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Tarrafal: ensaio visual sobre a (inexistente) memória do confinamento


geográfico

Article · November 2016

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Fátima Velez de Castro


University of Coimbra
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1

g
revista de estudos ibéricos
IBERO RAFIAS Centro de Estudos Ibéricos

Número 12
Ano XII
2016
2

coordenação deste
COORDENAÇÃO número
DESTE NÚMERO
Rui Jacinto
Alexandra Isidro
Virgílio Bento
Alexandra Isidro
REVISÃO
revisão
Ana Margarida Proença
Alexandra
Ana Sofia Pinto Cunha
Martins
Ana Margarida Proença
Ana Sofia Martins
CAPA E CONCEPÇÃO GRÁFICA
Via Coloris
capa e concepção gráfica
Via Coloris
PAGINAÇÃO
Pride Colour, Lda. - Guarda
paginação
Pedro Bandeira
IMPRESSÃO
Pride Colour, Lda. - Guarda
impressão
Marques & Pereira,
EDIÇÃO
Lda. - Guarda
Centro de Estudos Ibéricos
edição
Rua Soeiro Viegas, 8
Centro de
6300-758Estudos Ibéricos
Guarda
Rua Soeiro Viegas, 8
cei@cei.pt
6300-758 Guarda
www.cei.pt
e-mail: cei@cei.pt
site: www.cei.pt
ISSN: 1646-2858
Depósito
ISSN:Legal: 231049/05
1646-2858
Novembro
Depósito 2016
Legal: 231049/05
Novembro 2012

O Centro de Estudos Ibéricos respeita os originais dos textos,


não se forma
Os conteúdos, responsabilizando pelos conteúdos,
e opiniões expressos forma
nos textos são e opiniões
exclusiva neles expressas.
responsabilidade dos autores.

A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.
3

Índice

5 Renovar a agenda para uma cooperação inteligente - Rui Jacinto

I. As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa

09 Região Cultural - um tema fundamental - Roberto Lobato Corrêa

21 Nossa Senhora Mãe dos Homens de Araraitaguaba: o Lugar no Mapa


João Carlos Garcia

31 Atlas, Cibercartografia e Neogeografia: uma perspectiva tecnológica sobre a revolução


moderna da ciência geográfica - Rui Ferreira
5 Apresentação
45 Tarrafal: ensaio visual sobre a (inexistente) memória do confinamento geográfico
Fátima Velez de Castro
497 As
Eduardo Lourenço: as paisagens matriciais e os tempos de Coimbra
fronteiras e a Segurança Internacional na Região das Guianas - Daniel Chaves
9 Tempos de Coimbra – Eduardo Lourenço
57 Novas geografias: um olhar sobre (des)construção da saúde em territórios de
Breve percurso
15 lusofonia (Brasil eem volta de um- grande
Moçambique) nome – Maria Helena da Rocha Pereira
Paulo Nossa
Eduardocultura
19 Política,
63 Lourenço: Coimbra
e espaço ou o Lobato
- Roberto TempoCorrêa
do Conhecimento – João Tiago Pedroso de Lima
27 Eduardo Lourenço y el pensamiento de lo glocal – Fernando Rodríguez de la Flor
71 Fortaleza, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)
e a elaboração de novos mapas - José Borzacchiello da Silva
41 Mia Couto: na outra margem da palavra
Quando
43 II. as palavras
Imaginar voam à procura do mundo – Fernando Paulouro
o Território
45 Moçambique: um distante e longínquo olhar – Mia Couto (Textos) e Rui Jacinto (Fotografias)
Geografia do olhar: observar, ver, imaginar
51 Cega luz ou fonia lúcida? – João Gabriel Silva
80 Geografia do olhar: novas geografias, outros olhares - Moirika Reker
52 Mia Couto, la mirada humana y el coraje literario – Daniel Hernández Ruipérez
81 Observar o desenho do território - Henrique Cayatte
53 Uma Ibéria mais além – Joaquim Carlos Dias Valente
54 Los
83 Miaterritorios
Couto e os sonseus
viejos; las miradas
mundos deben
– Jorge ser nuevas - Fernando Rodríguez de la Flor
Sampaio
56 OMia
85 prodígio
Coutodas
ou “Perfeitas Coisas”
o falinventar - Fernando
da língua Paulourod’Oliveira Martins
– Guilherme
57 A grandeza de Mia Couto – Urbano Tavares Rodrigues
Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
58 Mia Couto, Assaltante de Fronteiras – Lídia Jorge
59 Talvez
88 …um [a função
vasto do Fotógrafo]
mundo de homens - Susana Paiva– Zeferino Coelho
e mulheres
90 O encontro
60 Fotografía de Mia Couto
y memoria com Eduardo
de la mirada Lourenço
- Victorino García –Calderón
António Valdemar
93 Raíces yy universalidade
61 Imagen – Antonio
cultura del território Colinas
- Santiago Santos
63 Inventar palavras no falar fraterno – Germano Almeida
95 Olhares locais, imagens globais - Pedro Baltazar
64 “Miar a vida…” – Ondjaki
96 A fotografia como instrumento/complemento de estudo, a imaginar o território - Jorge Pena
65 Testemunho breve – José Eduardo Agualusa
98 Imagen, territorio y su estética - Florencio Maíllo Cascón
66 Escritor-Biólogo, Biólogo-Escritor – Arnaldo Saraiva
68 O forjador de palavras e a humana Babel – Maria Antonieta Garcia
Território e imagem: lugares, paisagens, imagens
69 Elogio do mito e da lenda – José Manuel Trigo Mota da Romana
105 Geografia e imagem: peguei na máquina e levei o território para casa - José Manuel Simões
71 Mia Couto, poeta lusitano – Alfredo Pérez Alencart
115 Geografia - aproximações e afastamento - Duarte Belo
73 O lugar da fala – Paulo Archer
74 Geopatrimónio
121 e imagem
As janelas que Abril abriu: -uma
Lúcio Cunha
vista para Moçambique e para o mundo – Cristina Costa Vieira
75 Imagen,
125 memoria
Mia Couto, uma e“Bola
luchade
porNeve”
la inclusión de los –territorios
e a Guarda Antónioolvidados
José Dias- de
Valentín Cabero Diéguez
Almeida
4

Geografia e Poética do Olhar

129 Alfredo Fernandes Martins, poeta do olhar - Rui Jacinto

139 Alfredo Fernandes Martins - Geografia e Arte: em demanda duma poética geográfica

165 José Manuel Pereira de Oliveira - Espaços Urbanos: o Porto, o Mundo

171 Messias Modesto dos Passos - Bye Bye, Brasil: uma viagem pelos sertões

179 Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro - Paisagens, Olhares, Desenhos

187 Valentín Cabero Diéguez - Reencuentro con el “locus”: escalas y formas de una mirada

197 Rogério Haesbaert - Lugares que fazem a diferença

203 Jorge Gaspar - Breve roteiro de memórias e vivências. Contextos, morais, passado e futuro

Monteiro Gil: A Cor do Olhar

221 Olhar com outros olhos - Rui Jacinto

224 “Olhos nos Olhos” - Monteiro Gil

230 Um itinerário poético pela obra fotográfica de Monteiro Gil - Marcela Vasconcelos

234 “Imaginary Travel Around the USA” - Monteiro Gil

240 Monteiro Gil - António José Dias de Almeida

244 Monteiro Gil: Curriculum Vitae

III. Prémio Eduardo Lourenço [XII Edição | 2016]

251 Luís Sepúlveda: breve perfil

253 Prémio Eduardo Lourenço [2004-2015]. Premiados

Intervenções na Sessão de Entrega do Prémio Eduardo Lourenço 2016

255 Álvaro dos Santos Amaro

257 Eduardo Lourenço

259 Fernando Paulouro

262 Luis Sepúlveda

IV. CEI Atividades 2016

267 Ensino e Formação

269 Investigação

270 Eventos e Iniciativas de Cooperação

274 Edições
5

Renovar a agenda para


uma cooperação inteligente

Rui Jacinto
CEGOT - Universidade de Coimbra

O Centro de Estudos Ibéricos continua apostado em esbater fronteiras, geográficas e


disciplinares, como atesta a presente edição de Iberografias, Revista de Estudos Ibéricos, que
testemunha novas parcerias e integração em redes que, concorrendo para a sua internacio-
nalização, aprofundam o diálogo com os Países de Língua Portuguesa e Ibero-americanos. O
reforço desta cooperação estratégica percorre várias iniciativas, com destaque para duas das
mais emblemáticas: o Curso de Verão, cuja XVI edição decorreu entre 6 e 9 de julho, subor-
dinada ao tema “Espaços de fronteira em tempos de incerteza: pensamentos globais, ações
locais”; a atribuição da XII edição do Prémio Eduardo Lourenço (2016) a Luís Sepúlveda.
As 30 comunicações apresentadas no Curso de Verão permitiram contactar com realida-
des bem diversas, trocar olhares sobre territórios próximos e distantes, desde a raia central
ibérica ao interior mais profundo do Brasil e de Moçambique. Além de Portugal e de Espanha
(Universidades de Coimbra, Aveiro, Porto, Salamanca e do Politécnico da Guarda), houve in-
vestigadores oriundos de Moçambique (Universidade Eduardo Mondlane), do Brasil (Univer-
sidade Estadual Paulista - Presidente Prudente, Federal do Rio de Janeiro, Federal e Estadual
do Maranhão) e dos EUA, representados pela Towson University e por Rita Costa Gomes,
animadora da Oficina “História da Guarda: história ibérica, história local sem muros”.
A entrega do Prémio Eduardo Lourenço a Luís Sepúlveda vinca o diálogo ibérico alargado
que o CEI prossegue, de que a vida e a obra, tanto do Patrono do Prémio como do autor
premiado, são inspiradoras. Ao reconhecer o trabalho deste escritor em louvor da Língua e
da Cultura espanholas, fez-se justiça tanto à pátria idiomática, que tem a dimensão plurina-
cional de vários continentes, como a “uma aventura criadora em que o Homem é a medida
de todas as coisas”.
Várias iniciativas reforçam o trabalho desenvolvido no âmbito da divulgação científica e
do apoio à investigação, designadamente as vinculadas ao território, relevando a que inte-
grou a 18ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, enquadrada no projeto “As Novas
Geografias dos Países de Língua Portuguesa”, bem como o “Transversalidades - Fotografia
sem Fronteiras” (concurso, catálogo e exposição de fotografia), complementado pelo deba-
te-mostra “Imaginar o Território: Geografia e Poética do Olhar”. Se aquela iniciativa propor-
cionou um profícuo diálogo entre Portugal e o Brasil a partir das cartografias que as novas
geografias dos dois países estão a (re)desenhar, “Imaginar o Território: Geografia e Poética
do Olhar” desdobrou-se em duas abordagens complementares. Uma centrada no debate
sobre a importância e os múltiplos significados da imagem nas sociedades contemporâneas,
onde se enfatiza a geografia do olhar, a memória e a cultura territorial, bem como as imbri-
cadas relações que a imagem mantém com o território, sejam de cumplicidade, exclusão ou
esquecimento. Outra, focada na “Geografia e Poética do Olhar”, corporizada numa mostra
que explora a relação entre geografia e imagem a partir do uso dado por alguns geógrafos
de referência: Alfredo Fernandes Martins e José Manuel Pereira de Oliveira (Universidade
de Coimbra), Valentín Cabero Diéguez (Universidade de Salamanca), Messias Modesto dos
Passos (Universidade Estadual de São Paulo - Presidente Prudente), Carlos Augusto de Fi-
gueiredo Monteiro (Universidade de São Paulo), Rogério Haesbaert (Universidade Federal
Renovar a agenda para uma cooperação inteligente
6

Fluminense) e Jorge Gaspar (Universidade de Lisboa). Refira-se que esta iniciativa assinala
ainda o Centenário do nascimento de Alfredo Fernandes Martins (1916-1982) e o décimo
aniversário do falecimento de José Manuel Pereira de Oliveira (1928-2006). O olhar cruzado
desta opção permite colocar em diálogo olhares que se formaram em diferentes tempos e
em espaços de distintos continentes. A especificidade de cada olhar carregou cada imagem
duma geograficidade intrínseca que a extravasa e contamina o discurso imagético de cada
um daqueles autores.
A quinta edição do Concurso “Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras” (2016)
mostrou a vitalidade do projeto e a capacidade do CEI superar âmbito estritamente transfron-
teiriço. Os resultados quantitativos e qualitativos alcançados atestam a maturidade e a valia
da iniciativa: foram submetidas cerca de 700 candidaturas (mais do dobro do ano passado)
e a sua penetração aumentou, atingindo uma representação superior a 30 países. Embora
predominem concorrentes de Portugal (30%) e do Brasil (28%), a presença da América La-
tina é relevante (16%), sobretudo da Argentina com 7%, bem como dos Países de Língua
Portuguesa (especialmente Moçambique).
Estamos perante um concurso predominantemente jovem (mais de 40% dos concorrentes
tem menos de 30 anos), equilibrado em termos de género (mais de 40% dos concorrentes
são do sexo feminino) e com uma elevada taxa de participação de profissionais (fotógrafos,
fotojornalistas, jornalistas, designers e outras ligações às artes, etc.). As sete centenas de par-
ticipantes, provenientes de quase todos os continentes, asseguram uma representatividade
alargada, geográfica e profissional, lançando múltiplos olhares sobre pessoas e paisagens
que garantem uma mostra onde podemos contemplar a riqueza e a diversidade natural,
humana e cultural do planeta.
É de sublinhar, ainda, a exposição “Olhos nos Olhos”, do fotógrafo Monteiro Gil, integra-
da na justa homenagem que lhe será prestada, como reconhecimento da sua obra artística e
do inestimável contributo que deu para lançar e consolidar o Transversalidades.

Rui Jacinto
7

I. As Novas Geografias dos


Países de Língua Portuguesa
Diálogos lusófonos: o Brasil no Curso de Verão 2014
8
9

Região Cultural - um tema fundamental


Roberto Lobato Corrêa
Professor Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Este texto procura discutir o conceito de região cultural visando apontar um caminho
de investigação sobre a dinâmica regional em um país profundamente heterogêneo como
o Brasil. A temática da região cultural tem longa tradição na geografia, contribuindo para a
compreensão da ação humana no tempo e no espaço.
O trabalho divide-se em cinco partes. Na primeira conceitua-se brevemente a região
cultural, enquanto na segunda discute-se sobre o processo de identificação e formação de
regiões culturais nos países de povoamento europeu. Três exemplos de regiões culturais e a
perspectiva política em torno da qual uma leitura pode ser feita, constituem, respectivamente,
a terceira e a quarta parte deste texto. A quinta e última focaliza a temática da região cultural
considerando o Brasil. Isto será feito a partir de alguns pontos que resgatam aspectos
discutidos anteriormente.

Região Cultural - Uma Definição

Regiões culturais são áreas habitadas “em qualquer período determinado por
comunidades humanas caracterizadas por culturas específicas” (Wagner e Mikesell, 2000,
p. 122), identificadas com base na combinação de traços culturais materiais e não-materiais,
que tendem a originar uma paisagem cultural, como evidenciado nos estudos das regiões
francesas empreendidas pela Escola Vidalina de geografia. As regiões culturais são áreas
apropriadas, vivenciadas e por vezes disputadas. Apresentam geo-símbolos, fixos diversos que,
por serem dotados de significados identitários fortalecem a identidade cultural dos grupos
que as habitam (Bonnemaison, 2000). As regiões culturais são, via de regra, nomeadas,
isto designando-as como diferentes entre si. A contigüidade espacial dos traços culturais
é fundamental para a sua constituição, pois dela depende a comunicação imediata entre
os seus membros, por meio da qual a existência e reprodução cultural é em grande parte
viabilizada. Por outro lado, as regiões culturais podem ser reconhecidas em diversas escalas
espaciais, constituindo a mais contundente expressão da espacialidade da cultura.
Sua importância não reside na identificação e descrição de diferenças regionais como um
fim em si mesmo, mas como um meio para a compreensão da diferenciada e desigual ação
humana no espaço e no tempo. Compreensão que pode contribuir para políticas culturais
que visem aquilo que Mitchell (2000) denomina justiça cultural, para a qual a espacialidade
é constituinte. A sua importância é enorme no âmbito da Escola de Berkeley, na qual,
juntamente com cultura, paisagem cultural, história da cultura (no espaço) e ecologia cultural,
constitui um dos temas preferenciais (Wagner e Mikesell, 2000). Ressalta-se que as regiões
culturais não são permanentes. Criações humanas estão submetidas a processos culturais
que, em maior ou menor grau as transformam. O grau de transformação, acentuado pela
globalização, a sua natureza e os agentes sociais de mudança e de resistência, são pontos
que interessam à geografia cultural, valorizando as regiões culturais e o seu estudo.
Norton (2000) aponta três tipos de regiões culturais, a saber: regiões formais, funcionais
e vernaculares. Os dois primeiros tipos podem também ser referidos à geografia econômica
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
10

ou urbana. Em relação à geografia cultural a região formal é definida pela uniformidade


de um ou mais traços culturais, a paisagem, língua, religião ou etnicidade, por exemplo.
Corresponde à área cultural dos antropólogos e pode apresentar variadas dimensões. A
região dos mórmons é um exemplo. A região funcional é definida pela conectividade e pode
incluir desde o lar a toda a superfície terrestre. Admitimos que as áreas de jurisdição das
dioceses católicas sejam um exemplo desse tipo. A região vernacular, por fim, constitui-se
em tipo de interesse específico da geografia cultural. Nela diversos traços culturais estão
combinados. Pode ser entendida como produto da percepção espacial dos habitantes da
região e de fora dela, apresentando nítida identidade reconhecida pelo nome. Corresponde,
quando associada a uma pequena dimensão, ao “pays” da cultura francesa. A região dos
“cajuns”, no delta do Mississipi é um exemplo de região vernacular. Além desses três tipos de
regiões culturais, foram reconhecidas também “ilhas culturais”, pequenas áreas étnicas que
se distinguem no interior de regiões formais. Exemplifica-se com os menonitas, que tendem
a se organizarem espacialmente em “ilhas culturais”.
As regiões culturais distinguem-se, assim, das regiões econômicas, urbanas ou políticas,
ainda que nas regiões vernaculares haja superposição entre elas. Mas o foco da investigação
é a cultura, a partir de um ou mais traços culturais, etnia, língua, religião, costumes, valores e
práticas produtivas entre outros traços. Subjacente está uma definição abrangente de cultura,
incorporada pela Escola de Berkeley a partir dos contatos com os antropólogos culturais.
Os geógrafos vidalinos, por sua vez, a partir de outras matrizes, têm também uma noção
abrangente de cultura. É esta, desprovida de qualquer sentido supraorgânico ou vista como
superestrutura que, no nosso entender, devem pautar-se os estudos sobre regiões culturais:
a cultura é simultaneamente meio, reflexo e condição de existência e reprodução dos grupos
humanos. A este respeito veja-se Corrêa (2003).

Identificação e Formação de Regiões Culturais

Na identificação de regiões, conceitualizadas quer a partir de atributos fixos, quer envolvendo


interações espaciais, são utilizados usualmente os dois procedimentos da classificação, o
agrupamento e a divisão lógica (Grigg, 1967, Harvey, 1969). No primeiro procedimento as
unidades de área, os municípios, por exemplo, são progressivamente agrupadas até alcançar-
se o universo, um dado país, por exemplo. A meio caminho estão as regiões. No segundo
procedimento, menos adotado pelos geógrafos, o universo é progressivamente dividido até
alcançar-se as unidades de área, estando as regiões também a meio caminho. No agrupamento,
que se processa ascendentemente, o pesquisador considera regiões como regularidades
empíricas, enquanto no segundo, que se processa descendentemente, o pesquisador procura
diferenças. Em ambos os procedimentos, no entanto, trata-se de operação sistemática,
formal, dependente do rigor estatístico que estabelece a homogeneidade relativa de cada
região e de uma avaliação por parte do pesquisador na decisão de fazer emergir as regiões.
A contigüidade é de fundamental importância na identificação das regiões. Em ambos os
procedimentos as regiões diferenciam-se entre si de acordo com a intensidade, expressa em
variáveis agregadas dos mesmos atributos, fixos ou associados a fluxos. Ressalta-se que ambos
os procedimentos têm enorme validade para o conhecimento da realidade socioespacial.
Na identificação de regiões culturais consideram-se principalmente informações qualitativas
que podem revelar diferenças de natureza e não de intensidade, indicando que as regiões
culturais podem ser únicas em termos de suas configurações e conteúdos, cercadas por
regiões caracterizadas por outras configurações e conteúdos. Se os procedimentos formais
de classificação produzem regiões definidas por continuidades variáveis, nos procedimentos
qualitativos verificam-se descontinuidades e rupturas abruptas entre as regiões. O caráter
único a que se refere, no entanto, não deve ser entendido de forma absoluta, mas como o
resultado de uma combinação singular de processos gerais e específicos.
Na identificação de regiões culturais a perspectiva saueriana é de fundamental importância.
Parte-se do foco inicial da região, enfatizando-se o seu processo de formação, no qual os
mesmos traços culturais irão gerar essas regiões. Trata-se de análise calcada na perspectiva
da difusão espacial da cultura, cara à Escola de Berkeley (Gade, 2004). É, assim, uma análise
do processo de espacialização de uma cultura, de sua própria formação, envolvendo espaço
e tempo (Norton, 2000). Isto significa dizer que não são necessariamente considerados
Roberto Lobato Corrêa
11

atributos comuns, quantitativamente descritos e diferenciados. Esta perspectiva, por outro


lado, é útil para os países de povoamento verificado a partir do século XVI, como os Estados
Unidos e o Brasil, entre outros, nos quais a formação de regiões culturais é recente, em
muitos casos originando-se no século XIX e mesmo no século XX, não possuindo, portanto,
“regiões enraizadas”, como se refere Frémont (1973) para as regiões européias, asiáticas e
africanas, cujas raízes recuam muito no tempo.
No processo de identificar, descrever e analisar regiões culturais, alguns conceitos,
elaborados no âmbito da Escola de Berkeley, podem ser úteis; compõem eles o quadro de
compreensão das referidas regiões. Entre eles estão:
– foco inicial (hearth) - local cujos atributos foram difundidos para um dado espaço que
passa a se caracterizar por uma homogeneidade cultural; trata-se do berço histórico de
uma região cultural, apresentando-se impregnado de simbolismo;
– núcleo (core) - centro de controle e área onde os traços culturais são mais intensos; o
núcleo pode se confundir com o foco inicial;
– domínio (domain) - área onde os traços culturais difundidos são dominantes, a despei-
to da presença de traços de outras culturas; e
– franja (sphere) - periferia da região cultura, na qual os traços culturais difundidos não
são dominantes, verificando-se a presença de traços culturais de outras regiões.
Se o primeiro conceito é eminentemente saueriano, os três últimos foram propostos
por Meinig (1965) ao estudar a região cultural dos mórmons, localizada no estado norte-
americano de Utah. Sua proposição é aplicada mais eficientemente às regiões isoladas e com
traços culturais bem distintos, como aponta Norton (2000). Entretanto, constituem os quatro
conceitos em referencias gerais. O conceito de franja em particular é extremamente útil, pois
descreve os limites culturais como uma zona de transição entre duas ou mais culturas. Este
conceito, na verdade, é pertinente na delimitação de regiões de qualquer tipo ou de áreas
intraurbanas, sendo um conceito tradicional no âmbito da geografia.
Vários focos iniciais ou núcleos foram evidenciados nos Estados Unidos, localizados tanto
na costa atlântica, no golfo do México, como na costa pacífica, evidenciando a complexidade
do processo de formação de regiões culturais. Também foram evidenciadas fases com que
a formação de regiões culturais se verificou, conforme sumariada por Norton (2000). É
sabido que no Brasil houve vários focos iniciais no processo de formação regional. Estes
focos localizam-se ao longo do litoral, a exemplo de Salvador, Rio de Janeiro e São Luís,
mas também no interior, a exemplo de São Leopoldo e Blumenau. A existência de múltiplos
focos iniciais apenas ratifica a tese da realidade ser mais complexa que as nossas teorias sem,
contudo, invalidá-las.
O conhecimento do processo de formação de regiões culturais em países de povoamento
europeu é enriquecido com base na proposição de R. D. Mitchell, comentado por Norton
(2000). Sua contribuição enfatiza a complexidade da formação dessas regiões derivada de três
processos específicos contidos na difusão espacial: duplicação, desvio e fusão. No processo
de duplicação os traços culturais de um foco inicial ou núcleo são reproduzidos em outras
áreas. Os traços culturais originais podem, no entanto, ser alterados, dadas outras condições
ocorrendo na nova área: trata-se do desvio. A fusão, por fim, constitui-se no mais freqüente
processo pelo qual novas regiões culturais são formadas: nele fundem-se traços culturais
oriundos de dois ou mais focos iniciais ou núcleos, com a resultante formação de uma nova
região cultural. Duplicação, desvio e fusão são processos que interessam à geografia cultural
brasileira, que deve enfrentar a problemática da compreensão de um intenso e atual processo
de reconfigurações regionais.
O conhecimento do processo em tela recebeu ainda importante contribuição de Meinig
(1972). Em seu estudo sobre o Oeste americano foram identificados estágios de evolução
regional, que reafirmam o caráter evolutivo das regiões culturais. O primeiro estágio é o do
transplante cultural, no qual verificam-se experimentações e adaptações ao novo ambiente.
O segundo estágio foi denominado de cultura regional, no qual estabelece-se uma sociedade
regional. O terceiro estágio, por sua vez, foi denominado impacto da cultura nacional, no
qual padrões culturais gerais penetram na região, graças às melhorias nas comunicações. O
quarto estágio, finalmente, é o da dissolução da região cultural e o aparecimento de novas
configurações culturais, resultantes do processo de fusão. Os dois últimos estágios marcam a
integração nacional e definem a perda da identidade regional.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
12

A proposição de Meinig tem uma nítida característica seqüencial, assemelhando-se aos


estágios do ciclo da vida ou modelo de evolução do relevo de W. M. Davis. Por outro lado,
deixa de lado o fato de que durante o estágio de transplante cultural, ou antecedendo-o,
verificou-se aquilo que se pode denominar de limpeza étnica, com a expulsão ou extermínio
de povos indígenas. Contudo, apesar destas ressalvas, consideramos a proposição de Meinig
a respeito da criação, desmantelamento, paralelo ou não, e recriação de regiões culturais,
objeto para reflexão em uma perspectiva crítica. Esta proposição repensada pode ser útil para
a compreensão da dinâmica regional brasileira, em relação a qual mais tarde será abordada.
Finalmente, no processo de formação de regiões culturais nos países de povoamento
europeu, Newton, comentado por Norton (2000) aponta três mecanismos pelos quais a
cultura que se instala, constituída por imigrantes, estabelece relações com o novo ambiente.
São os mecanismos de predisposição cultural, adaptação cultural e o de autoridade da tradição.
Estes mecanismos revelam matrizes culturais distintas, calcadas em práticas ecológicas em
contextos ambientais semelhantes ou diferentes nas regiões de origem.
Esta proposição deve ser discutida ao se considerar o Brasil onde no século XIX imigrantes
oriundos de áreas de clima temperado e organizados em um sistema comunitário, aldeão,
ocuparam áreas sub-tropicais com base em um sistema não-comunitário. Ainda no último
quartel do século XX correntes migratórias dirigiram-se de áreas de mata para áreas de cerrado
e campos ou, então, de áreas de caatinga para áreas de floresta equatorial. Será possível falar
em níveis de adaptação cultural que, no limite, incluiria o de inadaptação cultural?

Regiões Culturais: Exemplos

Os exemplos a seguir recobrem diferentes contextos sócio-culturais. De comum entre eles


está a relação identitária do grupo com uma dada porção da superfície terrestre, a região
cultural, construída e vivenciada objetiva e simbolicamente e, se necessário for, defendida
contra interesses estranhos ao grupo cultural. Nos três exemplos abaixo, que não esgotam a
complexidade das regiões culturais em termos de gênese, dinâmica , nível de desenvolvimento
das forças produtivas e das relações entre o grupo cultural e a natureza, entre outros aspectos,
contemplam-se a base religiosa de uma região cultural, o caráter primitivo de uma cultura
e seu espaço, sujeito a desagregação, e o processo de transformação de região cultural
que, mantida relativamente pouco aberta, ao ser mais intensamente incorporada ao mundo
urbano-industrial passa por processo de desagregação, que pode descaracterizá-la. Os três
exemplos ratificam a instabilidade das regiões culturais.
A região cultural dos mórmons, estudada por Meinig (1965), constitui-se em importante
exemplo. Localiza-se no Oeste americano, encravada nas Rochosas, estendendo-se sobretudo
pelo Estado de Utah. Sua formação se dá a partir da década de 1840 e representa o
encontro, apropriação e garantia da “Terra Prometida”, o Deseret dos mórmons, onde estes,
os “santos”, poderiam viver sem contatos com os “gentios”, os não-mórmons. A região está
impregnada de inúmeros significados associados às terras bíblicas, o deserto, as montanhas
e o Salt Lake, este simbolizando o Mar Morto.
A região cultural dos mórmons é assimétrica, apresentando-se descontínua em sua
periferia. Meinig dividiu-a em três áreas, núcleo (core), domínio (domain) e franja (sphere).
A primeira, situada no Oásis Wasatch, constitui-se na área de maior intensidade dos traços
culturais mórmons, localizando-se aí Salt Lake City com o principal templo mórmon. O
núcleo estende-se por 65 milhas ao norte e ao sul de Salt Lake City. A área denominada
domínio apresenta ainda o predomínio de mórmons, mas não a mesma intensidade dos
traços culturais. Estende-se por oito condados homogeneamente mórmons, localizados em
Utah e nas áreas sudeste de Idaho e sudeste de Nevada. A franja, finalmente, caracteriza-
se pelo fato dos mórmons não serem majoritários, em muitos casos vivendo encravados
em zonas habitadas predominantemente pelos “gentios”. Seus limites são difíceis de serem
traçados, havendo descontinuidades espaciais.
Habitando os interflúvios cobertos pela floresta tropical, os ianomâmis são um povo
simultaneamente dedicado à agricultura itinerante, coleta, caça e pesca. A floresta é o seu
território, relacionado a todos os aspectos essenciais da vida, pois a floresta é uma fonte
inesgotável de recursos alimentares, materiais para diversos artefatos, medicinais e ligados
à magia. A associação entre a floresta e a territorialidade traduz-se em um único termo que
Roberto Lobato Corrêa
13

simultaneamente significa floresta e terra apropriada (Birraux-Ziegler, 1995).


Na floresta-território os ianomâmis nasceram, cresceram, plantaram, combateram os seus
inimigos e morreram. Contém, assim, a memória deles, assumindo uma relação identitária.
É também a terra para os seus descendentes. O território significa, portanto, passado,
presente e futuro, memória, identidade e reprodução. Mais do que isto, a floresta-território é
o espaço sagrado, abrigando os seres pertencentes à cosmologia ianomâmi, os quais devem
ser respeitados. A destruição da floresta significa a destruição de tudo, dos seres naturais e
sobrenaturais: “Omame, o herói-criador da humanidade ianomâmi partirá da terra e todo o
grupo não existirá mais” (Birraux-Ziegler, 1995, p. 185).
A região cultural dos “cajuns”, localizada no sudoeste do Estado norte-americano de
Louisiana (Waddell, 1987), constitui-se em exemplo de região cultural que se manteve bem
definida e internamente integrada enquanto manteve-se relativamente isolada do mundo
anglo-americano.
Seu povoamento inicia-se após 1755, quando a colônia francesa de Acadie, no Canadá, é
tomada pelos ingleses e rebatizada de Nova Scotia. Descendentes de franceses migram para
o que se tornaria a colônia francesa de Louisiana, ocupando as áreas baixas e pantanosas
junto ao litoral. Além dos acadianos, de onde provém cadien, cadijin e cajun, vieram
também outros brancos, sobretudo de cultura hispânica, e negros escravos. A partir de 1900
excedentes demográficos “cajuns” migram para a vizinha área do Texas, estabelecendo uma
periferia da cultura “cajun” (Louder e Leblanc, 1987).
A língua dominante na Louisiana “cajun” é a francesa em suas diversas versões , como
o francês padrão, o “cajun” e o “creóle” dos negros e mestiços. A população de língua
francesa, estimada em 1975 entre 300.000 e 500.000 habitantes, é predominantemente
católica. Há forte convívio internacional, e uma relativa mestiçagem (Waddell, 1987). A
pesca, extração de recursos naturais e a pequena agricultura ou criação constituíam-se na
base econômica regional até a década de 1930, quando a extração e exploração de petróleo
atraiu parcela crescente da população “cajun”.
As atividades econômicas regionais foram afetadas, mais integradas e dependentes da
economia industrial norte-americana. Os padrões culturais tradicionais, marcas identitárias
dos “cajuns” foram abalados, a língua, a fé católica, a dieta alimentar, a vida familiar, a
rede instrumental intra-étnica, a adaptação e exploração do meio ambiente e a “joie de
vivre” (Larouche, 1987). A identidade do grupo é afetada. O movimento de integração e
aculturação, no entanto, não é linearmente progressivo: os momentos de solidez econômica
e sucesso das elites “cajuns” traduzem-se em renascimento da identidade; em momentos de
crise econômica a identidade “cajun” é menos proclamada e valorizada.
A despeito dos esforços visando reforçar e dar visibilidade à cultura “cajun”, como a
transformação em 1968 de toda a Louisiana em Estado bilíngüe e a criação oficial, mas
não demarcada territorialmente, da “região cultural” denominada “Heart of Acadiana”,
em 1971 (Waddell, 1987), a região cultural dos “cajuns” desmantela-se. Larouche (1987)
admite a possibilidade dela se transformar em um “gueto cultural” ou, como preferimos,
uma região residual, cujos traços identitários mais visíveis tornaram-se mercantilizados por
todo os Estados Unidos, a música e a cozinha “cajun”.

Região e Política Cultural

A região cultural, enquanto espaço apropriado e controlado, ou a ser incorporado, por


um dado grupo ou instituição, torna-se objeto de políticas culturais que visam contribuir
para a sua manutenção, expansão ou incorporação. Práticas culturais diversas envolvendo
celebração, memorialização e a criação de símbolos identitários, entre outros, criam e
reafirmam a apropriação regional (Johnson, 1995, Azaryahu, 1996). Trata-se, no dizer de
Smith (1999) de “política cultural das diferenças” ou, segundo Azaryahu e Golan (2001), de
“engenharia cultural”. Os exemplos a seguir evidenciam a complexidade das relações entre
região e política cultural, envolvendo a toponímia, origem étnica e sua associação com vários
aspectos e a variação ao longo do tempo de práticas visando a apropriação de regiões.
A toponímia não é apenas um traço identitário, mas também um importante meio pelo
qual articulam-se linguagem, poder e território. Nomear a natureza e lugares é um exercício
de autoridade e evidência de poder, sendo ainda instrumento de identidade de um grupo ou
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
14

instituição e autenticação da apropriação territorial (Azaryahu e Golan, 2001). Os exemplos


de mudanças de nomes de cidades em Israel e no Casaquistão são elucidativos a respeito da
política cultural do Estado. O exemplo do País Basco diz respeito a um território contestado,
no qual a toponímia desempenha um papel significativo. O exemplo da Amazônia na segunda
metade do século XVIII é contundente a respeito das relações entre toponímia e território.
O governo israelense ao estabelecer a partir de 1949 a política de hebraicização do
país, revivendo a Terra de Israel e a cultura hebraica, alterou o nome de rios, montanhas e
cidades, substituindo nomes árabes e cristãos por nomes hebraicos,. O mapa de Israel teve
a sua toponímia alterada. Assim, a cidade de Tel Rabia, fundada em 1909, foi renomeada
para Tel Aviv, enquanto Um Haled passou a se chamar Netanya (Azaryahu e Golan, 2001).
Semelhantemente, a partir de 1991, com a independência da ex-república soviética do
Casaquistão, implanta-se uma política de desrussificação do país, substituindo-se os
topônimos russos por aqueles de língua casaque. A identidade nacional é, assim, melhor
explicitada. A antiga capital Alma Ata é redenominada Almaty e transfere-se a capital para
Tselinograd, redenominada Astana (Brunet, 2002).
No País Basco, onde há um muito significativo movimento separatista, as cidades possuem
nomes em castelhano e em basco. Para os nacionalistas bascos há um território simbólico,
com identidade basca e identificado pela língua. Esse território estende-se à província de
Navarra, de minoria basca e à área fronteiriça francesa. Este território simbólico, associado
ao passado, está representado cartograficamente em livro da escola secundária, no qual
não aparecem nem a fronteira com a província de Navarra, nem a fronteira francesa. Todos
os nomes estão na língua basca, a exemplo de Iruñea (Pamplona), Donostia (San Sebastian)
e Garazi (Saint Jean Pied-de-Port), esta última na França (Loyer, 2002). Símbolo identitário;
os nomes no território contestado, como os próprios limites, devem ser, por meio de uma
política cultural, aprendidos por todos os bascos.
Os esforços de apropriação efetiva da Amazônia por parte do governo português na
segunda metade do século XVIII, sob os auspícios da Companhia Geral do Grão-Pará e
Maranhão, levou à redenominação de inúmeras vilas, antigas missões religiosas, com nomes
de povoações lusas: Alenquer, Almeirim, Barcelos, Breves, Ega, Faro, ... Óbidos, Santarém,
entre outras. Deste modo estabelece-se uma marca, a ser difundida para todos, marinheiros
e homens de negócios, e expressa cartograficamente, que não apenas identifica cada núcleo
de povoamento, mas também todo o território da Amazônia como posse portuguesa (Nunes
Dias, 1970). Linguagem, poder e território estão articulados.
A idéia de que uma dada cultura tende a se organizar espacialmente de modo coeso,
possibilitando identificar regiões culturais, não foi adotada apenas em termos acadêmicos,
visando evidenciar a ação de complexos processos de diferenciação e homogeneização, de
cujo embate derivam regiões culturais. Estas foram também objeto de ações políticas visando
controlar grupos culturais ou ampliar o espaço de um dado grupo. A região cultural passa a
adquirir inequivocamente o estatuto de território, um conceito primordialmente vinculado à
geografia política.
De acordo com Ditt (2000), desde o final do século XIX, na Alemanha, a temática das
regiões culturais foi objeto de interesse, visando identificar os limites do mundo germânico.
A distribuição espacial de dialetos, habitat rural, maneiras, costumes e leis foram mapeados.
Apropriada pelo 3º Reich a noção de região cultural foi objeto de intensa atenção, visando
justificar uma possível anexação de territórios ocupados e que, no passado, teriam sido
povoados por tribos germânicas. Nesse sentido destacam-se os estudos do historiador Franz
Petri com os seus estudos sobre traços culturais do passado no norte da França, Bélgica
e Holanda. Áreas culturais do passado seriam, assim, justificativas para a ação política
expansionista. Argumentos dessa natureza não são incomuns na história e geografia. Afinal,
a noção de região cultural está associada à identidade de grupos lingüísticos, religiosos e
religiosos com organizações sociais distintos. Geografia e história cultural têm a sua dimensão
política.
A expansão européia no século XIX fornece inúmeros exemplos nos quais regiões culturais
foram objeto de ações políticas, ora agrupando sob uma mesma administração colonial
diversas etnias e seus territórios, ora separando uma mesma etnia e seu território, de modo
que ficasse subjugada a duas administrações coloniais distintas. Um país como a Nigéria tem
em seus limites territoriais grupos culturais distintos, iorubas, ibos e haussas, entre outros,
Roberto Lobato Corrêa
15

e em conseqüência, problemas derivados dessa heterogeneidade territorial imposta. Esta


situação, no entanto, é encontrada, por razões profundamente distintas e mais antigas, na
própria Europa. Países como a Bélgica e a Espanha não são culturalmente homogêneos:
no primeiro distingue-se uma região cultural flamenga e outra valã, enquanto na Espanha
castelhanos, catalães, bascos e galegos convivem com suas identidades, seus territórios e
conflitos. Os exemplos europeus são numerosos, envolvendo, entre outras, a Europa Central,
os Bálcãs e a antiga União Soviética.

As Regiões Culturais e o Brasil

As regiões culturais não se constituem em objeto de interesse por parte dos geógrafos
brasileiros, a despeito, de um lado, da heterogeneidade cultural do país e, de outro, do
interesse dos geógrafos pela regionalização. Assim, desde o início da década de 1940, foram
definidas as regiões naturais brasileiras (Guimarães, 1941) e regiões marcadas pela ação
humana, como aquela da divisão regional do Brasil realizada pelos geógrafos do IBGE em
1967. Mesmo que aspectos culturais fossem considerados, o interesse pela regionalização do
país esteve assentado em bases econômicas, tendo sido definidas tanto regiões homogêneas
como regiões funcionais. Indicadores associados à divisão territorial do trabalho, condições
de vida e lugares centrais foram considerados, deixando-se de lado indicadores de raça,
religião, modo de falar, dieta alimentar, origem étnica, etc.
O interesse pelas regiões culturais aparece entre não-geógrafos. A década de 1930
vê surgirem os primeiros estudos definindo regiões culturais, valorizando a habitação ou
a alimentação ou ainda a cultura segundo uma acepção mais ampla. Os trabalhos de
Donald Pierson e Mário Wagner Vieira da Cunha são exemplos (Diégues Jr., 1977). Roger
Bastide (1980/1958) e Manuel Diégues Jr. (1977) contribuíram para a temática, o primeiro
identificando tipos e regiões culturais contrastantes e o segundo um conjunto de regiões
culturais. É olhar a procura da heterogeneidade cultural do espaço que permite identificá-las,
como se deu entre os referidos não-geógrafos.
A identificação e descrição de regiões culturais por Manuel Diégues Jr., publicada
originalmente em 1952, foi baseada no processo de ocupação humana, no qual articulavam-se
aspectos do meio natural e da atividade econômica preponderante. Cada região apresentava
“tipos humanos característicos (...) condições sociais específicas (e) situação representativa da
atividade implantada” (p. 36). As regiões identificadas foram as seguintes:

1 – Nordeste Agrário do Litoral


2 – Mediterrâneo Pastoril
3 – Amazônia
4 – Planalto Minerador
5 – Centro-Oeste
6 – Extremo-Sul Pastoril
7 – Áreas de Colonização Européia
8 – Área do Café
9 – Faixa Urbano-Industrial
10 – Área do Cacau
11 – Área Salineira
12 – Áreas de Pesca

As 12 regiões foram reunidas em dois grandes grupos. As nove primeiras caracterizavam-


se por processo específicos de formação, sendo dotadas de autonomia. O segundo grupo,
constituído pelas três últimas regiões, não apresentava a autonomia das demais regiões,
estando unidas a algumas delas.
Estas regiões, vernaculares, pode-se dizer, foram definidas com base em um olhar diferente
daquele dos geógrafos que, por volta de 1955 consideravam cinco grandes regiões, Norte,
Nordeste (Ocidental e Oriental), Leste (Setentrional e Meridional), Sul e Centro-Oeste. Apenas
duas regiões, Amazônia (Norte) e Centro-Oeste eram comuns às duas divisões regionais,
construídas cada uma com perspectivas distintas. Mas ambas pertinentes aos interesses dos
geógrafos culturais.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
16

As regiões culturais propostas por Diégues Jr. foram identificadas com base em informações
referentes ao longo período que se estende do início da colonização portuguesa ao final
da década de 1940. Constitui um enorme esforço intelectual e referência obrigatória para
estudos sobre regiões culturais. As regiões culturais identificadas, contudo, apresentam,
a partir de meados da década de 1950, diferenciada capacidade de permanência, tendo
sido afetadas por processos sócio-culturais que começaram a alterá-las, afetando a longa
e relativa estabilidade que a quase totalidade delas apresentava. Poder-se-ia afirmar que
essas regiões estariam no estágio denominado por Meinig como o de impacto da cultura
nacional (e global) e, em breve, e para algumas regiões, no estágio de dissolução da cultura
regional?
Os processos de industrialização e urbanização verificados a partir da década de 1950
foram intensos e decisivos no desencadeamento de outros processos sócio-culturais e
suas conseqüências sobre as regiões culturais. A industrialização do campo, a ampliação
e diversificação de correntes migratórias, estabelecendo contatos entre culturas regionais
distintas, a continuidade da incorporação de novas áreas em escala e rapidez sem precedentes
e a efetiva integração nacional atuaram, e ainda atuam, alterando a organização espacial
brasileira. Ainda que com ritmos diferentes estão em curso e devem prosseguir. Isto nos leva,
em princípio, a considerar afirmativa a resposta à indagação acima formulada.
Cada divisão regional tem a marca de seu tempo, isto é, reflete as condições objetivas
e subjetivas de sua construção, assim como as características da realidade espacial. Ambas,
condições e realidade mudam, impondo a necessidade de revisões de ordem conceitual e
operacional. Trata-se, pode-se dizer, de uma atualização renovada.
Tendo em vista os conceitos apresentados no tópico relativa à identificação e formação de
regiões culturais, à dimensão política delas e os processos sócio-culturais em curso no Brasil,
apresentaremos alguns pontos que julgamos pertinentes a respeito das regiões culturais
brasileiras e de sua dinâmica. A proposição de Diégues Jr. constitui-se no quadro de referência
empírica para os pontos que se seguem, os quais devem ser considerados como uma base
para discussão.
I – Como se constituíram no Brasil as regiões culturais? Quais foram os seus focos iniciais
(hearths) e núcleos (cores)? A este respeito pode-se pensar na existência de dois ou
mais núcleos (cores) para cada região cultural? Pensa-se, por exemplo, no Nordeste
Agrário do Litoral, na região denominada Mediterrâneo Pastoril e nas áreas de
Colonização Européia.
II – As franjas (spheres) das regiões culturais merecem menção especial. Que meca-nismos
e agentes sociais criaram essas zonas de transição entre regiões culturais distintas?
Variaram elas no tempo, sendo caracterizadas por avanços e recuos? Que conflitos
foram estabelecidos nas diversas franjas, zonas de tensão entre culturas diferentes?
Pensa-se, a este respeito nas franjas entre áreas de distintos tipos de vegetação, floresta
e campos no Sul, floresta e cerrado no Centro-Oeste e floresta e caatinga no Nordeste.
O Agreste nordestino é, nesse sentido, uma área de interesse.
III – Que “ilhas culturais” existem no Brasil e como foram diferenciadas das regiões culturais
em que se situam? Os brejos de altitude ou de exposição do Nordeste e áreas ocupadas
por pequenos grupos, como os menonitas e ucranianos no Paraná, aparecem como
áreas de interesse. Pequenas áreas formadas em torno de antigos quilombos são
também de interesse para o geógrafo cultural.
IV – É possível distinguir estágios no processo de formação das regiões culturais brasilei-
ras? Como se caracteriza cada um deles em termos de processos, agentes sociais
e as temporalidades associadas a cada estágio? Tratar-se-ia, em realidade, de uma
periodização dos processos culturais no espaço? Pensa-se, neste caso, na área do
Oeste baiano, na zona cacaueira e nas áreas de campo incorporadas ao complexo
agro-industrial.
V – Onde e em que condições ocorreram os processos de duplicação, desvio e fusão du-
rante a formação das regiões culturais brasileiras? Mais especificamente, questiona-se
a respeito dos embates entre culturas distintas, a exemplo do Oeste baiano (Haesbaert,
1997). Poder-se-ia falar em fusão cultural nessa região de cerrado?
VI – Onde e em que condições aparecem regiões culturais emergentes? Este ponto é de
fundamental importância em um país como o Brasil, onde há, no começo do século
Roberto Lobato Corrêa
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XXI, áreas a serem efetivamente incorporadas à economia brasileira e global. Se


há regiões em dissolução, levantamos a hipótese de que novas regiões emergem,
quer pela transformação de regiões culturais tradicionais, quer, mais ainda, pela
fragmentação de regiões culturais pré-existentes, das quais emergem duas ou mais
regiões. Nesse caso, a dissolução não seria o último estágio, como Meinig propusera
para os Estados Unidos. Acreditamos que, mais do que em outras regiões culturais,
a Amazônia apresenta essa possibilidade de fragmentação, tal a ação diferenciada e
intensa de processos sócio-culturais a partir de 1970.
VII – Onde e em que condições regiões culturais tornam-se regiões culturais residuais, ca-
racterizadas por profunda impermeabilidade àquelas inovações capazes de transformá-
las? Que barreiras garantem o seu status residual? E como elas estão integradas à vida
econômica e política nacional? Este ponto requer atenção especial, pois o caráter
residual é sempre relativo: estudos empíricos, como nos tópicos acima indicado, são
necessários.
VIII – Os pontos acima apontados nos remetem à crítica que Kofman (1981) tece a Frie-
mont, quando este afirma que na Europa as regiões evoluíram de “regiões enraizadas”,
constituídas há muito tempo, para regiões funcionais. Argumenta Kofman que nem
todas as regiões européias foram igualmente urbanizadas. Isto significa dizer que a
dinâmica regional é muito complexa, comportando diferenças segundo a natureza
e a intensidade das transformações. Não há, nesse sentido, uma teoria sobre a
dinâmica regional. A dissolução seria, assim, uma das possibilidades de transformação
regional.
Rosendahl e Corrêa (1998, 2000) levantam algumas questões em relação às mudanças
culturais, como a re-significação da natureza em regiões em pleno processo de reconfiguração
como a Amazônia e as áreas de cerrado. Em relação a estas merece menção o estudo de
Haesbaert (1997) sobre o Oeste baiano, região do Mediterrâneo pastoril, que foi submetida à
intensa migração gaúcha, acompanhada de mudanças demográficas, econômicas e políticas,
assim como na paisagem regional e nos significados atribuídos à natureza e ao espaço
estruturado por um poderoso complexo agro-industrial centrado na soja.
Outras áreas brasileiras merecem a mesma atenção e o mesmo cuidado que o Oeste
baiano mereceu. Sugere-se, a este respeito, que se considere possíveis regiões emergentes, de
um lado, e possíveis regiões residuais, de outro. Neste esforço será importante acompanhar
ou resgatar o processo de configuração e reconfiguração regional, envolvendo tensões entre
diferentes agentes sociais e seus interesses, sejam eles da própria região, sejam eles externos
a ela, como no caso do Oeste baiano. Essas tensões podem se expressar de diversas formas
e graus de intensidade, envolvendo conflitos e negociações em torno das relações sociais,
de poder, dos processos produtivos, de valores e crenças e das formas espaciais, incluindo a
paisagem.
Entre os inúmeros exemplos de regiões culturais a serem analisadas sugere-se o Pantanal
Matogrossense, uma região a ser efetivamente analisada pela geografia cultural, equiparando
o conhecimento a aquele que a geografia física produziu (Ab’Saber, 1988). Qual o significado
dos rios, corixos, baías e restingas do Pantanal Matogrossense? Eis um caminho para se
iniciar um estudo sobre essa região. Os brejos de altitude e de exposição do Nordeste,
pequenas áreas agrícolas, densamente povoadas, que desempenharam importante papel no
abastecimento de alimentos para a região canavieira, constituem outras áreas de interesse.
Serão eles regiões residuais? Como possíveis transformações no processo produtivo foram
percebidas e avaliadas pelos moradores dos brejos de Areia, Garanhuns, Mata Grande e
Triunfo, entre outros?
As áreas de colonização européia, etnicamente homogêneas há apenas poucas décadas,
constituem outra região cultural. Mereceram elas no passado a atenção de geógrafos, entre
eles Leo Waibel (1949). Decorridos mais de 50 anos questiona-se sobre a permanência
e mudança de traços culturais que no passado definiam a sua singularidade. Como, por
exemplo, a modernização da agricultura e o processo de sucessão hereditária interferem nos
padrões culturais regionais? A denominada diáspora gaúcha teria efetivamente recriado nas
regiões de emigração novas áreas culturais semelhantes em outros espaços, a exemplo do
Oeste baiano?
A Amazônia até cerca de 1970 constituiu-se em uma ampla região cultural. Processos
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
18

sócio-culturais, ainda em curso, afetam a região. As áreas de “terra-firme”, palco de


transformações intensas, são um convite para estudos de geografia cultural. Será que nessas
áreas estão se constituindo regiões emergentes? As áreas ribeirinhas também merecem
atenção. Lembra-se, neste sentido, a várzea do Careiro, próxima a Manaus, profundamente
estudada por Stenberg (1998) há cerca de 50 anos. Constitui ela um excelente campo para
análises relativas à permanência e mudança cultural em pequenas áreas. A denominada
“Área do Café”, descrita por Diégues Jr., merece também atenção. Foi ela submetida a
mudanças nos últimos 50 anos. Fragmentou-se, deixando resíduos regionais? O que é hoje o
Norte do Paraná e o Oeste Paulista estudado no passado por Monbeig (1984)?
Há em diversas escalas espaciais, inúmeras regiões culturais a merecerem a atenção dos
geógrafos interessados na dimensão cultural do espaço e em sua dinâmica.

À Guisa de Conclusão

Ao longo deste texto alguns pontos a respeito das regiões culturais foram brevemente
apresentados e discutidos, enquanto outros foram deixados de lado. Queremos, concluir este
texto insistindo em apenas um ponto. É possível falar, no começo do século XXI, em regiões
culturais em um país como o Brasil? Dada a complexidade e desigualdade com que processos
sócio-culturais ocorrem no espaço brasileiro, acreditamos que, em princípio, é possível falar
em regiões culturais, residuais e emergentes. Mas está não é uma resposta, mas apenas uma
hipótese. As respostas advirão de pesquisas empíricas, em várias escalas espaciais, apoiadas
em um sólido embasamento na geografia cultural, tanto em sua versão saueriana, como em
sua versão renovada.

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159-222.

Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao CEI a oportunidade e o apoio concedido, e agradeço igualmente
a Sara R. e a G. M. o seu apoio e ajuda, e agradeço às senhoras que tiveram a paciência e
disponibilidade mesmo tendo muitos afazeres de nos “aturar”.
20
21

Nossa Senhora Mãe dos Homens


de Araraitaguaba: O Lugar no Mapa

João Carlos Garcia


Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Centro Interuniversitário de História das Ciências e da
Tecnologia – Universidade de Lisboa / Universidade Nova de Lisboa
garciajcs@hotmail.com

Resumo
A organização do espaço e a sua figuração nos mapas faz-se através de pontos, linhas
e áreas. Núcleos populacionais, eixos de circulação e espaços mais ou menos extensos de
produção económica ligam-se em redes, que se modificam ao longo do tempo, de região
para região. A representação gráfica dessas realidades foi fixada em mapas e plantas, a
diversas escalas, e difundida de forma manuscrita ou impressa.
Nesse vasto e diverso universo documental procurámos o “local” através do seu
topónimo, com base nas etapas de evolução da Cartografia luso-brasileira dos últimos
séculos, selecionando exemplos sobre a construção e manipulação das imagens cartográficas
e, particularmente, sobre a sua leitura e consumo, tentando reconstituir momentos distintos
do processo de produção dos mapas históricos.

Palavras chave: Cartografia, lugar, perceção

O mapa tem horror ao vazio. No século XVI, sobre os desertos do mapa colavam-se
artísticas cartelas, pedaços de texto, monstros ou pássaros exóticos. O lugar no mapa é a
confirmação da sua existência, da sua importância, do seu poder 1. Daí a curiosidade e a
angústia com que cada um, perante o mapa, procura o seu lugar: a sua aldeia, a sua região,
o seu país. Se encontra sorri vitorioso confirmando a importância do torrão, se não encontra
diz despeitado da fraca qualidade do documento.
O lugar, a que correspondem valores precisos de latitude, longitude e altitude, pode ser
figurado de muitas maneiras, tendo em conta a escala do mapa: um ponto, um círculo
proporcional a qualquer fenómeno, uma cruz de igreja ou um triângulo de moinho, uma
vinheta com o perfil de uma cidade. Unindo-se os pontos formam-se linhas: rios, estradas,
caminhos de ferro, itinerários marítimos. Justapostos em batalhões, os lugares formam
manchas: florestas, cordilheiras, regiões (Monmonier, 1991; Palsky, 1996). A todos – pontos,
linhas e manchas – são atribuídos nomes, os topónimos. Localizado e identificado, o lugar
está pronto a começar a sua vida através dos mapas. E, como as estrelas que observamos no
céu noturno, ainda podemos hoje ver nos mapas lugares que já não existem e, outras vezes,
procuramos em vão na imagem, lugares que sabemos existirem e não foram figurados.
Na evolução da Cartografia dos últimos quinhentos anos, procurámos exemplos sobre a
construção/manipulação e a leitura/consumo do lugar no mapa, tentando entrar e sair do

1 - Muitos são os autores que nas últimas décadas defenderam uma nova visão da História da Cartografia e o
mapa como produção cultural. Ver, v.g.: Cartes et figures.., 1980; Harley & Woodward, 1987-; Jacob, 1992;
Wood, 1993; Casti, 1999; Harley, 2001; Thrower, 2002; Besse, 2003; Jarauta, 2007; Lois, 2009; Alegre i Nadal,
2010.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
22

quadro ou do écran como personagens de Mary Poppins ou de The Purple Rose of Cairo. E
quem não elabora nem lê mapas? Não tem consciência do seu lugar e do Mundo?

O piloto Marçal Luís

No início do século XVII, o piloto Marçal Luís, depois de vinte e oito anos de navegação para
o Brasil e de onze na Carreira da Índia é alvo de uma avaliação em Lisboa, onde se conclui não
saber ler nem escrever, requisitos supostamente indispensáveis para fazer roteiros, elaborar e
ler cartas náuticas, utilizar instrumentos científicos e fazer cálculos matemáticos (Domingues
& Guerreiro, 1987, p. 59). Quantos como ele circulariam e circularam no mar durante os
séculos seguintes, conhecedores profundos do espaço marítimo, das suas correntes, ventos
e marés, e das redes de portos e dos perigos dos litorais? Como e quando recorreriam
aos mapas? Que leitura fariam deles? Marçal foi reconduzido nas suas funções porque a
experiencia e o mérito falaram mais alto.

Fig. 1 – Frontispício da obra A Compendius Chronicle of the Kingdom of Portugal… de John Dauncey, 1661.

O país e o império dos Bragança

Em 1661 foi publicada em Londres A Compendius Chronicle of the Kingdom of Portugal…


por John Dauncey, autor de uma biografia de Carlos II de Inglaterra. O monarca inglês
casará no ano seguinte com Catarina de Bragança, confirmando o apoio britânico à causa
João Carlos Garcia
23

restauracionista portuguesa de D. João IV e D. Afonso VI, que trava então as suas grandes e
decisivas batalhas contra Espanha. Sendo Catarina uma princesa católica e não sendo seguro
que esse apoio militar e diplomático fosse proveitoso para Inglaterra, mostrava-se importante
informar e cativar as elites britânicas para a decisão do monarca e dos seus conselheiros. A
obra de Dauncey faz parte da propaganda para legitimar a nova dinastia brigantina, para
divulgar a Geografia e a História de um país pouco conhecido e, particularmente, para explicar
a importância do império colonial português, que tão útil poderia ser para os interesses geo-
políticos e comerciais ingleses (Garcia, 1998).
Analisemos a gravura do frontispício da obra (fig. 1) onde sobre um retângulo se dispõem
sete imagens: os retratos de D. João IV (fundador da dinastia), D. Afonso VI (o então rei de
Portugal) e Catarina de Bragança (a noiva de Carlos II); um hemisfério da Terra, provavelmente
o português, recordando o estipulado por Alexandre VI no Tratado de Tordesilhas, sob o qual
e como título surge o termo “Lusitania” (Portugal herdeiro da Lusitânia) e, finalmente, três
vistas de cidades portuguesas – Braga, Coimbra e Lisboa.
O lugar no mapa – Portugal -, dá-se a conhecer em três escalas: a do país peninsular
através dos retratos da Família Real, família que em breve se ligará à dos Stuarts, monarcas
das Ilhas Britânicas; a do Império colonial através da figuração da Terra; a dos centros de
poder, as cidades portuguesas de Braga, capital religiosa pela presença do Arcebispo Primaz
das Espanhas; de Coimbra, capital intelectual pela sua Universidade; e Lisboa, capital política
onde reside o Rei e a Corte. Estas são as cidades portuguesas que a Europa culta conhece
graças às imagens divulgadas desde os finais do século XVI nas edições de Civitates Orbis
Terrarum de Braun e Hogenberg (Alegria et al., 2012, p. 228-233).
Contudo, observando melhor a gravura inserta na obra de Dauncey damo-nos conta de
algumas particularidades interessantes: para Lisboa, da vista/planta original (vol. V, ca. 1598,
2), apenas se seleccionou o detalhe do Castelo de São Jorge (Lisbon Castle), enquadrado
pelas armas de Portugal; e quanto às vistas de Braga e Conimbria (vol. V, ca. 1598, 3 e
4) nenhuma relação apresentam com as originais, antes foram “recortadas” de vistas de
outras cidades, provavelmente do Norte da Europa, pelos tipos de edifícios figurados, e
“coladas” na gravura do frontispício. Mas, para o leitor inglês as longínquas e desconhecidas
cidades portuguesas poderiam aparecer como o editor o decidisse. O leitor não teria muita
capacidade para criticar e o editor estava sobretudo preocupado com o lucro, nas vendas da
obra (Daveau, 1998).

Fig. 2 – Plano do Arraial de S. Pedro d’El REy fundado e erigido em novo julgado no ano de 1781 por Luís
d’Albuquerque de Mello Pereira e Caceres. Escala ca. 1:3.500. 1781. 1 planta: ms., color.; 51x59 cm (Biblioteca
Pública Municipal do Porto, Pasta 24 (23).
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
24

Topónimos do Mato Grosso

Em 1771, o Marquês de Pombal chama a Lisboa um aristocrata da Beira, militar na for-


taleza de Almeida, Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, senhor da Casa da Ínsua,
nomeando-o 4º Governador do Mato Grosso e Cuiabá, na fronteira centro-oeste do Brasil.
Partindo nesse mesmo ano a tomar posse do cargo, aí permanece 17 anos, desenvolvendo um
notável trabalho de colonização (Veiga, 2001). No regresso, transporta um verdadeiro museu
de naturalista e uma importante colecção cartográfica, com base na qual reorganizara e gerira
a capitania brasileira, do ponto de vista militar, administrativo, económico, de povoamento…
Conservam-se hoje 180 desses mapas manuscritos que incluem desde plantas de edifícios ao
conjunto do continente sul-americano (Araujo, 2000; Garcia, 2002).
Talvez que os mais interessantes sejam os correspondentes às escalas regional ou sub-
regional, com a sua densa rede de topónimos: os autóctones, os mistos, os estritamente
portugueses. Em territórios quase desconhecidos e sobre os quais há um vazio de informação
cartográfica, a tarefa fundamental é colocar os lugares no mapa, com a maior precisão
possível, de modo a que existam. Eles correspondem a cada uma das fases da colonização: a
da descoberta, a da apropriação, a da reorganização (Dias, 1991; Domingues, 2000; Kantor,
2009). Daremos alguns exemplos retirados dos mapas da colecção de Luís de Albuquerque.
O explorador e o cartógrafo ouviram a um ou mais inquiridos os nomes dos seus lugares,
e escreveram-nos em português: Agapehy, Agoapehi, Aguapehi, Aguapehy. Os inquiridos
podem pertencer a comunidades diversas, utilizando topónimos diferenciados para o mesmo
objecto: rio Teia = rio Chiuarario Cumiari, depois transformado em rio dos Enganos; ou podem
habitar nos vales afluentes ou em distintos troços do rio que, como muitos em Portugal,
também mudam de nome ao longo do curso: Igarapé Araicuque, Igarapé Tauaricuru, Igarapé
Yurara.
Como as “calhetas” ou as “praias” nas ilhas atlânticas também para outros elementos
naturais se repetem os nomes: Rio Branco, afluente do rio Negro, na Amazónia; Rio Branco,
afluente do Paraguai, no sul do Brasil. O topónimo pode ter uma força que não se restringe
a um lugar preciso, antes se espalha no espaço, como no caso de Camapuam (rio, varador,
fazenda) ou Gaíba (boca, baía, lago).
Encontramos topónimos que sugerem a existência de povoações indígenas localizadas
mas não colonizadas, como é o caso da Aldeia Grande do Gentio Xaclan ou os lugares de
Macupari, de Manacapuru e de Manditiba. Os espaços mais alargados, controlados pelos
“gentios”, são territórios aos quais se reconhece unidade e estruturação, daí encontrarmos
inscritos nos mapas: Reino do Gentio Caypó, Reino dos Goyamas, Reino dos Magués ou
ainda País do Gentio Xavante e Nação Separá. É o reconhecimento do espaço do “outro”
atribuindo-lhe coesão e hierarquia de poderes comparáveis com a realidade europeia.
Os povoados existentes, com o avanço do processo de colonização, mudaram de nome:
Araes depois Arraial de Amaro Leite, Caiçara depois Álvaraes, registo de Araguaia depois
registo da Ínsua; ou ao topónimo autóctone, com a chegada dos europeus se antepôs
referência à sua função, como o Arraial de Mariua, que depois mudará para Barcelos. Com
a cristianização das populações, também se antepõe a referência ao orago: Santo António
de Maripi, Nossa Senhora dos Prazeres de Iguatemi, freguesia de Nossa Senhora Mãe dos
Homens de Araraytaguaba.
Ocorre também a criação compulsiva de novas “aldeias de índios” (lugar de Santana
depois Guimarães, São João depois Lamego) que maioritariamente correspondem a antigas
missões. Um caso particular é o da migração do topónimo. No tempo do 1º Governador
do Mato Grosso, D. António Rolim de Moura, foi criada a Aldeia de São José, na foz do rio
Corumbiara, afluente do Guaporé, em 1751. Na sequência de problemas vários a comunidade
foi transferida, com o mesmo nome, em 1754, para a foz do rio Mequens. A missão será
depois São José de Leomil, recordando o local de nascimento do 3º Governador do Mato
Grosso, Luís Pinto de Sousa Coutinho, depois 1º Visconde de Balsemão (Leomil, Moimenta
da Beira).
Nas fundações de raiz, povoações ou pontos militares (fig. 2), os topónimos relacionam-se
directamente com cada um dos capitães-generais que quer deixar a sua marca no território,
atribuindo aos lugares os seus apelidos (Albuquerque, Cáceres, Presídio de Miranda), ou
topónimos que duplicam os existentes em Portugal, ou ainda recordando parcelas do
João Carlos Garcia
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património dos governadores (Presídio de Nova Coimbra, Casal Vasco). Essa monumentalização
pessoal no espaço torna-se mais interessante quando o dono seguinte apaga os graffiti do
antecessor e os substitui pelos seus.

