimento de António Isidoro da Fonseca ao rei [D. João V] em que pede licença para voltar a
estabelecer uma imprensa nas cidades do Rio de Janeiro ou da Bahia. Indeferido por despacho de
25 de Maio de 1750. Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro, cat. 14.762; ver também DINES,
Alberto. Aventura..., op. cit. p. 75-89.
20 “não é conveniente se imprimam papéis no tempo presente, nem ser de utilidade aos impressores
trabalharem ao seu ofício, aonde as despesas são maiores que no Reino”. Anais da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, v. 50, p. 121, 1936.
21 Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 50, p. 121, 1936.
22 MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e..., op. cit., p. 177-178.
da América o acesso aos livros impressos, desde que submetidos a todas as instâncias censórias.
Não era nada diferente, portanto, do que estava determinado para a maioria dos portugueses
no próprio reino. Também não se impediu, com esse ato, que autores oriundos ou residentes
em cidades coloniais americanas tivessem seus textos publicados na metrópole, sob regras
iguais a todos os textos que se pretendia imprimir em Portugal, antes e depois do episódio
em questão. Como vimos, a notificação inquisitorial sequer cita a repressão da tipografia em
si; a preocupação exposta nesse compromisso assinado pelo tipógrafo no Rio de Janeiro é,
prioritariamente, a de garantir que não se imprimisse sem as necessárias licenças inquisitoriais.
As proibições também não fazem referência a nenhuma obra em especial. Na leitura
dos documentos em repressão à tipografia, não se pode explicar a proibição pelo conteúdo
de algum texto específico contrário à moral, à fé ou aos bons costumes. Os documentos
comprovadamente impressos no Rio de Janeiro, ou suspeitos de o serem, em princípio não
representavam, pelo seu conteúdo, uma deturpação dos valores estamentais portugueses.
Tampouco contestavam a ordem política da sociedade e do Império luso, e muito menos a
religião católica, pelo contrário. Algumas dessas constatações levaram o sociólogo José Melo
a especular que, na verdade, o fato de a oficina ter se instalado sem qualquer autorização já
seria motivo para a sua repressão. Nesse caso, a condição colonial seria circunstancial, pois
dificilmente uma tipografia sem autorização poderia funcionar livremente no próprio reino.23
Essa interpretação é instigante, pois nos faz lembrar que não existiu, até as reformas
da segunda metade do século XVIII, qualquer tipo de proibição a priori de funcionamento
de tipografias no ultramar, fato comprovado pela existência de imprensas tipográficas em
algumas partes do império luso, sobretudo no Oriente, desde o século XVI. Mesmo que na
América não se pudesse estabelecer uma tipografia, isso não significou qualquer legislação
diferenciada para os que viviam na corte. Não queremos, com isso, afirmar que os oriundos
ou residentes da América tiveram igual oportunidade e facilidade de acesso aos impressos,
quando comparados aos vassalos residentes no reino, ou que as regras de pureza de sangue
e honra não tenham barrado muitos vassalos americanos nesses processos. Frisamos que a
origem ou residência na América não eram fatores pelos quais se podia barrar uma publicação,
ou mesmo impedir o acesso à leitura de alguma obra que necessitasse de permissão especial.
Por se tratar de uma sociedade hierarquizada, o acesso ao letramento, ou a determinados
livros e textos, dependia, naturalmente, de certos requisitos, como honras e privilégios. Mas
não havia procedimentos especificamente voltados aos súditos oriundos ou residentes no
ultramar, nem restrições exclusivamente voltadas ao Novo Mundo. Isso quer dizer que não
existiu diferenciação entre as partes do Império, não existiam obras proibidas de circular
somente nas regiões coloniais, ou vetadas somente à leitura de súditos ultramarinos.
No entanto, afirmações como as do sociólogo José Melo correm o risco de esvaziar
o conteúdo político da medida. Não pretendemos também perder de vista o fator “colonial”
como importante para o desenrolar e o desfecho do caso. A ausência de um corpo de leis
especificamente voltado ao controle de textos nas colônias, não pode, por exemplo, ser explicada
pela ausência de demanda por escritos nesses locais. Mas também não deve ser confundida
com uma liberalidade do Império português. Esse fato é precioso para entendermos como
a metrópole lusa lidava com o controle das ideias em seus domínios, posto que, com essa
medida, em termos de controle de textos impressos, a América portuguesa esteve sujeita às
leis e instituições do governo português. Ou seja, sob o controle de instituições censórias
relacionadas às elites sociais no reino.
A constatação de que uma tipografia sem permissão seria reprimida em qualquer região
do reino também não esclarece a questão. Interessa-nos saber quais os receios e os motivos para
os poderes centrais reprimirem uma tipografia que, embora sem permissão, tinha imprimido
papéis insuspeitos, aprovados por autoridades eclesiásticas. Ou porque um tipógrafo seria
23 MELO, José Marques. Sociologia da imprensa brasileira. A implantação. Petrópolis: Vozes, 1973. p.
97-98.
impedido de continuar trabalhando, mesmo quando se propunha a trabalhar de forma legal
e sob a supervisão das autoridades. Interessa-nos também tentar entender em que medida os
fatores “colonial” e “americano” influenciaram na decisão de repressão da produção impressa
de Antonio Isidoro da Fonseca, e não na sua tolerância.
Não podemos negar que a repressão à tipografia de Isidoro da Fonseca foi um ato
político. Mas é preciso buscar explicações diferentes das percepções contemporâneas sobre
as formas de apreensão e consequências do consumo da leitura. Assim, acreditamos que seja
possível elucidar os motivos que levaram à reação contrária dos poderes centrais à reprodução
de impressos no Rio de Janeiro entre 1747 e 1749, ano em que o tipógrafo assinou seu último
documento na cidade.
Michel de Certeau, ao dissertar a respeito das formas de assimilação dos atos de leitura
nas análises históricas, afirma que subsiste, desde o século XVIII, o mito da transformação da
educação pelas letras, o que teria inscrito, inclusive, uma teoria do consumo nas estruturas
da política cultural. Nas reformas pedagógicas promovidas pela Ilustração, teria se firmado
a convicção de que, com mais ou menos resistência, o público seria moldado pelo escrito,
tornando-se semelhante ao que recebia. Assim, deixava-se imprimir pelo texto que lhe era
imposto. Segundo este autor, a ideologia das Luzes queria que o livro fosse capaz de reformar
a sociedade, que a vulgarização escolar transformasse os hábitos e costumes.24 As análises
históricas então passaram a atribuir ao livro e à cultura letrada em geral prerrogativas políticas
e culturais que só vieram a se conformar no século XVIII e, portanto anacrônicas ao período
anterior.
Na análise das questões políticas decorrentes da tentativa de impressão na América
setecentista, seria necessário romper com a perspectiva de uma elite letrada que, ao modo
como descreve Certeau, compreendesse o caso de Isidoro da Fonseca como uma chance
perdida para que seu produto, o livro, mudasse corações e mentes com vistas à transformação
social. Da mesma maneira, em relação à repressão metropolitana, as interpretações não podem
ser pautadas pela possível extirpação de ideias que iriam alterar profundamente a dimensão
política dos livros, mas que ainda circulavam timidamente em Portugal. O sistema de censura
e fiscalização só iria dedicar cuidado especial a obras ilustradas, após a reforma censória de
1768. Na década de 1740, ainda vigorava um sistema de censura intelectual forjado no século
XVI. Esse sistema não agia, por isso, de acordo com interpretações acerca da consequência
da expansão da leitura e do desenvolvimento intelectual, construídas posteriormente pelo
pensamento ilustrado.
Ana Paula Megiani alerta para a necessidade de se destacar que os documentos escritos
nos séculos XVI, XVII e XVIII, fossem eles impressos ou manuscritos, não podem ser tratados
como embriões da escrita pós-ilustrada em sua forma contemporânea. Diferentemente, eles
pertencem a um momento específico da cultura ocidental, cujos procedimentos de registros,
seleção e organização em volumes e coleções tinham códigos próprios. Do mesmo modo,
acreditamos que a repressão à produção impressa na América, em 1747, não pode ser tratada
como embrião da postura pós-ilustrada em relação ao desenvolvimento e à expansão do
hábito da leitura associados ao desenvolvimento intelectual. Até porque, como lembra a autora,
o desenvolvimento intelectual, por si só, não garantia a ascensão social na hierarquizada
sociedade do Antigo Regime português. Apesar de muito perto de mudanças significativas,
que direcionaram o sistema de censura intelectual para perspectivas mais contemporâneas, o
modo de ação e os fundamentos da repressão, em 1747, ainda eram pautados por compreensões
renascentistas. Ainda em reflexo do que propõe Megiani, as restrições régia e inquisitorial
à tipografia de 1747 parecem pertencer a um momento específico da cultura portuguesa,
e deveriam ser interpretadas de acordo com os códigos próprios da época em relação aos

