Anda di halaman 1dari 15

Revista Crítica de Ciências Sociais

85 | 2009
Número não temático

Shapin, Steven, The Scientific Life: A Moral History of


a Late Modern Vocation
Hugo Pinto

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/rccs/521
ISSN: 2182-7435

Editora
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa
Data de publição: 1 Junho 2009
Paginação: 176-182
ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica
Hugo Pinto, « Shapin, Steven, The Scientific Life: A Moral History of a Late Modern Vocation », Revista
Crítica de Ciências Sociais [Online], 85 | 2009, colocado online no dia 01 outubro 2012, criado a 01 maio
2019. URL : http://journals.openedition.org/rccs/521
Revista Crítica de Ciências Sociais, 85, Junho 2009: 169-182

Recensões

Barthe, Yannick (200), Le pouvoir d’indécision. La mise en politique des


déchets nucléaires. Paris: Éditions Economica, 23 pp.

Yannick Barthe introduz-nos de imediato acompanhou a indústria atómica desde os


no centro da problemática do livro ao abrir seus primeiros passos; no entanto, os de-
com a afirmação de que os resíduos nuclea- bates e as controvérsias – que, em França,
res são, para além de tudo quanto represen- atingem o seu ponto mais alto no final dos
tam, um problema político – qualificação anos 80 – aparecem no rescaldo da batalha,
que deriva do facto de serem objecto de um ou seja, depois de estarem já definidas as
tratamento particular por parte das autori- grandes orientações neste domínio. Os
dades públicas. A interrogação de partida conflitos irão, por isso, cristalizar-se em
que o autor coloca é, pois, a de saber de torno de uma solução técnica, o armaze-
que forma um “facto” puramente técnico namento geológico, para a qual não pare-
e científico, a gestão dos resíduos nuclea- cem existir alternativas. É nesta medida
res, adquiriu o estatuto de um problema que, para Y. Barthe, a noção que melhor
societal que exige uma solução de ordem caracterizaria as controvérsias que ocorrem
política. Ao impor-se como objecto de uma num terreno já balizado, no qual abundam
acção política, esta questão revela de modo as irreversibilidades e são reduzidas ou
eloquente que, ao contrário do esperado, nulas as soluções negociáveis, seria a de
os progressos científicos e tecnológicos não controvérsias pós-tecnológicas.
ditaram a morte do político, tendo antes A questão de partida complexifica-se e
contribuído para a sua extensão. ganha em abrangência: quando se ques-
O campo do nuclear é um campo parti- tiona o modo como as irreversibilidades
cular. Em primeiro lugar, porque, para técnicas podem ser objecto de uma apreen-
muitos, é a ilustração quase perfeita de um são política o que se questiona é a capaci-
tipo de relação entre saber técnico e poder dade dos poderes públicos para captura-
político própria do modelo tecnocrático, de rem e reformularem, nos seus próprios
que fala J. Habermas, no qual os constran- termos, determinados desafios, para im-
gimentos objectivos avançados pelos espe- plementarem, orientarem ou reorientarem
cialistas se impõem em detrimento do o curso de determinadas políticas, para
poder de decisão dos responsáveis políti- agirem e introduzirem mudanças. Os con-
cos. Os resíduos nucleares são, para reto- flitos suscitados pelos resíduos nucleares
mar a expressão de V. Gunter e S. Kroll- constituem, neste sentido, verdadeiros de-
-Smith, factos “em bruto” que exigem uma safios para os dirigentes políticos, que se
solução de ordem técnica. No final dos vêem na obrigação de tomar decisões, de
anos 80, essa solução estabiliza-se, ficando agir e de introduzir mudanças que se en-
o leque de soluções limitado a uma irrever- contram, à partida, comprometidas pela
sibilidade técnica: o armazenamento geo- ausência de alternativas no plano técnico.
lógico. Em segundo lugar, porque é um Colocada desta forma, a história da politi-
campo que não se situa no mesmo plano zação dos resíduos nucleares parece desem-
dos novos riscos e das controvérsias tecno- bocar num impasse. Desde logo, de que
lógicas. A questão dos resíduos nucleares forma esta questão pode ser efectivamente
10 | Recensões

capturada pelas instâncias políticas? Mesmo modo, uma política de despolitização (dé-
se capturada por estas instâncias, de que politisation): tem por efeito excluir deter-
forma pode ser apresentada como exigindo minadas decisões do domínio do contin-
decisões políticas quando a sua resolução gente para as inscrever no domínio da
assume os contornos de uma irreversibili- necessidade atemporal. Para que um pro-
dade técnica? Y. Barthe resolve este im- jecto, como o armazenamento geológico
passe pelo recurso a uma focalização da dos resíduos nucleares, por exemplo, atinja
análise em dois processos – o processo de a qualidade de irreversível, necessita de um
irreversibilização (irréversibilisation) e de trabalho contínuo de robustecimento da
reversibilização (réversibilisation) – empi- irreversibilidade, que, quando adquirida,
ricamente inteligíveis na questão da gestão o dota de uma força de inércia e torna re-
dos resíduos nucleares a partir do desen- sistente a qualquer investida ou desafios
rolar da sua trajectória histórica e dos acto- que se lhe possam vir a colocar.
res que a acompanham. O processo de Não podendo um projecto ser objecto de
irreversibilização permite explicar o modo contestação e de revisão, é a própria con-
como uma solução técnica adquire, aos testação que deve ser objecto de revisão.
olhos de determinados actores, o carácter Assim, no final dos anos 80, com a subida
de irreversível. Subjacente a este processo de escalada dos conflitos em torno da irre-
encontra-se a hipótese de que, no caso dos versibilidade do armazenamento geológico
resíduos nucleares, foi precisamente o dos resíduos, o importante já não é prote-
processo de irreversibilização da solução ger o ambiente dos resíduos nucleares
técnica que abriu caminho para uma qua- através de uma solução técnica, mas pro-
lificação da questão como política, tor- teger essa solução técnica do seu ambiente.
nando possível a sua apreensão por instân- Compreende-se, deste modo, o modo
cias políticas, ao invés de exclusivamente como a irreversibilidade pode constituir
técnico-científicas. O segundo processo um recurso político poderoso: a irreversi-
assenta, pois, no pressuposto de que os bilidade determina o quadro dos proble-
efeitos de transformação introduzidos pela mas a tratar e estabelece uma fronteira
politização dos resíduos nucleares pode entre o que é e o que não é problemático,
desencadear um processo, inverso ao pri- entre o que deve ser ou que não pode ser
meiro, de reversibilização de uma questão. objecto de tratamento político.
O problema da gestão dos resíduos nuclea- Se o processo de irreversibilização procura
res é abordado numa perspectiva histórica. pôr termo à carreira de um problema, o
Os dois processos descritos acima reen- processo de reversibilização, pelo contrário,
viam para duas temporalidades distintas procura reavivá-lo. De que forma? Pro-
da questão do tratamento dos resíduos curando retrospectivamente soluções que
nucleares em França, cada um deles dese- foram, então, afastadas, para alargar o le-
nhando os contornos de uma política par- que dos possíveis e ampliar as margens de
ticular. Até ao final dos anos 80, o pro- negociação. O processo de reversibilização
blema dos resíduos nucleares é marcado é, em suma, um processo de interrupção
pelo processo de irreversibilização. O que da fatalidade que procura arrancar deter-
não pode ser objecto de discussão escapa minados projectos ou decisões à irreversi-
ao debate público e à deliberação política, bilidade. No caso dos resíduos nucleares,
que pressupõe a possibilidade de revisões o que a dado momento foi considerado
e a existência de alternativas. Uma política como apartado da questão – a aceitação
que procura a irreversibilidade é, deste social do armazenamento geológico – é
Recensões | 11