Fig. 3 – Descriptive Map of London Poverty 1889, coord. Charles Booth,


in Life and Labour of the People, Londres, 1891.

O bairro de Jack

No início de Outubro de 1888, Jaime Batalha Reis, cônsul de Portugal em Newcastle-


on-Tyne, e um dos famosos membros da Geração de 70, envia para O Repórter, periódico
lisboeta coordenado por Pinheiro Chagas, uma das suas crónicas intituladas “Revista Inglesa”
(Coelho, 2000; Rosa, 2009). J. Teixeira de Azevedo (assim assina o autor), conta aos leitores
uma das notícias que mais preocupa os quatro milhões de londrinos: no miserável bairro de
Whitechapel, um misterioso personagem a que a polícia não consegue deitar mão, assassinou
várias prostitutas. É Jack the Ripper. Para o cronista do acontecimento, o que interessa para
compreender os feitos do facínora, é o lugar do crime, no mapa da grande cidade, numa
sequência que recorda as Prosas Bárbaras de Eça de Queiroz:

Quem lançar os olhos para o mapa da City de Londres notará a figura de um peixe ou
cetáceo colossal, de focinho erguido para o Banco de Inglaterra e para a Bolsa, como se se
preparasse a devorar estes dois centros de riqueza humana. Duas linhas de mar delimitam o
corpo enorme do animal: ao longo do dorso corre Cornhill e Leadenhall; ao longo do ventre
Lombard Street e Fenchurch: Gracechurch Street separa a cabeça do tronco, como se ali
estivessem localizadas as guelras do monstro. É este o centro comercial do mundo; é através
dos escritórios desta rua, é através dos vasos deste tubarão que corre, como sangue ou como
excrementos, todo o ouro da terra. Mas quem continuar para leste, entrará a poucos passos
em Aldgate Street e, a poucos metros, em Whitechapel, o bairro de maior miséria, dos mais
imperscrutáveis dramas, dos mais repugnantes crimes de toda a humanidade (Reis, 1988, p.
104).

O cetáceo, o tubarão de Batalha Reis é a baleia de Jonas e a sua descendente Moby


Dick, agora reconvertidas através do mapa, que se descreve no texto, na Londres vitoriana
da Revolução Industrial. Cumprindo os desígnios da fúria divina, o monstro prepara-se para
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
26

devorar a riqueza acumulada na cidade dos ímpios. Todo o comércio passa pelas guelras do
grande peixe e todo o ouro da terra, circula no seu corpo como sangue ou fezes. A toda esta
Geografia simbólica da Londres dos ricos, que se concretiza com base na toponímia urbana,
para dar maior veracidade à narrativa, opõe-se a Londres dos miseráveis e dos criminosos,
onde Jack actua. A sua existência e a dos seus crimes não pode ter outra explicação senão
a desigualdade social contra a qual Batalha Reis e os seus amigos se haviam batido nas
Conferências do Casino, em 1871 (Marinho, 1996). A prová-lo está o suposto inquérito feito
pelo cronista no bairro dos crimes: “E se eu fosse o assassino de Whitechapel ? A mulher
encarou-me, sorriu, encolhendo os ombros e disse-me: Achas que é melhor morrer à fome?”
(Reis, 1988, p. 106).
No ano seguinte a estes acontecimentos elaborar-se-á o Descriptive Map of London
Poverty, inserto no 2º vol. da obra do filantropo Charles Booth, Life and Labour of the People,
Londres, 1891 (fig. 3). A legenda “qualitativa” explica o observável nos quarteirões figurados
na planta: a negro, as classes baixas, violentas e semi-delinquentes; a azul, os muito pobres
mas também a miséria crónica ou ocasional; a azul claro, os pobres; a cinzento claro, os
remediados mais ou menos pobres; a rosa, os bastante remediados; a vermelho, a classe
média endinheirada; a amarelo, os muito ricos (Elliot, 2006). O negro dos maus, o azul (blue)
dos tristes e pobres, o neutro cinza dos medíocres, o vermelho e amarelo-ouro dos ricos. Para
além da simbólica das cores está no mapa cada posta do peixe de Batalha Reis.

Fig. 4 – Leitura da Carta Geometrica de Galicia dividida en sus províncias… (1845),


de Domingo Fontán, Director do Observatório Astronómico de Madrid.
João Carlos Garcia
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A aldeia galega

A mais tocante história sobre o lugar no mapa é a dos emigrantes galegos. No início do
século XX, Ramón Otero Pedrayo, um dos grandes defensores da Pátria galega percorreu as
colónias dos seus emigrantes na América do Sul (Otero Pedrayo, 1973, p. 364-365). Em cada
cidade apresentava sempre uma conferência, a sua conferência sobre a Galiza (Geografia,
História e Cultura), na associação filantrópica, musical e recreativa da comunidade (García
Álvarez, 2006). Consigo levava um grande mapa parietal, a Carta Geométrica de Galicia
dividida en sus provincias (1845), de D. Domingo Fontán, que fazia colocar na sala, como telão
de fundo (fig. 4). Depois da conferência, enquanto a multidão confraternizava ruidosamente,
havia sempre um dos velhos emigrantes que se chegava discretamente ao mapa, para o
observar com detalhe. Depois, colocava o indicador sobre o nome da sua aldeia, e chorava.

Fig. 5 – Aula de Música no Posto de Protecção aos Índios Parecis, Estação de Utiariti, Mato Grosso, 1910.

Aula de música

No Museu do Índio, no Rio de Janeiro, existe uma notável fotografia, datada de 1910
(Franchetto, 2000, p. 46). Nela se observa uma particular banda filarmónica em pleno ensaio
musical (fig. 5). Trata-se de um grupo de jovens índios Parecis, muito compenetrados nas
instruções do maestro, que pontifica ao lado da ardósia com a suposta pauta. Os músicos, de
terno e botins (alguns não chegam ainda com os pés ao chão) tocam trompas, trompetes e
flautas. O cenário compõe-se com uma mesa, sua toalha branca e jarra com flores, procurando
fazer esquecer o mau estado do telhado e do tabique do fundo. Mas, justamente sobre essa
parede improvisada, dominando todo quadro, um grande mapa parietal da América do Sul,
onde sobressai o Brasil, pátria de todos os brasileiros, incluindo os índios Parecis. Assim os
tentarão informar e convencer do seu lugar no Mundo. Mas, os Parecis tinham há já muito os
seus lugares noutros mapas, que provavelmente evocam enquanto aprendem o Hino (Lima,
2006). Mapas de escalas bastantes distintas daquela que irremediavelmente domina sobre
as suas cabeças.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
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Fig. 6 – Pormenor de Italia 2008. Mapas Michelin, National 735, esc. 1: 1.000.000.
Madrid, Michelin – Mapas & Guias, 2008.

A viagem do camião

A uma inocente e curiosa pergunta sobre os tipos, as escalas, as editoras e colecções de


“mapas de estrada” utilizados nas longas viagens para o Norte da Europa (fig. 6), o condutor
de caminhões de mercadorias respondeu que não utilizava mapas. Conhecia muito bem
os principais itinerários (auto-estradas e vias rápidas) Norte-Sul e Leste-Oeste, conhecia as
variantes possíveis em casos de congestionamento de tráfego, greves, acidentes naturais
(chuva, gelo e neve) e conhecia, particularmente, os nós da rede: os periféricos das grandes
cidades, para as evitar, e as estações de serviço, os hotéis, os restaurantes, onde existia
bom acolhimento, boa comida e bebida, descontos pela assiduidade e onde encontrava os
colegas de profissão, que lhe transmitiam todas as informações necessárias sobre as próximas
etapas. Aliás, fora com eles e com o pai que aprendera esse mapa da rede viária europeia,
feito com base na experiência, na repetição de itinerários e na rede de amigos e conhecidos
(de conhecidos). Para quê os tais mapas-mapas que também se vendiam nas bombas de
gasolina? Esses mapas de estradas para turistas!

Ce pays perdu

As nossas dúvidas sobre os leitores e as leituras de mapas voltam a colocar-se no século


XXI como aquando das grandes viagens marítimas da expansão (Gomes, 2009). O Senhor
Costa camionista a caminho de Hamburgo e Marçal Luís piloto no regresso de Goa, dois
portugueses sem mapa, de lugar em lugar. Resta saber se o famoso português Oliveira da
Figueira também planeava os seus negócios com mapas. Ao encontrar uma vez mais Tintin
pergunta-lhe com uma garrafa de vinho na mão: “Et alors, dites-moi, que faites-vous ici,
dans ce pays perdu?”
João Carlos Garcia
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Atlas, Cibercartografia e Neogeografia:


uma perspetiva tecnológica sobre a
evolução moderna da ciência geográfica
Rui Ferreira
Departamento de Geografia da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
CEGOT - Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território
ruiff@ci.uc.pt

1. Introdução

O mapa foi, é e continuará a ser um instrumento fundamental para a Geografia, indepen-


dentemente da tecnologia utilizada na sua construção e do modo como se processa a
sua utilização. Contudo, o mapa não se confunde com a ciência geográfica e, por isso, é
importante ter sempre claro o contexto que enquadra a sua concepção pois, em grande
medida, daí decorrem as suas potencialidades, bem como as suas limitações.
A utilidade dos mapas não se esgota no tipo de informação representada ou no rigor da
sua representação. Como tal, o processo de leitura da informação espacializada não deve
confundir-se com o processo de interpretação dos mapas.
No primeiro caso, referimo-nos à simples descodificação dos símbolos utilizados na criação
de objectos cartográficos, representando simplificadamente no mapa entidades do mundo
real, infinitamente mais complexas. Aqui, existe também um procedimento interpretativo,
correspondente a uma decifração estritamente cartográfica que, por isso, se restringe à
atribuição de um significado a cada um dos grafismos que compõem o mapa e que, desse
modo, permite captar o padrão espacial de distribuição dos fenómenos.
O processo de interpretação de um mapa é uma acção significativamente mais ampla,
abarcando não apenas as técnicas cartográficas utilizadas, mas também o contexto
civilizacional que enquadra, não apenas o nível de desenvolvimento técnico e tecnológico,
mas também o próprio modo como cada autor utiliza essas ferramentas para construir e
fazer passar a mensagem incorporada no mapa.
Deste modo, qualquer mapa tem sempre dois níveis de análise: a leitura cartográfica e
a interpretação contextual. Ao utilizador comum de mapas, geralmente, interessa apenas
a leitura cartográfica. Ao geógrafo, contudo, devem interessar os dois planos pois, não
raras vezes, a interpretação contextual permite descodificar significados e significâncias não
evidentes ao nível da representação cartográfica.
Neste trabalho, procuraremos reflectir sobre esta dualidade de representação do mundo
através dos mapas, percorrendo, ao longo da história, vários exemplos seleccionados mas,
sobretudo, procurando perspectivar o impacto das Novas Tecnologias da Informação nos
modos de representar e interpretar a complexidade do nosso mundo contemporâneo.
Começaremos, precisamente, numa perspectiva histórica, por debruçar-nos sobre vários
exemplos relativamente conhecidos de representações cartográficas elaboradas desde os
tempos mais remotos até à Idade Moderna, tentando perceber não apenas o que os mapas
expressam, mas também os sentidos mais ou menos ocultos dos modos de representação.
Centramo-nos, depois, no impacto da era digital sobre a representação cartográfica, fo-
cando particular atenção na mudança de paradigma inerente a esta revolução tecnológica.
Concluímos com uma abordagem das problemáticas mais contemporâneas, associadas
à computação ubíqua e à massificação do acesso à tecnologia de registo e manipulação de
informação cartográfica.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
32

2. Imagens do mundo através do mapa

Quando lançamos um olhar pela história da cartografia, não deixa de ser tocante a
capacidade inventiva do ser humano, expressa através da multitude de materiais, técnicas e
formas de representar os fenómenos no espaço.
Aquilo que parece ser uma das mais antigas representações cartográficas conhecidas foi
descoberta num sítio arqueológico do Paleolítico Superior, localizado na Caverna de Abauntz
(Navarra, Espanha). O achado (fig. 1), correspondendo a duas rochas gravadas, cada uma
com cerca de 1Kg de peso, tem sido interpretado como correspondendo à representação
de elementos da paisagem regional, incluindo montanhas, rios e lagos, bem como possíveis
rotas de percursos para acesso a diferentes sectores do espaços abrangido (P. Utrilla et all.,
2009).

Fig. 1- Ilustração do Lado A do Bloco 1 descoberto na Caverna de Abauntz, com destaque para a representação
dos elementos físicos da paisagem (rios, montanhas, áreas inundadas e acessos) (fonte: P. Utrilla et all., 2009)

Nas palavras dos próprios autores, “todas estas gravuras poderiam ser um esboço ou um
mapa simples da área em redor da Caverna. Poderiam representar o plano para uma caçada
futura ou talvez a narrativa de uma caçada que já tivesse acontecido”. Ou seja, mesmo
neste contexto primitivo, a representação espacial da percepção do território que se domina
pode ser encarada numa perspectiva estritamente utilitária e servir para localizar em termos
relativo a posição das áreas húmidas face aos sectores montanhosos; identificar a posição
de corredores de passagem ou a localização de sítios com interesse relevante. Mas pode
também ser uma narrativa gráfica de um evento que se planeia ou a ilustração documental
de um episódio relevante da história da comunidade.
Em qualquer dos casos, fica evidente a importância assumida pelas técnicas de representação
simbólica dos fenómenos no espaço, fornecendo ao seu artífice uma capacidade acrescida
para apreender as inter-relações que se estabelecem entre os diversos componentes do seu
Rui Ferreira
33

território, abrindo assim caminho ao planeamento e à organização consciente das acções.


Ainda nas sociedades pré-históricas, é possível encontrar um outro exemplo onde esta
ideia parece ainda mais evidente. O ‘mapa de Bedolina’ (Lombardia, Itália) é o exemplo mais
conhecido de um conjunto mais amplo de vestígios rupestres alpinos em que as temáticas
topográficas estão frequentemente presentes. Esta gravura (fig. 2), pertencente à Idade do
Ferro e é comummente interpretada como correspondendo à representação de um conjunto
de campos cultivados interligados por caminhos, linhas de água e canais de irrigação (C.
Turconi, 1997).

Fig. 2.- Mapa de Bedolina.


Cima: vista no terreno da rocha gravada (Marchi Orme dell’Uomo, 1996)
Baixo: transposição para desenho do conjunto (C. Turconi, 1996-1997)
Fonte:http://www.europreart.net/cgi-bin/baserun.cgi?_ses=193mD3Cg2FBm2EBBC3EFF2&_tar=_record&_act=462
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
34

Embora as transcrições da gravura original tendam a apresentar as inscrições como


elementos simbólicos plasmados num plano horizontal, à semelhança da representação
bidimensional dos mapas modernos, a observação directa do local da gravura parece permitir
perceber que existe uma ligação entre o modo como estes elementos estão dispostos e o perfil
da rocha onde foram desenhados. Assim, mais do que um simples documento topográfico, o
‘mapa de Bedolina’ parece ser uma representação do mundo em perspectiva (tridimensional)
(cfr. E. Casti, D. Taylor, 2015).
Esta noção de tridimensionalidade é particularmente compreensível se pensarmos no
contexto morfológico da área em questão. Certamente, não seria difícil para um observador,
percorrendo os picos montanhosos dos Alpes, aperceber-se do efeito da rugosidade do relevo
e da importância que esta característica assume, não apenas na maior um menor facilidade
de movimento entre os diversos sectores do território, mas também no modo de reconhecer
os locais à distância e orientar essas deslocações no espaço (cfr. A. Arcà, 2007).
Este é, aliás, um aspecto particularmente contrastante com a lógica subjacente às
representações espaciais de períodos bastante mais recentes. Os exemplos mais paradigmáticos
para ilustrar estas perspectivas são, talvez, os mapas medievais de tipo T no O. Contudo,
também estes mais não são do que uma recuperação reformulada de ideias anteriores.
Os vestígios mais remotos desta lógica de representação egocêntrica do mundo conhecido
(daí a forma circular) podem ser encontrados nas sociedades antigas do próximo oriente
(A. R. Millard, 1987), que floresceram com o início da sedentarização e aparecimento das
primeiras cidades (5000 anos a.C.). Um dos exemplos mais conhecidos destas representações
é o “Mapa-mundo Babilónio”, exposto no Museu Britânico (fig. 3). Num pequeno pedaço
de argila com pouco mais de 10 cm de comprimento, datado do ano 600 a.C., podemos
observar um texto descritivo encimando uma figura circular predominante que encasula o
mundo babilónico.
A decifração dos caracteres cuneiformes permitiu perceber referências a animais
bestializados que percorriam as regiões para além do oceano circundante e onde apenas
alguns heróis antigos se tinham aventurado a ir (A. R. Millard, 1987). Como o próprio autor
reconhece, este mapa é, na verdade, um diagrama que representa as relações desses lugares
longínquos e perigosos com o mundo civilizado do babilónicos.

Fig. 3. Imago Mundi Babilónico (c. 600 a.C.)


Esquerda: Lâmina de argila; Direita: transposição para desenho.
Fonte: Wikimedia Commons, the free media repository
Rui Ferreira
35

Pese embora a sua simplicidade, esta é uma representação espacial poderosa, pois evi-
dencia o contraste entre um mundo conhecido, organizado, seguro e central, face a uma
periferia hostil, selvagem e difusa. A função deste tipo de mapas tem muito menos a ver
com a localização absoluta ou relativa dos lugares e muito mais com a demonstração da
capacidade de domínio sobre o espaço.
Fica portanto evidente que o mapa, usado como instrumento de suporte e demonstração
de poder, é uma realidade que possui raízes históricas profundas. No entanto, vai ser necessário
percorrermos dois milénios e meio para que, de forma ainda mais impressiva, consigamos
vislumbrar nos mapas a junção plena desta dupla função, consequência do desenvolvimento
de técnicas precisas de posicionamento dos lugares e formas inventivas de representar as
entidades geográficas aí presentes.

Fig. 4. Duas perspectivas da Serra Nevada de Santa Marta (Colômbia),


apresentadas por Élisée Reclus na sua Nouvelle Géographie Universelle, vol. XVIII (1893).
Esquerda: Serra de Santa Marta, vista de Leste, a partir de Punta Tapias;
Direita: Mapa da mesma área

Na fig. 4 podemos observar um bom exemplo para ilustrar esta ideia. As duas imagens
representam o mesmo lugar. A diferença mais marcante reside no modo como, cada uma
delas, nos permite apropriar esse lugar. A primeira ilustra a perspectiva binocular “normal”,
mais contemplativa e parcelar, que decorre de uma observação horizontal ou oblíqua. A
segunda, com um foco zenital, evidencia um domínio sobre a natureza que se expressa
através da vontade de “tudo saber e tudo poder”, já que permite observar o objecto de
interesse a partir de um plano superior, omnipresente, simbolicamente semelhante aos
deuses do Olimpo. Novas técnicas de representação gráfica permitem agora acrescentar
à percepção plana do espaço uma visão de profundidade volumétrica, tornando evidente
através do mapa o carácter tridimensional da superfície terrestre.
O poder marcante da imagem cartográfica pode ainda ser demonstrado através de um
outro tipo de mapas que também aliam os posicionamento espacial dos lugares a novas
técnicas representativas (fig. 5). Num contexto civilizacional marcado pelo domínio tecnológico
europeu, alicerce da sua hegemonia imperial à escala planetária e, paradoxalmente, germe
da sua instabilidade geopolítica interna associada a um crescente aprofundamento das
correntes nacionalistas radicais, surgem os mapas satíricos, uma forma simples e eficaz de
transmitir uma mensagem forte através da imagem cartográfica estilizada.
O poder deste tipo de mapa não reside propriamente na informação cartográfica
que incluem. Antes na apropriação dessa base como elemento estrutural de suporte à
representação caricaturada, neste caso, da sociedade de um país. O humor satírico e
grotesco, pelas suas características intrínsecas, possui uma elevada capacidade de penetração
social, particularmente, nas vastas classes menos favorecidas e iletradas que, deste modo,
conseguem assimilar a mensagem de forma espacializada, mesmo com reduzidas destrezas
de leitura cartográfica.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
36

Fig. 5. Mapa francês satírico da Europa (1870), da autoria de Paul Hadol (1835–1875)

O mapa torna-se assim num instrumento de manipulação de massas, um meio de


propaganda ao serviço das lógicas políticas dominantes.

3. O Atlas como colecção funcional de mapas

A primeira metade do séc. XX ficou marcada por um esforço de afirmação tanto da


Geografia como da Cartografia no plano científico. Este é o quadro contextual preponderante
para se compreender a importância assumida e a grande difusão dos Atlas, provavelmente, o
produto cartográfico mais conhecido e mais flexível (C. S. Ramos; W. Cartwright, 2006).
De acordo com N. J. W. Thrower (1972), o uso da palavra “Atlas” para descrever uma
colecção de mapas foi primeiramente introduzida por Gerhardus Mercator, um famoso
cartógrafo do séc. XVI.
Buscando uma clarificação do conceito, V. Vozenilek (2015) sistematiza as obras publicadas
como atlas (que contém a palavra ‘atlas’ no título) em 4 tipos:
a) Atlas de elementos não cartográficas (“não-atlas”);
Correspondem a obras temáticas, amplamente ilustradas, que se debruçam sobre
a descrição de um domínio de conhecimento: atlas de anatomia (na Medicina) ou
atlas histórico (na História). Contudo, de acordo com este autor, o termo correcto
para designar este tipo de obras será enciclopédia ou catálogo.
b) Atlas como colecção de mapas (atlas primitivo);
Corresponde a publicações de séries de mapas seleccionados como representativos
de colecções museológicas ou de arquivo. Embora possam constituir um acervo de
elementos cartográficos com alguma coerência, raramente se constituem como um
todo temática e regionalmente organizado e, frequentemente, são compostos por
mapas construídos com linguagens e técnicas distintas.
c) Atlas como mapa segmentado (falso atlas);
Este tipo de obra corresponde a um conjunto fraccionado de mapas, imprimido no
tamanho permitido pela brochura e que, se reorganizado, possibilitaria reconstituir o
mapa original de grande escala. É um tipo de publicação frequente nos atlas viários,
por exemplo.
Rui Ferreira
37

d) Atlas como uma compilação de mapas sistematicamente organizados através de


uma linguagem cartográfica uniforme (verdadeiro atlas);
Com base nesta perspectiva, que corresponde à opinião mais comummente aceite,
podemos definir o atlas como ‘um conjunto seleccionado de mapas, compilados
sistematicamente e organizados através de uma linguagem unificada de acordo
com o conteúdo temático, a extensão espacial e a amplitude temporal’ V. Vozenilek
(2015: 4).

O Atlas de Portugal (fig. 6), publicado por Amorim Girão em 1940 e reeditado em 1958,
é um bom exemplo desta concepção de atlas. Corresponde a um conjunto de mapas de
pequena escala, abarcando o território nacional e os territórios ultramarinos, organizado
sistematicamente de modo a fornecer ao leitor uma imagem sintética sobre as origens do
território, as características físicas dominantes, os traços mais marcantes das suas gentes, os
padrões mais relevantes das principais actividades económicas e a sua organização admi-
nistrativa.

Fig. 6. Atlas de Portugal, de Amorim Girão (1958): capa e extracto do índice

Ainda que a escala espacial não permita um grande rigor na informação geográfica
disponibilizada neste tipo de documentos, a sua organização sintética e sistematizada,
constitui uma característica distintiva dos atlas e o elemento que mais contribui para os
tornar tão populares. De certo modo, e em função disso, poderíamos dizer que, na primeira
metade do séc. XX, os atlas desempenharam o papel assumido actualmente pelos Sistemas
de Informação Geográfica, enquanto plataformas de difusão da informação geográfica.

4. A era digital e a Cibercartografia

Com a revolução tecnológica digital, os atlas tradicionais tornaram-se obsoletos, mas


não o conceito que lhes estava associado. A ideia de organizar sistematicamente informação
geográfica, permitindo a representação de múltiplas perspectivas da mesma realidade,
constitui uma mais-valia na capacidade de interpretar o mundo complexo em que vivemos e
ser capaz de tomar melhores decisões.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
38

A história mostra-nos que as mudanças no paradigma tecnológico acarretam sempre


avanços importantes na compreensão geográfica dos fenómenos, bem como no modo como
nos relacionamos com a informação espacializada, tanto na esfera dos especialistas, como do
comum utilizador. Contudo, nunca como agora estas transformações foram tão profundas e
tão rápidas Brunn, Stanley D.; Cutter, Susan L.; Harrington Jr., J.W. (2004).
As mudanças associadas à revolução digital vão muito para além do modo como
utilizamos os dados ou a informação geográfica, elas atingem o âmago do processo de
transformação dessa informação em significado, ou seja, interferem na dimensão ontológica
e epistemológica da nossa relação com o mundo que nos rodeia.
Analisando o conceito de informação (e a sua relação com a noção de dados e
conhecimento), Brian G. Eddy; D. R. Fraser Taylor (2005) salientam bem a importância deste
impacto, considerando que o tradicional fluxo monológico e linear da informação cartográfica
é agora, cada vez mais, não-linear e dialógico. Esta é uma consequência directa do feedback
sócio-cibernético associado, particularmente, aos avanços tecnológicos trazidos pela web 2.0
a partir do início deste milénio (cfr. D.R. Fraser Taylor, 2005 e T. O’Reilly, 2007).
Neste novo contexto sócio-tecnológico, onde boa parte das relações transcendem o
nível interpessoal e se diluem no universo virtual da Internet, a informação assume-se como
intrinsecamente holónica1, formada por uma multiplicidade de componentes elementares que
se vão recombinando em configurações virtualmente infinitas, a partir das quais emergem
novos entendimentos da realidade.
Esta ideia de informação como uma relação encapsulada, tanto espacial como tempo-
ralmente, traduz a lógica de relação holónica entre três planos escalares distintos: os dados
(elementos empíricos, heurísticos e factuais), o conhecimento (que é um elemento translativo,
transformativo e informativo) e o plano da atribuição de um propósito ou significado
(correspondente ao plano mais abstracto, teórico-hermenêutico e interpretativo) (fig. 7).

Fig. 7 - Relação holónica entre dados, conhecimento e significado da informação


[extraído de Brian G. Eddy; D. R. Fraser Taylor (2005)]

1 - O conceito de Holon corresponde a um a noção que incorpora, simultaneamente, o todo e as partes, possibil-
itando que as abordagem holísticas possam revelar padrões não evidentes através de abordagens mais segmenta-
das. É uma ideia associada à Teoria Integral (cfr. Arthur Koestler, 1967 e Ken Wilber, 1996) ou, numa terminologia
mais recente, ao conceito de emergência na Teoria dos Sistemas Complexos. (cfr. Neil Johnson, 2011).
Rui Ferreira
39

De modo análogo, em termos geográficos, um determinado lugar não existe isoladamente


ou apenas em relação com os lugares que lhe são contíguos. Na verdade, estabelece-se uma
rede de inter-relações multi-escalares com o plano regional, nacional, supranacional e global
que os métodos tradicionais de cartografia têm muita dificuldade em captar.
Igualmente, existe uma dimensão efémera da percepção da realidade, ou seja, o modo
como se compreende um determinado fenómeno não é indiferente do conhecimento histórico
que temos sobre o lugar onde ele ocorre. Por seu lado, os dados assimilados, interagindo com
esse conhecimento, irão (ou não) originar mudanças que, em última análise, se traduzirão
em novas significâncias. Estas, por sua vez, constituirão um novo ponto de partida para um
procedimento de análise futuro.
A Cibercartografia, recorrendo às possibilidades oferecidas pelas Novas Tecnologias de
Informação Geográfica, procura compreender e clarificar este tipo de relações, desenvolvendo
modelos de interface com os utilizadores humanos que sejam capaz de responder de forma
eficaz aos diferentes contextos que condicionam o uso da informação cartográfica.
Na fig. 8 ilustra-se um exemplo interessante da aplicação destes princípios, desenvolvido
pelo State Cartographer’s Office (SCO) do estado de Wisconsin (EUA). O objectivo inicial
deste projecto consistia na compilação de dados espacializados sobre as designações dos
locais sem personalidade jurídica do estado que, pela sua natureza inerente, levantavam
uma série de dificuldades em termos de inventariação, traduzida em incongruências na sua
representação cartográfica nos diversos produtos e escalas existentes.

Fig. 8 - Projecto Pronounce Wisconsin (http://misspronouncer.com)

Comparando as múltiplas fontes disponíveis, o projecto acabou por levar ao desenvol-


vimento de uma base de dados com 1051 locais com estas características, a que se juntaram
todas as referências aos outros locais juridicamente reconhecidos (Counties, cities e villages).
Adicionalmente, foi ainda desenvolvida uma aplicação cartográfica com uma interface que
permite o contacto com a correcta (oficial) pronúncia de cada um dos elementos representados
no mapa.
A aplicação de uma abordagem holística na definição e localização dos locais sem
personalidade jurídica permitiu a articulação entre os diversos planos da informação,
integrando de forma mais coerente os dados factuais existentes com a interpretação que as
diferentes entidades, locais, estaduais e federais, foram fazendo ao longo do tempo.
Paralelamente, através da diversificação sensorial da representação cartográfica, foi
possível diminuir as ambiguidades e erros semânticos ao nível da infra-estrutura de dados
geográficos, facilitar a análise dessa informação e produzir conhecimento mais rigoroso e,
consequentemente, melhorar na interpretação e compreensão da realidade representada.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
40

Fig. 9- Projecto earth.nullschool (https://earth.nullschool.net/

Um segundo exemplo interessante das potencialidades da Cibercartografia está ilustrado na


fig. 9 e diz respeito ao projecto earth.nullschool, da responsabilidade de Cameron Beccario.
Basicamente, trata-se de uma aplicação cartográfica que integra de forma dinâmica múl-
tiplas fontes de dados sobre as características atmosféricas e oceânicas para toda a superfície
terrestre. Neste caso, há dois aspectos particularmente relevantes e inovadores em termos
dos princípios da cibercartografia.
Desde logo, o facto e não se tratar de uma mapa estático mas antes de um modelo
animado, que nos permite ter uma ideia muito mais próxima dos padrões de distribuição
espacial, da intensidade das dinâmicas físicas dos fluxos (tanto atmosféricos como oceânicos)
e das características químicas e de carga de aerossóis na atmosfera.
Tratando-se de um projecto experimental e, estando explicitamente expressa a não garantia
de exactidão dos dados, o que, portanto, pode acarretar alguns problemas, sobretudo, a
escalas de observação maiores, é inegável a validade, o interesse e a utilidade deste tipo de
representação para a observação a grande escala. Particularmente, como elemento didáctico
de ilustração de fenómenos físicos complexos, difíceis de compreender para não especialistas
e, por essa via, um contributo muito importante para a interpretação e significância atribuída
aos factores que condicionam os fenómenos climáticos à superfície da Terra.
A esta importância não é alheio um segundo aspecto deste tipo de representação
cartográfica. De facto, contrariando aquilo que é mais frequente, neste caso, optou-se pela
representação através de um globo tridimensional, manipulável não apenas em termos de
zoom (variação na escala de observação) mas também ao nível do ajustamento do sector da
superfície terrestre a observar, o que permite manter uma continuidade na observação, já
que a superfície está integralmente representada.
Ao nível da representação cartográfica de fenómenos físicos, esta é uma característica
muito importante para se compreenderem os mecanismos de emergência e auto-
organização no âmbito da Teoria dos Sistemas Complexos, já que o padrão espacial de um
determinado fenómeno, observado num determinado local, não depende, exclusivamente,
do comportamento sectorial dos componentes do sistema em causa, mas também das
interacções que se estabelecem numa escala muito mais ampla. Utilizando um lugar comum,
podemos afirmar que o todo é sempre mais do que a soma das suas partes.

5. A era da computação ubíqua e a Neogeografia

O desenvolvimento tecnológico recente tem permitido avanços interessantes nos domínios


da representação cartográfica, no entanto, não é apenas a este nível que os seus efeitos se
manifestam no contexto da Geografia.
Rui Ferreira
41

Desde logo, há um aspecto incontornável que decorre dos avanços recentes nas
tecnologias de informação geográfica: o aumento exponencial dos dados disponíveis. Hoje
em dia, tanto em modo vectorial como em modo raster, é possível ter acesso a enormes
volumes de dados espacializados, o que acarreta um desafio importante, tanto ao nível dos
processos de integração e análise como, posteriormente, ao nível da sua representação.
Além disso, a massificação da tecnologia e o desenvolvimento de sistemas móveis levaram
a que a tradicional barreira que separava o produtor do utilizador de dados geográficos seja
hoje muito ténue. Em consequência desta computação ubíqua, é frequente que, mesmo sem
disso termos consciência, muitos aspectos do nosso dia-a-dia sejam directamente tocados
pelo resultado de processos de análise que incorporam dados geográficos. Paralelamente,
muitas das decisão quotidianas que tomamos são, também elas, utilizadas com fontes na
alimentação de sistemas visando a análise espacializada de padrões comportamentais.
A ubiquidade na computação acarretou outra mudança social interessante. Indepen-
dentemente de onde nos encontremos, temos hoje em dia, a capacidade de aceder a dados
georreferenciados, nalguns casos, actualizados em tempo real, permitindo-nos basear as
nossas decisões em volumes crescentes de informação espacializada. Nalgumas situações,
nem sequer temos que implementar o esforço de ponderar as opções e decidir, podendo
apenas limitar-nos a aceitar a decisão tomada ou, pelo menos, sugerida pelo próprio sistema
computacional.
Outra vertente dos efeitos da computação ubíqua e da crescente automatização dos
processos de recolha e difusão de dados está relacionado com o contributo que cada um de nós,
individualmente, pode dar para expandir o volume de informação geográfica universalmente
disponível. Este processo, comummente designado como VGI (acrónimo anglo-saxónico
para Volunteered Geographic Information) é um caso particular de um conceito mais amplo
de conteúdo gerado pelos utilizadores (UGC - User-Generated Contente), que tem vindo a
assumir alguma importância nos últimos tempos.
Os efeitos decorrentes destas dinâmicas, nomeadamente em termos de qualidade dos
dados e credibilidade dos produtos resultantes da sua utilização, mas também em termos
dos efeitos associados à georreferenciação de informação subjectiva, emocional ou privada,
abriram uma nova linha de reflexão no seio da Geografia, denominada como Neogeografia
(cfr. M. Goodchild, 2009; M. Graham, 2010; M. Wilson; M. Graham, 2013).
A Neogeografia pode ser definida como o uso de informação, técnicas e ferramentas
geográficas por utilizadores sem formação certificada na área, no âmbito de actividades
pessoais ou colectivas sem carácter formal ou validade científica (Turner, Andrew J., 2006; A.
J. Flanagin; M. J. Metzger, 2008).
Apesar deste carácter informal do uso dos dados e das técnicas geográfica, os fenómenos
associados à Neogeografia constituem matéria de reflexão interessante no âmbito da
próprio ciência geográfica, enquanto manifestação concreta das tendências sociais
contemporâneas.
Deste modo, o impacto da revolução digital nos domínios da Geografia não se manifesta
apenas em termos técnicos mas, igualmente, ao nível da necessidade de se repensarem os
modelos teóricos que sustentam a análise do objecto de estudo, de modo a permitirem a
incorporação dos contributos activos de não especialistas no enriquecimento do conhecimento
geográfico. Igualmente, os fenómenos decorrentes da democratização do uso da informação
geográfica no seio dos mais variados domínios sociais levanta novas questões de forma e de
conteúdo que necessitam de ser encaradas.
Só para que se tenha uma ideia genérica da importância deste tipo de dinâmicas, apresen-
tam-se a seguir três exemplos concretos que ilustram várias cambiantes do fenómeno.
Na fig. 10, podemos observar a interface de uma das aplicações mais tradicionais neste
domínio. O projecto wikimapia, como o próprio nome indica, consiste basicamente numa
plataforma de carregamento voluntário de dados geográficos muito semelhante ao conceito
implementado na wikipédia, evidenciando, aliás, potencialidade e limitações idênticas.
Tal como acontece aí, a exactidão dos dados é assegurada pela revisão por parte de múl-
tiplos utilizadores, o que, igualmente, não oferece garantias absolutas de rigor. Outro aspecto
relevante prende-se com as assimetrias de cobertura territorial no volume de dados: áreas
densamente povoadas e territórios mais urbanizados tendem a dispor de dados mais completos,
tanto em volume como exactidão.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
42

Fig. 10 - Projecto Wikimapia (http://wikimapia.org)

A fig. 11 ilustra o projecto noisetube, uma ideia interessante mas que evidencia claras
limitações nesta fase de desenvolvimento. Resumidamente, pretende-se criar informação
sobre as características de ambiente sonoro nos espaços urbanos, com base na utilização de
aplicações especificas de medição de ruído instaladas em smartphones.
Apresar de conceptualmente atraente, esta ideia apresenta desafios técnicos importantes
para seja possível obter resultados minimamente válidos. Além disso, a dinâmica actual
do projecto não parece evidenciar uma participação muito activa de um número relevante
de utilizadores, o que se traduz em fortes limitações de cobertura espacial, bem como de
validação dos dados disponibilizados.

Fig. 11- Projecto noisetube (http://www.noisetube.net)

Por último, na fig. 12, podemos observar a interface de um software de navegação


rodoviária disponível para smartphone. O principal ponto de interesse desta aplicação,
comparativamente ao leque de outras possibilidades disponíveis no contexto deste tipo
de utilização, prende-se com o facto de os utilizadores registados poderem carregar para
o sistema informação de actualização, que fica disponível em tempo real. Deste modo,
alterações contextuais à circulação, em consequência de avarias, acidente ou obras, podem ser
reportados ao sistema, que actualiza de forma automática os algoritmos de cálculo de rotas,
fazendo reflectir estas condições particulares nos trajectos apresentados aos utilizadores.
Rui Ferreira
43

Fig 12 - Interface da aplicação de navegação viária Waze (https://www.waze.com)

6. Conclusões

Originalmente simples inscrições em rochas ou placas de argila, as representações do


espaço são, hoje em dia, modelos sofisticados que procuram captar, da forma mais ajustada
possível, a complexidade do nosso mundo contemporânea.
O desenvolvimento tecnológico desempenhou um papel importante neste processo
de sofisticação, mas os impactos das tecnologias não se limitam ao modo e meios de
representar a realidade através de mapas. O próprio processo de leitura e interpretação da
informação geográfica é condicionado pela tecnologia envolvida na sua criação e difusão
através da cartografia. Por essa via, a tecnologia interfere no modo como ontológica e
epistemologicamente percepcionamos o mundo que nos rodeia.
A tecnologia é também o principal factor que está na base da diluição das fronteiras
que, tradicionalmente, separavam o produtor e o utilizador dos mapas. Esse fenómeno tem
enormes impactos, não apenas no âmbito estrito da utilização dos mapas, mas num contexto
científico e social muito mais abrangente, onde a informação georreferenciada, pelo valor
acrescentado intrínseco, tem vindo a assumir um papel notoriamente mais relevante. Essa é
também uma oportunidade e um desafio que a ciência geográfica não pode desperdiçar, no
quadro de afirmação do seu valor científico e de utilidade social.

Bibliografia

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45

Tarrafal: ensaio visual sobre


a (inexistente) memória do
confinamento geográfico

Fátima Velez de Castro


CEGOT/Departamento de Geografia e Turismo
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
velezcastro@fl.uc.pt

Em Fevereiro de 2016 realizei, como o meu colega Bruno Martins, uma viagem de in-
vestigação científica à Ilha do Fogo, em Cabo Verde. De forma espontânea, acabámos por
realizar, sessenta anos depois, aquilo que Orlando Ribeiro fizera na década de 50 do séc.
XX, quando interrompeu entusiasticamente as suas atividades académicas, profissionais e
pessoais em Lisboa, para ir observar e documentar a erupção de 1951. Também fomos com
muito entusiamo estudar o que se passou com a população autóctone e com o ambiente
físico de Chã das Caldeiras, na cratera principal do vulcão, após a paulatina e destrutiva
erupção de final de 2014/início de 2015.
Não é fácil chegar à ilha, sobretudo quando se tem de conjugar um conjunto de impe-
rativos ligados à disponibilidade logística, temporal e financeira. Na prática, significou que foi
inevitável a passagem por outras partes do arquipélago até ao destino – Lisboa/Sal/Santiago/
Fogo – e da área de estudo até Portugal – Fogo/Santiago/Boavista/Sal/Lisboa – com períodos
de paragem que foram de poucas horas até alguns dias.
Na viagem de retorno fizemos a paragem mais longa, na ilha de Santiago, em que esti-
vemos dois dias inteiros mais algumas horas. Sendo necessário capitalizar o tempo e os
recursos disponíveis, aproveitámos para fazer investigação paralela para trabalhos em curso e
outros futuros temas, tanto na capital com fora, na ilha, falando com as pessoas, visitando os
lugares, preenchendo o diário de observação e completando a recolha de material fotográfico.
Usamos para isso o sistema de transportes local – as hiaces – partilhando a quotidianidade da
população local, o que nos aproximou ainda mais desta comunidade.
Na cidade da Praia, a partir do “Plateau”, pudemos observamos a paisagem humana na re-
lação conflituosa e cooperante com o ambiente físico, a complexa e dinâmica cronotopia do
espaço urbano ocupado por gentes e atividades diversas. Numa lógica sinergética, visitámos
e observámos um dos assentamentos iniciais, pelo que fomos à Cidade Velha, uma antiga
povoação construída por portugueses na confluência do vale-rio com o mar, que deixou
marcas discretas mas indeléveis na paisagem, ao representar um tempo-espaço específico da
expansão marítima portuguesa.
Na mesma linha histórico-geográfica, quisemos visitar outro tempo-espaço português,
daí que tenhamos decidido cruzar a ilha na hiace com destino ao Tarrafal, para conhecer as
ruinas da prisão. A prisão é, na verdade, um campo de concentração construído à imagem
e semelhança arquitetónica e funcional dos erigidos em vários países da europa pelo regime
nazi, com adaptações à vertente utilitária específica, neste caso, um local de condenação e
desterro isolado para presos políticos do regime ditatorial de Salazar.

À entrada do “Museu-Campo de Concentração do Tarrafal” começa um silêncio incó-


modo, que contrasta com a dinâmica e a alegria dos caboverdianos que vivem na povoação.
Há qualquer coisa naquele espaço de confinamento que perturba o visitante, até mesmo
pessoas de gerações mais jovens, cujas memórias de uma vivência vivência de repressão são
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
46

inexistentes, pois ainda não eram nascidos na época. O que têm essas gerações será uma
imagem territorial construída com base em relatos de terceiros e em imagens fotográficas
e fílmicas, captadas na inevitabilidade do distanciamento geográfico, temporal e emocional
do espaço. Tendo em conta a ideia de Pisón (2009: 262) de que muitas vezes estes espaços
são o testemunho material de um passado, do que restou de uma paisagem que hoje está
desconetada com as funções territoriais do presente, visitar o lugar constituiu-se por isso
como uma experiência fundamental para (re)construir esta imagem territorial, agora com
base num juízo de valor próprio, ainda que afastado da vivência obtusa de quem ali esteve
perversamente confinado.

Esta construção começa com a consciência cartográfica da escolha da localização do


campo de concentração, a qual não foi aleatória, já que o arquipélago de Cabo Verde
foi, ao longo da sua história, destino de desterrados. Foque-se a escolha do Tarrafal, mais
especificamente do lugar de “Chão Bom”, em 1935, como local efetivo de construção:
situava-se numa península com paisagem agreste e árida, de difícil acesso e com escasso
contato com a população autóctone. Badie (1996: 54) defende que como “instrumento
de emancipação, o território é também uma arma de segurança (…), [onde] a marcação
territorial torna-se fonte de proteção.” Neste caso, funciona como argumento de fragilização
dos prisioneiros e de justificação social, na lógica da prisão como espaço de reeducação para
providenciar a vivência segura em sociedade de (ex)prevaricadores .
O regime adota o fator geográfico externo ao edifício, como primeiro nível de confi-
namento para os presos políticos, usando o território a várias escalas de repressão. Primeiro,
a do arquipélago caboverdiano, distante dos países de origem dos condenados (Portugal,
Angola, Guiné); segundo, a da ilha de Santiago, isolada naturalmente por um oceano,
de difícil transposição humana; terceiro, a da península do Tarrafal isolada no extremo
norte, em oposição à posição da cidade da Praia, com acessibilidade ao exterior da ilha. A
geografia serve neste caso para dissuadir os familiares e amigos de visitarem os presos, pela
dificuldade da viagem e do acesso; e os presos de empreenderem fugas com escassas ou
nulas probabilidades de sucesso. Esta era a parte pública visível do confinamento geográfico,
pensada sobretudo para exercer uma pressão psicológica negativa sobre os condenados e
as suas famílias. Haesbaert (2004: 126 e 127) refere, que a geografia pode funcionar como
uma proposição maquínica de desterritorialização, neste caso dos condenados, gerando um
sentimento violento de insegurança ontológica. A ideia é a de criar medo em quem fica livre
e em quem é preso. Mas Onfray (2009:67) defende que “não nos separamos do nosso ser,
que nos habita e nos frequenta, como uma sombra inseparável”, o que acabará por explicar
os métodos e o objetivo de sobrevivência que permitiu a muitos deles viver.

A geografia do espaço interior do campo de concentração, numa estratégia delibe-


radamente torturante, foi também pensada e usada para, de forma oculta, praticar atos
de repressão muito violentos e bárbaros, tanto do ponto de vista psicológico como físico,
culminando na debilitação física e até mesmo na morte de muitos dos prisioneiros. O regime
usa-o no sentido de Tuan (2008: 179), como um mundo organizado e com sentido, onde
se definem dinâmicas estáticas para desenvolver o que o autor chama “sense of place”, de
identificação ao lugar, através de vários elementos, desde, por exemplo o vestuário, a cama,
a outros espaços de uso individual/comum.
Numa das primeiras salas está exposta a farda pertencente a um dos presos, uma roupa
sem corpo, uma aleatoriedade pessoal onde urge eliminar o “quem”. O regime aliena a
identidade pessoal ao encarar o corpo como projeto, neste caso exercendo poder à escala
da individualidade e da intimidade da pessoa, fazendo usar uma roupa identificativa de
uma condição de confinamento. Democratiza, de forma irónica, o espaço de prisão, pelo
distanciamento do coletivo subjugado a um outro coletivo dominante (militar do regime),
tornando-os aparentemente iguais na visualização uns dos outros no espaço interior da
prisão, mas diferente aos de fora, os que estão (relativamente) livres.
É esse coletivo militar dominante que irá contribuir para o confinamento geográfico,
usando-se a estratégia da interiorização do facto por duas vias. Primeiro, pela condenação
e aplicação da pena; segundo, pela edificação do fosso junto à parede exterior (do lado
de dentro) da prisão, construído com recurso à mão-de-obra dos condenados. E se no
Fátima Velez de Castro
47

primeiro caso, a participação do condenado resulta de um conjunto de atos dispersos no


tempo-espaço, no segundo o indivíduo tem consciência de que é ele próprio, com as suas
capacidades físicas, que está a fabricar o próprio isolamento.
As formas de tortura e humilhação passam pela ainda pela disposição dos edifícios internos
no campo, de forma a facilitar o controlo do prisioneiro no interior dos pavilhões onde
dormiam e permaneciam parte do tempo - parte comunitária - como nas celas individuais
(solitárias). Desde a escala do corpo à escala do grupo, as condições de habitabilidade e
de vivência são muito precárias e inumanas, preparadas para colocar no limite a dignidade
pessoal e a segurança física dos prisioneiros.
Há um regulamento e um horário rígido a cumprir. Em termos individuais, qualquer ato
de subversão mais arrivista era severamente punido, recorrendo-se a formas extremas de
isolamento, como “a frigideira” e a “holandinha”. Estas são duas celas individuais muito
pequenas, construídas em tempos diferentes, cujo objetivo era subjugar o subversor
às regras do campo de concentração, através da exposição a condições físicas extremas,
nomeadamente a temperaturas muito elevadas, pela exposição construtiva do edifício ao sol,
e à quase ausência de alimentos e água. Outro tipo de punições individuais eram confinadas
às “solitárias”, igualmente pequenas e com pouca luz, mas próximo dos pavilhões comuns,
para reforçar o espetro da consequência da insurreição face às regras aplicadas.
Outros espaços comuns eram ideologicamente controlados. Na biblioteca, os livros e os
jornais eram previamente selecionados e censurados pela direção prisional; na enfermaria
a aceleração da mortalidade era disfarçada por um pretenso processo de cura à custa dos
medicamentos que não existiam; no refeitório a alimentação era deficitária, feita com
alimentos deteriorados e a água sem tratamento prévio, com o objetivo de acelerar o processo
de morbilidade.
A ideia de reeducação do regime, estruturada com base numa forte componente física e
psicológica de humilhação, isolamento e confinamento geográfico dos condenados serviu,
acima de tudo, não para o propósito ideológico pré-determinado – a subjugação – mas
antes para criar uma rede de solidariedade entre os presos, onde circulavam bens materiais
(medicação, alimentos) e imateriais (informações sobre a família, apoio psicológico), neste
espaço ambivalente de horror e de fraternidade.
Hoje, o campo de concentração do Tarrafal é um lugar de encontro, de memória, de
silêncio e de breves sons propositados, como foi o caso, nos pavilhões comuns e nas solitárias,
do ruído sistemático de uma porta de ferro a ranger ao ser fechada. Curiosa sensação que
acompanhou a nossa visita: não estávamos sós. A perceção e a experiência, ainda que breve,
daquele espaço, deixou-nos a sensação de que a inexistente memória do confinamento
geográfico é um hiato preenchido pela sensibilidade individual, em estreita relação com a
recriação do que restou do campo de concentração. Para que ninguém se esqueça que este
espaço que foi, jamais se deverá repetir na cronotopia de qualquer civilização.

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Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YsHkqjOuPKg (acedido em 30/03/2016)
Badie, Bertand (1996). O fim dos territórios. Instituto Piaget, Lisboa.
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Pisón, Eduardo Martínez de Pisón (2009). Miradas sobre el paisaje. Editorial Biblioteca Nueva, Madrid.
Tuan, Yi-Fu (2008). Space and Place. The perspective of experience. University Minnesota Press, Minneapolis.
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49

As fronteiras e a segurança
internacional na região das Guianas
Daniel Chaves
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de História, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
Universidade Federal do Amapá (Unifap)
daniel.chaves@unifap.br

Resumo: Este trabalho propõe-se a discutir perspectivas pós-coloniais sobre os arranjos


históricos das unidades nacionais/regionais da Região das Guianas, tratando de uma série de
assuntos convergentes, aceitos como heterogêneos, partindo de uma visão comparativa sobre
o processo de descolonização e as interações na construção entre Estado e Comunidade,
por um lado; por outro, focando-se na resiliente premissa (ou imperativo, para alguns) do
desenvolvimento regional ainda inexplorado mesmo que com potencial bloqueado. Algumas
asseverações no tópico do desenvolvimento regional, sugerimos, devem ser distinguidas e
habilitar-se para incluir uma investigação que combine escalas, compreendendo a dimensão
participativa e os valores intrínsecos para tomadas de decisão sistemicamente sustentáveis.
Da forma que o nível nacional tem um importante papel como mediador de uma extensa
sorte de agentes, estruturas e escalas, este texto também dedica esforços para com uma
crescente convergência de agendas globalizadas em estabelecimento entre instituições
regionais e agências internacionais.

Palavras-chave: Guianas; Pós-colonialismo; Desenvolvimento Regional.

Reconhecendo um emergente diálogo acadêmico sobre os arranjos históricos das


unidades nacionais/regionais da Região das Guianas, este trabalho propõe perspectivas pós-
coloniais sobre uma série de assuntos convergentes, aceitos como heterogêneos, partindo
de uma visão comparativa sobre o processo de descolonização e as interações na construção
entre Estado e Comunidade, por um lado; por outro, focando-se na resiliente premissa (ou
imperativo, para alguns) do desenvolvimento regional ainda inexplorado mesmo que com
potencial bloqueado. Este texto pretende discutir criticamente algumas destas perspectivas e
asseverações, buscando compreender o que há de específico nestas preocupações, com foco
na historicidade destes padrões de (sub)desenvolvimento e seus problemas próprios. Algumas
asseverações no tópico do desenvolvimento regional, sugerimos, devem ser distinguidas e
habilitar-se para incluir uma investigação sobre temas ligados à sustentabilidade, combinando
escalas, compreendendo o desenvolvimento regional como algo participativo e os valores
para conter tomadas de decisão contraditórias, por exemplo. Da forma que o nível nacional
tem um importante papel como mediador de uma extensa sorte de agentes, estruturas e
escalas, este texto também dedica esforços para com uma crescente convergência de agendas
globalizadas em estabelecimento entre instituições regionais e agências internacionais. A
despeito da notadamente histórica condição periférica e fronteiriça das Guianas (JACOBS,
2012), nas fímbrias ao norte da América do Sul, tal relação de anterior divergência tem sido
contemporaneamente revertida, no ambiente político e acadêmico da Amazônia, a partir
da detecção de que a condição fronteiriça é, de ainda que de forma tardia e precária se
comparada a fronteira sul-sudoeste do Brasil, uma situação de largo potencial estratégico
para os Estados e os grupos de interesse locais/regionais interessados nos ganhos relativos,
ainda que seja firme mote para controvérsias e questões. Essa detecção é notada pelos
investimentos crescentes na região, catalisados pelas mais recentes inversões em busca de
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
50

desenvolvimento econômico e inclusão em projetos políticos de integração que se buscou


envolver a região (SUPERTI, 2013: 91). Segundo Teixeira da Silva (2006:7), na Amazônia, “os
projetos em curso - principalmente na área viária e de energia - são a ponta da integração e
do desenvolvimento regional, capazes de criar empregos e gerar renda localmente”.
Para uma compreensão sobre a dimensão sul-americana do processo, tendo em vista
o todo em torno das ações específicas, é preciso situar as ações estruturantes que, se no
planejamento são promissoras, no plano político se realizam de forma notadamente precária.
No início do Século XXI, no entanto, aponta-se uma reversão de tal contexto, na emergência
da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). A inovação
em torno da IIRSA era a sua pretensão em apontar, executar e articular cooperativamente
uma convergência regional de integração efetiva, tendo a infraestrutura física como fator
essencial para a integração do espaço econômico e do desenvolvimento sul-americano. Em
outras e mais simples palavras, a IIRSA teve papel histórico efetivo e simbólico no projeto de
integração regional sul-americana no amanhecer do Século XXI, como seus números e críticas
antagônicas ou construtivas demonstram. É possível notar objetivamente, nesta direção, ações
e proposituras que demonstraram a tomada de consciência sobre a importância geopolítica
do Platô das Guianas em termos de políticas públicas e investimentos. Não apenas o Projeto
Calha Norte (1985) deveria ser considerado como um ponto de inflexão contemporâneo da
mudança de percepção (2013:153) desde um ponto de vista generalista da estratégia de
desenvolvimento regional brasileiro, mas também considerando os recentes investimentos e
potenciais da região (ALBUQUERQUE, 2008:61-76).
Em termos nacionais brasileiros, Programas como o Brasil em Ação (1996-1999) ou o Avança
Brasil (2000-2003) foram parte fundamental da política de integração regional sul-americana,
consolidando a Amazônia como uma projetada área-pivô desta nova onda de interação
(THÉRY, 2005:41), que teve efeito notável no que tange ao seu contato interinstitucional
não apenas nas repúblicas da região das Guianas, mas nas unidades federativas brasileiras
(Roraima e Amapá) que fazem parte da região, desde uma determinação geomorfológica
deste espaço. O lançamento da Iniciativa, na Primeira Reunião dos Presidentes da América
do Sul, realizada em 2000, alteraria sensivelmente o estado das relações entre o Platô das
Guianas e o resto do continente na medida em que propunha a superação da sua desconexão
viária e logística do resto do continente (QUINTANAR & LOPEZ, 2003: 213-214). Este papel
deveria ser deslocado para um de seus 12 Eixos, neste caso o do Escudo das Guianas 1. Do
ponto de vista local da fronteira setentrional brasileira, aproximando a lupa podemos destacar
que os resultados do ‘Brasil em Ação’ e ‘Avança Brasil” são decisivamente apresentados na
construção da Ponte Binacional entre Brasil e França, conectando Amapá e Guiana Francesa,
bem como no projeto da Rodovia Transguianense, de escopo consideravelmente mais amplo
no que diz respeito a capacidade de projeção e alcance cooperativo (MARTINS,2008: 16).
Do ponto de vista geral, tal iniciativa era animadora, ainda que como frisamos, a efetividade
das iniciativas merecessem maior efetividade. Ainda que neste sentido devamos destacar e
reforçar o papel histórico da IIRSA, historicamente demarcado, é preciso reposicionar as nossas
instituições na direção de um novo olhar sobre as novas e autônomas formas institucionais
da regionalização sul-americana. A UNASUL, neste sentido, representa efetivo passo à
frente e o COSIPLAN, no que se refere a integração física, representará a sua vanguarda.
No entanto, uma contundente questão deve ser colocada à mesa para a compreensão –
já histórica – sobre a IIRSA: com base nos balanços de dez anos de pregnância e eficácia
da IIRSA, aponta-se que boa parte das nações passou por mudanças sócio-econômicas e
políticas, reestruturando seus agentes de fomento. Ainda, pela própria desconexão com as
outras formas institucionais organizadas em torno do projeto de integração - a IIRSA, de fato,
não possuía clara conexão com os problemas dos desenvolvimentos ambientais e sociais do
subcontinente - e, por fim, a própria institucionalidade crescente e cada dia mais relevante da
União das Nações Sul-Americanas acabaram por colocar a IIRSA em xeque de forma quase
definitiva quando tratada como protagonista do processo.
Neste sentido, na hipótese que se realizariam tais projetos e envolvimentos de forma
efetiva, as Guianas emergiriam ao final do processo com uma nova condição estratégica.

