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Ruinas Trzan e seus fluxos

Research · September 2015


DOI: 10.13140/RG.2.1.3814.4485

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1 author:

Thaís Fernanda Salves de Brito


University of São Paulo
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Ruínas Trzan e seus fluxos: um estudo sobre apropriação do espaço em
uma área fronteiriça

Thaís Fernanda Salves de Brito


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
tfsbrito@yahoo.com.br

Roney Gusmão Do Carmo


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
guzmão@hotmail.com

GT 18: Mobilidades e Fronteiras no Mundo


Contemporâneo: migrações e fluxos
transfronteiriços

Resumo

As cidades modernas, segundo Agier (2011), podem ser entendidas como um


dispositivo cultural, com multiplicidade de referências identitárias, definindo um espaço de
ação. Em si, as cidades inscrevem lugares em um complexo de histórias, memórias e relações
sociais. Em Santo Amaro – Bahia, as ruínas da Fundição Trzan, como um lugar de vivência e
de fluxo, se revelam como um destes espaços que publicizam várias temporalidades e
camadas de cidade (ROSSI: 2001 [1966]). Nos últimos 40 anos, o local, apesar de inabitado,
oferecia um circuito de fluxo e de representações para um grupo amplo de citatinos. Porém, a
partir de 2013, inicia-se, institucionalmente, nova ocupação por uma universidade federal
brasileira. Intervenção arquitetônica, projetos do estado, presença de estudantes e
pesquisadores promovem nova significação para este lugar. Esta pesquisa inicial, amparada
pela etnografia, propõe apresentar alguns discursos sobre (a) este espaço, (b) fluxos de
pessoas, (c) sobre sentir-se estrangeiros em seu espaço.

Palavras-Chave: espaço, fronteiras, memória, ruínas.

1
Introdução

A presença da ruína da Siderúrgica Trzan na cidade de Santo Amaro, à similaridade de


muitos outros objetos arquitetônicos - estejam eles em estado de ruína ou não - publiciza
várias temporalidades e camadas de cidade (ROSSI: 2001 [1966]). Hoje, cedida para
instalação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB começa a viver um
processo de patrimonialização, restauro e emergência de novas significações.
Quando ela foi adaptada para funcionar como uma empresa de fundição, estava sob
uma intencionalidade estética específica, mobilizando os múltiplos significados atrelados à
produção industrial. Com o encerramento das atividades, supomos que outros significados
foram atribuídos à empresa, ao edifício, ao bairro em redor. Esta pesquisa, em fase inicial,
dedica-se à reflexão sobre estes significados, temporalidades e fluxos.
Ainda que as atividades tenham sido encerradas, a relação com o espaço não foi
encerrada. Ao olharmos para determinados espaços arquitetônicos, é possível reconhecer
construções específicas da cidade no tempo. Falar de espaço é falar de tempo, e do tempo que
interessa à memória, como bem revelou Halbwachs (1976). Segundo Aldo Rossi,
determinados lugares despontam uma “cena fixa das vicissitudes do homem, carregada de
sentimentos de gerações, de acontecimentos públicos, de tragédias privadas, de fatos novos e
antigos” (ROSSI: 2001 [1966], p. 6).
Como uma “trama primordial eterna do viver” é perceptível que determinados lugares
revelam uma criação temporal subscrita por meio de uma intencionalidade estética, que
podemos perscrutar pelas vias da imaginação, das memórias, das experiências, dos processos
de modificações e, fundamentalmente, das permanências. Lá está o passado – que, pelos
lugares, guardam-se os projetos de cidade –, o presente – insurgindo pelos processos de
subjetivação e de confronto com a realidade – e o futuro – revelado pelas expectativas e pela
construção de outra cidade.
Em 2013, com a chegada da UFRB na cidade de Santo Amaro, o edifício da
siderúrgica Trzan que estava subscrito na categoria de “coisa do passado” voltou a ser tema:
tornou-se local de presente e projeção de futuro. Logo de saída, a proposta da universidade é
de intervenção, de recuperação e de ocupação do espaço urbano pela instalação do campus no
local. A partir das ruínas, o campus universitário será construído, inspirado na ideia de um
novo espaço público e de investimento intelectual na cidade. Diante deste novo fator, ideias

2
passam a ser construídas coletivamente à medida que a população vislumbra . possibilidades
para as antigas ruínas por meio de um local institucionalizado de saber, possivelmente um
bem cultural, fazendo assim convergir, futuramente, a população ao local.
Em meio a esta expectativa, emerge a memorização de um passado comum e de
modelos de cidade que foram ansiados e que, novamente, passam a ser projetados sobre um
mesmo local. Se, por um lado, a universidade propõe novos usos para o espaço e novos
estímulos de sociabilidade, por outro, as mesmas ruínas passam a ser cenário de um lugar de
disputa territorial e de autoridade. Há um investimento institucional em fazer do espaço um
lugar de encontros e de convergências, rompendo, desde o projeto arquitetônico, a tradicional
fissura entre produção acadêmica e vida comunitária, incluindo a comunidade dentro do
universo científico e artístico.
Contudo, ao mesmo tempo em que o projeto da nova universidade se apresenta como
um lugar de propostas de encontro e de permanência ativa para a cidade, ele é também, desde
sua concepção, um lugar de não permanência. Os alunos devem viver por um tempo pré-
determinado, uma época de passagem, não podendo, assim, fomentar relações mais profundas
com a mesma comunidade. Em outras palavras, a universidade deseja ser parte da
comunidade, mas boa parte da comunidade acadêmica – os estudantes – ciente, de antemão,
que sua relação com a universidade e com a comunidade está marcada pelo tempo
determinado para a conclusão do bacharelado.
Além desta relação fluída entre estas duas comunidades – citadina e acadêmica – outra
subjetivação se revela. Para alguns cidadãos, aquelas ruínas que ficam na entrada da cidade de
Santo Amaro, ladeada pelos trilhos do trem, de um lado, e de outro pelo Rio Subaé, foram
lugar de uma certa imaginação de futuro: uma cidade moderna, industrial e plena de
perspectivas de trabalho que se tornou frustração.
Há, ainda, outro grupo de cidadãos que ocupam, hoje, o terreno onde estão estas ruínas.
Ao olharmos o prédio, a visibilidade das ruínas esconde outra realidade. Apesar de parecer
um local inutilizado e em decomposição, na verdade, ela esconde uma cidade que vive a
margem, na fronteira entre ser e não ser cidadão. Há uma invasão de famílias sem-teto no
terreno fomentando novos debates sobre moradia, relação com o poder municipal e com a
universidade.
Para investigar as representações sobre este espaço que emergem com a possibilidade
da nova ocupação do local e de intervenção arquitetônica na cidade, propõe-se uma