24 CERTEAU, Michel de. Ler, uma operação de caça. In: ______. A invenção do cotidiano. Petrópolis:
Vozes, 1994. p. 259-273.
procedimentos dispensados a textos e impressos.25
Em recente artigo, Luiz Carlos Villalta narra um fato que ilustra em parte nossas
reflexões. O autor analisa uma carta enviada a d. Maria, em data provavelmente posterior a
1778 e anterior à Revolução Francesa, que objetivava denunciar a trajetória de livros defesos,
de Paris até a capital portuguesa. Conforme explicita o título da missiva, ela também objetivava
impedir a impressão e distribuição em Portugal e suas colônias de obras consideradas hereges
e antimonarquistas, como as de Rousseau e de Voltaire. Sob o pseudônimo de monsieur de la
Front D’Aunis, o delator anunciava os perigos da entrada em Portugal de obras que julgava
extremamente perigosas. De acordo com Villalta, alertava que, ao entrarem no reino, elas
chegariam com certeza “ao Maranhão, ao Grão-Pará e ao Brasil”, com consequências funestas.
Citava ainda que, em Du contrat social, havia o princípio segundo o qual a soberania pertencia
única e inalienavelmente ao povo, à multidão, a todos os cidadãos. Villalta também destaca
que o missivista acrescentava os exemplos do “atentado sacrílego” que se abateu sobre Carlos I
da Inglaterra em 1649 e, sobretudo, dos norte-americanos, que “repudiaram solenemente seu
rei”, fazendo, assim, uma “aplicação da doutrina de Rousseau e seus semelhantes”.26
O autor da carta, talvez conferindo crédito a sua denúncia, relatou ter estado em
Portugal durante o reinado de d. João V. Pregando que no reino luso havia, à época, uma
invasão de livros “irreligionários e contrários aos príncipes”, o denunciante afirmava que, se,
em 1747 – ano em que estava em Portugal e quando foi instalada e proibida a tipografia no
Rio de Janeiro –, Lisboa desconhecia essa produção infernal de livros defesos, em 1773, já se
viveria uma outra situação.27 Esta afirmação confirma em parte o que propomos neste artigo.
O veto à segunda oficina de Isidoro da Fonseca e, de certa maneira, a resistência da metrópole
em instalar ou permitir tipografias na América até o século XVIII devem ser entendidos num
contexto anterior à popularização de obras que pregavam uma reconfiguração sociopolítica
pela propagação de ideias impressas em livros. As medidas metropolitanas, no caso, de 1747,
devem ser, então, contextualizadas num mundo anterior à popularização, no reino e nas
colônias, de obras como as de Rousseau e Voltaire, num tempo anterior à independência norte-
americana, interpretada como consequência direta do perigo da circulação e da impressão de
obras de filosofia ilustrada num espaço colonial.
Os trabalhos de Fernando Bouza Alvarez, dedicados ao estudo das transformações e
consequências da expansão da cultura letrada na Europa, em particular na Espanha dos reis
Filipes, contribuem de várias formas para a interpretação do nosso assunto. Apesar da distância
cronológica de seus temas, centrados nos séculos XVI e XVII, Bouza Álvarez esclarece noções
que ainda estavam presentes nas formas de ação da censura intelectual e do controle de
tipografias em Portugal na primeira metade do XVIII. O perigo de se ler nos séculos XVI e
XVII, segundo o historiador, era que a leitura, apesar de companheira e mestra da sabedoria,
podia ser também a porta da perdição.28 Ou seja, entendia-se a leitura como uma atividade
perigosa, mas o seu perigo não seria o da “ilustração”, ou o escape de um estado de tutela,
mas o da danação. Ou seja, a negação dos valores cristãos e o não reconhecimento do vassalo
português. Não negamos a importância política do controle intelectual e de impressos no
Portugal moderno até o reinado de d. João V, mas notamos que é necessário interpretá-lo de
acordo com a dinâmica duma ordem na qual a prática da fé e moral católicas era essencial para
a submissão à Coroa. Essa interpretação parece adequar-se ao sistema censório português, que
tinha oficialmente (até 1768) na Inquisição a primazia da censura e da fiscalização de livrarias
25 MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e..., op. cit., p. 177-178.
26 VILLALTA, Luiz Carlos. Os livreiros, os livros proibidos e as livrarias em Portugal sob o olhar do
Antigo Regime (1753–1807). In: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (org.). Livros e impressos:
retratos do Setecentos e do Oitocentos, Rio de Janeiro, Eduerj, 2009, p. 224–225.
27 Ibidem, p. 224.
28 ÁLVAREZ, Fernando Bouza. Del escribano a la biblioteca. La civilización escrita europea en la Alta
Edad Moderna (siglos XV-XVII). Madri: Síntesis, 1997. p. 116.
e oficinas tipográficas. Essa situação só iria esboçar as primeiras mudanças a partir da década
de 1750, quando o poder régio, mediante uma série de ações afirmativas, passou a arrogar-se
a primazia da censura literária. Consolidada a obediência de todas as instâncias da censura
literária ao poder régio, somente a partir da reforma “pombalina” de 1768 a Coroa passaria a
ser a única entidade com direito a promover visitas de fiscalização em tipografias e livrarias.29
Bouza Álvarez também nos oferece uma interpretação do papel da imprensa na
formação do Estado moderno, que não se limita à tradicional explicação da construção do
Estado, em que o papel da escrita serviria aos interesses absolutistas dos príncipes. Para o
autor espanhol, não se pode discordar desse aspecto, provado no uso da escrita na suposta
racionalização administrativa, fundamento básico da formação estatal. Reconhece também o
papel fundamental de burocratas, letrados e homens de penas como responsáveis pelo poder
do monarca, alcançando-se, sob a forma de despachos de papel, os lugares mais recônditos de
seus domínios. No entanto, o autor argumenta que a resposta estamental frente ao poder do
príncipe também se revestia de papéis, que atenuavam a centralização do poder nas mãos dos
príncipes.
A escrita estaria presente em casos extremos, como no correr de panfletos anônimos
contra atos da monarquia, ou em casos sutis, como no julgamento das querelas judiciais.
Por entenderem os poderes régios como restauradores do equilíbrio entre os estamentos,
as partes precisavam, por exemplo, de provas do estado anterior que se buscava restaurar.
A escrita transforma-se, assim, num instrumento indispensável ao funcionamento do
aparelho jurídico-administrativo do Estado moderno, robustecendo o papel do rei como
juiz garantidor da manutenção das diferenças jurídicas entre estamentos, mas também como
meio de resistência dos estamentos à centralização dos poderes. Bouza Álvarez expõe, então,
o papel essencial da escrita nas disputas por poder entre grupos sociais na Época Moderna,
revelando a essencialidade da reprodução de textos nas transformações sociais, bem como
seus consequentes conflitos políticos.30
Ronald Raminelli, por sua vez, aborda questões relacionadas à importância política
da comunicação letrada entre o poder real e os vassalos num âmbito imperial. Focado nas
comunicações entre os súditos e o monarca, Raminelli identifica a escrita como importante
instrumento de centralização de poder, que permitia o controle da Coroa de vastas conquistas,
e a ascensão social daqueles que auxiliavam a manutenção do domínio português nas regiões
ultramarinas. Baseando a trama entre centro e periferia na negociação entre vassalos e
monarcas, Raminelli demonstra a essencialidade da comunicação textual no reconhecimento
e nas recompensas de feitos dos vassalos por parte do rei. Incentivava-se, assim, a reunião
de honras e a paulatina aproximação da burocracia metropolitana por parte dos vassalos,
garantindo-se a governabilidade do monarca. Segundo o autor, a escrita, durante o processo de
expansão colonial, tornou-se tão importante quanto a espada no que diz respeito aos serviços
prestados ao rei, pois informava-lhe sobre acontecimentos, terras distantes, minas, lavouras.
Informava também a disposição dos vassalos ultramarinos de obedecer suas leis e manter seus
domínios. Em decorrência, garantia-se a justa adequação na remuneração dos feitos voltados
à expansão e à manutenção dos domínios lusos.31
Pensamos que, para uma análise de cunho político do episódio tipográfico no Rio
de Janeiro em 1747, devem-se levar em consideração as contribuições de Bouza Álvarez
e Raminelli, aplicando-as ao objeto impresso. Devemos pensar no texto escrito em sua
materialidade impressa, que, segundo o próprio Bouza Álvarez, ia – conforme popularizava-
se a invenção de Gutemberg – diferenciando-se do manuscrito. Devemos, ainda, buscar a
centralidade, não só da escrita na dinâmica da sociedade e governo “imperial”, mas da forma
impressa de circulação de escritos, sua participação na construção desses domínios. Isto é,
29 MARTINS, Maria Teresa Esteves Payan. A censura..., op. cit.
30 ÁLVAREZ, Fernanado Bouza. Del escribano…, op. cit., p. 71-76.
31 RAMINELLI, Ronald. Viagens…, op. cit., p. 17- 60.
na construção de memórias e também na ascensão social dos vassalos que conseguiam ter
seus manuscritos impressos, publicados com o aval das autoridades lisboetas. No mesmo
sentido, é preciso investigar as intenções dos diferentes vassalos e respectivos estamentos, ao
recorrerem não só ao registro escrito, mas ao esforçarem-se para que determinados textos
fossem impressos.32
É importante, também, entender o ato de Isidoro da Fonseca dentro do contexto de
organização da profissão de tipógrafo no reino. Ana Paula Megiani argumenta que, frente à
intensiva vigilância Inquisitorial, característica do sistema censório português, a possibilidade
de lucros com o comércio de impressos só era permitida mediante submissão às regras
estabelecidas pelo Tribunal do Santo Ofício. Os tipógrafos ansiavam, então, por privilégios
de exclusividade para imprimir obras de grande circulação na época. O estabelecimento de
uma tipografia no Rio de Janeiro pode ter sido um ato de desespero, pois, apesar de ostentar,
no começo de carreira, o título de “impressor do duque estribeiro-mor”, e imprimido obras
importantes, como o primeiro volume Biblioteca Lusitana de Barbosa Machado, Isidoro da
Fonseca não figurava, nas últimas décadas, como detentor de nenhum privilégio importante.
Uma vez excluído do sistema que movia a produção de impressos, a América pode ter figurado
como uma opção ousada.33
Pretendemos demonstrar que, para sermos bem-sucedidos na elucidação dos motivos
das instâncias metropolitanas para reprimirem a tipografia de Antônio Isidoro, é preciso
reformular as intenções e os sentidos do controle do discurso na dinâmica entre a metrópole
e a América portuguesa. Afirmações de que as intenções metropolitanas residiam no perigo
de propagação de “ideias perigosas” sugerem, como vimos, apropriações sobre o modo e
os efeitos da imprensa tipográfica, construídos em Portugal na segunda metade do século
XVIII. Num desdobramento dessa perspectiva, o caso da tipografia fluminense de 1747 é
comumente revestido de indícios de um sentimento independentista, mais ou menos ao modo
como o missivista anônimo de Villalta se referia aos efeitos dos livros na América inglesa
pré-revolucionária; de acordo com essa ótica, esse sentimento deveria ser veementemente
reprimido pela metrópole.
A periculosidade da imprensa numa área periférica como a América não estava ligada à
possível superação da condição colonial, ao modo ilustrado de superação do estado de tutela,
ou à ruptura que poderia causar a circulação de ideias impressas. O perigo, de acordo com o
que sucedeu a Antônio Isidoro, talvez estivesse justamente na possibilidade da produção de
obras que, por estarem de acordo com as normas vigentes e revestidas de ares de legalidade,
poderiam promover memória e, em consequência, honras, de modo autônomo. Ou seja, ao
reafirmarem os valores e as formas textuais, os documentos imprimidos, ou suspeitos de terem
sido imprimidos por Isidoro da Fonseca, reforçam a crença dessa sociedade na hierarquia
vigente. Entretanto, o ato de impressão transfere a uma área periférica uma das atribuições
básicas da centralidade metropolitana: a capacidade de atribuição de honras e a consequente
distribuição de mercês, processo no qual a imprensa tipográfica desempenharia um papel
32 ÁLVAREZ, Fernanado Bouza. Del escribano…, op. cit., p. 71-76.
33 A respeito das formas de organização da profissão de tipógrafo, ver MEGIANI, Ana Paula. Imprimir,
regular, negociar: elementos para o estudo da relação Coroa, Santo Ofício e impressores no mundo
português (1500-1640). In: SOUZA, Laura de Mello e; FURTADO, Junia Ferreira; BICALHO, Maria
Fernanda (org.). O governo dos povos. São Paulo: Alameda, 2009. p.131-151. Para tipógrafos que
detinham privilégios ver MONTEIRO, Rodrigo Bentes; CARDIM, Pedro. Seleta de uma sociedade:
hierarquias sociais nos documentos compilados por Diogo Barbosa Machado. In: MONTEIRO,
Rodrigo Bentes et al. (org.). Raízes do privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo
Regime. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. V. 1, p. 69-104. A respeito das questões gerais a
respeito da historiografia do livro e da leitura e em Portugal na época Moderna ver CURTO, Diogo
Ramada, A história do livro em Portugal; uma agenda em aberto. Leituras. Revista da Biblioteca
Nacional de Lisboa, s. 3, n .9-10, p.13-61, outono de 2001 – primavera de 2002.
próprio e de alguma importância.
Sugerimos também a substituição da perspectiva independentista, que rege a
historiografia tradicional, por uma avaliação dos perigos da autonomia no funcionamento
de uma tipografia na América. A mudança de perspectiva baseia-se no fato de que o termo
“independência” sugere uma ruptura com a dinâmica do sistema que regia a vida colonial,
enquanto “autonomia” traduz uma reafirmação do próprio sistema. No entanto, por escapar
do controle da elite metropolitana, ameaçava-se a sua estrutura hierárquica, fundamental
àquela sociedade.
O próximo passo para entender melhor a ausência de tipografias na América portuguesa,
e também a repressão à oficina de Antônio Isidoro em 1747, seria aprofundar comparações
com outras regiões coloniais. Sabe-se que, desde o século XVI, a imprensa tipográfica esteve
presente em outras regiões portuguesas na Ásia, e em cidades espanholas da América. Essas
comparações deveriam contemplar as diferentes dinâmicas político-culturais entre essas
regiões e o reino, os fatores que fizeram as diferentes áreas suportarem a impressão de textos,
sem pôr em risco a própria governabilidade ou a centralidade metropolitana. Mas essas são
questões complexas, que ficam para uma próxima oportunidade.
Aos pés de sua soberana: A intolerância como estratégia de um senhor e um apelo
escravo a tolerância real (1781-1813)