reintroduzido no processo decisório, e o que permitiram que se impusessem como


que era dado como não problemático – a irreversíveis. É esta leitura retrospectiva
solução técnica – torna-se novamente que pode desencadear o processo de rever-
objecto de discussão. No contexto francês, sibilização.
a Lei 91-1381, de 30 de Dezembro de 1991, Finalmente, resta descrever em que con-
relativa às pesquisas sobre gestão dos resí- siste exactamente o poder de indecisão que
duos radioactivos, ao resultar numa aber- dá título ao livro. Quando o trabalho polí-
tura do horizonte dos possíveis, irá ser tico tem por principal objectivo reconsti-
fundamental, enquanto indecisão, para o tuir um espaço de escolhas onde só exis-
processo de reversibilização da política de tiam irreversibilidades, pode assumir a
gestão dos resíduos nucleares. Mais adiante forma de uma tomada de indecisão. A to-
tornar-se-á mais claro em que consiste pre- mada de indecisão não equivale à ausência
cisamente este poder de indecisão. de decisão, que reenvia para uma atitude
O processo de reversibilização procede, passiva, antes tem por efeito transformar
assim, por etapas. Pressupõe, num pri- a situação. No caso dos resíduos nucleares,
meiro tempo, uma distinção entre respon- a Lei 91-1381 traduziu-se na revogação das
sáveis políticos e produtores de soluções decisões assumidas anteriormente, entre as
técnicas, o que reduz o papel dos últimos quais a irreversibilidade do armazena-
ao de consultores (e não de decisores) e mento geológico, e no relançamento da
abre espaço para a afirmação da autonomia investigação, abrindo, deste modo, o leque
dos primeiros. E, num segundo, uma aber- de possibilidades anteriormente dado como
tura da rede institucional que passa pela encerrado. A indecisão salvaguarda, pois,
mobilização de novos actores que podem a possibilidade futura de decidir. O autor
ir dos eleitos locais às associações, pas- subverte um dos adquiridos comummente
sando pelos próprios especialistas. aceites em matéria de riscos colectivos,
Para explicar os pontos que unem os pro- segundo o qual o grande problema deriva-
cessos de irreversibilização e de reversibi- ria da dificuldade em tomar decisões hard
lização, Y. Barthe insiste no argumento de assentes em conhecimentos soft. O que o
que o primeiro pode, a dado momento, acompanhamento dos actores e da trajec-
autosubverter-se e desencadear o segundo. tória do problema dos resíduos nucleares
Um e outro processo podem, deste modo, revela é uma situação inversa, ou seja, que
ser apreendidos como dinâmicas endó- a dificuldade deriva em fazer prova de in-
genas a um dado problema ou decisão. decisão, introduzindo maleabilidade nas
A força de um determinado projecto ou de decisões que a história se encarregou de
uma decisão constitui a sua principal fra- endurecer.
queza, na medida em que é o próprio défice A indecisão necessita de um poder, o de
de flexibilidade que reduz as suas capaci- tornar reversível o irreversível, mas é igual-
dades e possibilidades de adaptação aos mente um modo de exercício do poder.
desafios que se lhes colocam. Os conflitos Foi, de facto, precisamente a necessidade
emergentes, na medida em que não podem de tratar um problema considerado ante-
ser exteriorizados e tratados como proble- riormente como residual, a aceitação social
mas autónomos, podem produzir um efeito do armazenamento geológico, que levou
de retorno cujo resultado não se pautará os decisores políticos a inscreverem-se
apenas pelo questionamento do projecto numa lógica de reversibilização.
ou da decisão em si, mas principalmente O que se pode esperar, pois, de uma
por um exame retrospectivo das condições postura de indecisão do ponto de vista da
12 | Recensões

resolução de conflitos? É verdade que a implicações do poder de indecisão. Se-


indecisão, ao reportar no tempo uma deci- gundo ele, estaremos talvez a assistir à
são “definitiva”, é susceptível de constituir emergência de um novo modo de gover-
um recurso estratégico para que, paulati- nação dos desafios de carácter científico e
namente, os poderes públicos consolidem tecnológico fundado na experimentação e
uma irreversibilidade já decidida. No en- em procedimentos abertos à reversibilidade
tanto, o processo decisório por indecisão e à autocorrecção. A generalização deste tipo
introduz igualmente transformações que de procedimento significaria que a gestão
se traduzem na reavaliação da posição de dos problemas e dos conflitos associados
determinados actores, na mobilização ao desenvolvimento científico e tecnoló-
de associações ou grupos, na legitimação gico passariam a ser marcados por soluções
de determinadas reivindicações e na disse- assentes em compromissos provisórios e,
minação de novas opções de pesquisa. Por consequentemente, reversíveis. A ser este
essa via, é a própria possibilidade de en- o caso, então sim, seria possível afirmar que
cerramento definitivo de um dado pro- as ciências e tecnologias fizeram finalmente
cesso que se adia. a sua entrada na democracia.
Em que é que isso constitui uma vantagem?
Y. Barthe finaliza com uma nota sobre as Pedro Araújo

Gatti, Gabriel (200), El detenido-desaparecido. Narrativas posibles para


una catástrofe de la identidad. Montevideo: Trilce, 1 pp.

