Resumo
Palavras-chave
Correspondência:
Suzana Feldens Schwertner
Rua João Telles, 306, apto. 415
90035-120 – Porto Alegre – RS
e-mail: suzifs@uol.com.br
Abstract
Keywords
Contact:
Suzana Feldens Schwertner
Rua João Telles, 306, apto. 415
90035-120 – Porto Alegre – RS
e-mail: suzifs@uol.com.br
A nosso ver, é sobre esses novos perso- As condições para que apareça um objeto de
nagens do discurso que o seriado Cidade dos discurso, as condições históricas para que dele
homens versa: os moradores da periferia, que se possa ‘dizer alguma coisa’ e para que dele
sobem o morro para reclamar ao seu ‘patrão’ a várias pessoas possam dizer coisas diferentes, as
falta de dinheiro para comprar remédio; as cri- condições para que ele se inscreva em um do-
anças pobres que fogem da luta entre policiais mínio de parentesco com outros objetos, para
e traficantes na favela; os jovens negros que que possa estabelecer com eles relações de se-
procuram, com muita luta, o primeiro emprego. melhança, de vizinhança, de afastamentos, de
No presente artigo, procuramos realizar diferença, de transformação – essas condições,
uma apresentação do material televisivo seleci- como se vê, são numerosas e importantes. Isto
onado para o estudo, mas não uma apresenta- significa que não se pode falar de qualquer coi-
ção qualquer: procuramos fazer emergirem as sa em qualquer época; não é fácil dizer alguma
condições de produção do programa Cidade coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar
dos homens . Seguindo os ensinamentos de atenção, ou tomar consciência, para que novos
Foucault (1996; 2002), procuramos não pela objetos logo se iluminem e na superfície do
origem ou causalidade dos acontecimentos, solo, lancem sua primeira claridade. Mas essa
mas pelas diversas maneiras por meio das quais dificuldade não é apenas negativa; não se deve
o produto pode ser visibilizado e tornado pú- associá-la a um obstáculo cujo poder seria, ex-
blico em nosso tempo. Apresento breves pon- clusivamente, de cegar, perturbar, impedir a des-
tuações a respeito do lançamento do programa coberta, mascarar a pureza da evidência ou a
nos respectivos anos de exibição: 2002, 2003 obstinação muda das próprias coisas; o objeto
e 2004. Finalizo pontuando a importância de não espera nos limbos a ordem que vai liberá-lo
uma pesquisa pelas condições de emergência e permitir-lhe que se encarne em uma visível e
em uma área de estudos que procura relacio- loquaz objetividade; ele não preexiste a si mes-
nar Comunicação e Educação. mo, retido por algum obstáculo aos primeiros
Julgo importante também problematizar a contornos da luz, mas existe sob as condições
televisão não apenas como mero lugar de entre- positivas de um feixe complexo de relações.
tenimento, mas também como locus educativo; (Foucault, 2002, p. 51)
não apenas um lugar produtor de programas de
baixa qualidade, mesquinharias, alienação, mas Em seu livro, A arqueologia do saber ,
como espaço de transgressão. Pergunto-me Michel Foucault (2002) apresenta-nos uma
acerca das contundentes críticas em relação à nova forma de interrogar os fatos da história
televisão: seria ela que nos persegue, aniquilan- das ciências, mais precisamente das ciências
do qualquer experiência, anulando o pensa- ditas ‘humanas’. No polêmico livro – considera-
mento crítico, impossibilitando a reflexão ou do por seus comentadores Dreyfuss e Rabinow
seríamos nós os perseguidores da televisão, a como um texto árido, de maior complexidade e
Além disso, é preciso considerar a força O importante aqui é acentuar que todas essas
que os movimentos sociais vêm conquistando na questões em torno do tratamento das diferenças
sociedade brasileira, especialmente os de minorias estão também relacionadas a modos de repre-
que lutam por igualdade de direitos, como os sentação, de enunciação, a formas de interpre-
trabalhadores rurais, os negros, os portadores de tação e de comunicação. Ou seja, há uma
deficiência física, as mulheres, o movimento GLS imensa responsabilidade dos meios de comunica-
(gays, lésbicas e simpatizantes). Além do mais, ção, particularmente da TV, [...] no que se refe-
movimentos reconhecidamente políticos, iniciados re aos modos de nomear os diferentes. (p. 42)
há longos anos, marcados pela contestação e que
lutam por uma democracia mais justa, também Aqui se fala também sobre modos de
começam agora a fazer parte da esfera televisiva. narrar, modos de mostrar e encerrar visibilida-
Conforme Bucci (2004), para se adquirir status de des desses excluídos. Há que se considerar a
cidadania em nosso país, torna-se necessária a forma como a televisão incorpora o discurso
visibilidade através das telas da TV. Segundo o dos diferentes e o transforma – quase como se
autor, a lei da era audiovisual – essa mesma em adequasse esse discurso à linguagem da televi-
que vivemos – dita que tudo aquilo que não são, uma espécie de ‘domesticação’ – para ser
aparece na TV não acontece de fato: “A visibili- devolvido ao público telespectador. E, muitas
dade social foi ficando tão amarrada à tela da TV vezes, essa devolução acontece sob a roupa-
que, para ganhar o estatuto de realidade, as coi- gem mercadológica. Um exemplo importante
sas precisam aparecer na TV” (p. 228). E cita sobre a apropriação mercadológica das mino-
como exemplo a divulgação do Movimento dos rias pode ser aqui apresentado: em uma nota de
Trabalhadores Rurais Sem Terra na novela O rei de produção da agência publicitária enviada à
gado, exibida pela Rede Globo em 1996. O mo- equipe produtora responsável pela filmagem de
vimento negro – muito longe de ser composto um comercial do McDonald´s, notamos a insis-
por uma minoria no Brasil – também ganha es- tência em incluir alguns ‘diferentes’ na propa-
paço ao ser discutida uma gama de questões re- ganda – exigência étnica dos nossos tempos, o
lacionadas à política de cotas em universidades e politicamente correto. Eis um trecho escrito do
em concursos e cargos públicos. Como a televi- memorando em questão, encontrado no livro
são está atenta a esses movimentos sociais e de de Isleide Fontenelle (2002):
que forma procura mostrar e tratar essas mobili-
zações? Como elas são transpostas para esse meio Vinhetas de realismo. [...] Não queremos jovens
de veiculação? com aspecto ‘largado’ mas também não quere-
Assim como não podemos deixar de re- mos jovens com cara de bebê. Eles devem pare-
conhecer a legitimação de tais movimentos cer maduros, inteligentes e com personalidade.
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Recebido em 17.01.06
Aprovado em 22.05.06
Suzana Feldens Schwertner é psicóloga, mestre em Educação (PPGEDU/UFRGS), membro do NEMES (Núcleo de Estudos
sobre Mídia, Educação e Subjetividade, ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS) e membro do corpo
clínico do GAEPSI (Grupo de Atendimento e Estudos em Psicoterapia).