Mariana Guglielmo1

Em ofício a dom Rodrigo de Sousa Coutinho, datado de 1799, o vice-rei do Estado do Brasil,
conde de Resende, afirmava que a fazenda do Colégio, uma das grandes fazendas sequestradas
dos Jesuítas e situada em Campos dos Goytacazes, valia “muito mais” do que 700 contos de réis;
no entanto, fora arrematada por Joaquim Vicente dos Reis por apenas 191 contos. De acordo
com sua argumentação, foi a partir da arrematação que Vicente dos Reis teria se tornado um
homem reputado e estabelecido no continente.2
Entretanto, Vicente dos Reis não estava sozinho na arrematação: nesta empreitada,
havia se associado ao seu tio, João Francisco Vianna, e a um importante comerciante da
Bahia, Manoel José de Carvalho. Até 1796, os três compartilhavam a posse das terras, mas,
naquele ano, tanto Vianna quanto Carvalho faleceram, e Vicente dos Reis, após repor o valor
aos herdeiros, passou a ser o único proprietário. No entanto, pelo que podemos constatar
na documentação analisada, mesmo antes das mortes de seus sócios, Vicente dos Reis já era
o principal gerenciador da fazenda, uma vez que Vianna ficara no Rio e José de Carvalho,
na Bahia, muito provavelmente responsáveis pelo comércio de escoamento dos produtos da
fazenda.
Após a arrematação, um dos grandes desafios do trio, e, mais especificamente, de
Vicente dos Reis, que, efetivamente, administrava e residia na fazenda, foi impor-se frente
aos seus inúmeros foreiros e a sua escravatura, a qual merece nossa especial atenção. Sua
propriedade, juntamente com a dos Assecas, diferia das demais por possuir tanto um alto
percentual de crianças quanto mais escravas do que escravos. De acordo com Couto Reis,
em 1785, a fazenda do Colégio possuía cerca de 765 crianças, o que corresponde a mais da
metade de sua escravaria (51,6%), 340 homens e 377 mulheres adultos escravizados, enquanto
os Assecas possuíam 170 crianças, 95 homens e 121 mulheres.3
A família escrava que se estabelecia dentro de uma propriedade maior tinha grandes
chances de se desenvolver mais estavelmente, e, segundo a documentação, a fazenda do
Colégio, que já tinha quase 2 mil deles no ano de 1796,4 sustentava e vestia seus escravos,
1 Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 Oficio do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [d. Jose Luis de Castro], ao [secretário
de Estado da Marinha e Ultramar], d. Rodrigo de Sousa Coutinho, defendendo a manutenção da
fazenda de Santa Cruz nos bens da Coroa; enumerando as suas riquezas e potencialidades; recordado
que a venda das terras que foram confiscadas aos jesuítas foram feitas de forma precipitada e pela
quarta parte do seu valor, como aquela adquirida por Joaquim Vicente dos Reis. Arquivo Histórico
Ultramarino (de agora em diante, AHU), Rio de Janeiro Avulsos, cx. 175, doc. 12.892.
3 REYS, Manoel Martinz do Couto. Manuscritos de Manoel Martinz do Couto Reys, 1785. Rio de
Janeiro: APERJ, 1997, tabela anexa sem página.
4 Oficio do [presidente da mesa de Consciência e Ordens] conde de Vale de Reis [Nuno Jose Fulgêncio
Agostinho João Nepomuceno de Mendonça e Moura] a [secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros
e Guerra] Luis Pinto de Sousa [Coutinho], sobre o requerimento de Joaquim Vicente dos Reis e
Companhia, arrematantes da Fazenda Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio, nos Campos de
Goitacazes; ordenando que todos os moradores da dita fazenda, livres ou escravos, paguem ao vigário
de São Gonçalo as devidas benesses paroquiais da desobriga, casamentos, batismos e mortuários; que o
capelão da mesma fazenda seja curado e vença ordenado de 100 mil reis, com casa, escravos e cavalos;
que lhe pertença celebrar uma das missas que os senhores são obrigados a fazer celebrar pelos escravos,
e a outra ao vigário; que o capelão curado seja da real nomeação por provisões de três em três anos.
além de dar-lhes
[...] um dia na semana e o domingo para trabalharem para o seu
sustento e de suas famílias, de modo que não fazem desgosto
com estes infelizes, e só tem obrigação de mandarem dizer duas
missas por falecimento de cada um.5

A possibilidade de trabalhar em seu próprio terreno e em suas próprias hortas dava


aos escravos algum grau de independência econômica, ainda que restrita. Estes alimentos
cultivados poderiam ser consumidos como alimentação suplementar ou mesmo vendidos em
mercados locais e aos próprios proprietários. O dinheiro obtido serviria provavelmente para
melhora nas condições de vida do cativo ou para o financiamento da própria alforria ou de um
ente querido.6 Entretanto, veremos que os recursos obtidos pelos escravos da propriedade de
Vicente dos Reis não eram direcionados para a obtenção da liberdade.
Por outro lado, Robert Slenes, em trabalho inspirador, chama a nossa atenção para o
fato de que a “economia interna dos escravos”7 funcionava também como um mecanismo de
controle social, na medida em que criava um elo entre o escravo e o solo, e proporcionava-
lhes certo amor à propriedade. O autor faz questão de ressaltar, porém, que esta “política de
incentivos” não impediria os conflitos.8
Carlos Engemann afirma que, se a reunião de um grande número de escravos aumentava
a possibilidade de tensão, igualmente aumentaria os mecanismos de negociação. Ao analisar
unidades produtivas com um grande número de cativos, o autor acredita que, “dada à
densidade demográfica e o tempo de convívio”,9 os escravos alocados nestas propriedades
tinham condições de formar uma comunidade escrava, a qual se fundamentava, sobretudo, na
formação de parentesco. A trama corriqueira de “laços e nós” forjaria um pacto social na medida
em que a “existência coletiva os facultava a viver em sociedade”.10 Engemann entende como
comunidade “um conjunto de indivíduos que partilham símbolos, ritos, mitos e parentesco
dentro do mesmo espaço socialmente ordenado”.11 Estas reflexões são importantes para
AHU, Rio de Janeiro Avulsos, cx. 159, doc. 11.956, 1796.
5 Ibidem, n. p. Em extenso trabalho sobre a administração dos bens jesuíticos, Paulo de Assunção
demonstra, porém, que alguns padres não dispensaram um tratamento similar aos seus escravos.
Ver Assunção, Paulo de. Negócios jesuíticos: o cotidiano da administração dos bens divinos. São
Paulo: Edusp, 2004. p. 321-335.
6 Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos. In: ______.
Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 1999. p. 89-121; SLENES, Robert W. Na senzala, uma
flor: esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil Sudeste, século XIX). Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
7 Robert Slenes acredita que o termo brecha camponesa, utilizado por Ciro Flamarion Cardoso para
designar a produção independente de alimentos por escravos para uso próprio ou para venda,
acabou se tornando uma metáfora infeliz. Por isso, se apoia na bibliografia mais recente, muito
influenciada por E. P. Thompson, que enfoca a “economia interna” dos escravos como palco de
conflitos, cujos desenlaces são ambíguos e imprevisíveis. Ver SLENES, Robert W. Na senzala..., op.
cit., p. 199-200.
8 Ibidem, p. 207
9 ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008, p. 26.
10 Ibidem, p. 144.
11 Ibidem, p. 27. Especificamente sobre a fazenda de Santa Cruz, cf. Idem Os servos de Santo Inácio a
serviço do Imperador: demografia e relações sociais entre a escravaria da Real Fazenda de Santa Cruz,
RJ (1790-1820). 2002. Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002. Para uma perspectiva um
pouco diferente, que procura ampliar a noção de comunidade escrava, ver FARIA, Sheila Siqueira
compreendermos e tentarmos retraçar o processo de manutenção da expressiva escravaria da
fazenda do Colégio, e a relação de Vicente dos Reis com seus cativos, a qual, certamente, se
pautava por um espaço de barganhas e conflitos, e oscilava entre o paternalismo e a força.12
A documentaçãotrabalhada relata-nos ainda que os escravos da fazenda Nossa Senhora
da Conceição e Santo Inácio não passavam por “desgostos”. Realmente, em praticamente
toda a documentação consultada, Vicente dos Reis é sempre retratado como um senhor
que respeitava sua escravatura, que não a castigava e que não causava incômodo a pessoa
alguma.13 A existência de certa ordem na escravaria de Vicente dos Reis pode ser parcialmente
corroborada pelos alvarás de solturas pesquisados, pois, entre o período de 1794 a 1804, só
um escravo da propriedade apareceu preso, e antes por um mal entendido do que por um
crime.14 Mas há um documento que se desvia radicalmente do cunho dessas afirmações: o
requerimento do escravo (ou ex-escravo) Antonio Francisco Granjeiro.
Em um interessante documento, Antônio Francisco Granjeiro pede que seja
judicialmente reparado pelos danos que seu ex-proprietário, Joaquim Vicente dos Reis, tinha
lhe causado. Ex-proprietário porque, à época deste documento, escrito em 1805, ele estava sob
posse da Santa Casa de Misericórdia de Angola. Entretanto, para compreendermos este caso, é
necessária uma análise pormenorizada,15
Granjeiro, homem pardo, era casado, tinha filhos e trabalhava no ofício de alfaiate. Não
escondia seu anseio pela liberdade, pois já não podia mais com os “violentos tratos” de seu
senhor. Assim, “unido com sua mulher nas horas vagas do dia e da noite, trabalhou com tanta
eficácia [...] que chegou a adquirir dinheiro suficiente para o seu resgate”.16 Porém, ao entrar
em uma “exasperação” – ou seja, ao ter uma crise de irritação –, Joaquim Vicente dos Reis
teria decidido mandar o suplicante para Angola. No entanto, já no segundo parágrafo de seu
documento, o pardo apresenta outro motivo para a impaciência de seu senhor, que nos parece
mais factível: “que pretendendo forrar-se, fora este tão justo fim motivo de ira e indignação,
[...] [de] seu senhor”.17 Isso porque, para forrar-se, Granjeiro necessitava da aquiescência
de Vicente dos Reis, o que não conseguiu.18 Dessa forma, Granjeiro apelou para aquilo que
de Castro. Identidade e comunidade escrava: um ensaio. Tempo: Revista do Departamento de história
da UFF, v. 11, n. 22, p. 133-157, 2007.
12 REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
13 Ver, por exemplo, os atestados de João Pinto Ribeiro do desembargo de sua Majestade e seu ouvidor
geral, e corregedor da comarca da capitania do Espírito Santo e nela provedor da real Fazenda e dos
defuntos, e ausentes, dos órfãos, resíduos e capelas , intendente da polícia, e do ouro das minas do
castelo, comendador dos Índios das Aldeias e Juiz Privativo, nas suas causas, auditor de gente de guerra
com alçada no civil e crime, Gaspar José de Matos Pereira e Lucena cavaleiro professo na ordem militar
de São Bento de Avis, brigadeiro dos exércitos de sua Majestade e ajudante das ordens do ilustríssimo
e excelentíssimo senhor conde de Resende, vice-rei do Estado do Brasil. AHU, Rio de Janeiro Avulsos,
cx. 189, doc. 13652.
14 Ver Arquivo Público de Campos, Alvarás de soltura. BR. APC. C. 6 02 03. 1794-1804.
15 Todas as informações do caso de Granjeiro são retiradas da documentação citada a seguir. A
utilização de fontes diversas será devidamente citada em notas adicionais: Requerimento do escravo
Antonio Francisco Granjeiro, ao príncipe regente [D. João], solicitando que seja reexaminado seu
processo, ficando em vigor a sentença de liberdade que obteve, e a Mesa da Santa Casa de Angola
o deixe ir ficando com o valor que por si deu, sendo reparado judicialmente pelos danos que lhe tem
causado o seu ex-proprietário Joaquim Vicente dos Reis. AHU, Rio de Janeiro Avulsos, cx. 226, doc.
15.492.
16 Ibidem, n.p.
17 Ibidem, n.p.
18 Como nos lembra Márcio Soares, a concessão da alforria era uma decisão senhorial, e “nenhum
escravo tinha como forçar seu senhor a libertá-lo”. Baseado nos trabalhos de Marcel Mauss e
parecia ser seu último recurso: “sua soberana”, a rainha d. Maria I. Rumou, assim, para Lisboa.
Não há informações sobre a forma pela qual chegou à Corte, mas o fato é que Granjeiro
conseguiu o seu intento. O montante que conseguiu guardar com sua esposa fora suficiente
para pagar por sua alforria e para o custeio da viagem.
O que sabemos é que, após ser mandado para a Bahia por Vicente dos Reis com sua
mulher e filhos e “com uma carta fechada” (provavelmente contendo as instruções para algum
procurador da Bahia sobre o futuro destino do pardo), Granjeiro passou a Lisboa, quando na
verdade deveria ter sido remetido para a Santa Casa de Misericórdia de Angola.
Por carta expedida em 13 de abril de 1798, no Palácio de Queluz, a rainha ordenou que o
vice-rei do Estado do Brasil avaliasse o suplicante e, depositado o seu valor, que o dito escravo
passasse a gozar de sua liberdade “não obstante qualquer repugnância que a isso oponha seu
senhor”. Para completar, em 28 de Abril de 1798, determina que
[...] se não ponha impedimento algum a passar para a Bahia, e
dali para o Rio de Janeiro, digo, e dali com a sua família para
o Rio de Janeiro, Antonio Francisco Granjeiro, por constar que
veio a esta capital a dependências que tinha, e se recolhe aos
Campos dos Goytacazes onde tem sua residência.19