3
investigação, amparada no uso da metodologia etnográfica. Este artigo revela a primeira parte
desta investigação. Para tal, fotos antigas e reportagens de jornal foram priorizados, além da
investigação documental. Privilegiamos, ainda, a etnografia, amparada no uso foto-entrevista.
Foram, ainda, coletados um depoimento de um colecionador da cidade, um breve depoimento
e algumas fotos de uma das herdeiras da antiga siderúrgica, dois diários de campo de dois
alunos da UFRB e uma entrevista em grupo com as mulheres que habitam uma área invadida
do terreno, que, futuramente, será ocupado pela universidade.
Dentre os resultados preliminares, nos aproximamos de nossa hipótese inicial, no qual
a sobrevivência destas ruínas revela sobreposições de tempos distintos, de atribuições de
sentido e de representações, de fluxos de imagens, de experiência do sujeito com o mundo e
de intervenção com a paisagem. As possíveis novas apropriações deste velho espaço trazem
consigo uma variedade de interpretações sobre a reconstrução e restauro da fábrica, sobre as
áreas fronteiriças da cidade, sejam elas explícitas ou não por um monumento específico.

Um lugar, suas histórias e seus fluxos

Em sete de junho de 1956, o jornal Correio da Manhã apresentou um breve resumo


sobre o Seminário de Desenvolvimento do Nordeste que estava acontecendo no Recife. O
conteúdo versava sobre a urgência de se estabelecer no nordeste brasileiro uma política
específica para a industrialização. A partir da criação de condições estáveis de
desenvolvimento, objetivava-se fundar um polo siderúrgico que fizesse frente à produção
industrial mais a sul do país; incluíam-se, na pauta destas discussões, usos alternativos de
combustíveis para as siderúrgicas, como, por exemplo, a utilização do óleo de coco de babaçu
ao invés do carvão, somada à atenção ao manejo dos minérios.

4
Imagem 1: Siderúrgica Trzan. Foto: autor e data desconhecidos.

A Fundição de Aço Trzan1, fundada pelo iugoslavo Carlos Trzan, foi primeira
metalúrgica do nordeste, situada em Santo Amaro, e estava presente na pauta deste seminário.
A siderúrgica Trzan iniciou atividades nos anos 1950, sob gerência de uma família iugoslava,
que havia migrado para o Brasil no início do século XX. Ela começou como uma pequena
fundição no bairro Trapiche em Santo Amaro2. Além da família, trabalhavam alguns
moradores do bairro, conta Sr. Raimundo, um colecionador de livros, histórias e vestígios da
cidade, informante fundamental para esta pesquisa3.
Alberto Santos4 assim descreve sua lembrança sobre a siderúrgica:

1
A siderúrgica Trzan é, também, chamada de Tarzan. Alguns documentos da empresa e oficiais usam o nome
Trzan, a população a chama de Tarzan. Em uma foto antiga da empresa na época de seu funcionamento, vimos o
nome Tarzan estampado na sua chaminé. Aqui, escolhemos usar Trzan porque, atualmente, este nome tem sido
mais pronunciado.
2
Pouco se sabe do funcionamento desta empresa antes da ocupação do prédio em questão que, anteriormente,
funcionara como uma destilaria – Destilaria Jujuba, mais conhecida como Meleirinha. É possível que as
atividades tenham iniciado cerca de 20 anos antes, mas os dados ainda são inconclusos.
3
Raimundo César foi jogador de futebol do time da cidade, professor de educação física e trabalhou na área
administrativa da empresa Cobrac, uma empresa francesa que atuou em Santo Amaro entre os anos de 1970 e
1980. Quando se aposentou, dedicou-se a colecionar livros, referências, objetos, vestígios da região. É um ótimo
contador de histórias, parceiro de algumas pesquisas e dono de um acervo importante sobre as coisas da região.
Ele nos forneceu fotos, dados e até fichas de registro de antigos trabalhadores da Usina que encontrou na área da
empresa, após a desativação. Posteriormente, por estas fichas, interessa-nos a memória destes trabalhadores.
4
Alberto Santos é morador de Santo Amaro e aluno do curso de Bacharelado Interdisciplinar em Cultura,
Linguagens e Tecnologias aplicadas. Ele, gentilmente, em carta, nos escreveu seu olhar para a Trzan, onde

5
A lembrança que tenho da Siderúrgica Tarzan é que era um lugar que as pessoas
trabalhavam e com esse salário sustentavam as famílias. Eu pensava que era bom
trabalhar na Tarzan, e quando eu crescesse iria trabalhar lá. Sempre se pronunciou
Tarzan, igual o personagem do filme Tarzan: o rei da selva. Eu me sentia importante
porque uma família de parentes dos donos da Tarzan morava no Trapiche de Baixo e
eles frequentavam minha casa: a mãe que não lembro o nome, acho que se ela
chamava Dona Cecé, Ivone e Ivan eram filhos, eram brancos e de olhos azuis5.