Em primeiro lugar convém advertir o leitor tor considera que têm surgido duas narra-
de que o livro de Gabriel Gatti, professor tivas que, em grande medida, coincidem
de teoria sociológica na Universidade do com diferentes gerações e suas experiências
País Basco e coordenador do Centro de nesse espaço: a narrativa que tenta reparar
Estudos sobre a Identidade Colectiva, não o sentido que foi destruído pela catástrofe,
aborda as temáticas da memória e da luta e aquela que abandona essa ideia e é cons-
política pela justiça na Argentina e Uru- truída partindo do sem sentido.
guai, apesar destes aspectos se encontra- Este livro apresenta-se como atípico do
rem presentes na obra. Neste sentido, o ponto de vista narrativo e esta é uma das
texto afasta-se dos temas e perspectivas suas principais virtudes, porque consegue
dominantes em relação à questão do terror realçar o seu imenso potencial teórico e
de Estado no Cone Sul latino-americano. analítico. Por um lado, desconstrói a cen-
O objecto de estudo deste livro é a identi- tralidade do autor e, por outro, interrela-
dade, um tipo de identidade individual e ciona de forma sugestiva o académico com
colectiva produto da modernidade. Mais o emocional. Estamos perante um livro que
concretamente, e olhando os efeitos do tem muito de retrato geracional daqueles
desaparecimento forçado de pessoas ao seu que, falando a partir de um lugar denso, o
redor, Gatti analisa a catástrofe que o de- campo do detido-desaparecido, renunciam
tido-desaparecido produz sobre essa iden- ao heroísmo para dar conta da possibili-
tidade e as narrativas que a sustentam, dade de viver nesse espaço e construir uma
procurando assim responder à seguinte identidade. O Gabriel Gatti sociólogo e
pergunta: que narrativas possíveis surgem investigador e o Gatti familiar de desapa-
no espaço do detido-desaparecido? O au- recido (filho de, irmão de…), depositário
Recensões | 13

das memórias duma geração, estão sempre considerado como o primeiro “desapa-
em tensão e obrigam-no com frequência a recido”: o Estado passou da acção sobre
passar de entrevistador a entrevistado. Tal- “o Índio e o deserto” à actuação sobre
vez seja precisamente dessa tensão que “o subversivo e a subversão”. O autor
surge uma narrativa e uma forma de fazer adverte que o projecto dos jardineiros da
sociologia (“uma sociologia a partir do es- biopolítica desenvolvido na América La-
tômago”) que oferece ao leitor a oportuni- tina foi levado à “perfeição” no Cone
dade de seguir o percurso do autor no Sul pela via da conquista e destruição das
processo da sua investigação mediante cidades e populações indígenas, enquanto
numerosas notas do seu diário de campo noutros contextos, como por exemplo
que se encontram inseridas em caixas des- na região andina, a sua história contem-
tacadas, muitas das quais denotando essa porânea não pode ser contada sem a “tra-
tensão omnipresente entre o académico e dição pré-colonial”. Neste ponto seria
o emocional. Trata-se de uma narrativa que talvez mais apropriado falarmos de perma-
promove a polifonia através de quatro tex- nência das culturas “originárias” nas for-
tos breves de diferentes autorias inseridos mas contemporâneas e, portanto, da coe-
ao longo do livro, que dialogam com o xistência de diversas formas de pensar (ou
autor apresentando outros pontos de vista não) o indivíduo.
a partir desse campo do detido-desapare- Seguindo estas premissas, o autor estabe-
cido e fora dele. lece o que denomina como o paradoxo do
Os dois primeiros capítulos do livro cons- detido-desaparecido (que, no entanto, é
tituem o seu esqueleto teórico. O primeiro enunciado apenas no final do quinto capí-
é dedicado ao conceito de catástrofe en- tulo), segundo o qual o detido-desapare-
quanto factor analítico dos efeitos do desa- cido faz parte de um tipo de gestão de
parecimento forçado; o segundo descreve populações própria da ordem civilizadora
a devastação do binómio identidade/lin- moderna, sendo o desaparecimento for-
guagem promovida pelo Estado moderno çado aplicado aos produtos mais acabados
no contexto do Cone Sul latino-americano. desta ordem: o indivíduo moderno/racio-
Partindo do trabalho de diversos autores, nal foi despedaçado – o desaparecido
como Giorgio Agamben e Zygmunt Bau- “deixa” um nome sem um corpo – sendo
man, que reflectem sobre as relações entre portanto aniquilado. Encontramo-nos
Estado, política e ordem social na lógica perante uma proposta teórica vigorosa, que
moderna, e mais concretamente sobre as convida a uma análise comparada com
formas de entender o Holocausto nessa outros contextos latino-americanos. Quais
lógica, assim como da análise de Norbert as consequências deste quadro na análise
Elias sobre o processo de construção (civi- dos processos de conflito armado ocorri-
lização) do indivíduo moderno, Gatti es- dos nas últimas décadas em países como o
tabelece que para os contextos argentino Peru e a Guatemala, onde as comunidades
e uruguaio, o detido-desaparecido se en- rurais e as populações indígenas foram as
contra ligado à forma peculiar como foi mais afectadas? Mesmo correndo o risco
historicamente construída a identidade de generalizar, podemos notar que a polí-
nesses territórios: através da aplicação tica de arrasamento aplicada pelas Forças
obsessiva do projecto moderno que tem no Armadas peruana e guatemalteca teve
Estado jardineiro o seu executor principal. como objectivo o aniquilamento do índio
À luz deste processo histórico, Gatti ex- subversivo, que nos casos argentino e uru-
plora a ideia de que o indígena poderia ser guaio não corresponde a uma, mas a duas
14 | Recensões