Primeiramente, é necessário frisar que tais apelos, feitos diretamente à Coroa, eram
raros. Russell-Wood analisa diversos casos em que indivíduos africanos e de origem africana
procuraram na justiça régia amparo e proteção, assim como fizera Granjeiro. Isto porque,
aos olhos desses vassalos, o monarca era (ou ao menos deveria ser) uma figura imparcial, ao
contrário dos funcionários das instâncias regionais e municipais, que tenderiam a privilegiar
os homens poderosos.20 Sutilmente, Granjeiro insinua este problema quando afirma que
Joaquim teria condições de enganar a Sua Alteza Real, porque se tratava de um grande senhor.
Não é a toa que, a todo momento, o pardo faz questão de ressaltar a desigualdade que havia
entre ele, suplicante, e Vicente dos Reis, suplicado. Por isso, pedia que a rainha houvesse “por
bem mandar examinar o exposto com a integridade e segredo que a justiça e o caso pedem, a
fim de evitar os subornos do poderoso suplicado”.
Ainda segundo Russell-Wood, o rei provavelmente atendia esses peticionários que iam
pessoalmente a Lisboa em audiências públicas, e muitas vezes a Coroa decidiu a favor deles,
praticamente sem nenhuma averiguação ou consulta de seus argumentos. Isto, por sua vez,
incomodava os administradores da colônia, pois estes homens temiam os abusos da graça régia,
a perda de autoridade das leis e, obviamente, de seus próprios cargos. No entanto, Russell-
Wood aponta que, apesar do desconforto diante de alguns pareceres, a decisão final do rei
sobre estes temas jamais era questionada e, muitas vezes, vice-reis, governadores e delegados
régios deixavam “de lado a sua própria objetividade e o conhecimento dos fatos a fim de
não desagradar ao rei”.21 Realmente, como o próprio Granjeiro coloca em seu requerimento,
nosso suplicante “achou abundantes efeitos e Piedade” ao recorrer à rainha. No entanto, em
seu caso, veremos que a sanção real não foi a final.
O escravo fora avaliado em Lisboa, no dia 20 de abril de 1798, por 153 mil e 600 reis, um
preço relativamente alto, pois os escravos que possuíam ofícios especializados eram mais raros
Maurice Godelier, o autor defende que a alforria era uma dádiva, fosse ela condicional, gratuita ou
paga. Cf. SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos
escravos nos Campos dos Goitacases, c. 1750 – c. 1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009. p. 174-178.
19 AHU, Rio de Janeiro Avulsos, cx. 226, doc. 15.492.
20 RUSSELL-WOOD, A. J. R. Vassalo e soberano: apelos extrajudiciais de africanos e de indivíduos
de origem africana na América Portuguesa. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (coord.). Cultura
portuguesa na terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, 1995. p. 215-233.
21 Ibidem, p. 232.
e, consequentemente, mais caros. Cabe notar que, inclusive por esse motivo, esses mesmos
escravos tinham também mais dificuldade de se libertar – o que não quer dizer, porém, que
fosse impossível a obtenção da alforria por esses sujeitos.22
Por outro lado, cabe ressaltar que a utilização dessa mão de obra escrava especializada
era mais barata do que o emprego de livres qualificados, como sinaliza uma carta de dom
Rodrigo de Souza Coutinho a dom Fernando José de Portugal. Coutinho aconselhava ao
vice-rei, “desejando mover os interesses e vantagens da real fazenda”,23 a criar, no Arsenal da
Marinha da cidade do Rio de Janeiro, uma espécie de escola para formar bons carpinteiros e
calafates que, futuramente, seriam utilizados nas construções de embarcações de guerra e de
navios mercantes. A Real Fazenda sairia em grande vantagem pelo preço “muito mais cômodo”
com os “aprendizes de negros escravos”.24
No retorno ao Brasil, Granjeiro tratou de depositar a quantia, e recebeu a tão esperada
liberdade em 30 de outubro do mesmo ano de 1798. Após haver resolvido os trâmites
burocráticos no Rio de Janeiro, Granjeiro decidiu voltar a Campos, aonde “esperava gozar
uma paz tranquila”, quando “viu vibrarem contra si os efeitos da maior vingança que o mundo
viu”. Isto porque Joaquim Vicente dos Reis, de acordo com seu relato, teria, então, requerido
que o aviso real fosse cancelado, uma vez que Granjeiro era desobediente, absoluto, temerário,
destemido e réu de graves delitos. Granjeiro foi preso no inicio de 1800, e escreveu à Relação
do Rio de Janeiro pedindo para “declarar-lhe a causa ou motivo do seu delito”.
Ainda segundo Granjeiro, a rainha o atendeu em seu requerimento, pois concorria em
favor dele a lei emanada em 16 de janeiro de 1773. No entanto, nos documentos anexados ao
seu requerimento, não há menção alguma por parte de Sua Alteza Real de tal lei. Analisemos,
portanto, o conteúdo da mesma. Por este alvará com força de lei, em Portugal e Algarves a
[...] todos aqueles escravos ou escravas, ou sejam nascidos dos
sobreditos concubinatos ou ainda de legítimos matrimônios,
cujas mães e avós são ou houverem sido escravas, fiquem no
cativeiro em que se acham, durante a sua vida somente; que
porém aqueles, cuja escravidão vier das bisavós, fiquem livres
e desembargados, posto que as mães e avós tenham vivido em
cativeiro; que quanto ao futuro, todos os que nascerem do dia
de publicação desta lei em diante, nasçam por benefício dela
inteiramente livres.25