1 - IIRSA. Eje del Escudo Guayanés. Disponível em: <www.iirsa.org/admin_iirsa_web/Uploads/Documents/lb09_


seccion3_eje_escudo_guayanes.pdf>. Acesso em 03 Abr 2015.
Daniel Chaves
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Fixando o seu potencial como uma “uma espécie de ‘nova fronteira’ do processo de
integração sul-americano” (VIZENTINI, 2008: 1), em um reposicionamento estratégico
de interesse para um diálogo sobre leituras da ideia das calhas amazônicas como rimland
(SPYKMAN, 1942), desde um ponto de vista da estratégia terrestre do continente. Por outro
lado, em perspectiva de escala regional ampliada, torna-se também concernente ao histórico
contexto de conexão entre América do Sul e Caribe/América Central (SIMÕES, 2011: 39-54),
absolutamente respectivo ao debate de integração latino-americana do período posterior a
2ª Guerra Mundial – condensada decisivamente desde a fundação de organismos como a
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), das Nações Unidas (ONU),
ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), ambas em 1948. Os desdobramentos
destes organismos para a integração latino-americana já são conhecidos e até hoje e, ainda
que indiretamente (em larga medida pelo seu ocaso), impactam sobre as “mediterrâneas”
discussões e decisões regionais (MORSE, 1967: 172).
As Guianas e o seu Platô não são, de forma decisiva, um conjunto de países ou uma
região que influencia decisivamente a geopolítica das Américas, em especial da América
do Sul, ainda que seja possível notar diversos momentos em que a sua importância se
viu destacada, e a atenção das potências regionais, e inclusive internacionais, se dedicou
a região. Considerando a emergência de uma configuração multidimensional do sistema
internacional, onde a globalização acentua diferenças, possibilita sinergias conjunturais e
rearranja os parâmetros e políticas sobre as fronteiras inter ou intranacionais (COSTA, 2009:
3), entende-se aqui que a compreensão das geopolíticas das Guianas (a Guiana Francesa,
a República Cooperativa da Guiana, o Suriname, e um plano subperiférico, as unidades
administrativas do Amapá e Guayana Essequiba) é essencial para entender as geopolíticas
que se centram sobre a subregião, e em perspectiva, apontam as potencialidades para que
tal se constitua como área-pivô dos projetos de integração regional. Da mesma forma, pode
ser útil entender que a imersão destas geopolíticas se dá de forma múltipla, em larga medida
por conta da sua necessidade de sobrevivência em um ambiente pouco estruturado no que
diz respeito a regionalização e a subsequente inserção contemporânea, influenciando as suas
perspectivas de securitização e projeção (GRIFFITH, 2003: 1-2). Neste sentido, é preciso fazer
um exercício inclusivo, porém cuidadoso: mais que propriamente recuperar o nexo da relação
comparada entre a formação dos padrões nacionais das Guianas com o restante dos estados-
nações sul-americanos, em especial no que diz respeito à identidade étnica, perfil cultural,
corpo institucional ou padrões de desenvolvimento econômico, seria necessário buscar as
intersecções necessárias para compreender como o processo tardio de inserção guianense
em um sistema regional sul-americano e caribenho. Este último, por sinal, possui destacada
importância para as perspectivas e possibilidades das escolhas políticas e das geopolíticas das
Guianas.
A inserção das Guianas como periferias do sistema sul-americano não é um imperativo
único sobre essa condição – inevitavelmente, falar em uma geopolítica das Guianas
independentes ou pós-coloniais perpassa a existência de um fértil ambiente internacional
para tais comportamentos geopolíticos que inevitavelmente eram novos. Nesse sentido, a
despeito da intensa hegemonia da polaridade Oeste-Leste na Guerra Fria, a polaridade Norte-
Sul também fora importante, especialmente no final da década de ’70, para a promoção de
uma nova ordenança geopolítica na agenda global, por sua vez gradativamente notável
desde a Conferência de Bandung, em 1955. No ambiente de distensão casual da bipolaridade
Oeste-Leste, a luta por justiça econômica e racial – bem como por autodeterminação
política e independência cultural – orientava as ideias-força de redistribuição, compensação
e reorganização do poder em suas mais diversas instâncias. Diante do imperativo do
reconhecimento, não apenas dinâmicas próprias devem ser situadas, mas a forma com
a qual a comunidade internacional recebera tal impulso – e é neste impulso que janelas
de oportunidade conjunturais importantes redimensionaram a relação ultratardia entre as
metrópoles e tais colônias, na direção de proporciona-las a condição pós-colonial tão cara.
Em uma longa jornada de idas-e-vindas, a República Cooperativa da Guiana se tornava
independente em 1966. Nos anos ’70, o embate se afirmou e ganhou força com a proposta
sólida de uma Nova Ordem Econômica Internacional – a NOEI -, um largo conjunto de
barganhas ao sistema de Bretton-Woods estabelecido pelo Norte. Esse conjunto situava-se
em torno de algumas reivindicações específicas dos países em desenvolvimento, dentre os
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
52

quais podemos citar: estabilidade de preços para commodities e matéria prima, transferên-
cia de recursos de países ricos para pobres, industrialização e tecnologia, corporações
transnacionais, acesso a mercados, reforma no sistema monetário internacional e no arranjo
de poder nos foros internacionais (HANSEN, 1981). Em 1974, a Assembleia Geral da ONU
declarava o estabelecimento da nova ordem econômica mundial no seio das discussões
sobre desenvolvimento e matéria-prima e estabelecia um programa e a Carta de Direitos e
Obrigações econômicas dos Estados sobre essa nova ordem após longas e duras discussões
2
. Um ano depois, o Suriname se tornava independente da Holanda.
É possível que se diga que, desde a segunda metade do Século XIX - período no qual,
como ressaltamos, ocorre a inclusão das Guianas em um sistema capitalista bem constituído
-, as Guianas permaneciam até pouco tempo atrás ocultadas em uma geopolítica, como se
fossem paradigmáticas no que diz respeito a invisibilidade política, cultural e econômica na
América do Sul, notáveis apenas em observações carregadas de pejoração sobre crises de
sistemas e estruturas da efetividade e da identidade nacional do Estado, tendo dificuldade
em inserir-se nos processos de desenvolvimento regionais. No entanto, olhares mais
compreensivos, cientes da complexidade da inserção guianense no sistema internacional
notam que tal depende invariavelmente de uma compreensão sobre como o Caribe forjou
tal inserção e sobre como, do ponto de vista pivotal, as Guianas seriam um ponto de junção
entre as geopolíticas caribenhas e sul-americanas. Aqui reside o mais sensível e vital aspecto
das leituras geopolíticas sobre as Guianas, que com investimentos inteligentes, sustentáveis e
inovadores sobre energia, tecnologia e transportes, podem gerar ganhos em escala de médio
e alto valor agregado, contribuindo inevitavelmente para o desenvolvimento regional.
Tais geopolíticas deverão ter especial atenção ao novo contexto de reabertura da
economia cubana a investimentos internacionais (2014), a um cenário de desmontagem do
caráter bolivariano-socialista na Venezuela pós-chavista, do fim da Guerra Civil colombiana e
a revolucionária perspectiva em curto-médio prazo do escoamento de commodities agrícolas
do Centro-Oeste brasileiro. Estes devem surgir através tanto dos eixos em torno dos afluentes
do Rio Amazonas em conexão com a rota BR364-BR319-BR174 (Cuiabá-Porto Velho-Manaus-
Boa Vista), quanto do conjunto multimodal Tapajós-BR-163-Bico do Tocantins, cravando o
Extremo Norte do Brasil – e consequentemente, as franjas do subcomplexo regional – tanto
na geopolítica da exportação das commodities brasileiras quanto das novas possibilidades
políticas do Caribe. Nos nossos termos, a franja setentrional redimensiona o seu papel, em
especial diante da hipótese aventada a de que é necessário constituir a compreensão de que
o Platô das Guianas possui uma geopolítica multidimensional, e que nestas possibilidades, o
seu nexo amazônico-caribenho representa enorme potencial para a integração América do
Sul-Caribe.
Nos termos clássicos idealizados pela bibliografia, a Amazônia deixaria de periferia do
Brasil para se tornar motor geopolítico do continente no Século XXI. Tendo em vista esta
contextualização renovada, e reconhecendo esse imperativo geopolítico caribenho inicial
sobre o Platô, notamos que na primeira onda global de integração regional (a qual se agita
em período contíguo a ascensão da deténte, no seio da Guerra Fria) as recém-independentes
República Cooperativa da Guiana e o Suriname aderiram a Comunidade do Caribe (CARICOM)
3
e ao Tratado de Cooperação Amazônica (TCA, depois Organização do Tratado, OTCA) em
1973 e 1978, respectivamente, sendo este segundo potencialmente relevante do ponto de
vista das conexões Caribe-América do Sul. A emergente Associação dos Estados Caribenhos
(AES) também absorveu as Guianas em uma iniciativa integracionista recente, na chamada
segunda onda global de integração regional (SENHORAS & CARVALHO, 2015: 3), apesar de
ter importância diminuída diante do CARICOM e de outros relacionamentos em construção.
É preciso notar que, como certa exceção peculiar, ainda existam acordos de livre-comércio
e trocas privilegiadas entre as ilhas e departamentos ultramarinos franceses de presença

2 - Declaration on the Establishment of a New International Economic Order; Programme of Action on the Estab-
lishment of a New International Economic Order (S-VI) (A/9556). Disponível em: <http://www.un.org/ga/search/
view_doc.asp?symbol=A/9559&Lang=E>. Acesso em 10 jun 2011.
3 - CARIBBEAN COMMUNITY. Communiqué issued at the conclusion of the sixth inter-sessional meeting of the
conference of heads of government of the Caribbean Community, 16-17 de Fevereiro de 1995, Belize. Disponível
em: <http://www.caricom.org/jsp/communications/communiques/6inthgc_1995_communique.jsp>. Acesso em
12 Fev 2015.
Daniel Chaves
53

determinante na região, e nestes inclui-se a Guiana Francesa – que é uma colônia francesa, e
em última instância, reminiscente do imperialismo francês sobre as Américas. Nesta direção,
no que diz respeito às convergências regionalizantes, a França não está contemplada nestes
arranjos formais como deliberadora votante – como aponta Granger, “A Guiana francesa
encontra-se assim ao cruzamento de vários rumos e conjuntos político-econômicos” (2008:
9). Este contexto representa por um lado certo desafio, mas não necessariamente um óbice,
por outro, considerando-se as enormes potencialidades vis-à-vis a linde brasileiro-europeia
em pleno ultramar sul-americano.
Tal situação específica pode ser interessante para uma discussão decisiva, e cada vez mais
estratégica, sobre a envergadura dos projetos integração das Guianas como um sub-complexo
regional, considerando a singularidade da presença continental de uma potência europeia,
caso único em termos contemporâneos no que diz respeito a terras continentais. É interessante
notar que, apesar de uma trajetória de contestações históricas sobre a fronteira no Platô, em
especial a Questão do Amapá, a presença francesa não é interpretada regionalmente como
hostil ou contra-cooperativa, com a sua presença na Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) sendo raramente advertida quanto aos debates sub-regionais de segurança.
Nesse sentido positivo, a ponte binacional entre esse país e o Brasil é um bom exemplo
de como a cooperação pôde se estabelecer mesmo diante de tal idiossincrasia, mesmo
considerando que tal obra ainda não é usufruída cotidianamente por ambos 4. Problemas
semelhantes foram notados na fronteira entre Lethem (R. C. da Guiana) e Bomfim (Roraima),
na ponte sobre o rio Tacutu, mas com diferentes resultados, na medida em que a obra
se efetivou em uso (SANTOS, OLIVEIRA & SENHORAS, 2009). A questão das fronteiras no
Platô é assunto, como dissemos, para questões fronteiriças entre praticamente todos os seus
estados nacionais envolvidos. A Venezuela reclama a área da Guayana Essequiba (159,500
km²) sobre a R. P. da Guiana; a Guiana disputa (pequenas) áreas em torno do Rio Corentyne
e New River Triangle, com o Suriname; o Suriname, por sua vez, reclama a área que vai do Rio
Marowini ao Rio Litani com a Guiana Francesa, demonstrando a relativa instabilidade no que
diz respeito a determinados consensos geográficos essenciais, remontando a sua precária
formação territorial colonial.
Apesar disto, em corte histórico cosmopolitizante, é possível operar comparações globais
com as transformações e convulsões nas Américas portuguesa e espanhola, coloniais e pós-
coloniais. Tais comparações poderão, inclusive, encontrar ampla relação com discussões
específicas da região amazônica sobre este contexto no que diz respeito aos limites e
fronteiras, tanto formais quanto conceituais, campo relativamente consolidado apesar
de subsidiário a tais discussões, se comparados ao desenvolvimento dos debates sobre as
Guianas. A guisa de analogia e exemplo, podemos citar o arco de movimentos contestatórios
da transição moderno-contemporânea, como o Levante de Berbice (1763-64) (CLEVE, 2007:
55-56), ou a Rebelião dos Escravos de Demerara (1823) (VIOTTI DA COSTA, 1998), ou até
mesmo a Cabanagem e outros conflitos, por exemplo. Nesta mesma direção, devem ser
observadas possíveis relações com desdobramentos da instabilidade europeia posterior a
Revolução Francesa e a Era Napoleônica (1804-1814), como na Invasão da Martinica (1809)
e Guadalupe (1810), ou ainda a Batalha do Suriname (1804), pois é neste contexto que
começam a se conformar e definir os limites entre as colônias - o que até hoje se demonstra
insólito e frágil, com contenciosos de fronteira atuais entre todos os países do Platô, com
a exceção do Brasil diante de seus pares - ainda sob a determinação da expansão imperial
europeia a partir da segunda metade do XIX, que consagraria a segunda onda de expansão
europeia e as suas consequências estruturantes para a periferia do sistema internacional da
época.
A condição periférica destas dinâmicas sociais, desde um ponto de vista histórico
é interessante para uma plêiade de contribuições diversas sobre o papel do Estado e do
mercado nas sociedades de fronteira, bem como suas tensões e conflitos decorrentes, sob
diferentes prismas, que variam desde as relações locais lindeiras (ROMANI, 2013; BAINES,
2013; VAN LIER, 2005), até os novos usos e articulações estratégicas das fronteiras (VILHENA

4 - REIS, Lucas. Brasil ‘abandona’ ponte construída em parceria com a França. Folha de São Paulo, Caderno
Mundo, 25 fev 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1594386-brasil-abando-
na-ponte-construida-em-parceria-com-a-franca.shtml >. Acesso em 10 mar 2015.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
54

SILVA, 2013; SANTOS & PORTO, 2013; SUPERTI, 2013), passando pela trajetória histórica
dos contenciosos sobre a delimitação de tais restrinjas (GRANGER, 2013; SEMERENE
COSTA, 2009; TANAKA, 2007; DONOVAN, 2003), considerando a importante presença das
Forças Armadas como ponta-de-lança de tais fronteiras, contenciosos e governanças até o
protagonismo social das inevitáveis discussões locais de caráter étnico nas suas representações
associativas, dispersas ou reunidas diante do Estado). O reconhecimento destas questões é,
categoricamente, não apenas um elemento vital da integração destes povos e nações com
o restante do continente, mas um imprescindível horizonte para a ação diante das opções
contemporâneas de desenvolvimento sustentável, considerando a inevitável absorção destas
territorialidades em novas cadeias produtivas decorrentes da integração.
As Guianas são, neste sentido, riquíssimas do ponto de vista da pluralidade das possibi-
lidades de revisitar-se a mecânica destas relações no sistema internacional sobre tais temas
topicais vis-à-vis as tendências contemporâneas a redimensionar dinâmicas subalternas e
eleva-las a um ponto de alcance de mesma importância aos temas da grande estratégia,
por exemplo. É importante mapear, aqui, que os níveis de confiança destas relações entre os
Estados no contexto geopolítico contemporâneo mudaram sensivelmente. A inclusão da R.
P. da Guiana e do Suriname na União das Nações Sul-Americanas, na virada da primeira para
a segunda década do Século XXI, apontam para esta direção animadora para as relações
com o resto da América do Sul – o que carecerá de atenção, reiteramos, são os padrões e
níveis de comprometimento com a integração de forma efetiva e sustentável, equilibrando
os interesses e atendendo às necessidades locais, regionais e continentais. O sucesso deste
equilíbrio poderá definir o triunfo ou o fracasso da integração como projeto coletivo e, por
conseguinte, cooperativo. Consequentemente, o futuro do desenvolvimento regional – prio-
ritariamente orientado ao Sul e ao seu papel conectivo com o Norte – também depende
desta correlação de forças, destes princípios e seus resultados.

Referências Bibliográficas

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56
57

Novas geografias: um olhar sobre


(des)construção da saúde em territórios
de lusofonia (Brasil e Moçambique)
Paulo Nossa
Professor Auxiliar do Deptartamento de Geografia
Universidade de Coimbra
paulonossa@gmail.com

«A novidade faz-se por arranjos inéditos de coisas antigas»


Jacques Monod - Prémio Nobel da Medicina, 1963

Introdução

As denominadas “novas geografias”, apresentadas e debatidas neste encontro, talvez


se devessem designar por “novas geografias criticas”, avisando os participantes de que,
ao contrário do que se possa aparentemente intuir, os processos (des)construtivos que se
discutem estão maioritariamente distantes da abordagem lógica positivista que suportou
a Nova Geografia na segunda metade do século XX antes, mais próximos do desafio
lançado pela obra de Milton Santos (1978): Por uma Geografia Nova, da crítica da geografia
a uma geografia crítica. Ainda que esta dita “Geografia Nova” aqui discutida se possa
socorrer, sem qualquer preconceito, de métodos estatísticos, procure a interpretação de
padrões espaciais e de regularidades e tenha, de igual modo, um suporte teórico robusto,
acima de tudo, assume um posicionamento que tendencialmente foge ao normativismo e
abstracionismo dos modelos, procurando intencionalmente uma aproximação ao quotidiano
dos grupos, compreendendo as suas necessidades e opções, na expetativa de alcançarem
operacionalidade social através da produção de um conhecimento científico de matriz
heterodoxa, mesclando ferramentas interpretativas, aproximando-se do que Schutz (1970)
definiu como o “mundo da vida”: «Um conjunto de experiências do dia-adia, orientações
e ações através das quais as pessoas perseguem os seus interesses objetivos…» (Cit. por
Quartilho, 2001:29).
Não sendo exceção nas ciências sociais, muita da abordagem geográfica desenvolvida
no contexto da lusofonia aqui considerada - Portugal, Brasil e Moçambique, empresta o
seu saber interpretativo e capacidade operacional aos processo de investigação-ação em
saúde, discutindo a validade e autoridade normativa do modelo biomédico na solução das
necessidades dos grupos, corporizando processos interpretativos mais antropocêntricos, na
expetativa de gerar conhecimento suficientemente capaz para responder às assimetrias que
os modelos de desenvolvimento geraram, questionando a sua legitimidade, denunciando o
impacte que os determinantes sociais têm na saúde dos grupos, a ausência de equidade, a
manutenção de iniquidades, aproximando a ciência dos problemas importantes do mundo
não tendo, em alguns casos, qualquer constrangimento em contribuir para a agenda
politica. Como bem referenciaram Ley e Samuels (1978; Cit. por Estebanez, 1983:120),
o humanismo do século XX orienta-se para o combate às limitações positivas da ciência
incluindo, nas suas explicações, questões referentes à estética, literatura, linguística e
perspetiva histórica, permitindo, por esta via, resgatar o “novo homem”, situando-o no
centro das coisas, como produtor e produto do seu próprio mundo. Seja escorada numa
proposta reformista, ou com recursos a teorias de análise sócio espacial Miltonianas e
Harveydianas, que adiante se clarificam, ou ainda por conceções assumidamente humanistas
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
58

de suporte fenomenológico e existencialista, todas elas são, simultaneamente, tributárias


de um enquadramento discursivo que as ciências sociais produzem comum um todo,
particularmente no Brasil, embora nos interesse mais observar o seu contributo na (des)
construção no domínio da Geografia da Saúde. Este posicionamento, em muitos momentos
rompe intencionalmente os limites disciplinares mais convencionais, experimentando novas
vias interpretativas que se assumem contributivas e enriquecedoras, discutindo o impacte
que o conhecimento científico pode e deve ter na construção e monitorização de políticas
públicas e o modo como estas impactam o dia-a-dia das populações.

Ferramentas interpretativas de matriz Miltoniana e Harveydiana

Milton Santos (1926-2001) foi e ainda é um dos mais prestigiados Geógrafos brasileiros,
cujo pensamento e abordagem epistemológica são transversalmente inspiradores da
produção do conhecimento geográfico no Brasil, transbordando as suas fronteiras.
Santos procurava a compreensão do espaço, objeto de estudo da geografia, como uma
totalidade, observando-o como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas
de ações: «O espaço seria sociedade encaixada na paisagem, isto é, “a vida que palpita
conjuntamente com a materialidade”» (Santos, 1991:73). Assim, a visão Miltoniana
sublinha a necessidade de se abordarem as duas categorias, espaço e sociedade, de uma
forma indivisa, justificando:

«O espaço reproduz a totalidade social na medida em que essas transformações


são determinadas por necessidades sociais, económicas e políticas. Assim, o
espaço reproduz-se, ele mesmo, no interior da totalidade, quando evolui em
função do modo de produção e de seus momentos sucessivos. Mas o espaço
influencia também a evolução de outras estruturas e, por isso, torna-se um
componente fundamental da totalidade social e de seus movimentos (SANTOS,
2005, Cit. por Cassab, 2008:4).

Para esta discussão e ao longo do seu percurso académico, Santos congrega de Rui
Barbosa, político e jurista brasileiro, o ideário libertário, posição que aprofundada através
do contato com Sartre, sublinhando o compromisso que o debate científico deve ter com
a liberdade e a vontade de independência. À medida que investiga a dinâmica económica
subjacente ao desenvolvimento urbano (1970 e seguintes), tendo como primeira referencia
o modelo de desenvolvimento político-económico da américa latina e do Brasil, denuncia o
que designa por “intencionalidade violenta do sistema capitalista”, onde os ciclos recessivos
não emergem como uma consequência mas antes, identifica-os como uma estratégia
criada pelo sistema capitalista para reposicionar os ganhos. Esta posição de denúncia
e de desconstrução dos determinantes de um sistema capitalista, que perspetiva como
imposição violenta sobre os grupos humanos, é legitimada por Leontieff, prémio Nobel da
Economia (1973), voltando a ganhar adeptos após a violenta crise do subprime (2007…):

“Quando a criação de riquezas já não depender do trabalho dos homens, estes


morrerão de fome às portas do Paraíso, a não ser que se responda através de
uma nova política à nova situação técnica.” (Wassily Leontieff, 1973).

Ainda que Milton Santos não se tivesse dedicado especificamente à investigação


em Geografia da Saúde, o inovador conceito de espaço por si discutido e construído
proporcionou uma revisão epistemológica intensa que, para além de influenciar o discurso
de ciências como a economia, a sociologia e a filosofia, legitimou abordagens humanistas
e estruturalistas criticas que a Geografia da Saúde Brasileira abundantemente utiliza. Como
reconhecem Faria & Bortolozzi (2009), a conceção Miltoniana abriu uma fonte de discussão
e de enriquecimento para a epidemiologia, contribuindo para que esta ultrapassasse um
discurso descritivo, observando o espaço e a sociedade como elementos dinâmicos que
mutuamente se condicionam – «um conjunto indissociável, solidário e também contraditório
de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como
Paulo Nossa
59

quadro único na qual a história se dá» (Santos, 2004: 63; Cit. por Faria & Bortolozzi,
2009:34); compreendendo melhor, por esta via, as mudanças do perfil epidemiológico,
associadas ao processo de urbanização e à intensificação das relações sociais, ampliadas
pelo processo de globalização, pelos impactos ambientais e a sua relação com a saúde.
Como mencionam Czeresnia & Ribeiro (2000), num dos mais belos e completos textos
escritos – O Conceito de espaço em epidemiologia; a elaboração teórica de Milton Santos
tem inquestionáveis responsabilidades na moderna investigação em saúde ao insistir na
necessidade de se considerar a importância do encadeamento histórico que está presente
na exploração dos recursos e na consequente transformação das condições físicas do
meio gerando, no caso de algumas endemias (Ex.: doença das chagas), uma explicação
cuja consistência pode ser encontrada através da sobreposição de paisagens geográficas,
associadas à dinâmica do desenvolvimento económico regional: “As sociedades humanas
produziram uma segunda natureza por meio das transformações ambientais oriundas do
processo de trabalho” (Czeresnia & Ribeiro, 2000:8).
Adicionalmente, e tendo como base a abordagem marxista, a epidemiologia social
encetou investigações orientadas para a identificação dos condicionantes sociais e
económicos dos processos epidemiológicos:

«Considerou a epidemia como um acontecimento social e não, apenas, a soma


dos casos de doença (…) A erradicação e o controlo das epidemias não dependem
apenas do diagnóstico e intervenção biológica, mas de todos os elementos que
participam da organizacional do espaço» (Czeresnia & Ribeiro, 2000:9).

De igual modo, esta posição de uma “Geografia Nova e Critica”, que frequentes vezes
encontramos na fundamentação epistemológica dos trabalhos de Geografia da Saúde
brasileiros, recebe de David Harvey, geógrafo britânico marxista formado na Universidade
de Cambridge, um legado continuado e renovado1. Numa linha aparentemente comum,
Harvey denuncia a subjugação/enfraquecimento das políticas públicas ao que designa por
“Partido de Wall Street”, numa referência à captura do sistema político pelo poder financeiro,
comprometendo metas humanistas e, no limite, o bem-comum. Observa a tributação do
Estado como uma estratégia ardilosa e duradoura criada para trazer populações (“marginais/
alternativas”) para o interior da órbita geral da acumulação de capital, pela necessidade de
vender algo que lhe permita satisfazer a imposição do Estado.

A produção científica da Geografia da Saúde brasileira: abordagem breve

Correndo um risco subjacente à posição de observador outsider, arrisco afirmar que,


uma e outra visão interpretativa têm tido impacte significativo na produção científica da
Geografia da Saúde brasileira, quer na vertente que Curtis & Taket (1996) denominam
por linha de investigação tradicional2 em Geografia da Saúde, quer na linha dita
contemporânea. Salvo melhor opinião, a corrente marxista e crítica é ainda mais prevalente
em alguns segmentos da designada Geografia da Saúde contemporânea, particularmente
visível na denominada abordagem humanista e na abordagem estruturalista, materialista,
critica – que os anglo-saxónicos também denominam por medical-social geography,
onde se identificam e investigam os determinantes económicos, sociais e políticos da
saúde, da doença, as desigualdades e iniquidades no acesso aos cuidados de saúde,
valorizando preferencialmente a teoria social e económica como ferramenta interpretativa,
secundarizando uma fundamentação exclusivamente empirista.
Neste contexto, como atrás mencionámos, a moderna epidemiologia social fundamenta
o seu modelo de prevenção em duas vias de atuação que são particularmente queridas à

1 - Ver: Harvey, D. (2011). O enigma do capital. Boitempo Editorial. São Paulo.


2 - Padronização espacial da morbilidade e mortalidade; Padronização espacial da provisão de serviços de saúde;
como o que é refletido nos trabalhos produzidos por Santos, Pina & Carvalho (2000) ao investigarem as desigual-
dades de acesso aos cuidados de saúde em função do lugar de residência e de óbito pós-neonatal por padrão
socioeconómico nos bairros do Rio de Janeiro.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
60

abordagem critica:
– Uma via onde se desenham um conjunto de estratégias direcionadas para os
indivíduos ou grupos, cumprindo objetivos de sensibilização, informação e modificação de
comportamentos tidos como potenciadores de risco(s) para a saúde;
– Uma outra via onde se produzem estratégias de intervenção orientadas para a
análise e modificação das estruturas sociais, económicas, políticas e jurídicas, conformadoras
do meio envolvente dos indivíduos, cuja atuação direta ou indireta gera ou acrescenta
situações de vulnerabilidade para a saúde; (Yen & Sime, 1999; Kawachi, 2000; Barnett &
Whiteside, 2002).

Com frequência, a produção científica questiona o processo de transição da sociedade


brasileira para a modernidade (incompleta em algumas das suas dimensões) e/ou,
intencionalmente, procura interpretar e responder (gerando informação e conhecimento) a
processos assimétricos de desenvolvimento que comprometem a universalidade de acesso
(saúde, educação, justiça), geradores de padrões de iniquidade. Parece pois legitimo afirmar
que o conhecimento geográfico produzido neste domínio, maioritariamente, prossegue
uma outra atitude explicativa que passa por uma “desbiologização” em proveito de uma
crescente e desejável “socialização”. Exemplos disso podem ser os trabalhos produzidos
por Samuel Lima et al. (2010) a propósito da (re)emergência de doenças urbanas associadas
ao processo de urbanização de Manaus, ou ainda as investigações lideradas por Nardoto
(2015) e Tatiana Schor (2015), onde são investigadas as consequências que estão associadas
ao crescente processo de urbanização na amazónia brasileira e a transição nutricional
subsequente, com impactes ambientais e na saúde decorrentes da modificação dos hábitos
alimentares das populações.
De igual modo, investigações orientadas por Francisco Mendonça e outros, direcionam
a sua pesquisa para a validação de um conhecimento “alternativo”, detido por práticas
indígenas na gestão saúde/doença, questionam o modo como e porquê têm sido
desqualificadas em favorecimento de um conhecimento/informação cientifica hegemónica
e globalizada ou ainda, ensaiam uma validação do espaço, observado e construído, a partir
de um conjunto de referentes imanentes a esse espaço, onde relevam aspetos imateriais e
simbólicos: afetos, sensações, valores étnicos e religiosos, numa organização coerente de
símbolos e significados escorados em vivências individuais/coletivas.

Produção científica em Geografia da Saúde em Moçambique

Num passado recente, alguma da produção científica no domínio da Geografia


da Saúde feita em Moçambique ou sobre Moçambique é, em muitos casos, fruto de
processos de cooperação académica e/ou da diplomacia educativa económica brasileira e,
de um modo mais mitigado, de programas de intercâmbio de universidades portuguesas
a título individual. No período de pacificação vivido em Moçambique, pós conflito civil
(1977-1992), o (re) início da discussão dos temas de Geografia da Saúde nos curricula da
licenciatura de Geografia em Moçambique teve a colaboração de projetos de cooperação
brasileira, entre outros, através da Universidade Federal de Uberlândia com o apoio da
CAPES - Ministério da Educação, ao que se somam também projetos de colaboração com
mobilidade docente/discente da Universidade do Minho – Portugal, bem como o apoio mais
recente da Universidade de Coimbra, ao nível do Departamento de Geografia e Turismo.
Ainda que de um modo menos sistemático, de acordo com as circunstancias e contexto
local, a produção científica em Geografia da Saúde ou domínios conexos, tem ocorrido de
modo vagaroso mas estimulante. Uma pesquisa bibliográfica permite encontrar o trabalho
produzido por Chavanga (2009) onde se avalia a dinâmica da reprodução da pobreza
na cidade de Maputo e o modo como a mobilidade residencial pode ser um elemento
corrosivo da renda familiar e o motor da manutenção pobreza.
Fruto da cooperação a que já aludimos, o interesse por esta área tem emergido,
materializado em artigos/comunicações ou projetos de doutoramento, como por exemplo,
Lima & José da Silva (2014) – Territorialização da saúde em Maputo, Moçambique; Sitoel, G.
(2016) – Riscos e vulnerabilidade social à malária na província da Zambézia, Moçambique.
Paulo Nossa
61

Conclusões

A escrita deste texto reflete o envolvimento regular do autor, enquanto docente e


investigador, em projetos de cooperação científica e ensino no Brasil e em Moçambique,
pelo que, naturalmente, não se traduz num levantamento exaustivo da produção científica
no domínio da Geografia da Saúde nestes dois países. Antes, deve ser observada como o
produto de uma reflexão pessoal, onde se cruzam olhares e tendências sobre a investigação
em geografia que, sendo diferentes na sua matriz cultural e epistemológica não são menos
apelativas ou menos qualificadas. A abordagem critica, mais presente na investigação
brasileira e que se se pressente alargar à produção Moçambicana, cujo contexto e
significado se deu conta, toca aspetos derivados de um modelo de desenvolvimento
politico e económico de um pais-continente, com as suas naturais contradições, numa
consolidação de modernidade e que, num passado recente foi considerado um dos mais
importantes players emergentes da economia mundial, a par da Rússia, a India e a China.
Por outro lado, a Republica de Moçambique, estado independente desde 1975, que
atravessou um conflito armado que em muito adiou ou seu processo de desenvolvimento
procura, através da maturação das políticas sociais na educação e saúde, entre outras,
estruturar as condições para consolidar a transição para a modernidade.
No plano da produção do conhecimento científico, mutatis mutandis, existem importantes
pontos em comum ao nível dos determinantes que estruturam perfis socio-epidemiológicos,
e que ganham indiscutível prioridade quando enquadradas no domínio da investigação-
ação, muito presente na tradição brasileira, para além do ganho de sinergias que podem
ser alcançadas para que se atinjam as metas ODM. Subsidiariamente, existe uma facilidade
linguística que aproxima uns e outros, a par de uma maior escala de produção científica
do Brasil, fruto de uma estrutura universitária mais vasta, com um maior número de títulos
académicos disponíveis de modo continuado em sistema opensource, a par de um contexto
evolutivo sociopolítico com pontos comuns, que passa pelo escrutinar do modo como os
sistemas públicos de saúde têm impactado os outcomes de saúde.
No âmbito da lusofonia, os diferentes Estados, particularmente o Estado português detém
elevada margem de progresso no domínio da diplomacia educativa e económica, uma vez
que dispõe de importante capital cultural e afetivo, a par de know-how, que não deve
desperdiçar, empenhando-se na construção de sinergias setoriais, de modo continuado
que, apenas no médio prazo se podem traduzir em ganhos comuns na produção do
conhecimento e no dilatar dos níveis de desenvolvimento das partes.

Bibliografia

Barnett, T.; Whiteside, A. (2002) – AIDS in the Twenty-First Century, disease and globalization. Palgrave Macmillan.
Cassab, C. (2008). Epistemologia do espaço na obra de Milton Santos: breve panorama. Geografias Resenhas.
Belo Horizonte 04 (1) 98-108 janeiro-junho.
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Czerésnia, D.; Ribeiro, A. M. (2000). O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação histórica e episte-
mológica. Cadernos de Saúde Pública, Vol. 16(3), pp. 595-617.
Estébanez, J. (1983) – Tendencias y Problemática Actual de la Geografia. Editorial Cincel.
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Paulo: HUCITEC, 1991.
Yen, I.H.; Syme, S.L. (1999). The social environment and health: a discussion of the epidemiologic literature. Annu.
Rev. Public Health, Vol. 20, pp. 287-308.
62
Messias Modesto dos Passos
63

Política, cultura e espaço 1

Roberto Lobato Corrêa


Professor Departamento de Geografia
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Este texto dá continuidade aos estudos sobre formas simbólicas espaciais (Corrêa, 2005,
2008), procurando trazer à tona outras formas simbólicas e outros contextos. Isto consolida
a temática, denotando ao mesmo tempo a sua importância na análise geográfica. As formas
simbólicas espaciais constituem representações criadas e recriadas, objetos de celebração e
contestação, inseridas efetivamente na organização espacial. Desempenham um ativo papel
na sociedade, podendo ser consideradas como reflexos, meios e condições sociais.
Neste trabalho discute-se inicialmente e muito brevemente as relações entre geografia
cultural, política e significados, seguindo-se três partes nas quais são abordadas as relações
toponímia e política, monumentos, política e identidade e, finalmente, os lugares de
densidade política.

Geografia Cultural, Política e Significados

A política manifesta-se de diferentes modos. Suas manifestações espaciais também


se fazem de diferentes modos, um deles sendo os territórios político-administrativos com
limites rigidamente estabelecidos, configurando municípios, estados e países. Os territórios
diocesanos da Igreja Católica e os territórios das unidades da grande corporação multilocalizada
são outras manifestações, assim como, na escala do espaço urbano, os territórios dos mais
diversos grupos sociais. A manifestação espacial da política se faz também por meio da
‘iconografia política do território’, como aponta Leib (2002), com base em Jean Gottmann.
Trata-se de formas simbólicas espaciais como os monumentos em geral. Nestes casos não
há limites espaciais formais mas um alcance espacial até onde a mensagem intencionada é
irradiada. A superfície terrestre está impregnada de iconografias políticas, mas o seu interesse
por parte dos geógrafos é relativamente recente.
A incorporação da política à geografia cultural, incluindo-se o estudo da iconografia
política, verifica-se durante as décadas de 1970 e 1980, a partir de bases distintas. De um
lado está o Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham
que, sobretudo com Stuart Hall, desenvolve uma visão crítica de cultura (Schulman, 2004).
Associado ao CCCS Raymond Williams, professor em Oxford, introduz as noções de cultura
da classe dominante, emergente e residual. Resgata a noção gramcsiana de hegemonia
cultural e contribui decisivamente para descontruir a visão de cultura como superestrutura,
subordinada à base econômica (Williams, 2004). O caminho para a incorporação da política
nas análises culturais está aberto.
A influência de Clifford Geertz, de outro lado, foi também fundamental. Geertz (1989)
considera como cultura os significados criados pelos diferentes grupos sociais a respeito das
diversas esferas da vida. A visão abrangente de cultura, adotada pela perspectiva saueriana,
é deixada de lado por muitos geógrafos. A geografia cultural que se renova tem como foco
os “mapas de significados” que recobrem a superfície terrestre, uma expressão cunhada no
CCCS (Jackson, 1989).

1 - Inédito
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
64

As relações entre política e cultura são explicitadas por Geertz por meio da “política de
significados”, uma expressão que articula dois termos distintos e aparentemente dissociados.
Política de significados constitui-se no embate entre grupos sociais visando a imposição de
significados.
Hall, Williams e Geertz, com suas formulações contribuíram decisivamente para que
as relações entre política, cultura e espaço fossem incorporadas à geografia cultural.
A contribuição de Erwin Panofsky foi também decisiva, ao possibilitar um modelo de
interpretação das formas simbólicas espaciais (Panofsky, 2004), modelo adotado pelos
geógrafos que participaram da coletânea organizada por Cosgrove e Daniels (1988) sobre a
iconografia da paisagem, e por Eyles e Peach (1990) ao estudarem os signos e símbolos da
cidade industrial canadense de Hamilton.
Incorporar a dimensão política ao estudo das relações entre cultura e espaço pressupõe
compreender a natureza rizomática da ciência, na qual todos os seus sub-campos se
interpenetram, sendo cada um enriquecido pelos demais, ao mesmo tempo que os enriquece.
A concepção rizomática opõe-se àquela que considera a ciência à semelhança de uma árvore,
de cujo tronco saem ramos e galhos que não se comunicam diretamente entre si. Segundo
a concepção rizomática a cultura manifesta-se politicamente e a política tem um sentido
cultural. O mesmo se pode dizer das relações entre economia e cultura.
A política de significados pode ser efetivada por meio do espaço, adquirindo assim uma
espacialidade. Trata-se das formas simbólicas espaciais (Corrêa, 2005, 2008), por meio das
quais mensagens são comunicadas a respeito de diversas esferas da vida, com a intenção
de influenciar na preservação ou transformação daquelas esferas. Assim, por exemplo,
reconstrói-se o passado e anuncia-se o futuro. Poder e identidade são temas centrais nessas
intenções, como transparece nos artigos da coletânea sobre diversos monumentos na cidade
do Rio de Janeiro (Knauss, 1999).
As formas simbólicas espaciais podem ser fixas ou móveis. Entre as primeiras estão as
estátuas, obeliscos, templos e memoriais, de longa ancoragem na paisagem, assim como
os modernos shopping centers e parques temáticos. As procissões, paradas e marchas são
exemplos de formas simbólicas espaciais móveis. As primeiras podem ser consideradas como
metáforas visuais (Gombrich, 1954), enquanto as segundas, de acordo com Turner (1982),
metáforas rituais.

Toponímia e Política

A língua é considerada a partir de Herder, comentado por Gade (2003), como o mais
relevante meio para expressar a identidade de um grupo. Constitui-se ela na primeira forma
simbólica, conforme apontado em 1923 por Cassirer (2001). Por meio dela conceitos e
significados são criados e comunicados, estabelecendo-se diferenças entre grupos lingüísticos.
Marca e matriz identitária a língua exibe uma espacialidade manifesta no território lingüístico
seja por meio da fala e das diversas grafias, seja pela toponímia, isto é, o nome de montanhas,
rios, países, regiões, cidades, bairros e ruas.
A toponímia reafirma a identidade dos lugares e de seus habitantes, podendo adquirir
um explícito sentido político quando um dado território é objeto de disputa entre grupos
sociais distintos, quando é objeto de conquista ou ainda quando submetido a profundas
transformações políticas. Nestes casos a toponímia pode ser vista como uma articulação
entre língua, poder territorial e identidade, como apontam Azaryahu e Golan (2001). Como
objeto de política cultural a toponímia está impregnada de tensões e negociações entre
grupos distintos.
Vejamos alguns exemplos, em que as relações entre toponímia e política revelam e
afirmam identidades de grupos. Os exemplos nos remetem a duas escalas espaciais, a do
território nacional ou regional, de um lado, e a do espaço urbano, de outro. Em que sentido
as duas escalas afetam a toponímia é uma questão para investigação.
A Amazônia pombalina (1755. 1778) constitui um eloquente exemplo de política
toponímica visando evidenciar simbolicamente o domínio português sobre um território
economicamente sob o monopólio da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, empresa
criada pelo Marquês de Pombal, Primeiro-Ministro português (Nunes Dias, 1970). A política
Roberto Lobato Corrêa
65

toponímica inseria-se em política mais ampla, que incluia, entre outras ações a elevação de
aldeias, com nomes indígenas, à categoria de vilas, a introdução do gado bovino, das culturas
do anil e do cacau, assim como de escravos africanos.
O domínio econômico é referendado pela alteração toponímica das aldeias, agora erigidas
em vilas, adotando-se nomes de povoações portuguesas. Os exemplos são numerosos,
entre eles Almeirim, Barcelos, Breves, Ega, Faro, Ourém, Santarém e Soure. Esta toponímia
seria divulgada nos mapas e nas conversas de marinheiros. Deste modo difundia-se a posse
portuguesa do território amazônico, estabelecendo-se uma identidade lusa à Amazônia.
A política toponímica foi ativa em inúmeros contextos culturais, a exemplo da hebraicização,
após a criação de Israel em 1948, dos topônimos pré-existentes, como é o caso de Tel-Rabia
renomeada Tel-Aviv (Azaryahu e Golan, 2001) e da desrussificação dos topônimos, após
1991, do Casaquistão, exemplificada com o nome da nova capital nacional, Astana, em
substituição ao nome anterior, Tselinograd (Brunet, 2001).
Dado o muito elevado nome de logradouros públicos existentes em uma cidade, admite-
se que o nome de bairros, praças e ruas sejam oriundos de amplas e complexas lógicas.
Uma hipótese para as cidades brasileiras diz respeito à influência de proprietários fundiários
urbanos, transformados ou não em loteadores, na designação de muitos logradouros e bairros.
O nome deles pode constituir-se em prática de valorização fundiária, ao mesmo tempo que
inscreve no espaço uma estrutura de poder e identidade de classe. Os exemplos na cidade
do Rio de Janeiro, como em outras, são numerosos e significativos. Mas nomear logradouros
públicos e bairros pode envolver tensões e negociações políticas tornadas públicas e objetos
de ações diversas. Dois exemplos apontam para essas tensões e negociações a respeito da
nomeação de logradouros públicos, envolvem contextos culturais distintos.
O primeiro diz respeito à política em torno de renomear ruas de cidades norte-americanas,
especialmente no Sul, homenageando o líder negro Martin Luther King Jr., defensor dos
direitos civis (Alderman, 2000). Os debates envolvendo o movimento negro e as lideranças
brancas foram focalizados em torno da localização das ruas a serem renomeadas, tendo
menor importância o debate em torno de se aceitar ou não que ruas fossem renomeadas.
O movimento negro insistia que essas ruas deveriam ter centralidade, ruas de comércio e de
tráfego intenso, conferindo assim visibilidade e força simbólica ao nome do líder negro. Os
interesses dominantes, brancos e conservadores, temiam que renomear uma importante via
poderia influenciar negativamente as vendas comerciais e o valor dos imóveis. Sugeriram
que ruas pequenas, escondidas e sem expressão fossem renomeadas homenageando Martin
Luther King Jr. O debate ressaltou as conexões entre política, cultura e espaço.
O segundo exemplo reporta-se à parte oriental da cidade de Berlim (Azaryahu, 1997). Este
setor da capital alemã foi submetido a diversas alterações no nome de diversas ruas, refletindo
as profundas mudanças políticas a que a cidade passou, sobretudo a partir de 1871, com a
formação do 2º Reich. O nazismo e o comunismo renomearam diversos logradouros públicos.
A reunificação alemão em 1989 trouxe à tona inúmeros problemas políticos, envolvendo
distintos grupos, a exemplo daqueles ligados à democracia cristã alemã e à antiga Alemanha
Ocidental, que desejavam eliminar qualquer vestígio do antigo regime comunita, e daqueles
moderados que queriam preservar os nomes daqueles que conceberam o socialismo, como
Rosa Luxemburgo. Nomes associados a posições políticas antagônicas definiram inúmeros
logradouros públicos da cidade, a exemplo de Bismarck, Hitler, Stalin, Wilhelm Pieck, Marx e
Engels. A história moderna da cidade está inscrita na memória toponímica, revelando a sua
dramática trajetória.
As relações entre toponímia e política, contudo, ainda necessitam de mais estudos
empíricos e reflexões. Há muitas questões a serem respondidas. Uma delas envolve as
condições políticas sob as quais alterações toponímicas são efetivadas e, inversamente, em
que condições mudanças políticas não implicaram em alterações toponímicas. Em relação a
este ponto o exemplo do oeste norte-americano é notável. Após a efetiva incorporação de
grande área localizada então no norte do México, verificou-se a preservação da toponímia
em língua espanhola, que incluía topônimos vinculados ao catolicismo, a despeito do
predomínio de protestantes entre os novos ocupantes. San Francisco, San José, Sacramento,
Santa Barbara, Los Angeles, San Diego, San Antonio, El Paso, Albuquerque e Las Vegas são
exemplos significativos. Os centros urbanos criados após a incorporação norte-americana,
contudo, foram nomeados com termos na língua inglesa. Tolerância ou política de anti-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
66

conquista, de que nos fala Herman (1999) em seu estudo sobre os nomes de lugares no
Hawai, após a conquista e incorporação do arquipélago à União? Esta política implica em
criar, por meio da manutenção de alguns traços da vida cultural, a impressão de respeito às
diferenças entre os conquistadores e conquistados.

Monumentos, Política e Espaço

Os monumentos como estátuas, obeliscos, memoriais e templos são representações


culturais, metáforas visuais que, em muitos casos, denotam um sentido político, no qual a
afirmação identitária étnica, de classe ou religiosa constitui-se em motivação fundamental,
associando-se a outros aspectos sociais. Tanto quanto a toponímia os monumentos comunicam
mensagens e por isso sua localização é elemento chave para a sua eficiência comunicativa.
Contudo, os monumentos são objetos cuja interpretação é aberta, polivocal, construída com
base na experiência de diferentes grupos sociais (Duncan e Sharp, 1993, Hall, 1997).
Nesta seção serão considerados, de um lado, dois monumentos associados à conquista
territorial e identidade, em contextos que guardam entre si algumas semelhanças. De outro,
serão considerados monumentos na antiga União Soviética, após 1991, quando mudanças
políticas estabeleceram novas interpretações a esses monumentos.
Poder, conquista territorial e identidade podem se constituir em bases para a construção
de formas simbólicas espaciais que denotam um nítido sentido político. Os exemplos dos
monumentos dedicados aos Bandeirantes localizado em São Paulo (Diniz Filho, 1992) e aos
pioneiros holandeses (Voortrekker) localizado em Pretoria, África do Sul (Crampton, 2001)
são contundentes a esse respeito. Há inúmeras diferenças entre eles, mas ambos descrevem
a marcha de desbravadores visando ampliar e efetivamente apropriar-se de um território já
apropriado.
Inaugurados respectivamente em 1954 e 1949, ambos buscam no passado a inspiração e
motivação para o futuro. A identidade bandeirante e dos pioneiros ‘afrikaners’ é enfatizada.
No caso paulista a sua inauguração marca a data do 4º centenário da fundação de São Paulo,
em um momento de plena expansão econômica da metrópole paulistana. O monumento
aos Bandeirantes procura difundir os valores daqueles desbravadores, valores dos quais a
elite paulistana seria portadora, força, coragem, espírito de solidariedade e liderança, sendo
assim, capaz de, sob sua égide, construir uma moderna nação. A construção do monumento
dedicado aos pioneiros holandeses se deu, diferentemente do contexto da construção do
monumento paulistano. Tratava-se de um momento de crise em razão do empobrecimento
dos agricultores ‘afrikaners’ e enriquecimento daqueles de língua inglesa, ao mesmo tempo
que os ‘afrikaners’ tinham maior consciência da presença de uma maioria negra. Contextos
políticos e econômicos diferentes, no entanto, geraram formas simbólicas espaciais seme-
lhantes, conforme se pode depreender dos textos de Diniz Filho e Crampton.
Mudanças políticas drásticas podem gerar a resignificação de formas simbólicas espaciais
que em um passado recente foram vistas positivamente. As representações políticas materiais
como as estátuas podem ser objeto de ações que denotam o novo sentido a elas atribuído.
Forest e Johnson (2002) apontam que após a dissolução da União Soviética as elites russas,
visando reconstruir a identidade russa, estabeleceram três formas de tratamento aos
monumentos da era soviética erguidos em Moscou. A primeira forma, segundo os autores,
foi definida como cooptação e glorificação. Assim, alguns monumentos, incluindo templos e
mosteiros foram redefinidos em seus sentidos originais, resgatando-se as heranças culturais
russa e czarista. Por outro lado, glorifica-se os heróis russos da Grande Guerra Patriótica
(Segunda Guerra Mundial) e constroem-se novos memoriais, templos e mosteiros.
A segunda forma traduz-se em contestação, que gera tanto a retirada de símbolos soviéticos
de lugares públicos, como o corte de recursos monetários públicos para a manutenção do
mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, mantido, a partir de então, com recursos oriundos
de uma Fundação de Caridade. A terceira forma diz respeito a ignorar-se os monumentos,
que foram removidos, fechados ou alterados de tal modo que os seus significados originais
se perderam. O exemplo mais contundente é o de uma Exposição permanente relativa ao
talento e criatividade econômica das repúblicas soviéticas. Em 1991 deixa de receber verbas,
sendo transformado, pouco a pouco, em um centro de negócios.
Roberto Lobato Corrêa
67

Também em Tashkent, capital da ex-república soviética do Usbequistão, as elites nacionais


removeram as estátuas de Lenin e de Marx, substituindo-as, respectivamente, por enorme
globo onde aparece em relevo os limites do novo Estado independente e pela estátua
eqüestre de Tamerlão, o herói guerreiro medieval da Ásia Central, considerado então como o
fundador do Usbequistão (Bell, 1999).
Os exemplos de Moscou e o de Tashkent colocam em evidência que as relações entre
política, cultura e espaço não estão fixadas para sempre, variando em razão de mudança
de regime político. As formas simbólicas espaciais, como os monumentos em geral,
apresentam em realidade três papéis desempenhados simultaneamente, o de serem reflexos
da política vigente, meios para essa mesma política e condição, não exclusiva, para o seu
bom desempenho.

Lugares de Densidade Política

As relações entre política, cultura e espaço manifestam-se nos lugares retóricos (rhetorical
topoi) e lugares vernaculares (verccular topoi), como aponta Boyer (1994). Os lugares retóricos
são entendidos como locais onde a memória oficial e o culto aos heróis nacionais, são
cultivados por meio de rituais oficiais: nesses locais ensina-se os valores dominantes, visando
a continuidade da estrutura política da nação. Os lugares vernaculares, por outro lado, são
locais de manifestação da cultura popular, onde crenças e valores populares são transmitidos
às gerações mais jovens. Os dois lugares, contudo, não necessitam estar separados entre si,
verificando-se, frequentemente, uma superposição espacial entre eles. Contudo, os rituais de
cada um tendem a verificar-se em momentos distintos.
A Plaza de Mayo, localizada no centro de Buenos Aires constitui um exemplo de lugar
retórico tradicional, no qual um processo de contestação redefiniu a sua identidade.
Celebração e contestação convivem no mesmo espaço por meio de formas simbólicas
espaciais antigas e recentes incorporadas à paisagem, como aponta Torre (2000). Trata-se
do mais importante espaço cívico da capital argentina, equivalente, segundo Torre, ao Mall
da capital norte-americana, no qual o poder está representado. Antiga Plaza de Armas da
Buenos Aires colonial, ali estão localizados a Casa Rosada, sede do governo argentino, a
Catedral, com o túmulo de San Martin, o herói da independência nacional, o prédio do
antigo Cabildo e a Pirâmide de Mayo, que comemora a independência nacional.
Entre 1976 e 1983 o lugar retórico, de manifestação do poder, transforma-se, tornando-
se um espaço de contestação, conhecido como o lugar das ‘Madres de la Plaza de Mayo’.
A contestação esteve centrada nos protestos de mulheres, mães e viúvas daqueles mortos
ou desaparecidos durante o regime militar no país. Semanalmente as mulheres, portando
um lenço na cabeça, se reuniam, formando um círculo em torno da Pirâmide de Mayo,
no meio da praça. A materialização desse protesto se fez pela construção em cimento de
lenços em torno da Pirâmide, corporificando simbolicamente o protesto e, ao mesmo tempo,
imprimindo a manifestação na paisagem do lugar retórico. As duas características permitem
falar em lugar de densidade política.
Lugares da retórica e lugares vernaculares podem ser vistos como lugares de densidade
política, que condensam intenções e práticas portadoras de significados políticos. Em muitos
deles esta densidade política verifica-se há muito tempo, mesmo que as formas simbólicas
espaciais, monumentos e rituais, assim como os agentes sociais e intenções implícitas,
tenham mudado ao longo do tempo. Fala-se em lugar de densidade simbólica, com múltiplas
camadas de significados, como argumenta Mandoki (2003) ao estudar o Zócalo, ponto focal
da vida da nação mexicana, cuja força simbólica tem suas raízes na mitologia azteca. Mandoki
reconheceu no Zócalo quatro camadas de significados, caracterizando-o como lugar mítico,
foco principal de Tecnochtilán, a capital azteca, ‘plaza de armas’ do período colonial e ponto
focal da atual cidade e nação mexicana. Prédios governamentais e a catedral convivem com
a multidão, ora festejando, ora protestando.
A Praça do Portão da Paz Celestial, Tiananmen, em Beijing é outro desses lugares retóricos
e vernaculares, dotada de inúmeras camadas de significados, garantindo assim o seu caráter
de lugar de enorme expressão na vida chinesa, como aponta Hershkovitz (1993). Criada no
final do século XIV, juntamente com a cidade, Tiananmen já nasce dotada de importante papel
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
68

simbólico, pois separa a Cidade Proibida, sede do governo, do restante da cidade. Separa
o espaço sagrado do espaço secular. Com a república o papel de Tiananmen é alterado,
assim como a morfologia da área em torno. Torna-se um espaço público, freqüentado pela
população em geral. Ali foi construído o memorial dedicado a Sun Yatsen, o fundador da
república chinesa em 1911, e na praça manifestações de contestação ocorreram durante
a primeira metade do século XX. Tiananmen foi erigida como foco político do regime
comunista, que estabeleceu nova iconografia, reafirmando a sua centralidade política. Os
movimentos de contestação estudantil da década de 1980 tiveram em Tiananmen o seu
epicentro. Verificou-se, portanto, uma continuidade da força política de Tiananmen, um local
de densidade política, com inúmeras camadas de significados, lugar retórico e vernacular, de
celebração e de contestação.
Os lugares de densidade política ocorrem em diversas escalas espaciais como o espaço
público central de uma cidade, a exemplo do Zócalo e de Tiananmen, mas também na escala
de toda uma cidade. Gernika no País Basco é um exemplo, como argumentam Raento e
Watson (2000). Gernika pode ser vista como sinédoque do território basco, irradiando uma
força simbólica que tem suas origens na Idade Média e da sua longa resistência ao domínio
espanhol. Bombardeada pela aviação alemã durante a Guerra Civil Espanhola teve a sua
centralidade política ampliada, para a qual muito contribuiu a tela de Pablo Picasso sobre a
cidade.
A centralidade de Gernika tem como epicentro o local onde se encontram, próximos, os
restos de um velho carvalho e um prédio que representa as velhas tradições agrárias do povo
basco. Gernika, uma pequena cidade, tem apenas uma única camada de significados, porém
espessa, pois nela estão inscritas as lutas de um povo.

Considerações Finais

A política e a cultura estão em toda parte, manifestando-se espacialmente. Entre estas


manifestações estão as formas simbólicas espaciais fixas como a toponímia, os monumentos
e os lugares de densidade política. A despeito da diversidade das formas, conteúdos e
mensagens a serem comunicadas, essas manifestações apresentam denominadores comuns,
envolvendo o espaço, singularizando-o simbolicamente, dotando-o de força política e
de sentido identitário. Assim, a mudança dos nomes das vilas amazônicas ribeirinhas no
século XVIII e os embates em torno do nome Martin Luther King Jr. no sul dos Estados
Unidos apresentam muito em comum. No mesmo sentido o Zócalo e Tiananmen exibem
semelhanças entre si, assim como os monumentos aos desbravadores do território brasileiro
e sul-africano. A geografia está em toda parte sem, contudo, gerar excepcionalismos em suas
configurações.

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70
71

Fortaleza, a Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (UNILAB)
e a elaboração de novos mapas
José Borzacchiello da Silva
Universidade Federal do Caerá (UFC) Fortaleza

“Nossa pátria é a língua portuguesa”.


Fernando Pessoa

Resumo

O artigo discute a dimensão do encontro e do contato de falantes da língua portuguesa


em Fortaleza sob a ótica de sua inserção em nova cartografia com mapas e atlas que
registram as cidades que assumem a função de ponto de encontro desses falantes. Fortaleza
congrega expressivo contingente de estudantes oriundos de diferentes países africanos,
todos portadores de rica bagagem cultural e de distintos traços que enriquecem a recente
experiência internacional da capital cearense. Analisa também as mudanças decorrentes da
criação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira- UNILAB
nas cidades de Redenção, Acarape e Fortaleza. Evidencia que em poucos anos aumentou o
número de estudantes de países africanos no Ceará, constituindo um contingente complexo
de imigrantes. São estudantes que procuram o Brasil para realizar seus estudos superiores
trazendo uma vasta e rica experiência cultural com muitas possibilidades de intercâmbio e
trocas científicas.

Palavras chave: mapas, atlas, traços culturais, centro urbano, ensino superior

I - Introdução

Fortaleza é uma cidade universitária com alunos de vários pontos do Brasil e, nos últimos
anos, dá-se o aumento do número de estudantes estrangeiros, especialmente, os oriundos
de países africanos. A cidade conta com três instituições de ensino público. A Universidade
Federal do Ceará - UFC, a mais tradicional da cidade e do estado, é uma autarquia vinculada ao
Ministério da Educação. Nasceu como resultado de um amplo movimento de opinião pública.
Foi criada em 16 de dezembro de 1954. Possui cerca de trinta mil alunos que frequentam
seus 48 cursos de graduação, 67 de mestrado e 43 de doutorado. A UFC contava em 2014
com 121 estudantes estrangeiros matriculados em seus programas de pós-graduação, sendo
73 alunos de mestrado e 48 de doutorado 1.
Ainda sob o âmbito das instituições públicas de ensino superior, o estado mantém a
Universidade Estadual do Ceará - UECE, “constituída em forma de Fundação com perso-
nalidade Jurídica de Direito Público, criada pelo Decreto no 11.233 de 10 de março de 1975.
Constituída por uma rede multicampi, que privilegia os cursos voltados para a formação de
professores, a UECE vem acumulando experiências e transformando o seu perfil curricular em
razão da melhoria da formação profissional de seus alunos e consequentemente, da elevação

1 - Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação


http://www.ufc.br/component/search/?searchword=alunos%20estrangeiros&searchphrase=all&Itemid=125
Visita em 04.08.2016
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
72

da qualidade de vida da sociedade cearense.2


A terceira é o Instituto Federal do Ceará - IFCE, que possui campi espalhados por várias
cidades do estado. A reitoria está sediada em Fortaleza. Além das instituições públicas, a cidade
conta com várias do setor privado, destacando-se a UNIFOR. Conforme noticiado, a instituição
recebeu nos últimos anos “cerca de 30 alunos estrangeiros por semestre. Neste início de ano,
foram 45. O programa começou em 2002 com convênios com duas universidades espanholas
e agora engloba 140 instituições de mais de 40 países. Eles possuem nacionalidades variadas,
estão pela primeira vez estudando fora do país de origem e mostram-se ávidos por conhecer
a cultura brasileira. Esse é o perfil geralmente encontrado entre os estudantes estrangeiros
que fazem intercâmbio acadêmico na Universidade de Fortaleza....O programa foi iniciado
em 2002 com apenas universidades espanholas... Conforme a Assessoria Internacional da
Universidade, hoje são 140 universidades conveniadas de mais de 40 países”.3
A dinâmica das instituições de ensino em Fortaleza contribui para que a cidade chegue
ao século XXI consolidada como centro universitário, além de confirmar sua condição
de excepcional prestador de serviços de toda ordem, entreposto comercial e industrial
e reconhecido pólo turístico de fama nacional. A cidade alcançou extraordinária área de
influência constituindo a terceira maior rede urbana do país com 11,2% do território nacional
o que extrapola o Ceará e se estende pelos estados do Piauí e Maranhão, além de manter
intensa competitividade com Recife quanto à atuação na área do Rio Grande do Norte.

II - A Criação da UNILAB

A afirmação das universidades públicas e expansão de instituições privadas no setor do


ensino fizeram da cidade lócus de atração de estudantes de vários pontos do país. Outro
dado importante foi a expansão da navegação aérea com a criação de linhas comerciais
entre Fortaleza e algumas cidades européias e americanas. No tocante à África, a cidade
mantém vôos regulares com o Cabo Verde. Em três horas e meia de viagem, as cidades
de Praia e Sal ligam-se a Fortaleza. A presença desse vôo favorece a entrada de passageiros
oriundos de vários países africanos, especialmente, daqueles integrantes da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa - CPLP. A facilidade de comunicação e a política de aproximação
com países africanos encetada pelo estado brasileiro contribuíram para o aumento do fluxo
de passageiros oriundos de países africanos, especialmente, estudantes, agora, utilizando
também empresas aéreas que voam de países africanos para outras cidades brasileiras,
especialmente, São Paulo e Rio de Janeiro. Esse fluxo mesmo que de pequena monta foi
reforçado com a instalação da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira - UNILAB, criada como autarquia vinculada ao Ministério da Educação da República
Federativa do Brasil. A cidade de Redenção, localizada nas imediações de Fortaleza, foi
escolhida para sediar a nova Instituição de Ensino Superior - IES, criada por força da Lei nº
12.289, de 20 de julho de 2010. A UNILAB foi instalada em 25 de maio de 2011.
Em conformidade com a legislação que regulamenta a criação da UNILAB, a nova
Instituição tem como objetivo ministrar ensino superior, desenvolver pesquisas nas diversas
áreas de conhecimento e promover a extensão universitária, tendo como missão institucional
específica formar recursos humanos para contribuir com a integração entre o Brasil e os demais
países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), especialmente os
países africanos, bem como promover o desenvolvimento regional e o intercâmbio cultural,
científico e educacional. É nesse contexto que se manifestam as diferentes dimensões do
encontro e emergem a identificação das semelhanças e das diferenças.
A partir da criação de uma instituição com meta tão ampla, emerge a possibilidade de
elaboração e novos mapas, gráficos e textos, que fundamentam a reconfiguração dos Atlas
da expansão da língua portuguesa no Atlântico Sul, especialmente nas relações do Brasil com
a África. A dimensão do encontro e do contato de povos de diferentes países nas cidades

2 - http://www.uece.br/uece/index.php/conhecaauece/institucional - Visita em 04.08.2016


3 - Leia a edição completa no Unifor Notícias N.º 216
http://unifornoticias.unifor.br/index.php?option=com_content&view=article&id=411&Itemid=31
Visita em 04.08.2016
José Borzacchiello da Silva
73

de Redenção, Acarape e Fortaleza, comunicando-se através da mesma língua, enriquece a


experiência internacional do Ceará.
Além do Ceará, as atividades administrativas e acadêmicas da UNILAB desenvolvem-
se também no estado da Bahia. No Ceará, as unidades da Universidade localizam-se nos
municípios de Redenção e Acarape. Na Bahia, a Unilab está presente no município de São
Francisco do Conde. Assim, o setor acadêmico se empenhou na política de aproximação
com os países africanos, especialmente os de língua portuguesa, notadamente, os da CPLP.
É neste contexto que surge a concepção da UNILAB. O problema seria decidir sobre onde
localizá-la, considerando a maciça presença de população de origem africana em vários
estados brasileiros. A opção pelo Ceará justifica-se pois foi na cidade cearense de Redenção
que se deu o primeiro ato de libertação dos escravos, isso, em 1884.
Com a criação da UNILAB, em poucos anos aumentou o número de estudantes de
países africanos no Ceará, constituindo um contingente complexo de imigrantes, dada
sua diversidade. Eles animam a vida acadêmica, estabelecem ampla troca de experiências,
revelando aspectos de seus países, o que é novidade para os brasileiros. Eles achegam ao
Brasil com muitas expectativas quanto a realização de seus estudos superiores. Passado o
período de ajustamento às novas condições de vida num país estrangeiro, alguns mostram-
se decepcionados com a constatação do modo de ser e viver do brasileiro e começam a
registrar suas alegrias, decepções ou desencantamento.

III - Novo Atlas, novas geografias

A partir desse quadro histórico e conjuntural, discute-se as novas configurações da


cartografia acadêmica brasileira, especialmente, a do Ceará permitindo uma reflexão sobre a
elaboração de novos mapas e uma atualização do atlas que revele, mesmo que em pequenas
proporções, a gênese de um núcleo de falantes da língua portuguesa, oriundos de diferentes
países e reunidos num cruzamento de coordenadas geográficas que não era expressivo nas
relações estabelecidas entre Brasil e África.
Assim, para melhor compreensão das novas configurações cartográficas, cabe indagar
o que é um atlas. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, um atlas,
por definição, é um conjunto de mapas ou cartas geográficas. Porém, o termo também se
aplica a um conjunto de dados sobre determinado assunto, sistematicamente organizados
e servindo de referência para a construção de informações de acordo com a necessidade do
usuário. No senso comum, o Atlas configura-se sempre como coleção de mapas, plantas e
cartas geográficas de apoio à localização.
O filósofo francês, Michel SERRES4, enfatiza a importância de plantas e mapas quando
afirma “Sem uma planta, como visitar a cidade? Ei-nos perdidos na montanha ou no mar,
por vezes até na estrada, sem guia. Onde estamos? Que fazer? Sim, por onde passar para ir
aonde?...”como nos orientarmos no mundo, global, que nasce e parece substituir o antigo,
bem ordenado por locais diversos? O próprio espaço altera-se e exige outros mapas-mundi”.
(pp 11, 12).
Prosseguindo em suas considerações sobre esse tema, Serres alcança o cerne do que
seria um atlas, revelando o caráter múltiplo das diferentes mensagens traçadas nos mapas,
plantas e cartas geográficas dizendo “as páginas do antigo atlas de geografia prolongam-se
em redes que fazem troça das costas, das alfândegas, dos obstáculos, naturais e históricos,
de que os mapas, fiéis, desenhavam outrora a complexidade; a passagem das mensagens
ultrapassa as rotas das peregrinações...eis agora a questão fundamental de qualquer atlas:
de que é que se deve traçar um mapa? Resposta evidente: dos seres, dos corpos, das coisas...
Que não conseguimos conceber de outro modo.”5 pg. 17.