figuras que “pertencem” a momentos his- trimonialização encarnada nos arquivos e


tóricos distintos. Assim, poderíamos con- registos onde os cidadãos tentam recuperar
siderar que, na política do Estado “jardi- a identidade do desaparecido e a sua pró-
neiro” peruano e guatemalteco, como no pria, restaurando o que foi destroçado, e
Cone Sul, o desaparecimento é, em grande superando o trauma.
medida, uma continuação da política de Contudo, é nas narrativas surgidas em
arrasamento de raiz colonial e republicana, torno das famílias de crianças desapareci-
mas que nos primeiros casos o indivíduo das/apropriadas – algumas das quais são já
racional moderno, o cidadão, não substi- adultos recuperados – que o autor percebe
tuiu o índio. Para além das diferenças nos os efeitos mais conservadores dos “militan-
processos de violência mencionados em tes do sentido”, na sua ênfase a um retorno
relação aos acontecimentos no Cone Sul, a visões essencialistas e deterministas da iden-
consideramos que, mais do que na parti- tidade (i.e. a equação Identidade = ADN).
cularidade do terror de Estado na Argentina Obviamente que, partindo de determina-
e Uruguai, devido ao modo peculiar como das perspectivas da sociologia e da antro-
se constituiu a identidade nesses contextos pologia da identidade, como Elixabete
– sendo que Gatti sublinha este último as- Imaz reflecte no texto inserido neste capí-
pecto de uma forma talvez excessiva –, é tulo, não é fácil aceitar a consideração do
nos efeitos e modos diferentes de viver vínculo que a genética consegue demons-
(e narrar) esse espaço do detido-desapare- trar, e que foi destruído pela apropriação
cido que se encontram os elementos mais de crianças, como a essência duma identi-
frutíferos para a análise comparada entre dade que deve ser restaurada. Para os so-
contextos latino-americanos. Retornarei a ciólogos, é difícil pensar a partir duma
esta questão mais adiante. identidade originária que foi suplantada e
Os quatro capítulos seguintes do livro são deve ser recuperada. No entanto, o que
consagrados aos efeitos produzidos pela parece perturbar mais o autor não é tanto
catástrofe do desaparecimento forçado na o essencialismo destas narrativas da iden-
identidade e na linguagem. Os capítulos tidade, mas a sua obsessão em reequilibrar
terceiro e quarto dedicam-se à análise das aquilo que foi abruptamente desestabili-
narrativas do sentido, aquelas que tratam de zado porque, de certo modo, correspon-
reparar e reequilibrar a catástrofe. A pos- dem a formas de obliteração da catástrofe
tura do autor em relação a estas narrativas produzida pelo desaparecimento.
é arriscada, inclusive irreverente, e para O que Gatti demonstra é a forma como,
muitos leitores pode mesmo resultar in- perante um desaparecimento forçado, o
justa. Vejamos: as tentativas de dar sentido imaginário moderno da identidade (indi-
à catástrofe, pergunta-se Gatti, não serão vidual e colectiva), com os seus contornos
formas de desvirtuá-la? Isto é, não estarão fixos, duráveis, depurados, é desdobrado
a dotar o desaparecido de uma identidade, e reforçado. Podemos voltar a discutir as
de uma realidade que não tem, sendo que diferenças e semelhanças com outros con-
é precisamente essa carência (o sem sen- textos. Relembro aqui que muitos dos
tido) a característica principal desse espaço cientistas sociais que trabalharam no pro-
e dessa figura? Partindo desta perspectiva, cesso da Comissão da Verdade e da Recon-
o capítulo terceiro centra-se na institucio- ciliação peruana recorreram frequente-
nalização da memória e, portanto, do pró- mente ao exemplo argentino para denunciar
prio campo do detido-desaparecido através o facto de as mães peruanas que reclama-
da burocracia, da profissionalização e pa- vam ao Estado o desaparecimento dos seus
Recensões | 15