Silvia Lara, em Campos da violência, argumenta que estas medidas não tinham
significado nenhum para os escravos que viviam no Brasil, a não ser em ocasiões bastante
particulares. Ao exemplificar esses casos específicos, a autora relata-nos sobre o escravo Mário
Freitas Antunes, homem preto que, ao ser enviado para Portugal, fora declarado forro e livre
do jugo da escravidão. Ao retornar ao Brasil, seu antigo senhor, Feliciano dos Santos, o pôs
a ferros. O senhor foi, então, denunciado, mas absolvido por ignorância, e seu escravo pôde
gozar, enfim, de sua liberdade.26 Granjeiro provavelmente ouvira falar de casos semelhantes,
22 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão..., op. cit., p. 115.
23 AHU, códice 575, Registro de Cartas régias, avisos e ofícios para o vice-rei do Estado do Brasil e outras
entidades das Capitanias deste Estado, nomeadamente do Rio de Janeiro e Domínios Ultramarinos,
1800-1805, fl. 161-162.
24 Ibidem, fl. 161-162.
25 LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÈS-
GALLEGO, José (coord.). Tres grandes questiones de la historia de Iberoamérica. Madri: Fundación
Ignacio Larramendi, 2005. p. 359-360.
26 Ibidem. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 250.
e reinterpretando, então, esse evento em seu ato de requerer a Coroa, aproveitando-se das
fraturas e das ambiguidades existentes nos sistemas normativos.27
Mas Joaquim Vicente dos Reis também lançou mão de seus recursos e de suas
possibilidades de manobra. Isso fica claro em um ofício do vice-rei do Estado do Brasil, conde
de Resende, ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, d. Rodrigo de Sousa Coutinho,
o qual determina que o chanceler da Relação do Rio investigasse as alegações de Vicente dos
Reis e, caso suas afirmações se confirmassem, “o liberto” deveria ser degredado ao reino de
Angola. O nome de Granjeiro não é citado neste documento, mas a datação e o conteúdo da
informação nos fazem crer que se tratava de nossa personagem.28
Márcio Soares, em estudo sobre as alforrias concedidas em Campos dos Goytacazes
no final do XVIII e início do XIX, observa que eram raros os casos de reescravização,
considerando que a possibilidade de revogação de uma alforria era mais interessante do que
a própria realização desta medida tão drástica.29 Vicente dos Reis agiu seguindo essa lógica,
mas sem deixar que Granjeiro gozasse de sua liberdade contra a sua vontade, a vista de todos.
Se tal afronta seria intolerável, reescravizar Granjeiro certamente não seria o melhor a se
fazer. Com certeza, este articulado pardo poderia trazer problemas futuros, uma vez que se
mostrava muito astuto, e poderia até insuflar outros escravos descontentes dentro da fazenda
– especialmente se considerarmos que, provavelmente, podia contar com diversos laços de
parentesco, compadrio e amizade dentro da propriedade onde nascera e crescera. Vicente
dos Reis dá, então, sua cartada final: assegura que, no momento em que o pardo adquiria
sua liberdade, já não era mais de sua propriedade, pois havia sido doado à Santa Casa de
Misericórdia em Angola. Sua alforria, portanto, não teria validade, uma vez que Granjeiro
apresentou-se como escravo dele, e já não o era mais.
Neste ponto, devemos salientar que Joaquim Vicente dos Reis já havia remetido outro
escravo seu para a Santa Casa em Angola. No ano de 1796, Vicente dos Reis “doava pelo
amor de Deus à Santa Casa de Misericórdia do Reino e Cidade de Angola”30 o escravo Inácio
Gonçalves de Siqueira e sua mulher Marta Soares, e acrescentava que eles deveriam servir até
morrer tanto na Santa Casa quanto em seus hospitais.
Inácio era escravo da antiga fazenda dos Jesuítas e, em 1770, fora enviado para o hospital
militar, onde se tornou cirurgião.31 Quando Joaquim Vicente dos Reis arrematou a fazenda, o
escravo voltou a Campos. No entanto, no ano de sua “doação”, Inácio encontrava-se fugido, o
que nos faz crer que Vicente dos Reis de fato pode ter tido a tendência de enviar para Angola,
como castigo e punição, os escravos que, de alguma forma, o desafiassem ou desagradassem
– o que, diga-se de passagem, era uma inteligente alternativa, pois, desta forma, afastava esses
27 Utilizo aqui as ideias de Fredrik Barth e sua interpretação da estrutura social, em que o ato é definido
como uma ação objetiva, intencionada tanto por uma “necessidade de expressar um estado de espírito”
ou “em função da busca inteligente e instrumental de um determinado fim”; enquanto o evento seria
o produto imediato da interpretação do ato. Por sua vez, o evento, ao ser reinterpretado por outro
ator que observa a eficácia e o efeito do ato empreendido, pode se transformar novamente em ato.
Sobre esta conceituação, ver: BARTH, Fredrik. Por um maior naturalismo na conceptualização das
sociedades. In: ______. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Trad. de John Cunha
Comerford. Rio e Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000. p. 172-177.
28 Ofício do [vice-rei do Estado do Brasil], conde de Resende, [d. Jose Luis de Castro], ao [secretário
de Estado da Marinha e Ultramar], d. Rodrigo de Sousa Coutinho, sobre as ordens que expediu ao
chanceler da Relação do Rio de Janeiro para que procedesse ao exame da veracidade das alegações
apresentadas por Joaquim Vicente dos Reis. AHU, Rio de Janeiro Avulsos, Cx. 181, D. 13206.
29 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão..., op. cit., p. 181.
30 Documento notarial integralmente transcrito em Feydit, Júlio. Subsídios para a história de Campos
dos Goytacazes. Rio de Janeiro: Editora Esquilo, 1979 [1900], p. 348.
31 Documento notarial integralmente transcrito em Feydit, Júlio. Subsídios para a história de Campos
dos Goytacazes. Rio de Janeiro: Editora Esquilo, 1979 [1900]. p. 347-349.
escravos problemáticos (em sua perspectiva, claro) do restante de sua escravaria. Há que se
destacar ainda que, se Joaquim quisesse apenas realizar um ato de benevolência, doando um
escravo, ele poderia muito bem fazê-lo à Santa Casa de Campos, onde, aliás, ocupou cargo de
provedor entre os anos de 1796 e 1798.
De fato, Granjeiro chega a mencionar que todo o escravo de Vicente dos Reis que
pretendesse a liberdade era, então, remetido por ele a Angola. Não sabemos se isso de fato
ocorria, mas cabe aqui um comentário. Na pesquisa empreendida sobre Joaquim Vicente dos
Reis, pude perceber que este senhor outorgava pouquíssimas alforrias. Na realidade, nos livros
de notas que vão do ano de 1788 a 1814, disponíveis para consulta no Arquivo Público de
Campos, encontrei apenas uma carta de liberdade, concedida em 1809, a Ana Josefa, parda de
40 anos, cujos pais, escravos, também eram propriedade de Vicente dos Reis. A manumissão
fora conferida pelos bons serviços que recebeu da mesma em suas enfermidades, com a
obrigação de Ana permanecer na fazenda enquanto seu senhor fosse vivo. Márcio Soares cita
também outra alforria no mesmo ano, dada por Vicente dos Reis ao seu escravo cirurgião
José Ferreira Passos. Como condição, impunha que este deveria “sempre assistir dentro
desta fazenda sem estipêndio algum”.32 É interessante perceber que ambas as alforrias são
concedidas no mesmo ano da feitura do testamento de Joaquim, quando o grande senhor já
estava idoso e a perspectiva de seu falecimento se aproximava, e que não há menção alguma de
doação de alforrias em seu testamento, o que era muito comum, uma vez que os testamentos
se constituíam em instrumentos de reparação de erros e de acerto de contas com o Criador.33
Márcio Soares tem como argumento básico que a prática da alforria era uma das principais
bases de estruturação política da ordem escravista nas pequenas e médias propriedades que
dependiam do tráfico para a reposição da mão-de-obra. Manter o cativo ocupado com o
sonho da liberdade reforçaria a exploração e a autoridade dos senhores, além de apaziguar as
tensões cotidianas, visto que os escravos tinham consciência de que precisavam ter um bom
comportamento e obedecer ao seu senhor para alcançarem a manumissão.34
No entanto, em fazendas com um considerável número de cativos, onde, ao longo do
tempo, comunidades escravas foram constituídas,35 o mecanismo da alforria poderia criar
uma atmosfera disruptiva no interior da escravaria. Isto porque este ato inicialmente individual
poderia ser tomado como exemplo e tornar-se paulatinamente um direito adquirido pela
comunidade, passando, assim, a ter um sentido coletivo,36
Granjeiro, aliás, assinala este ponto em seu requerimento, pois salienta que o maior temor
de seu senhor era que sua atitude servisse de exemplo para sua imensa escravaria. Retruca,
porém, rapidamente este argumento – que se poderia mostrar desfavorável no desenrolar
de seu processo –, afirmando que o desejo de liberdade não implicava automaticamente a
alforria e, muito menos, a proteção do poder monárquico. Ele se mostra, então, como um
caso excepcional, pois nem todos poderiam conseguir “a graça, que a piedosa, e estimável,
soberana concedeu a ele”.
Haja visto o acanhado número de alforrias concedida por Vicente dos Reis, especialmente
se considerarmos a imensidão de sua escravaria, a manutenção do poder senhorial passaria
por outras vias na fazenda do Colégio, que, como já salientamos, não era abastecida pelo
tráfico. Acredito que a base para o domínio nesta imensa propriedade passava justamente
pela família escrava e pelos laços familiares que teriam chance de se desenvolver em uma
propriedade como essa. Aliado a esse alicerce basilar, estaria o pequeno grau de liberdade que
32 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão..., op. cit., p. 114.
33 Ibidem, p. 85.
34 Ibidem, p. 196-200.
35 Não desconsidero aqui a formação de comunidades escravas em pequenas unidades produtivas,
como faz questão de ressaltar Faria, Sheila de Castro. Identidade e comunidade escrava: um ensaio.
Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, n 22, p. 133-157, 2007.
36 Estas reflexões foram inspiradas por ENGEMANN, Carlos. De laços..., op. cit., p. 140.
esses escravos possuiriam nessa grande extensão de terras. Não há como desconsiderar, aqui, a
violência inerente à escravidão, violência esta que Granjeiro enfatizou em seu documento, mas,
certamente, ela por si só não seria suficiente para o controle de seus mais de 1.500 escravos.
Granjeiro busca defender-se de seu senhor, apontando sua soberba e a possibilidade
de o mesmo “poder conseguir as impurezas mais dificultosas que a sua ideia empreendesse”.
Afirmava que Vicente dos Reis havia ensaiado testemunhas para que depusessem contra ele
suplicante, e insinua que esta era uma prática recorrente de seu senhor, já utilizada nos pleitos
que movia contra o visconde de Asseca.37 Não satisfeito, o escravo supostamente reproduz as
palavras que Joaquim Vicente dos Reis proferiu ao saber que ele conseguira se resgatar:
Será possível que sendo eu um homem de tanto respeito e
comandante de dois mil e tantos escravos, um deles, protegido
por sua Majestade, escape à minha vingança e que goze da sua
liberdade em imensa afronta? Não, eu não sairei de procurar a
minha satisfação até o reduzir ao antigo cativeiro.38

Granjeiro faz questão de mencionar nominalmente, em documento anexo, as


testemunhas de Joaquim, demonstrando as relações de subordinação, amizade e dependência
entre essas pessoas e seu senhor. Entre os indivíduos listados, posso garantir que, pelo menos
um deles, Manoel Francisco dos Santos, de fato tinha uma relação bem próxima com Vicente
dos Reis.
No libelo cível movido por Joaquim no ano de 1807 contra a viúva de Manoel, Maria
Rosa dos Passos, o argumento de Granjeiro de que o mesmo vivia praticamente de favor na
fazenda de Vicente dos Reis ganha embasamento no arrolamento das dívidas da viúva com
Joaquim: 20 anos de arrendamento de um sítio, 14 anos pelo arrendamento de um engenho,
jornais de vários escravos cedidos por Vicente dos Reis – entre eles um valioso mestre de
açúcar –, venda de quatro escravos (montante mais elevado da dívida, dinheiro emprestado em
situações várias ) inclusive para validar uma sesmaria em Lisboa, além de cobranças de tijolos,
ladrilhos, formas de barros e uma moenda.39 A primeira dívida contraída por Manoel data
do ano de 1782, o que pode demonstrar certa rapidez na construção dos laços de submissão e
de solidariedade por parte deste recém-chegado. Concluímos, portanto, que, de fato, Manoel
gozou de vários benefícios propiciados por Vicente dos Reis, o que pode tê-lo inclinado a
testemunhar a seu favor, independentemente da verdade ou da justiça da causa.
Em 5 de novembro de 1800, o chanceler da Relação do Rio de Janeiro, Luis Beltrão de
Gouvêa de Almeida, alegou que nada poderia ser deferido a Antonio Francisco Granjeiro.
Neste tempo, o pardo já havia corrido folhas para provar que não havia cometido crime algum,
assim como arrolado sete testemunhas a seu favor: três alfaiates, dois que “vivam de suas
lavouras”, um tropeiro e um homem branco que vivia de fabricar aguardente. Todos atestaram
seu bom comportamento, assim como nenhuma culpa foi encontrada pelos escrivães.
Mesmo com todas estas provas, Granjeiro foi remetido para Angola. É de São Paulo
37 Os conflitos entre Vicente dos Reis e o visconde de Asseca referem-se, na sua maioria, à disputa
de terras em Campos dos Goitacases, mas não são objeto de análise deste trabalho. Para mais
informações ver: Guglielmo, Mariana G. As múltiplas facetas do vassalo “mais rico e poderoso de
Portugal no Brasil”. Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goitacases (1781-
1813). S.n.: S.l., 2009. Disponível em: http://www.historia.uff.br/cantareira/novacantareira/artigos/
edicao14/Projeto_Mestrado_Mariana_revistacantareira_ed14_v1n1a2009.pdf. Acesso em: jan.
2012.
38 AHU, Rio de Janeiro Avulsos, cx. 226, doc. 15.492.
39 Arquivo Público de Campos (APC). Autos cíveis de libelo entre partes. Autor Joaquim Vicente
dos Reis contra Maria Rosa dos Passos e outros herdeiros do falecido Manoel Francisco dos Santos.
Documentação não catalogada.
de Assunção de Luanda que monta todo o requerimento aqui exposto, que conclui de forma
cuidadosamente engendrada para obter o mais dramático efeito possível:
Clama o suplicante, [...] gemendo debaixo do jugo da escravidão,
e oprimido por recomendação do suplicado; clamam nas
Américas a mulher e família do suplicante: justiça contra o
tirano que os separou! E quem se persuadirá que a clamores tão
lamentáveis seja insensível o Príncipe mais humano, reparando
nos princípios porque ele mesmo fez desgraçado aquele a quem
sua Clemência Maior havia feito feliz!40