4 - SERRES, Michel. Atlas. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, pp 11, 12


5 - SERRES, Michel. op, cit, p. 17
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
74

A partir da perspectiva de Michel Serres, vislumbra-se diferentes geografias presentes no


imaginário português da expansão marítima e discute-se a situação de Fortaleza que não
alcançara expressão significativa no período mais intenso de trocas no Atlântico sul, entre
Brasil e África .
A histórica aventura portuguesa produziu diferentes mapas superpostos criando um
amálgama de cores, sabores, hábitos, religiões, crenças, costumes e o mais importante,
várias línguas. Portugal aperfeiçoou suas habilidades de chegar, conviver, explorar, fundir-
se ao ponto de criar territórios com domínio lingüístico da língua portuguesa. O Brasil foi
ponto de conquista, colonização e de apóio à expansão de suas atividades em África dai o
pressuposto da necessidade de uma geografia extremamente dinâmica capaz de apreender
e representar a expansão territorial portuguesa na terra e no mar, à medida em que se
aperfeiçoam as viagens marítimas e propaga-se a língua portuguesa. É neste contexto que
surgem novos mapas, novas geografias desafiantes de interpretação e análise.
E na faina expansionista portuguesa, surge o conceito de Brasil onde o vigor dos co-
nhecimentos marítimos e geopolíticos lusitanos firmam-se. O controle da costa brasileira, a
penetração para o interior através dos principais rios e a imposição cultural, construção de
fortalezas, criam as condições necessárias para a configuração do escudo lingüístico brasileiro
representado cada vez mais em novos mapas e novos atlas. Portugal constrói uma nova
geografia, mapeia um novo mundo decorrente das relações travadas no Atlântico Sul.
Niskier (2014)6, em texto esclarecedor afirma: “Temos hoje cerca de 280 milhões de
falantes da língua portuguesa, sendo 250 milhões de nativos e 30 milhões de segunda
língua. Somos a sexta língua mais falada no mundo, o que não foi motivo ainda para que ela
merecesse a sua oficialização na Organização das Nações Unidas. Resta-nos o obstáculo das
diferenças que o Acordo Ortográfico de Unificação da Língua Portuguesa procura corrigir,
sem buscar a unidade prosódica que seria fora de propósito. Cada país da comunidade
lusófona deve falar preservando as suas características. Assim se garantem a variedade e a
riqueza do idioma”.
Esse aumento do número de falantes da língua portuguesa provoca o nascimento e
renascimento de novas geografias miscigenadas nos seus componentes étnicos, culturais
e econômicos. Em seu percurso expansionista, a língua portuguesa penetra América do
Sul adentro. É a língua do conquistador valente, bruto e sedutor que amplia seu número
de falantes. O cristianismo é pregado como missão evangelizadora. No seu rastro, novas
relações econômicas e sociais.

IV - Europa, África, Portugal e Ceará

A ação portuguesa foi marcante no Nordeste brasileiro. A divisão da colônia em Capitanias


Hereditárias7 favoreceu maior penetração no território e reforçou as fortificações no litoral.
A cana-de-açúcar viceja na Capitania de Pernambuco. Olinda transforma-se em expressivo
núcleo urbano e importante centro político.
Na literatura brasileira o encontra de diferentes culturas, tendo como protagonistas o
europeu e o ameríndio foi escrito por José de Alencar8, autor do livro Iracema – Lenda do
Ceará. No romance a heroína Iracema, índia Tabajara se apaixona por Martim Soares Moreno,
explorador português das novas terras. Alencar em seus romances indianistas, enfoca a
entrega total do índio ao branco seja do corpo, da alma, implicando sacrifício e abandono de
sua tribo original. O cenário do livro Iracema é Fortaleza e a narrativa tem como protagonistas
Iracema, índia Tabajara e Martim Soares Moreno que chega ao Ceará em 1608, indicado
para organizar e regularizar a colonização desta porção setentrional do território brasileiro.

6 - NISKIER, Arnaldo. Em defesa da língua portuguesa. In Brasil - construindo uma nação, Rio de Janeiro: Con-
federação Nacional do Comércio, 2014, p. 175
7 - Capitanias Hereditárias implantadas pelo rei de Portugal, D. João III, em 1534 para colonizar o Brasil. Com este
sistema o território brasileiro foi dividido em grandes faixas ligeiramente paralelas que foram entregues preferen-
cialmente a nobres ligados à Coroa Portuguesa para administrá-las.  
8 - José Martiniano de Alencar, escritor cearense, nasceu em Messejana em 1829 e faleceu no Rio de Janeiro
em 1877. É considerado o fundador do romance de temática nacional.
José Borzacchiello da Silva
75

O indígena idealizado por Alencar não está presente no cotidiano do estado do Ceará e da
cidade de Fortaleza com a mesma beleza, orgulho e altivez. Da mesma forma, os negros
cearenses são ocultados sob a perspectiva cultural do Ceará. Um discurso controverso e
preconceituoso afirmava a não existência de índios, bem como de negros, no Ceará. Cabe
lembrar, entretanto, que nos últimos anos, várias associações voltadas à diferentes objetivos
revelam a presença de pessoas índias e negras, especialmente nas porções periféricas das
cidades. Vários movimentos sociais pautados no orgulho de ser índio e, principalmente, de
ser negro, estão presente na cena cultural e política do Ceará e do Brasil.
Além disso, não há nenhuma relação entre as paisagens descritas por Alencar com as
da atual cidade que exerce a função de capital do estado do Ceará e está incluída entre as
grandes cidades brasileiras. Sua aglomeração metropolitana aproxima-se dos quatro milhões
de habitantes. A cidade com múltiplas atividades é, além de excepcional pólo econômico,
capital administrativa, cidade universitária, nó de importantes redes de comunicação, dentre
outras funções que exerce. Chama a atenção seu dinamismo e seu forte poder de atração
demográfica. Fortaleza recebe migrantes de vários pontos do Brasil. Esse dado contrasta
com a história, posto que o nordeste brasileiro especialmente o Ceará, acusou sucessivas
perdas demográficas em função das dificuldades de fixação da população no campo,
especialmente pela estrutura agrária pautada na presença marcante do latifúndio e pela falta
de oportunidades de emprego e de geração de renda nas cidades. Essa mudança se dá a partir
da segunda metade do século passado quando importantes instituições foram instaladas na
cidade,9 contribuindo no processo de geração de empregos especializados com melhores
salários. Nos últimos anos, discute-se com frequência o ocultamento dos negros cearenses
nas narrativas da vida social do estado. Essa opacidade sobre o negro presente nos discursos
dos segmentos brancos que dominaram a política, a economia e as artes oficialmente
reconhecidas, surge uma nova realidade marcada pela efervescência do movimento negro.
A presença de estudantes negros de diferentes países africanos cria condições de confrontos,
estranhamento e construção de alteridades. O cearense acostuma-se a conviver com esses
jovens estudantes e a partir dessa experiência advinda da função universitária de Fortaleza
e de outras cidades do estado constroem novos mapas com configurações diferentes. Os
estudantes brasileiros de um modo geral, só vêem no planisfério o mapa da América do
Norte e da Europa, dai o estranhamento quando constatam a presença de cidadãos de países
que não estavam habituados a ver nos mapas. Sob essa perspectiva, Langa (2014)10 diz
que “No contexto de diferentes estratégias mobilizadoras, os estudantes africanos saem de
seus respectivos países com expectativas acadêmicas em relação ao Brasil, devido ao maior
nível de desenvolvimento econômico, tecnológico e de produção acadêmica, alimentando
esperanças de facilidade de inserção por conta de uma língua e culturas em comum – a
língua portuguesa, a culinária, a religiosidade e a cultura negra trazida pelos escravos a
permear a vida brasileira”.
A presença de estudantes oriundos de países africanos no Ceará adquire expressividade.
Nas cidades onde eles são mais numerosos, especialmente nos campi universitários, eles
registram as singularidades de suas culturas, organizam-se em busca de direitos e oferecem
inúmeras possibilidades de intercâmbio.
O Jornal Tribuna do Ceará11, em sua edição de 02 de setembro de 2015, noticia que “De
acordo com Polícia Federal, 2.167 africanos possuem registro de residência no Ceará, oriundos
da Angola, Cabo Verde, Congo, Gana, Moçambique, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, São Tomé
e Príncipe, e Guiné-Bissau, este último com maior número de imigrantes, 1.116.   Ainda
segundo a PF, entre 2010 e 2014, 3.721 estudantes africanos foram recepcionados pela
imigração cearense...a Universidade Federal do Ceará informa que, atualmente, a instituição

9 - Banco Nordeste do Brasil, Universidade Federal do Ceará e mais tarde o Departamento Nacional de Obras
Contra a Seca - DNOCS
10 - LANGA, Ercílio Neves Brandão, DIÁSPORA AFRICANA NO CEARÁ Representações sobre as festas e as intera-
ções afetivo sexuais de estudantes africano(a)s em Fortaleza IN: Revista Lusófona de Estudos Culturais | Lusopho-
ne Journal of Cultural Studies, Vol. 2, n.1, p. 103
http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/viewFile/65/79. Visita em 04.08.2016
11 - Jornal Tribuna do Ceará, edição de 02 de setembro de 2015, IN: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/
cotidiano-2/africanos-quebram-barreiras-e-ja-somam-mais-2-mil-no-ceara/
Visita em 05.08.2016
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
76

conta com 140 estudantes africanos. A metade deles conta com apoio financeiro do Projeto
Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior (Promisaes), do Ministério da Educação...e que a
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, (Unilab), que tem seu
campus na cidade de Redenção,  a 59 quilômetros de Fortaleza, é pioneira no Estado na
integração entre os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
especialmente os africanos. Atualmente, a instituição conta com 550 alunos matriculados,
oriundos do continente”.
Os números são significativos e garantem visibilidade aos estudantes de países africanos,
especialmente nos bairros próximos aos campi universitários. Acrescenta-se ainda os casos de
outros estudantes que se encontram no Ceará, em situação irregular em relação às normas
vigentes no país. Dentre eles destacam-se alunos de instituições privadas de Fortaleza que estão
matriculados em faculdades da cidade. Essas instituições veiculam campanhas publicitárias de
propaganda de seus cursos nos países africanos, atraindo considerável número de alunos, ao
mesmo tempo que, com a presença deles, investem em programas de internacionalização de
seus cursos. Quando em Fortaleza, muitos se deparam com dificuldades econômicas para
dar conta dos custos financeiros dos cursos e garantir sua manutenção. Enfrentam também
as dificuldades de se instituírem enquanto sujeitos sociais, cidadãos ligados às normas,
hábitos e costumes de seus países de origem. Segundo Mourão (2016)12, muitos reclamam
do desconhecimento dos brasileiros em relação aos estudantes originários de países africanos
“os estudantes argumentam que por serem vistos como estrangeiros ‘as pessoas acham
que eles têm muito dinheiro e aumentam o valor dos aluguéis’, todavia são constantemente
tratados de forma ‘desqualificada e discriminatória’, como se não pudessem pagar, ou
viver de forma respeitosa com os vizinhos, sendo frequentemente acusados de provocar
confusão e barulho na cidade. Outra experiência destacada por eles, sobretudo vivenciada
na universidade, é a falta de conhecimento dos brasileiros em relação ao continente africano
e aos seus próprios países. Alguns estudantes relataram que ao serem identificados como
“africanos” pela aparência (roupas, cabelos, cor da pele), ou pelos diferentes sotaques, são
automaticamente tratados sem diferenciação”.
A política externa brasileira tradicionalmente sustentou a direção sul/norte, elegendo
a Europa como parceira primordial, respaldada numa forte herança colonial. Mais tarde,
assume destaque os Estados Unidos da América, que logo firmou-se como aliado de ações
que ultrapassavam os interesses comerciais e garantiam sua hegemonia na América do
Sul, onde o Brasil se destaca. Só tardiamente o país se dá conta da necessidade de ampliar
suas relações, voltando-se para Ásia e África. Com o continente africano essa aproximação
tem sido lenta e gradual. Os contatos diplomáticos e comerciais do Brasil com o continente
africano se intensificou nos últimos anos. Em reportagem no jornal da BBC Brasil13, João Fallet
assim se coloca “outrora pedaços de um único território, Brasil e África estão desenvolvendo
um modelo de relações que tem o potencial de religar as duas margens do Atlântico Sul,
segundo um relatório do Banco Mundial obtido pela BBC Brasil. O documento, cuja versão
inicial deve ser divulgada no fim deste mês, analisa a intensificação das relações entre Brasil
e África a partir de 2003, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva elegeu o continente
como uma das prioridades de sua política externa, parte da estratégia de ampliar a influência
brasileira no mundo”.
Além do caráter solidário sustentado por ações de aproximação com os povos dos países
africanos, a construção de vínculos levavam em conta a presença maciça de africanos que
foram trazidos ao Brasil na condição de escravos. Submetidos e constantemente humilhados,
trabalharam muito e foram excessivamente explorados. Entretanto, contribuíram fortemente
na formação do modo de ser, de pensar e de agir do brasileiro com forte marcas das
matrizes dos diferentes reinos africanos subjugados pelo escravismo. Não há dúvida que

12 - MOURÃO, Daniele Ellery, ENTRE PALMARES E LIBERDADE: RECONFIGURAÇÕES IDENTITÁRIAS DE ESTUDAN-


TES AFRICANOS NA UNILAB, IN: João Pessoa, 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, 08/2016
http://www.30rba.abant.org.br/modalidadetrabalho/public?ID_MODALIDADE_TRABALHO=2
Visita em 05.08.2016.
13 - FALLET, João. Relação Brasil-África pode religar os 2 lados do Atlântico, diz Banco Mundial, In BBC Brasil,
edição de 19.10.2011 - http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/10/111018_brasil_africa_banco_mun-
dial_jf.shtml
Visita em 05.08.2016
José Borzacchiello da Silva
77

as políticas externas brasileiras voltadas aos países africanos, além do caráter de resgate
cultural, também são identificadas com forte interesse comercial. O feixe representado pelas
atividades acadêmicas e trocas de ações científicas e culturais permeia os diferentes interesses,
destacando-se, inclusive, os da segurança. Aguilar (2013)14 diz que “A Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP) se tornou um fórum internacional bastante atuante nas
discussões no campo da segurança e defesa. Com base no documento jurídico denominado
Protocolo de Cooperação da CPLP no Domínio da Defesa, foram criadas a Reunião de Ministros
da Defesa Nacional, a Reunião dos Chefes de Estado Maior de Defesa, e o Centro de Análise
Estratégica (CAE) com a finalidade de discutir a profissionalização das forças armadas, a ética
e a profissão militar”.
A política externa do Brasil busca fissuras onde possa firmar-se face à sua posição na
conjuntura global cada vez mais competitiva, onde países de forte expressão industrial e de
amplo espectro de cobertura comercial, dificultam o ingresso de outros países, especialmente,
os emergentes, como é o caso do Brasil. É nesta direção que o autor prossegue afirmando
que “A visão brasileira da ordem global contemporânea é de uma estrutura multipolar,
assimétrica onde prevalece a incerteza e uma múltipla possibilidade de atores geradores de
insegurança. Nesse contexto, o fortalecimento do multilateralismo seria a melhor opção para
um país do porte do Brasil transitar no sistema, encarar a competição do comércio, responder
às incertezas provocadas por atores estatais e não estatais que afetam a segurança e diminuir
a assimetria com as grandes potências.” Aguilar (2013)15
Essa visão de Aguilar pautada nas perspectivas do multilateralismo e as possibilidades
oferecidas pelo continente africano é reforçada por Therezinha de Castro, renomada geógrafa,
especialista em geopolítica, especialmente do Atlântico, (1999, p.19)16, que define o Atlântico
Sul como o “espaço marítimo compreendido entre: três frentes continentais, América, África
e Antártica; e três corredores, o do norte – constituído pela zona de estrangulamento Natal-
Dakar – e dois no sul –respectivamente entre a Antártica e as frentes continentais americana/
africana, comandada pelo Estreito de Drake e Passagem do Cabo. É assim considerado o
mais internacional dos oceanos”.
Essa importância do Atlântico Sul é histórica quando diferentes rotas foram desenhadas
e inseridas nos mapas e atlas a partir do tráfico de negros escravos, trazidos da África para o
Brasil, especialmente para os portos de Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Luiz. Fortaleza
entretanto, malgrado sua importância atual no rol das metrópoles brasileiras, não se instituiu
como centro importador de escravos africanos. Os vínculos com a África se fortaleciam à
medida que se expandia o cultivo de cana de açúcar. Na mesma proporção, aumentava
a importação de negros africanos submetidos à condição de escravos. Os brasileiros
participavam ativamente na atividade escravocrata. Alencastro (2000) mostra que a chegada
da corte portuguesa ao Brasil não interrompe as atividades de senhores brasileiros com a o
escravismo. “Por isso, a ruptura de 1808 não será tão radical como se tem dito e escrito:
ainda se movia no oceano o braço brasilianizado do sistema colonial: a rede de importação
de mão-de-obra cativa, o tráfico negreiro” (Alencastro, 2000).17
No Ceará, a Abolição da Escravatura, ocorre em 1884 enquanto que no Brasil se dá
somente em 1888. As sucessivas secas e reduzida lavoura canavieira justifica menor
contingente de escravos. Entretanto, isso não significa dizer que os interesses do senhores
fossem diferentes em relação às praças mais conhecidas. A Abolição no Ceará com seus

14 - Aguilar, Sérgio Luiz Cruz. Atlântico Sul: as Relações do Brasil com os Países Africanos no Campo da Se-
gurança e Defesa. In Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais | v.2, n.4, Jul/Dez 2013
p.62 http://www.sebreei.eventos.dype.com.br/resources/anais/21/1365674115_ARQUIVO_textofinal.pdf - Visita
25.03.2016
15 - Aguilar, Sérgio Luiz. op. cit. p.63, http://www.sebreei.eventos.dype.com.br/resources/anais/21/1365674115_
ARQUIVO_textofinal.pdf - Visita 25.03.2016
16 - CASTRO, Therezinha de. América do Sul: vocação geopolítica”. Revista da Escola Superior de Guerra , n.38,
ano XVI, 1999a, pp. 165-188, Apud, BROZOSKI, Fernanda Pacheco de Campos, A REVALORIZAÇÃO GEOPOLÍ-
TICA E GEOECONÔMICA DO ATLÂNTICO SUL NO SISTEMA INTERNACIONAL, Dissertação de Mestrado, 2013,
p. 13, Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/ppge/Dissertao_Fernanda_Pacheco_de_C._Bro-
zosk, Visita em 02.04.2016
17 - ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 354.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
78

antecedentes e desdobramentos mascara fases do processo. O pioneirismo só foi possível


com o silenciamento de diferentes sujeitos sociais que permaneceram submersos na ce-
na política. Afirma-se que “No Ceará, onde o alto preço do escravo era mantido pelo
mercado consumidor nas províncias cafeeiras, tais medidas provocaram o efeito contrário ao
pretendido pelos legisladores sulistas. Ao invés de fortalecer o compromisso dos senhores de
escravos com a instituição da escravidão a legislação afrouxou ainda mais o tal compromisso
impulsionando o movimento abolicionista local”. (MARTINS - 2012)18,
A história oficial sustenta que o movimento Abolicionista no Ceará, eclodiu com força no
município de Redenção, localizado no Maciço de Baturité. O mesmo recebeu esse nome por
ter sido a primeira cidade brasileira a libertar todos os seus escravos em 1884. Em termos
legais, a Abolição da Escravatura no Brasil data de 13 de maio de 1888. O Ceará não tinha
um porto negreiro mas tinha escravos e um ativo comércio cm essa mão de obra de origem
africana, especialmente, com as províncias do sul. Vieira (2014)19 afirma “que o Discurso que
buscava atrelar tal fato, o reduzido número de negros da sociedade local em comparação a
outras partes do país, por não haver uma rota de comércio de escravos da África diretamente
para os portos cearenses, mas, sobretudo, pela saída de um grande contingente de cativos da
província em decorrência do tráfico interprovincial na segunda metade do século XIX”.
No contexto da geopolítica brasileira contemporânea a maior aproximação do Brasil
com a África, especialmente com os países de língua portuguesa em geral e os cearenses
em particular precisam ampliar a visão de mundo, observar a dinâmica dos mapas e elaborar
novos atlas. A alteridade tem que ultrapassar o idéia de espelho. Contemplar o outro como
sujeito de direito e aceitá-lo com suas características e diferenças. Com certeza, o sucesso
dessas relações internacionais e especialmente as acadêmicas, devem ser feitas a partir de
outros preceitos.

18 - MARTINS Paulo Henrique de Souza. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias, memórias
e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. p. 32, Dissertação de Mestrado, 2012,
UFF - Niterói, Maio de 2012, http://www.historia.uff.br/stricto/td/1641.pdf, Visita em 03.08.2016
19 - VIEIRA, Jofre Teófilo. Entre a Escravidão e a Liberdade: os africanos livres no Ceará (1835-1865), Fundação
Biblioteca Nacional, 2014, p.4.
https://www.bn.br/sites/default/files/documentos/producao/pesquisa/2014//jofre_teofilo_vieira_trab_revisado_0.
pdf Visita em 03.08.2016
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II. Imaginar o Território


Geografia do olhar: observar, ver, imaginar
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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Geografia do olhar: novas


geografias, outros olhares
Moirika Reker*
Centro de Filosofia
Universidade de Lisboa

O território que se estende, a superfície terrestre sob os nossos pés e sob o céu, é
perscrutado na tentativa de o descrever, provavelmente desde que o homem alcançou a
verticalidade, ou desde que o homem é homem. Várias ciências procuram aprofundar a
exactidão desta descrição e cada uma contribui para a compreensão global, ou plena, do
mundo físico. Mas se a descrição da paisagem parte quase inevitavelmente da percepção
visual, se o olhar tem uma papel fundamental para o conhecimento do lugar que habitamos
ou que visitamos, a visão por si só não consegue abarcar a totalidade. A visão deixa um vazio
que só pode ser colmatado com a intervenção dos outros órgãos dos sentidos: uma extensão
de terra com o seu relevo, rochas, flora e fauna seria, pode dizer-se, bi-dimensional, se não
estivesse envolta em sons e cheiros, com uma determinada temperatura e clima, feita de
uma certa rudeza ou suavidade, e tendo mesmo um particular sabor; elementos estes que
percepcionamos na experiência do caminhar e de nos encontrarmos fisicamente presentes
no espaço – e no tempo – para o podermos verdadeiramente observar.
As sensações físicas suscitadas na fruição espontânea ligam-se a elementos que provêm
da imaginação, da emoção, da memória e contribuem para a formação da ideia, do
entendimento relativamente àquele lugar em particular, contribuindo para a formação do
pensamento sobre a paisagem em causa. Esta experiência – multifacetada e ampla – revela-
-nos a dimensão profunda da perspectiva da filosofia da paisagem, que não é compatível
com uma associação de paisagem a mera vista, panorama, ou cenário, porque extrapola a
visualidade e tem na experiência da temporalidade um fundamento essencial. O filósofo que
mais contribuiu para a compreensão da temporalidade na paisagem foi o italiano Rosario
Assunto, sobretudo na sua obra magna Il paesaggio e l’estetica (1973), onde dá conta da
relevância da compreensão da paisagem como inscrita num continuo temporal, em que o
presente não existe fora do passado e futuro, e em que o ser humano, a história, a cidade e
a paisagem existem em complementaridade. Há também nesta leitura uma aproximação ao
mundo ele mesmo, ao real, à vida e ao movimento, uma fuga à quantificação matemática,
às leituras de gráficos, de recenseamento populacional e habitacional, de curvas de nível
ou de mapeamento GPS; a recusa de uma leitura da Terra como se a compreensão de um
lugar geográfico se tratasse apenas de um aglomerado de dados para análise laboratorial
e tecnológica: o olhar da filosofia da paisagem (e de boa parte da geografia, é certo) é
indissociável da compreensão da inter-relação do homem e da natureza (tomando aquele
como parte desta e não como lhe sendo exterior ou externo). Fundamental para o pensamento
da paisagem é também a fruição estética – e o sentimento estético – em tempo real, baseada
na experiência e na renovação da experiência que informa a acção ética. Não podemos
agir e transformar uma paisagem sem a conhecer e compreender a sua realidade, sem a
experienciar, ou, pelo menos, sem escutar os que nela habitam.
Mapear e cartografar o território são partes do processo de leitura; olhar atentamente
para a realidade geográfica, observar os processos que ocorrem, a vida que se desenrola, em
toda a sua amplitude, diversidade e complexidade é olhar para além do visível, transcender a
visibilidade e penetrar numa dimensão já metafísica que nos abre portas para novos lugares
e novas geografias, mesmo nos lugares que pensávamos já conhecer: o exótico ao final da
rua, do lado de lá da estrada, nos confins da cidade.

* A autora deste artigo não adopta o Acordo Ortográfico de 1990. 


Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
81

Observar o desenho do território


Henrique Cayatte
Designer. Professor Auxiliar Convidado da Universidade de Aveiro

Alguns leitores das minhas obras acusam-me quando


deixam de conseguir reconhecer o seu território
Jacques Derrida

O território é um corpo complexo.


Como o nosso próprio corpo.
Muitas vezes tentamos compreendê-lo olhando apenas para a sua pele ou para as suas
representações. Umas vezes de longe, como em fotografias ou filmes, outras de forma mais
próxima quando nos vemos ao espelho ou ainda em zooms que aumentam tudo e nos
deixam ver tanto que às vezes não gostamos do que vemos.
Não conseguimos é ver, sem instrumentos de precisão, como é o seu interior. Vemo-nos
mas não nos vemos.
Como na Terra. Tanto no seu território próprio como no “território” exógeno do imenso
espaço sideral. Leonardo precisou de abrir cadáveres para perceber como é que o nosso
“subsolo” era formado. Aí nasceu uma leitura poética do nosso corpo apoiado em desenhos
como nunca até aí a humanidade tinha produzido e visto.
E no entanto eram de enorme rigor. Lembramo-nos do desenho sobre o corpo de uma
mulher grávida.
Choque absoluto. Desenhos que tiveram a força de combater as crenças religiosas, a
ignorância, o obscurantismo e o “saber” instalado.
A partir daí nada voltou a ser como antes.
A ciência, a cultura, a política e as artes têm em comum esta característica. Uma vez uma
coisa descoberta, não se volta atrás e quando se volta é por períodos tão curtos que são
irrelevantes na história das civilizações.
E qual foi a maior revolução? Esse gesto, resultado da grafite sobre papel, ou três astro-
nautas entrarem num foguetão e alunarem lá onde o Homem nunca tinha ido embora tivesse
sonhado ao olhar e a imaginar. E o que é que eles trouxeram? Recolheram, e guardaram
com todo o cuidado, amostras da lua para tentarem perceber esse novo território e com isso
abriram novas portas na investigação e no estudo comparativo com o planeta de onde tinham
partido e onde regressaram.
No filme “A potência de 10: um filme para lidar com o tamanho relativo das coisas no
universo e o efeito da adição de outro zero”, concluído na sua versão final em 1977, Charles
e Ray Eames –, grandes designers americanos agora com uma exposição no novíssimo MAAT
em Lisboa, mostram essa relação mágica e fusional entre o território e o nosso corpo.
Diriam os anglo-saxónicos: two of a kind que é, como sabemos de difícil tradução embora
pareça fácil. Duas faces da mesma moeda? O yang e o ying?
O casal Eames é mítico no mundo do design pela pluralidade e qualidade de projectos
que abraçaram. Este filme é um excelente exemplo disto mesmo e começa com um casal que
estende uma toalha num parque de uma cidade para fazer um piquenique. Este momento,
banal, dá-nos a escala do corpo humano na sua relação com todo o território envolvente.
Depois, como se houvesse um fio axial invisível com uma câmara de filmar, recuamos
até distâncias inimagináveis no espaço e depois “entramos” no corpo, de forma igualmente
proporcional, para perceber esses recônditos territórios interiores que só os especialistas
conhecem a fundo bem como o seu pulsar e aquilo que nos diz.
A fotografia, ou um scanning, funcionam como um “intermediário”. Uma gazua. Ajudam-
-nos a percebê-lo melhor.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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Uma radiografia, por exemplo, é uma fotografia do território do interior do nosso corpo
e dá-nos sinais precisos, quanto baste, para uma primeira leitura de uma patologia. Se
precisarmos de mais e melhor informação, os scanners modernos vão muito mais longe e
mapeiam tudo em 2 ou 3 D, a cores ou a preto e branco, com ou sem legendas e, como nas
ecografias, com som.
E é assim que hoje se “lê” o que os territórios têm para nos oferecer.
Mas são tão complexos que o Homem não cessa de o tentar perceber numa busca
incessante.
O seu background, quem o habita, como é usado – bem, mal e assim assim –, como nos
podemos articular harmoniosamente com ele e como podemos representá-lo.
Hoje, podemos, com enorme rigor, mapeá-lo e colher informação de importância capital.
Vistas aéreas, plantas, cortes, modelos 3D aquilo que se vê e aquilo que se intui. Podemos
estudá-lo como nunca e prever ainda com mais rigor. Muitas vezes essa forma de o representar
não cessa de nos surpreender. Dos portulanos às cartas, dos mapas das estradas às cartas
militares e agora às leituras via satélite com georeferenciação é toda uma viagem que ainda
não terminou.
Voltemos, para terminar esta pequena viagem, à poética de Leonardo para ler o que
outro italiano notável – Italo Calvino – num dos mais belos livros de sempre, “As cidades
invisíveis”, nos conta.
Percebemos, à medida que a narrativa do veneziano Marco Polo a Kublai Khan evoluiu,
que as cidades invisíves não são mapeáveis nem localízáveis logo a utopia abre um espaço
infinito como aquele que é aberto à ciência.
Se eu fosse geógrafo este seria o meu livro de cabeceira e iria comigo para todo o lado.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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Los territorios son viejos; las miradas


deber ser nuevas
Fernando Rodríguez de la Flor
Universidad de Salamanca

No cesa la poesía de la tierra jamás


Keats

El territorio. Sobre él se tiende hoy una idea fija que vuelve en unos momentos en que se
hace necesario, más que nunca lo fue antes: el retener lo Real.
Se trata de luchar por que no se escape aquello que era importante no perder, ni perderse.
El sentido de la tierra. Son momentos históricos estos cuando parece que lo Imaginario –el
“acoso de las fantasías”– está comenzando a socavar la base misma sobre la que nos alzamos:
la confianza en la buena tierra. Ahí está y estaba desde siempre el territorio, el terruño, el
lar: aquello que comienza o debe comenzar cuando la metrópoli y su especial vida se acaba.
Había un límite y está aquí, entre nosotros. La ciudad, la interioridad urbanizada de la misma,
se opone a las sierras, lo sabía el gran Eça de Queiroz, que construyó toda una obra simbólica
sobre la idea de regreso, de vuelta a lo esencial después de la experiencia cosmopolita.
Pero lo cierto es que ese regreso de las energías perdidas todavía, en la realidad del día
a día, no se ha producido (y es posible que no se produzca ya). La evidencia nos dice que
estamos ante un mundo al que de continuo se le ha ido extrayendo la resilience extraordinaria
que le caracterizaba; le ha sido absorbido su vigor antiguo, restándole las fuerzas motrices
que tan necesarias eran para su existencia antigua. La ilimitación, que era su característica
principal, la infinitud de que estaba dotado, ha quedado mermada, lo sabemos. Ya no es
posible confiar, viviendo en él, en una regeneración milagrosa de sus débiles y exhaustas
pujanzas anteriores. Pues, entretanto, crece imparable la conurbación del mundo (mientras
sus modos de vida se imponen por doquier), y al tiempo se estrechan los territorios que
ahora yacen mortecinos, desanimados, deshabitados, incluso carentes de los sistemas de
legitimación material y simbólica (y de eso, en esta ocasión, se trata) de los que, antes, en el
viejo tiempo, se encontraba bien abastecido.
Estamos hablando de la exterioridad a lo que hoy es el sentido de la marcha que imprime
a los hombres, a las cosas y a la propia naturaleza una modernidad sobrevenida, que es
sobre todo urbana o no lo es; cuyo signo indudable es urbano, metropolitano y tiene en la
gran ciudad –en el gran “encierro industrial” que en ella se cumple– su atractor, su imán
verdadero. Abordamos y aborda este proyecto, que se llama Imaginar o território, lo que ha
compuesto desde siempre el “afuera”, lo “abierto” (si queremos nombrarlo en los términos
propios de un Heidegger).
Un concepto nuevo creo que se aviene para esta situación nuestra, que es la creada en
todo el espacio al Oeste de la Península desde hace cincuenta, sesenta años: la del vacío, el
vacuum en ella producido. La “Península [está] vacía” (ello según todos los criterios con los
que en el continente se evalúa ahora mismo la densidad de habitabilidad de un espacio). De
esto se trata. De ese vacío que se abre en la parte de la Península no saturada: aquella que se
encuentra lejos de los litorales base de las industrias nacionales (portuguesa y española) del
turismo. Hablamos de lo que queda entre el arco atlántico y el arco mediterráneo, que son
los dos grandes promotores de progreso y los auténticos generadores y laboratorios para
fórmulas y ritmos de vida actual. La península interior resulta, empero, lo contrario. Deberá
ser, incluso, alimentada artificialmente, sujeta y soportada por las regiones industrializadas de
la vieja “piel de toro”. Aquí queda La Iberia, que siempre fue, desde antes de los romanos. Es
la parte inmóvil, también, de un mundo heredado.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
84

La toma de conciencia de lo que ha pasado en este territorio, en este mundo,


obligatoriamente debe estar centrada en la comprensión de que es un espacio ya “otro”:
frente por frente situado a las grandes conglomeraciones, a las urbes que capitalizan hoy
el foco de atención. Una cicatriz divide la Península, es lo cierto, y esta suya no es ya la de
la antigua frontera que dividía (lo hacía antes) países. A un lado se sitúa ahora la población
mayoritaria, del otro está la despoblación, cada vez mayor, el silencio y, no obstante, también a
ese mismo lado se encuentra la energeia de la tierra, el valor de la permanencia obstinada.
Este espacio de una naturaleza tan singular y propia –hasta el punto de que compone una
psicogeografía–, es verdad que lentamente ha ido perdiendo junto a su densidad, su mismo
tejido; progresivamente abandonada a su sino. Venimos a dar en él después de las grandes
deserciones producidas. Será preciso cobrar conciencia de lo que para un territorio, para
este territorio ha significado la emigración. Se trata del hecho mayor acaecido. No podemos
dudar a la hora de calificarlo como el Gran Trauma: en realidad fue una catástrofe, de la que
el espacio todavía no se ha recuperado, y de la que, en realidad, ahora lo sabemos bien:
nunca se recuperará.
En este momento indeciso para el signo de la historia, y sobre este territorio cuanto cabe
es dar testimonio de su verdad desnuda. Acaso solo la fotografía pueda hacerlo con autoridad
manifiesta. En realidad, lo viene haciendo desde el pasado, desde los inicios mismos de este
arte reproductivo y documentador, que es una tecné, pero al mismo tiempo es, también,
un arte: el arte del siglo. Los registros arcaicos que sobre el territorio guardaba la fotografía
han sido ya expuestos a la luz, en su inmensa mayoría, poniendo de relieve la existencia de
una densa geografía humana. Queda ahora otra tarea, a la que, pensamos, da cauce la
exposición que el CEI hoy promueve en su FOTOGRAIA SEM FRONTEIRAS.
A no dudarlo, este territorio tan frágil, tan vulnerable por desertado de las fuerzas que lo
animaban, está necesitado de operaciones simbólicas que restauren su aura; que den a ver la
potencia implícita que en lo vernáculo (todavía) subsiste. Se trata de implementar ahora una
auténtica “geografía pasional”. Pues se ha producido en él un desinvestimiento que es (y lo
es sobre todo) de carácter simbólico.
En el orden de lo imaginario, algo ha ido mal para estos territorios de lo auténtico. Desde
hace cincuenta, sesenta años estos dominios no concitan la mirada capaz de dar un sentido,
de devolver una imagen, de proyectar una narrativa (nueva). Desaparecieron los productores
de símbolos que lo podrían hacer: la orden de mantener vivo el territorio en la memoria
cultural no fue cursada en su momento.
Nos encontramos, pues, “fuera del marco” de nuestro momento. La operación a la que
ahora se da cauce, se asemeja a una restauración.
Resulta urgente poder volver a leer en el espacio, el tiempo. Nuestro tiempo.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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O prodígio das “Perfeitas Coisas”


Fernando Paulouro Neves
Jornalista. Escritor

Há uma poética da paisagem que é imemorial. Desde que o homem libertou o pensamento
e começou a olhar o espaço e a medir o tempo, que os olhos, na surpreendente relação com
a natureza, se fizeram fonte de encantamentos e fascínios, o que não foi outra coisa senão
o começo da aventura da construção da vida. Até onde os olhos alcançam, na descoberta
de espaços infinitos ou na surpresa de pormenores, esses instantes, que às vezes merecem
que o tempo fique suspenso, se construiu uma geografia configurada à ousadia do sonho,
que também aí se compartilhou a aventura de o Homem se fazer a si próprio. Assim subiu ao
alto das montanhas azuis, para ficar mais perto do céu e melhor se defender, assim devastou
florestas para as afeiçoar ao agro e poder viver, assim fez de suaves vales debruados de verde
a casa comum da vida, assim subiu os rios e explorou as margens, aprendendo a respirar com
a água a premonição civilizacional, assim descobriu a terra e aprendeu o mar, assim dilatou
precárias unidades sociais até fazer e refazer lugares, aldeias, cidades, e castelos e muralhas
para defender o terrunho de investidas bárbaras ou sedes violentas de conquista.
Na complexidade desse caminho que se fez andando, na lenta mas persistente superação
de condições atávicas e inóspitas, na defesa das feras e da segurança dos tugúrios, onde se
acolheu para edificar, depois, a casa inicial e o lugar matricial da vida, imagino, se imaginar
se pode, a forma gradual como o olhar se foi dilatando sobre as coisas e os horizontes, na
percepção de uma territorialidade que passo a passo, pedra a pedra (a pedra cor do tempo)
se foi dilatando numa espacialidade de “canto nómada”, para utilizar a dimensão quase
ontológica de Chatwin.
Essa capacidade de ver e experimentar sensorialmente as singularidades da “terra mater”
marcou decisivamente o homem como construtor de uma humanidade a haver – intemporal
utopia colectiva --, e, sobretudo, como primordial desejo de captar e perceber a realidade
próxima, e, logo, o rumor do mundo.
Esse a-bê-cê da vida, tão indiscutivelmente ligado à libertação do pensamento, plasmou-
-se como fio de longa duração na arte (a reprodução de quotidianos arcaicos: Vale do Côa e
Altamira, por exemplo), ou na poesia e na literatura (há um Ulisses com muitas Ítacas dentro
de cada um de nós), num olhar abrangente sobre as coisas e os quotidianos que as palavras
e os versos consumiram numa aventura poética que hoje podemos dizer, como T. S. Elliot,
estar contida em todos os tempos.
Olhar o território, observar as particularidades dos lugares e das coisas, colher paisagens e
fazer delas instantes sublimes que o coração e a memória guardam como coisa nossa, raiz e
fonte de emoções que as palavras e os versos lavram como tesouros em terra funda, aí temos,
se quisermos, a forma como a poética faz corpo com esses horizontes de beleza desmedida.
É por isso que há lugares que nos acompanham sempre como se fossem destinos,
paisagens e momentos que são os nossos dias de prodígios, as nossas cidades da alegria, a
nossa invenção da utopia breve, que é quando sonhamos paraísos ao alcance das mãos e dos
olhos. Essa topografia do pensamento guarda-a cada um como pode, mas talvez esteja dentro
dela aquela sabedoria que faz das verdadeiras viagens (os olhos são viajeiros!) um regresso,
como se a memória guardasse um tempo imaterial e insubstituível que os ruídos da vida
não apagam, nunca. Ainda recentemente, palmilhando a Serra da Estrela, por trilhos muitas
vezes andados, dei comigo a surpreender-me pelas coisas novas que a objectiva do olhar ou
a dimensão sensorial que é, no fundo, a paisagem a respirar (ah, o silêncio absoluto ou a
sinfonia do vento!), moldadas ambas pelo plano aproximado das singularidades graníticas
das montanhas dentro da montanha mãe, pela surpresa dos fios de água que resistem ao
degelo, pelo inesperado bosque das faias de Manteigas a S. Lourenço, ou pelos grandes
planos da Serra imensa que foram o fascínio de Torga, esse infinito visual de que Aquilino e
Vergílio Ferreira fizeram chão lavrado de palavras. O autor de ”Manhã Submersa”, sabe-se
lá se foi nas altas montanhas – “na solidão sideral”, como lhe chamou Eduardo Lourenço
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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–, que sonhou a frase fantástica definidora de pátria como grande aventura humana: “da
minha Língua vê-se o mar!” E o mar real pode bem ser – e é – esse lugar, também como
a Serra, de vastíssimos horizontes, onde, às vezes, passam navios ou bandos de gaivotas, o
mar que lá longe se confunde igualmente, na sua amplidão, com o azul vivo do céu, se o
céu estiver limpo de nuvens e a brisa marítima de feição. Adivinha-se, então, por que razão
os olhos ficam tão presos àquela imensidão de azul que o sol de Verão gosta de desfazer na
diversidade cromática que só as sombras e as transparências são capazes de inventar mares
de prata à luz do dia ou oiro de sol-posto, à despedida da tarde.
À volta do mar, ando muitas vezes com versos de Jorge Luís Borges que num poema, que
é um canto de mistério como só ele sabe fazer, explica que “antes do sonho (ou o terror)
tecer/Mitologias e cosmogonias,/Antes que o tempo se contasse em dias,/O mar, o sempre
mar, já estava e era”. E logo depois, interrogando: “Quem é o mar? Quem é esse :violento/E
antigo ser que dói estes pilares/Da Terra, e é um e muitos mares/Sempre. Com o espanto que
as perfeitas coisas/Elementares deixam, as formosas/Tardes, a luz, o fogo da fogueira”.
Borges fala no “espanto” das “perfeitas coisas” e aí temos o regresso do olhar para a
combustão poética que, neste caso, e por isso citei o poema, é exemplar e definidor do tempo
imemorial da humanidade: “o mar já estava e era”, como as montanhas e as paisagens que
a mão do homem ainda não feriu e podemos encontrar, se soubermos olhar, pelas terras de
“funda memória” (Eduardo Lourenço), ora brandas e suaves, ora severas e austeras destas
Beiras. É na mesma linha que Sophia fala da pátria como espaço “de luz Inteira e clara” e
Eugénio configura a uma pequena aldeia da Beira Baixa, a Póvoa de Atalaia, no sopé da
Gardunha, o nascimento originário da sua aventura poética, a materna casa da poesia.
Foi sempre o olhar, como elemento de substância criadora, que levou para a literatura, a
capacidade de reelaboração da memória, como estímulo da imaginação, que nos permite a
nós apropriarmo-nos da realidade com outros olhos, e, porventura, acrescentar-lhe emoções
outras nascidas da nossa maneira de perceber que os lugares e os horizontes nunca são iguais,
por muitos olhares e fotografias que fizermos deles, como Paul Auster tão bem ensinou.
É decerto esse garimpo do olhar, na procura de uma invenção sem fim sobre a realidade,
que eu encontro quando subo à Nave de Pedra e encontro os horizontes infinitos de
Monsanto. Os olhos caminham, como acontece sempre, à roda da imensidão da planície
com os tais “sobreiros de passo largo a caminho do Alentejo”, de que falava Eugénio,
fixaram-se nos penhascos graníticos, “onde às vezes roçam as águias” (Namora), registaram
lá ao fundo, a enorme Lage do Chão de Boi, perscrutaram ventos vindos da Raia, sonharam
as tais “montanhas azuis” que se divisam ao longe e parecem cercar o horizonte, de onde
quer que se olhe o mundo. A primeira emoção é sempre a de termos aportado a um mundo
inóspito e petrificado que o homem, ao longo de séculos, afeição à sua natureza numa
saga civilizacional de afirmação telúrica e inteireza de carácter. Mas depois, passado o
deslumbramento do plano geral do Monte Sagrado e das suas paisagens afluentes, é nos
detalhes, nas singularidades que fazem o quotidiano do lugar, que os olhos se poisam para
guardar as imagens no bornal da memória.
Olhar: como fez José Cardoso Pires, em busca de uma metáfora para o país, quando
cinematograficamente escreveu sobre S. João do Peso, lugar perdido da Beira agreste: “terra
de pedras, padres e pedintes”. É esse fascínio de descoberta que descobrimos em Eduardo
Lourenço quando vê na sua “crepuscular” Guarda um navio de pedra com a proa virada
para terra, ou nas descrições da Gardunha e do Paul de José Marmelo e Silva (como ele
amplia os nossos olhos!), que também manifesta de uma forma muito bela a perplexidade
do “Adolescente Agrilhoado”, sobre a fronteira entre a aldeia e a cidade, quando o miúdo,
olhando a Covilhã ao longe, pergunta: “Óh, Mãe, na cidade é sempre dia?”
Podia ser interminável esta viagem. Às vezes, perdemo-nos nos intermináveis labirintos
da memória, que é, ao mesmo tempo, barco e âncora dos territórios que amamos. Mas só
aparentemente isso é verdade. Lembro-me sempre da fabulosa história que Alberto Manguel
escreve no seu espantoso livro “Uma História da Curiosidade”: “Northrop Free conta a
história de um médico seu amigo que, ao atravessar a tundra asiática com um guia inuíte,
foi apanhado por uma tempestade. Naquela escuridão gelada, para lá das fronteiras que
conhecia, o médico gritou: “Estamos perdidos!” O guia olhou-o atentamente e respondeu:
“Não estamos perdidos. Estamos aqui.”
É o que eu digo: Estamos aqui e agora.
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Rumores do Mundo: memória


territorial, cultura visual
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Talvez [a função do Fotógrafo]


Susana Paiva
Fotógrafa

Talvez não exista uma forma suficientemente delicada de equacionar esta questão, nem
seja pertinente a sua discussão, num mundo onde é expectável que cada um de nós seja o
mais útil, produtivo, eficiente e competente possível, cumprindo, sem questionar, padrões e
imposições externas de um certo modelo de sucesso.
Talvez não seja interessante, para a grande maioria dos leitores, ouvir discursar sobre a
iliteracia visual de grande parte dos consumidores de imagens, convictos que a imagem se
tornou num novo esperanto, uma linguagem universalmente compreensível e descodificável,
maioritariamente à luz das emoções.
Talvez Rui Coias tenha, no seu “A função do Geógrafo”, intuído que na fotografia há
quem, como eu, espere ansiosamente pela sombra diante dos olhos, (...) um sono leve que
nos cega e que, tal como na sua íntima geografia, haja também quem tenha ousado fazer
da memória a função do fotógrafo, relembrando que essas vozes tornadas sombras são os
olhos que aproximam os lugares ao coração.
Talvez a função do fotógrafo – daqueles que se sentem fotógrafos, tal como eu - seja,
afinal, ultrapassar a cegueira das evidências, a ditadura da percepção, tornando o acto
fotográfico num exercício de construção de novos mundos. Fotografar, nas suas plenas
possibilidades, torna-se assim na acção consciente de um corpo que decide operar sobre o
mundo, transformando-o, enquanto através desta mesma acção também se transforma. Ser
fotógrafo é assim incarnar esse corpo transformador, detentor de um olhar imaginador que
transfigura e dá a ver um determinado mundo.
Recorrendo à definição de “memória-imaginação”, em A Poética do Devaneio de Bachelard,
em que se põe de lado a História, mesmo que pessoal, enquanto conjunto de factos fixos
e incontestáveis, a fotografia, como práctica artística, apela a uma memória que trabalha
directamente com o imaginário onde, de acordo com Gonçalo M. Tavares, no seu Atlas do
Corpo e da Imaginação, o que importa não é tanto a veracidade, mas a intensidade. Intensidade
e eterno deslumbramento são assim condições sine qua non para a criação fotográfica,
governada pela imaginação, esse reino “da primeira vez”, de acordo com Bachelard.
“O olhar do imaginador é o olhar que se quer espantar; e se já se espantou com uma
coisa e se volta a olhar para ela é porque se quer espantar de novo, provavelmente com um
pormenor diferente”, conclui, em Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavares.
Imaginar [ver para alem do visível] - ver de olhos fechados [visualizar imagens sem relação
com o perceptível] – são metodologias fundamentais para a criação fotográfica, para atingir
“o reino das imagens, o reino da despalavra”, tal como afirmou o poeta Manoel de Barros,
que encarnou, no seu livro “Ensaios Fotográficos”, um fotógrafo que retrata o silêncio, o
perfume e o vento.
Mas como continuar a “transver” o mundo, tal como Manoel de Barros defendia, num
mundo tão sobrecarregado de imagens, onde o excesso de estímulos visuais barra a imaginação?
Escreve Maria Filomena Molder, em Matérias Sensíveis – “A repetição e a reprodução demencial
de imagens produzem uma carência asténica, uma fome que não quer ser preenchida, um
não querer ver mais”. Não querer ver mais, a saturação do olhar, o seu cansaço, o seu tédio, é
uma das preocupações contemporâneas, defende Gonçalo M. Tavares.
“A reificação da imagem pelo ecrã tornou quase impossível imaginar, enquanto distância
nunca preenchida em relação ao não-visto”. A abundância de imagens, o seu excesso,
acabam por suprimir o espaço em branco – o espaço vazio – imprescindíveis para o “devaneio
e a nostalgia”.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Talvez a função do fotógrafo seja hoje também a criação de espaços onde se fomente o
desejo de imaginar, onde exista a possibilidade de extinção da cegueira das possibilidades – a
cegueira que inibe a criatividade e inventividade.
Talvez acreditando que as possibilidades da imaginação são infinitamente maiores do que
as possibilidades da percepção do mundo se possa caminhar para uma cultura visual onde a
herança das construções imagéticas dos outros não pese mais do que os nossos imaginários
pessoais.
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Fotografia y memoria de la mirada


Victorino García Calderón
Fotógrafo

Cuando tenía unos siete años de edad, el maestro que nos intentaba enseñar a leer y escribir
se paseaba por el aula mirando los cuadernos en los copiábamos al dictado los textos que
nos iba leyendo con el fin de mejorar la ortografía, aquella mañana acabábamos de iniciar el
dictado y se paró al lado mío, miró mi cuaderno para ver si iba transcribiendo bien sus palabras,
pero su vista se quedó anclada, no sin cierta sorpresa, en una estrella circular de múltiples
puntas y colores realizada con lápices de colores Alpino que había traído ya dibujada de casa. El
maestro interrumpió su dictado y me preguntó que si la había copiado de algún sitio, todos los
compañeros volvieron sus miradas sobre mí, yo me puse muy nervioso porque había parado la
clase sin quererlo y muerto de miedo mascullando entre dientes casi un murmullo, pude decir
que no, que me la había inventado, que “me había salido de la cabeza”.

No conservo ese cuaderno pero me da igual, la estoy viendo ahora mismo como si la
tuviera delante y cada vez que me acuerdo de la estrella soy capaz de reconstruir todo lo
que aquel día aconteció: cuando la estuve dibujando en casa, el aula con las fotografías de
Franco y José Antonio Primo de Rivera a un lado y otro de un crucifijo ornamentando la pared
de la mesa del maestro que se situaba delante, a la derecha el encerado con la consigna del
día que el maestro había escrito esa misma mañana antes de que nosotros llegásemos a
la escuela, los pupitres de madera con los huecos para poner la pluma y el tintero, el color
ocre de las cubiertas del cuaderno, el gris de la bata del maestro, su pelo canoso, su piel
morena con ciertas arrugas, su andar pausado mientras nos dictaba, sus brillantes zapatos
negros, su vocalización casi perfecta, la luz que nos entraba por la izquierda y aquella estrella
causante de que ahora la recuerde igual que se recuerda una escena de la vida cuando uno
se pone delante del álbum familiar y mira las fotos que alguien hizo mientras ocurrían los
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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acontecimientos más importantes de nuestras vidas, como la primera foto que nos hizo aquel
señor que vino otro día a la escuela, interrumpió las clases -de lo que me alegré muchísimo-
y nos hizo una foto a todos y cada uno de los niños sentados en una mesa plana a modo
bureau y que no tenía mucho que ver con la inclinación de los viejos pupitres manchados de
tinta.
Nos colocó sentados con un ademán que pareciera que éramos muy aplicados poniéndonos
que como que estábamos leyendo, muy repeinados y con un enrollable pictórico para dar
ambiente y a la vez tapar las deficiencias de la pared que había detrás. Después los papás, si
querían tener un hijo que siguiera siendo niño decenios después, tenían que comprar aquel
retrato al precio de casi un mes de alimentación. Claro, la mayoría aceptaban el chantaje
¿quién se privaba de tener una fotografía que congelaba el pasado de tal manera que cuando
fuéramos mayores nada más mirarla pudiéramos recomponer la historia que ahora mismo
estoy escribiendo?
La capacidad de la fotografía de reconstruir nuestro pasado es algo consustancial e
intrínseco a ella misma pero no exclusivo, el ejemplo anterior lo demuestra, al igual que
la memoria del olfato o del gusto pueden regalarnos momentos muy difíciles de explicar y
compartir plenamente con los demás, pero que han quedado grabados en nuestro cerebro
para siempre ¿o debo decir memoria?. Efectivamente, la fotografía ha tenido hasta ahora la
virtud intrínseca de ser la conexión con el pasado, de congelar un instante y si ese instante
era el decisivo se podría recomponer el tiempo anterior y posterior al mismo. Esto ha sido
así durante muchos decenios mientras el hecho fotográfico estaba ligado a conservar ese
momento como si fuera un tesoro, así fue mientras los grandes maestros de la fotografía de
los siglos XIX y XX la utilizaron como un registro en el tiempo.
Nuestra memoria fotográfica no sería lo que es sin la inconmensurable obra de Cartier
Bresson y toda la Agencia Magnum al completo, sin los paisajes de Ansel Adams, sin los
estudios foto-etnográficos de Edward S. Curtis, la fotografía de calle de Atget, o la ingente
obra de Hine, Kertész, Stieglitz, Abbott, Saudek, Evans, Capa, Penn, Klein, Masats, Koudelka,
Avedon o Salgado, por citar a unos cuantos, todos ellos nos han legado obras que por la
importancia que han cobrado se han convertido en fondo de nuestra memoria personal (o
al contrario) sin haberlas realizado, sus fotografías nos han permitido tener una visión de un
mundo, en la mayoría de los casos totalmente ajeno al nuestro, pero que han terminado
perteneciendo a la esencia de cada uno de nosotros ya que su mirada estaba dirigida a
conservar en una imagen aquello que les preocupaba, les motivaba o les inquietaba y que a
la postre coincide y ha coincidido con las inquietudes de muchos de nosotros.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Con la llegada de los sensores digitales y su desarrollo en el siglo XXI, ha cambiado todo.
Si bien es cierto que la fotografía loablemente se ha “democratizado” en el sentido de que
el número de fotógrafos se ha multiplicado exponencialmente, no es menos cierto que esto
mismo ha hecho posible que los millones de fotografías que se realizan en un solo segundo
en el mundo entero, nos producen un inmenso estrés con solo pensar en la imposibilidad
material de discernir cuáles de todas ellas pertenecerán a la memoria colectiva de nuestros
descendientes, de ahí la pugna por prevalecer en las nuevas galerías de exhibición que son
las redes en las que muchos hemos caído y que nos ha llevado a una saturación inimaginable
hace tan solo un par de décadas.
Esta saciedad ha banalizado, en gran medida y salvo honrosas excepciones, el hecho
fotográfico con millones de imágenes en las que los individuos quieren pertenecer al futuro
inmediato delante de un teléfono -con bastón o sin él- pero ese futuro tiene las alas muy
cortas, tanto que ni siquiera se le puede llamar futuro, más bien ni siquiera requiere que esa
imagen tenga un espectador dentro unos pocas semanas, o incluso días u horas.
Cuando una pareja se hace un autorretrato -ahora lo llaman “selfie”- lo único que quiere
es que, como mucho dure unas horas en las redes de internet, las suficientes para constatar
que se estuvo allí, después de eso, el vacío y el olvido, un vacío solo rellenable con otro
tropel de imágenes parecidas o demasiado iguales a las anteriores y esto no ocurre solo con
los autorretratos, también pasa con los paisajes, ya sean urbanos o abiertos, con lo objetual
-fotos de comida por ejemplo- o cualquier otro campo de la fotografía que solo vaya en pos
de un consumo exacerbado y sin medida.
Por tanto, la memoria fotográfica está cambiando en este siglo cargado de interrogantes
políticos, sociales, artísticos… tanto, que corremos un serio peligro de que las imágenes que
estamos tomando no lleguen ni siquiera a ser, y menos pertenecer a ningún acervo cultural,
ni siquiera llegarán a imitar lejanamente a aquella foto de la escuela que mi madre ha besado
tantas veces recordando cuando yo era un niño y ella una joven madre y, por supuesto,
tampoco a aquella estrella pintada de colores que tuvo la virtud de comportarse como una
imagen (de la imaginación había salido) capaz de recrear toda una mañana de escuela en la
triste posguerra española.
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Imagen y cultura del território


Santiago Santos
Fotógrafo

La influencia de la fotografía, desde su aparición en la primera mitad del Siglo XIX, ha sido
decisiva para la percepción y comprensión del paisaje que tenemos en la actualidad.
En sus primeras décadas, la práctica fotográfica discurre por un pequeño número de
temas siendo uno de los más extendidos la fotografía del paisaje, lo que ha tenido una
influencia decisiva para configurar el territorio como paisaje natural o cultural en el imaginario
colectivo.
Las primeras misiones fotográficas acercaron a las sociedades industrial y burguesas
el conocimiento de territorios lejanos, fueron verdaderos viajes exploratorios, en ellas se
documentaban todas las tipologías del territorio, grandes espacios naturales y salvajes,
lugares arqueológicos, sitios pintorescos, ciudades y, también desde sus inicios, espacios de
interés científico relacionados con la geología y el estudio de la naturaleza y sus recursos.
No obstante, es en la segunda mitad del pasado siglo cuando las misiones fotográficas se
sitúan en la esfera de la producción artística, lo que no hace sino aumentar la complejidad de
los términos paisaje y territorio ante la amplitud que plantea la practica fotográfica y uniendo
a los planteamientos tradicionales temáticas urbanas, industriales y la exploración de los “no
lugares”, entendidos no solo como el concepto inicial acuñado por Marc Augé, si no como
espacios residuales característicos de las sociedades contemporáneas, que son verdaderos
indicadores de la voracidad con que se consumen y amortizan territorios y recursos de todo
tipo.
Como fotógrafo, lo que me interesa es el paisaje en el que la intervención humana
transforma el espacio natural. Es decir, mi interés se centra en el paisaje cultural1, en cómo
las sociedades han modificado su entorno natural en función de sus necesidades y de la
tecnología que han sido capaces de aplicar a la superficie terrestre, estos cambios se perciben
como modificaciones de un espacio que se transforma en un palimpsesto en el que se
superponen espacios naturales, agrícolas o ganaderos, vías de comunicación, construcciones,
ruinas, etc.
Fotografiar es un acto consciente de fragmentación. La elección del encuadre implica una
inclusión y una exclusión y reincide en la misma actitud de quien roturó una porción de bosque,
sustituyendo arbolado por pastos o cultivos. Es la misma razón por la que construimos, para
protegernos de la intemperie, del enemigo o, en muchos casos, para aislarnos de nuestros
propios miedos. Finalmente generamos vías de comunicación que son nexos de unión entre
arquitecturas, espacios productivos y espacios naturales, líneas que a su vez re-fragmentan o
re-unen el territorio en parcelas incomprensibles y anacrónicas.
La utilización consciente del encuadre, que es una condición lógica impuesta por los
medios técnicos, se ignora en la continua avalancha de fotografías que en la actualidad se
producen y que no se pueden considerar más que una saturación visual, hasta el punto de
impedir la observación, el análisis y el disfrute de nuestro entorno. Ya prácticamente nadie
mira el espacio que le rodea, solo lo fotografía, y si en algún momento trata de recordar las
experiencias vividas, estas estarán basadas en las tomas acumuladas en nuestros dispositivos
electrónicos y no en la experiencia del lugar.

1 - La cultura es el agente, y el área natural es el medio. El paisaje cultural es el resultado de esa transformación,
SAUER, C. O., The Morphology of Landscape. University of California. Publications in geography 1925
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Por el contrario, el uso consciente del encuadre es lo que diferencia e incide en el concepto
“Imagen y cultura del territorio” ya que la práctica fotográfica consciente genera un lenguaje
de analogías y relaciones que es capaz de estructurar la experiencia del lugar en torno a
valores estéticos que sí son capaces de transmitir al observador de la imagen un “estado de la
cuestión” o la “experiencia subjetiva del lugar”. Estos dos elementos definen la interpretación
del espacio y nos alejan de su interpretación objetiva.
Por último, está cuestión de la generalización de la fotografía aérea, (ya en 1.858 Nadar
registró una marca para realizar fotografías desde globos aerostáticos). Esta práctica ha sido
utilizada desde los inicios de la invención de la fotografía como herramienta fundamental
de estudio por parte de los geógrafos. También en la segunda mitad del Siglo XX empezó a
formar parte del discurso artístico de los fotógrafos.

“Si bien es cierto que la vista desde el avión puede inscribirse en la tradición
de las preocupaciones de la geografía, no en menos cierto que el avión, en la
conciencia de los años 1950 y 1960, produce transformaciones considerables
en la relación que van a mantener los geógrafos con la superficie de la tierra. Los
testimonios más diversos coinciden en este punto: el avión es una conmoción,
una revolución de la sensibilidad espacial y de los objetos geográficos.”2

A estos medios se une el acceso a las imágenes de satélite que permite Google Earth y que
muestran la atracción del gran público por el conocimiento de las estructuras que conforman
la superficie terrestre: el espacio humanizado en que se ha convertido la mayor parte del
territorio. Es a través de la visión objetiva del ojo del satélite transmutado en nuestro ojo
humano donde percibimos las modificaciones que las sucesivas culturas han ido introduciendo
en el medio natural hasta conformar el paisaje cultural con el que nos identificamos o, por
el contrario, que nos produce un extrañamiento en función de las distintas culturas que han
intervenido en su génesis y que, no obstante, nos hace tomar conciencia de nuestra fragilidad
ante una naturaleza en la que solo nos es posible sobrevivir gracias a las modificaciones a las
que ha sido sometida.