filhos serem mulheres camponesas, analfa- confortável nestas narrativas – que são a
betas, com um conhecimento rudimentar sua própria – porque se afastam da épica
ou inexistente do castelhano – em oposição política e porque, partindo da “experiência
às mães da Praça de Maio, brancas, urba- normalizada” que faz do vazio um lugar,
nas, letradas – como um aspecto funda- provocam a reflexividade em torno da im-
mental da negação pelo Estado, pela justiça possibilidade de reequilibrar a catástrofe.
e por parte da sociedade peruana destas Estas narrativas facilitam a auto-paródia,
práticas sistemáticas de violência. Certa- a piada e, simultaneamente, uma represen-
mente, por excesso ou por defeito, quando tação, quiçá mais crua, da catástrofe. Des-
se trata de reivindicar ao Estado a repara- tacamos a análise que Gatti faz das obras
ção do que foi perpetrado a partir do seu e discursos de vários artistas, como o fotó-
interior, o imaginário e os dispositivos mo- grafo Gustavo Germano e a cineasta Al-
dernos desdobram-se. Apesar de, em con- bertina Carri. As fotografias de Germano
textos como o peruano, podermos consi- retratam a ausência, mas não tentam pre-
derar que o terror de Estado não foi enchê-la nem imaginar como que seria o
exercido – tal como é enunciado no para- presente sem essas ausências. Contras-
doxo do detido-desaparecido – da forma tando com os discursos que tentam resta-
mais brutal sobre os seus produtos “mais belecer a temporalidade interrompida pelo
acabados”, a sua lógica de acção foi similar desaparecimento e recompor a cadeia da
e muitas das narrativas possíveis aí surgidas linhagem, estas narrativas não procuram
são idênticas às que acontecem no Cone esse reequilíbrio. Por outro lado, no filme
Sul, porque se encontram centradas no Los Rubios, Albertina Carri mostra a re-
binómio Estado/cidadão. Contudo, exis- construção da história da sua família atra-
tem duas distinções fundamentais. Por um vés dos testemunhos daqueles que conhe-
lado, no Cone Sul, o propósito dessas nar- ceram os seus pais e os companheiros de
rativas do sentido é restituir ao indivíduo militância. No entanto, ela não pretendia
a sua condição cidadã, enquanto noutros retratar essa história, mas a sua própria,
contextos se trata de tentativas de “produ- que não é mais do que uma “convivência
ção” de cidadania em territórios e para com a ausência”, como a de tantos outros
populações que só de forma precária foram da sua geração, reflectindo assim também
considerados como tal. Por outro lado, a sobre a distância e a incompreensão que
institucionalização das narrativas do sen- esta postura teve para muitos.
tido no Cone Sul, mais concretamente na Para aqueles que estejam familiarizados
Argentina, foi possível porque o Estado com o trabalho teórico de Gatti sobre a
assumiu como próprio o discurso dos fa- identidade colectiva, será fácil perceber
miliares dos desaparecidos, “depurado” neste contexto as ligações com a análise do
pela doutrina dos Direitos Humanos. Esta que tem denominado como “identidades
espécie de consenso não tem acontecido débeis” (Identidades Débiles. Una pro-
noutros contextos latino-americanos. puesta teórica aplicada al estudio de la iden-
Os últimos dois capítulos do livro são de- tidad en el País Vasco, Madrid: CIS, 2007).
dicados às narrativas que, ao contrário das Estarão estas narrativas do sem sentido a
anteriores, não buscam o equilíbrio. São ser construídas a partir de identidades dé-
narrativas que constroem identidade par- beis? De acordo com o que Gatti nos
tindo do sem sentido que se produz ao aponta assim é: são narrativas onde não se
habitar a catástrofe do campo do detido- pretende equilibrar as três componentes
-desaparecido. Gabriel Gatti está mais constitutivas das identidades (fortes) mo-
1 | Recensões

dernas – o nome (próprio e único), o ter- Estamos perante um livro teórica e anali-
ritório (fechado e claro) e a história (com ticamente denso, estimulante, importante
uma origem unívoca) –, mas antes viver e para aqueles que pretendam compreender
construir a identidade na precariedade dos a partir doutro ângulo o terror de Estado,
vínculos entre estes três aspectos. Contudo, para além das questões da memória e da
será que dependem da institucionalização chamada justiça transicional. Trata-se de
do campo do detido-desaparecido promo- um livro ousado relativamente a certas
vido pelas narrativas do sentido, mais con- narrativas e abordagens sobre esta temática
servadoras, mais “modernas”, mas neces- imersas num discurso previsível demais, que
sárias? Percebe-se na despedida irritada o autor considera menos capazes para dar
com a qual finaliza o livro que Gatti res- conta doutras experiências. Porque Gabriel
ponde afirmativamente a esta última ques- Gatti nunca abandona a perspectiva a par-
tão. Nessas derradeiras páginas Gatti dá tir da qual escreve, essa “sociologia a partir
conta do seu desconforto com o que con- do estômago” é uma forma de fazer socio-
sidera “o sigilo uruguaio”, isto é, com o logia que converte este livro numa obra
facto da realidade do detido-desaparecido emotiva, que se alimenta da necessidade
não estar ainda assumida nesse país e, em que muitos dos que habitam no espaço de
consequência, não serem assumidas as di- detido-desaparecido sentiram – como des-
mensões da acção do Estado uruguaio. Por creve Daniel Gatti no seu texto inserido na
outro lado, o “excesso argentino”, apesar introdução – de rebelar-se contra o estado
dos seus efeitos conservadores, patrimo- transitivo de vítima, e contra os emble-
nializantes, estatocêntricos – ou mais pre- mas e militâncias que “deviam” carregar.
cisamente devido a eles –, é um tom justo
para o autor. Silvia Rodríguez Maeso

Shapin, Steven (200), The Scientiic Life: A Moral History of a Late Modern
Vocation. Chicago e Londres: The University of Chicago Press, 4 pp.

O que é a vida científica, que tipo de pes- melhante nas virtudes pessoais. The Scien-
soa é o cientista e que virtudes e capacida- tific Life pode ser sintetizado com recurso
des mobiliza para aumentar o seu poder ao comentário de David Edgerton, autor
financeiro e de influência, são algumas de The Shock of the Old, apresentado na
perguntas a que Steven Shapin, Professor capa do livro: os mundos da tecnociência
de História da Ciência na Universidade de actual, onde assumem nova importância o
Harvard, tenta responder no seu mais re- capital de risco, a investigação aplicada ou
cente livro, intitulado The Scientific Life: as relações universidade-empresa, não são
A Moral History of a Late Modern Vocation. as antíteses sem alma, excessivas em rotinas
Os cientistas são especialistas respeitados, e em burocracias, do ideal científico aca-
legitimados, a quem é confiada a tarefa de démico – eles contêm em si facetas ade-
analisar e a compreender os fenómenos da quadas a um contexto de incerteza em que
realidade natural e social. A visão actual é a inovação é essencial. Shapin acaba por
que os cientistas não são nem melhores afastar-se, deste modo, quer da visão ro-
nem piores que ninguém e que o aumento mântica da ciência (que defende as virtudes
das competências técnicas não é obrigato- “naturais” e o carácter transcendente do
riamente acompanhado por aumento se- cientista), quer da desilusão na ciência
Recensões | 1