Na época da infância de Alberto ainda se sentia os reflexos do país de promessas de


fervor econômico em função das políticas de substituição de importações implementadas no
território nacional em meados do século. Estamos falando de anos subsequentes à Segunda
Guerra Mundial, quando efeitos avassaladores na economia global incitaram empresas
multinacionais a promoverem uma pulverização de unidades produtivas que, em parceria com
governos de nações subdesenvolvidas, enxergaram largas possibilidades dentro de territórios
do então terceiro mundo. As instabilidades do capitalismo motivaram a busca por condições
mais favoráveis ao lucro e, nessa empreitada, países como Brasil, Argentina ou México
mostravam-se adequados para o projeto de maximização do lucro e redução drástica nos
custos de produção.
No Brasil, meados do século XX ficaram conhecidos como “Milagre Econômico”,
caracterizado por uma torrente invasão de grandes indústrias internacionais, aqui aportadas na
busca predatória por novos nichos do consumo, além de farta matéria-prima, de mão-de-obra
barata e de incentivos fiscais. Para viabilizar condições à pujança econômica nacional, o
Estado entrava com atrativas contrapartidas, qualificando mão-de-obra, investindo em
infraestrutura (a exemplo de hidrelétricas, portos, rodovias, ferrovias) e incentivando a
indústria de base que ofertaria condições para o crescimento econômico almejado.
É importante compreender que o Estado da Bahia contava com vasta disponibilidade
de matéria-prima, excelente oferta de mão-de-obra barata, tudo mediado por um Estado
conivente com a pretensão capitalista naquele tempo. Essas condições tornaram o mercado
atraente para aquela que se tornou a primeira usina siderúrgica da região Nordeste do Brasil,
que empregava parcela considerável da população local e abastecia grande parcela do
mercado regional.
Em sua operação, além do forno elétrico em arco e de um laminador específico,
dedicava-se, segundo o jornal, à fundição do ferro e aço, possuindo um "cabillot" em

retoma sua memória sobre a siderúrgica. Na descrição de Alberto, a siderúrgica é cenário, medo, imaginação e
expectativas, como seguiremos vendo adiante.
5
Vale aqui uma observação importante. Ser branco e de olhos azuis em um território de negros e pardos é uma
distinção e tanto.

6
operação. Possivelmente, sua produção não era irrelevante, visto que possuía um cais
privativo – motivo, inclusive, de uma questão judicial travada pelo sindicato dos estivadores
de Salvador em 1953. Carlos Trzan, segundo informações de sua nora Lucília Trzan6, esteve à
frente da siderúrgica até 1960, ano em que a vendeu para o grupo Votorantin porque estava
cansado de gerir uma empresa e porque nenhum de seus filhos queria dar continuidade ao seu
trabalho.
A Trzan se manteve em atividade efervescente entre dos anos 1950 até 1960, quando
foi adquirida pelo Grupo Votorantim (conglomerado que, desde os anos 1920, atuava no
Brasil em ramos variados da indústria de base). Em negociações mediadas pelo Estado, o
grupo Votorantim assumiu a Trzan, nomeando-a como Usina Santo Amaro – embora os
santamarenses a continuavam chamar de Tarzan - e, mesmo sendo fosse uma das menores
unidades do sistema Votorantim, ela foi mantida atuante nos vinte anos seguintes,
demonstrando sinais de exaustão apenas no final dos anos de 1970.
Segundo Revista Veja, publicada em outubro de 1981, o então governador do Estado
da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, se indispôs com o diretor da Votorantim, Antônio
Ermínio de Moraes, por conta de um encerramento de atividades no ano de 1979. Com
intervenção direta do ministro do planejamento, Delfin Netto, coagiu o grupo Votorantim a
retomar as atividades logo após o anúncio do fechamento das portas da usina.
A mesma matéria jornalística salienta que é no ano de 1981 que o Grupo Votorantim
encerrou decisivamente as atividades, provocando grande irritação no governador ACM. O
mal estar ocorreu por conta de auxílios ofertados pelo Estado para revitalização da referida
empresa, que “não demonstrou qualquer pudor em demitir mais de 230 funcionários baianos
em questão de dias”. Nas palavras do governador: “Tal medida foi, no mínimo, cínica”.
Em entrevista ao Jornal A Tarde em outubro de 1981, o então representante do Grupo
Votorantim na Bahia, José de Morais, afirmou que o enfretamento de dificuldades financeiras
já estava ocorrendo há alguns anos, fato que motivou o primeiro anúncio de fechamento em
1979. Porém, a oficialidade da falência em 1981, segundo entrevistado, decorria do
esgotamento de possibilidades daquela unidade que se tornara onerosa ao Grupo. Fato é que a
demissão foi um trauma para a cidade e para a política baiana no período.

6
Lucília Trzan é advogada, fotógrafa amadora e uma apaixonada pelos prédios da antiga Usina e Solar Paraíso.
Ela nos concedeu uma primeira entrevista e nos permitiu acesso a algumas de suas fotos tiradas desde a janela do
Solar, que veremos adiante.

7
Raimundo César, no entanto, ameniza a reação da comunidade santamarense à
demissão massiva7. Ele nos contou que já havia rumores de crise na empresa e que os
funcionários estavam preocupados com os salários. Congregados, marcaram uma reunião,
amparados pelo sindicato, para discutir um aumento salarial. Segundo o sr. Raimundo, os
funcionários imaginavam que as consequências mais severas de uma reunião sem sucesso
com a direção da Usina Santo Amaro seria a greve dos funcionários. No entanto, logo que os
funcionários começaram a reunião, a direção informou que a empresa seria fechada.
Para evitar uma crise gravíssima, conta o sr. Raimundo, a empresa apresentou algumas
possibilidades aos funcionários. Aqueles que desejassem, poderiam ser remanejados para as
outras empresas do Grupo Votorantim em Camaçari ou em São Paulo, com acréscimo de
salários e ajuda de custo. Para aqueles que estavam em vias de se aposentar e que já estavam
no período de estabilidade, a Usina Santo Amaro iria manter seu departamento administrativo
e de pessoal na cidade até que todos se aposentassem, garantindo assim os salários e os
direitos. Para os demais, a demissão foi regular e com todos os direitos garantidos.
O entrevistado nos relatou que, apesar do impacto severo na economia da cidade – não
apenas no que diz respeito aos funcionários que diretamente ficaram sem emprego, mas
também no fluxo de pessoas que vinham até Santo Amaro para negociar com a empresa,
movimentando assim outras áreas da economia – não houve uma revolta popular contra o
encerramento das atividades, porque muitos trabalhadores montaram pequenos negócios com
o dinheiro da rescisão do contrato de trabalho e outros tantos foram trabalhar na indústria
Companhia brasileira de Chumbo - COBRAC8 que, inclusive, pagava melhor. Nas palavras
dele: “aqui é assim, a gente sempre aprendeu a se virar, primeiro, foi com as usinas de cana,
depois, as destilarias, chegou a hora de lidar com as empresas que vão embora”.
Mesmo com a mediação de sr. Raimundo quanto ao impacto do encerramento das
atividades da empresa, fato é que centenas de família sofreram com o fechamento da fábrica,
divisas municipais foram drasticamente reduzidas e houve um desaquecimento na economia
da cidade. É, também, pertinente acrescentar que a década de 1980 não demonstrava sinais
otimistas aos brasileiros. Enquanto os anos anteriores foram marcados pelo crescimento, os
anos 1980 foram realçados pela estagnação financeira, aliada aos índices inflacionários
alarmantes e ao desempenho medíocre da indústria. Apelidada de “década perdida” para o

7
Caderno de Campo, 30 outubro de 2014.
8
A indústria Cobrac é outro capítulo da história de Santo Amaro que não nos cabe discutir neste momento, mas
deixamos aqui recomendações para investigações e aprofundamentos posteriores.