2 - Geografías aéreas. Jean-Marc Besse pag. 350, texto publicado en La geografía del territorio, Alex S. MacLean,
Gustavo Gili, Barcelona 2003.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Olhares locais, imagens globais


Pedro Baltazar
Fotógrafo

Num passado ainda recente, um olhar local, de um qualquer recanto comum e familiar
aos nossos olhos, por vezes imortalizado com recurso a uma câmera fotográfica, que após
uma cuidada medição das condições de luz, era calculada a abertura da lente e o tempo de
exposição, para de seguida premir o botão disparador. O obturador da câmera abria para
deixar passar a luz que vinha da lente, esta luz incidia na película e tínhamos o nosso olhar local
imortalizado. Mas para esse olhar local se transformar numa imagem, ainda o caminho ia a
meio. Pois a película já exposta, tinha de ser revelada com recurso a alguns químicos, como o
revelador, o banho de paragem e um fixador, este processo em grande parte era feito na total
escuridão, para que a película não absorvesse mais luz e o nosso olhar local ficasse perdido.
Na posse da nossa imagem negativa, passávamos para a etapa seguinte, a ampliação, nesta
etapa a nossa imagem negativa guardada no filme já revelado, transformava-se na imagem
positiva ou seja a imagem final acabada, estampada numa folha de papel, que retratava
o nosso olhar local, este processo contava com um ampliador, papel sensível e de novo o
revelador, banho de paragem e fixador. Um processo demorado meticuloso e ao alcance de
poucos. Dificilmente essa imagem passava do nosso círculo de amigos ou familiares, acabava
guardada em um álbum, ou numa moldura numa qualquer parede, onde poucos olhares se
poderiam cruzar com ela. Estava apenas ao alcance de alguns, a possibilidade de fazer essa
imagem passar fronteiras e viajar pelos olhos do mundo.
Nos dias de hoje, tudo viaja a uma velocidade vertiginosa, o nosso olhar local, após
premir o disparador da nossa câmera fotográfica, pode ser de imediato partilhado numa
rede social, num blogue ou num site, no instante seguinte, pode estar em qualquer ponto
do mundo. A medição de luz da nossa câmera passou a ser feita de forma automática,
calculando os valores de abertura da lente e tempo de exposição de forma a obtermos um
imagem bem exposta no instante em que premimos o botão disparador. A película deu lugar
a um sensor digital que envia a nossa imagem para o processador da câmera fotográfica e a
armazena num cartão de memória. Muitas das câmeras fotográficas de hoje são detentoras
de tecnologias de conexão avançadas, que permitem o envio imediato das imagens para
um endereço especifico de email, um blogue ou uma rede social. Entre o premir o botão
disparador da nossa câmera e transformar o nosso olhar local numa imagem global temos
apenas um pequeno instante, quase imediato.
Nos últimos tempos, todos acabamos por sair de casa com uma ferramenta poderosíssima
que tem a capacidade de transformar um olhar local numa imagem global, esta ferramenta
anda sempre por perto, sempre pronta a captar esse olhar, de forma simples e rápida, com
uma capacidade fotográfica cada vez mais próxima da câmera fotográfica que nem sempre
nos acompanha e com uma ligação ao mundo por várias vias. Cabe-nos a nós decidir quais
dos nossos olhares queremos partilhar com o mundo, o poder de uma imagem partilhada
com o mundo pode ter as mais variadas repercussões, tudo depende dos olhos de quem a vê,
ter este poder todo na palma da mão no nosso smartphone está neste momento ao alcance
de qualquer um.
Um olhar local de algo familiar e comum ao nosso olhar, do outro lado do mundo pode
ser interpretado como uma imagem exótica, rara e que desperta curiosidade aos olhos de
quem a vê.
Vivemos na era do imediatismo, um olhar local, no instante seguinte, transforma-se numa
imagem global.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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A fotografia como
instrumento/complemento de estudo,
a imaginar o território
Jorge Pena
Fotógrafo

A fotografia desempenha um papel muito importante como instrumento de registo,


mais ou menos esteticamente bem conseguido, é uma ferramenta que pode conter as
mais distintas mensagens, pois revela quase todo tipo de caraterísticas, relevos, texturas,
dimensões, cores, movimento ou ausência deste, entre muitos outros aspetos. Poderíamos
comunicar e descrever muitas caraterísticas dos espaços que pretendemos mostrar em texto,
com descrições muito elaboradas, mas através de uma imagem a mensagem tem uma
interpretação muito rica, pois estamos a utilizar um dos nossos mais importantes sentidos,
a visão.
É esta visão que nos é dada a conhecer com uma fotografia, um instrumento de comu-
nicação, através da fotografia, um dos mais importantes dos dias de hoje, á nossa volta quase
tudo acontece através de imagens. Vejamos por exemplo se nas diferentes redes sociais,
uma das formas com que cada vez mais estamos em contacto, o que serias destas formas
de comunicar sem imagens? Já se perguntaram se existiram da mesma forma como foram
concebidas, se não fosse a fotografia.
Um documento de estudo é também quase sempre mais completo se o uso adequado de
imagens for uma componente. A fotografia enquanto instrumento pode ser realmente muito
importante, e ser utilizado como uma componente de um estudo qualquer, pois estamos quase
sempre a falar de comunicar, se essas imagens forem realizadas com mais perícia, podem mesmo
enriquecer a mensagem que se pretende dar a compreender, acreditando esse documento. O
estudo do meio que nos rodeia, com a utilização de fotografias pode mostrar-nos a diferente
evolução, ou crescimento, a mudança, ou uma alteração, a presença ou a ausência, a consequência
se existe reação. São tantos os aspetos que a fotografia pode registar, que será sempre da maior
importância que a sua presença seja considerada uma necessidade, um complemento intrínseco.
A composição numa imagem é muito importante, todos os elementos que a compõem
devem estar organizados para que a sua leitura seja uma interpretação comum se estamos a
falar de um documento, pode ajudar a compreender uma mensagem de forma mais concisa.
Criar imagens que passem a mensagem que acabamos por ler e interpretar, muitas vezes sem
nos darmos conta disso, é e será sempre um desafio para os fotógrafos ou para quem realiza
uma fotografia com uma determinada finalidade. Pode ajudar a compreender melhor uma
mensagem se for bem executada, ou pode não ser útil da melhor forma se assim não for.
Todos temos um pouco de fotógrafa dentro de nós. A fotografia é uma disciplina que poder
ser muito útil, se representa da melhor forma o que pretendemos, mas deve existir sempre o
cuidado de realizar fotografias de uma forma séria ou com sentido, pois pode também por
em causa a mensagem que pretenderíamos transmitir. Fazer bom uso da fotografia é uma
necessidade, será uma forma de garantir uma interpretação melhor ou objetiva por parte de
quem a lê. Usar a a lente adequada a cada registo pode fazer a diferença se pretendemos
melhorar um registo ou uma mensagem que nos pode ajudar a focar o que realmente é
importante e essencial e desfocar o que não importa, mas também a ter tudo focado se faz
parte da mensagem ou é útil que assim seja.
Fotografar um espaço aberto, na natureza ou um espaço onde a sociedade desenvolve
as suas atividades, numa Cidade Vila ou Aldeia, é uma forma de descrever diferentes aspetos
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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destes espaços. Uma fotografia na natureza será sempre mais eloquente, pode descrever
as caraterísticas intrínsecas a um determinado local, no qual a geografia e a biodiversidade
se cruzam, quando a presença humana está presente, sob as mais distintas formas ou
práticas, este registo mostra-nos como estamos intimamente ligados a todos os espaços
que representam de alguma forma a nossa vida em algum momento. Numa fotografia de
uma cidade existe também uma mensagem, por vezes até critica de como os espaços que
nos rodeiam no dia-a-dia podem estar melhor bem concebidos ou não, ou se são úteis
ou esteticamente bem implementados, ou mesmo se lhes falta alguma coisa, pois fica um
espaço por preencher na imagem, pode a fotografia servir para comunicarmos todos estes
aspetos.
Desde sempre compreender todos estes espaços foi uma preocupação, objeto de estudo,
que nos leva a ter uma melhor compreensão da nossa existência, e a descobrir qual a melhor
forma de nos ligarmos ao meio que nos rodeia, seja natural ou urbano, ou se for esse o
objetivo, a encontrar a melhor forma de os conciliar.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Imagen, territorio y su estética


Florencio Maíllo Cascón
Universidad de Salamanca

“El necio no ve el mismo árbol que el sabio.”


William Blake

Como paso previo al desarrollo de este modesto texto, nos referiremos a los tres conceptos
que, pivotando sobre la noción de territorio, dan sustento al título. La estética de la imagen que
proyectamos de un determinado territorio podría ser una primera perspectiva, es decir, cómo
es usada la representación del propio territorio para construir identidad, interior y exterior,
del mismo. En una segunda mirada, muy diferente de la anterior, -la estética del territorio
y su representación-, analizaríamos los valores estéticos que particularizan un determinado
territorio, exponiendo sus potencialidades en la imagen que lo representa. Ambas resultan
interesantes y, por tanto, dignas de ser tenidas en cuenta para plantear elementos para el
debate “imagen, territorio y su estética”.
Entendemos por territorio un lugar antropológico, es decir, una realidad física cargada
de sentidos simbólicos, valores culturales, de identidad y memoria, vinculados a un grupo
humano que lo habita, lo utiliza y le da forma. Un espacio natural convertido a lo largo del
tiempo en espacio social y un espacio vivido. “En las últimas décadas en el medio académico
el concepto de territorio ha desbordado los límites fronterizos del pensamiento geográfico,
para adquirir cada vez más una mayor relevancia al interior de otras disciplinas de las ciencias
sociales, tal como ha venido aconteciendo en la sociología, la antropología o la economía”1.
Es en estos nuevos enfoques disciplinarios e interdisciplinarios de las ciencias sociales el
marco en el que la imagen, como documento, amplía su presencia junto a otros registros
ya consolidados y de uso reconocido en el campo de la investigación. Ahora bien, este es
el estadio en el que es categorizada la imagen, en base a la especificidad de los lenguajes
usados en su concreción y su estética, evaluando sus potenciales cualidades como documento
al servicio de las diferentes disciplinas.
Vivimos en un mundo dominado por las imágenes. Hoy nadie cuestiona la importancia
del lenguaje visual como un signo distintivo de nuestra época, capaz, como ningún otro,
de transmisión de ideas e información con una avasalladora penetración social. En este
sentido, la imagen es un elemento, esencial, de construcción, transmisión y asentamiento de
valores antropológicos adscritos a los territorios. Entiendo que la imagen, históricamente, ha
favorecido la sensibilización hacia el paisaje y, por extensión hacia el territorio. Es la mirada
humana sobre un determinado espacio geográfico, propia o foránea, lo que configura el
concepto de paisaje que lo particulariza y lo proyecta con su singularidad. Un acercamiento
al concepto de “paisaje” es el trabajo presentado por Javier Maderuelo (2005) quien señala
que: “El concepto de paisaje debe mucho tanto a los geógrafos que consiguieron representar
el territorio en un mapa a modo de fiel reflejo de la realidad, como al subjetivismo de los
artistas que consiguieron metamorfosear esa realidad física en belleza y sensualidad. Unos
y otros lograron ofrecer visiones paisajísticas del mundo antes de que las personas en su
cotidianeidad descubrieran el paisaje en la contemplación del territorio, de tal forma que la
representación hace emerger el objeto. Esto implica que no tendríamos conciencia paisajística
sin los mapas y sin los cuadros que nos han mostrado muchas de las cualidades que posee el
territorio como paisaje.”2

1 - LLANOS HÉRNÁNDEZ, 2010, p. 207.


2 - MADERUELO, J., 2007; p. 32.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
99

Se puede decir, sin riesgo a equivocarnos, que el artista con su mirada sobre el territorio
se ha comportado como un mediador entre la naturaleza y la sociedad. De esta manera,
la apreciación de los valores estéticos del territorio ha sido, a lo largo de la historia,
condicionada por las representaciones que del mismo han transmitido los artistas con sus
producciones simbólicas. Y, sucede que, “cada momento histórico presencia el nacimiento
de unos particulares modos de expresión artística, que corresponden al carácter político,
a las maneras de pensar y a los gustos de la época. El gusto no es una manifestación
inexplicable de la naturaleza humana, sino que se forma en función de unas condiciones de
vida muy definidas que caracterizan la estructura social en cada época de su evolución”3.
Los dos últimos siglos han estado marcados por la implantación de la imagen derivada de
la civilización tecnológica, y las últimas décadas por la hiperrepresentación de la realidad
gracias a la aparición de la imagen digital, con todas las derivadas asociadas a la creación de
hiperrealidades más propias de la pintura que de la fotografía. Ahondando en esta misma
perspectiva debemos comprender que: “nuestra mirada, aunque la creamos pobre, es rica y
está saturada de una profusión de modelos, latentes, arraigados y, por tanto, insospechados:
pictóricos, literarios, cinematográficos, televisivos, publicitarios, etc., que actúan en silencio
para, en cada momento, modelar nuestra experiencia, perceptiva o no“4. Todos ellos derivados
del posicionamiento conceptual de los artistas, que entienden la estética que proyectan
en sus obras como la clave de los valores que perciben en el territorio y, que usan como
referencia para sus creaciones. El artista, como creador reconocido socialmente de imágenes
estéticas, es, indirectamente, un creador de opinión. Este creador integrante de una minoría
especializada cuyas aportaciones son respetadas, ejerce una importante influencia sobre
la opinión pública por diversas razones, como el dominio de recursos retóricos, la empatía
estética con su público y su autoridad intelectual.
A modo de contraste, aquí es donde emerge un importante riesgo asociado al poder de
la imagen cuando esta prioriza la envoltura sobre el contenido, dando pie a la aparición de
categorías de representación reducidas a lo trivial. Imágenes desligadas del lugar, en las que
se olvida que el territorio es una realidad compleja integrada por infinidad de componentes
que configuran su particular impronta, que no pueden ser reducidos a contenido visual “sin
más”. Si nos referimos a la relación de la imagen al territorio, su alejamiento con el mismo
la proyecta al campo de la recreación, al de la hiperrealidad. En suma, la imagen no se debe
desligar del territorio del que parte, puesto que, si no es posible crear el lugar, la imagen no
es nada sin su elemento referencial del que transmite su existencia.
El paisaje como elemento cultural del territorio, evidentemente dinámico, nos obliga
a activar una serie de acciones en conexión con su representación que nos posibilite su
comprensión. Aquí toma un especial protagonismo la imagen como documento para el estudio
de la secuencia evolutiva del paisaje, para inventariar con detalle los valores paisajísticos del
territorio, además de poder describir las dinámicas naturales y sociales que han intervenido
en su evolución y transformación. Las imágenes que conservamos adscritas a un determinado
enclave, registradas por multitud de agentes en diferentes periodos, articulan verdaderos
archivos de la memoria, y nos muestran, cómo muchos de esos atributos que particularizan
los valores de un espacio vivido y modelado por el hombre se manifiestan con continuidad
en el tiempo, evolucionan de forma lenta, o se transforman súbitamente en periodos de
cambio. En esta mirada estética sobre el territorio han aparecido en las últimas décadas
nuevos intérpretes, como residentes forasteros, viajeros y turistas, que ponen en valor, con
su mirada culturalmente ajena, aspectos que pudieran haber pasado desapercibidos para
autóctonos. Esta acumulación de representaciones va autografiando el relato de la propia
memoria del territorio, en las que pueden observarse la dramática tensión entre lo efímero y
lo permanente.
La consolidación de esta nueva mirada sobre el territorio protagonizada por el turismo,
fruto de la globalización, va modelando y recreando el mismo, y finalmente, altera su función
así como su estética, porque sucede que: “este tipo de percepción se decanta por una visión
del paisaje como mercancía cultural y como objeto de consumo donde la forma de ver, mirar,
admirar, pasa por el canon estético en boga introducido por la publicidad, los medios de

3 - FREUD, Gisèle. 2001, p. 7.


4 - ROGER, Alain. 2007, p. 20.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
100

comunicación, la moda o las guías de viajes”5. La metanarrartiva visual, lejana a la realidad, se


impone para construir mercados turísticos de los territorios, susceptibles de ser consumidos.
Cada sociedad crea unas producciones simbólicas que nacen de sus necesidades y de sus
tradiciones, reflejándolas a su vez.  Toda variación en la estructura social influye tanto sobre
la forma como sobre el contenido de las modalidades de la expresión artística que modelan
y reflejan el territorio, y, muy especialmente, en su estética. Por tanto, imagen y territorio
son dos conceptos estrechamente unidos en la configuración, eminentemente cultural, de
la noción de paisaje. Paisaje y cultura son inseparables, a la vez que dependientes de la
propia evolución de los gustos estéticos, que cada momento histórico ha dado forma a sus
representaciones simbólicas, construyendo su propia memoria. El paisaje, como una parte
esencial del territorio, y la memoria e identidad del mismo están estrechamente unidos. En
este sentido, Maurice Halbwachs sostiene que: “la imagen del medio exterior y las relaciones
estables que mantiene con este entorno pasan al primer plano de la idea que el grupo se
forma de sí mismo. Esta imagen impregna todos los elementos de su conciencia, modera
y regula su evolución. La imagen de las cosas participa de su inercia”; y añade: “no es tan
fácil mudar las relaciones que se han establecido entre las piedras y los hombres. Cuando
un grupo humano vive desde hace tiempo en un sitio adaptado a sus hábitos, no solamente
sus movimientos, sino también sus pensamientos se regulan por la sucesión de imágenes
materiales que representan los objetos exteriores”6. Ahondando en estos mismos términos,
compartimos la idea de que: “si la memoria colectiva permite al grupo resistir, estabilizarse
en la duración, preservar y perseverar, en su mismidad, es en gran medida por apoyarse en la
persistencia del entorno material”; y agrega: “no sabríamos cómo recobrar el pasado si éste
no se conservara por el medio material circundante”7.
Ahora bien, tampoco podemos olvidar que la imagen del territorio ha estado al servicio
del poder imperante, a lo largo de la historia, que lo ha modelado a su antojo para dejar
su particular impronta estética. Así concebido, resulta innegable cómo los colonizadores
dominantes siempre han transformado los territorios conquistados para despojar de su
identidad, aculturar y someter más fácilmente a los pueblos sometidos. Por ello, nos supone
una gran ayuda conocer los agentes que en cada momento ejercen su poder en la modificación
y construcción del territorio, para desvelar las actuaciones que llevan a cabo. En la actualidad,
las relaciones de poder son transversales, cruzándose intereses difusos entre los poderes
políticos, las empresas multinacionales, los medios de comunicación, los industriales y las
empresas constructoras, entre otros. En este nuevo contexto de globalización económica el
capital territorial: “fácilmente puede ser banalizado y desposeído de sus valores culturales”8.
Abogando por el mismo, en las últimas décadas ha aflorado una generalizada preocupación
hacia la salvaguardia patrimonial de la humanidad, por parte de instituciones nacionales e
internacionales que han ido manifestando y plasmando recomendaciones, normas y leyes,
implicándose en un amplio abanico de objetivos encaminados a: identificar, documentar,
investigar, preservar, proteger, promover, valorizar, trasmitir y revitalizar el patrimonio en sus
distintas manifestaciones.
Queremos finalizar este texto con una imagen de Guarda titulada “Guarda a D. Miguel de
Unamuno”, de 2016. Se trata de un paisaje de la ciudad, en el que más allá del preciosismo
escénico, se proyecta una imagen literaria del Unamuno viajero reflexionando sobre el
territorio, sobre la Guarda de 1908, “… Por fortuna, los últimos días de noviembre son muy
cortos y pude acostarme a las siete, con una novela de Camilo9 a la cabecera de la cama. No
sin antes dar un paseo por la villa y pararme ante la imagen del rincón del arco para pensar
¡de qué tragedias calladas habrá sido mudo confidente!…”10. Lo físico y lo intangible se
aglutinan como componentes esenciales del territorio, proyectando su particular valor de

5 - CAÑO SUÑÉN, Nuria. 2011, p. 48.


6 - HALBWACHS La mémoire collective, 1950, ed. 1997, p. 195-201, cit. por CAPEL, Horacio 2014, p. 18.
7 - MARTÍNEZ GUTIÉRREZ. 2014, p.17.
8 - PEDRAZZINI (cord.) c. 2011, p. 3.
9 - Se trata del gran escritor portugués Camilo Castelo Branco (1825-1890), autor de, entre otras, una hermosa
novela titulada Amor de perdición (1862), traducida varias veces al español.
10 - UNAMUNO, Miguel de, 1908, p.74. Visita de Miguel de Unamuno a Guarda el 29 de octubre de 1908. El
reportaje está fechado en Salamanca, en diciembre de 1908.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
101

memoria e identidad, de ahí la importancia


de aproximarnos al mismo desde esa doble
vertiente: de lo explícito y lo emocional.
Walter Benjamín11 reivindicaba el aura o
irradiación carismática de la obra de arte
y la identifica con la singularidad, con la
experiencia de lo irrepetible, el territorio
está cargado de auras.
En definitiva, apreciar el territorio en su
identidad y cualidades es una actitud ante
la vida, que se modela y perfecciona desde
la articulación de políticas fundamentales
en la implicación de la sociedad basadas en
una correcta Educación. Proceso en el cual
la imagen juega un papel fundamental
en la percepción estética y valoración del
territorio.

Efigénia Lopes Boavista Cabral, cuidadora del altar


del “rincón”.
Torre de los Herreros (Ferreiros), Guarda, Portugal.
Retrato de D. Miguel de Unamuno, Florencio
Maíllo, encáustica sobre chapa metálica, 140x180
cm. 2016.

Referencias Bibliográficas

ALAIN, Roger. (2007). Breve tratado del paisaje, Biblioteca Nueva, Madrid.
BENJAMIN, Walter. (2003). La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica, en David Moreno Soto
(ed.), La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica (1936), México, Ítaca.
BLAKE, William. (1993). El matrimonio del cielo y el infierno, Proverbios del infierno, 1790-1793. Barcelona: Ediciones 29.
CAÑO SUÑÉN, Nuria. (2011). Miradas y tensiones en los paisajes del valle de Carranza. Tesis doctoral, Universidad
del País Vasco. [http://hdl.handle.net/10810/12197], fecha de consulta: 15 de marzo de 2016.
CAPEL, Horacio. (2016). Las ciencias sociales y el estudio del territorio. Biblio3W. Revista Bibliográfica de Geografía
y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 5 de febrero de 2016, vol. XXI, nº 1.149
[http://www.ub.edu/geocrit/b3w-1149.pdf], fecha de consulta: 20 de agosto de 2016.
FREUD, Gisèle. (1993). La fotografía como documento social. Barcelona: Gustavo Gili.
LLANOS-HERNÁNDEZ, Luis. (2010). El concepto de territorio y la investigación en las ciencias sociales. Agricultura,
Sociedad y Desarrollo, septiembre-diciembre 2010, vol. 7, nº 3 [http://www.colpos.mx/asyd/volumen7
/numero3/asd-10-001.pdf], fecha de consulta: 25 de agosto de 2016.
MADERUELO, J. (ed.). (2007). Introducción: paisaje y arte. Paisaje y arte. Madrid: CDAN, Abada Editores.
MARTÍNEZ GUTIÉRREZ, Emilio. (2014). Espacio, memoria y vínculo social. Urban, Madrid, marzo-agosto 2014,
nº 507, p. 7-23.
Pays. Med.Urban/Guidelines. Pays.Med.Urban, 03, Milano, s.f. 160 p.
PEDRAZZINI, Luisa (coord.). (c. 2011). Ámbitos periurbanos. Líneas guía paisajísticas para la gobernanza urbana/
Periurban Ladscapes. Landscape planning guidelines. Líneas Guía.
UNAMUNO, Miguel de. (1976). Por tierras de España y Portugal. Madrid: Colección Austral Espasa-Calpe, S.A.

11 - BENJAMÍN, Walter, 1936.


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Território e imagem:
lugares, paisagens, imagens
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José Manuel Simões
105

Geografia e imagem: peguei na


máquina e levei o território para casa
José Manuel Simões
Geógrafo e Urbanista
Professor e Investigador do IGOT-ULisboa
Consultor de Planeamento Territorial

“As minhas fotografias são um vector entre o que acontece no mundo e as


pessoas que não têm como presenciar o que acontece. Espero que a pessoa
que entrar numa exposição minha não saia a mesma.” (Sebastião Salgado)

1. A fotografia: uma longa tradição na geografia

A fotografia começa a ganhar grande significado na representação da paisagem com a


publicação, em 1908, da obra do geógrafo francês Vidal de La Blache (1845-1918), La France:
Tableau Géographique, que constituiu uma reedição da sua obra Tableau de la Géographie
de la France (1903), desta feita abundantemente ilustrada com fotografias comentadas.
Vidal de La Blache, considerado o fundador da «escola regional francesa» e do que o
historiador Lucien Febvre designou de «pensamento geográfico possibilista» (o Homem,
como  ser racional, modifica o meio natural e adapta-o segundo suas necessidades e
possibilidades), sustenta que as paisagens de qualquer região são uma herança histórica
resultante de superposições de camadas de tempo e influências humanas e naturais. Para Vidal
de La Blache, a focalização nos traços históricos e naturais da paisagem e a imprescindibilidade
da observação de campo, estimulou a utilização da fotografia como instrumento de trabalho,
refrescamento da memória do território e ilustração de tipologias de paisagem.
Pela mesma altura, Albert Kahn (1860-1940), um rico banqueiro francês apaixonado por
arte e fotografia, financiava expedições fotográficas a diversas países para registar gentes
e culturas locais, dando origem a um fantástico e inovador acervo de aproximadamente
72 mil fotografias registadas em placas de autocromo (uma invenção técnica dos irmãos
Lumière, baseada no registo fotográfico sobre chapas de vidro), cobrindo cerca de 60 países,
das quais 2500 retratos de pessoas anónimas, além de 100 horas de vídeo e 4000 placas
estereoscópicas em preto e branco. Os trabalhos de inventariação, do que viria a designar-se
como Archives de la Planète, ocorreram entre 1909 e 1931, com a contratação do geógrafo
Jean Brunhes (1869–1932) como Director Científico. Contudo, a instabilidade da Crise de
1929 arruinou financeiramente Albert Kahn, levando ao cancelamento das expedições
fotográficas em 1931.
No seio da Geografia Portuguesa, à medida que a afirmação do pensamento francófono
e possibilista vai penetrando, a fotografia torna-se de utilização recorrente, muitas vezes
complementada com esquissos da paisagem e das suas formas e estruturas geomorfológicas.
Primeiro, na Universidade de Coimbra com Aristides de Amorim Girão (1895–1960), embora
frequentemente recorrendo a fotografias de outros, que seria secundado pelo discípulo
Fernandes Martins (1916-1982), este detentor de maiores dotes de fotógrafo e um sentido
estético apurado. Depois, na Universidade de Lisboa com Orlando Ribeiro (1911-1997), que
fora discípulo de Amorim Girão, e tornar-se-ia referência cimeira da Geografia Portuguesa e
Mundial.
Orlando Ribeiro, nas suas constantes deambulações científicas pelo território português,
continental e insular, e por vários outros países (dos da Lusofonia, aos do Mediterrâneo,
África Equatorial e América Latina), registou fotograficamente e com carácter documental
a memória de inúmeros lugares e vivências dos povos. Como escrevemos em outro lugar
“(Orlando Ribeiro) gostava de repetir a sucessivas gerações de alunos, que «o olho» era
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
106

para si um dos principais instrumentos de trabalho do geógrafo, sendo através deste órgão
sensorial que se impregnavam no corpo e na mente as imagens e experienciações do
território. Era no mundo rural, tantas vezes emulsionado na película da sua fiel Leica, que se
sente a realização do mestre como fotógrafo, buscando permanentemente, em cada canto
recôndito, a maturação civilizacional e a harmonização de usos e costumes com o Meio”. O
espólio fotográfico de Orlando Ribeiro, desde sempre depositado na Fototeca do Centro de
Estudos Geográficos (que ele próprio fundou em 1943), é constituído por cerca de 11 mil
fotografias.

Figura1: Fotos de Orlando Ribeiro. Auto-retrato (1937) e Piódão (1954). Colecção do Centro Estudos Geográficos,
IGOT-ULisboa.

Hoje, o acervo fotográfico do Centro de Estudos Geográficos (presentemente integrado


no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, possui
mais de 50 mil fotografias originais, datadas maioritariamente dos anos quarenta a setenta
do século XX, ilustrando temas de Geografia Física, Geografia Humana e Antropologia, dos
mais variados lugares do mundo, mas sobretudo Portugal e territórios africanos de língua
portuguesa. Para além do espólio fotográfico de Orlando Ribeiro, integra ainda vastos acervos
fotográficos de outros geógrafos, discípulos e contemporâneos de Orlando Ribeiro, com
destaque para Raquel Soeiro de Brito, Suzanne Daveau, Ilídio do Amaral e Jorge Gaspar.
I) - Raquel Soeiro de Brito (1925-…) discípula de Orlando Ribeiro, acompanhou desde
jovem o mestre em muitas das suas viagens. Esteve presente quando das erupções dos
Capelinhos (Ilha do Faial, Açores, 1957/1958), legando-nos algumas das mais belas
imagens desta catástrofe natural. Percorreu também diversos territórios da Lusofonia,
deixando-se seduzir pelas tradições e simpatia das gentes com quem contactou, das
comunidades piscatórias às comunidades rurais.
II) - Suzanne Daveau (1925-…) colega e companheira de Orlando Ribeiro desde meados
dos anos sessenta, recorreu frequentemente à fotografia como instrumento de
trabalho, registando ora amplos horizontes paisagísticos, ora detalhes de formações
geológicas e geomorfológicas e, ainda que mais esporadicamente, vivências urbanas.
III) - Ilídio do amaral (1926-…), discípulo e colega de Orlando Ribeiro, profundo conhecedor
dos territórios da Lusofonia, a cujo estudo se dedicou particularmente, legou ao Centro
de Estudos Geográficos um enorme e valioso conjunto de fotografias e esquissos da
paisagem e das suas formas e estruturas.
IV) - Jorge Gaspar (1942-…), discípulo Orlando Ribeiro e também nome cimeiro da Geo-
grafia Portuguesa e Mundial e profundo conhecedor do território português, legou
José Manuel Simões
107

ao Centro de Estudos Geográficos largas centenas de fotografias tiradas nas suas


repetidas e incansáveis andanças pelo país e, sobretudo, nas suas constantes incursões
na «alma» das cidades.

Figura 2: Rua do Carmo, Lisboa. Foto de José Manuel Simões (2008).

Ainda no seio da Geografia Portuguesa, e mais recentemente, devem destacar-se os


nomes de José Manuel Simões (Universidade de Lisboa), Henrique Souto (Universidade Nova
de Lisboa), e Álvaro Domingues (Universidade do Porto).
I) - José Manuel Simões (1955-…), tem uma vasta obra fotográfica, correlativa do seu
interesse pela deambulação e conhecimento do território, da Natureza à ruralidade,
do urbanismo às vivências da população, dos grandes horizontes paisagísticos aos
pequenos detalhes. Muitas destas fotografias têm sido publicadas em livros de carácter
científico e de divulgação geral do conhecimento geográfico, bem como em livros
específicos de fotografia. Participou também em algumas exposições de fotografia de
carácter artístico.
II) - Henrique Souto (1958-2014), privilegiou os temas das comunidades piscatórias e da
Natureza (ainda que este sobretudo fotografia botânica macro, numa perspectiva
artística, focando-se nas suas formas e padrões, tendo inclusive sido premiado
internacionalmente).
III) - Álvaro Domingues (1959-…), tem utilizado a fotografia sobretudo numa perspectiva
instrumental com o fim de retratar e criticar as transformações e a estética do território
e do urbanismo. As suas publicações A Rua da Estrada (2009) e Vida no Campo
(2012), profusamente ilustradas com fotografias, condensam o seu pensamento sobre
aqueles temas e alcançaram grande divulgação.

2. O território: uma longa tradição na fotografia

Concomitantemente, fora do contexto específico da Geografia, o território e as suas


gentes chamaram a atenção de muitos fotógrafos conceituados.
Desde logo, destaque-se os da National Geographic Society, com sede em Washington,
e fundada em 1888. É uma das maiores instituições científicas e educacionais sem fins
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
108

lucrativos do mundo (6,8 milhões de membros), privilegiando os temas da geografia,


arqueologia, ciências naturais, ambiente, e cultura e história dos povos. Desde o ano da
sua fundação, a sociedade promove viagens e expedições a diferentes lugares do planeta,
e publica mensalmente a revista National Geographic (até Novembro de 1959 designada
National Geographic Magazine), a qual é profusamente ilustrada com fotografias, muitas da
autoria dos maiores nomes mundiais da fotografia.
Outra instituição incontornável é a Magnum Photos, cooperativa de fotógrafos fundada,
em 1947, por Robert Capa, David Seymour, George Rodger, William Vandivert e Henri Cartier-
Bresson. Este último, considerado quase unanimemente o pai do fotojornalismo moderno,
esteve em Portugal em 1955, tendo fotografado muitos lugares (Lisboa, Cascais, Estoril,
Sintra, Óbidos, Nazaré, Coimbra, Porto, Amarante, Lamego, Tomar, Alpalhão, Castelo de
Vide, Marvão e Estremoz). Segundo Cartier-Bresson, «Portugal era o país com melhor luz
para um fotógrafo… e as suas gentes das mais verdadeiras que jamais tinha encontrado».
As fotografias que tirou aos pescadores e ambientes da Nazaré, correram mundo e de certo
modo ajudaram a construir a imagem identitária do lugar, a qual o Estado Novo propagandeou
abundantemente através de cartazes e postais, livros e roteiros, e filmes e documentários.
Igualmente incontornável é a World Press Photo Foundation, uma organização independente
sem fins lucrativos e com sede em Amesterdão, fundada em 1955, que organiza anualmente
a maior e mais prestigiada competição de fotojornalismo, movimentando anualmente mais
de 100 mil imagens, e cerca de 6 mil fotógrafos oriundos de mais de 120 países.
Yann Arthus-Bertrand (1946-…), reputado fotógrafo francês, mas também jornalista,
repórter e ambientalista, colaborou com algumas das mais importantes revistas (National
Geographic, Life, Paris Match, Figaro Magazine, …).Em 1991, fundou a Altitude Agency,
a primeira agência de imprensa e imagens-banco do mundo especializada em fotografia
aérea (500.000 fotos, tiradas em mais de 100 países, por mais de 100 fotógrafos). Em 1994,
patrocinado pela UNESCO, Arthus-Bertrand iniciou um estudo aprofundado sobre o estado
da Terra, realizando um largo inventário de fotos de paisagens singulares e belas do mundo,
tiradas de helicópteros e balões de ar quente, projecto que alicerçou a publicação La Terre
Vue du Ciel (1ª edição em 1999), a qual vendeu mais de 3 milhões de cópias e foi traduzida
para 24 idiomas.

Figura 3: Capas de livros de Yann Arthus-Bertrand (2004) e Sebastião Salgado (2013)

Sebastião Salgado (1944-… ), fotógrafo brasileiro e fotojornalista independente desde


1973, passou pelas agências de fotografia Sygma, Gamma e Magnum. O primeiro livro
José Manuel Simões
109

inteiramente de fotografias publicado remonta a 1986 - Outras Américas - sendo focalizado


nos pobres da América Latina. Seguiram-se muitos outros, como Trabalhadores (1996),
Terra (1997), Êxodos (2000), África (2007) e Genesis (2013). Na introdução do livro Êxodos,
escreveu: “Mais do que nunca, sinto que a raça humana é somente uma. Há diferenças de
cores, línguas, culturas e oportunidades, mas os sentimentos e reacções das pessoas são
semelhantes. Pessoas fogem das guerras para escapar da morte, migram para melhorar sua
sorte, constroem novas vidas em terras estrangeiras, adaptam-se a situações extremas…”.

Em Portugal, desde cedo muitos fotógrafos também valorizaram na sua obra os olhares
sobre os locais e suas gentes. De entre os pioneiros, destaquem-se designadamente:
I) - Vicente Gomes da Silva (1827-1906) – nascido na Madeira, foi fotógrafo da Casa Real
Portuguesa e  fundador, no Funchal, da Photographia Vicente, o mais antigo estúdio
de fotografia existente em Portugal (desde 1982 tornado casa-museu, com um acervo
de aproximadamente 800 mil negativos);
II) - Karl Emil Biel (1838 –1915), negociante, editor e fotógrafo  alemão, estabelecido no
Porto, considerado um dos pioneiros da fotografia e da fototipia em Portugal. Fundou
a Casa Biel de Fotografia, foi fotógrafo da Casa Real Portuguesa e dedicou-se também
à fotografia paisagística e das grandes obras de engenharia (construção do caminho
de ferro e dos portos de Leixões e Matosinhos). Como corolário das suas frequentes
viagens pelo país, editou a obra A Arte e a Natureza em Portugal  (8 volumes)
III) - Carlos Relvas (1838-1894) – nascido em Lisboa, frequentou os principais ateliers foto-
gráficos da Europa, tendo adquirido os melhores aparelhos de fotografia para criar o
seu próprio atelier, construído junto à sua casa da Golegã. Além de grande retratista,
tendo fotografado no seu atelier toda a sociedade portuguesa, de aristocratas
a camponeses e mendigos, também fotografou paisagens e monumentos, da
Golegã, dos vales do Tejo e do Douro, das cidades de Santarém, Lisboa e Porto,
e das viagens pela Europa, a que acresce a fotografia de cavalos e arte equestre.
IV) - Domingos Alvão (1872-1946) – nascido no Porto, foi fotógrafo oficial de grandes
empresas e instituições e do próprio Estado, tendo sido a sua obra editada em diversas
publicações da época como a Illustração Portugueza e a Gazeta das Aldeias. Em 1934
o Secretariado da Propaganda Nacional publica a obra Portugal, onde se reúne muito
do seu trabalho;
V) - Joshua Benoliel  (1873-1932) – nascido em Lisboa, é considerado o pai do fotojor-
nalismo português, tendo colaborado com o jornal O Século, e diversas revistas
portuguesas e estrangeiras como Illustração Portugueza; O Occidente, Panorama,
L’Illustration e o ABC. Na publicação Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa: 1903–1918,
surgida anos trinta, foram reunidos postumamente muitos trabalhos fotográficos da
sua autoria.

Na segunda metade do século XX, afirmam-se também em Portugal diversos fotógrafos


com sensibilidade para o território, as paisagens e as pessoas, como: i) Gérard Castello-Lopes
(1925-2011; fotógrafo a partir de 1956, desenvolveu a sua criação de forma autodidacta,
seguindo os ensinamentos de Henri Cartier-Bresson); ii) Augusto Cabrita (1923-1993; cineasta
de curtas-metragens da RTP e fotojornalista do jornal O Século e das revistas Eva, Flama,
Século Ilustrado e de muitas outras da especialidade um pouco por todo o mundo; tendo
publicado vários livros de divulgação de valores patrimoniais e lugares do país); iii) Eduardo
Gageiro (1935-…; colaborou como fotojornalista em publicações como Diário de Notícias,
Diário Ilustrado, Século Ilustrado, Eva, Match Magazine e Sábado; membro de honra de
várias organizações fotográficas internacionais e detentor de mais de 300 prémios nacionais
e internacionais); iv) Jorge Barros (1944-…; as suas fotos ilustraram obras de diversos
escritores, mas também a reedição especial, em 1993, da obra Portugal, o Mediterrâneo e
o Atlântico de Orlando Ribeiro); v) Maurício Abreu (1954-…; muito associado a publicações
de divulgação e promoção das regiões portuguesas); vi) Filipe Jorge (1957-…; fundador
da editora Argumentum dedicada à realização de exposições, livros ou outros objectivos
editoriais, sobre cidades, regiões e outras temáticas, com recurso imagens aéreas, detendo um
acervo de milhares de imagens inéditas de todo o País e de alguns países estrangeiros como
Cabo Verde, Moçambique e Brasil.); vii) João Mariano (1969-…; dedicado especialmente à
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
110

área da Costa Vicentina, tendo publicado diversos livros e realizado numerosas exposições).
Referência especial para Duarte Belo (1968-…), muito provavelmente o fotógrafo
português que detém um maior acervo de fotografias sobre o país. O seu trabalho é diverso,
com grande aproximação à geografia e aos geógrafos, incidindo frequentemente sobre “a
paisagem e a arquitectura, num levantamento fotográfico documental sistemático que evolui
no sentido da descoberta progressiva do país, desde a natureza geológica e coberto vegetal
das paisagens à imensa complexidade das marcas deixadas no solo pelos gestos humanos
que permanecem na terra ao longo de milénios e definem uma identidade”. Tem diversos
livros publicados, sendo de destacar Portugal - O Sabor da Terra (1996-1997; obra em 14
volumes em co-autoria com José Mattoso e com Suzanne Daveau), e Portugal Património
(2007-2008; obra em 10 volumes, em co-autoria com Álvaro Duarte de Almeida); e Portugal
- Luz e Sombra – O País Depois de Orlando Ribeiro (2012).

Figura 4: Capas de livros sobre Portugal com fotografias de Duarte Belo (1997 e 2012).

Merecem igualmente destaque quatro iniciativas que muito recentraram a atenção no


binómio fotografia/território e sua memória:
I) - Publicação da obra Arquitectura Popular Portuguesa (1961/1962), surgida na
sequência do Inquérito à Habitação Rural lançado em 1955 pelo Sindicato dos
Arquitectos, e envolvendo reputados arquitectos como Keil do Amaral, Frederico
George, Lixa Filgueiras, Nuno Teotónio Pereira, Fernando Távora, os quais, embora
não sendo fotógrafos experimentados, produziram um enorme acervo fotográfico de
cariz documental.
II) - Realização dos Encontros de Fotografia em Coimbra, entre1980 e 2000, por iniciativa
do Centro de Estudos de Fotografia da Associação Académica de Coimbra, a que viria
a juntar-se o impulso do fotógrafo Albano Siva Pereira. Ao longo de duas décadas,
o evento afirmou-se nacional e internacionalmente no panorama das mostras de
fotografia. Em 2003, sob a égide de Albano Siva Pereira é criado o Centro de Artes
Visuais de Coimbra – Encontros de Fotografia, estrutura orientada para a produção de
exposições e outros projectos no campo da fotografia e da imagem em movimento,
como o filme e o vídeo. Desentendimentos vários entre a direcção do CAV e a Câmara
Municipal de Coimbra, têm retardado o relançamento do projecto.
III) - Criação do Centro Português de Fotografia, em 1997. Instalado no edifício oitocen-
tista da Cadeia de Relação do Porto (da autoria do arquitecto-engenheiro Eugénio
José Manuel Simões
111

dos Santos e Carvalho e remodelado em 2001 pelos arquitectos Eduardo Souto


Moura e Humberto Vieira), acolhe um núcleo museológico permanente que tem
por base o espólio do coleccionador António Pedro Vicente, ao mesmo tempo que
organiza exposições e eventos de fotografia. A programação do Centro Português
de Fotografia tem procurado equilibrar a fotografia contemporânea e histórica, e a
fotografia portuguesa e internacional.
IV) - Criação do concurso Transversalidades - Fotografias Sem Fronteiras, pelo Centro de
Estudos Ibéricos,  com um duplo objetivo: “aproveitar o valor estético, documental
e pedagógico da imagem para promover a inclusão dos territórios menos visíveis,
inventariar recursos e valorizar paisagens, culturas e patrimónios locais; fomentar a
troca de informação e de conhecimentos entre territórios de matriz ibérica, sejam
os Países de Língua Portuguesa espalhados por vários continentes ou os que se
localizam na América Latina”. Na edição de 2016 (a 5ª) foram submetidas cerca de
700 candidaturas abarcando fotógrafos de mais de 30 países.
Acresce que o desenvolvimento das novas tecnologias de comunicação, vulgo WEB, tem
gerado um exponencial de oportunidades de divulgação de fotografias com os mais variados
propósitos, sendo que as temáticas relacionadas a paisagem, os lugares, o património e
as gentes, são recorrentes. Para além dos websites de instituições internacionalmente
consagradas (National Geographic, World Press Photo, Magnum Photos, Agence VU, Lens
– New York Times, Photographers Blog – Reuters, Life, Lens Culture, American Suburb X /
AMX, iN Public, Paris Photo, Lumas,…), e para além das redes sociais (Facebook, WhatsApp,
Instagram, Twiter,…), merecem sobretudo destaque os websites: de duas comunidades
portuguesas de fotografia: Olhares – Fotografia Online e 1000 Imagens.

3. A fotografia é… Território vivido e memorizado

Na busca de deslumbramento em paisagens e lugares belos (Vale do Douro, Portugal;


Glacier National Park, Canada; Campos de lavanda da Provença, França; Grande Barreira de
Coral, Austrália; Halong Bay,Vietnam;…), em lugares mágicos e singulares (Antártida; Grand
Canyon, EUA; Zhangye Danxia, China; Amazónia, Brasil; Deserto do Sahara, Marrocos/
Argélia; …), em lugares patrimoniais (Paris, França; Tsingy of Bemaraha National Park,
Madagascar; terraços de arroz de Yuanyang, China; Nazca Lines, Peru; …), ou em lugares
vibrantes (Rio de Janeiro, Brasil; Nova Iorque, EUA; Veneza, Itália; mercado flutuante de
Bangkok, Tailândia; Katmandu, Nepal; Bombaim, Índia; Cidade do México;...).
Na busca da construção e conservação de emoções quando da visita a lugares e
monumentos ícones da visitação (a Sagrada Família, Espanha; Estátua da Liberdade, EUA;
a Torre Eiffel, França; o Coliseu de Roma, Itália; a Ópera de Sidney, Austrália; Angkor Wat,
Cambodja; a Grande Muralha da China; Petra, Jordânia; Pirâmides do Cairo, Egipto; o Kruger
Park, África do Sul; o MOMA de Nova Iorque;…).
Na busca da colecção de memórias de lugares para a “caderneta das viagens”, aqui a
aquisição de um postal, ali um íman para o frigorífico, acolá uma T-shirt. Ou, o simples prazer
de atravessar a mesma passadeira de Abbey Road, onde há 47 anos os Beatles se deixaram
fotografar para a capa do disco com o mesmo nome desta rua londrina. Ou ainda, o sentimento
do «estive aqui», sinalizando o momento com o dedo indicador e comprovando-o pela
fotografia (cada vez mais do tipo selfie), lembrada e mostrada repetidamente aos amigos.

Território em todas as escalas

Da tradicional fotografia aérea à imagem via satélite, e daqui ao Google Earth, numa
viagem vertiginosa pelas imagens a diversas escalas. Da aproximação à Terra, à Europa
Ocidental, à Península Ibérica, a Portugal, à região de Lisboa, à cidade de Lisboa, e, por fim, à
Torre de Belém, símbolo e orgulho de uma época, de um país e um povo que protagonizaram
o primeiro processo de mundialização.
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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Figura 5: Da estratosfera à Torre de Belém. Imagens do Google Earth.

Território em mudança
É poder olhar e comparar os lugares em momentos diferentes. Da Benidorm de 1950,
lugar esquecido à beira mar, à Benidorm de 2016, pejada de arranha céus e veraneantes. Da
Lisboa Oriental de 1990, lugar de obsolescências e depósitos de inutilidades, à modernidade
urbanística e cultural da Expo 98 e do Parque das Nações de 2016. Da Banda Aceh (Sumatra,
Indonésia) de 2003 à Banda Aceh de 2004 logo após a devastação da cidade pelo tsunami.
Do projecto do fotógrafo Gabor Ederlyl em Barceloneta, fotografando exactamente o mesmo
recanto de um espaço público da cidade em diferentes horas do dia, ao time-lapse junto ao
elevador de Santa Justa em Lisboa.

Um modo de olhar o território


Um território, um lugar, um edifício, cuja percepção e apreensão vai variando consoante
o ponto onde se localiza o observador. Da vista aérea do complexo abacial e histórico do
Mont-Saint-Michel a partir de um balão de ar quente, a dimensão da altura sai desvalorizada,
e o olhar e o pensamento do observador foca-se na robustez e no engenho da estrutura
defensiva e na disposição do casario. Da vista do Mont-Saint-Michel a partir da  foz do Rio
Couesnon, a imagem planar fica secundarizada, ressaltando ao olhar a imponência piramidal
do conjunto e a elegância arquitectónica e estética da abadia alcandorada no rochedo e
projectando as suas flechas na eternidade.
José Manuel Simões
113

Identificação de padrões de uso do território


A diversidade de padrões do uso do território é enorme, explicável ora por condicionamentos
e faculdades das condições naturais, mormente a topografia e a rede hidrográfica, ora pelos
caldeamentos histórico-culturais que perpassam o território, ora pela mudança económica e
tecnológica.
Olhando para o uso agrícola, dos padrões do «bocage», mosaico fragmentado de talhões
cultivados enclausurados por sebes arbustivas como os do Minho, Galiza, ou Normandia,
aos padrões dos «openfields», domínio da grande propriedade, de horizontes espraiados
sem barreiras, como os de Ardennes (Bélgica), os de North Carolina e Iowa (EUA), ou os de
New South Wales e Western Victoria (Australia). Da linearidade dos campos de vinhedos de
Beaufort County (North Carolina, EUA) e dos campos de soja de Primavera do Leste (Mato
Grosso, Brasil) à circularidade introduzida pelos pivots de rega de Edson (Kansas, EUA), ou
às deambulações dos vinhedos das colinas de Huelva (Espanha) ou dos palmeirais de Kuala
Lumpur (Malásia). Das matizes verdes da ocupação do Vale do Loire às matizes amarelo-
acastanhados de Trás-os-Montes, ou às matizes multiculores dos campos de flores de Lisse
ou de Kop van Noord (Holanda). Da secura dos campos da Andaluzia à frescura dos arrozais
de Honghe Hani (China).
Olhando para a urbanização, da quadrícula meticulosa da Baixa Pombalina (Lisboa,
Portugal), de Barcelona (Espanha), de Nezahualcóyoti (cidade do México), ou do Industrial
District de Ansan (Coreia do Sul), ao emaranhado caótico de casario da cidade de Fez
(Marrocos), ou às deambulações sinuosas dos modernos complexos residenciais de Boca
Raton (Palm Beach, Florida, EUA) e de Desert Shores (Las Vegas, EUA).
Existem já milhares de obras de grande qualidade baseadas na fotografia aérea sobre
diferentes países, regiões e cidades. No domínio específico de identificação dos padrões de
uso do território a partir da fotografia aérea o número de publicações é bem mais limitado,
sendo de destacar as obras de Alex S. Maclean (Designs on the Land: Exploring America from
the Air, 2003; Over: The American Landscape at the Tipping Point, 2008) e as de Benjamin
Grant. Alex (Abstracts from Space: selected images from daily overview, 2015; e Overview:
A New Perspective of Earth Hardcover, 2016).

Informação geográfica
Desde há longas décadas que o uso da fotografia tornou-se instrumental para aquisição
de informação no estudo dos territórios, sobretudo do ponto de vista das análises sincrónicas
e estáticas, mas também do ponto de vista do estudo de transformações quando se torna
possível comparar fotos do mesmo local ou ângulo de visão em tempos diferentes. Da leitura
estereoscópica da tradicional fotografia aérea à fotointerpretação de imagens de satélite com
sensoriamento espectral e à incorporação em sistemas de informação geográfica de todo o
conjunto de informação obtido a partir da leitura dos registos fotográficos.

4. Epílogo
Busquei no meu baú de recordações a minha primeira viagem, e depois a segunda a
terceira e, tantas outras... Dei-me conta, através do meu acervo de fotografias, de como
foram mudando as minhas motivações fotográficas e a minha apreensão dos lugares e das
pessoas!
Na minha primeira grande viagem - Paris (1972), incessantemente pedia que me
tirassem fotos em diversas posições em frente aos monumentos, sobretudo daqueles que
há muito conhecera nos livros e que agora ia visitando: a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a
Catedral de Notre-Dame, a Basílica do Sacré Coeur, o Museu do Louvre, L´Opera, o Castelo
de Fontainebleau, o Palácio de Versalhes,… O resultado?! Fotos de José Manuel Simões
adornando os monumentos!
Volvidos dez anos, de regresso a Paris (1982), os itinerários pela cidade e deambulações
pelos monumentos e museus repetiram-se, mas desta feita o objecto fotográfico era
apenas o dos monumentos. Podia ter comprado postais, mas aquelas fotos que eu tirava
obstinadamente eram mais que uma recordação, eram uma forma de me apropriar também
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
114

dos próprios monumentos, “tinha pegado na máquina e agora trazia-os para casa”!
Nos anos noventa, o número de viagens nacionais e internacionais ampliou-se e
diversificou-se. Desta feita, o desejo compulsório de fotografar monumentos esfumara-se. A
grande motivação radicava agora na sedução dos lugares e nos seus grandes planos: Veneza
e a azáfama do Grande Canal; Atenas e a imensa massa de casario espraiando-se aos pés da
Acrópole; Nova Iorque e as “espetadas” de enormes torres apontando ao céu; Ceuta com o
emaranhado de ruas e “encavalitamento” de casas pejadas de antenas parabólicas,…
Por fim, nas viagens mais recentes, se bem que os grandes planos dos lugares não se
tenham varrido da minha prática fotográfica, as pessoas, suas vivências e singularidades,
ganharam centralidade no meu olhar: o dentista da praça Djemaa el Fna em Marraquesh,
e sua banca de milhares de dentes humanos prontos a ser reutilizados; o reboliço da ruas
estreitas de Katmandu, com pessoas acotovelando-se e cruzando-se em todas as direcções
e em todas as horas, e por entre elas, “sherpas” apressados com enormes carregos às costa
e sadhus maquilhados a rigor vagarosos e sorridentes; os boticários de Jerusalém anichados
em pequenas lojas, por de trás de amontoados de especiarias e mézinhas donde irradiam
intensamente cores e odores; as vendedeiras dos mercados de Bombaim, vestidas com os seus
tradicionais saharis e sentadas em caixas de madeira, por entre montes de frutas e legumes,
num inebriado de cores e sabores; as bicicletas e motoretas de Hanói com cargas monstruosas
(mobílias, frigoríficos, e tudo o mais que for necessário), deslizando com destreza por entre
o tráfego ininterrupto e agressivo; … E, por fim, o violonista romeno que eu fotografara em
Atenas nas proximidades da Acrópole e que passados 4 anos volto a encontrar e a fotografar
na nossa pequena vila de Óbidos!
Um dia destes, volto a pegar na máquina e levarei de novo o território para casa!

Figura 6: Lugares diferentes, o mesmo violinista! Atenas (2010) e Óbidos (2014). Fotos de José Manuel Simões

Referências Bibliográficas
BATCHEN, Geoffrey (ed.) (199) - Burning with desire: the conception of photography, London: The MIT Press.
BUNNELL, Peter C. (2009) - Inside the photograph: writings on twentieth-century photography, New York: Aperture.
GASPAR, Mariana (2013) – retomar percursos que o tempo Interrompeu: uma leitura dos Encontros de Fotografia
de Coimbra. Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação, Lisboa: UNL-FCHS.
HIRSCH, Robert (199) - Seizing the Light: A History of Photography, Nova Iorque: McGraw-Hill.
MULLIGAN, Therese (1982) - The History of Photography: From 1839 to the Present, Londres: Bulfinch Press.
ROSENBLUM, Naomi (2003) - World History of Photography (4ª ed.), Nova Iorque: Abbeville Press. 
SENA, António (1998) - História da imagem fotográfica em Portugal, 1839-1997, Porto: Porto Editora.
Duarte Belo
115

Geografia - aproximações e afastamento


Duarte Belo
Arquiteto
Fotógrafo

Um trabalho de fotografia sobre o espaço português não pode deixar de se aproximar da


geografia como área de conhecimento. Mas há pontos de afastamento quando se envereda
por interpretações menos objetivas da realidade. A sistematização de um arquivo fotográfico
sobre a terra dá origem a um “território” que se distancia do representado. As fotografias
ganham significado nas relações topológicas que estabelece com outros elementos próximos,
sejam eles mapas, textos, desenhos, projetos. Mais tarde é o próprio espaço que passa a ser
visto de forma diferente. Há uma complexa teia de complementaridades entre a realidade e
a sua representação.
Este é o relato breve de um percurso pontuado por muitas viagens em Portugal na procura
de uma imagem, de um conjunto de fotografias que possa representar o país. Uma síntese
do caminhar, do entendimento da terra como uma fonte de informação. Uma reflexão
continuada sobre o trabalho, a sua memória, uma tecnologia, imagens, arquivo, Portugal. Por
vezes, sai-se desta fronteira geográfica, mas permanece, atento, um ouvido lusófono. Este
é um ofício de levantamento fotográfico do espaço português, ou de outros solos distantes
que, de alguma forma, se relacionam com a cultura portuguesa. A relação com a Geografia,
como disciplina e campo de conhecimento, é aqui estabelecida sobretudo pela proximidade
a Orlando Ribeiro e a Suzanne Daveau. O trabalho tem resultado, predominantemente, em
objetos de comunicação (livros, exposições, presenças na web), com base na fotografia, na
palavra e, por vezes, em alguns mapas. Este labor poderá configurar-se como um atlas em
permanente construção sobre a terra e o habitar.

1982 - Introdução às fotografias


Uma primeira fotografia, realizada em 1982, em Vila do Conde, marca o início de um
percurso. Aqui poderão identificar-se algumas dominantes de uma “imagem” que alia as
formas construídas com o lugar natural, com o solo que recebe as intervenções humanas.
Um tempo fixo e uma certa ideia de solidão. De fotografias dispersas, nos primeiros anos, na
procura de uma linguagem expressiva, passou-se para as viagens longas por Portugal, quase
sempre pedestres.

Queluz, 2003
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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1996 - Portugal - O Sabor da Terra


Portugal - O Sabor da Terra representou um primeiro conjunto sistemático de grandes
viagens a um país tão próximo, o qual, para muitos que pouco o conhecem, parece tão
distante. Correspondeu a, praticamente, um ano no terreno em recolhas fotográficas. Não
estávamos longe da generalização da tecnologia digital aplicada à fotografia, mas esta não
era ainda uma realidade disponível. Era então usada película a preto e branco. Foi a descoberta
de um país imenso, ao mesmo tempo que se procurava fixar aspetos do tempo longo. Desta
obra, realizada, na escrita, com o historiador José Mattoso e a geógrafa Suzanne Daveau,
resultaram 14 volumes em livro e 14 exposições simultâneas por todo o território nacional,
com exclusão dos dois arquipélagos atlânticos. Estávamos em aproximação ao grande evento
de Lisboa Expo-98 e o desafio por nós proposto ao Pavilhão de Portugal foi, numa altura em
que se pretendia estimular o olhar sobre os oceanos, o tema da grande exposição, refletir
sobre a terra, sobre as regiões portuguesas, o seu vastíssimo e rico património paisagístico e
as formas arquitetónicas a elas associadas.

Serra de Montemuro, Castro Daire, 1996

São Gabriel, Castelo Melhor, Vila Nova de Foz Côa, 1995 Centum Cellas, Belmonte 1996

1997 - Orlando Ribeiro e Suzanne Daveau


No âmbito do desenvolvimento do projeto Portugal - O Sabor da Terra, visitei, com José
Mattoso, a casa de Orlando Ribeiro e de Suzanne Daveau. A finalidade da visita era, justamente,
convidar a geógrafa a colaborar na obra. Houve, no entanto, um facto que imediatamente me
chamou a atenção: todo o espaço português, e não só, estava representado naquele lugar entre
paredes, naquela casa. Era o universo da geografia e a sensação de que todo um território vasto
cabe dentro de uma casa, bem como, de certa forma, na cabeça de dois singulares geógrafos.
Mais tarde, viria a propor a Suzanne Daveau a realização de um conjunto de fotografias da
própria casa, desafio esse aceite. Foi um projeto expositivo e editorial apresentado em Lisboa.
Às fotografias da casa, juntei um outro conjunto de imagens, muito recentes, da Serra da
Duarte Belo
117

Estrela, um dos espaços de eleição de Orlando Ribeiro. O livro e a exposição viriam a constituir
uma homenagem ao grande geógrafo, falecido pouco tempo antes.

Casa de Orlando Ribeiro, Vale de Lobos, Sintra, 1997 Casa de Orlando Ribeiro, Vale de Lobos, Sintra, 1997

2000 - Brasil, a Amazónia de Ferreira de Castro


Um mundo estranho, tropical, muito diferente do português, unido a uma memória por
um escritor. Ferreira de Castro trabalhou no seringal amazónico, na extração da borracha, no
início do século XX. Só muito mais tarde daria conta, em forma de livro, dessa experiência
em “A Selva”. No ano 2000, ser-me-ia proposto, pelo Centro Português de Fotografia,
então sob a direção de Teresa Siza, seguir os passos de Ferreira de Castro. Foi o encontro
com a floresta tropical do Amazonas. Uma extensa região de significado planetário, uma
imensa “geografia”, o contacto com uma escala avassaladora e uma paisagem continuada,
sem aparente diversidade, ao longo de centenas de quilómetros. O desafio de um trabalho
fotográfico seria o de ligar a literatura com o universo concreto do terreno. O que se
encontrou foi um mundo fascinante e, ao mesmo tempo, inquietante. Uma floresta densa
de sons, opacidades e escuridão. Que saber pode representar um território? Que ferramentas
utilizar para o fazer?

Amazónia, Brasil, 2000 Amazónia, Brasil, 2000

Pausa
Desde as primeiras viagens, com fotografias captadas ainda sem um propósito definido,
que foi tomando forma um arquivo fotográfico em progressivo crescendo. Com o passar do
tempo, nasceu a necessidade de se criarem formas de referenciação das fotografias de modo
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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a não haver perda da identificação dos locais exatos onde tinham sido captadas. Entretanto,
do registo analógico, em suporte película, evoluiu-se para os suportes digitais.
Atualmente, é um acervo que não se limita a um repositório de imagens, correspondendo
cada vez mais a uma fonte viva de novos projetos e de novas reflexões sobre o espaço português,
sobre as formas de construir, de edificar uma cultura comum, sobre o aprofundamento do
próprio modo de expressão pela fotografia. Consequentemente, este arquivo, para além de
repositório de imagens é, sobretudo, um elemento chave de diálogo com o presente, com
novas formas de mostrar imagens, de as expor, de as editar em diferentes suportes, de, a
partir delas, escrever, expor o pensamento que é por elas motivado. Assume-se o arquivo
fotográfico como uma complexa teia de relações entre imagens de lugares, em que a
organização dos seus elementos potencia, continuadamente, perspetivas renovadas sobre os
locais representados, o que permite descobrir, progressivamente, novos pontos de interesse e
a busca de modos de expressão para os seus possíveis significados e interpretações.

Lisboa, 1995 Queluz, 2003 Viseu, 2008

2007 - Capelinhos
Pela primeira vez o detalhe aprofundado sobre as formações da Terra, do chão que
pisamos. Leituras geológicas e um crescente fascínio pela origem e evolução de um planeta
que viria a acolher uma extraordinária diversidade de formas de vida. Da erupção do
vulcão dos Capelinhos resultou um novo pedaço de solo. Sendo uma erupção com origem
no mar, subaquática, que posteriormente se ligou à ilha do Faial, continuando como um
vulcão terrestre, o resultado foi um aumento de área da ilha-mãe. O vulcão dos Capelinhos
mostrou, não apenas à comunidade científica, como se formaram as ilhas açorianas. Nos
anos posteriores, seguiram-se os processos erosivos, provocados pelo vento, pela chuva, mas,
sobretudo, pelo mar, que tiveram como consequência a “devolução” ao oceano de parte
muito significativa das novas áreas. Ficou, no entanto, ali exposta, uma imagem viva da
“fábrica da paisagem”.

Vulcão dos Capelinhos, Horta, Faial, 2007 Pico Verde, Horta, Faial, 2007

2011 - Luz e sombra


Portugal - Luz e Sombra, o país depois de Orlando Ribeiro, foi um regresso, justamente,
a Orlando Ribeiro, ao seu espólio fotográfico, produzido entre as décadas de 30 e 80 do
século XX. Trata-se de um notável conjunto de fotografias que serviu, fundamentalmente,
Duarte Belo
119

para o apoio à investigação científica e à produção de saber e conhecimento sobre Portugal.


Atualmente, estas imagens constituem um singular e coerente retrato de uma época. Em
2011, por ocasião do centenário do nascimento de Orlando Ribeiro, avançámos para o
terreno à procura de, aproximadamente, uma centena e meia desses espaços do passado.
Posicionámo-nos no local exato onde estivera Orlando Ribeiro. Colhemos um retrato
impressivo da passagem do tempo em solo português, mas também da sua permanência. De
algum modo, assistimos, nestas últimas décadas, a uma alteração de paradigma na relação
que temos com o chão comum. Deixámos uma evidente situação de pobreza generalizada
no país, para um período em que se aumentou de forma significativa a capacidade de
construir infraestruturas, particularmente no que diz respeito a habitação na periferia das
maiores cidades, assim como de vilas e aldeias. A imagem de Portugal tem mudado de forma
acentuada nos anos mais recentes, tendo como consequência a alteração da própria ideia de
“identidade” associada à paisagem e às formas construídas.