(quando esta é vista como um meio de Os segundo e terceiro capítulos tratam de


apropriação de riqueza e de benefícios iluminar a transformação cultural e social
próprios, em que o cientista é apenas mais da ciência enquanto vocação para a ciência
um trabalhador como todos os outros, com como emprego, em muitos casos uma tran-
os seus interesses egoístas), criando um sição incompleta. O capítulo 2, “From
meio-termo em que os valores continuam Calling to Job: Nature, Truth, Method, and
tão (ou mais) presentes agora do que al- Vocation. From the Seventeenth to the
guma vez estiveram. Nineteenth Centuries”, traça o percurso
O livro organiza-se em torno de oito capí- desde as concepções de filósofo da natu-
tulos que tentam percorrer de forma cro- reza, enquanto chamamento de aproxi-
nológica os mundos da ciência e da tecno- mação a Deus (o conhecedor ligava-se à
logia desde a Inglaterra do século XVII aos própria característica do objecto do conhe-
EUA do século XXI. cimento, fruto de criação divina), até ao
O primeiro capítulo, “Knowledge and Vir- período de recusa de qualquer superiori-
tue: The Way We Live Now”, introduz o dade moral ao cientista. Na análise da pró-
tema e apresenta as diferentes componen- pria ciência, a ideia do valor da “geniali-
tes do livro. Shapin explicita os seus objec- dade” e das capacidades individuais foi
tivos: o primeiro, mostrar como e porquê vista como um obstáculo à afirmação da
as pessoas e as suas virtudes interessam na Sociologia do Conhecimento, que Robert
produção e na autoridade dos elementos Merton queria fortalecer, em que deveriam
do conhecimento técnico na modernidade ter papel central as normas e ethos inter-
tardia; o segundo, discutir por que razão nalizados pelos indivíduos mas com origem
hoje em dia esta é uma referência estra- na comunidade. O carácter do próprio
nha e quase perversa. Actualmente, fala-se cientista estava envolvido com as concep-
da desmoralização dos especialistas, uma ções do que era o conhecimento científico
dimensão indesmentível desta moderni- e do que os cientistas faziam para garantir
dade tardia, que, como insiste Shapin, o conhecimento e a manutenção das estru-
coexiste com sentimentos contrários em turas que asseguravam poder e riqueza.
que a virtude e moral têm lugar. O livro O capítulo 3, “The Moral Equivalence of
é apresentado não como pertencendo à the Scientist: A History of the Very Idea”,
Sociologia do Conhecimento Científico, segue a história desde o início do século XX
mas como mais próximo de uma História até à Segunda Guerra Mundial. Esta guerra
Cultural ou de uma análise alargada das foi, aliás, um forte catalisador para a secula-
formas de comportamento individual e rização do poder da ciência. O aspecto
da sua relação com as instituições. Shapin central do debate é a equivalência moral
apresenta os seus objectos de interesse do cientista, o facto de os cientistas serem
como todos aqueles que estão amarrados humanos. Como mencionava Einstein em
à tecnociência, ligando este conceito ao 1921 (citado na p. 49), seleccionar uns
trabalho de Bruno Latour, que resulta quantos indivíduos para admiração sem
da noção da incapacidade de distinguir limites, atribuindo-lhes poderes sobre-hu-
o que pertence à ciência, à sociedade, à manos de carácter e intelecto, parecia in-
economia ou à política. O autor utiliza este justo e até de mau gosto, em particular com
referencial para seguir não só os actores e a emergência da Big Science e da contro-
os seus comportamentos, mas as próprias vérsia em torno da falta de integridade e
materialidades resultantes desta visão mais de limites que a ciência mostrava (por
complexa. exemplo, com o projecto Manhattan e o
1 | Recensões

lançamento das bombas de Hiroshima e ceram no ambiente universitário, pouco


Nagasaki). Este novo contexto não deixou mudou em relação ao contexto institucio-
de ser contestado por muitos e visto como nal, mas para aqueles que derivaram para
sinal de que algo ia mal com a ciência mo- a indústria não. Houve uma facção que
derna, amarrada na altura a um complexo ficou bastante traumatizada com o con-
industrial e militar. A integração da ciência fronto com alguns dos valores em que se
nas estruturas civis, que projectaram o baseava a actividade industrial: o segredo,
poder e favoreceram a acumulação de ri- a hierarquia, o curto prazo, o dinheiro. Esta
queza, teve consequências na compreensão situação gerou tensão com uma ciência que
social do papel do cientista e na própria se pensava construída por homens normais
visão do conhecimento científico. O papel mas que, apesar disso, no mundo univer-
da ciência deixou de ser visto como pos- sitário, estavam ligados às virtudes da vida
suidor de virtudes especiais, e os cientistas científica. Na indústria tudo era diferente:
seriam apenas mais um dos grupos de in- apenas se justificava a continuidade de um
teresse. Na visão de alguns, a universidade trabalho de investigação caso se perspec-
permanecia o refúgio e casa “natural” da tivassem resultados práticos.
ciência como busca de moralidade e conhe- O capítulo 5, “Who is the Industrial Scien-
cimento, livres da autoridade, da burocra- tist: The View From the Managers”, dis-
tização e da organização dos ambientes cute a criação do conhecimento em con-
industriais e militares. texto industrial na perspectiva dos gestores,
O capítulo 4, “Who is the Industrial Scien- introduzindo a noção de incerteza norma-
tist: The View From the Tower”, mostra tiva. Esta incerteza está ligada, em alguma
esta nova ciência, apresentando o cientista medida, a todas as iniciativas de investiga-
industrial a partir da perspectiva da acade- ção, e era altamente apreciada pelos que
mia e notando como os sociólogos alerta- estavam envolvidos na ciência industrial.
ram para as violações dos valores essenciais A maior parte da investigação falha para
da ciência que ocorreram com esta indus- alcançar os seus objectivos. Deste modo,
trialização. As ideias mertonianas de uni- apostar em actividades de investigação na
versalismo, desinteresse e anti-autorita- indústria justifica-se pelo grande valor dos
rismo estavam em causa, ameaçando a poucos sucessos. Para gerir esta incerteza,
objectividade do conhecimento científico, nos resultados e nos próprios processos de
pressionada pelos novos problemas do la- investigação, a ciência industrial sentiu
boratório industrial, focado em problemas necessidade de contabilizar a investigação,
de rendibilidade e segurança (principal- ligando, por exemplo, o ritmo de produção
mente no contexto da Guerra Fria). Estes aos resultados obtidos. Assim surgiu um
cientistas a trabalhar na indústria eram alargado conjunto de documentos para
substancialmente mais bem pagos que os reportar esta visão mais contabilística de
que permaneciam no ambiente universitá- avaliação da investigação (ilustrados pelo
rio, e até o grupo mais mal pago na indús- autor com os cartões dos laboratórios da
tria, o dos biólogos, tinha uma situação Kodak para problemas encontrados nos
favorável face aos mais bem pagos na uni- processos de investigação). A ideia de que
versidade, os engenheiros (106). Para tra- a academia oferecia liberdade e autonomia
balhadores com menos de trinta anos, a absoluta foi-se tornando um contra-senso
média salarial não era muito diferente, mas devido à necessidade de obter fundos, à
existia um leque mais alargado de oportu- disponibilidade das publicações científicas
nidades. Para os cientistas que permane- para aceitarem apenas determinados temas
Recensões | 1