Interessante perceber como Granjeiro parece estar muito a par de toda a retórica
usualmente utilizada em documentos como esse. Em momento algum, o escravo reclama do
poder central e das decisões da Coroa, enquanto, em contrapartida, seu senhor (ou ex-senhor)
Joaquim Vicente dos Reis é retratado como um indivíduo manipulador e prepotente. Além
disso, a questão central de seu requerimento é a afronta de Vicente dos Reis ao monarca e
as mentiras de que lançava mão constantemente para realizar suas vontades e seus anseios,
jogando, assim, o poder monárquico contra o poder senhorial, pois, apesar de existir uma
coincidência de interesses entre esses poderes, Granjeiro sabia que havia também possibilidades
de discordâncias entre os mesmos, e que concorria a seu favor a necessidade de o soberano
aparentar magnanimidade.
Não sabemos se Granjeiro conseguiu ou não sua liberdade, mas seu requerimento é
mais uma demonstração de como os escravos, assim como qualquer outro indivíduo, agiam,
transgrediam, negociavam, e até utilizavam todo um discurso de vitimização para tentar
fazer valer seus direitos (reais ou inventados) e, como os outros atores sociais, procuravam
reinterpretar leis e normas a partir de seu próprio benefício, evidenciando, desta forma, a voz
desses indivíduos no contexto colonial.
No início de seu requerimento, à margem esquerda, encontramos o seguinte aviso do
Conselho Ultramarino: “este registro não é formado em bons princípios, e se ressente nele
indícios de perigosas e mal aplicadas doutrinas”. Doutrina poderia ter aqui o significado
de erudição, saber e preceito moral, o que nos faz crer que os próprios conselheiros
admitiam a inteligência e astúcia deste escravo, que monta seu requerimento de forma tão
peculiar, anexando ao todo 15 documentos e encadeando muito bem seu discurso e ideias
– independente do caráter real ou imaginário dos fatos apresentados. Porém, se encararmos
essa ocasião específica com um olhar macroscópico, talvez o temor expresso nesse parecer
deva-se, antes, ao contexto revolucionário que pairava na política internacional, devido tanto
à Revolução Francesa quanto à Revolução do Haiti,41 do que especificamente ao discurso
aparentemente tradicional de Granjeiro, que se apresentava apenas como mais um escravo
que lutava por sua liberdade.
Ainda assim, cabe destacar a possibilidade de ação dos atores sociais dentro dessa
sociedade do Antigo Regime, e suas atuações e reações frente a fatos inesperados e as incertezas
que pairavam sobre seus destinos. Mesmo contando com recursos materiais, culturais e
cognitivos desiguais, pois, como nos lembra Barth, “escolha não é sinônimo de liberdade”,42
esses indivíduos perseguiam seus objetivos e, ainda que os resultados de suas ações não fossem
40 AHU, Rio de Janeiro Avulsos, cx. 226, doc. 15.492.
41 Sobre os temores e impactos da Revolução de São Domingos no Brasil escravista, ver: Gomes,
Flávio Experiências transatlânticas e significados locais: ideias, temores e narrativas em torno do
Haiti no Brasil escravista. Tempo: Revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 7,
n. 13, p. 209-246, 2002.
42 Barth, Fredrik. Models reconsidered. In: _______. Process and Form in Social Life: Selected Essays of
Fredrik Barth. Londres, Boston e Henley: Routledge & Kegan Paul, 1981. V. 1, p. 89.
o esperado, tinham chances de reinterpretar essas mesmas ações e retransformá-las em novos
atos, em busca de seus desígnios. Por último, o caso de Granjeiro exemplifica bem um juízo de
Barth, que diz “a circunstância desafortunada de uma grande diferença de poder não significa
que a estratégia é impossível – de fato, pode ser ainda mais essencial para o ator e ainda mais
influente em moldar seu comportamento”.43

43 Ibidem, p. 89. Tradução minha.


Índios, africanos e cristãos-novos na Guanabara: relações interétnicas no universo
cristão - século XVIII.

Denise Vieira Demetrio1

O artigo visa apresentar os primeiros resultados da pesquisa de doutorado em desenvolvimento


que versa sobre as relações sociais engendradas, no âmbito do governo de Artur de Sá e
Menezes, no contexto da descoberta do ouro na América Portuguesa. Os agentes em tela são
descortinados nas fontes paroquiais de batismo e matrimônio setecentista que revelam, para
além do cumprimento de ritos católicos, significados importantes para a compreensão das
interações entre indivíduos de estatutos sociais desiguais por meio das relações de compadrio.
Há quase dez anos, interessei-me pelo estudo da escravidão no recôncavo do Rio de
Janeiro no período colonial. Desde a monografia de bacharelado, tenho tido contato com
registros paroquiais de batismos de escravos, e várias situações têm chamado a minha atenção,
sobretudo para as formas de sociabilidades engendradas por esse grupo, pelas quais pude
perceber como foram complexas as formações familiares dos escravos na colônia. Os índices
de legitimidade variavam em função de uma série de fatores: entrada de africanos, atividade
econômica, tamanho da propriedade, vontade senhorial, o que também influiu nas relações
de compadrio. Comparando as escravarias dos jesuítas com as de senhores laicos, sem dúvida,
as primeiras foram uma exceção. Nelas, o acesso ao sacramento do batismo e do matrimônio
foi unânime, enquanto, nas demais, a vontade senhorial não respeitava muito as disposições
canônicas.2 Nada que nos cause espanto.
Nas propriedades de senhores laicos, tal vontade e ou prática de batizar e casar os
escravos dependeu, ao meu ver, de um fator que ainda não havia sido levantado na pesquisa e
que, na ocasião da produção deste texto, pareceu fundamental: não podemos esquecer que os
proprietários devotados à religião católica possuíam duas matizes, a dos cristão-velhos e novos.
Precisamos levar em conta que cada grupo poderia seguir formas distintas de vivenciar a
religião católica, e isso pode ter influído na prática de oferecer ou não os sacramentos católicos
aos escravos, fossem índios ou africanos. Podemos também avaliar como se deram as relações
de compadrio entre escravos e cristãos-novos, sejam seus proprietários ou parentes e amigos
de seus proprietários. É esse o foco deste artigo.
Apresento, a seguir, algumas notas da pesquisa de doutorado recém-iniciada, e que
versa sobre as relações sociais no âmbito do governo de Artur de Sá e Menezes e de seu
interino, o mestre de campo Martim Correa Vasques. Artur de Sá e Meneses governou a
Capitania do Rio de Janeiro de 1697 a 1702. Durante as suas ausências, deixou no governo
da cidade, interinamente, Martim Correia Vasques (1697-1700) e Francisco de Castro Morais.
No governo posterior, de d. Álvaro da Silveira e Albuquerque, Martim assumiu novamente o
governo interino (1704-1705), o qual era formado por uma junta composta por ele, pelo bispo,
d. Francisco de São Jerônimo, e por Gregório de Castro Morais. A junta foi formada para
administrar a cidade até a chegada do sucessor de d. Álvaro, Fernando Martins Mascarenhas
Lencastre, posto que o primeiro se achava enfermo.
A importância da gestão de Sá e Meneses se deve, entre outras coisas, pelo fato de ter
assumido o governo do Rio num momento crucial, que poderíamos chamar de “viragem” ou
de “inflexão” na história da capitania, uma vez que sua importância e centralidade cada vez
maiores se faziam sentir em decorrência da descoberta das minas e da política metropolitana
1 Doutoranda em História na Universidade Federal Fluminense (UFF).
2 DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias escravas no recôncavo da Guanabara. Séculos XVII e XVIII.
Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História, Universidade Federal Fluminense,
Niterói. 2008.
em relação ao extremo-sul da América portuguesa.3
Por outro lado, a própria conjuntura que se abre da segunda metade do século XVII
em diante colocava a urgência em se pensar a questão africana, na medida em que africanos
e seus descendentes tornaram-se o maior contingente populacional da América portuguesa.
Do lado senhorial, a questão do Quilombo dos Palmares exigia uma melhor definição do
projeto escravista-cristão. Ao final do seiscentos e início do setecentos, as preocupações
com a conversão dos negros intensificaram-se.4 Algumas obras publicadas no século XVIII
atestaram este processo, notadamente aquelas produzidas por inacianos. Segundo os autores
setecentistas, a escravidão deveria seguir certas regras que assegurassem o domínio senhorial
e, ao mesmo tempo, garantissem o sustento material e espiritual dos escravos.5
Deixando de lado, por hora, o caráter político-administrativo da trajetória de Artur
de Sá, passemos a tratar das relações do governador com seus escravos no âmbito religioso,
mais precisamente nos batismos destes últimos. Na freguesia de Santo Antônio de Jacutinga
(recôncavo da Guanabara), encontramos o então governador em dez registros de batismos
entre os anos de 1703 e 1708, período posterior a seu governo na capitania do Rio de Janeiro.
Todos os inocentes batizados possuem pai, mãe, padrinho e madrinha no assento e figuram
como residentes na “fazenda do general Arthur de Sá”6.
Em dois registros, as crianças foram apadrinhadas, cada uma, por pessoas livres com
sobrenome, e nos demais oito registros, dos padrinhos/madrinhas escravos, sete pertenciam
à sua fazenda e, em um dos registros, o padrinho, Belchior de Almeida, pertencia ao dr.
Manoel Correia Vasques (juiz da alfândega), e a madrinha, Luzia, era propriedade de Manoel
Couto Ferreira. Aqui cabe uma observação valiosa sobre esses proprietários: Manoel Correia
Vasques e Manoel Couto Ferreira eram possuidores de fazendas em Jacutinga, as quais foram
entrecortadas pelo chamado Caminho Novo, aberto, por ordem de Artur de Sá, entre 1698-
1705 pelo sertanista Garcia Rodrigues Paes. O dito caminho, nas descrições de Antonil, tinha
quatro jornadas, sendo que a segunda ia ao engenho (da Cachoeira) de Tomé Correia Vasques
(irmão de Manoel C. Vasques), e a quarta atravessava a propriedade de Manoel do Couto,
cuja localidade ficou apelidada apenas do “Couto”.7 Resta lembrar que Manoel e Tomé eram
filhos do mestre de campo Martim Correia Vasques, parceiro político de Artur de Sá. Sob a
empreitada do sertanista, teceram-se redes entre as famílias de Paes e de Correia Vasques, com
o casamento de Tomé Correa Vasques, filho do governador interino supracitado com Antônia
Maria Tereza Pais, filha do guarda-mor.
No atual estágio da pesquisa, não foi evidenciado se havia propriedade(s) dos Paes em
Irajá (1647), mas é interessante que a primeira jornada do caminho vá a esta freguesia, onde
se registrou, em 1704, o batismo de três escravas do capitão-mor Garcia Rodrigues Paes, uma