2014 - Ilha do Fogo


O desafio para fotografar a ilha do Fogo partiu de José Luiz Tavares, poeta cabo-verdiano.
Com erupções relativamente regulares, a ilha do Fogo é um impressionante campo de
diferentes formações basálticas, um livro aberto sobre vulcanologia, mesmo para quem
não tenha conhecimentos aprofundados sobre a matéria. A plasticidade daquelas formas
rochosas é um desafio irrecusável para quem fotografa as dimensões da terra. Esta viagem
representou também um “reencontro” peculiar com Orlando Ribeiro, que estudara a ilha e a
sua erupção em 1954, altura em que se formou um novo cone vulcânico no sopé daquele que
é, atualmente, o principal e mais elevado vulcão da ilha. Essa nova elevação foi batizada, pela
população local, como Monte Orlando em homenagem ao estudioso incansável que foi o
geógrafo português. Na altura, Cabo Verde integrava o conjunto das colónias portuguesas.

Chã das Caldeiras, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 2014

Chã das Caldeiras, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 2014 Chã das Caldeiras, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 2014

2015 - Inquéritos
Inquéritos à fotografia e ao território: paisagem e povoamento foi uma exposição
coletiva comissariada por Nuno Faria no Centro Internacional de Artes José de Guimarães,
em Guimarães. O objetivo foi mostrar Portugal através da fotografia desde o século XIX
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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até à atualidade. A exposição partia da simbólica data de 1881, ano em que se realizou
uma expedição científica à Serra da Estrela organizada pela Sociedade Martins Sarmento.
Esta consistiu numa viagem destinada a aprofundar o conhecimento da última região de
território português mal explorada. Solos de altitude, de lendas e de mitos. Para integrar o
coletivo, foram propostos dois painéis de fotografias que, de algum modo, representam uma
atitude perante o espaço português e a disciplina de fotografia associada ao levantamento
das paisagens. Um dos painéis, composto por 42 fotografias, foi, justamente, sobre recolhas
fotográficas realizadas na Serra da Estrela ao longo de 26 anos, nomeadamente de 1990 a
2015. Um segundo conjunto de imagens destacou metodologias do trabalho fotográfico de
campo, estúdio e edição, a par de uma leitura possível do que pode ser a representação de
um país pela fotografia, através de lugares de índole muito diversa.

Campo
É no campo que este trabalho ganha sentido, forma e razão de existir. É pelo registo
desejado de “toda a terra” e das formas de a expressar por via da fotografia que podemos
propor um “mapa”, a representação de um espaço que constantemente nos escapa à
tentativa de o captar/registar/fixar. Reinventamos os sítios, os lugares, os espaços de vivência.
Para esse mapa sempre em projeto, articulamos fotografias, textos, traços, diferentes formas
de representação, códigos. São aproximações e afastamentos à Geografia, à objetividade
de um conhecimento que se busca, sem deixar de sentir a sedução das margens, dos novos
trilhos sobre territórios extensos, não explorados, sem temer pisar solos não cartografados,
desenhos possíveis de uma vida humana.
Este trabalho é como um somatório de mapas, que, no seu conjunto, definem uma
geografia particular. Mesmo quando representamos espaços próximos e distantes, há o
desígnio do encontro da geografia de um país, da sua caracterização pela imagem fotográfica.
O registo das paisagens, por ser concretizado ao longo do tempo, acaba, também, por ser
a fixação do próprio tempo e das alterações nos lugares decorrentes das ações humanas,
assim como da natureza em si, dos seus elementos/nos seus processos erosivos. Embora se
estabeleça como objetivo o registo sistemático de um espaço determinado, desenvolve-se/
constrói-se, inevitavelmente, uma geografia pessoal. A procura de lugares de “eleição” ou de
lugares síntese que, de algum modo, constituam o resumo do que poderá ser Portugal. Este
é um dos desafios maiores deste trabalho.
Num caminho de liberdade, querem-se ultrapassar limites. Essas linhas virtuais são os
mapas de um atlas. Mas esse atlas não é o somatório de mapas que se ligam através do
recorte de fronteiras, é um mundo imaginário onde se olha a identidade de uma cultura.
Essa cultura é composta por fragmentos desconexos sujeitos ao tempo que tudo altera à
sua passagem. E a “identidade”, pessoal e coletiva, ganha contornos diferentes ao longo do
tempo e variações em diferentes regiões ou mesmo áreas bem mais restritas. Este é, assim,
um trabalho em permanente construção/devir, inacabado. Nas linhas projetadas de um
mapa, na demanda de um atlas, desenhamos o sentido possível de uma existência humana.
Procuramos o espaço, encontramos o tempo.

Serra do Gerês, Montalegre, 2012


Lúcio Cunha
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Geopatrimónio e imagem
Lúcio Cunha
CEGOT - Universidade de Coimbra

Um dos autores de livros de viagens que mais aprecio no nosso país, Gonçalo Cadilhe,
escreve a propósito das fotografias com que ilustra os seus livros: “As minhas fotografias
procuravam armazenar momentos cuja qualidade visual fosse tão metafísica que permitisse
mantê-los congelados no tempo por uma lente para serem reproduzíveis num tempo qualquer
do futuro. Aqueles lugares talvez nunca fossem belos, mas no instante em que eu estivera
lá, neles, tinham encenado o melhor de si próprios.” E, conclui sobre as imagens dos lugares
que vê, vive e sente em cada uma das suas viagens: “O que me interessava fotografar era a
minha própria felicidade, feita de luz e pureza sobre a paisagem. Cada fotografia minha era
um lugar dentro de mim”1.
Embora as formas de relevo e outros elementos do meio natural abiótico desde sempre
tenham sido valorizadas pelas comunidades humanas numa perspectiva social e cultural,
apenas nos finais do século XX os estudos sobre a importância da geodiversidade, do
geopatrimónio, da geoconservação e do geoturismo se desenvolvem e procuram os dados
científicos que suportam o seu conhecimento e valorização, que justificam o seu significado
ecológico, social e cultural e que proporcionam a sua divulgação e os mecanismos de
conservação adequados.
Ao abarcar todo o conjunto de elementos naturais abióticos existentes à superfície da
Terra, os conceitos de geodiversidade, mais amplo, e o de geopatrimónio, mais restrito, por
incluir apenas aqueles elementos que, dadas as suas características científicas, pedagógicas,
estéticas ou culturais, merecem ser estudados, preservados, divulgados e valorizados,
desempenham um importante papel no estudo das Ciências da Terra (Geografia; Geologia)
e das Ciências Sociais (Arqueologia; Geografia e Ciência do Turismo).
Em todo o processo de inventariação, avaliação, conservação, divulgação, promoção e
valorização da geodiversidade e, mais especificamente do geopatrimónio, a imagem detém
um importante papel, independentemente do valor estético que tenham os objectos em
análise. Quando nos referimos ao património geológico (minerais, rochas, fósseis) é através
da imagem que se mostra a especialistas e leigos as características especiais, os brilhos, as
texturas e as estruturas que as apontam como elementos especiais, singulares e raros, ou seja
como elementos dignos de valor patrimonial. No que se refere ao património geomorfológico,
aquele que se prende com o valor das formas de relevo, vistas a diferentes escalas, a imagem
é ainda mais determinante. De facto, a imagem (do simples esboço ao desenho complexo
e à pintura artística; da fotografia mais simples ao filme mais elaborado), joga aqui o papel
de uma leitura social e culturalmente interpretada, que se junta à leitura mais fria e objectiva
das formas, das dimensões, das estruturas e dos complexos paisagísticos que as valorizam
científica e patrimonialmente.
Mais do que património natural, o geopatrimónio e, particularmente, o património dado
pelas formas de relevo, o património geomorfológico, constituem-se como verdadeiros
patrimónios culturais. Se, de facto, este tipo de património não é “construído” ou “criado”
pelos seres humanos como reflexo dos seus hábitos culturais em determinado momento
histórico, ele só tem verdadeiro sentido através da sua apreciação pelas comunidades
humanas, apreciação que quase nunca é feita de modo directo e imediatista, mas que
envolve, em regra, sentimentos estéticos colectivos que misturam tradições mais ou menos

1 - Gonçalo Cadilhe (2012) – Um lugar dentro de nós. Clube do Autor, SA, Lisboa, 223 p.
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
122

ancestrais com elementos místicos e mesmo religiosos, mais ou menos observados e vividos
pelas populações.
Montanhas altas, volumosas e íngremes, planícies abertas, praias douradas ou cavernas
sem luz, mais do que formas de relevo, são percepcionadas através de experiências individuais
e colectivas que as tornam património de cada um e de todos. Por isso a imagem é aqui
fundamental, quer na divulgação, quer no próprio processo de patrimonialização ou, se
preferirmos, de interpretação científica, didática, estética e cultural. A montanha suaviza-se e
ganha cores de vida. A planície centra-se nas actividades humanas que proporciona ou no rio
que a constrói. A praia vê o dourado das areias brilhar mais contra o azul do céu ou o verde
do mar. A caverna ganha luz e mostra aos leigos, com medo do escuro e do desconhecido,
todo o brilho e esplendor das suas concreções.
A imagem, particularmente, a imagem fotográfica é, assim, um poderoso meio de
patrimonialização, o que cria ao fotógrafo uma responsabilidade acrescida. Não basta a
simples apreciação e interpretação estética das formas de relevo ou das feições geológicas.
As luzes, os contrastes, os ângulos, as aberturas, as distâncias focais servem um propósito,
que é o de elevar uma forma de relevo, um vestígio paleontológico ou um afloramento
rochoso com características particulares à categoria de geopatrimónio.
E o fotógrafo passa a ter preocupações de cientista, valorizando os aspectos mais raros,
mais singulares, mais expressivos ou cientificamente mais relevantes… Ou então o cientista,
geógrafo, geólogo ou arqueólogo, tem de se tornar fotógrafo, aprender a ser paciente como
ele, escolher ou esperar a luz certa, repetir ângulos, mudar de equipamento na busca da
fotografia certa, daquela cuja beleza seja capaz de suscitar as emoções suficientes à condição
patrimonial de um ente que, embora inanimado, marca condições de vida.
Estão hoje disponíveis, sob a forma física de livros, vídeos, coleções de “slides”, ou sob
a forma menos materializável de sítios ou páginas web, imagens que ilustram elementos
geopatrimoniais isolados, em conjunto ou integrados nos diferentes tipos de paisagens
culturais que justificam. Em áreas ambientalmente protegidas, em geoparques ou áreas de
lazer, estas imagens permitem dar a conhecer o geopatrimónio, valorizando os territórios que
dele são detentores e ajudando a criar estratégias de marketing com vista à sua utilização
geoturística, desportiva e de lazer.
Dois diferentes exemplos deste encontro entre geopatrimónio e imagem podem
ser analisadas, entre muitos outros, nos livros “Geomorfologia da Gardunha – Figuras e
formas graníticas da Serra da Gardunha”2 e “Património geológico – Geossítios a visitar em
Portugal”3.
No primeiro são as excelentes imagens de um fotógrafo profissional que servem a
promoção de um património geomorfológico, ligado à geomorfologia granítica de pormenor.
Como foi escrito no prefácio do livro “a magia do olhar do fotógrafo transforma as pedras
graníticas, cinzentas e frias em animais exóticos, em soldados, em cabeças e olhares de velhos
guardiões da serra, e até em ET’s ou em côdeas de broa”, ou seja a imagem encarrega-se de
descodificar o sentido dado pelas populações às formas de relevo granítico, às suas fendas
meteóricas, às bolas de erosão ou às pias, que serviram de pratos com que princesas antigas
matavam a fome aos seus súbditos.
O segundo trabalho é um trabalho de cientistas, em que as imagens, igualmente
excelentes, servem propósitos científicos específicos conforme o tipo de valorização geológica
ou geomorfológica que os autores do livro pretendem para cada elemento geopatrimonial.
Da imagem para a ciência ou da ciência para a imagem, parece não haver dúvida que no
caso específico de valorização de territórios com base no seu património natural abiótico, a
imagem, particularmente a imagem fotográfica, desempenha um papel central.
Pelo carácter holístico, a imagem fotográfica valoriza a articulação do geopatrimónio, e
particularmente, das formas de relevo com os seres humanos (pelo valor cénico, cultural e
religioso do relevo: montes; grutas; praias) e, sobretudo, pela sua fácil percepção estética
(espectacularidade; grandiosidade; beleza; diversidade), proporcionando uma maior aceitação

2 - António José da Conceição (2014) - Geomorfologia da Gardunha – Figuras e formas graníticas da Serra da
Gardunha. GEGA, São Vicente da Beira, 153 p.
3 - José Brilha e Paulo Pereira (2011) - Património geológico – geossítios a visitar em Portugal. Universidade do
Minho, Braga, 137 p.
Lúcio Cunha
123

do seu valor patrimonial pelo grande público e, mesmo, uma maior e melhor utilização em
termos geoturísticos. Por outro lado, a imagem fotográfica permite fazer uma análise multi-
escalar dos elementos geopatrimoniais, integrando características singulares e de pormenor,
num conjunto mais amplo, por vezes mesmo na paisagem que o envolve e determina.
Embora, por comodidade de análise, tenhamos de segmentar a realidade patrimonial, quase
sempre um geossítio de pormenor, uma área com valor geopatrimonial e, por maioria de
razão, uma paisagem cultural, valem, não por uma, mas por um complexo conjunto de
características que o definem (quanto menor a escala e o pormenor, maior a complexidade
de características). A geologia, a geomorfologia, a pedologia e a hidrografia criam um quadro
natural abiótico, cuja valorização patrimonial pode acontecer por si própria, mas que, em
regra, ganha melhores e mais rigorosos contornos quando lhe associamos a ocupação pela
vegetação, os vestígios da ocupação humana histórica ou pré-histórica e, mesmo, a ocupação
rural ou urbana actuais e que, se enquadram quase sempre nesse quadro natural abiótico.
As muitas fotografias das vertentes do Douro Vinhateiro, do Rio Mondego frente à cidade
de Coimbra ou do Vale das Buracas no Maciço de Sicó, são apenas alguns exemplos de como
uma paisagem se patrimonializa, como corresponde à articulação entre diferentes tipos de
património (geológico, geomorfológico, hidrológico, ecológico, histórico-arqueológico;
arquitectónico), à integração de escalas com elementos de distintos significados genéticos e
científicos, bem como à percepção pelos seres humanos do significado patrimonial de muitos
elementos da Terra que pisam e vivem todos os dias.
124
Valentín Cabero Diéguez
125

Imagen, memoria y lucha por la


inclusión de los territorios olvidados
Valentín Cabero Diéguez
Universidad de Salamanca

En el conocimiento de nuestros territorios se mantienen grandes vacíos y claroscuros,


cargados de visiones míticas y de ignorancia colectiva. En nuestra memoria cívica hubo un
larguísimo período de silencio y olvido acerca de comarcas y lugares que vivían en condiciones
paupérrimas y aisladas, muy lejos de la dignidad humana. Las carencias y dificultades de toda
índole se suplían de algún modo con esfuerzos ímprobos en el aprovechamiento de la tierra,
en la complementariedad de usos y oficios, en la ayuda mutua, o en la emigración temporal.
En los años de las autarquías económicas de las dictaduras peninsulares de Franco y Salazar,
los territorios olvidados nos muestran situaciones miserables e inaceptables, sobre todo en
las montañas y sierras más abruptas y aisladas; algunas, además, sufrieron la represión social
y política con la persecución de los “maquis”. Sus imágenes nos persiguen y nos emocionan.
Guardan en sus entrañas y paisajes muchos misterios y enseñanzas. Y encontramos allí
tesoros ambientales y culturales que nos apasionan y nos dejan sorprendidos.
Durante largo tiempo, particularmente en la primera mitad del siglo XX, los territorios
marginales y “de retraso” se identifican en España con la comarca extremeña de Las Hurdes,
en la que se reflejan y expresan todas las miserias y en gran medida la imagen de decadencia
y degeneración del país, con el “olvido absoluto del poder central”. En los hondones del
espacio peninsular, en los calcañales y fondos de saco de nuestras montañas y sierras, o en
los bordes y franjas fronterizas topamos con zonas y ejemplos cuyos rasgos básicos vienen
definidos por el aislamiento, el medio agreste, el analfabetismo, la endogamia, la economía
de subsistencia, el caciquismo, o la ausencia de servicios, “sin escuelas, sin médicos, sin
caminos…”. Los informes y crónicas que nos dejaron las Misiones Pedagógicas en los años
de II República son elocuentes y demoledores cuando describen la marginación y la pobreza
existente en los medios rurales más profundos, situaciones que se mantienen hasta bien
avanzados los años sesenta del siglo pasado. Pronto, la emigración y el éxodo los dejará
rotos, estrangulados, despoblados, vacíos y abandonados.
Algunos testimonios de viajeros e intelectuales comprometidos con los problemas de
nuestros países y con el devenir de estos lugares, nos lo recuerdan con indudable valor literario
y social, dejándonos imágenes que se convierten en verdaderos documentos geográficos.
Citaré tan solo a las tierras y gentes que nos presenta Juan Goytisolo en Campos de Níjar
(1959); a los pueblos perdidos e historias que nos descubre Ramón Carnicer en Donde Las
Hurdes se llaman Cabrera (1964); y ya más cerca de nuestras observaciones personales, a la
realidad tan precaria que nos muestran Antonio Pintado y Eduardo Barrenechea en La Raya
de Portugal: la frontera del subdesarrollo (1972). Mucho antes, ya en 1919, con espíritu
republicano y regeneracionista, el escritor portugués Aquilino Ribeiro nos dejó en las páginas
de su obra Terras Do Demo un retrato del mundo rural beirão más arrinconado por donde
“no pasaron ni Cristo ni el Rey”. Luego pasaría Saramago en su Viaje a Portugal (1980). En
palabras de Eduardo Lourenço (1985), “este filho da minha serra” nos recuerda en “esa
aldea-memoria” el mundo “primitivo e bárbaro, al margem do civilização”. En los abruptos
roquedos graníticos junto al río Coa, ya encajado, este calcañal del interior portugués e
ibérico en el que se encuentra la aldea de Cidadelhe (Barrio de Arriba y Barrio de Abajo)
se acerca ahora al mundo urbano y contemplamos con nuevos ojos las imágenes de los
territorios olvidados y los paisajes increíbles de Faia Brava a orillas del río.
Se cumplen este 2016, los veinticinco años de la creación de numerosos grupos de
acción local que nacen al amparo de las políticas públicas impulsadas desde la Unión Europea
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
126

como complemento a la gestión de los Fondos Estructurales y a la PAC, desvirtuada en sus


objetivos por rentistas y especuladores o agricultores de sofá. Vinculados principalmente
a iniciativas como el LEADER, han atenuado con sus acciones los efectos desgarradores del
abandono del medio rural y de las comarcas más deprimidas, luchando por su inclusión e
integración en los respectivos contextos regionales. Una tarea compleja y difícil llena de luces
y sombras. Las Escuelas Taller habían iniciado, en España, a mediados de los ochenta, una
apuesta valiente por la recuperación de las buenas prácticas artesanales y de las herencias
patrimoniales en algunos centros rurales representativos, logrando la incorporación de
algunos jóvenes al tejido social y económico y una mayor sensibilidad cívica y cultural hacia
el patrimonio y el medio ambiente. La labor de unos y otros merece nuestro reconocimiento,
tanto por la defensa de imágenes bien integradas en las vidas locales, como por la lucha en
la cohesión social y la dignidad de sus gentes, recobrando retazos de la memoria colectiva,
ya completamente rota.
Y ahora descubrimos los paraísos perdidos. Asistimos a un cambio de valores y a una
actitud positiva hacia el mundo rural. La crisis ha incorporado algunas circunstancias favorables
para un mayor acercamiento y proximidad entre el campo y la ciudad. Cuando estas virtudes
y procesos neorrurales llegan a los rincones olvidados del territorio renace cierta esperanza
sobre el futuro de estos lugares, aunque corremos el riesgo de una adulteración insensata
de sus identidades culturales, o lo que es más delicado, la voraz apropiación por las nuevas
oligarquías urbanas y financieras de su plusvalías territoriales y patrimoniales, privatizando así
los bienes comunes y configurando verdaderos cotos redondos. Nuevas ruralidades se están
construyendo en nuestros países, y sigue la lucha para que los territorios excluidos recuperen
sensatamente su dignidad y su protagonismo activo en un medio rural vivo.
127

Geografia e Poética do Olhar


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
128
Rui Jacinto
129

Alfredo Fernandes Martins,


poeta do olhar
Rui Jacinto

“Queda triste, mais bela, aonde historia


Mostra quanto é justa e a vós devida 
No mundo a fama e lá nos céus a gloria.” 
(Miguel de Cervantes, Dom Quixote de la Mancha)

Uma Utópica Viagem pelos Mares do Sonho1. Coube-me intervir na conferência com
que se inicia o encerramento das diversas iniciativas concretizadas através do Projecto Cidade
e Território - Coimbra, o País e o Mundo, com que a Geografia de Coimbra se associou aos
eventos realizados no âmbito de Coimbra Capital Nacional da Cultura. 
Pensando em Coimbra, em Geografia e na dimensão cultural que delas emana, logo se
nos impõe o nome incontornável do Professor Alfredo Fernandes Martins. Professor desta
Universidade, Mestre e pioneiro da Geografia portuguesa, alia a sua estatura cívica à de
cidadão de Coimbra, que estudou minuciosamente e com quem estabeleceu uma relação
íntima e cúmplice, reflexo da perfeita comunhão entre o cidadão e a sua cidade. Se outros
motivos não existissem, estas seriam razões de sobra para que o seu nome ficasse associado
a uma realização com que se pretendeu reabilitar a depauperada auto-estima coimbrã.
Vivemos momentos em que a memória é tão leve e tão breve que não é só a erosão do
tempo que remete para as margens do esquecimento e da indiferença alguns dos nossos
melhores. Perante tais circunstâncias, não podia a nossa geração deixar passar em claro a
oportunidade de saldar uma dívida de gratidão para com o nosso Professor e admirado
Mestre Alfredo Fernandes Martins.  Com esta singela homenagem pretende-se lembrar,
tão só, as admiráveis lições frente ao quadro preto, enquanto, vagamente contemplava o
horizonte que se abatia sobre os campos do Mondego, como o gratificante convívio mantido
no corredor, no bar da Faculdade ou no Arcádia.
A todos tocou com a elegância e eloquência do verbo quando, calcorreando quadros
naturais e humanos impressivos e singulares, ia fazendo, nos sítios próprios, descrições ímpares
das deslumbrantes paisagens que compõem o nosso diversificado mosaico regional. A Beira
Baixa e o Maciço Calcário assim se impuseram como lugares de memória e de culto para a
Geografia de Coimbra, cenários a que tamanha ausência confere uma certa religiosidade,
onde se regressa com a saudade dos inolvidáveis momentos aí partilhados.
Ao lembrarmos o Professor Alfredo Fernandes Martins, da forma que melhor podem
e sabem, estes seus discípulos apenas pretendem testemunhar ensinamentos subtilmente
transmitidos pelo Mestre: na ciência como na vida, humildade, rigor e memória só são
verdadeiros quando conjugamos razão com emoção. Não reunindo arte suficiente para
discorrer com a necessária desenvoltura sobre uma personalidade tão rica, complexa e
controversa, caberá aos convidados destacar com mais propriedade os méritos e as diferentes
facetas do Professor Alfredo Fernandes Martins.
Agradecemos contributos tão qualificados que não desmerecerão o homenageado.  À
Paula Fernandes Martins queremos expressar, igualmente, o nosso reconhecido agra-
decimento pelo qualificado e pertinente aconselhamento, a disponibilidade em ceder o
material indispensável para a realização da exposição e do catálogo a lançar a 6 de Março, a
paciência em nos acompanhar durante estes meses de pesquisa.

1 Apontamento elaborado para a Sessão de Abertura da Exposição e do lançamento da Fotobiografia “Alfredo


Fernandes Martins: geógrafo de Coimbra, cidadão do mundo” (Coimbra, 2006).
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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Os elementos coligidos permitiram-nos compreender melhor uma personalidade invulgar,


cujos contornos transcendem a imagem que fomos construindo do Professor Alfredo
Fernandes Martins ou que dele nos foram esboçando. Como um rio que tem o mar por
destino, o percurso da sua vida desenha uma geografia íntima marcada por determinação e
rebeldia, facetas enxertadas num sonhador dotado de prodigiosa imaginação, estimuladas
pelo ambiente familiar, pelos testemunhos do pai e do tio. Com os dotes pessoais que lhe
são reconhecidos, o Professor Alfredo Fernandes Martins inicia uma vivência académica
onde convive com uma geração de eleição, comprometida com a sociedade e o seu tempo,
companheiros de estrada e da vida. Idealista, homem de convicções, cidadão empenhado,
activista cívico, o Professor Alfredo Fernandes Martins apelida-se de resistente, para quem “A
conquista do pão”, tal como para Kropotkine, muito tinha de utópico, que de “tão utopistas
que levamos a nossa utopia até crer que a revolução deverá e poderá garantir a todos o
alojamento, o vestuário e o pão, o que desagrada enormemente aos burgueses vermelhos e
azuis, - porque sabem perfeitamente que um povo saciado é muito difícil de subjugar”.
Esteta e homem de cultura, cultivando com mestria a escrita e a palavra, o Professor
Alfredo Fernandes Martins foi um comunicador nato que não abdicou da imagem, do
desenho e da fotografia, como arte e meio de comunicar, usando-as pedagogicamente ou
nas íntimas trocas de correspondência. A sua brilhante imaginação e sólido travejamento
cultural animaram tertúlias, transformam cafés em espaços de liberdade, de cidadania e de
solidariedade.
A ténue fronteira entre o real e o imaginário é ainda mais difícil de delimitar quando
pensamos no Professor Alfredo Fernandes Martins, de saber onde começa o aventureiro e
acaba o geógrafo, onde começa o geógrafo e termina o explorador, se estamos perante um
Geógrafo de Coimbra que, na ambição de ser universal, aspira a cidadão do Mundo, do cidadão
de Coimbra que, fazendo geografia, acaba Geógrafo de um Mundo, onde, atentamente,
observa as mudanças e as novas qualidades que este assume a cada momento.
Há detalhes que têm o privilégio de revelar traços particulares da nossa identidade, de
pôr em evidência o que ocultamos no recôndito universo da nossa intimidade. Observando
a evolução do simples ex-libris do Professor Alfredo Fernandes Martins, arte que igualmente
cultivou, deparamos com variações em torno de uma paixão: os barcos e tudo que envolve o
mar transformam-se em bandeira, emblema e legenda duma vida. 
A imagem viril do vaso de guerra que ilustrava o ex-libris adoptado na adolescência (Quo
Vadis, foi o lema adoptado na altura), cedeu à sobriedade do barco de vela harmoniosamente
enfunada, a remeter-nos para a serena pacatez da barca serrana do seu mitificado Mondego.
Mar e barcos permanecem quando encontra o Rumo Certo, legenda do seu ex-libris, após a
atribulada opção pela Geografia, reencontrando as coordenadas que balizarão um destino e
passarão a pautar um percurso académico pleno de sucesso. 
As viagens, o mar e os mitos que povoam de mistério os oceanos, evocam o desconhecido,
apelam à evasão e à aventura. Não será por acaso que boa parte dos livros eternos glosam
míticas e fantasiosas viagens, da Odisseia a Dom Quixote - aqui referido com propriedade -
ou aos Lusíadas, a saga marítima protagonizada pelos nossos marinheiros, fixada em mapa
pelo Professor Alfredo Fernandes Martins, perpetuado na reprodução mural que continua
exposta na entrada do Portugal dos Pequenitos.
Profundo conhecedor daqueles clássicos e munido de uma sólida formação literária, o
Professor Alfredo Fernandes Martins legou-nos belas e poéticas páginas sobre viagens e
exploradores, heróis romanticamente evocados. Sem falarmos no magistral relato do encontro
com aquele humilde peregrino, na estrada de Santiago, durante a incursão que fez pela Galiza,
recordamos a saga dos pioneiros das viagens polares antárcticas, de Scott, o mártir do Polo
Sul, de Marcel Loubens, espeleólogo que tombou na exploração das profundezas austeras
do abismo calcário. Sem abdicar da razão que coloca nas suas investigações geográficas, o
Professor Alfredo Fernandes Martins entrega-se a esta disciplina com paixão. Geógrafo “é
um cientista que sabe onde ficam os mares, os rios, as cidades. As montanhas, os desertos”,
escreveu Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho: “É bem bonito, o seu planeta. Há cá
mares? (...) - Não faço ideia – respondeu o geógrafo./ - Mas o senhor é geógrafo! / - Pois sou
– disse o geógrafo – mas não sou explorador. Tenho uma falta absoluta de exploradores.” 
Perante a falta crónica de exploradores e a visão dominante da profissão que abraçou,
não admira que, simbolicamente, o Professor Alfredo Fernandes Martins, fosse um voluntário
Rui Jacinto
131

para a nobre missão de demandar mundos e mares nunca dantes navegados, embarcar em
viagens imaginárias como aquela Viagem nunca feita por Fernando Pessoa: “foi por um
crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz. (…) O mar, recordo-
me, tinha tonalidades de sombra, de mistura com fugas ondeadas de vaga luz – e era tudo
misterioso como uma ideia triste numa hora de alegria, profético não sei de quê.
Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca
lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de
portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas
de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais. Julgais, sem dúvida, ao ler-me,
que as minhas palavras são absurdas. É que nunca viajastes como eu” (Fernando Pessoa
– Livro do Desassossego – 2ª parte). Porque o real e o imaginário estão tão próximos que,
por vezes, se confundem, “A melancolia do geógrafo” é um sentimento tão comum a este
tipo de personagem extraviado como à generalidade dos poetas e sonhadores, o que levou
Brigitte Paulino-Neto a reconhecer que o geógrafo “É o que não receia reconhecer que está
desorientado, o que confessa a sua predisposição para partir sem se deslocar, para evadir-se
sem ir a nenhum lugar, para dizer que, sem nunca sair do mesmo sítio, está perdido, para
declarar que precisa de pontos de referência.”
“Creio que não devemos renunciar à palavra “Oriente”, uma palavra tão bonita, visto
que nela, por feliz casualidade está o ouro” como refere Jorge Luis Borges (Obras Completas,
Circulo de Leitores, vol. III: 243). Qual Fernão Mendes Pinto, peregrinando por locais e destinos
exóticos, também o Professor Alfredo Fernandes Martins é animado pelo desejo de evasão
que o leva, mesmo que platonicamente, em demanda do Oriente e dos Mares do Sul. Na
hora do regresso, como quando ao terminar a sua viagem à Galiza se nos dirige, recordamos:
“Lembrei-me de vós, lembrei-me do velho peregrino, lembrei-me de mim. E no fluir de íntimo
diálogo, recordei certas páginas de Ernest Hemingway, alguns passos da obra de Antoine
de Saint-Exupery... E de novo a minha lembrança voltou para vós, voltou para todos nós – e
considerei que, para além de quanto nos separaria, estava o elo comum da nossa condição
humana. Isso nos dava fraternidade – e, na tarde de bruma, fraternalmente desejei que cada
um de nós saiba cumprir bem o seu destino”.

“nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto
sem peixes. Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e
alegres e não vencidos. (…) o velho sempre pensava no mar como feminino, como algo
que entrega ou recusa favores supremos, e, se tresvariava ou fazia maldades era porque
não podia deixar de as fazer. A lua influi no mar como as mulheres, pensava ele.”

(Ernest Hemingway, O velho e o mar)

Um certo modo de olhar e imaginar mundo. O Professor Alfredo Fernandes Martins é


um dos nomes incontornáveis da geografia portuguesa do seculo XX e o que melhor exprime
a relação secular, íntima e ambivalente, que a Universidade de Coimbra continua a manter
com a sua cidade. O apontamento que se segue não tem a pretensão de apreciar a sua obra
científica, suficientemente analisada, com mais propriedade, em outros momentos e diferentes
propósitos 2, mas extrair a preocupação estética que reside nos trabalhos conhecidos, onde
transparece uma apurada sensibilidade artística, mesmo nos mais estritamente académicos,
de geografia pura e dura, como são os de geografia física. Contudo, não podemos perder
de vista o âmbito global da sua obra, respaldo fundamental para contextualizar o olhar desta
abordagem, que se centra nas artes que cultivou com desenvoltura, sob diferentes formas,
onde relevam duas modalidades particularmente queridas ao Professor Alfredo Fernandes
Martins: a palavra e a imagem.

2 - Fernando Rebelo (2008) – A geografia física de Portugal na vida e obra de quatro professores universitários:
Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins, Pereira de Oliveira. Minerva, Coimbra. António Campar de
Almeida, António Gama, Fernanda Delgado Cravidão, Lúcio Cunha, Paula Fernandes Martins e Rui Jacinto (2006)
- Alfredo Fernandes Martins: geógrafo de Coimbra, cidadão do mundo. IEG, Coimbra.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
132

São sempre lembrados os dotes oratórios de Alfredo Fernandes Martins pelas aulas e
pelas intervenções públicas, que se prolongavam pela palavra escrita, sofisticada e criativa,
como testemunham os textos publicados. À dimensão literária temos de juntar a imagem,
sobretudo o desenho, a cartografia e a fotografia, valências que colocou ao serviço da
Geografia, onde explorou a vertente estética, sobretudo quando observava as paisagens
durante as viagens ou o trabalho de campo, captando a faceta mais poética que a geografia
sempre encerra. Quando se olha para o conjunto da sua produção fica a sensação que o
seu labor nunca se confinou à estrita abordagem científica, assumindo a relação tensa que a
geografia continua a manter com a arte, como se, desta maneira, procurasse encontrar um
sentido para a vida, quiçá, uma poética para a geografia.
A obra de Alfredo Fernandes Martins tem latente potencialidades que nos remetem para
uma “cartografia afectiva de uma rota cujos locais têm rosto de gente e onde espaço e
tempo são as coordenadas que mais mentem” (Pedro Rosa Mendes, A Baia dos Tigres).
No ano em que se comemora o Centenário do seu nascimento propomos revisitar o seu
percurso criativo com o único propósito de retirar das brumas da memória um eminente
Professor, enfatizando as qualidades estéticas e artísticas que se escondem na sua obra.
Espirito irreverente e inquieto, tinha um modo próprio de estar, olhar e imaginar mundo,
confluindo neste perfil multifacetado o Geógrafo, o Professor, o Cidadão comprometido e o
Homem de Cultura.

. O Geógrafo. Aos 19 anos Alfredo Fernandes Martins abandona o curso de Medicina,


depois de ter feito os respetivos estudos preparatórios, para abraçar a Geografia, quando esta
ciência ainda era em termos universitários bastante discreta e quase invisível. Iniciou, então,
um brilhante percurso académico marcado pelas teses de licenciatura e de doutoramento, que
defendeu em 1940 e 1949, respetivamente, “O esforço do Homem na Bacia do Mondego”
e “O Maciço Calcário Estremenho: contributo para um estudo de geografia física”. Além de
marcos cimeiros da história da geografia portuguesa, estes trabalhos continuam a ser obras
de referência para quantos pretendam conhecer tais territórios para além das aparências. O
Professor Alfredo Fernandes Martins era, no início dos anos 50, um geógrafo consagrado
que tinha alcançado, por mérito próprio, um lugar cimeiro na Geografia portuguesa.

. O Professor. O estatuto de Mestre era unanimente reconhecido ao Professor Alfredo


Fernandes Martins. Acutilante e bem informado, com um profundo conhecimento científico
e uma invulgar capacidade de comunicação, ministrava aulas eloquentes que o destacaram
como um professor especial. Orador nato, tinha gosto pela arte de representar, dava aulas
que pareceriam encenadas, recorria a silêncios e a tempos de espera, como fazem os bons
declamadores, para vincar a mensagem e aumentar o suspense. Em sala comportava-se como
quem pisa um palco, colocando as qualidades de perfomer, o invulgar dom de palavra e de
desenhador exímio ao serviço dum método expositivo que conjugava a palavra e a imagem
como ferramentas fundamentais duma estratégia pedagógica eficaz.
As aulas começavam com um ritual: durante breves momentos passeava entre a porta
e a janela, na Sala de Cartas e Relevos, batendo o cigarro sem filtro no isqueiro prateado,
um Zippo, sem nunca o acender, contemplando a paisagem como se buscasse inspiração na
nesga do Mondego que se perdia no horizonte. Como nos livros policiais, as aulas obedeciam
a um enredo em que só no final era desvendado o mistério e encontrada a resposta para
o problema colocado. Este método de ensinar era explorado, paradigmaticamente, na
explicação dos Inselbergs, essas formas de relevo, singulares e espectaculares, que havia
estudado em Nampula e que ilustrava a partir do exemplo de Monsanto (Beira Baixa).
Levantava várias hipoteses possíveis que ia eliminando, progressivamente, até concluir que
estávamos perante um tipo de relevo residual, talhado no granito, por erosão diferencial, sem
intervenção tectónica, formado em condições climática particulares, numa conjuntura mais
quente e húmida.
Os corredores e o bar da Faculdade, ou algum café da cidade, podiam prolongar uma
docência que não se confinava á sala de aula. Durante as aulas de campo democratizava este
tipo de intervenção pedagógica mais informal, que atingia a sua plenitude nas viagens de
estudo, de que ainda guardo gratas recordações, como as visitas orientadas pelo Professor
Alfredo Fernandes Martins ao Maciço Calcário (1974) e à Beira Baixa (1975).
Rui Jacinto
133

. O cidadão. A memória que permanece do Professor Alfredo Fernandes Martins é a


do cidadão empenhado, cúmplice de amigos e camaradas, fiel a valores e princípios que
defendia com galhardia. Tive o privilégio de testemunhar, após ter concluído a licenciatura,
em 1977, numa fase já tardia da sua vida, o comprometimento cívico e o exercício duma
cidadania plena que abraçou prematuramente. Durante dois anos, privei quase diariamente
numa solitária tertúlia, de fim de tarde, que teimava em manter no Café Arcádia, onde vivi
momento únicos e irrepetíveis. Ao sabor do momento dissertava sobre a conjuntura social,
política, económica, desportiva e cultural ou discorria sobre geografia política e geoestratégia
global, temas que lhe eram particularmente caros, como comentava a paisagem humana
que circulava na Rua Ferreira Borges ou havia estacionado no café.
Abraçou precocemente as causas progressistas, por influência familiar, do pai e do tio,
expressando estes ideais ainda estudante: caloiro, com 18 anos, na Queima das Fitas de
1934, integrou um carro designado “A conferência de Paz em Genebra”, enquanto no
desfile de quartanista, em 1938, numa altura em que já pairavam nuvens negras sobre a
Europa e o Mundo, seguiu no carro “O mundo caminha para a Paz”. O seu imaginário
sociopolítico ficou igualmente expresso, de maneira discreta mas firme, nos agradecimentos
com que abre as teses que editou na década de 40, que dedica aos estratos sociais mais
humildes que encontrou durante o trabalho de campo, nas áreas de estudo, respetivamente,
os pescadores de Buarcos e os pastores do Maciço Calcário Estremenho: “Aos que labutam
na bacia do Mondego e a ti, meu Amigo, humilde pescador de Buarcos, morto no Mar”; “e
a todos os anónimos, pastores e agricultores, que, no campo – e depois do sacramental: Dirá
que me importa? O senhor anda a descobrir água? -, me forneceram de bom grado uma
informação”.
O médico Fernando Vale, correligionário de seu pai, concedeu-nos em Coja, onde me
desloquei com António Gama Mendes, em Agosto de 2005, um testemunho eloquente
sobre os Fernandes Martins, pai e filho. A pertinência memorialista do testemunho sobre
estas personalidades, únicas na paisagem coimbrã, duma determinada época, justifica uma
transcrição mais longa do retrato que nos traçou: “Conheci Fernandes Martins, o Fred, o
homem da Legião Francesa, da aventura. Um homem muito curioso. O pai também conheci
muito bem, homem muito conhecido em Coimbra. Sempre ligado às coisas do momento
e da época, andou metido em guerrilhas; estou a vê-lo, em Coimbra, com uma Mauser às
costas. Era um bom orador, um orador nato. Um homem com grande vivência e simpático,
um académico no bom sentido da palavra. O seu envolvimento foi sempre empenhado, era
um esquerdista. Penso que seria incapaz de dar um tiro. Mas era um orador brilhante. Nos
tribunais ou em qualquer circunstância. Quando morreu o Granjo houve pessoas de Coimbra
que acompanharam o funeral até Chaves, fez um excelente discurso com todos em silêncio
e, no fim, até lhe bateram palmas. 
O filho também era bom orador, com merecimento, brilhante. Cheguei a conviver
com ele no Arcádia, mas mais com o pai que era da minha idade. O Fred era um
aventureiro. Um homem muito inteligente, com grande facilidade de expressão. Tinha
uma tertúlia ali no Arcádia. De vez em quando também gostava de umas pândegas. 
Usava uma boina basca, uma certa reminiscência anarquista. Era um homem das esquerdas.
O François Miterrand quando veio a Coimbra até foi a casa dele. É uma cena muito curiosa.
Estávamos no restaurante do Jardim da Manga e a certa altura o Miterrand diz que precisava
de descansar. O Fernandes Martins ofereceu logo a casa. O Miterrand aceitou e foi descansar
para casa do Fred. Apareceu passado um bocado meio esbaforido, espantado: aquele homem
é doido, meteu-me num quarto, uma pistola em cada mesinha de cabeceira, um cão enorme
á porta, dizendo: esteja à vontade, aqui ninguém entra, está em segurança.”

. O homem de cultura. O retrato que chegou até nós, por várias vias, foi o de um idealista
romântico, com alma de poeta, norteado por nobres ideais, como nos deu a conhecer a pena
de Vergílio Ferreira, com quem privou em Coimbra. Na hora da despedida, o grupo a que
pertenciam, realizou um jantar no restaurante Flecha, já desaparecido, da Rua da Sofia, onde
Alfredo Fernandes Martins escreveu a seguinte dedicatória, fraterna, onde o idealista revela
um fino recorte literário: «Vergílio! Nunca se encontram tarde os homens de boa-vontade,
nunca deixou de amanhecer para os poetas, e há sempre um juvenil lirismo nos homens de
boa-vontade que marcham para a luta empolgados por um nobre ideal. Seremos pioneiros!
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
134

Que os nossos corações subam alto, que as nossas mãos se dêem» (Conta–Corrente III,
1983).
Viveu intensamente o seu tempo, comprometido com os grupos politico-culturais de
vanguarda e mantendo um convívio íntimo com personalidades representativas do panorama
cultural. As diferentes tertúlias que frequentava organizavam-se consoante as causas e os
cafés onde se reuniam, pois não era indiferente ir ao Montanha, ao Arcádia, à Brasileira
ou à Central. Está documentado fotograficamente que frequentava a casa de João José
Cochofel, hoje Casa da Escrita, onde foi concebido o Novo Cancioneiro, pilar estruturante do
designado neo-realismo. A intimidade estabelecida neste convívio havia de levar Fernando
Namora, uns anos mais novo, quando ainda vacilava entre a pintura e a escrita, a fazer a
caricatura de Alfredo Fernandes Martins, para o livro de curso. Este desenho, que não havia
de figurar na referida publicação, dedicou o futuro escritor “ao Fred com um abraço de
amizade e admiração”, assinalando as paixões científicas do seu amigo na lombada de três
livros que esquiçou: Geografia Matemática, Geografia Física e Geografia Humana.
Na linha deste diálogo intelectual, depreende-se a cumplicidade com Miguel Torga, numa
passagem do seu Diário (Coimbra, 2 de Março de 1943), onde discorre sobre o sentido e
o significado da geografia, ao referir que “já por várias vezes tentei interessar um geógrafo
meu amigo numa ideia velha que trago encasquetada, mas não há maneira. Defende-se dela
como de um perigo iminente. A coisa parece paradoxal à primeira vista e, talvez por isso, é
difícil convencê-lo da lisura do meu pensamento, e levá-lo a aproveitar a sugestão, que se me
afigura curiosa. Trata-se do seguinte: Até aqui, para os herdeiros de Estrabão, o humano, em
relação ao meio, ou é vítima ou algoz. Explicam-se os sentimentos e as estaturas pelas nuvens
e pelas águas de regadio, ou então ensina-se à posteridade que foi um tiro de dinamite que
estragou o perfil de certa fraga. Ora eu sugeria o alargamento desse critério estreito, e que se
fizesse do homem um dos elementos fundamentais da geografia. Que no processo científico
de qualquer troço do mundo figurasse o habitante do sítio, considerado já como factor em
meu fraco entender, uma contribuição substancial para melhor compreensão da sua íntima
realidade. (…) O meu amigo geógrafo argumenta-me com razões de método, chama a isto
uma ideia poética, e fala no sarilho científico que seria semelhante geografia psicológica.
Diante de tais argumentos, calo-me, vencido mas não convencido.” O interlocutor, claro, só
podia ser Alfredo Fernandes Martins.

“Os olhos são cegos, é preciso buscar com o coração.”

(Antoine Saint-Exupéry, Principezinho)

As artes do geógrafo: a palavra e a imagem. A influência e o significado do


Professor Alfredo Fernandes Martins não se esgota nem pode reduzir, unicamente, ao seu
labor pedagógico e científico, nem à sua intervenção ao nível do ensino, da investigação e
da divulgação da Geografia. A releitura do conjunto dos seus trabalhos mostra que o seu
legado é mais amplo, existindo domínios que ainda não foram suficientemente explorados
e valorizados, onde se destacam a palavra escrita, que esconde um verdadeiro escritor, ou a
imagem, nas várias modalidades que cultivou, que revelam o apurado sentido estético de um
verdadeiro artista.
Nas aulas e em inúmeras intervenções públicas, cívicas, artísticas e cientificas, provou
possuir dotes que o aproximavam das artes do palco, capítulo onde se limitou a ser sócio
do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC), sócio extraordinário nº
10, conforme cartão assinado por Rui Vilar, então estudante e a presidir a este núcleo da
AAC. Pisou territórios de várias artes, da imagética à da palavra escrita, abundantemente
testemunhadas na sua obra científica, sendo a dimensão literária mais evidentes em alguns
materiais dispersos, publicados e não publicados, que foi possível consultar. Todos estes
modos de expressão estão carregados de tão forte geograficidade que ficamos na dúvida se
foi o olhar do geógrafo que o levou a trilhar os territórios da arte, ou a sua alma de artista,
dotado duma sensibilidade particular, que o colocou em demanda duma poética que desse
sentido ou preenchesse o vazio deixado por eventuais insuficiências da Geografia.
Rui Jacinto
135

A relação entre geografia e arte já fez correu muita tinta, preocupação que entre nós,
embora sem uma consistente elaboração teórica, começou a ser formulada por Amorim
Girão. Em algumas passagens da sua obra, este autor fez notar a importância e utilidade
da Geografia explorar o relacionamento com o desenho, a fotografia e a literatura, para
não falar com a cartografia, cujo convívio remonta às origens mais remotas. No prefácio
à 1ª edição da Geografia de Portugal (1940) escreveu, a este propósito, sobre a vantagem
de “uma profusa documentação gráfica e fotográfica (as figuras também falam na sua
linguagem internacional)”, referindo que “pela selecção e pela variedade dos mapas, dos
esboços e das fotografias, procuramos falar tanto aos olhos como à inteligência. A ilustração
por fotografias aéreas, já hoje indispensável em trabalhos desta natureza, foi uma das nossas
maiores preocupações”.
Na senda do trabalho pioneiro de Barros Gomes e das suas Cartas Elementares (1886), fez
um forte investimento na cartografia, coordenando a elaboração de mapas, com fins didáticos,
que haviam de ser compilados e originar o primeiro Atlas de Portugal (1940; 2ª ed. 1958),
que publicou por altura da comemoração do V Centenário da morte do Infante D. Henrique.
A relação entre a literatura e a geografia foi equacionada nestes termos: “acusam-se muitas
vezes os geógrafos de literatos, querendo significar que eles desprezam todo o contacto com
a realidade, vivendo no domínio da pura fantasia. Fala-se de “literatura geográfica” quase
sempre com intuitos de maldizer; e, deturpando muito embora a expressão, também se terá
falado de “geografia literária” mais ou menos no mesmo sentido”. Reconhece, no entanto,
que “nenhum geógrafo evocou melhor as estepes russas do que Tolstoi, nem a região cheia
de sol da Provença teve melhor intérprete que Mistral, nem as áridas planícies manchegas
mais genial paisagista que Cervantes (Girão, 1952: 105-106).
Amorim Girão, embora reconheça a importância destes modos de expressão para a
Geografia, não explicitou o potencial artístico desta cumplicidade. Alfredo Fernandes Martins
foi mais além, não se limitou a contemplar ou ser um admirador passivo destas artes, pois
cultivou-as por gosto pessoal ou para ilustrar os seus escritos e ensaios. Além da literatura,
os desenhos, mapas, fotografias e, mesmo, os filmes que realizou, aproximaram-no das artes
visuais, evidenciando a importância e o papel que lhes atribuía enquanto meios eficazes de
divulgação e instrumentos úteis à formação duma efetiva cultura territorial. No ano em que
se comemora o Centenário do nascimento do Professor Alfredo Fernandes Martins, este
ensaio tem por objetivo divulgar o seu engenho em diferentes artes, da literatura, desenho
e cartografia à fotografia, onde deu largas à sua imaginação fértil espraiando o seu talento
e qualidades de esteta na incessante procura duma Geografia poética ou, se preferirmos, na
demanda duma poética para a Geografia.

. Literatura geográfica: viagem, aventura, ficção. Importa acrescentar às palavras


ditas a palavra escrita, onde se exibe como um exímio artífice do verbo, sobretudo em alguns
dispersos ou inéditos de cariz mais literário. Esta qualidade do Professor Alfredo Fernandes
Martins é quase sempre aferida a partir das obras de pendor científico que publicou, como as
teses e artigos onde revela recursos e atributos suficientes para ser considerado um escritor
qualificado. Destacam-se os escritos que dedicou a Coimbra e ao Baixo Mondego, onde deixa
transparecer laivos duma beleza poéticos a começar no enunciado dos respetivos títulos:
“Esta Coimbra...” (1951), “A Porta do Sol” (1952), “O Drama da Planície” (1950) ou “Em
prol dos campos do Mondego” (1953).
A verdadeira geografia literária que emana destas páginas evolui para uma literatura
geográfica que está patente nos textos que escreveu com pulso mais livre, publicados em
diversos jornais, que constituem um conjunto de dispersos esquecidos e ocultos. Os nove
textos que serão dados à estampa abrem a janela para o potencial duma obra de fôlego,
que ficou incompleta, onde se revela um escritor com talento criativo, dotado de imaginação
prodigiosa, um apaixonado pela aventura e pela viagem que colhia nelas a matéria-prima
para a ficção. A viagem, a aventura e as expedições, próprias e alheias, reais e virtuais, servem
de fio condutor a esta breve antologia onde se resgatam do fundo da memória relatos
emocionados de audaciosas jornadas empreendidas pelo homem.
Começa a colaborar no Jornal da Figueira (1938), na seção “Crónica mensal das artes,
ciência, literatura e crítica”, aos 22 anos, onde publica duas crónicas que intitulou “Viagens
polares antárticas”, com o objetivo de “fomentar o gosto do grande publico por questões
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
136

gerais de interesse comum”, apesar de considerar que “andam ligadas responsabilidades


muito grandes” ao “termo de divulgação”. Estas crónicas que deviam contar a saga das
explorações polares acabariam por ser interrompidas porque, como anotou numa cópia, “o
jornal foi suspenso por ordem do Governo” e “perdeu-se o original”.
No Via Latina, Órgão da Associação Académica de Coimbra, publica em 1941, “Uma
página de história da geografia. Scott, o mártir do Pólo Sul”. Escreve para o Diário de Coimbra
dois textos onde relata a tragédia do espeleólogo Marcel Loubens (“Quando se morre
na pista”, 1952), a que se seguiu a saga da luta centenária dos holandeses contra o mar
(“Luctor et emergo - Eu luto e nasço”, 1953). Publicou ainda neste jornal (Diário de Coimbra,
1953), três crónicas duma viagem que fez com o pai à Galiza, a que atribuiu sugestivos e
poéticos títulos, respetivamente, Vesperal nas rias, Nocturno compostelano e Pormenor de
retábulo, posteriormente editados no opúsculo Tríptico Galego. Alfredo Fernandes Martins
antecipou-se a Bruce Chatwin e à poética que trouxe à literatura de viagem, como prova este
fragmento: “A tarde vai morrendo. Os raios do sol-poente franjam as nuvens de púrpura e
ouro, arrancam das águas cambiantes de esmeralda, azul e prata, tornam mais profundos os
reflexos sombrios das massas de arvoredos. E sob a carícia da luz maravilhosa do entardecer,
a beleza dos panoramas ganha maior prestígio; desabrocha tão espontânea da natureza e
das obras dos homens, é tanta e tamanha que chega a parecer de magia e sonho, quase
irreal por tão prodigiosamente bela.”
Situados na ténue fronteira entre a literatura de viagens e a ficção científica, qualquer
destes textos poderia figurar numa antologia dos melhores livros de aventuras. O nosso
autor terá chegado à Geografia por estar possuído duma paixão incontida pela viagem e
pela aventura, ideal romântico que fazia dele um marinheiro e um explorador que teve de se
render a um penoso sedentarismo. Recorria, contudo, a uma imaginação prodigiosa para se
libertar desta condição e fazer viagens imaginárias que o levavam, a ele e a nós, para além
dos Mares do Sul e das suas exóticas paisagens. Porque Chatwin ainda não tinha inventado a
Patagónia, contava entre os seus companheiros de jornada Júlio Verne, Sindbad o marinheiro,
Somerset Maugham, além das presenças constantes de Antoine Saint-Exupéry e de Ernest
Hemingway. Enquanto andou por África, palmilhando os sertões interiores de Moçambique,
terá concluído, como este último autor, que “África, tendo em conta a sua longa idade,
transforma toda a gente, salvo os invasores e os destruidores profissionais em crianças”. O
apelo que África continua a exercer sobre os grandes viajantes e os que procuram um sentido
para a vida talvez resida na constatação de Hemingway, relatada em Verdade ao amanhecer,
que “não me lembro de nenhuma manhã africana em que não acordasse feliz”.

. Imagem e território: o desenho e o mapa; desenhar paisagens, cartografar


emoções. As imagens elaboradas pelo Professor Alfredo Fernandes Martins que chegaram
até nós (croquis, desenhos e mapas) mostram um apurado sentido plástico usado em
proveito da Geografia. Recorreu à imagem tanto para fins didáticos, antes de se vulgarizarem
os acetatos e os atuais powers points, como no processo de investigação, fosse durante o
trabalho de campo ou no gabinete, na fase de síntese e interpretação das suas pesquisas.
Durante as aulas fazia autênticas obras de arte efémera, sucessivos desenhos a giz, de várias
cores, elucidativos croquis, diagramas, cortes esquemáticos, esboços, desenhos, mapas, etc.
que fazia ao correr da pena, de improviso no quadro preto.
Nos seus trabalhos, recorria à imagem como “documentação gráfica escolhida para
ilustrar o texto. Por motivos óbvios, não é abundante, mas ainda assim dentre as cartas,
croquis, cortes e perfis que desenhei, apresento aqueles que me pareceram de mais interesse
ou de maior necessidade, já porque evidenciam a individualidade do Maciço ou sublinham
um acidente, já pelas correções que permitem fazer às cartas publicadas. Os esbocetos
cartográficos dados à estampa são na sua maior parte provisórios ou esquemáticos; nem de
outra, forma podem ser etiquetados, incluídos como estão num estudo que não pretende
ser mais do que uma primeira tentativa de interpretação morfológica do Maciço Calcário
Estremenho” (Maciço Calcário).
Os mapas, na sua opinião, deviam ser detalhados e rigorosos: mesmo para um “simples
aprendiz de morfologista, como eu sou, a necessidade de instrumentos cartográficos impôs-
se desde o primeiro instante – e não tardaria a chegar a certeza de que a leitura das cartas
será tanto mais proveitosa quanto mais rigoroso e expressivo for o levantamento” (Maciço
Rui Jacinto
137

calcário estremenho, 1949: 16). Quando assim é as cartas contêm um enorme manancial
de informação que deve ser criteriosamente estudado, com minúcia e rigor, como fez na
preparação do artigo sobre “A configuração do Litoral português no último quartel do Século
XIV”: “No canto inferior direito do mapa sub judice, deparei, não sem surpresa, com esta
nota: “O traçado do litoral e da fronteira é da época”. Ora, esta indicação impõe um novo
exame da carta – e a partir deste instante o geógrafo está no seu domínio, julgará sobre
matéria que lhe é familiar. A reconstituição da fronteira terrestre, muito embora o exigissem
os troços de raia seca, pouco interesse me despertou; mas devo confessar que outro tanto
não sucedeu no que diz respeito ao litoral, pois observei atentamente a linha de costa e
o debuxo dos estuários, visto tratar-se de desenho intencional aquilo que eu, no primeiro
relance de olhos, supusera um decalque despreocupado.”