e às restrições impostas pela própria disci- objectivos da empresa, do departamento


plina e pelos departamentos das universi- ou do grupo, e que evidenciava a impor-
dades. Apesar do enfoque em resultados tância que as virtudes pessoais afinal con-
práticos e em linhas de investigação que tinuavam a ter na autoridade moral na
poderiam ser consideradas fechadas, as investigação científica e na criação das re-
empresas começaram a incentivar os seus lações sociais na ciência.
investigadores a estabelecerem laços com O capítulo 7, “The Scientific Entrepre-
as universidades e a participarem em ini- neur: Money, Motives and the Place of
ciativas comuns. Virtue”, aborda a forma como, no decor-
O capítulo 6, “The Scientist and the Civic rer do século XX, o mundo da ciência
Virtues: The Moral Life of Organized passou a associar-se a um modo de vida
Science”, aborda um dos aspectos mais mais confortável, o que se traduziu num
discutidos, alvo de críticas internas e ex- interesse crescente de muitos que passa-
ternas, na Big Science, o trabalho em equipa ram a ver na ciência uma possibilidade
(teamwork). A equipa era entendida pelos atraente de emprego. Os cientistas passa-
seus críticos de acordo com uma noção ram a ser associados a pessoas que querem
militarista de comando, hierarquia e con- ganhar dinheiro mas que também se que-
trolo que impedia a originalidade e a cria- rem divertir (“Fun and funds are not the
tividade do cientista enquanto indivíduo, same thing but they are related” [217]) e
mas na visão industrial era uma forma mais que se preocupavam com coisas munda-
adequada de se alcançarem as metas dese- nas como a fama ou o sexo. James D.
jadas, porque ficava menos dependente de Watson (estrutura do DNA), Richard
um único indivíduo (que detinha o conhe- Feynman (electrodinâmica quântica),
cimento, podendo comprometer todos os Craig Venter (genoma humano) ou Kary
resultados da investigação se deixasse a Mullis (polymerase chain reaction – PCR)
empresa). A organização da ciência indus- são exemplos de empreendedores-cientis-
trial implicou uma grande atenção ao pla- tas-vedetas que, para além dos seus con-
neamento da investigação. Shapin mostra tributos científicos, deram face a este novo
como o cientista era um organization man, tipo de investigador ligado ao hedonismo,
ligado aos seus contextos de grupo e en- a campanhas de publicidade ou a activi-
quadramento institucional. Nesta visão, a dades de lazer e entretenimento (como o
virtude não é expurgada da tecnociência surf ou bonecos para crianças). A ciência
mas antes reconfigurada. É interessante enquanto vocação continuava a existir,
referir a ilustração que Shapin faz da rele- mas, a partir dos meados dos anos setenta,
vância das virtudes pessoais na indústria passou a partilhar o seu espaço com esta
recorrendo a uma outra materialidade, nova tendência do cientista-empreende-
uma carta de recomendação para contra- dor-vedeta. Para algumas áreas específi-
tação de investigadores (186-187), em que cas, a possibilidade de um indivíduo as-
virtudes pessoais como a honestidade, a cender a grande riqueza através da ciência
capacidade de trabalhar em grupo, o con- passou a ser uma realidade.
texto familiar, a confiabilidade, a fisiono- As diferenças entre a academia e a indústria
mia, mas também os receios da Guerra Fria ainda continuam a ser evidentes para mui-
(a lealdade aos EUA), são itens claramente tos. Shapin refere vários investigadores que
listados e que deveriam ser alvo de avalia- identificam estas diferenças: os investiga-
ção da gestão. Emergiu a figura do director dores industriais têm de se comprometer
científico, indivíduo que corporizava os com as agendas de investigação da em-
10 | Recensões