8
Brasil, e também para demais países emergentes da América Latina. Esta época foi ilustrada
por uma concorrência acirrada com países em desenvolvimento da Ásia, que despontavam no
mercado global, tragando grande parte do comércio e afetando a produção global. Se, por um
lado, os Tigres Asiáticos saltavam aos olhos de investidores internacionais, a América Latina
parecia não mais tão atraente como outrora.
No imaginário da população santamarense, o fim da siderurgia anunciava essa
desesperança e lançava à face dos locais a vulnerabilidade dos padrões de desenvolvimento
consolidados em décadas anteriores. A cidade enxergava a deterioração da usina como
desmantelamento da própria realidade social e econômica local. É comum, atualmente, ouvir
em Santo Amaro que esta é a cidade do “já teve”, dizem os nativos: “sempre que alguém se
pergunta se Santo Amaro tem algo, alguém responde já teve”. Trata-se de um pesar sem fim,
uma sensação de saudade e de ufanismo que se alterna com a sensação de abandono
recorrente.
Com o encerramento das atividades, o Grupo Votorantim doou o prédio à prefeitura
que não manifestando esmero algum com o patrimônio, consentiu com um desmembramento
paulatino daquele local. Então, é no transcurso dos anos 1980 que o teto foi furtado, as janelas
foram desmontadas, a mobília corroída e a pujança convertida em assolação. De todo modo, a
ruína predial se articulava simultaneamente com a progressiva ruína econômica local e
nacional.

Imagem 2: A Usina em ruínas. Foto: Lucilia Trzan, 2008

9
A foto 2 apresenta um olhar de Lucília Trzan sobre a Usina. Ela, ao longo dos anos,
produziu uma série de fotos desde a sua janela, olhando para a antiga Siderúrgica. As fotos
retratam a deterioração do prédio. Diante das fotos, a herdeira narra um sofrimento imenso ao
ver o “patrimônio se despedaçar”; esse sofrimento misturava-se com revolta frente às esferas
públicas que não deram nenhum destino ao prédio, promovendo um “espaço de ninguém”,
onde pessoas “indesejadas” pudessem lá habitar. Notícias sobre um lugar livre para o uso de
drogas e de uma criminalização nascente na pacata Santo Amaro passam a rondar este prédio
enquanto a série de fotos foi sendo produzida.
Em meio a expressões negativas sobre este espaço, Lucília conta que não conseguia
entender “como um prédio tão bonito iria ter um final tão indigno”, por isso, fotografou
continuamente o prédio em uma tentativa de nutrir esperanças para um destino novo frente
àquela situação. Por isso, continua: “a chegada da universidade trouxe uma esperança
enorme”. Esta foto e este brevíssimo relato, mais uma vez, destacam o discurso nativo do “já
teve”, ligado à saudade e à esperança do voltar a circular no mesmo espaço.
As ruínas se situam, então, na delicada linha que separa ontem e hoje, elas revelam a
erosão de uma memória petulante e insistente, mesmo com a ação mais impiedosa do tempo.
Ruir nesses tempos, embora conote decadência, implica também na permanência, cujos
sentidos se atrelam às mudanças no percurso de uma história que converteu ícones do
progresso em sucata. Simmel (1934) entende que as ruínas apontam para uma "passividade
positiva". Dessa forma, entendemos que as ruínas da Trzan são evidência de tempos que se
sobrepuseram, de valores erigidos e desmantelados, de perspectivas sedimentadas e ruídas sob
um constante (e imprevisível) movimento da história.
O prédio, hoje, é marcado pela assolação e pela ação persistente da natureza, que
insiste em decompô-lo, tomando de volta para si o que lhe foi extraído. Os homens, diante das
ruínas de uma cidade, concordam com o ritmo da natureza em detrimento ao ritmo da
produtividade, permitindo, assim, a destruição daquele espaço, criando, em si, elementos
simbólicos da inatividade e de outras formas se apropriação.
As paredes em vias de desmoronarem, as vigas de ferro oxidadas, as madeiras
putrefadas, as plantas que corroem as paredes anunciam passado, presente e futuro, aclamam
uma memória ruída e avisam o movimento tortuoso de valores e de paradigmas. Pode-se
retratar um modelo econômico que não mais representa os interesses de determinados grupos,

10
mas, pode-se, também, apresentar a persistência de modelos e de atribuições de sentido,
fluxos de imagens e de interpretações, o “já teve” é um destes modelos.
Nesse sentido, as ruínas Trzan são parte de uma memória fragmentada e sedimentada
no espaço que revela a existência de uma pujança que se foi, corroída por transformações
agressivas e traumáticas na realidade local. As cicatrizes no espaço urbano também são
cicatrizes na subjetividade, na alma e na memória social, que existe no cerne das muitas
biografias e também se esboça nos discursos proferidos. (Lira, 2013)
Ao trincar o espaço, as ruínas da Trzan então devolvem o passado em forma de uma
memória brutal, pois não facultam à população o esquecimento de um movimento que ali
perpassou um dia. As ruínas demonstram ser uma porção dolorosa e saudosista de um passado
pujante e de um presente modesto, de uma vida com perspectivas que sinalizavam veredas
distintas daquelas que foram percorridas.

Imagem 3: Ruínas Trzan. Foto: Thaís Brito, 2014.