3 Ver SOUZA, Laura de Mello e; BICALHO, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720: o império deste
mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
4 Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. Senhores, letrados e o
controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 49-50.
5 Ver BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos . São Paulo, Grijalbo, 1977
[1700]. ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Edusp,
1982. (Coleção Reconquista do Brasil). ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado,
sustentado, corrigido, instruído e libertado. Petrópolis: Vozes, 1992 [1758].
6 Cf. Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Livro de Batismo e Matrimônio de escravos de Santo
Antônio de Jacutinga. Nova Iguaçu: s.n., 1686-1721.
7 Ver ANTONIL, André João. Roteiro do caminho novo da cidade do Rio de Janeiro para as minas. In:
______. Cultura..., op. cit.; ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Visitas pastorais na Baixada
Fluminense feitas pelo monsenhor Pizarro no ano de 1794. Nilópolis: Secretaria Municipal de Cultura,
2000. p. 34; Idem. Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. V.
3, p. 145-46.
delas do gentio da terra e apadrinhada por Fernão Dias Paes, pai do sobredito capitão.8 É
importante destacar que tanto o casamento com Tomé quanto o apadrinhamento de escravos
revelam a tessitura de redes de parentesco que cimentavam interesses econômicos. Certamente,
o dito caminho foi aberto às custas do trabalho escravo, sobretudo o dos índios. E soma-se
ainda que, a abertura do caminho novo de Garcia Rodrigues Paes, assim como outras tantas
empreitadas bandeirantes, se ergueu ambientada pela intimidade do compadrio. 9
Não podemos deixar de citar que dois escravos de Artur de Sá serviram como padrinho
e madrinha de um escravo do padre Luis de Lemos Pereira, o mesmo que assina os registros
do livro de batismos/casamentos da freguesia de Jacutinga entre os anos de 1692 a 1704.
De acordo com as informações genealógicas de que dispomos até o momento, Artur
não se casou, mas teve uma filha natural feita freira na Foz (Portugal); ele retornou a Portugal,
e lá morreu por volta de 1708-1709, deixando como herdeiro no Rio de Janeiro seu sobrinho, d.
Rodrigo Anes de Sá, o marquês de Fontes.10 Nos registros eclesiásticos da mesma freguesia, o
marquês de Fontes surge a partir de 1709, e permanece até 1719 como proprietário dos escravos
e da fazenda chamada Marapicu. O mais intrigante é que, em alguns registros aleatórios entre
1701 e 1706,11 não aparece o nome de nenhum proprietário para a mesma fazenda, ou seja,
todos os envolvidos nestes registros pertencem apenas genericamente à fazenda Marapicu.
A partir disso, perguntamos: seria esta fazenda Marapicu a mesma de Artur de Sá, ou
seja, foi esta a propriedade herdada pelo marquês de Fontes? Dessa vez, os próprios escravos
nos dão as pistas. Todos os catorze registros dos batismos dos escravos do marquês são filhos
legítimos; logo, a repetição de nomes de cônjuges e padrinhos é reveladora: os casais Manoel
e Dorotéia, Mateus e Maria, e Domingos e Mariana aparecem nos registros de ambos, ou seja,
do ex-governador e do marquês; além disso, o escravo João Benguela, que, nos registros da
fazenda de Artur, aparece como padrinho em três momentos, aparece também nos registros
de d. Rodrigo como pai de uma criança. Essa frequência é reveladora da estabilidade temporal
destes casais, e da recorrência de padrinhos escravos de várias crianças.
O que ainda é uma incógnita é que, ao que parece, antes de pertencer ao sobrinho de
Artur, a fazenda pertenceu a Martim (ou a ambos?), pelo que sugere um registro de 1702
em que, desta vez, todos os envolvidos (trata-se de um registro de batismo coletivo de duas
famílias escravas) são escravos do mestre de campo Martim Correia Vasques, e residentes na
“fazenda Marapicu”.
Voltemos às fontes paroquiais. Na fazenda do marquês de Fontes, houve uma preferência
por padrinhos e madrinhas escravos da própria fazenda, o que sinaliza que a sociabilidade
entre eles era boa, como também na propriedade de Artur. Temos ainda outra chave de
leitura que, no atual estágio da pesquisa, ainda carece de maior sistematização: o fato de esses
proprietários serem reinóis (refiro-me aqui a Artur e a d. Rodrigo) marcava uma diferença na
forma de sociabilidade de seus escravos em relação a outras escravarias cujos proprietários
eram descendentes da conquista, ou seja, da nobreza da terra, como, por exemplo, os escravos

8 Ver PINTO, Bartolomeu Homem d’El-Rei. Registro de Batismos de pretos pertencentes à freguesia
de Irajá. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, n. 108, p. 129-173, 1998. Di\Mss II, 32, 10, 17.
9 Cf. CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América portuguesa,
1700-1750. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2006. p. 91.
10 Ver Francisco de Assis Carvalho Franco. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil: séculos
XVI-XVII-XVIII. São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954. p. 246-
247. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (org.). Códice Costa
Matoso: coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das minas na América que fez o doutor
Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro
de 1749, e vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e
Culturais, 1999. p. 50.
11 São os anos de 1701, 1704 duas vezes, e 1706 duas vezes.
dos Vasques.12 As relações sociais destes últimos evidenciam um dinamismo muito maior,
talvez explicado pelas maiores chances de estabelecerem clientelas na localidade e fora dela em
função de sua antiguidade na capitania.13
A família Correia Vasques, fixada na freguesia de Jacutinga desde, pelo menos, 1685
aparece em diversos registros como padrinhos e madrinhas de escravos, seja nas cerimômias
realizadas na igreja matriz de Jacutinga ou na capela da fazenda da Cachoeira, propriedade
da família. Em um registro Tomé Correia Vasques e sua mãe, D. Guiomar, participaram como
padrinho e madrinha do escravo Bartolomeu; em outros dois registros apadrinhou escravos
que não tiveram madrinha. Já a esposa de Tomé, D. Antonia, foi proprietária das madrinhas em
dois registros. Em outro João Correia de Sá foi padrinho de Inácio, escravo de seu tio o coronel
Salvador Correia de Sá. Pedro de Sousa Pereira, sobrinho de Martim, apadrinhou o escravo
Ricardo cujo proprietário desconhece-se. O próprio Martim (diferentemente do governador
titular, Artur de Sá) foi padrinho de três escravos da própria fazenda demonstrando, assim, a
grande proximidade que esta família adquiriu com seus escravos.
De outro lado, também encontramos uma única madrinha escrava de fora da fazenda
do marquês, que pertencia, mais uma vez, ao doutor Manoel Correia Vasques, ou seja: Manoel
frequentava os círculos sociais dos escravos de Artur de Sá e de seu sobrinho. A ligação entre
as famílias pode ser evidenciada, por exemplo, no casamento de Tomé Correia Vasques com
a filha de Garcia Rodrigues Paes (nomeado guarda-mor das minas por Artur de Sá), Antonia
Maria Tereza Pais, como já citamos. Não é demais lembrar que uma das jornadas do dito
caminho cortava seu engenho.14 Portanto, relações políticas, econômicas e sociais (religiosas)
estavam intrinsecamente relacionadas, e os escravos não estavam excluídos desse processo.
E mais: a presença de nomes de indivíduos pertencentes à família dos Azeredo Coutinho,
nos registros dos escravos do marquês, é sintomática, posto que, no final do século XVIII, a
chamada fazenda Marapicu se tornou um morgadio desta família, caracterizada pela presença
de religiosos, proprietários de terra e homens públicos ativos tanto na história do Brasil quanto
de Portugal.15 Manoel Pereira Ramos, patriarca desta família, se casou em 1721 com a filha de
Clemente Pereira de Azeredo Coutinho – senhor dos engenhos de Itaúna e Guaxindiba –, dona
Helena de Andrada Souto Maior Rendon.16 Foi o casal que doou as terras para a construção
da futura Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu em 1728, que foi elevada à
condição de paróquia em 1755, sendo que, logo depois, em 1759, foi criada a freguesia de
Marapicu, em terras desmembradas, portanto, de Jacutinga.17 É interessante, então, que Luiz
de Souza Coutinho, Antonio de Azeredo Coutinho, e d. Úrsula de Azeredo figurem, eles
próprios, como padrinhos/madrinha dos escravos dessa fazenda, pois isso demonstra que o
poder desta família na capitania se construiu pelas alianças com outros potentados locais e os
escravos.
E os cristãos-novos? Segundo Lina Gorenstein, na freguesia de Jacutinga (1657), havia
três senhores de engenho cristãos-novos: Diogo de Lucena Montarroyo, Bento de Lucenae
12 O mestre de campo Martim Correia Vasques, sua esposa d. Guimar de Brito, seus filhos Tomé,
Salvador e Manoel, netos e nora.
13 Para maiores detalhes da participação dos membros desta família no compadrio escravo, ver
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias..., op. cit., p. 123.
14 Cf. ANTONIL, André João. Cultura..., op. cit.
15 Ver FORTE, José Matoso Maia. Memória da fundação de Iguaçu. Rio de Janeiro: Typografia do
Jornal do Commercio, 1933; Araújo, José de Souza Azevedo Pizarro e. Visitas.., op. cit., p. 65.
16 Cf. PEIXOTO, Rui Afrânio. Imagens iguaçuanas. Nova Iguaçu: Tipografia do Colégio Afrânio
Peixoto, 1968. p. 84-85.
17 “Desmembrado da freguesia de Santo Antonio do Jacutinga o terreno, que faz o total desta freguesia,
foi nele ereta pelo povo a Igreja de Nossa Senhora da Conceição no ano de 1728, e em terras da
fazenda do cap. mor Manoel Pereira Ramos, e sua mulher dna. Elena de Andrade Souto Maior”
(ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Visitas..., op. cit. p. 65).
João Rodrigues do Vale.18 Este último foi padrinho de um escravo inocente de d. Catarina
Colaça em 1691. É o único registro em todo o livro; os Lucena não aparecem.
Irajá, segundo Vivaldo Coaracy, “parece ter sido preferida por muitos dos cristãos-
novos que no Rio de Janeiro se dedicaram a atividades agrícolas, tais como os Paredes e os
Ximenes”.19 Segundo Lina Goreinstein, eram senhores de engenho em Irajá: Rodrigo Mendes
de Paredes, Manuel Paredes da Costa, Agostinho de Paredes, José Correa Ximenes, Antonio
de Barros, Luis de Paredes, João Afonso de Oliveira e José Pacheco de Azevedo.20 Todos foram
identificados no livro de batismos de escravos da freguesia (1707-1711),21 contabilizando
José Correia Ximenes um registro; os Paredes, dezoito registros; Antonio de Barros, três; José
Pacheco de Azevedo, três; e João Afonso de Oliveira, sete registros.