. Foto(geo)grafia: (d)escrever a terra com a luz do olhar. A refinada tradução dos


“Princípios de geografia humana”, obra póstuma de Vidal de la Blache, editada por seu genro,
Emannuel de Martonne, em 1922, concluída em 1945 por Alfredo Fernandes Martins, foi
profusamente enriquecida com um elevado número de imagens, sobretudo mapas e desenhos,
feitos a tinta da china, onde deixou patente o melhor da sua arte de grande desenhador
de paisagens e de exímio ilustrador. Sobre as qualidades do seu trabalho fotográfico havia
de reconhecer Amorim Girão, num comentário à tese de licenciatura, estarmos perante um
excelente fotógrafo. Fascinado pela imagem, ainda se terá aventurado no cinema, tentando
acompanhar a modernidade, sedução que não o levou a perder o fascínio nem o encantamento
pelo que é intemporal, a fazer fé na leitura desta passagem de Pormenor de retábulo: “E de
mim para mim, repetia-me insistentemente que para não haver anacronismo, para que não
existissem contradições temporais, importava que este velho e o automóvel, e as torres de alta-
tensão, e os postes telegráficos e esta minha câmara de cinema não coexistissem no espaço e
no tempo. Sim, porque tal simultaneidade de presenças chegava a ser inquietante.”
As fotografias de Alfredo Fernandes Martins, as que deu à estampa, publicadas em livros
e artigos, e as não editadas, que tivemos oportunidade de observar, estão carregadas duma
áurea resultante do seu olhar poético, autêntico, pessoal. O portefólio é marcada por uma
inequívoca geograficidade, cujos temas dominantes coincidem com os da geografia da
época, apostada em compreender as relações entre o homem e o meio. Não admira, pois,
que as imagens retratem paisagens naturais e humanas, sobretudo espaços rurais, percorridos
durante o trabalho de campo que realizou durante a preparação das teses de licenciatura e de
doutoramento. As fotografias desta fase mostram o meio natural, as paisagens e as formas
de relevo, o povoamento rural e as atividades agrícolas, onde não esconde um compromisso
sociopolítico para com os mais humildes ao retratar os camponeses durante o trabalho pesado
a que estão sujeitos.
Numa fase posterior, sobretudo durante o período em que foi militar, realiza imagens que
exploram uma dimensão mais estética, ensaia ângulos e contra-luz para obter determinados
efeitos. Este compromisso estético é ainda notório nas imagens que faz da mulher, que
coloca a povoar a paisagem agreste do Maciço Calcário, apontamento humano que está
para além duma simples referência para servir de escala. A pose, o contra luz e certos ângulos
são usados para realçar a beleza feminina e os contornos do corpo, imagens impregnadas de
enamoramento, camaradagem e cumplicidade.
A sensibilidade de Alfredo Fernandes Martins levou-o a povoar de pessoas uma obra
fotográfica marcada por um humanismo comprometido com os territórios e as gentes mais
deserdadas. Os mais próximos, os familiares, onde se destaca a figura tutelar do pai e da
mulher, acabam sub-representados perante a gente anónima com que se cruzou no trabalho
de terreno. A fotografia foi, aqui, o instrumento disponível para divulgar as injustiças, territoriais
e sociais, dar a conhecer lugares remotos, fora de rota, tão excluídos como as pessoas que
nele habitavam. A fotografia foi, pois, a maneira que tinha ao seu alcance para as resgatar do
anonimato.
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Rui Jacinto
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Alfredo Fernandes Martins

Alfredo Fernandes Martins (Coimbra. 19 de Janeiro de 1916 - 22 de Dezembro de 1982),


“contrariando embora natural vocação, mas em obediência à vontade de seu Pai”, inscreve-se
no Curso de preparatórios Médicos da Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra,
em 1933, que conclui em outubro de 1934. Terminou o primeiro ano de Medina antes de,
em Outubro de 1935, se inscrever na secção de Ciências Geográficas da Faculdade de Letras,
onde concluiu a respetiva Licenciatura, em julho de 1940, com a defesa da tese “O esforço do
Homem na Bacia do Mondego”.
A 14 de março de 1942 toma posse como 2º assistente da Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra passando a reger as cadeiras de Geografia Geral, Geografia Política
e Económica, Geografia Humana, Geografia de Portugal e Geografia Colonial Portuguesa. Em
julho de 1949 presta provas de doutoramento e obtém a classificação de 19 valores com a
dissertação “O Maciço Calcário Estremenho: contributo para um estudo de geografia física”.
Em dezembro de 1949 foi contratado como 1º assistente, Professor Extraordinário em 1967 e
Professor Catedrático em 1970.
É nomeado membro da Comissão Nacional de Geografia em 1947 (Portaria datada de 21
de Abril) e da organização do XIV Congresso Internacional de Geografia, que se realizou em
Portugal em 1949. Redigiu o livro-guia da excursão B deste Congresso (Le Centre Littoral et
le Massif Calcaire d’ Estremadura). Em outubro de 1955 foi nomeado Secretário do Curso de
Férias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, função que desempenhou durante
mais de duas décadas.
Foi membro da Missão de Arqueologia da Universidade de Coimbra ao Iraque (1958)
e integrou a Missão Oficial Portuguesa à cidade de Salvador (Baia-Brasil), em 1959, sendo
relator na secção de Geografia, do IV Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, de várias teses,
como a de Jean Tricart sobre o litoral brasileiro. Em 1961 foi nomeado adjunto da Missão
de Geografia Fisica e Humana do Ultramar, tendo efetuado várias missões a Moçambique:
Provincia de Moçambique e Niassa (1961); Nampula, Planalto dos Macondes e Litoral de Porto
Amélia (1962); Quelimane (1964); Foz do Rio Molocué à Baia de Condúcia (1966). Efetuou
missões no Laboratoire de Géomorphologie de Paris, em 1964 e 1965; a partir de 1965, foi
Diretor do Instuto de Estudos Geográficos e em 1974 integrou a primeira Comissão Paritária
de Gestão da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
140

Geografia e Arte: em demanda duma


poética geográfica
Geografia literária: aventura, viagem, ficção 1

Viagens polares antárticas


12
Cook, o grande pioneiro das explorações antárticas, ao voltar da sua passagem a bordo do
«Resolution», dissera que as regiões austrais eram um inferno de neves eternas, de terríveis
tempestades e brumas temerosas. Seria tão arriscado afrontá‑las, disse, que, por ser o perigo
tão grande, jamais as terras ao sul daquelas que vira seriam exploradas.
A Antártida! Estranho continente em todos os seus aspectos. Longínquo, separado das
outras massas continentais pelas águas dos três oceanos, com uma guarda avançada de
“icebergs” a barrarem o caminho dos navegantes que se aventurassem à descoberta – a
Antártida guardava avaramente, para além das montanhas eternamente hostis e geladas,
êsse ponto matemático de latitude 90º S – o Polo.
A região polar do sul, mais fria do que a do norte, quási destituída de vida, longe da zona
ecuménica, foi o cenário grandiosamente trágico onde durante 137 anos, desde Cook até
Amundsen e Scott, ingleses, franceses, alemãis, russos, belgas, escandinavos e americanos
lutaram palmo a palmo com o desconhecido, avançando cada vez mais para o sul, descobrindo
novas terras, oferecendo até a própria vida para que as suas bandeiras fôssem também as
primeiras a flutuar mais ao sul e até mesmo no Polo.
O navegador inglês Cook, em Janeiro de 1774, aproveitando o verão austral, deixou à
popa do seu navio «Resolution» o círculo polar antártico, mas não conseguiu passar além de
71° 15’ porque o mar gelado e os «icebergs» não permitiram.
Ainda que na bruma lhe parecesse distinguir terra, Cook não o afirmou claramente. Só
em 1775, a I6 de Janeiro, encontrou uma terra desolada, coberta de neves, que supôs ser
uma parte do continente austral e à qual chamou Geórgia do Sul. Mais para Sudeste de novo
se lhe depararam terras, às quais deu o nome de Terra de Sandwich,
Seguidamente a viagem mudou de rumo - o «Resolution» aproou ao norte. Cook
convencera-se de que era impossível ir mais além em tais latitudes.
Já em 1772, Cook navegara nos mares da Antártida, mas, dessa vez no sector do Índico,
zona onde já tinham navegado os franceses Bouvet, em 1738, Marion du Frêne e Crozet,
em 1772. Neste mesmo ano e também um francês, Yves de Kerguelen, comandando dois
barcos - «La Fortune» e «Gros-Ventre», descobre, no sector do Índico, um grande território
que a sua imaginação acreditou ser um continente. Esta expedição viria a terminar mal no
porto de armamento. Acusado pelos seus oficiais, Kerguelen respondeu em conselho de
guerra, foi destituído e preso.
Depois destas viagens, e, tanto no sector do Índico como na zona americana, somente
os caçadores de focas e os baleeiros ingleses e norte-americanos se aventuraram em tais
paragens.
A hipótese das terras antárticas continuava pois sem que quaisquer argumentos - pró ou
contra - a mantivessem ou anulassem.
(Continua)

1 - As páginas que se seguem compilam alguns dispersos, publicados pelo Professor Alfredo Fernandes Martins, em
diversos jornais, entre 1938 e 1953, breve antologia que permite lançar um novo olhar sobre a sua obra e descobrir
uma faceta menos conhecida do autor.
2 - “Crónica mensal das artes, ciência, literatura e crítica”, in Jornal da Figueira, Ano I, nº 5. Figueira da Foz, 27 de
Abril de 1938. A crónica abre com a seguinte explicação: “Neste artigo e em todos os que se seguirem com o ca-
rácter deste, de problemas que se discutam, são postos ao alcance de todos. Não se exige, para a sua compreensão,
uma cultura global desenvolvida, nem, muito menos, qualquer leitura especializada do assunto; apenas um mínimo,
que sempre possuem os leitores das publicações deste género. Não queremos empregar o termo de divulgação, a
que andam ligadas responsabilidades muito grandes que, não só os nossos colaboradores – jovens por via de regra
– quereriam tomar para os seus artigos, como também não se coadunariam com a índole desta “crónica”. Mas é
nosso intuito, justamente, fomentar o gosto do grande público por questões gerais de interêsse comum.”
Alfredo Fernandes Martins
141

23
As descobertas de Cook e de Furneaux – que com aquele fizera os cruzeiros de I772 e
I774, mas a bordo de um outro navio – Adventure – obrigavam contudo a hipótese da sua
variante. No caso de haver terras tratar-se-ia de uma massa continental ou de um ou vários
arquipélagos, ligados por mares gelados?
Entretanto em 1819, Smith, navegando no «Williams», assinalava uma nova terra, a 62°
de latitude, e oito meses depois êle descobre ainda o arquipélago a que chamou as Shetlands
do Sul.
A pouco e pouco os intrépidos pescadores de baleias e os caçadores de focas, que se
aventuram nos mares austrais, arrancam ao desconhecido, assinalam nos mapas novas terras:
ao sul das Shetlands, um outro grupo de picos; a Este daquele arquipélago as Orcades do Sul,
operando-se ainda reconhecimentos na Terra de Palmer.
A-pesar-de tudo, após a expedição de Cook, só a russo-alemã de F. G. Bellinghausen, em
1819-21 merece um tal nome.
Era a expedição constituída por dois barcos, o «Vastok» e o «Mirni», e do seu cruzeiro,
todo realizado nas proximidades do círculo polar, se trouxe a certeza de que a Terra de
Sandwich não era mais do que um grupo de pequenas ilhas. Além disso, novas terras se
arrancaram à bruma: a ilha de Pedro I e a Terra Alexandre I.
Em 1823 e na zona americana, o capitão baleeiro inglês Weddel, navegando na «Jane»,
de conserva com o «Beanfay», comandado por Brisbane, depois de atravessar um mar
coberto de «icebergs» e com ventos contrários, encontrou-se numa região quase calma mas
sem que o tempo claro deixasse aperceber qualquer vestígio de terra.
Calculando a posição dos navios, verificou-se que se encontravam a 34º 16’ de longitude
W e a 74° 15’ de latitude Sul – sendo esta última coordenada a mais alta que se atingira nas
viagens austrais.
Este cruzeiro foi por muitos posto em dúvida, alegando-se que era impossível em barcos
tão pequenos e de tão escassa tripulação – a «Jane» tinha 22 homens – atingir latitudes que
outros em melhores condições não tinham alcançado.
Porém, a História das viagens polares fez justiça ao modesto pescador inglês e o golfo
onde ele foi o primeiro a navegar e a que chamara mar de Jorge IV, nome que foi firmado
com três «hurrahs» da marinhagem, figura hoje nas cartas como Mar de Weddell.
Os anos decorrem e em 1828, não é já só o interesse de descobrir novas terras que iça as
velas dos barcos que se fazem ao mar austral. Assim, nesse ano, o «Chanticleer», comandado
por Foster, leva como missão o estudo do magnetismo e a medida da força da gravidade
nessas longínquas paragens, encargos estes de que satisfatoriamente se desempenha.
Mas a descoberta de novas terras, a procura de bons locais para a pesca, são ainda
os motivos mais poderosos e os que despertam mais entusiasmo; e, assim, Biscoe, outro
baleeiro inglês, em 1830 e 1831, assinala, na zona americana, a ilha Adelaide, o arquipélago
Biscoe, a terra de Graham, e no sector indico, apercebem, à distância e entre a bruma, uma
região montanhosa.
Sucessivamente Avery, Kemp, e Ballery marcam, nos mapas, novas linhas de costa ou
outras ilhas.
Porém, depois da missão de Foster, só em 1838, um verdadeiro cruzeiro científico aproa
à Antártida – a expedição francesa do capitão de fragata Dumont d’Urville.
O principal objectivo desta expedição era verificar quanto havia de exacto no relatório de
Weddell e saber quanto se poderia avançar além da latitude de 74° 15’ que, segundo dissera,
o baleeiro inglês atingira.
Para o desempenho dessa missão tinha Dumont d’Urville duas corvetas – «Astrolabe» e
«Zélée» – esta comandada por Jacquinot.
Depois de abandonarem o estreito de Magalhães, os dois barcos atingiram, por assim
dizer facilmente 63º 40’ lat. S, mas aí a «banquise» – mar gelado, um caos de blocos de
gelos, encravados uns nos outros – não os deixou ir mais além. Navegando para as Orcades
do Sul, daqui partiram para uma segunda tentativa, mas a latitude então alcançada ainda foi
menor: 62° 20’ S e 37º long. W.

3 - “Crónica mensal das artes, ciência, literatura e crítica”, in Jornal da Figueira, Ano I, nº 12. Figueira da Foz, 21
de Maio de 1938.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
142

Nestas paragens, só após mil peripécias os barcos foram arrancados aos gelos.
E após incontestáveis esforços, a-pesar-de toda a boa vontade e da abnegação da
marinhagem, Dumont d’Urville teve de retroceder, pois, teimosamente, o Mar de Weddell,
com uma tão terrível «banquise» com essa bruma espessa que não deixava ver a proa dos
navios, era uma barreira intransponível em frente do Polo!
Além das amostras geológicas e zoológicas que os naturalistas colheram, a expedição
francesa marcou ainda no mapa novas terras: no sector do Índico, entre outras, a ilha da
Geologia e a Terra Adélia, o nome da mulher de d’Urville, e na zona americana as Terras de
Luiz Filipe e Joinvile.
Ainda a esta expedição se deve a primeira carta precisa das regiões antárticas até então
exploradas.
Em 1839, o inglês Wilkes aparelha, também com rumo à Antártida, cinco navios postos à
sua disposição pelo Governo norte-americano.
As explorações dos diferentes barcos poucos resultados deram; contudo verificou-se que
a Terra Luiz Filipe não era mais do que a continuação da Terra de Palmer e além disso, tanto
na zona do Índico como na americana, outros territórios foram reconhecidos, mas … como
sempre a «banquise» detinha todos os desejos de ir mais além!
Entretanto, em 1841, o comandante inglês James Clarck Ross, aproa de novo ao sector
índico da Antártida, sem que daí resulte qualquer dado de importância; no sector americano,
porém, em 1842, é mais feliz.
Partindo das Shetlands, encontra à proa dos seus navios um grande golfo, ainda não
assinalado, e nas costas, erguendo-se majestosos entre as neves eternas, dois vulcões – o
Erebus e o Tenor, assim chamados por serem estes os nomes dos navios deste cruzeiro.
Mas, como sempre, mais uma vez a «banquise» impediu que se mantivesse a proa ao sul.
Porém, bordejando os gelos, com rumo a Este, Ross encontrou, finalmente, uma passagem
e conseguiu atingir a latitude de 71º 30’ à longitude de 15°W.
(Continua). 4

Uma página de história da geografia. Scott, o mártir do Pólo Sul


(I) 5
A fatal atracção do Desconhecido!…
Foi ela, de-certo, quem levou os caçadores das primeiras tribus para além das colinas que
limitavam o horizonte das regiões onde viviam. E o prazer de trilhar países ignorados nunca
mais se perdeu, para perder a vida de muitos pioneiros…
A fatal atracção do Desconhecido!…
A par de outras causas foi ela quem timonou as caravelas que iniciaram o ciclo epopeico
dos Descobrimentos, esses barcos que foram, na curva do mar, fazer o périplo de África e se
lançaram para o Ocidente quando o Infante quiz ver «se acaso haveria ilhas ou terra firme
além da descrição de Ptolomeu…»
E a febre de descobrir, de sulcar novos mares, de cruzar terras longínquas, desenhou, a
partir do século XV, uma curva ascendente, empolgou outros povos ganhou toda a Europa,
arrastou legiões de homens para todos os cantos do globo. E assim, um maior capital de
conhecimentos foi acumulado sobre os países remotos, dos quais até então, e unicamente
por intermédio de mercadores, se tinha apenas notícia de um ou outro ressaibo exótico;
amontoaram-se os mais variados pormenores acerca dos mais diversos assuntos relativos às
mais distantes paragens, recolhidos pelas mais diferentes sensibilidades e por espíritos mais
ou menos deformados pelas suas aptidões profissionais; urdiu-se uma estranha teia com os
costumes curiosos de todos os povos da terra – e tudo isso contribuiu para o estudo de uns
e entretenimento de outros, mas em ambos os casos servindo aqueles que não partiam e
só tomavam conhecimento de um mundo novo que surgia da bruma lendária graças aos
admiráveis diários de viagem, escritos ao sabor de emoção vivida em frente do perigo, sob

4 - Estas crónicas não continuaram porque, numa cópia deste artigo, o autor deixou a seguinte nota escrita pelo
seu punho: “Não foi publicada a continuação porque o jornal foi suspenso por ordem do Governo. Perdeu-se o
original”.
5 - Via Latina (Orgão da Associação Académica de Coimbra), Ano I, nº 1, 30 de Março de 1941.
Alfredo Fernandes Martins
143

o encanto de uma paisagem ignorada ou após o deslumbramento causado pelas belezas da


terra estranha, por vezes ingénuos mas sempre ditados pelo orgulho inultrapassável de poder
revelar alguma coisa de novo.
Decorreram os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX… Fizera‑se a penetração da África, da Ásia,
das Américas, da Oceania. Aos «roteiros» e simples diários de viagem, às notas tomadas sobre
o joelho, por comerciantes, militares, marinheiros e missionários que entrecruzavam as suas
rotas sobre os mares e os seus caminhos através dos continentes, se devia farta contribuição
para o desenvolvimento de alguns ramos da Ciência – nomeadamente no campo da Biologia.
O século XIX marca, no entanto, uma fase destacada no progresso do conhecimento da
Terra, porquanto àqueles subsídios tantas vezes anónimos e até incompletos vieram juntar-
-se as obras de envergadura científica como aquelas que foram assinadas por Alexandre de
Humboldt; aos pioneiros do comércio, dos exércitos de ocupação ou das seitas religiosas, que
a par das suas actividades particulares registavam por espírito de curiosidade, sempre louvável
aquilo que mais os impressionava, sucediam-se os pioneiros da Ciência – os exploradores que
partiam a desvendar as regiões ainda ignoradas, a determinar as áreas de distribuição das
espécies vegetais ou animais, a fazer colheitas geológicas, a estudar a Física do globo, a
tentar compreender as perturbações meteorológicas, a procurar desenvolver, enfim, todos os
capítulos do conhecimento humano.
O século XIX é o século da exloração científica, é o século dos Livingstones e dos Stanleys,
dos Serpa Pinto e dos Capelos e Ivens. Não são unicamente já os europeus quem vai em
busca do Desconhecido; partem também os americanos e os asiáticos.
A fatal atracção do Desconhecido!...
Sempre!
Anda no homem a ânsia de desvendar e simultaneamente é da condição humana querer
ocupar um lugar da vanguarda. Só a tal se renuncia por orgulho doentio ou timidez; e a
timidez é ainda, por vezes, orgulho mórbido.
Sentindo a volúpia de macho vitorioso o homem quer ser o primeiro a desvendar aquilo
que para os seus contemporâneos está ainda envolto na lenda misteriosa do Desconhecido,
e vê desabar as suas mais queridas ilusões se percebe no trilho onde marcha as pegadas
de um outro que passou antes da sua jornada, e sofre tanto como se ao julgar conquistar
uma virgem, a quem deseja ardentemente, a encontrasse poluída pelas carícias de um amor
antigo… Na violação do desconhecido há qualquer lampejo de um secreto prazer físico
– e que rude golpe não atinge aquele que ao julgar-se o primeiro, se sente ultrapassado
por alguém e vê apagar-se rapidamente a miragem de ser aquele quem descobre. Terrível
desengano!
Foi ele que, na Antártida, em 1912, perdeu, enlouqueceu, assassinou a esquadra do Sul
da expedição inglesa do Capt. Robert Falcon Scott.
A 16 de Dezembro de 1911 os noruegueses de Amundsen arvorando o seu pavilhão
negro, cravando um patim de trenó a marcar a situação do Polo tal como a tinham calculado,
e deixando os seus nomes numa mensagem – Roald Amundsen, Olav Olavson Bjaaland,
Helmer Hanssen, Sverre H. Harsel, Oscar Wisting – acordaram nesse momento ecos nunca
despertados, para gritar nessas paragens desoladas de neves eternas, naquele planalto
gelado, a mais de 3000 metros de altitude, a imensa alegria, o feroz entusiasmo, o prazer
indescritível de serem os primeiros! E só a 18 de Janeiro da 1912, Scott e os seus camaradas
– Wilson, Bowers, Oates e Evans – atingiriam o fim da sua marcha, não para sentirem o
mesmo arrebatamento de Glória, mas unicamente para testemunharem a passagem dos
vencedores.
«Aconteceu escreveria mais tarde Stefan Zweig, a coisa mais monstruosa e inconcebível
na humanidade: o Polo da Terra, há milhares de anos inanimado, há milhares de anos e talvez
desde o princípio de mundo nunca visto por um olhar humano, foi descoberto duas vezes
numa molécula de tempo… E eles são os segundos, atrasados um único mês em milhões de
anos. São os segundos numa humanidade, para quem o segundo não tem valor».
Terrível desengano!
De que valera afrontar as intempéries, vencer milhas atrás da milhas na solidão gelada
até perfazer cerca de 700 kms, subir o glaciar de Beardmore onde se sofrera o impossível;
caminhar mais 160 léguas, desde o extremo sul da Barreira de Ross, arrastando, sob
temperaturas de neve, os trenós onde os homens haviam substituído os póneis e os cães;
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
144

para quê tanto sacrifício, quando se chegava ao Polo unicamente para transmitir ao Mundo
a mensagem dos Norueguesas, ou seja confessar a própria derrota?!...
Tal foi a missão confiada pelo destilo aos cinco bravos da esquadra do Sul.
A 4 de Janeiro, a menos de 240 quilómetros do objectivo, a esquadra do tenente Evans,
que até então acompanhara a de Scott, recebeu ordem da retirada, tal como tinha acontecido
sucessivamente às outras, conforme iam sendo escalonados ao longo da pista os depósitos de
víveres. A propósito, escreveu Scott no seu Diário: «A segunda esquadra segue-nos a princípio.
Porém, logo que estou certo da podermos avançar facilmente, paramos e apertamos as
mãos dos nossos camaradas. Teddy Evans fica terrivelmente desapontado por não continuar
acompanhar-nos, mas ele compreende bem as coisas e conduz-se corajosamente. O bravo
do Crean chora e Lashley parece muito sensibilizado por ter de nos deixar».
Ressalta nitidamente o desgosto daqueles três homens por terem recebido ordem de
retirada. Nem se pode cumprir com alegria semelhante determinação quando se chega a 87°
32’ Sul e se está a dois passos da glória, pois sob o comando de Scott, que vai continuar para
o Sul atinge-se, decerto, primeiro do que ninguém o Polo Antártico. Esta certeza absoluta,
vibra nas almas de Teddy Evans, de Crean e de Lashley, como vibra, na alma de todos os
inglesas, porque, ao regressar da sua tentativa frustrada, em 1909, obrigado a recuar, por
falta de víveres, depois de atingir 88° 23’, a 170 quilómetros do objectivo, dissera Shackleton,
referindo-se a Scott: «Será ele quem vai ao Polo e será melhor assim!».
Naquele inverno de 1911, ninguém duvidava de tal afirmativa. Scott ia atingir o Polo…
Em Janeiro de 1912, a esquadra do tenente Evans, poupada por um capricho da sorte, não
assiste, frente a frente, ao desabar daquela certeza, a esse tremendo traumatismo moral. A
derrota, não tem um travor tão amargo, esbate-se, atenua-se, quando se toma conhecimento
dela, longe, muito longe do lugar onde se faz sentir; a crueza da desilusão tem como lenitivo
a distância, e os quartéis de inverno estão a mil e trezentos quilómetros do pavilhão negro
de Amundsen!
Agora, são unicamente 5 homens quem avança para o Sul, sempre para o Sul! O frio
- um frio como nunca se esperaria suportar durante o verão antártico - as tempestades de
neve, a pista mole que prende o trenó e atrasa a marcha, tudo isso não consegue arrefecer
o entusiasmo daqueles homens. Eles ardem sobreaquecidos pela ardente chama interior que
a certeza do triunfo faz crepitar; vivem do calor da antecipada vitória; entregam a uma
tal fogueira todos os seus valores morais. Vale a pena suportar o frio, sofrer tudo, quando
se caminha para a imortalidade e temos Alguém, longe, muito longe, que vai partilhar da
intensa alegria da vitória.
Antes de partir para a Antártida escrevera Scott a sua mulher, quando já esperava um
filho, essa criança que seria a herdeira do seu nome a da sua glória: «Tu preferes, eu sei, que
me esforce por realizar grandes coisas interessantes seja porque preço for!» Scott caminha
para a realização, certo de que chegará ao fim; só desconhece o preço da sua façanha… só
desconhece isso, e isso, é a Morte.
Aquele pavilhão negro…
A 15 de Janeiro a certeza da vitória, ainda que envolta numa ligeira dúvida, transparece
no Diário de Scott: «Como é agradável pensar que só duas longas caminhadas nos separam
do Polo!... agora o sucesso é certo; um só receio nos preocupa: que os Noruegueses nos
tenham precedido... Estamos somente a 43 kms do Polo! Nós devemos vencer agora».
No dia seguinte, suportando temperaturas inferiores a -30°, os cinco homens continuam a
marcha: «...pensando que amanhã, chegaremos ao fim, partimos cheios de entusiasmo...».
De súbito, primeiro do que a ninguém, a realidade surge, sem artifícios, aos olhos
penetrantes de Bowers: para o Sul da posição ocupada pelos ingleses, um «cairn», montículo
de gelo feito pelo homem, referência a passagem de alguém…
«Parto Sul. Amundsen» - dizia o telegrama enviado da Madeira pelo Norueguês; e a 22
de Fevereiro de 1911 recebera Scott a informação de que ele havia instalado quartéis de
inverno na baia das Baleias, distanciado menos 120 quilómetros do Polo que a expedição
inglesa.
Um «cairn» ?!... Mas - e quanto pode o desejo de não nos sentirmos ultrapassados!
— não! Não pode ser! Talvez uma sombra longada, talvez uma falha no sudário de gelo,
mas nunca um «cairn»! O terrível desespero de náufrago que a tudo se agarra esperando a
salvação! Talvez seja a miragem... aquela extraordinária atmosfera, aquela bruma pegajosa,
Alfredo Fernandes Martins
145

que deformam tudo, são até capazes da brincar com os sonhos de cada um, a fingir que os
desfazem… Não deve ser um «cairn». Será, tudo! Mas um «cairn»?!... Não, isso não! Como
se pode, assim destroçar a nossa mais bela ilusão?!...
E marcha-se ainda, caminha-se talvez com medo de ir ao encontro de uma certeza que
nos mata, mas na esperança de que ela se transforme apenas num pesadelo, nada mais do
que uma alucinação dos nossos nervos sobreexcitados. Mas... a realidade não cede os seus
direitos! Que importa que a nossa chama interior se extinga num sopro?!... Que influência
tem um desgôsto humano, o desabar do mais lindo sonho, em face da marcha fatal do
tempo?!... Nem o holocausto de 5 vidas, teria feito atrasar o calendário 30 dias! A realidade,
esta palavra banal teria em breve para Scott e seus camaradas este significado monstruoso:
Impossível! Nada, nem ninguém, o poderia evitar.
A marcha continua. Uma ténue esperança subsiste ainda na alma da pequena patrulha;
trinta minutos depois, Bowers distingue uma sombra longínqua. Não já ilusão possível e
não tarda que se destaque perfeitamente, num contraste violento com a brancura da neve,
uma bandeira negra. Escreveu-se no Diário: «Em volta, vestígios de acampamento; sinais
de ida e vindas de trenós, de skis e as marcas bem nítidas das patas de muitos cães, Isto
revela-nos tudo. Os Noruegueses chegaram antes de nós e foram os primeiros a atingir o
Polo. É uma terrível decepção e eu estou muito penalizado sobretudo por causa dos meus
bravos camaradas. Numerosos pensamentos nos assaltam e discutimo-los longamente.
Amanhã avançaremos até ao Polo, depois bateremos em retirada para os nossos quartéis
de inverno, com toda a velocidade de que formos capazes. Todos os sonhos se desfizeram;
o nosso regresso será fastidioso. Certamente a altitude diminui e, certamente também, os
Noruegueses descobriram um itinerário fácil».
... e acamparam tristemente...

(II) 6
… e acamparam tristemente: as almas amarfanhadas na pesada angústia da derrota.
No dia seguinte, «sem que ninguém tivesse dormido muito, por causa da nossa descoberta
de ontem…», recomeçaram a marcha; o entusiasmo desaparecera, só o dever os levava até
esse ponto matemático de latitude igual a 90º Sul, o dever de aí desfraldarem uma bandeira
de vencidos... E embora, à excepção de Scott, todos sofressem horrorosamente, com as
mãos e os pés gelados, caminharam ainda 21.500 metros, aguentando um vento forte que
soprava de frente e uma temperatura de 30º negativos… E por fim: “O Polo! Sim, mas em
circunstâncias bem diversas daquelas que nós esperávamos… Meu Deus! Que horrível região!
e como é terrível termos sofrido tanto para chegar aqui e afinal não sermos recompensados
pela glória da prioridade! Ao menos, já é alguma coisa termos chegado ao fim».
Como se adivinha a desilusão nestas linhas singelas! Amundsen chegou ao Polo, graças
aos serviços inestimáveis que lhe prestaram os seus cães… Scott, após a sua expedição de
1902, a bordo do «Discovery», havia escrito: «Segundo a minha opinião, nenhum «raid»
executado com o auxílio de cães atinge a grandeza de bela realização que se obtém quando
um grupo de homens vai pelos seus próprios meios afrontar as atribulações, os perigos e as
dificuldades, e graças a dias e semanas de um esforço físico, chega a resolver um problema
do grande Desconhecido. Sem dúvida neste caso, a conquista é, certamente, mais nobre e
magnífica».
Porque assim pensava e lhe custava a assistir ao sofrimento dos animais, só utilizou cos
póneis e os cães na travessia da barreira de Ross. Quando os pequenos cavalos começaram
a mostrar provas de cansaço, foram abatidos a tiro; os cães, antes da ascensão completa do
glaciar de Beardmore, abandonaram a caravana, retirando para os quartéis de inverno.
Se a esquadra do Sul tivesse chegado primeiro do que ninguém, aquela ternura pelos
animais teria sensibilizado toda a gente... Mas a multidão não perdoa quando, certa do nosso
triunfo, nos sabe ultrapassados por alguém que não desdenhou utilizar todos os recursos,
mesmo aqueles que nos pareceram menos nobres. Compaixão pelos cães?!... Que ridícula
sensibilidade! Não foram eles um factor decisivo na vitória de Amundsen?!...

6 - Via Latina, Ano I, nº 1, 15 de Abril de 1941.


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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Como todos os pormenores tornavam mais asfixiante aquela derrota.! De que valera
a Scott ter sido o primeiro a dizer que não era impossível atingir o Polo e demonstrá-lo
praticamente no seu «raid» de 1902?! Abrira o caminho, mas chegara vencido!
A 18 de Janeiro, certos de que o acampamento estabelecido na véspera não está bem no
Polo, retomam a pista. Mais uma vez Bowers - sempre ele - descortina um novo testemunho
da derrota: a tenda de Amundsen, onde encontram a mensagem dos Noruegueses. A
800 metros, vê-se o patim de trenó que deixaram a localizar o Polo, pormenor que Scott
relata nobremente: «Os nossos predecessores determinaram com cuidado a sua posição e
cumpriram inteiramente o seu programa.»
Depois, os ingleses determinaram com o maior rigor a situação do Polo e aí arvoraram a
sua bandeira, aquela bandeira que não flutuou tão orgulhosamente como tanto o haviam
desejado: «desfraldámos o nosso pobre e humilhado «Union Jacks»».
«Agora - escreve Scott - voltamos as costas ao objectivo da nossa ambição, para começar
um novo trabalho singularmente rude: 1280 kms durante os quais teremos de rebocar o
nosso trenó, à custa de dolorosos esforços, Adeus à maior parte dos nossos sonhos!»
E assim começou a retirada. Voltam a passar pela «sinistra bandeira negra» de Amundsen
e seguem durante dias a pista anteriormente percorrida. Marcham vergados ao peso da
desilusão; sofrem consecutivas tempestades de neve; chegam a suportar -40º. A natureza
enfurecida não lhes dá quartel; o inverno antártico aproxima-se e nos depósitos nem sempre
encontram víveres e combustível em tal quantidade como seria de desejar. Sobrecarregando
uma situação já por si desesperada, o amargo travor da derrota, a certeza da cruel decepção
que lhes reservara o Destino! E os dias passam lentamente…
A 21 de Março estabelecem acampamento a 20 kms de One Ton Depot – o depósito que
significa: Salvação! Unicamente três homens, erguem a tenda: Scott, Bowers e Wilson.
Edgar Evans, com o moral abatido pelo terrível desengano e após uma queda quando
marchava sobre skis, ficara quase inconsciente. O nariz e as mãos gelaram-lhe; depois, um
pé… Tornara-se uma causa de permanente inquietação para os seus camaradas, quando,
perdida completamente a razão, morreu a 15 de Fevereiro, ao acabarem a descida do glaciar
Beardmore.
Oates, por seu turno, a 2 de Março estava já em péssimas condições físicas. Os pés e as
mãos gelaram-lhe; mal pode andar, atrasa a marcha, retarda a salvação. Reconhece que é um
estorvo. A 15 de Março, pela manhã, afirmando que não pode ir mais longe, pede aos seus
camaradas que o abandonem no saco-leito e continuem a marcha. Não escutam as razões
dramáticas que terá alegado e convencem-no a segui-los. À noite, porém, enorme no seu
gesto, digno da tragédia que os irmana, manifesta o seu desejo de sair fora da tenda a dar
um pequeno passeio…
O «diário» de Scott e, alguns meses depois, o documento colocado naquele lugar por
Cherry-Garrard e Atkinson, explicam tudo: «Perto daqui, em Março de 1912, à volta do Polo,
morre um valente gentleman, o capitão E. G. Oates, dos Dragões Innisklling. Voluntariamente,
durante uma tempestade de neve, foi ao encontro da morte, para tentar salvar os seus
camaradas esgotados. Esta nota foi deixada pela expedição de socorro de 1912».
Por isso, naquele dia de 21 de Março, unicamente 3 homens levantavam a tenda,
distanciados somente 24 kms para Norte do local onde um segundo cadáver lhes ficara a
balizar a pista… Erguiam a tenda, essa tenda que seria o seu túmulo. Estava escrito! A sorte
não quisera outorgar-lhes o triunfo, dava-lhes em troca o martírio. E a Morte aureolaria de
glória os nomes desses bravos, tão grandes na sua desgraça, de um tão admirável estoicismo
no sacrifício, que em nada perderam ao lado de Amundsen, o rival vitorioso.
A Morte ia libertá-los de um pesadelo, sublinhar o seu heroísmo, transmudar a derrota
numa apoteose. Aos olhares da humanidade, se os primeiros são bem-quistos e adulados, os
heróis, vencidos por um golpe fortuito, e os mártires tornam-se sobrenaturais. Ama-se mais o
Napoleão de Waterloo que o Imperador de Austerlitz, e apaga-se o nome de Wellington.
Tinham andado quase todo o caminho do regresso; estavam a cerca de 79º 5o’ Sul, a 20
kms de One Ton Depot, quase a tocarem o extremo Norte da barreira de Ross, a menos de
300 kms dos quartéis de inverno, onde nunca chegaram... E têm já esta certeza. Sobre isso,
não deixa qualquer dúvida esta frase: «Hoje perdemos toda a esperança».
Mas não se entregam vencidos, lutarão «até ao último biscoito, embora seja impossível
reduzir mais as rações», como se escrevera já uma semana antes. Os três sobreviventes,
Alfredo Fernandes Martins
147

quase esgotados, esperam ainda vencer os 20 km, os que separam de One Ton Depot, apesar
de os pés gelados os impedirem quase de marchar. Scott, embora em melhores condições
físicas de que os outros dois, tem o pé direito em tal estado que considera a amputação o
menor dos males em perspectiva!
Falta vencer unicamente 20 kms, mas é humanamente impossível dominar a tempestade
de neve, o furioso turbilhão que mascara a pista, o vento que ameaça derrubar a tenda a
cada instante!
«Então, a agonia começa, – escreverá um dia um dos colaboradores de Charcot, na
expedição à Antártida a bordo do «Pourquoi-Pas?» – agonia lenta e desesperada, da qual
ninguém fará o relatório, mas que se adivinha, mesmo nos detalhes mais horríveis, porque
outros, algures, ao Norte e ao Sul, morreram também de fome e de frio, e alguns sobreviventes
contaram os seus sofrimentos».
A 22 e 23 de Março, Scott escreve: «Mais violenta do que nunca a tempestade de neve.
Wilson e Bowers não estão em condições de meter-se ao caminho. Amanhã, a última
tentativa! Não temos nenhum combustível e unicamente nos restam um ou dois dias de
víveres. A morte deve estar próxima; decidimos não lhe apressar a vinda. Marcharemos para
o depósito com ou sem o nosso material e morreremos sobre a nossa pista».
Estas linhas parecem um sumário do que iria passar-se! Um único ponto se não cumpriu:
a marcha para o depósito de One Ton… A Morte rondava, e todos a esperavam sem pôr um
ponto final a tanto sofrimento. Nas dramáticas circunstâncias em que se verificou a retirada,
várias vezes a ideia do suicídio deve ter pairado nos acampamentos, e tão imperiosa que a 11
de Março chegaram a distribuir 30 «tablettes» de ópio por homem, reservando Wilson um
tubo de morfina. Todavia, Oates é o único que se suicida, não por temor ao sofrimento ou
cobardia em face de tal tragédia, mas num acto de abnegação acima de todo o elogio, e que
viverá na memória dos homens, ao menos enquanto a Antártida chamar a si o entusiasmo
dos exploradores.
Os valentes, quando a salvação dos camaradas não exige o sacrifício, olham de frente a
Morte! Caminham até onde o permitam as suas forças ou o consinta o seu sofrimento, quer
seja para gritarem o seu triunfo ou para servirem de pregoeiros da vitória de um rival bafejado
pela Sorte.
Na carta escrita a um amigo querido, Scott, já pouco menos do que moribundo, declara:
«Embora tivéssemos abordado o projecto de pôr fim ao nosso sofrimento quando as
coisas tocassem esse extremo, agora decidimos morrer de morte natural sobre a pista da
caravana!»
O fim aproxima-se. A Morte ronda dias seguidos a minúscula tenda; esgotam-se os víveres,
acaba-se a provisão de combustível… Muito custa a fabricar a coroa do martírio!…
A 29 de Março, Scott escreve as derradeiras linhas do seu Diário: «Desde o dia 21, a
tempestade constante de WSW e SW. A 20, nós tínhamos combustível para preparar seis
chávenas de chá e viveres para dois dias. Durante todo o tempo estivemos prontos a partir
para o depósito, distante 20 kms., mas, lá fora, havia sempre espessos turbilhões de neve
açoutados pela tempestade. Agora toda a esperança deve ser abandonada. Nós resistiremos
até ao fim, mas enfraquecemos a pouco e pouco; a morte não deve estar longe. É terrível,
não posso escrever mais tempo. R. Scott. Por amor de Deus, tomai conta dos nossos».
Mais tarde, a 11 de Novembro de 1912, a patrulha de socorro, encontraria três cadáveres...
A Morte arrebatara toda a esquadra do Sul, para a imortalizar! Wilson e Bowers pareciam
dormir nos sacos-leito; Scott, ajoelhado, estendia sobre Wilson o braço esquerdo. Tinha junto
de si o Diário e ao lado o saco de amostras geológicas – um saco de 16 kgs que nem nas
piores condições tinham abandonado. Ao contrário do feito desportivo de Amundsen, a
expedição inglesa tinha objectivos científicos!
Scott parece ter sido o último a morrer. Bebera o cálice até às fezes; a nada fora poupado.
Nem ao destroçar dos seus mais belos sonhos, nem à tortura indizível de assistir à morte de
todos os seus camaradas!
Ficara até ao fim no seu posto. Marinheiro como era, não abandonara a sua equipagem,
não desertara, não se deixara vencer pelo pavor da Morte!
Permanece na tenda, como um comandante no mar fica na ponte de comando. Escreve o
elogio fúnebre dos seus camaradas, vela-lhes a agonia, redige a sua emocionante «Mensagem
ao Povo Inglês», conta aos seus amigos e família as circunstâncias em que fora vencido.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
148

Certo da sua derrota no Polo, implora a sua mulher - tão ambiciosa do seu triunfo - que
nem ela nem o filho tenham vergonha dele, e pensando ainda no filho, o amor de Pai junta-
se ao orgulho de explorador, quando acrescenta: «Que extraordinárias coisas eu vos poderia
contar sobre a expedição! Quantas histórias haveria para o petiz! Mas porque preço tudo
isto foi pago!»
Embora! A sorte se o não deixou de ter a glória de ser o primeiro no Polo, tornou ao
menos a sua agonia num espectáculo de tamanha grandeza moral, que o nome de Scott
será sempre pronunciado com a veneração que merecem os pioneiros, mortos ao serviço do
conhecimento humano. E. Scott morreu na Antártida.
Há poucos anos, quando Jean Rouch, visitava uma Escola Naval Inglesa, o oficial que lhe
servia de guia exclamou em frente do retrato de Scott, depois de haverem percorrido uma
extensa galeria de marinheiros, heróis do Império: - «este é o maior!»
Sem dúvida! Se os outros, sucumbindo no frenesim dos combates, bem tinham merecido
do Império, Scott, morto no sudário antártico, bem merecera da humanidade.

Quando se morre na pista 7


Na majestosa serenidade das galerias tenebrosas da caverna do Penedo de São Martinho
reboa, como sempre, o surdo murmúrio do rio subterrâneo; dos tectos rochosos das pétreas
paredes continuará a pingar e a escorrer brandamente a água saturada de calcário – e, sob
um túmulo de pedras carreadas uma a uma pelos seus camaradas exaustos Marcel Loubens
descansa para a eternidade nas profundezas austeras do abismo.
Para além da significação pessoal da sua morte, importa revelar o amor que o levou ao
encontro desse passo do seu destino, esse amor abnegado e desinteressado do desvendar,
de contribuir com a sua quota-parte para o progresso do conhecimento científico; esse amor
– ou esse sonho – que o matou a mais de 380 metros da superfície, quando nas trevas
saturadas de humidade de uma caverna pirenaisa. Loubens se propunha mais uma vez e
sem restrições levar a cabo a tarefa que lhe competia. Algumas vezes – tantas! – nas pistas
solitárias e solenes do ignoto, os louros do triunfo transmudam-se na palma do martírio: na
caverna de São Martinho, a ruptura do cabo de aço, a queda brusca e sem mercê, a coluna
vertebral e o maxilar fracturados – e o pobre corpo dorido do espeleólogo francês ficou
estirado na dura plataforma de rocha que viria a ser o seu leito de morte.
Antes que a vida de todo lhe fugisse, antes que a citação a título póstumo fosse publicada
na ordem da nação francesa, quantas horas de agonia!
Que não se manche a nobreza e a beleza dessa morte com sentimentalismos piegas, nem
se faça a exploração ignóbil dos sentimentos dos componentes da expedição que viveram
e suportaram dignamente toda a indizível amargura do irreparável. Mas sem diminuir a
grandeza da tragédia nem ofender o pudor dos que nela participaram, evoquemos a dor
pungente dos homens da brigada de profundidade que, à luz velada das lâmpadas portáteis,
fizeram, quebrados de assombro, a vigília do camarada moribundo: evoquemos a terrível
sensação de abandono e isolamento vivida por esses mesmos homens; as lágrimas cálidas
e amargas devoradas por quantos em cima tomaram conhecimento do desastre; o audaz
ousar do médico André Mairet que, em resposta ao angustioso e veemente apelo de socorros
urgentes transmitido pelo telefone de campanha, logrou alcançar o fundo, descendo por
uma vertiginosa escada de corda; a dolorosa expectativa da brigada de superfície e a firme
abnegação da equipa de socorro; a série de tentativas frustradas para içar o corpo; a dramática
insistência do velho Mr. Loubens a pedir à boca do abismo que lhe trouxessem o cadáver do
filho, e o desabar dessa triste ambição quando – quase rude na sua expressão formal, mas
ainda assim plena de amor e de solidariedade – a resposta de Norbert Casteret, o grande
espeleólogo, mostrou a impossibilidade do intento, porquanto severamente experimentados
na carne e nos nervos por tantas e tantas horas amarguradas, todos os homens estavam
esgotados pelo esforço e pela emoção.
Tudo isso esquecerá talvez – que o tempo misericordiamente atenua, quando não
cicatriza, os desgostos e as feridas; mas saibamos reter – e nem seria justo esquecê‑lo – que

7 - Diário de Coimbra, Ano XXIII, 21 de Agosto de 1952


Alfredo Fernandes Martins
149

Marcel Loubens encontrou a morte quando, na força da vida, buscava aumentar o pecúlio
do conhecimento humano.
Porventura outros exploradores, mormente nas regiões polares e na alta montanha,
terão sucumbido em circunstâncias mais e espetaculosas ou mais propícias a desencadear no
comum das gentes o irreprimível arrepio emocional; em todo o caso, o guia da esquadra de
profundidade da expedição de Max Cosyns, sepultado na sua pista depois de ter sido derribado
pela asa da morte na simplicidade trágica das consequências de uma queda vertical de 40
metros, nas profundezas de uma caverna, bem merece a comovida lembrança e o respeito
daqueles outros trabalhadores que, em qualquer parte do mundo e não importa sob que
bandeira fizeram o dom de suas vidas à investigação científica; bem merece a homenagem
de quantas, perdidas já as restantes ilusões, souberam guardar intacto e virginal esse fecundo
amor de conhecer.
Outros espeleólogos em outras cavernas continuarão a descer para a profundidade,
arrastados por esse sadio desejo de rasgar o véu, de devassar o mistério, solicitados pelo
aliciante apelo do desconhecido – e esses homens bem poderão levar em seus corações,
como lábaro, o nome de Marcel Loubens.

Luctor et emergo 8
No primeiro ímpeto, por mais duros que sejam os golpes despedidos, a adversidade só
leva de vencida aqueles que se dão por vencidos, apenas terá poder sobre esses quantos que,
cruzando os braços, se tornam presa fácil do desânimo e renunciam à luta. Mas quando os
golpes cruéis ganham persistência e, desapiedados, minam as mais ardorosas forças morais,
não seria justo rotular de fraqueza a inevitável rendição, já que a resistência e a capacidade
de sofrimento dos seres humanos têm seu limite. Nestas circunstâncias, o que maravilha é
haver quem recuse obstinadamente render‑se e saiba encontrar, na chaga aberta das próprias
feridas, novos alentos para defrontar as vicissitudes amaríssimas do seu destino – e dessa
têmpera é forjada a alma indómita dos Holandeses.
Palmo a palmo, vitórias alternando com desaires numa luta incessante e sempre renovada,
gerações de Holandeses, ao longo de séculos de esforços coordenados e persistentes,
conquistaram aos pântanos e às turfeiras, ao domínio marinho e aos alagadiços dos rios,
duas quintas partes da Terra Pátria. Quilómetros e quilómetros de diques; milhares e milhares
de moinhos para esgotamento das águas; canais e mais canais de drenagem; um polder a
somar‑se a um outro polder; a coalescência de ilhotas costeiras, as tranquilas perspectivas
das terras baixas, o magnífico tapete dos campos de tulipas – tudo isso testemunhava e
constituía os troféus da vitória. E aos obreiros denodados desse triunfo bem cabia o direito de
afirmarem orgulhosamente que «Deus criou os mares, e o Holandês fez as costas».
Mas, apesar de tudo, a ameaça sempre eminente das águas não permitiu jamais uma
pausa no esforço, porquanto esses dois quintos da superfície total do solo pátrio estão abaixo
do nível do Mar do Norte; e, deste jeito, se um dique rebenta, se as ondas alterosas rasgam
brecha na linha de dunas, logo as águas entram de roldão, a subverter abruptamente, num
torvelinho de morte e destruições, todo o justo prémio da tarefa tenacíssima.
E isso aconteceu muitas vezes, tantas que bem poderá dizer-se não haver um século da
história das Províncias Unidas que não registe a memória de perdas temporárias ou definitivas
de territórios anteriormente conquistados ou em vias de recuperação. E ao evocar os lances
emocionantes da batalha sempre acesa, importa considerar que opor-se obstinadamente à
fúria cega das forças naturais não é missão para qualquer – mas o Holandês, esse, dir-se-ia
que foi talhado para tal. Com efeito, sempre que a mortalha das águas cobriu tragicamente
os polders devastados e as aldeias destruídas, a gente holandesa, após um primeiro instante
de assombro, tem sabido em todos os tempos reagir corajosamente, voltar de novo à luta,
continuar o esforço fecundo da conquista da terra mártir.
E gora mais uma vez um sopro de tragédia varre avassaladoramente as terras baixas.
Sob o ímpeto brutal das marés vivas conjugadas com furiosas tempestades, estacarias e
diques abriram brechas, esventrados, desfeitos pelo violento martelar das águas revoltas;

8 - Diário de Coimbra, Ano XXIII, 10 de Fevereiro de 1953.


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
150

e, enquanto braveja a tremenda força dos elementos desencadeados, a inundação em


descarga temerosa, facilitada pela descida para níveis mais baixos, submerge de lés a lés
a esplendorosa planície, levando como lábaro a angústia e a ruína, deixando no seu rasto
a assolação e a morte. E, não obstante, neste cenário de infinita amargura, a viril gente
holandesa cala as dores crudelíssimas, devora as lágrimas, engole o acre fel do desespero e,
num alarde de bravura, retesa os músculos, finca os pés, e aguanta-se na defesa da terra que
fez por suas mãos. Se a solidariedade é ainda algo mais do que uma palavra vã e se acaso as
mãos se podem estreitar por cima das fronteiras, em toda e qualquer parte onde houver um
homem este sentirá fraternalmente o golpe sem perdão que lanceia os Holandeses, sentirá
o imperativo de levar-lhes a sua ajuda, ainda que outra não seja senão a de prestar-lhes a
comovida homenagem de confiar neles. E os Holandeses bem o merecem, porquanto, num
país onde o estado de alerta nos diques é velha norma, a digna lição de teimosia na luta e
de perseverança no esforço foi-lhes dada com o leite materno e, na herança legada pelos
avós deles, é seu quinhão todo o pecúlio de sóbrio e abnegado heroísmo que vem já dos
antepassados dos avós deles.
O exemplo dos intemeratos lutadores de antanho frutificou nos corações destes homens
de brio; e, por isso, valorosamente, teimosamente, sem voltar a cara às dificuldades e ao
risco, os Holandeses de nossos dias, empenhados na mais nobre das conquistas, hão-de
reaver uma vez mais a Pátria que fizeram, arrancar do sudário das águas esse solo sagrado
pelo esforço e que, no dizer de Kohl, «não é de pedra, nem de terra, mas sim de sangue,
carne e suor dos homens».
E certos de que os Holandeses, levarão a cabo a tarefa grandiosa, aumentando desse jeito
o património comum da Humanidade, saibamos compreender e sentir o legítimo orgulho da
varonil divisa da província zelandesa – Luctor et emergo –, mote que bem poderia ser o lema
de toda a Holanda: «Luto, e por isso, venho à tona da água».

Vesperal nas rias 9


Sei bem que a obrigação, seja o dever, de interpretar fisiograficamente as paisagens
constitui a grandeza ou a miséria do meu ofício; e ainda sei quanto seria correcto, do ponto
de vista do mester, que me limitasse a considerar friamente, objectivamente, a génese das rias
e o significado destes acidentes na evolução morfológica do litoral galego. Sim, sei bem tudo
isso; mas tanto — confesso-o humildemente — foi superior às minhas forças. E, enquanto
derrocava quase de todo a deformação imposta pelo ofício, aconteceu-me que surdisse do
meu fundo emocional o melhor da minha sensibilidade estética — e, diante dessas cristalinas
toalhas de água, de tão calmo espraiar e assim caprichosamente insinuadas quilómetros e
quilómetros pela terra adentro, quase só tive olhos para que os deixasse cativos do encanto
prestigioso do cenário, quase só tive olhos para que me ficassem presos no enleio poético
desta ambiência de saga nórdica. E, ainda que me insurgisse contra o que pareceu fraqueza
profissional e ficasse murmurando um contrito mea culpa!, acabei por me interrogar se acaso
um pobre de Cristo poderá assim tão facilmente libertar-se da sua condição humana e evitar,
logo ao primeiro contacto, o sortilégio fascinante da paisagem magnífica.
la a tarde em mais de meio. Estava o céu quase de todo forrado; e, por entre os rasgões
das nuvens, os raios oblíquos do sol, a trespassarem ténue neblina, arrancavam das águas
e das terras subtis toques de luz, matizavam docemente os planos e as cores do cenário
— e bem se poderá dizer que na doçura da luz maravilhosa, brandamente tamisada pela
humidade, está o segredo deste quadro de tamanha beleza.
A estrada desdobra-se a meia-encosta das airosas colinas, quando não calha estar
traçada quase ao rés-da-água — e, coleando nas dobras do relevo, a vencer um esporão
ou adossada no aconchego de um valeiro, permite rápidas mutações de pontos de vista,
dá lugar a sequências de perspectivas, modifica os ângulos com a variação da cota; e, se
nos furta, por breves instantes, a visão das rias ou a silhueta dos montes longínquos, logo
adiante, ao sair de uma curva, nos mostra quadros qual deles de mais bela trama. E a beleza
flui aqui da íntima conexão das terras e das águas, do subtil desenho de ansas e recôncavos,
das ilhotas de balada reflectidas no cristal das águas tranquilas; o encanto nasce do equilíbrio

9 - Diário de Coimbra, Ano XXIII, 22 de Setembro de 1952.


Alfredo Fernandes Martins
151

das perspectivas, do desenvolvimento rítmico dos planos e, também, da harmonia plástica


das linhas, das formas e dos volumes.
Nos longes levantinos, esfumados pela névoa e pela distância, contrafortes mais ásperos
do velho maciço galaico desenham no horizonte severos perfis; mas nem por isso imprimem
qualquer dureza — antes servem de moldura que, por contraste, mais faz sobressair a traça
eurítmica dos planos próximos, destes planos que resultam da conjugação e do movimento
topográfico de cordas de colinas de escassa altura. E essas colinas de contornos suavemente
boleados, prodigamente revestidas dos verdes aveludados da vegetação rasteira, salpicadas
de carvalhos, intensivamente exploradas pela economia rural, descem compassadamente,
de cada vez mais baixas, antes que de todo se esbatam no recorte caprichoso da linha de
contacto com as águas.
A terra e as rias interpenetram-se como que amorosamente enlaçadas; os perfumes dos
prados, dos campos e dos pomares confundem-se com o cheiro acre da maresia; as exalações
da terra são varridas pelos ventos do largo — e esta ambiência compósita repercute na vida
dos homens. As casas dos camponeses, dispostas em presépio no descair das vertentes,
miram de cima ou vão ao encontro do casario garrido de cal que na orla dos esteiros se
reflecte nas águas onde pulula a vida marítima. Aqui, além, por toda a parte, hortas e leiras
de milho e tufos de árvores acabam a menos de uma aguilhada, ou a menos de uma braça,
dos lugares onde está varado ou lançou ferro um barco que regressou da pesca ou aparelha
para largar. E, porque assim se justapõem as fainas do mar e os trabalhos agrícolas, quem
passa — seja na ria de Vigo, na de Pontevedra ou em caminho de La Toja — nem sabe, por
vezes, se o homem que ali vai será um moço de lavoura ou antes um pescador que volta da
safra, tripulante talvez daquele caíque, daquela traineira ou daquele veleiro de longo curso
que logo ali a dois passos estão fundeados no remanso dos esteiros.
A tarde vai morrendo. Os raios do sol-poente franjam as nuvens de púrpura e ouro,
derramam nas águas cambiantes de esmeralda, azul e prata, tornam mais profundos os
reflexos sombrios das massas de arvoredo. E, sob a carícia da luz maravilhosa do entardecer, a
beleza dos panoramas alcança maior esplendor; num alarde de perfeição plástica, desabrocha
tão espontânea da natureza e das obras dos homens, é tanta e tamanha que chega a parecer
de magia e sonho, quase irreal, por tão prodigiosamente bela. E, à boca da noite, quando
tudo principia a diluir-se em tons de roxo e anil, quando o fumo dos casais ascende aos céus
e as luzes de bordo brilham já nos barcos ancorados, a melancolia dessa hora crepuscular traz
um acréscimo de poesia à fascinação do cenário — e, por isso, nem maravilha que os olhos
fiquem para todo o sempre enamorados desta paisagem sem igual.

Nocturno compostelano 10
Atenuado pela distância e pelos sucessivos anteparos de quarteirões velhos de séculos, o
bulício exuberante dos que passeiam e se enamoram nos modernos jardins de La Herradura
não perturba, ao de leve sequer, a serena melancolia do cair da noite neste dédalo de ruas e
pracetas circunvizinhas da grande catedral. E, de súbito, ao dobrar de mais uma esquina, o
santuário famoso — meta almejada dos milhões de peregrinos que, nos tempos medievos,
desfilaram em torrente pelo caminho de Santiago — surge desafogado e solene, obrigando-
nos a erguer os olhos para que descortinemos no negrume dos céus a perspectiva aérea da
fábrica magnífica.
Alheio e à distância de séculos da corrente caudalosa da peregrinação, apenas mais um
no couce dos muitos milhares de turistas que vieram após, chegou alfim a minha hora de
pisar também o lajedo granítico desta encantadora Plaza de las Platerias. E, se em lugar da
fé dos peregrinos de antanho, se em vez do bordão e do bornal deles, trago comigo o meu
criticismo céptico, uma câmara de cinema a tiracolo e deixei lá em baixo, à porta de uma
fonda estudantil, o auto em que viajo — nem por isso, chegado aqui, deixo de experimentar
uma extraordinária e profunda emoção, emoção arrebatadora que nasce do sentimento do
belo, que brota impetuosa dos reflexos subjectivos da obra feita; emoção que fico a dever a
não sei que anónimos artífices consumidos já no pó dos séculos, a esses quantos arquitectos,
canteiros e imaginários que, empolgados por sua crença fervorosa ou por anseios de ideal

10 - Diário de Coimbra, Ano XXIII, 1 de Outubro de 1952.


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
152

estético, quiseram, puderam e souberam plasmar toda esta maravilha arquitectónica e


decorativa, cantando em belíssimas estrofes de pedra lavrada a munificência dos grandes e a
ingénua religiosidade dos humildes.
No mistério da noite, a luz velada de discretos projectores valoriza formas e volumes
e pormenores; dá-lhes branda pátina e, deste jeito, imprime suave e solene majestade à
traça portentosa. E, na quietude poética do vetusto bairro, enquanto a melodia dos órgãos
reboa por naves e abóbadas e nuvens espessas de incenso se escapam pelos guarda-ventos
a embalsamar as massas de ar adjacentes, o portal românico das Platerias, a estatuária e os
lavores das fachadas, a mescla harmoniosa de gostos e estilos, o arrojado subir da torre da
Berenguela e este ângulo e aquele ganham assim maior encanto plástico, revestem grandeza
que não oprime, calam mais fundo na sensibilidade de quem vem a vez primeira.
Recolhida tamanha impressão de beleza, sigo a deambular no acaso da noite e das
esquinas que se dobram; tento insinuar-me na intimidade destas velhas ruas compostelanas,
assim tão docemente iluminadas por lâmpadas eléctricas que o bom-gosto soube resguardar
nos ferros e nos vidros de típicos lampiões das centúrias passadas. E, no acaso das trilhas
que percorro, depara-se-me a cada passo, continuadamente, a constância de um motivo
arquitectónico: sempre, sempre a mesma galeria, réplica de outras semelhantes, que, sob
os tramos avançados das estruturas, permitem circular a enxuto de um a outro extremo das
ruas.
E sempre, sempre de frente à faixa carreteira, este movimento sinfónico de arcos de cintro
pleno, quebrados ou em asa-de-cesto – arcarias melódicas que dão apoio ao corpo avançado
das construções, descarregando o peso sobre colunas adornadas, quando não enobrecidas,
de capitéis mais ou menos decorados. Apenas aqui e além, como se foram o contraponto
na sinfonia das arcadas, colunas e arquitraves ensaiam uma fuga, logo absorvida no ritmo
predominante do conjunto.
Singular motivo de beleza, esta feição arquitectónica – adequada resposta do homem ao
regime da pluviosidade local – encontrou nas pedreiras do termo o material capaz de exprimi-
la com nobre simplicidade, e tanto contribui, a par do prestígio plástico do granito, para a
extremada sedução destes velhos arruados. Mas é sobretudo no claro-escuro misterioso e poético
das arcarias, na penumbra de certos recantos, no contra-luz de um ângulo, na sombra funda de
janelas e sacadas, nas vieiras e pedras-de-armas valorizadas pelos raios oblíquos da iluminação
rasante – é sobretudo nesses subtis jogos de sombra e luz que assenta todo o secreto encanto
da Rua del Vilar, da galilé daquele templo da Rua Nueva ou dos esconsos da Rua de Gelmirez,
esse bispo obstinado e sagaz que, em sua prosápia e grandeza, tanto sabia abroquelar-se para ir
em hoste, como vestir com altiva dignidade as púrpuras de príncipe da igreja.
... Entretanto, esmorecidos a pouco e pouco todos os ruídos da vida urbana, a cidade
vai ficando adormecida no aconchego da noite tépida e silenciosa. Apenas alguns raros
transeuntes passam açodados, a pisar de leve as lajes de granito. Da catedral chegam horas
de noite-velha batidas em bronze antigo. Em rápido amortecer de breve bater de saltos,
furtivo vulto de mulher desaparece na penumbra das arcarias...
E, no acaso dos trilhos que percorro, acodem-me reminiscências do que no aprendizado
do meu ofício os Mestres me ensinaram do meio geográfico desta terra galega, ocorrem-me
passos da vida dos homens e da história local... E vou passando, passando ao lado de velhas
casas solarengas, de pequenas igrejas erguidas pela piedade dos compostelanos de outras
eras; vou passando rente a pedras lavradas no século XII, ou saídas das oficinas onde floresceu
o gótico, ou que fizeram cantar os cinzéis dos canteiros do Renascimento. E prosseguindo, a
dobrar esquinas atrás de esquinas, a cruzar ruas estreitas ou a considerar a severa beleza da
Plaza de España, começo a compreender melhor quanto me foi ensinado, sinto-me já menos
estranho – e, na magia da noite, encontro um pouco da alma da cidade.
E talvez assim aconteça porque, sozinho e no silêncio das ruas solitárias, consigo
entender melhor a linguagem das pedras. Sim, talvez, pois que, no dizer de poeta galego
contemporâneo, «el silencio es la habla de la piedra».
Alfredo Fernandes Martins
153

Pormenor de retábulo 11

No resguardo do vetusto recinto muralhado, a evocadora Lugo — que foi capital dos
Suevos — ficara quilómetros para trás, volvida já apontamento breve no meu caderno de
viagem. E, transposto o âmbito ameno e fresco do mimoso vale do Minho, não tardaria que
a sóbria traça das linhas mestras do cenário acusasse a simplicidade austera das superfícies
altas do velho maciço galaico. Lá longe, na melancolia dos horizontes distantes, serranias
arrasadas ainda soerguem pesadas dobras de relevo; mas, nos imediatos confins, apenas a
profunda cutilada de um que outro valeiro introduz pormenor destoante na branda ondulação
da severa topografia.
No descair despenhado das encostas e no rígido desenvolvimento das chapadas, a
pedra punge um pouco por todo o lado — e, por entre os fraguedos, esparsas brenhas
de giestas e algum tojo quebram a monotonia dos escalvados. E há castanheiros e mais
castanheiros, e carvalhos, e faias, e olmos. Aqui e além, aponta o bucolismo de prados onde
pascem cabeças e mais cabeças de gado bovino. De longe em longe, algumas poucas leiras
amanhadas desdobram-se em torno dos raros núcleos povoados, ao redor desses humildes
casais cobertos de lousa.
Triste e severo, este recanto da paisagem galega.
Chovera de manhã - e, lavada por essa chuva miudinha e fria, a tira asfaltada da carretera
espelhava sombrios reflexos... Nuvens esfarrapadas pelo vento passavam céleres, a roçar de
leve o tope dos castanheiros; na tristura dos planos longínquos espessara-se mais e mais a
cortina de nevoeiros baixos. Não restava um palmo de azul em toda a redondeza do céu.
Disparado como seta, passara por nós, caminho de Orense, um auto de matrícula
francesa. Ainda lhe ouvíamos o ranger dos pneus no desfazer de uma curva, quando nisto,
abruptamente, como se tivera lugar súbita revolução no fluir lógico das idades, como
se o tempo corresse vertiginosamente ao arrepio, todo o sincronismo coerente de havia
instantes ficou baralhado, confuso - e tal ocorreu quando, sem tir-te nem guar-te, aquele
velho, ressurgindo do fundo dos séculos, venceu uma derradeira volta de atalho e entrou na
estrada.
Aquele velho...
Talhado a toscos golpes de podoa num qualquer madeiro de duro roble, apenas numa ou
noutra feição houvera o esmero de delicados toques de goiva. O burel humilde dos peregrinos
vestia-lhe o corpo magro. Um leve bornal pesava-lhe nos míseros ombros descaídos; numa
dobra do esparto que lhe cingia a cinta, trazia presa uma cabaça. Nos olhos fatigados havia
um lampejo de fé e de febre; na seca mão nodosa, o bordão de caminheiro; na cabeça, um
enrodilhado chapéu de pano alvadio. Um ventinho ligeiro, que soprava das Astúrias, agitava-
lhe brandamente a prata dos finos pelos da barba...
Ele quedara, especado nas esguias e nervosas pernas de velho montanhês, a considerar-
nos, surpreso da brusca paragem que fizéramos. Estava queimado do sol das jornadas,
macerados os pés das léguas do caminho, cobertas as sandálias do pó das veredas percorridas.
As vieiras pendentes da romeira e o tradicional caminho de peregrinação por onde vinha de
rota batida mostravam claramente o destino que demandava – e esse era o santuário famoso
de Santiago de Compostela,
Aquele velho – sim, ele teria seu moio e pico de anos – teve para nós um franco sorriso
de simpatia humana e, num arroubo de alegre misticismo, ficou a dizer-nos ingenuamente
da jornada que empreendera. E, enquanto ele falava, a minha perplexidade aumentava de
ponto, pois não acontece todos os dias que nos salte assim pela frente um testemunho
vivo do século XII. E de mim para mim, repetia-me insistentemente que para não haver
anacronismo, para que não existissem contradições temporais, importava que este velho
e o automóvel, e as torres de alta-tensão, e os postes telegráficos e esta minha câmara de
cinema não coexistissem no espaço e no tempo. Sim, porque tal simultaneidade de presenças
chegava a ser inquietante.
Se a oportunidade era quinhão do velho, então que desaparecesse tudo quanto afirmava
o século XX! Se a justeza no tempo lhe competia, então que passassem ricos-homens e

11 - Diário de Coimbra, Ano XXIII, 22 de Outubro de 1952.