11
Sobre ruínas e fronteiras: lugares de presente e do futuro

A cidade é lugar de atividade e de mudança, cujas forças produtivas e recursos


naturais são manipulados em meio a um "teatro de uma convulsão incessante" (LIRA: 2013,
167). Vale destacar que a metáfora da cidade como um teatro não é uma imagem rara. David
Harvey (1992), ao estudar os processos de gentrificação9 observou que as cidades podem ser
entendidas com um teatro, compostas por palcos nos quais os indivíduos podem “operar sua
magia distintiva enquanto representam uma multiplicidade de papéis” que se revelam pelo
ritmo das transformações incessantes das cidades modernas (Harvey: 1992, p. 17).
A lei municipal n. 1583/2005, com emenda modificativa de n. 1904/2012, dispõe
sobre a doação de área do município de Santo Amaro para UFRB. A área doada (que inclui as
ruínas que são o tema deste estudo) mede 39.000 metros quadrados e foi destinada à
implantação de campus universitário na cidade. Segundo o texto publicado no Diário Oficial
do Município10, esta área “limita-se ao norte com os terrenos da Destilaria Jujuba LTDA, ao
sul com terras que são ou foram de João Evangelista de Moura; à leste, com terra de quem de
direito; Noroeste, com área remanescente e a Oeste com o Rio Subaé. Cabe à UFRB
implantar o campus na cidade, no prazo de quatro anos. Como se trata de um projeto que
envolve um bem cultural, este projeto está, também, a cargo do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, em processo de licitação sob a chancela do Programa de
Aceleração do Crescimento – PAC – Cidades Históricas11.
Segundo conversas frequentes entre os moradores da cidade, tão logo se tornou
pública a chegada da UFRB em Santo Amaro e a possível restauração das ruínas, um grupo
passou a ocupar aquele espaço com moradias irregulares em uma faixa do terreno dedicado à
construção da universidade.
Logo na primeira vez que fomos conhecer o terreno, chamou-nos a atenção essa
ocupação que destoava dos discursos e das expectativas que temos em relação à UFRB.
Diante deste estranhamento, fomos informados que, possivelmente, estes moradores
9
Harvey inspira-se no livro Soft City, de Jonathan Raban (1974) que trata de um relato da vida em Londres nos
anos de 1970, a partir dos jovens profissionais urbanos (yuppies). Raban escapa da leitura corrente do período
que tratava a cidade como vítima de um sistema “racionalizado e automatizado de produção e consumo de massa
e de bens materiais”. Para o autor, aquela cidade construía, em si, uma imagem de “enciclopédia” ou “empório
de estilos”, para ser fiel as suas palavras, mais próxima à ideia de teatro onde as pessoas representavam uma
multiplicidade de papéis (Harvey, 1997: p.16).
10
Emenda Modificativa à Lei n. 1583/2005. Lei n. 1904/2012. Diário Oficial do Município. Santo Amaro, 2012.
11
Restauração da antiga fábrica Trzan e implantação do campus da UFRB. Disponível em
http://www.pac.gov.br/obra/64956. Acesso em 15/12/2014.

12
irregulares estariam cadastrados no programa do Governo Federal, intitulado “Minha Casa,
Minha Vida”, que promove moradias populares. Aquietamos-nos.

Imagem 4: Ocupação irregular. Foto: Thaís Brito, 2014.

No entanto, com o andamento desta etnografia, interessou-nos investigar como esta


pequena comunidade estava vivenciando essa relação de fronteira com a universidade e com a
ocupação temporária do local. Vale considerar que José Lira (op.cit.) nos apresenta a cidade
como local que aponta para experiências no espaço público onde são reveladas práticas
sociais, materializando-as em um lugar de política e palco de disputas. O arquiteto olha para a
cidade e a entende como um campo histórico constituído a partir de recalques e de traumas e
que, por isso mesmo, é capaz de reunir em si a "conflagração dos homens e o peso da
natureza" (p. 168).
Cidades e seus espaços específicos apontam condições de sensibilidade, tais como:
incerteza, esperança e desconforto, por isso é importante considerar as dimensões simbólicas
de certos espaços e realidades arquitetônicas. Assim, vistas deste modo, as cidades são lugares
de imaginação e de representação, de progresso e de ruína, de criação e de abandono, de
permanência e de demolição “atravessada pelas novas figurações da efemeridade, da
precariedade e da indigência produzidas no processo de modernização”. Coube-nos
observar,. por conseguinte, como estes elementos estão sendo revelados nos discursos das
pessoas que ocupam e que ocuparão este espaço determinado.

13
O ritmo da cidade moderna não se restringe às modificações estruturais das grandes
cidades. As menores cidades12 têm sua fisionomia, sua imagem e seus imaginários urbanos
continuamente “refeitos e arruinados” (LIRA: op. cit. 171). Santo Amaro e as ruínas da Usina
trazem à tona esta característica da “agência humana na remodelação brutal dos territórios
urbanos por sobre antigas estruturas destroçadas” em uma cidade de pequeno ou médio porte,
localizada do interior da Bahia (LIRA: op. cit. 169). Por isso, nos dedicamos a ouvir alguns
citadinos que, atualmente, vivem na área destinada à construção do novo campus da UFRB
para pensar sobre estes ritmos da modernidade e do espaço. Eis o relato13:

Chegamos à área da antiga Siderúrgica Trzan e fomos direto ao lugar da


ocupação irregular. Lá existe uma casa construída com tijolos e, pelo que podemos
perceber, deve ter, possivelmente, 50 metros quadrados de construção, sendo uns dois
cômodos, cozinha e banheiro. Sabemos que lá vivem uma mulher e quatro crianças,
quem nos contou foi a própria moradora, ela foi a última das mulheres que participou
de nossa conversa. Além desta pequena casa, ainda na mesma ocupação, existem
outros nove casebres, feitos improvisadamente e com pressa; esses casebres têm
algumas paredes feitas em pau-a-pique, misturando cobertura de lona e com tapumes
de madeira. Não há nenhuma benfeitoria pública como acesso à água, à luz ou ao
saneamento básico, embora nós tenhamos visto ligações para obtenção de luz.
Conhecemos Antonieta14, ela tem 34 anos, e há cerca de quatro anos invadiu o
lugar. Começamos a conversar, ela se mostrou um pouco tímida, disse que estava de
saída, mas que a vizinha ao lado era boa de conversa e que poderia nos dar atenção e
contar sobre o que estava acontecendo por ali. Combinamos de voltar no dia seguinte,
mas a conversa começou a esquentar, logo chegaram outras vizinhas e, por fim,
conseguimos uma boa conversa com quatro mulheres, todas elas que vivem no lugar.
Perguntamos à Antonieta, logo no comecinho da conversa se ela tinha ideia do
que iria acontecer com aquelas ruínas. Ela disse que não sabia de nada. Depois, disse,
que já tinha ouvido muitas conversas: “já disseram que ali viria a feira de roupas,
depois, que iria uma empresa, depois falaram da universidade; sempre dizem que algo
vai acontecer, mas nunca nada acontece”.
Ela, então, contou a história de sua ocupação. Disse que, na época, estava
desesperada. Foi conversar com a assistente social da prefeitura, estava sem trabalho,
sozinha, com as crianças pequenas. Eles não tinham onde morar. O dinheiro mal dava
para comer, vivia devendo. Em meio a esta situação, foi pedir à prefeitura uma saída,
uma ajuda, um lugar para morar. Falou que sabia que estava havendo uma invasão,
mas tinha medo. Segundo ela, a assistente social apontou essa movimentação como
uma saída para sua situação de falta de moradia. Segundo a entrevistada, a funcionária
da prefeitura lhe disse para entrar no terreno onde já havia começado a invasão,
cobrisse suas coisas e que ficasse dentro das lonas. Ela assim o fez, quando a
prefeitura chegou para expulsá-las daqui, com caminhões e trator, ela estava dentro de
sua casinha com as crianças e a prefeitura não pode fazer nada. Desde então, aquele
lugar se tornou o seu lar.
Antonieta disse que acharia bom ter uma escola por perto, que é sempre bom ter
uma escola, mas é muito ruim saber que por isso ela não terá mais aonde viver. Neste
momento, outra vizinha chegou; ela não se apresentou para nós, mas chegou

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Santo Amaro é parte do Recôncavo Baiano. Também conhecida como Santo Amaro da Purificação possui
$92,916 Km, com população residente de 57.800, tem o IDH de 0.646 e o PIB per capita de R$7.352,77. Fonte:
IBGE, 2011.
13
Caderno de campo, outubro de 2014.
14
Os nomes foram trocados, para preservar a identidade de nossas entrevistadas.

14
concordando com o que estava sendo dito. Elas disseram que seria bom ir morar em
uma das casas do “Minha Casa, Minha Vida” que está sendo construído em Santo
Amaro e que, inclusive, já haviam dito que elas estariam incluídas neste projeto, mas
seguem inseguras.
A insegurança tem suas razões para existir. Primeiro, porque todas elas têm visto
muitos programas na TV que denunciam problemas estruturais nas casas entregues
por este programa, colocando em risco a vida dos moradores das casas que, mesmo
diligentemente pagando as parcelas referentes à moradia, não tem a certeza de que
terão um lugar digno para viver.
Outro motivo de insegurança refere-se às informações desencontradas ou à falta
delas. Elas contaram que já houve funcionários da prefeitura que asseguraram que elas
estariam incluídas no programa federal de moradia; outros disseram que não haverá
nenhuma prioridade para aqueles que invadiram aquele terreno, ao contrário, em razão
disso elas estariam fora do projeto e que elas deveriam se organizar conjuntamente
com a associação de moradores de outro bairro para ter algo a fazer. Por mais visitas
que façam a prefeitura, contam, nunca há nada de concreto para poder se tranquilizar.
Relataram que, nos últimos tempos, tem assistido algumas movimentações no
terreno sem qualquer explicação sobre o que está acontecendo, o que as deixam ainda
mais confusas. Narraram que viram alguns engenheiros fazer a medição do terreno.
Eles disseram que não está prevista nenhuma remoção porque a construção da
universidade – ou do que quer que seja – será murada e, sendo assim, que as moradias
ficarão escondidas, ninguém irá vê-las e elas não precisarão sair de lá.
Embora nos parecesse que esta última saída fosse a que desse mais alívio àquelas
mulheres, sentimos como se houvéssemos tomados um “soco no estômago”. Se tudo o
que temos pensado, estudado, discutido, lido, crido tem tratado de uma formação que
busca romper com os limites entre universidade e comunidade, romper fronteiras e
ampliar os fluxos entre comunidade acadêmica e citadina, naquele exato momento,
nós nos vimos diante de um muro intransponível. De um lado, a universidade que
cultiva um projeto moderno, atual, interdisciplinar, renovado, inclusivo, democrático e
que está formando alunos e professores aptos a lidar com a cultura e suas linguagens,
com o patrimônio, inclusive por meio da adaptação de um prédio em ruínas para um
projeto de inclusão artística e acadêmica no cenário mundial; de outro, um muro e por
trás deles, mulheres e crianças em situação de extrema pobreza, sem qualquer
perspectiva para sua sobrevivência e segurança e que estão vendo essa mesma
universidade como uma ameaça, um risco.
Conforme essa conversa foi tomando fôlego, outras mulheres passaram a
compartilhar suas angústias sobre a chegada da UFRB. Então, nós as provocávamos.
Queríamos que elas pensassem sobre a presença da universidade naquele lugar, no
quintal da casa delas. Uma delas, depois de alguns minutos, disse, ironicamente:
“universidade? Não sei o que é”. E continuavam: “a única coisa que sei é que tem
gente que só faz vir medir. Ninguém conversa conosco, ninguém nos explica nada,
ninguém vê a gente”.
Começamos, então, a dizer que a universidade era o lugar em que elas poderiam
estar. Era, então, como se falássemos a coisa mais absurda do mundo. Elas riram,
depois, se envergonharam. Daí, uma delas nos contou que tinha parado de estudar na
quinta série, outra nos disse que “não era boa de escola”... mas, uma delas, com
apenas 21 anos, contou que já tinha até terminado o ensino médio. Então,
perguntamos se elas não queriam entrar na faculdade. Foi aí que tomamos outro “soco
no estômago” quando nos disseram, quase em uníssono: “seria muito bom se a gente
conseguisse arrumar um emprego de faxineira15”.
Lembramo-las, ainda, que aquele cenário que compunha o quintal da casa delas
seria, também, o cenário da universidade. Assim, perguntamos sobre como elas
desfrutavam daquele espaço. Elas nos contavam que era o lugar das crianças e, nos

15
Obviamente, um emprego de faxineira é algo digno e pode ser rentável, mas, sabemos, não promove projetos
muito ambiciosos de um futuro profissional, de ascensão social, intelectual ou financeira. Aquelas mulheres nos
pareceram tão cheias de vida, articuladas, conversadoras, cientes do que estavam vivendo. Parecia-nos tão pouco
ter como meta ser faxineira.