presa, têm de saber lidar com pessoas di- tes investigadores querem evitar ao irem
ferentes, perceber que existem várias hie- para a indústria. O carisma dos empreen-
rarquias, equipas que se devem respeitar e dedores é um aspecto central do seu su-
que o ambiente é mais ditatorial. Pessoas cesso, o que recupera a importância das
que não respeitem estas lógicas não se dão características pessoais.
bem na indústria. Mas, como o autor nota, O capítulo 8, “Visions of the Future:
esta visão refere-se essencialmente ao Uncertainty and Virtue in The World of
organization researcher dos anos sessenta e High-Tech and Venture Capital”, apre-
não tanto aos novos modelos assentes em senta os futuros da tecnociência ligando o
start-ups de base de conhecimento. A actua- capital de risco às decisões de investimento
lidade da tecnociência faz-se com uma em empresas de base científica e pro-
grande heterogeneidade moral, não há es- curando perceber o processo de escolha
paço para pensar que só existe um local, a das tecnologias, mercados e pessoas que
universidade, onde se vive a “boa vida poderão com mais probabilidade gerar
científica” (242). Os motivos do cientista- retornos financeiros. A grande incerteza
-empreendedor para seguir esta via são carece de decisões e juízos que tomam
ilustrativos de que a “boa vida” também formas pessoais: as decisões sobre em que
acontece na empresa. Em primeiro lugar, é empresa investir tornam-se dependentes
necessária vontade de fazer dinheiro (e não da valorização que se faz das pessoas-
ver o lucro como um pecado). O ambiente -chave a que está associado determinado
empresarial é ideal para o pensamento livre projecto. O autor apresenta exemplos de
e para gerar conhecimento científico que como actualmente se transformam as
tenha lugar no mercado e que possa ajudar ideias com base em ciência em potenciais
os outros. Não resulta afinal daqui ne- negócios. Plataformas como as assegura-
nhuma incompatibilidade dinheiro-ciên- das pelos centros de transferência de tecno-
cia, mas até alguma complementaridade. logia das universidades são elementos es-
O cientista-empreendedor pretende evo- senciais para apoiar o lançamento de ideias
luir rapidamente, ter acesso à decisão e a com potencial mas ainda em processo de
níveis remuneratórios mais interessantes amadurecimento. Essas plataformas pro-
para o que considera serem as suas capa- porcionam a proximidade entre empreen-
cidades, algo que é inviabilizado pela lógica dedores, investidores, parceiros comer-
da academia, onde o tempo e a hierarquia ciais e técnicos que podem interessar-se
são aspectos centrais na valorização do in- pelo projecto, promovendo o contacto
divíduo. As entidades financiadoras da com saberes diferenciados, ligando o
investigação, com o seu conservadorismo, conhecimento ao seu potencial de mer-
são também limitadoras de propostas me- cado e partilhando aspirações e virtudes
nos em linha com os objectivos dos main- prezadas. Apesar de os investidores de
streams disciplinares. A competição exces- risco não apreciarem a falta de visão para
siva pelos apoios e a exigente rotina de o negócio ou as limitadas capacidades de
“publish or perish” são outras das desvan- gestão de alguns investigadores, fica bem
tagens da universidade face à realidade patente a sua admiração por aqueles que
empresarial, onde existe maior liberdade investem na compatibilização destas no-
para focar as investigações no que real- ções com o conhecimento técnico da sua
mente interessa na óptica da empresa. área. Quer os venture capitalists quer estes
A obrigatoriedade e peso excessivo da novos cientistas consideram-se as elites
carga lectiva também são aspectos que es- que fazem avançar o mundo (300).
Recensões | 11

No epílogo, “The Way We Live Now”, é ção desinteressada com base nos arranjos
ilustrado como o mundo da tecnociência institucionais actuais e para se achar que
da modernidade tardia é complexo e com- existe diferença substancial entre a “boa
posto por actores de diferentes esferas: vida científica” na academia e na indús-
cientistas, engenheiros, gestores de empre- tria. Ameaças de interferência política, de
sas importantes, business angels, capital de imperativos de comercialização, excessos
risco, agentes de propriedade industrial, de profissionalização excessiva dos cien-
gestores de transferência de tecnologia, tistas e de inflexibilidade das ortodoxias
responsáveis das universidades e dos cen- das disciplinas sempre existiram na ci-
tros de investigação, pessoas que se habi- ência – e vão persistir. A evolução que a
tuaram a transformar o conhecimento em ciência sofreu foi muito intensa, mas não é
artefactos, riqueza e poder (306). Nestes necessário pensar que as virtudes do ideal
grupos, o networking assume importância de ciência académica não estão também
central como processo de ligação social. presentes noutras vertentes da ciência
O sucesso está muito condicionado pelas na modernidade tardia. A diversidade
redes sociais nas quais se participa e na- de ambientes institucionais nos quais se
quelas a que se consegue obter acesso. Os concretiza a investigação actual e futura
actores não funcionam em rede total, mas faz emergir a importância da vocação e
dividem-se em várias sub-redes de afinida- das virtudes pessoais. Citando Shapin
des e familiaridades pessoais. Esta é uma (18), “judgments of business opportuni-
realidade que (com as devidas especifici- ties and technologies proceed importantly
dades) é cada vez mais presente na situação through judgments of familiar people and
científica portuguesa, onde começam a their virtues”. Afinal as pessoas conti-
emergir este tipo de redes que tentam ligar nuam a contar, as suas virtudes contam.
a universidade e a empresa, tornando mais E a razão porque contam é que, devido
aceitável a ciência que se relaciona com a à radicalidade da incerteza na moderni-
indústria e com o mercado. Um exemplo dade tardia, é importante ter aspectos
português, com paralelismos nos encontros duráveis nos quais se possa confiar (303).
descritos por Shapin, é a experiência das pla- Esta familiaridade é conseguida através
taformas regionais do Programa FINICIA, da redescoberta das virtudes, que não
uma iniciativa desenvolvida pelo IAPMEI estão afinal perdidas, pertencendo igual-
(Instituto de Apoio às Pequenas e Médias mente, ou especialmente, como destaca
Empresas e à Inovação) com o objectivo Shapin, ao mundo de fazer os mundos
de facilitar o acesso ao financiamento a que hão-de vir.
ideias empresariais de base de conheci- Uma das discussões mal resolvidas com a
mento. O objectivo explícito da iniciativa apresentação de Shapin acaba por ser qual
é garantir financiamento para a criação de o papel da moral na ciência. Que o mundo
start-ups inovadoras, mas muito mais tem da tecnociência não é ausente de valores é
sido alcançado. Estas plataformas, ao in- incontestável, mas serão os valores hoje
cluírem actores provenientes de todos os emergentes e centrais na vida do cientista
espectros da tecnociência, partilharam in- adequados a uma ciência moral? Um pa-
formação, ganharam confiança, densifi- radigma centrado na importância da em-
cando as relações existentes entre diferen- presa individual, do carisma e do individu-
tes esferas institucionais. alismo, no imediatismo, no lucro, no
Steven Shapin argumenta que não há ra- resultado evidente, onde os limites éticos
zão para se rejeitar o ideal da investiga- ficam muitas vezes por discutir, origina
12 | Recensões

uma ciência moralmente ambígua. Em ponto. É o caminho para onde ela parece
épocas de crise na economia, na sociedade dirigir-se com cada vez mais vigor. O de-
e nos valores, fica muito por dizer acerca bate fica em aberto...
de ser este o caminho certo para a ciência.
Mas Shapin não tem contestação num Hugo Pinto

Anda mungkin juga menyukai