Um personagem principal

Dados os limites deste artigo, optei pelo recorte de um personagem presente no livro de
batismos de escravos de Jacutinga (1686-1721)22 e no de Irajá (1707-1711): Manoel Correia
Vasques, filho do mestre de campo e governador interino, Martim Correia Vasques, e de dona
Guiomar de Brito, possuidor do engenho de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira, em
Jacutinga. Manoel e seus irmãos Tomé Correa Vasques, Martim Correa de Sá e Salvador Correa
de Sá foram denunciados ao Santo Ofício pelos irmãos Manoel e Matheus de Moura Fogaça,
e por Luiz Mendes, e acusados de práticas mosaicas, mas não foram presos.23 Os Vasques
seriam meio cristãos-novos por via materna e, mesmo tendo ascendência judaica, Manoel C.
Vasques frequentou a universidade de Coimbra e tornou-se juiz da alfândega da capitania do
Rio de Janeiro.24 Segundo alguns textos, a trajetória de Manoel não foi uma exceção.25
Vejamos alguns papéis desempenhados pelo doutor Manoel C. Vasques nos registros
de batismos.
Manoel batizou dois escravos adultos, um casal, Maria e Bento, em 27 de maio de 1706,
mesma data de batismo de três escravos de seu irmão, Salvador Correia de Sá, que figuram no
mesmo registro. Os padrinhos de Maria foram Geraldo de Araújo e Maria Correia, libertos.
Os padrinhos de Bento foram Antonio, escravo do próprio Manoel, e Lucrécia Correia. O
sobrenome das madrinhas sugere que podiam pertencer à família, prática comum aos Vasques.
Os sobrinhos de Manoel (filhos de Tomé Correia), dona Maria Tereza de Jesus e Martim
Correia Vasques (homônimo do avô, 1700-1729), foram padrinhos de escravos de Tomé por
duas vezes, em 1714 e 1715.
18 GOREINSTEIN, Lina. Os engenhos, os partidos, os negócios. In: ______. Heréticos e impuros. Rio
de Janeiro: Coleção Biblioteca carioca, 1995. p. 59-80. Disponível em: http://www.rumoatolerancia.
fflch.usp.br/node/838. Acesso em: 30/9/2010.
19 COARACY, Vivaldo. O Rio de Janeiro no século XVII. Rio de Janeiro: José Olympio. 1965. p.131.
20 GORENSTEIN, Lina. Heréticos..., op. cit., p. 4.
21 PINTO, Bartolomeu Homem d’El-Rei. Registro..., op. cit.
22 Cf. Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu. Livro de assento de batismo de escravos da freguesia
de Santo Antônio de Jacutinga. Nova Iguaçu: s.n., 1686 -1721.
23 Ver NOVINSKY, Anita. Gabinete de investigação: uma “caça aos judeus sem precedentes”. São Paulo:
Humanitas Editorial/Fapesp, 2007. p. 187. DINES, Alberto. Vínculos do fogo: Antonio José da Silva,
o judeu, e outras histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil. São Paulo: Conpanhia das Letras,
1992. p. 979-983.
24 Ver CALAÇA, Carlos Eduardo. A confissão como um dilema: cristãos-novos letrados do Rio de
Janeiro – século XVIII. Antíteses, v. 1, n. 2, jul.-dez. 2008.
25 GORENSTEIN, Lina. De anel no dedo: bacharéis sefaraditas no Rio de Janeiro (séculos XVII e
XVIII). Disponível em: http://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br/node/2280. Acesso em: 29 abr.
2011.
Sobre os escravos africanos levados ao batismo por essa família, chama atenção que, ao
contrário do que aponta a historiografia, os africanos dos Vasques não tiveram outros escravos
por padrinhos; quando isso ocorreu, tratava-se de escravos de outros proprietários. A prática
de apadrinhar africanos por outros escravos do mesmo proprietário seria para que os escravos
mais antigos ajudassem o recém-chegado a ambientar-se no cativeiro. O irmão de Manoel, o
capitão Salvador Correia de Sá, batizou quatro escravos minas adultos em um único registro
em 1708; eles tiveram Diogo de Paiva, liberto, como padrinho, e Maria, escrava de José de
Andrade, como madrinha.
Como contraponto, houve também o batismo de outros três adultos em 1706, os
quais foram apadrinhados pelo mesmo Diogo de Paiva, duas vezes, e por José Maciel da
Guarda uma vez; as madrinhas eram todas libertas, sendo Andreza Ribeiro atuante em dois
registros, e Lucrécia Correia (já citada anteriormente) no terceiro. É interessante que os quatro
escravos Minas tiveram por madrinha uma determinada escrava, enquanto os outros três, de
procedências não declaradas, tornaram-se afilhados de mulheres libertas.
Voltando a Manoel, em 1715, o próprio foi padrinho do escravo inocente Miguel,
pertencente a Manoel de Mariz de Brito. E na freguesia de Irajá, num registro datado de 1707,
Manuel foi nomeado pai de Inácio, filho de Izabel do gentio de Guiné, escravos do capitão
Cristóvão Lopes Leitão. Foi padrinho o padre André Moreira Nunes, e não houve madrinha.
Houve ainda um fato que envolveu Manuel Correia Vasques e sua cunhada, Antonia
Maria Tereza Pais, quando esta já se encontrava viúva de Tomé Correia Vasques. Manuel é
acusado por José Velho Barreto de sequestrar sua noiva, a dita Antonia, com quem devia
contrair segundas núpcias. A família Correia Vasques discordava de tal união, e a solução
encontrada fora invadir, com quarenta escravos armados, o engenho de Barreto e sequestrar
a noiva.26 O fato é elucidativo de como as alianças e negociações com os escravos eram
fundamentais para a reprodução e legitimação daquelas elites.
Há também os registros que informam a ligação entre os Vasques e, pelo menos,
outro cristão-novo. Em 1715, no batismo de Caetano, escravo inocente de João Rodrigues
Calassa, foram padrinhos e madrinhas dois escravos de Tomé Correia Vasques. Já em 1719, o
próprio João foi padrinho de dois escravos inocentes, pertencentes à então viúva de Tomé, d.
Antonia Maria; e em 1720, repetiu a ação, tornando-se padrinho de um escravo da fazenda
da Cachoeira, pertencente a Manoel Correia Vasques. A esposa de João, Felícia da Rocha,
também apadrinhou dois escravos de Tomé Correa junto com o marido. João Rodrigues
Calassa pertencia à freguesia de São Gonçalo (1647), onde tinha um engenho em Itaúna, com
escravos, fábrica e gado.27 Segundo Alberto Dines, Manoel aparece em inventários de cristãos-
novos como parceiro em seus negócios.28 Ainda em 1704, por ocasião do batismo de Luzia,
inocente, escrava de Artur de Sá e Menezes, serviu-lhe como padrinho Belchior de Almeida,
escravo do doutor Manoel Correia Vasques, o que demonstra que os Vasques circulavam entre
cristãos-novos e velhos e suas escravarias.
Esta trajetória em migalhas de Manoel Correia, visualizada pelos registros de batismos,
era menos incomum do que podemos supor de imediato. Estudos recentes vêm demonstrando
alianças entre elites locais e os escravos, alianças que compunham estratégias políticas e
econômicas que não eram exclusivas dos Vasques, nem de cristãos-novos, mas do grupo ao
qual pertenciam.29 Sob o ponto de vista religioso, Stuart Schwartz nos sugere, em recente
26 Ver FRAGOSO, João. A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo cabra José Batista: notas
sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa (séculos XVII e XVIII).
In: AZEVEDO, Cecília et al. (org.). Cultura política, memória e historiografia. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2009. p. 326.
27 Cf. GORENSTEIN, Lina. Heréticos..., op. cit.
28 Ver DINES, Alberto. Vínculos..., op. cit., p. 983.
29 Cf. FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza principal da terra do Rio
de Janeiro. In: ______; SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla (org). Conquistadores
trabalho, que as interações entre senhores cristãos-novos e seus escravos poderiam ser tomadas
como uma estratégia de proteção mútua contra denúncias ao Santo Ofício que poderiam
recair sobre ambos, fosse por judaísmo, ou por práticas religiosas gentílicas.30 A partir disso,
podemos refletir sobre uma possível tolerância desses senhores cristãos-novos com relação
aos seus escravos, o que poderia re-significar o acesso destes últimos aos sacramentos cristãos.
Por meio do que procuramos demonstrar, parece que as relações entre esses grupos pautavam-
se mais numa necessidade de sobrevivência, e como estratégia de vida, do que num isolamento
em grupos fechados.
Mediante exposto, procuramos demonstrar que, numa sociedade de Antigo Regime,
ainda que nada mudasse na vida dos escravos pelo fato de terem um compadre/padrinho
abastado, isso poderia marcar uma diferença dentro do próprio cativeiro, como já afirmou
Fragoso.31 Ainda que não tenhamos ideia de quais recursos materiais, de fato, esses escravos
conseguiam angariar pelas relações de compadrio que estabeleceram, é importante considerar
que, se, até então, as disputas entre escravos dentro das senzalas pareciam se resumir a
diferenças entre antigos e novos, ou seja, africanos e crioulos, este trabalho pretende acrescentar
outro elemento: o da distinção social alcançada por meio dos ritos católicos, que poderia
gerar coesão ou conflito. E, por outro lado, ao incorporar os escravos à sua família extensa, à
parentela, as elites coloniais diferenciavam-se ainda mais. Basta recordar que muitos escravos
serviam como braços armados de seus senhores.32
Nas palavras de Peter Burke, o apadrinhamento pode ser definido como um sistema
político fundamentado em relacionamentos pessoais entre indivíduos desiguais, entre líderes
(ou padrinhos) e seus seguidores (ou afilhados). Cada parte tem algo a oferecer à outra. Os
afilhados proporcionam apoio político aos padrinhos, bem como deferência, expressa em
várias formas simbólicas (gesto de submissão, linguagem respeitosa, presentes, entre outras
manifestações). Já os padrinhos oferecem hospitalidade, empregos e proteção aos afilhados.
É assim que conseguem transformar riqueza em poder.33 Moacir Rodrigo de Castro Maia,
mediante a história de libertos, escravos e forros em Vila do Carmo (MG), procura entender
como a sociedade colonial institucionalizou práticas ao transgredir a norma eclesiástica que
proibia a participação de pais como padrinhos dos próprios filhos. Além disso, analisa como
os vínculos entre compadres, padrinhos e afilhados produziram várias reciprocidades, e como
o apadrinhamento também se refletia em legados e bens deixados por aqueles que praticaram
o compadrio naquela povoação.34
e negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007. p 33-120. V. 1: América Lusa, séculos XVI a XVIII; Idem, A reforma..., op. cit., p 315-341; Idem.
Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e
compadre de João Soares, pardo: notas sobre uma hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro,
1700-60). In: ______; GOUVÊA, Maria de Fátima (org.). Na trama das redes: política e negócios
no Império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p 243-294; e
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias..., op. cit..
30 SCHWARTZ, Stuart B. Cada um na sua lei. Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico
ibérico. São Paulo: Companhia das Letras/Bauru: Edusc, 2009. p. 269-314.
31 Cf. FRAGOSO, João. Efigênia Angola, Francisca Munis forra parda, seus parceiros e senhores:
freguesias rurais do Rio de Janeiro, século XVIII. Uma contribuição metodológica para a história
colonial. Revista Topoi, v. 11, n. 21, p. 74-106, jul.-dez. 2010.
32 Ver MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. O braço armado do senhor: recursos e orientações
valorativas nas relações sociais escravistas em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. In:
PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira. (org.). Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas.
1. ed. São Paulo: Annablume, 2008, V. 1, p. 89-106.
33 Ver BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002. p. 104.
34 Cf. CASTRO MAIA, Moacir Rodrigo de. Tecer redes, proteger relações: portugueses e africanos na
vivência do compadrio (Minas Gerais, 1720-1750). Topoi, v. 11, n. 20, p. 36-54, jan.-jun. 2010.
Assim, a escravidão como um dos elementos constitutivos do Império português, para
além da dominação, cimentava relações de amizade, parentesco, clientela, e relações políticas
e econômicas deste e do outro lado do Atlântico, em Lisboa e na África. O que torna tais
relações dinâmicas é que elas se davam entre indivíduos de esferas sociais não só diferentes,
mas desiguais em termos de status, de recursos materiais e simbólicos, matizando ainda mais
as cores do Império deste mundo.

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