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finais de semanas, dos homens e do futebol de várzea – baba – e, mais, era no futebol
que os homens vendiam refrigerantes e cerveja para complementar a renda familiar.
Então, ali era também lugar de trabalho.
Enquanto falavam sobre esse cenário de lazer e possibilidade de renda,
começaram, também a contar que aquele espaço é, também, um lugar de violência.
Contaram dos perigos graves que cercam aquele pedaço, do corpo morto que foi
encontrado na ruína, do uso de drogas, da prostituição e dos tiros, sendo estes o foco
da maior preocupação pela vida das crianças. A conversa começou a ficar silenciosa.
Uma delas disse: “eu não quero contar, para o clima não ficar pesado, mas quando se
ouve algum tiro, saiba, foi daqui que saiu”.
Então, em meio a esta conversa um tanto angustiada e buscando um impulso de
mostrar ali a construção de um novo mundo possível pela chegada da UFRB,
comecemos a contar a elas sobre o que havíamos visto para o projeto arquitetônico do
novo campus. Na verdade, falávamos mais para nós mesmos. Olhando para as ruínas,
começamos apontar onde estava sendo projetada a biblioteca, onde ficarão as salas de
aula, o cinema, uma galeria de arte, o pavilhão com as aulas. Conforme falávamos,
uma delas disse: “então, o lugar desta 'belezura' não é aqui não. Aqui é favela, o lugar
de vocês é lá na praça, lá as coisas são bonitas, deixe a gente aqui, aqui é favela, vão
para lá. Lá é o lugar de vocês”.

Lugares determinados para determinadas pessoas. É disso que se trata a última


afirmação, capaz que resumir esse debate. Há lugares que permitem ser entendidos como
marcos culturais e simbólicos que são produzidos e modificados pelas pessoas comuns, no
cotidiano e nas suas práticas que criam uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-
lugares, a partir da formação de configurações espaço-temporários mais efêmeras e híbridas
do que os territórios sociais de identidade, como bem nos ensina Antonio Arantes (1999).
Este é um destes lugares.
É possível compreender que as moradias irregulares se montam a partir de uma ideia
de ocupação de um espaço residual, construído a partir e em relação com uma ruína – ele
mesmo, essencialmente impregnado do conceito moral de ruína. Basta pensar na expressão
“estar arruinado” que nos remete à falência, à falta de perspectiva, à finitude e à degradação
nos mais variados sentidos e percepções de nossa existência.
O vocábulo “ruína” está sempre associado à ideia de perpetuação de algo obsoleto,
degradante e decadente por sua insistência num contexto que não mais lhe pertence. A ruína é
uma manutenção teimosa de algo que não é mais merece existir, de uma estrutura desgastada,
que aciona um passado melancólico por sua persistência. Ruir também pode se referir a
valores, a memórias ou à decomposição de estruturas materiais, que avisam a existência de
um passado e, simultaneamente, a sobreposição de um presente “oxidante”. Ruínas, então,
possuem um significado ácido, tanto porque anunciam a não conservação do ontem, como
porque revelam a ação ostensiva de uma vida cambiante que, por vezes, se opõe ao passado e

16
se infiltra nos poros abertos pelo tempo. Noutros termos, ruir é mudar, mas é, antes de tudo,
sobrepor o hoje ao ontem.
As ruínas que, ali, são “cenário”, ao mesmo tempo, apresentam representações e
referências para a forma pela qual aquelas cidadãs se localizam na comunidade. As moradias
– que, também, são quase ruínas – incluem, em si, uma perspectiva de uma degradação
comportamental semelhante à corrosão nítida no arranjo daquele espaço. Ultimamente,
segundo o relato das mulheres, as ruínas foram ocupadas por pessoas de índole questionável,
onde se torna possível ouvir tiros durante a noite e discussões inflamadas. Aliado a isso, o
caráter ruinoso do lugar, rodeado de mato o torna feio, degradante e pouco atraente para
qualquer coisa senão para a favelização.
Aquele espaço que outrora fora minuciosamente projetado e erigido se tornou estorvo
urbano, ocupado por “estorvos morais”. Sejam eles as mulheres sem casa, sem marido, sem
trabalho e sem futuro ou, até mesmo, os supostos bandidos. Tudo ali fala de cidadãos
excluídos que se apropriam, caoticamente, dos espaços residuais, acelerando a sua
deterioração, convertendo-os em antros de sujeira física e moral, exalando o odor
característico do descarte segregado pelo capital. E, na percepção das entrevistadas e sem
medo de exageros, um ambiente abandonado assim deveria ser preenchido apenas por sujeitos
igualmente execrados, que se apropriaram do resto dos detritos rejeitados pelo centro urbano.
Ao entrevistarmos as moradoras das mediações das ruínas, ficou evidenciada a
repugnância que se tem por aquele lugar. Trata-se de uma área alagável, que margeia o rio,
com entorno preenchido por favelas. A “moralidade frouxa” se apropria dos espaços
abandonados pelo capitalismo, que inventa, demole, revitaliza e abandona tudo sob o prisma
da conveniência lucrativa. As senhoras donas de casa que entrevistamos se mostraram pouco
preocupadas com a revitalização das ruínas e mais preocupadas com as consequências deste
processo para si mesmas e para a clandestinidade de suas residências naquele espaço. A
aparência suja, maltrapilha e degradante das ruínas gera consensuais indagações: “Porque
aqui? Porque vocês não vão para o centro? Isso é lugar de favelado”.
Destarte, a área destinada à universidade se revela como local de presente e, como tal,
pode ser observada em relação aos processos de subjetivação e de confronto com a realidade.
Portanto, ao mesmo tempo em que uma ruína provoca rememorações de um passado,
indicando, com isso, uma mudança do percurso capitalista que surge o abandono de
determinados ambientes outrora vistos como imponentes, no tempo presente, este mesmo

17
espaço assume, em decorrência de projetos de gentrificação, um local pleno de projeções
morais e de expectativas de futuro.
A memória é, sim, seletiva. Sua seletividade obedece a processos históricos, segundo
objetivos auspiciosos de determinados grupos. Nas palavras de Halbwachs (2006), a memória
ocorre mediante um acionamento do passado pelo e no presente, logo, ela é totalmente
susceptível a manipulações segundo os valores do hoje da mesma forma que as expectativas
de futuro também o são.

Considerações Finais

Como dito anteriormente, este artigo é fruto de uma pesquisa em estágio inicial, fruto
de um projeto maior que propõe etnografar o processo de ocupação deste espaço. Como um
local de futuro, pode-se perceber, ainda, que as perspectivas sobre estas mesmas ruínas se
revelam distintas em suas expectativas na construção da cidade.
Halbwachs (2006) entende que o sujeito, situado no seu contexto social e cultural,
reivindica o passado imputando-lhe significações que o remodela em função da realidade
atual. O objeto memorado, então, jamais pode ser considerado como uma porção imutável, ele
é uma mescla de passado com intentos da narrativa efetuada no momento do acionamento da
memória. Aqui temos um mapa de expectativas se formando: Alberto volta-se à infância para
entender suas projeções de futuro como um trabalhador em uma cidade pujante. Lucília olha
de sua janela as ruínas que um dia simbolizaram o orgulho de sua família, esperando um novo
destino que reconstrua, de alguma forma, aquele passado e que, de alguma forma, já se
avizinha pela chegada da universidade. As mulheres rememoraram um passado recente de
exclusão, de ameaça e de angústia, em suas lembranças e em seu presente elas apresentaram
como um refugo de si mesmas.
A memória de Alberto e a perspectiva que ele projeta sobre as ruínas são o mote para
pensarmos no espaço como local de futuro. E, ao mesmo tempo, nos auxilia a entender como
a UFRB está projetando, também, neste mesmo espaço, uma nova leitura sobre o seu papel
social e sobre o processo de gentrificação que está sendo iniciado.
Um exemplo interessante e que revela as projeções futuras sobre este espaço é seguir
Alberto. Relembrando as ruínas, a infância, as histórias que rodam a memória da cidade do
“já teve”, Alberto diz que “a largarta que se recolhe ao casulo, num processo de vida nova,

18
ressurge como borboleta que voa para a liberdade”. Foram anos observando ruínas,
observando o que se passou, agora, a promessa de uma universidade traz à tona o sonho de ter
uma cidade com empregos e de ter uma universidade inclusiva.
Talvez, seja desejável esquecer o passado. Nessas condições, reconstruir o prédio,
dando a ele um novo sentido e uma nova estética torne-se útil aos novos projetos de uma
sociedade desenvolvida, montando um futuro que se sobreponha ao passado e garanta a
“sofisticação” de um espaço equalizado às novas tendências da Modernidade. Para observar
esta questão e fomentar outras, segue sem qualquer edição e para futuras reflexões, uma carta
de Romulo16, intitulada Escombros Temporais, contando sobre sua relação nascente com
aquele espaço:
Uma antiga fábrica e um novo sonho, é assim que eu a vejo. Para muitos são apenas
ruínas em terreno abandonado. Para outros é um refúgio de liberdade, uma terra de
ninguém ou um lugar para jogar bola com os amigos.
E minha relação com ela começou esse ano, mas o ano de 2014 não foi/é um ano
qualquer. Esse ano é o início de novas descobertas, aventuras, aprendizados e
transformações. Neste ano, quero me descobrir e redescobrir, quero ser importante,
deixar minha marca por onde eu passar.
Cheguei por essa terra, em ruínas, perdido em mim. Mas nem sempre foi assim,
antigamente eu era igual aquela fábrica, uma muralha imponente que produzia e se
sentia invencível e inabalável. Contudo, tanto eu quanto a aquela grande fábrica,
sofremos com a força do tempo, que vem te coloca em situações, te ensina e passa.
Deixando apenas as ruínas, para você ir e construir tudo de novo, tijolo a tijolo,
reorganizando o lugar da porta de entrada e a posição das janelas, porém o mais
importante é o projeto dos novos produtos que serão produzidos ali ou aqui...
Aquela imponente chaminé no coração da ruína que outrora gritava veneno daqui
um tempo estará cantando versos de um futuro melhor. Paredes que aprisionavam
escravos de uma sociedade injusta estarão guardando a produção guerreiros da
justiça. A fábrica que era apenas “o ganha pão” de uma cidade está sendo
reorganizada para se tornar pulmão da mesma, inspirando e respirando novos ares.
Minha avó já dizia “a única coisa que não podem tirar de você é o conhecimento
adquirido”, e é exatamente isso que essas ruínas representam. Ela é o conhecimento
que estamos construindo e que jamais poderá ser tirado.
Nada e ninguém podem deter a força do tempo, quando ele resolve encerrar um
ciclo, ele chega sem pedir licença, destrói todo e qualquer império e deixa apenas as
ruínas para uma nova construção. Eu guerreiro da batalha de ser quem sou. Já me vi
em ruínas algumas vezes, mas sempre, com a esperança de um jardim mais florido.

16
Romulo, assim como Alberto, é aluno da UFRB, do curso Bacharelado Interdisciplinar em Cultura,
Linguagens e Tecnologias Aplicadas. Ele é carioca e seu primeiro contato com as ruínas veio em função de sua
chegada à cidade de Santo Amaro para cursar a universidade. Seu olhar para o espaço é, essencialmente, uma
projeção de futuro.

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Bibliografia

HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.


LIRA, J. T. C. De patrimônio, ruínas urbanas e existências breves. Revista Redobra.
Salvador, n.12, 2013. pp. 168-178.
MAGALHÃES, L D. R. & ALMEIDA, J. R. M. Relações simbióticas entre memória,
ideologia, história e educação. In: LOMBARDI, J. C; et all. História, memória e educação.
Campinas: Alínea, 2011.
MATARAZZO, P. Fim de conversa: Votorantim fecha usina na Bahia e demite. Revista
Veja, 28 de outubro de 1981, p. 136.
MORAIS, J. Siderúrgica fecha após demitir funcionários. A Tarde, Salvador, p.35, 21 de
outubro de 1981. Entrevista concedida ao Jornal A Tarde.
ROSSI, A. A arquitetura da cidade. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
SIMMEL, G. Cultura femenina y otros ensayos. Madrid: Revista de Occidente, 1934.

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