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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infanções a galopar em movimentada montaria ao porco-montês; que surgisse em tropel, de


longada para Leão ou para ir cometer guerra aos Muçulmanos da linha do Tejo, um luzido
troço de lanças senhoriais; que não tardasse um credo antes que, largado a toda a brida,
um mensageiro se voltasse na sela para gritar aos pávidos vilões que homens-de-armas de
Afonso de Aragão, o batalhador, andavam em correria talando os arredores...
Porém nada disto acontecia – e apenas o pobre do velho, tão rico de sugestão medieval, tão
de um outro mundo, para ali estava ao lado do automóvel... Desta guisa, seria quase ridículo,
se não fora tamanha a sua dignidade; e, porque estava sozinho, ilogicamente distanciado de
seus coevos um ror de séculos, o absurdo da situação permitia-lhe que praticasse connosco,
homens de uma outra época. Quanto a mim, para que se quebrasse o encanto, para que a
harmonia se restabelecesse no espaço e no tempo, tive de concluir que ele era nada mais do
que uma relíquia de in illo tempore, delida iluminura de não sei que Livro de Horas, ou talvez
uma tira de ignorado painel, ou antes singelo pormenor de um qualquer retábulo que os
homens ou o destino deixaram esquecido no caminho de Santiago.
Recomeçara a chuviscar. Forçoso nos era partir… E, porque recusaria – o velho fizera o
voto de palmilhar as asperezas dos trilhos –, nem se lhe ofereceu um lugar no carro. A recear
ofendê-lo, perguntou-se-lhe, tão somente, se acaso aceitaria alguns poucos cêntimos; que
sim, respondeu, pois – tal era também seu voto – durante a jornada queria depender da
caridade dos outros homens, seus irmãos.
E, quando o nosso carro arrancou, o velho seguira já, sob a chuva, nos trancos e
barrancos de ínvia azinhaga. E a vê-lo pela derradeira vez, lembrei-me de ti, moço pescador
de Villagarcia, que há dias, induzido em erro pela câmara de cinema que me vias manejar,
me saudaste cordialmente – Olá, americano! – e ficaste depois, no cenário fascinante das
rias, a comungar comigo a beleza pagã da tarde magnífica; lembrei-me de Você, Miss, tão
inglesa nas correctas feições do puro rosto oval quanto o era no trajar vincadamente made
in England –, lembrei-me de Você que, na manhã clara de Compostela, teve para mim um
aceno de simpatia, depois de considerar com breve sorriso irónico a modesta procissão que a
ambos nos tolhia o passo. E lembrei-me ainda de ti, jovem camarero de Lugo, de ti, sensato
rapazola de dezasseis anos, que, entre o amor acrisolado do torrão natal e a imperiosa
necessidade de emigrar imposta pelo regime de minifúndia e pela pobreza da Galiza alta –
essa fatal alternativa que se põe a todos os homens da tua terra - soubeste escolher já o teu
destino – Cuba.
Lembrei-me de vós, lembrei-me do velho peregrino, lembrei-me de mim. E, no fluir de
íntimo diálogo, recordei certas páginas de Ernest Hemingway, alguns passos da obra de
Antoine de Saint-Exupéry... E de novo a minha lembrança voltou para vós, voltou para todos
nós, e considerei que, para além de quanto nos separaria, estava o elo comum da nossa
condição humana. Isso nos dava fraternidade – e, na tarde de bruma, fraternalmente desejei
que cada um de nós saiba e possa cumprir bem o seu destino.
Alfredo Fernandes Martins
155

A palavra e a imagem

Geografia literária: viagem, aventura, ficção

“Lembrei-me de vós, lembrei-me


do velho peregrino, lembrei-me de
mim. E no fluir de íntimo diálogo,
recordei certas páginas de Ernest
Hemingway, alguns passos da obra
de Antoine de Saint-Exupéry... E
de novo a minha lembrança voltou
para vós, voltou para todos nós, e
considerei que, para além de quanto
nos separaria, estava o elo comum da
nossa condição humana. Isso nos dava
fraternidade – e, na tarde de bruma,
fraternalmente desejei que cada um
de nós saiba e possa cumprir bem o
seu destino” (Pormenor de retábulo,
Triptico galego).

Viagem à Galiza (1953)


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
156

Desenhar paisagens, cartografar emoções

Paisagem cársica (Garganta do Rhummel, Argélia). Desenho à pena

Costa de Minde: seu reverso

Vale suspenso da Carreirancha, visto


de montante

A Serra dos Candieiros: extremo setentrional Cultura de arroz de montanha na ilha de Lução
(Filipinas)
Alfredo Fernandes Martins
157

Desenho a giz no quadro preto feito durante uma aula.

“Aceitar como pertinente a imposição tirânica do quadro natural, seria diminuir a condição
humana, restringir o valor da inteligência e desse extraordinário instrumento que é a mão.
E ainda mais: significaria aquiescência a um dogma tão absurdo como esse de admitir a
invariabilidade de actuação deste ou daquele grupo de homens num determinado meio,
quer esses grupos estivessem apetrechados com a rudimentar técnica dos primitivos, quer
senhores de uma qualquer outra cultura mais adiantada na escala do progresso.
Assentemos que nem todas as transformações culturais da paisagem, nem todas as
migrações de grupos humanos, nem a maior parte das fronteiras, nem todas as fórmulas
jurídicas, nem os regimes políticos poderão ser fatalmente explicados única e exclusivamente
pela posição ou pela situação geográfica, tomadas que sejam estas duas noções na totalidade
do seu significado fisiográfico, isto é, com tudo o que implicam quanto a clima, solo, relevo,
tipo de associações vegetais espontâneas ou distância ao mar” (Á guisa de prefácio. Princípios
de Geografia Humana, de Pierre Vidal de la Blache, 1954 - 2ª edição).

Um chalé de pastores, nos Tatras Casa de madeira da Floresta Negra


(Europa Central) (Europa Central)

Casa da planície do Norte da Europa, Tenda de pastores nómadas (Norte de África)


no período de La Tène
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
158

Casas-obus do Sudão, nas vizinhanças do Casas bataques da ilha de Samatra


Tchad

Barco de balancim (Nova Guiné) Piroga dupla

O mapa: cartografar e interpretar o território

Itinerários dos rebanhos transumantes


Alfredo Fernandes Martins
159

Legenda:
1 – Abóbadas anticlinais; 2 – Cuvetas sinclinais; 3 – Abrupto de escarpa de falha; 4 – Grande abrupto de es-
carpa de falha; 5 – Frente de cavalgamento; 6 – Cavalgamento que se traduz por uma inversão do relevo; 7 –
Valeiros suspensos por falha; 8 – Escarpa de erosão, cornijas de calcário duro de vertentes abruptas dos vales;
9 – Canhão; 10 – Vale transversal de dobras anticlinais células cársicas (uvalas, vales cegos); 15 – Sector onde
predominam os valeiros de vertentes em down; 16 – Perda; exsurgências e ressurgências; Ponors emissivos;
17 – Superfície pliocénica dos confins ocidentais do Maciço; 18 – Bacia terciária do Tejo; 19 – Rochas eruptivas
eocénicas que se traduzem no relevo; 20 – Colinas modeladas nas formações do Neojurássico; 21 – Colinas
modeladas no Belasiano; 22 – Belasiano do fundo do graben dos Amiais; 23 – Bacia cretácica de Ourém; 24
– Vales tifónicos; 25 – Regiões calcárias carsificadas exteriores ao Maciço; 26 – Nível da charneca; 27 – Forma-
ções siliciosas grosseiras superficiais jacentes nos planaltos; 28 – Planaltos carsificados: a – planalto de Santo
António; b – planalto de São Mamede; c – plataforma de Fátima.
Abreviaturas: F – Fátima; A – anticlinal do Alqueidão; M – Minde; Md – Mendiga.

N.B. – Por lapso não foram figurados no desenho as manchas da formação siliciosa grosseira do Arrimal e de
Santa Catarina da Serra.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
160

Planalto de São Mamede: compartimento


sobranceiro à plataforma de Fátima

Planalto de Santo António: sectores


central e meridional

Habitat disperso na Gafanha (região de Aveiro) Terras de cultura conquistadas à floresta


da Europa Central

Esquema de aglomeração em regime de


afolhamento trienal
Alfredo Fernandes Martins
161

Foto(geo)grafia: (d)escrever a terra com a luz do olhar

Queimada Vale de Vêdes

Campos do Mondego – um rebanho pastando numa


ínsua assoreada

Casas Rurais – (Aldeia Viçosa)

Jangada (Raiva)

Trabalho nos campos de arroz (Baixo Mondego)

Trabalho nos campos de arroz (Baixo Mondego)


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
162

Desfolhada de milho Campos do Mondego Apanha da azeitona (Quinta do Cidral –


Coimbra)

Trabalho no campo Trabalho no campo

“A Estrêla é a abóbada mais saliente do solar português; de cenário sempre variado – nos
desfiladeiros, nos esporões majestosos dos Cântaros, nas naves, nas lagoas – tudo nela é
grandioso, tão grandioso que se traduz, como notou Emídio Navarro, pela persistência dos
aumentativos na toponímia local – fragões, covões, malhões – tal a impressão recebida pelos
que se deslocam nessas paragens.
O Mondego é o fulcro! De todos os rios que drenam o planalto beirão, ele será o único
a atingir o mar. Por isso os outros lhe prestam vassalagem – pagam-lhe o tributo das suas
águas.” (O esforço do Homem na Bacia do Mondego)

Rochedo antropomórfico Pilares residuais nas cercanias de Vale de Barreiras


(Planalto de São Mamede)

Maciço Calcário. Paisagem Maciço Calcário. Paisagem


Alfredo Fernandes Martins
163

“E a humilde gota de água que não desceu os declives da superfície para, sempre à luz
do Sol, seguir até o mar, essa humilde gota, símbolo de tantas outras que se infiltram por
uma diáclase, por uma juntura, por um algar, por uma fenda qualquer, para deslizarem,
murmurando, nos canais subterrâneos ou rolar nos lagos de húmidas abóbodas, panejadas de
estalactites, essa gota foi, e é, um maravilhoso escultor” (O Maciço Calcário Estremenho).

“A minha Mulher
Camarada que tantas vezes marchou a meu lado”
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
164
Rui Jacinto
165

José Manuel Pereira de Oliveira

José Manuel Pereira de Oliveira (Santa Maria, Torres Novas, 2 de Julho de 1928 –
Coimbra, 2006), licenciou-se em Ciências Geográficas (1955) e defendeu em 1973 a sua
tese de doutoramento em Geografia Humana sobre “O Espaço Urbano do Porto. Condições
Naturais e Desenvolvimento”. Além desta obra e de “Trabalhos de Geografia e História”
(1975), coletânea de trabalhos, revistos, reeditados e inéditos, publicou dezenas de artigos e
foi coordenador de diversos projetos de investigação nacionais, onde se destaca: Dinamismos
sócio-economicos e (re)organização territorial: processos de urbanização e de reestruturação
produtiva (Programa de Estimulo no domínio das Ciências Sociais - PCSH/C/GEO/143/91)
e GEOIDE: Geografia, Investigação para o Desenvolvimento (ALFA’ Programme – Project
3.0214.8), dinamizado pela Rede ATLANTIS, que envolveu geógrafos das Universidades
de Coimbra, Bordeus III, Salamanca, Middlesex University, São Paulo-Presidente Prudente
(UNESP), Católica do Perú e Autónoma do México, dando inicio ao diálogo que a Geografia
de Coimbra viria a intensificar com as Universidades brasileiras.
Professor catedrático (1983-1998) e coordenador dos mestrados em Geografia da Facul-
dade de Letras da Universidade de Coimbra, foi Doutor Honoris Causa pela Universidade do
Porto (2001), sócio fundador da Associação Portuguesa de Geógrafos, da Comissão Nacional
de Geografia (vice-presidente e presidente em 2000), membro do conselho científico para
a instalação do Curso de Geografia da Universidade do Minho (1996-1997) e presidente da
Comissão Permanente de Avaliação Externa das Universidades Portuguesas para a área da
Geografia.
Foi Delegado Regional da Região Centro, do Ministério da Cultura (1980-1989) e re-
presentante de Portugal no grupo de peritos do Projeto n.º 10 - “Cultura e Região – Dinâmica
Cultural e Desenvolvimento Regional”, do Conselho da Europa.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
166

Espaços urbanos: o Porto, o Mundo

“O espaço urbano do Porto, definido pelo seu perímetro administrativo actual, organizou-
se no decorrer dos séculos sobre uma superfície topográfica que não apresentava grandes e
inultrapassáveis obstáculos à humanização.
(…) Nascida, talvez, do esforço de travessia do Douro, no cruzamento que se tornaria
cheio de vicissitudes mas também de riquezas, teve primeiro que se defender, trepando e
resguardando-se em amuralhado e exíguo âmbito, rochoso e alto. Dali comandava o rio e
o seu tráfego que em breve fazia alastrar actividades e povoamento ao longo da ribeira do
Douro.
Seguro, assente e organizado, primeiro em termos de senhorio doado e mais tarde,
depois de longas e tenazes lutas que envolveram a Mitra, a Coroa e a efervescente massa de
mercadores e mesteirais, como município com foral próprio, alastrou trepando penosamente
a vertente difícil do Douro, a favor do afeiçoado passo insculpido pelo rio da Vila, contido no
âmbito da muralha que D. Afonso IV iniciou e seu neto D. Fernando concluiu.
Delineada com largueza, a cinta amuralhada, tempos depois, não podia mais conter a
crescente urbanização.
Vencida a vertente, sucedeu-lhe a expansão no espraiado das áreas largamente
trabalhadas no granito ou nos revestimentos quaternários das praias antigas e dos terraços,
pelas cabeceiras dos afluentes do Douro e do Leça.
Segue como linhas-mestras os velhos traçados viários que, vindos de longínqua data,
permaneceram funcionais até aos nossos dias, escoando em direcção ao porto e às pontes
de passagem as riquezas de entre Douro e Minho e Trás-os-Montes a encontrarem-se e a
trocarem-se com as que provinham das Beiras interior e litoral, ou do S e todas a reunir-se
para saírem a barra em direcção aos portos da Europa, em especial os de França, Inglaterra,
Flandres c mais longe ainda, do Báltico e do Mediterrâneo, da África e da Índia, de onde
lhe chegavam em troca novos e diferentes motivos de comércio a par de luzes de saber no
domínio das ciências e das artes. (…)
Foi assim alastrando o desenho do seu casco e enriquecendo as suas actividades, quase
colmatando hoje o território que viu o seu perímetro definido nos fins do século passado.
Não deixou, porém, de diversificar-se no seu todo. Na complexidade das relações
entre as suas construções, as suas ruas, e as suas praças, jardins e matas, públicas ou
privadas, concentraram-se ao longo dos séculos estruturas espaciais diferentes, ocupações
predominantes, quer habitacionais, quer de labor que ora se segregam ora se confundem,
criando ambiente e paisagens urbanas distintas.
Sem grande esforço é possível verificar através de uma deambulação cuidada a riqueza
de variedade dessas paisagens.
Eis todo um espaço urbano que está longe de ter uma mesma densidade de povoamento,
que mostra ainda amplas clareiras de ambiência rural, mas que no contexto regional se
distende, prolonga e coalesce. Com as áreas urbanas ou suburbanas dos concelhos limítrofes
com os quais de há muito estreitou fortemente os laços de uma ampla gama de interesses.”
(O espaço urbano do Porto, 1973: 440-441)

“Uma cidade é um facto geo-humano, não é um fenómeno ocasional e espontâneo.


No seu complexo de factores, os de natureza humana são dos principais e, por esse motivo,
a existência de uma cidade deve atribuir-se sempre a actos voluntários. Todavia, a acção
voluntária dos homens incide sobre espaços concretos, geográficos, sujeitos às leis físicas da
Natureza. Estas determinam o condicionalismo mesológico físico destes espaços e constituem
portanto outra gama de factores actuantes, embora inconscientes e involuntários. Da
harmonia possível entre a involuntariedade de uns e a inteligente capacidade voluntária de
adaptação dos grupos humanos nascem e evoluem os meios geográficos nas suas infinitas
possibilidades. A cidade não é mais que um entre outros, talvez o de maior complexidade, o
de mais profunda humanização.”
José Manuel Pereira de Oliveira
167

Os Guindais O Largo da Trindade. Pavimento a


preto (basalto) e branco (calcário)
num arranjo urbanístico moderno

Avenida dos Aliados. Monchique. Restos do edifício do Convento e da casa das Sereias
Passeios calcetados a preto (basalto)
e branco (calcário)

Muro dos Bacalhoeiros. Restos das muralhas A Rua de Miragaia. Os famosos cobertos
fernandinas

A Rua Chã. Ao fundo, a Rua de Cimo de Vila A Rua do Loureiro


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
168

O Largo da Feira de São Bento (actual Praça de Almeida A Rua de «O Comércio do Porto», antiga Rua Nova
Garrett), vendo-se a Rua do Corpo da Guarda, A Rua de São Francisco ou da Ferraria Nova ou de Baixo
de Mouzinho da Silveira e a Rua das Flores

A Rua de Mouzinho da Silveira A Rua de Mouzinho da Silveira (parte terminal S)

A Rua do Vilar. Pavimento com paralelepípedos A Rua do Almada


de granito e passeios com lajes de granito

O Barredo O Barredo O Barredo


José Manuel Pereira de Oliveira
169

A Rua Escura. Ao fundo, A Rua Escura. Mercado de levante A Rua Escura. Mercado de lavante
a Cruz do Souto

A Rua de São Pedro Miragaia A Rua Reboleira

Rua de São Victor. Uma ilha Rua de São Victor. Entrada de uma Rua de São Victor. Uma ilha do tipo
ilha, sob um prédio varanda
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170

Lisboa Lisboa

Lisboa

Academie Mont Cenis Herne Nova Zolaine Paris

Paris Paris

Nova Zolaine Seul, Coreia


171

Messias Modesto dos Passos

Nasceu na cidade de Ribeirópolis, Estado de Sergipe/Brasil, aos 18 dias de fevereiro de 1944.


Possui graduação em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1972), Mestrado em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo (1981) e
Doutorado em Geografia (Geografia Física) pela Universidade de São Paulo (1988); 02 Pós-
-Doutorados na Université Rennes 2 – França: 1992-1994 e 2002.
Atualmente é coordenador de projetos apoiados pelo Conselho Nacional de Ciência
e Tecnologia/CNPq pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e pela
Coordenadoria Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior. Autor de quatorze livros, com
destaque para “Biogeografia e Paisagem”/EDUEM, “Amazônia: Teledetecção e Colonização”/
EDUNESP e “A raia divisória São Paulo – Paraná – Mato Grosso do Sul: Geossistema, Território
e Paisagem”/EDUEM. Coordenador do Projeto Temático: “Dinâmicas socioambientais,
desenvolvimento local e sustentabilidade na raia divisória São Paulo – Paraná – Mato Grosso
do Sul”, apoiado pela FAPESP.
Coordenador do Projeto: A paisagem, uma ferramenta de análise para o desenvolvimento
sustentável de territórios emergentes na interface entre natureza e sociedade, apoiado pelo
CNPq. Coordenador do Projeto “GEÓIDE: os países de língua portuguesa” apoiado pelo
Programa CAPES-FCT. É autor de 08 documentários em DVD abordando as dinâmicas sócio-
ambientais do território brasileiro (Pantanal, Colonização Agrícola no Mato Grosso, BR-163, A
gestão da água...). É Membre Associé au Laboratoire Costel - Université Rennes 2 - France.
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172

Bye Bye, Brasil: uma viagem aos sertões

“Do que lembro, tenho”


(Guimarães Rosa)

As mudanças socioespaciais dos últimos 60 anos transformaram o Brasil, um país


essencialmente agrário, até então, em um país urbano-industrial com impactos paisagísticos
agudizados por algumas variáveis que dificultam enormemente o encontro de um modelo de
desenvolvimento que seja socialmente justo e ambientalmente correto (PASSOS, 2000):
- a dispersão espacial das atividades, em parte justificada pelas dimensões continentais do
território mas, certamente, devido ao caráter de nossa formação sócio espacial marcada
pela “economia de fronteira”;
- a compressão temporal, ou seja, a velocidade das mudanças socioeconômicas e,
claro, das definições e redefinições das políticas territoriais que atendem muito mais
às conjunturas e às regras ditadas de fora para dentro, não considerando os custos da
desintegração regional;
- a concentração, fenômeno considerável da dinâmica territorial brasileira, manifestada na
concentração da pobreza nas periferias das médias e grandes cidades; concentração de
renda e de patrimônio;
- os brasis, Brasil Atlântico, Brasil interior, Brasil povoado, Brasil pouco povoado, Brasil rico,
Brasil pobre, mas sobretudo um Brasil de grandes diferenças locais e regionais. Brasil de
sobreposição do moderno com o arcaico marcadamente híbrido, ambivalente, instável e
dinâmico, herança do processo de “modernização conservadora”.
Enfim, o Brasil é um dos países do Mundo onde se pode observar sobre um período
relativamente curto (duas décadas de anos), a emergência de novas formas de ocupação do
território, de exploração dos recursos naturais e de mise en valeur agrícola.
Mais precisamente, nas zonas ditas de “fronteira agrícola”, como a Amazônia ou o Planalto
Central, a aceleração da expansão econômica brasileira se manifesta por importantes impactos
sobre o espaço como, por exemplo, a apropriação de vastos territórios por interesses privados
(grandes propriedades rurais, firmas agro alimentares, indústrias mineiras, frequentemente
multinacionais), o afluxo de populações provenientes dos espaços em crise do Nordeste ou
das superpovoadas metrópoles do Sul, a emergência de novos centros urbanos etc.
É desse Brasil profundo, dos sertões distante das grandes metrópoles do país que nós
vamos falar.

Os sertões nordestinos e o cacau da Bahia

Sertão Nordestino. No Brasil, costumam-se fazer referência a três sub-regiões do nordeste:


o litoral, a caatinga e o sertão. Essa divisão tem um caráter muito fisiográfico. Em tempos mais
recentes, o caráter cultural e paisagístico foi emergindo... a tal ponto que Ariana Suassuna
afirma que “o litoral é uma paisagem graciosa e o sertão, uma paisagem grandiosa”. É uma
região que compreende a parte mais interior de praticamente todos os estados da região
nordeste brasileira. Usualmente, a denominação de “sertão nordestino” é dada às regiões
interioranas, independentemente do nível de desenvolvimento social ou econômico.
O clima na região é predominantemente semiárido com uma estação seca mais prolongada
onde a taxa de precipitação pode cair a níveis baixíssimos (500mm a 800mm por ano em
algumas regiões, mas podendo chegar a 400mm em outras).
A cultura do sertão nordestino está intimamente ligada ao clima e à história de sua
colonização (foi a primeira região interiorana do Brasil a ser colonizada). Devido à pressão
das grandes plantações de cana-de-açúcar que se desenvolviam nas regiões mais úmidas,
a criação de gado avançou pelo sertão e até hoje é uma das principais atividades da região
e, embora incipiente se comparada às regiões centro-oeste e sul, caracteriza o modo ser do
sertanejo nordestino.
Messias Modesto dos Passos
173

Município de Canindé do São Francisco (Estado da Mercado Municipal de Aracaju-SE


Bahia) Nos sertões nordestinos é prática comum o uso de
As estiagens prolongadas são comuns na região o ervas - folhas, sementes, cascas de espécies vegetais
que dá ao sertão nordestino sua paisagem típica. A - serem vendidas nas feiras, nos mercados... como
caatinga é a vegetação predominante e encontra-se remédios para o corpo e para a alma.
adaptada aos longos períodos quase sem chuvas. Na
foto, em destaque, exemplares de espécie xerofítica:
Mandacaru.

Itabaiana-SE Porto das Flores - Estado de Sergipe.


Apesar da geografia sofrida no nordestino... são Vaqueiros nordestinos, uma presença de forte identi-
muito fartas as feiras de cidades que se encontram dade do Sertão Nordestino, com sua vestimenta de
na transição do Agreste com o Sertão. Há de tudo... couro... para se proteger dos espinhos das espécies
vegetais da caatinga.

Mercado Municipal de Aracaju - Estado de Sergipe.


Uma cena constante das feiras e mercados populares
das cidades do Sertão Nordestino: o sanfoneiro e seu
conjunto embalados pela musicalidade do “forró”...

Município de Tracunhaém - Estado de


Pernambuco.
Outra forte tradição da vida dos sertanejos:
preparar a carne de bode para festejar com
(Fotos de 2002) amigos e parentes ao som do “forró”.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
174

Cacau da Bahia. A partir da década de 1770 a coroa portuguesa passou a incentivar o


plantio de novas lavouras de exportação para diminuir a dependência do comércio do açúcar.
Teve início o plantio de lavouras alternativas como café, cacau e algodão.
O início do cultivo comercial no município de Ilhéus, no sul do estado da Bahia, foi em
1820. Os pioneiros foram principalmente suíços e alemães com capital. A partir de 1835, o
cacau tomou parte regular nas exportações anuais da província.
Jorge Amado chama a atenção para o cenário do cacau com obras como Cacau (1933),
seu segundo romance, seguido por Terras do sem fim (1943), narrativa sobre a saga da
conquista da terra e a origem social dos coronéis, e São Jorge dos Ilhéus (1944), continuação
do enredo anterior e que, como Gabriela Cravo e Canela (1958) aborda as mudanças no
contexto social e econômico da região cacaueira.
Em 1990 a produção sul baiana sofrem com a “vassoura de bruxa” que, aliada aos preços
declinantes do produto no mercado internacional, gerou uma forte crise no setor.

Município de Ilhéus - Estado da Bahia O Município de Ilhéus - Estado da Bahia


As sedes de Fazenda Cacaueira são reveladoras da No sul da Bahia o cacau é cultivado à sombra de
riqueza que esse produto gerou no município de Ilhéus espécies vegetais da Mata Atlântica. Aqui eles estão
- estado da Bahia. próprios para serem colhidos.

Município de Ilhéus - Estado da Bahia Município de Ilhéus - Estado da Bahia


A colheita do cacau: os frutos do cacau amadurecidos A secagem do cacau: depois de colhido o cacau é seco
caem no chão. Com o jacá às costas, o trabalhador num “terreiro” com cobertura móvel, ou seja, que pode
colhe um a um e leva até o terreiro para a secagem. ser coberta e descoberta conforme as condições do
tempo.

(Fotos de 1999)
Messias Modesto dos Passos
175

Colonização e garimpo

De estrada dos colonos a corredor de exportação: a BR-163 entre Cuiabá (Mato


Grosso) a Santarém (Pará). A BR-163, longo eixo de 1764 km, entre Cuiabá/MT e Santarém/
PA, foi inaugurada em 20 de outubro de 1976, com a promessa de desenvolvimento e de
progresso para a Amazônia e o Brasil. Milhares de brasileiros foram atraídos para esta nova via
de colonização. O Governo Federal, em consonância com os objetivos do Plano de Integração
Nacional/PIN, de 1971, delega ao Instituto Nacional de Colonização Agrária/INCRA a tarefa de
coordenar o processo de colonização. Para os pequenos agricultores, o sonho não se realizou e a
realidade observada atualmente ao longo da BR-163, notadamente no sudoeste do Pará, difere
dos planos iniciais. O caráter produtivista e a dominação das grandes trades (Cargil, Bunge,
ADM...) está inserido na paisagem, em detrimento das preocupações socioambientais.
A Cuiabá-Santarém/BR-163, concebida para “ligar o homem sem terra do Nordeste à terra
sem homem da Amazônia” apresenta-se, atualmente, como um dos principais corredores de
exportação de grãos, via porto da Cargil, assentado na confluência do rio Tapajós, com o rio
Amazonas, em Santarém/PA.
A BR-163: rota de conflito com os índios
O norte do Mato Grosso é um espaço cuja evolução se articula em dois tempos: o tempo
longo de uma história “sem história” ou ocultada – “até meados do século XX, os Kayabis
resistiram à entrada do branco em seu território” (Souza, 1997) -, e o tempo curto que aborda
o processo de territorialização recente, sinônimo de uma ocupação humana agressiva. Nos
anos 1970, a construção da BR-163 determinou um novo modelo de valorização do espaço: a
rodovia motivou o avanço das frentes pioneiras.

Município de Rurópolis - BR-163/Sudoeste do Município de Rurópolis - BR-163/Sudoeste do


Estado do Pará Estado do Pará
Com objetivo de criar laços de amizade e, notadamente A colonização social na área de influência da BR-163 foi
de motivar a prática religiosa foram construídos um fracasso: o pouco conhecimento dos assentados,
templos ecumênicos a cada 50 km ao longo da BR- as dificuldades ecológicas e a ineficácia das Políticas
163, no sudoeste do estado do Pará Públicas são as principais causas

Vale do Aruri/BR-163 - Sudoeste do Estado do Pará Santarém - Estado do Pará


Apesar da atuação dos órgãos fiscalizadores e das pés- O porto da Cargill na confluência do rio Tapajós com o
simas condições da BR-163, muita madeira é escoada Amazonas, na cidade de Santarém/PA. Vez ou outra a
clandestinamente até os portos de Itaituba e de Miritituba, logomarca Cargill é apagada por grupos de ecologistas
nos rios Amazonas e Tapajós, respectivamente. radicais.

(Fotos de 2004)
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
176

O Garimpo no Tapajós. O garimpo seduz como mulher, embriaga como bebida e vicia
como o jogo” (Anônimo).
Para muitos o “garimpo é a última fronteira”. No entanto, a extração informal (e nem
sempre tão informal) desse precioso mineral faz parte da história socioeconômica e cultural
de uma vasta área do eixo da BR-163 que, grosso modo, poderia ser delimitada a partir
de Peixoto de Azevedo, no estado do Mato Grosso e se prolongando até o estado do Pará
- Castelo de Sonhos, Novo Progresso e, notadamente o Crepori e o Creporizinho que mo-
tivaram a construção da Transgarimpeira, a partir de Moraes de Almeida.
As áreas de influência das cidades de Castelo de Sonhos, Novo Progresso, Moraes de
Almeida têm suas origens e sua economia atual, baseadas no tripé: garimpo de ouro, ma-
deira e pecuária.
A colonização privada alcançava assim, via Cuiabá-Santarém, as frentes garimpeiras
que desde o final dos anos 1950 já vinham ocupando pontualmente áreas densamente
irrigadas e ricas em ouro de aluvião no vale do Tapajós, ao sul do planalto santareno, em
torno de rios como o Jamanxim, o Crepori e Creporizinho, e que se encontram na origem
de cidades como Castelo de Sonhos e Novo Progresso.
Com a decadência do garimpo, a atividade madeireira foi tomando espaço na região,
com grande influência no processo de ocupação de Castelo de Sonhos.

Castelo de Sonhos - Sudoeste do Pará


As paisagens das cidades originadas a partir da atividade do garimpo - de ouro e/ou diamante - se notabilizam pela
presença de grandes empresas compradoras que abastecem o mercado nacional e internacional. Com o garimpeiro
ficam a violência e a miséria.

(Fotos 2004)

A raia divisória São Paulo-Paraná-Mato Grosso do Sul: do Pontal do Paranapanema


ao Noroeste do Paraná

O Pontal do Paranapanema. O Pontal do Paranapanema, localizado no Sudoeste do


Estado de São Paulo, sofreu uma série de mudanças socioambientais desde a chegada da
frente pioneira, nos anos 40 do século passado. Inicialmente, essa região foi palco do “ciclo
do algodão”, estruturado a partir do tripé: indústrias beneficiadoras (SANBRA, MACFADEN,
CLAYTON), proprietários de terras e arrendatários. O algodão teve um ciclo curto e, as terras
de algodão se transformaram em terras de pastagens e, mais recentemente, de cana-de-
açúcar e de assentamentos rurais.
Entendemos que as frentes pioneiras e, mesmo, a “vida rural” nessa parcela do território
brasileiro permaneceram pouco tempo ligadas à terra, quer como atividade econômica,
quer como local de moradia ou de afinidade, o que se manifesta no padrão da paisagem
edificada, na qual predominam: (1) pastagens pouco produtivas que dão suporte a uma
pecuária extensiva com manejos atrasados; (2) habitat rural disperso e baixo Índice de
Desenvolvimento Humano – materializado na ausência de serviços públicos essenciais
(escolas, postos de saúde...); na inexistência de culturas alimentares; (3) o desenho rural foi
elaborado a partir das rupturas entre o campo e a cidade e, assim, o primeiro foi deixado em
plano bastante inferiorizado no que diz respeito à sua construção.
Messias Modesto dos Passos
177

Ribeirão Santo Antônio - município de Mirante do Município de Mirante do Paranapanema -


Para-napanema - Sudoeste do Estado de São Paulo. Sudoeste do Estado de São Paulo.
As condições geopedológicas (arenito e terraços fluviais Os solos areníticos do Sudoeste paulista... são
hidromorfizados) associadas à ação antrópica negativa preparados para o plantio da cana. O exemplar
desencadearam o agressivo processo de lesionamento de planta arbórea foi impactado pela aplicação de
da paisagem. Apesar da alta potencialidade erosiva do produtos químicos.
arenito da Formação Caiuá, os grandes proprietários de
terras no Pontal do Paranapanema pouco atuam no sen-
tido de reverter o processo de lesionamento da paisagem,
cujos impactos socioambientais são extremamente nega-
tivos ao desenvolvimento local-regional.

Bacia hidrográfica do Ribeirão Santo Antônio - Município de Mirante do Paranapanema - Su-


município de Mirante do Paranapanema - Sudoeste doeste do Estado de São Paulo.
do Estado de São Paulo. Barracão da Braswey (antiga indústria de beneficia-
Os cemitérios de ex-bairros rurais... foram abandonados, mento de algodão), abandonado, que se presta como
após o final do ciclo do algodão (1940-1965), no Sudo- testemunho do “ciclo do algodão”.
este Paulista... e, se prestam como indicadores do pro-
cesso de desterritorialização motivado pelo êxodo rural.

Município de Mirante do Paranapanema - Su- Município de Mirante do Paranapanema - Su-


doeste do Estado de São Paulo. doeste do Estado de São Paulo.
As pastagens pouco produtivas não resistiram à chegada As pastagens pouco produtivas do Pontal do Parana-
da cana de açúcar ao Pontal do Paranapanema. A panema são alvo de Reforma Agrária motivada pela
política nacional para a produção de etanol a partir da pressão do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra/
cana de açúcar se mostra muito dinâmico nas terras MST. Na foto, vista panorâmica do terraceamento.
areníticas do Noroeste Paranaense... em substituição
das pastagens.

(Fotos de 2015)
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
178

O Noroeste do Paraná. Das três parcelas territoriais da raia, o Noroeste do Paraná foi a
única contemplada com uma concepção moderna de colonização: a construção de vias de
circulação e o desenho de pequenos centros urbanos, “coordenados” por cidades de porte
médio (Maringá, Paranavaí, Cianorte, Umuarama…); ao mesmo tempo, o parcelamento dos
lotes rurais obedeceu a uma concepção, cujo objetivo maior era o dinamismo da economia e
das relações amplas determinantes para o desenvolvimento regional.
No entanto, o ciclo do café” no Norte do Paraná, que motivou todo o processo de
ocupação inicial (1930), entrou em crise a partir dos anos 1970. A crise da cafeicultura resultou
na migração da população jovem para as cidades da região e para a Amazônia brasileira. A
população envelhecida se presta como indicador da falência do modelo implantado pela
Companhia de Terras Norte do Paraná.
O Sudeste Sul matogrossense. A ocupação do Sudeste Sul mato-grossense foi uma
consequência lógica (“osmose”) da capitalização observada nas áreas próximas e de ocupação
anterior. O fato do capital “externo” se apropriar, majoritariamente, do espaço tem um peso
significativo (negativo) na gestão do território, ainda hoje.

Município de Terra Rica - Noroeste do Estado do Paraná.


A cafeicultura que impulsionou a ocupação-povoamento-desenvol-
vimento do Noroeste do Paraná, entre os anos 1930-1970, não re-
sistiu à crise motivada pela superprodução e pelos baixos preços de
mercado. A população jovem migrou para outras regiões do Brasil..,
restando a população mais envelhecida que se mantém com a baixa
produtividade do café.

Município de Terra Rica - Noroeste do Estado do Paraná.


A partir da crise da cafeicultura o Noroeste do Paraná redefiniu o
modelo de desenvolvimento rural apoiando-se na policultura e na
cana-de-açúcar para produção de etanol combustível.
179

Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro

Retrato do autor feito por Marili Bezerra da Cunha.


Morro da Garça, Minas Gerais, Julho de 1998.

Nascido em Terezina, capital do Estado do Piauí, Brasil (1927), formado em Geografia e


História (1946 – 1950) na antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro. De 1951 - 1953, foi bolsista do Governo francês, tendo trabalhado na Bretanha,
estudando Cannes Sedimentologia, na Escola Nacional de Agricultura da França.
Trabalhou na antiga Faculdade Catarinense de Filosofia, em Florianópolis, atual Universidade
Federal de Santa Catarina (1955 – 1959). Em seguida trabalhou na Faculdade de Ciências
e Letras de Rio Claro (1960 – 1964), atual UNESP – Universidade Estadual Paulista. Ensinou
Geomorfologia no Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (1966 – 1967). Passa
depois a lecionar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
em seu Departamento de Geografia (1968 – 1987), onde ministrou várias disciplinas e fundou
o Laboratório de Climatologia.
Nessa universidade obteve todos os graus acadêmicos: Doutorado (1967), Professor Livre-
Docente em Geografia Física (1975), Professor Adjunto (1979) e Professor Titular em 1985.
Nessa universidade foi orientador de dissertações de mestrado e teses de doutorado de 1972
a 1987, quando se aposentou. Esteve vinculado ao FIBGE – Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, de 1947 a 1967. Foi membro da Comissão de Problemas Ambientais, presidida
pelo Acadêmico russo Gerassimov, na UGI – União Geográfica Internacional, (1976 – 1987).
Foi professor-visitante pesquisador junto a Universidade de Tsukuba (setembro de 1982
– fevereiro de 1983). Posteriormente, colaborou com o Departamento de Estudos Brasileiros
da Faculdade de Estudos Internacionais de Cultura, na Universidade de Tenri, Província de
Nara (1995 – 1997), ambas no Japão. Colaborou como professor –visitante no Programa
de pós graduação em Geografia na Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis) e
Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte).
Recebeu títulos de Doutor Honoris Causa das universidades: Universidade Federal do
Rio de Janeiro (2.000), Universidade Federal do Piauí (2007), Universidade Federal de Santa
Catarina (2008), Universidade Federal da Bahia (2012) e Universidade Estadual de Alagoas
(2016). Em 2003 recebe o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
180

Paisagens, Olhares, Desenhos

Os desenhos selecionados pelo Professor Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro se


constituem em percursos de vida, modo de ser e o talento para o desenho. Ai estão exibidos
desenhos de campo que eram esboços rapidamente feitos, quando não se dispunha de
aparelho fotográfico, de modo a fazer o registro das paisagens visitadas e estudadas, cujas
anotações e traços preciso se constituem em notas de campo para o posterior trabalho
analítico.
Os Blocodiagramas ilustrativos de análises cientificas rigorosas, expressam a fase de síntese
do trabalho de compreensão das paisagens.
O exemplar de um informativo de noticias enviadas do Japão, intitulado Jornal de Tenri,
produzido com elementos característicos de cada estação do ano, enviados como noticias
do professor para seus amigos. Durante sua permanência em Tenri, 8 (oito) edições foram
produzidas, contendo fotos, desenhos e colagens sobre as principais noticias sobre sua
estadia: viagens, visitas a museu, enfim aspectos da vivencia do professor em suas viagens,
que completavam sua estadia no Oriente.
Os cartões elaborados para a celebração do Natal e Ano Novo, cuidadosamente preparados,
expressos por desenhos de paisagens variadas (monumentos, igrejas, etc.) feitos à nanquim,
canetas esferográficas ou crayon, que eram anualmente enviados para seus amigos e colegas
professores e pesquisadores.
Finalmente estão juntados desenhos que ilustram livros e coletâneas escritos pelo professor,
como Tempo de Balaio, editado pela Universidade Federal de Santa Catarina, que introduz
a coletânea de 4 volumes, intitulada Rua da Gloria, editada pela Universidade Federal do
Piaui.

“O espaço humano - do ser - não é um dado a priori, ele é sempre construído, estando,
assim, destinado a sofrer variadas transformações. Se é válido admitir que “o lugar é uma
parte do ser”, isso corresponderia a considerar que a construção do espaço cotidiano
acompanha a construção do ego. O espaço do Homem, ou seja, o imaginário do indivíduo
e aquele do coletivo na realidade social deveriam estar em sintonia, devendo o primeiro
estruturar o segundo. (…)
O “olho armado” do geógrafo seria um pré-requisito basilar e primário capaz de enfrentar
as dicotomias e jogos de contraste que se apresentam como expressões de realidades básicas
e não como maldições intransponíveis a decifrar. A suposta “maldição” de confrontar o
homem e o seu meio (sociedade e natureza) associa-se às oposições dia-noite, sol-chuva,
frio quente… vida-morte, numa complementariedade que sob a passagem do tempo, e
expressando-se diferentemente nos espaços, revela, exibe o trabalho do homem em ordenar,
afeiçoar a obra da natureza, supostamente caótica em seu(s) cosmo(s).
E os lugares do homem, em suas diferentes configurações, tradicionalmente vistas como
“regiões” - associemos este vocábulo à ideia básica do que perseguimos sob diferentes vieses
- não são objetos de preocupação apenas para os geógrafos, no campo científico, pois que
são facilmente identificáveis no domínio das artes, como a literatura onde o “regionalismo”
é uma exaltada categoria.”
(CACM, 2008 – Geografia Sempre. O Homem e seus mundos. Ed. Territo)
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
181

Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória ( Capa do vol. 3). Fazenda O BONITO, em Alto Longa, Piaui. 1993.

Deslizamentos na Estrada Rio-Santos. Excursão sobre problemas ambientais. Reunião circulante com colegas russos. Julho
de 1982. Desenho feito com caneta esferográfica..

Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória. Matadouro Municipal de Teresina, Piaui. Desenho a nanquim e guache. 1993.

Paisagem da rodovia Rio-Santos., Julho 1982. Técnica caneta esferográfica..


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
182

Arredores da cidade de Sugadaira, deixada de lado pela ferrovia, parou no tempo e tornou-se um laboratório de geografia
urbana. Desenho feito a nanquim e grafite. Japão, Outubro de1982.

Figura ilustrativa da obra Rua da Glória. Casa do coronel Abílio Pedreira Veras, na esquina da rua da Estrela com o Lago do
Poço. Desenho feito a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993

Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória. Casa do Dr. Evandro Rocha,  na rua da Glória ao lado do Mercado Publio.  Desenho
feito a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
183

Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória. Duas fazendo piauinses pertencentes a família Castelo Branco. O desenho superior
da fazenda São Domingos hoje esta ocupada pelo MST (Movimento dos Sem Terra).  O desenho abaixo.tiff

Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória (Capa do vol. 1). Casa do Capitão Ludgero, bisavô do autor, situada na rua da Glória,
feita de adobe e palha. Desenho a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993.

Paisagem da cidade de Kanasawa, onde se destaca a rua coberta, a direita no desenho. Desenho feito a naquim  e grafite.
Japão, dezembro de 1982.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
184

Paisagem da cidade de Florianópolis. com destaque para ponte Pencil, ao fundo. Desenho a naquim. Março,1986.

Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória. Casa do Major Santidio, avô paterno do autor, situada à rua Santo Antônio. O entor-
no é reconstituição do inicio dos anos 30. Desenho a nanquim e guache, 1993.

Caderno de campo. Anotações e croquis. Registros de Caderno de campo com anotações e croquis feitos na
quilometragem e croquis da paisagem feitos com Bahia em 1979
o carro em movimento. Bahia, 1979.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
185

Jornal produzido artesanalmente pelo autor, em cada estação do ano, onde informava aos amigos sobre suas atividades no
Japão. Exemplar do outono de 1995.

Cartão de saudações de Natal e Ano Novo, 2007. Miolo do cartão com desenho da paisagem da Cidade de Ouro Preto, 2001
feito pelo autor.  Perfis  do autor aos 18 anos  feito por um artista no Pão de Açúcar, RJ e aos 79 por artista mineiro.

Bloco Diagrama do relatório de QUALIDADE AMBIENTAL RECÔNCAVO E REGIOES LIMITES.


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
186

Bloco Diagrama. Representação tridimensional dos sistemas atmosféricos atuantes na região norte do
Brasil. Desenho feito com caneta esferográfica, 1998.

Bloco diagrama da parte centro-norte do território piauiense, contextualizando relevo, drenagem e as locali-
dades importantes que constam na obra Rua da Glória. Desenho feito a nanquim e grafite, 1993.
187

Valentín Cabero Diéguez

Catedrático de Geografía de la Universidad de Salamanca hasta el año 2013 y Decano


de la Facultad de Geografía e Historia (2004-2012). Anteriormente ejerció de catedrático en
las Universidades de Extremadura y León. Trabajó como becario de Investigación, ayudante
y Profesor Titular en la Universidad de Salamanca donde se licenció y doctoro con Premios
Extraordinarios.
Coordinó, junto a otros colegas, el Programa de Doctorado Interdepartamental: El Medio
Natural y Humano en las Ciencias Sociales, con resultados muy positivos para la formación
interdisciplinar. Y ha dirigido o codirigido unas 35 tesis doctorales, 25 tesis de licenciatura y
un buen número de tesis de Mestrado y trabajo de Master.
Sus publicaciones y libros están relacionados fundamentalmente con las áreas marginales
y de montaña (Espacio agrario y economía de subsistencia en las Montañas Galaico-leonesas)
o con los ámbitos fronterizos y las relaciones de España y Portugal (Iberismo y Cooperación.
Pasado y futuro de la Península Ibérica), recibiendo los máximos reconocimientos institucionales
y el Premio “Maria de Maeztu” a la Excelencia Científica.
Ha formado parte de la Comisión Ejecutiva del CEI, Centro de Estudios Ibéricos, desde
su creación en el año 2000 por las Universidades de Coimbra y Salamanca, con el apoyo
logístico y público de la Cámara de Guarda; el CEI se ha convertido en una referencia clave
de encuentro y animación activa en la cooperación transfronteriza en la Raya Central Ibérica
y en las relaciones de España y Portugal.
Recientemente ha sido Director del PORN (Plan de Ordenación de los Recursos Naturales)
de la Sierra de Guadarrama en la vertiente norte de Castilla y León, que ha llevado a la
declaración del 15º Parque Nacional de España.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
188

Reencuentro con el “locus”:


escalas y formas de una mirada

La escala de nuestra mirada, decía Humboldt, es fundamental para comprender y explicar la


naturaleza, los territorios y los paisajes. El mismo sabio ilustrado nos señala que los elementos
y formas que percibimos desde la distancia y la lejanía son borrosas, pero claves para entender
los grandes conjuntos y panorámicas del territorio como las cadenas montañosas o las
grandes divisorias de aguas; las escalas intermedias en nuestras observaciones, sin embargo,
nos permiten ya una diferenciación de los paisajes y condiciones ambientales com capacidad
para discernir las tramas y articulación de los territorios; y la proximidad de nuestra mirada
nos acerca a ese espacio del “lugar” en toda su complejidad significativa de entorno vivido,
aunque no siempre seamos capaces de comprender y definir con toda su carga semántica
(“locus”) lo que encierra y expresa (localización, paisaje y medio ambiente, diferenciación,
pertenencia, identidad cultural…). La toponimia nos ayuda con frecuencia a descifrar una
parte sustancial de la dimensión geográfica e histórica del ”lugar”.
Aquí se muestran una serie de dibujos, diseños y esquemas realizados a partir del trabajo
de campo, en los que se recogen diferentes modos y escalas de mirar, ayudándonos de
alguna manera a interpretar y representar distintos lugares. No son fotografías y, por tanto,
guardan relación con una mirada a veces fugaz e incompleta o con la necesidad de fijar en
nuestra retina hechos sobresalientes que marcan con su presencia física o humana el territorio
recorrido, percibido y vivido. Las vivencias y el tiempo quedan así representados en estos
dibujos y esquemas que explican parcialmente la configuración y construcción del territorio.
No tienen pretensiones artísticas, ni tampoco afán de certidumbre científica. Están ligados
al viaje, a las salidas de campo con los alumnos y a encuentros con colegas y amigos en
seminarios o en jornadas de estudio y descubrimiento. También algunos figuran en trabajos y
publicaciones, cuya divulgación adquiere una mayor hondura y valor humano con la inclusión
de algún dibujo. Es una lectura que supone la empatía con los paisajes y con la apropiación
de lugares que quizás no volveremos a ver. Guardan en su sencillez una gran carga emotiva
y grandes dosis de topofilia.
Algunos de estos dibujos fueron realizados en su día a lápiz en cuadernos rayados, y sus
figuras se han desvaído con el paso de los años, permaneciendo, en cambio, el vigor de las
líneas pautadas; en otros, manchas inoportunas emborronaban la imagen inicial; por ello,
han requerido de una limpieza que con paciencia y sentido geográfico ha realizado en su
ordenador el profesor José Ignacio Izquierdo Misiego, sin que los rasgos originales perdiesen
la frescura del momento. Otros se han reconstruido, respetando las líneas y formatos origi-
nales. También se incluyen algunas palabras o topónimos explicativos.
Los escenarios que se representan corresponden a distintas etapas de nuestro quehacer
geográfico en la universidad española – faltan muchos que andan perdidos entre papeles
- y aunque presentan discontinuidades temporales, todos guardan una preocupación por
el conocimiento y descubrimiento de paisajes y entornos diferenciados y que nos son
muy queridos. Predominan los de la península Ibérica y los de la frontera con Portugal,
precisamente percibidos a lo largo de distintos itinerarios realizados a la franja rayana con
colegas portugueses, españoles y franceses cuando la cooperación transfronteriza iniciaba
una nueva etapa en las relaciones humanas a uno y otro lado de los límites históricos.
Nuestra preocupación por desentrañar con sentido integrador las condiciones ambientales
y del relieve en la construcción de unidades diferenciales de mayor o menor escala explica, la
presencia de algunos esquemas e interpretación de fenómenos de mayor alcance geográfico,
sin duda. Por otro lado, cuando descendemos a lugares representativos del mundo urbano
o rural, el recurso al dibujo directo y a su reconstrucción detallada a partir de la fotografía
nos permite entender y comunicar con mayor sensibilidad nuestra propia percepción. Detrás
bulle una gran preocupación patrimonial, como intentamos expresar en algunos ejemplos del
habitat rural de nuestras montañas que lamentablemente ha ido desapareciendo de nuestra
Valentín Cabero Diéguez
189

mirada. Son testimonios, ciertamente, de un medio rural vivo, pero cargados entonces de
pobrezas, miserias, marginación y olvido. Y en estos entornos descubrimos hoy verdaderos
paraísos.
Estamos ante unas nuevas relaciones campo-ciudad que redefinen el significado de los
lugares y del medio rural. En unas circunstancias de crisis tan difíciles y complejas como la
que padecemos, y en el contexto de una globalización que no reconoce los límites y culturas
diferenciadas en la ocupación del territorio, el reencuentro con lugares lejanos o próximos
nos lleva a la reivindicación de unos vínculos más respetuosas con las herencias patrimoniales
y con esa biodiversidad geográfica que intentamos recoger en nuestra mirada. El lugar y los
lugares aquí representados nos recuerdan la trabazón social y humana en la construcción
de los territorios, la conciencia de pertenencia, la necesidad colectiva de cuidar y custodiar
la tierra, la defensa y conservación de los bienes comunes, tal como hemos señalado en
otros escritos (2006, 2012, 2014, 2015, 2016), o el encuentro con paisajes y referencias
inmateriales que nos emocionan y nos reconcilian con entornos cargados de memoria y
humanidad. Pensar el territorio y descubrir las enseñanzas de sus paisajes y de sus gentes
sigue siendo apasionante. Y una necesidad vital.

Monsanto 1995
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
190

Monsanto 1995

Aliste

Miranda 1999
Valentín Cabero Diéguez
191

Arribe 1999

Astorga

Astorga
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
192

Castrillo de Cabrera

Manzaneda 1972

La Guardia
Valentín Cabero Diéguez
193

Carucedo 1985

El Salvador

Montes Toledo 1991


Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
194

Naranjos 1991

Albufera 1991

Bujaraiza

Castro Laboreiro 1997


Valentín Cabero Diéguez
195

Valladolid 1991

Jucar 1991

Sampaio 1997
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
196

Iguazú 1997

Maringa 1997
197

Rogério Haesbaert

Natural de São Pedro do Sul, Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1958, é licenciado e
bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria (Rio Grande do Sul), mestre
em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo (com estágio doutoral no Instituto de Ciências Políticas de Paris) e
com pós-doutorado na Open University (sob supervisão da geógrafa Doreen Massey).
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Territoriales
y Ambientales da Universidade de Buenos Aires. Professor visitante na Open University
(Inglaterra), universidades de Paris VIII e Toulouse-Le Mirail (França), no CRIM-UNAM
Cuernavaca e na Cátedra Élisée Reclus do Colégio de Michoacán (México) e na Universidade
de Tucumán (Argentina).
Autor, entre outros, de “O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios à
multiterritorialidade” (também publicado em espanhol), “Regional-Global: dilemas da região
e da regionalização na Geografia contemporânea” (no prelo em espanhol) e “Viver no Limite:
território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção”.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
198

Lugares que fazem a diferença

Na Geografia temos um grande dilema que é a polissemia de nossos conceitos: espaço,


território, lugar, paisagem, ambiente... Às vezes parece que todos se sobrepõem de tal forma
que perdem sua operacionalidade – não sabemos o que fazer com eles. “Lugar”, assim, é um
desses termos ambíguos que parte de um ponto ou da “escala espacial mínima” de referência
para projetar-se, às vezes, a um país inteiro.
Optei aqui por privilegiar a escala de maior detalhe, mas sem jamais pretender com ela
esgotar a riqueza conceitual e vivida dos lugares. “Espaço vivido” – esta é a dimensão do
espaço geográfico a ser privilegiada quando dizemos que estamos fazendo de um espaço
“nosso lugar”. Projetam-se assim imagens cotidianas de múltiplos lugares vivenciados em
quatro grandes viagens: à China, ainda nos anos 1990 e, mais recentemente, ao Egito-Jordânia
(2010), ao Vietnam-Camboja (2012) e a Madagascar (2013).
Essas fotografias abordam múltiplas dimensões desses lugares enquanto espaços vividos.
Algumas se centram sobre os indivíduos em espaços mais íntimos, no interior de diversas
modalidades de casa: o interior da casa de uma única peça (numa aldeia malgaxe), da casa-
túnel (durante a guerra do Vietnam), da casa-tenda (no caso da menina das estepes mongóis) e
da casa com “varanda” no teto (o café da manhã no alto de uma casa no vale do Nilo). Temos
também cenas no limiar entre a casa e a rua (a janela finamente esculpida, em Madagascar)
e na escola (crianças de uma escola rural malgaxe). Outras mostram a casa em seu conjunto,
seja na forma da tradicional casa malgaxe, seja nos barcos-casa do delta do Mekong ou nas
palafitas do lago Tonle Sap, no Camboja.
Algumas fotografias focalizam os meios de locomoção e os ambientes de trabalho: a
vendedora de rua e o motociclista carregado, no Vietnam, a incrível carga de uma kombi junto
ao porto na península do Sinai, o jegue levando plantas e o dono ou puxando uma carrocinha
de gás, no Egito, ou esperando turistas cansados, em Petra, na Jordânia, os cavalos comendo
ao lado de suas carroças numa rua do Tibet, os barcos na baía de Ha Long, no Vietnam e
a lavagem de roupa e os vendedores junto à estrada de ferro no interior de Madagascar.
Finalmente, temos ainda lugares profundamente reveladores de uma identidade cultural: os
espaços sagrados de duas minorias culturais em seus respectivos países, os tibetanos e seu
monastério, na província de Gansu, China, e os cambojanos e seu templo budista, no extremo
sul do Vietnam.
Cada uma dessas cenas conta um pouco da construção de lugares, às vezes tão distintos,
às vezes tão próximos dos nossos. O lugar, assim, é um espaço com o qual, de alguma
forma, identificamo-nos – ou que, por força do hábito, não só espontânea mas também
compulsoriamente criado, somos compelidos a nos identificar – como ocorre em lugares
da precariedade e/ou do medo, quando não dispomos da opção de mudar. O lugar, assim,
mais individual ou multiplamente “identificado”, sugere, pela sua singularidade, a produção,
também, da diferenciação. Talvez pudéssemos mesmo afirmar que, tal como não há identidade
sem diferença, sem a construção de lugares não há como moldar a diferença.
Foi-me confrontando com realidades tão diversas como a casa da minoria tai onde ficamos
hospedados nas montanhas do norte do Vietnam ou de uma aldeia betsileo do planalto de
Madagascar que reconheci, ao mesmo tempo, o que nos une como representantes de uma
mesma “espécie humana” e o que nos diferencia como membros de culturas e lugares tão
distintos. Lugares que, nesses casos, além de uma história socialmente comum, conjugam, na
construção de suas diferenças, todo um conjunto de imbricações com o meio natural que os
envolve.
Ainda que sejamos tão marcados pelo espaço e pelos valores urbanos, não podemos
esquecer que metade da humanidade ainda vive de atividades rurais e que nosso futuro, sem
dúvida, dependerá da composição de lugares que refaçam nossa relação com o ambiente
natural, ainda que para isso tenhamos que criar outro modelo de “lugares urbanos”. Penso
que as imagens aqui reunidas nos permitem viajar, não no sentido literal das viagens concretas
Rogério Haesbaert
199

que já ficaram no passado, mas na capacidade de evocar, num futuro presente, identificações
e diferenças que fazem de nossas vidas algo mais fértil e mobilizador.
Essas imagens, mais do que “meus” retratos, a partir de agora podem fazer parte, também,
do imaginário de cada um de seus visualizadores. Elas demonstram, assim, com clareza, penso,
o poder que a representação (fotográfica ou não) de nossas paisagens (pois paisagem é, antes
de tudo, re-presentação) podem ter na reconstrução de nossos lugares enquanto espaços
efetivamente vividos.
Sem esquecer que o viver é sempre, também, profundamente criativo e simbólico.
Que a diferenciação manifesta dos lugares configurados através dessas imagens possa ser
reinventada na simbologia vivida própria de cada um de seus novos “leitores”.

Interior de casa-tenda - menina de Interior de casa tradicional do ancião mais idoso,


grupo no made mongol no deserto chefe da aldeia de Amboetra - Madagascar, 2013
de Gobi - China, 1992

Janela artesanalmente esculpida em casa Café da manhã no alto de uma casa em Luxor,
da aldeia de Antoetra - Madagascar, 2013 visto de um balão - Egito, 2010
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
200

Casa-túnel construída pelos vietnamitas durante Casa com arquitetura de influência colonial
a guerra, na área da antiga fronteira do Vietnam francesa em Ambositra - Madagascar, 2013
do Norte com o Vietnam do Sul, 2012

Casas-palafitas no lago Tonle Sap - Camboja, 2012 Barco-casa no delta do rio Mekong, Vietnam, 2012

Barco encalhado durante maré baixa no delta Cena cotidiana em aldeia da minoria tai junto
do Mekong - Vietnam, 2012 ao lago Ba Be - norte do Vietnam, 2012

Escola na aldeia de Ambohidranandriana, Vendedora de rua em Ho Chi Min (antiga Saigon),


onde crianças sem caderno ainda usam Vietnam, 2012
lousa ou ardósia - Madagascar, 2013
Rogério Haesbaert
201

Lavagem de roupa junto à ferrovia no planalto Motocicleta em estrada no norte do Vietnam, 2012
de Madagascar, 2013

Transporte em burrico - Memphis, Egito, 2010 Carrocinha de gás puxada por burrico - Luxor, Egito

Burrico á espera de turistas cansados - Petra, Jordânia, 2011 Sobrecarga no porto de Nuweiba,
península do Sinai - Egito, 2010

Cavalos pastam ao lado de carroças em Gyantse, Barcos típicos em praia próximo a


cidade património do Tibet - 1992 Hoi An - Vietnam, 2012
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
202

Barcos na baía de Ha Long, norte do Vietnam, 2012 Ferrovia Fianarantsoa-Costa Leste, Última
linha de trem de passageiros do país, 163 km
percorridos em 13 horas - Madagascar, 2013

Templo budista de minoria cambojana no sul do Vietnam – 2012 Templo nabateu Al Khazneh - O Tesouro
- Petra, Jordânia, 2011

Monastério budista de tibetanos fora do Tibet oficial, Labrang, província de Gansu - China, 1992
203

Jorge Gaspar

Nascido (1942), criado e vivido em Lisboa. Geógrafo e Urbanista. Professor Cate-


drático, Emérito, da Universidade de Lisboa, Instituto de Geografia e Ordenamento
do Território. Investigador do Centro de Estudos Geográficos. Assistente da Escola
Superior de Belas Artes de Lisboa, Professor Catedrático Convidado do Instituto
Superior Técnico e das Universidades de Umeå e de Paris X. Doutorado pela
Universidade Lisboa (1972), pós graduado pela Universidade Lund, Suécia. Coordenou
investigações e projetos aplicados em Geografia, Planeamento e Urbanismo.
Em 1986 fundou o CEDRU – Centro de Estudos e desenvolvimento regional e
urbano Lda, onde continua a colaborar. Coordenador técnico do Programa Nacional
da Política de Ordenamento do Território – PNPOT. Publicou uma vintena de livros e
mais de duas centenas e meia de artigos e opúsculos, vários sobre Lisboa. Sócio efetivo
da Academia das Ciências de Lisboa, membro da Academia Europaea e Doutor HC
pelas Universidades de León, Genève e Évora. Grande-Oficial da Ordem do Infante
D. Henrique.Prémio Universidade de Lisboa.Prémio Internacional Geocrítica.

Algumas publicações recentes: 2016: “Futuro, cidades e território” in Finisterra,


LI, 101, pp. 5-24. 2015: “Sete apontamentos para um atlas de memórias e vivências”
in Urteaga, L. & Casals, V. (eds.) Horacio Capel, geógrafo, Col.Lecció Homenatges
50, Universitat de Barcelona, Barcelona, pp.545-555. 2015:  “A centralidade da
geografia: dos conceitos às práticas” in Geousp – Espaço e Tempo (Online), vol.
19, nº 2, pp. 183-195, ago. 2015. ISSN 2179-0892. 2014: E-Coesão (com Sérgio
Barroso), Estudos Cultura 2020, nº 9, para Secretário de Estado da Cultura/Gabinete
de Estratégia, Planeamento e Avaliação Culturais (GEPAC), Princípia Ed., 176 p.
2014: “Conversa à volta das fronteiras” in Iberografias – revista de estudos ibéricos,
nº 10, Centro de Estudos Ibéricos, Guarda, pp.76-80. 2013: “Encolhem os territórios
e alargam-se as fronteiras” in Pinheiro de Sousa, A., Flora, L. e Malafaia T. (Eds)
e Coelho, A. D. e Morais, I. (Co-eds) From Brazil to Macao – Travel Writing and
Diasporic Spaces, ULICES/CEAUL, Lisboa, pp. 21-51. 2013: “Continuamos a procurar
a Geografia: o que é e para que serve” in Inforgeo, 25, APG, pp. 19-29.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
204

Breve roteiro de memórias e vivências


Contextos, morais, passado e futuro
Agradeço ao Dr. Rui Jacinto por se ter lembrado do meu recôndito espólio
fotográfico, resultado da aprendizagem da Geografia na Licenciatura da Faculdade
de Letras, onde o exemplo e os ensinamentos de Orlando Ribeiro e seus discípulos nos
apontavam a fotografia enquanto ferramenta indispensável à atividade do geógrafo.
A fotografia é assim entendida no triângulo notas do caderno de campo – esboço
gráfico/cartográfico – fotografia. A facilidade de disparo leva sempre ao excesso e
consequentemente à necessidade de cuidadosa avaliação e seleção, práticas que
no processo de produção do geógrafo vão sendo adiadas, pelo que as fotografias
se vão amontoando: em rolos, em caixas de slides, em discos da Mavika, em discos
externos de n gigabytes e, por último, nas nuvens que nos são disponibilizadas pelos
grandes operadores globais.

Por isto, o simpático convite do Rui levou-me à mais infrutífera das escavações.
Então, fiz ao contrário, escolhi os temas e fui buscar uma ou outra foto que se
adequava. Enfim, foi o que se pode arranjar e assim cheguei a este breve roteiro de
memórias e vivências, no sentido com que Ortega Y Gassett cunhou o termo.

Como disse, parti da memória para a fotografia, embora algumas vezes tenha
sido obrigado a fazer o percurso inverso, pois a fotografia é também um estimulador
de memórias. Mais, a fotografia inquieta, acorda o esquecimento. E aí a ação começa
a ser interessante, interessante e perigosa.

1. O Vale do Draa – 1965

Volvidos mais de 50 anos após a primeira visita, a memória deste percurso de


Ouarzazate a Zagora permanece como uma das mais fortes impressões na minha
vida de geógrafo. Aí encontrei, então, explicações para muitas perguntas, tanto da
Geografia Física como da Geografia Humana, mas, sobretudo, pude confirmar o
fascínio da e pela Geografia.
Jorge Gaspar
205

2. Imilchil – 1966

Naquele tempo Imilchil, no Alto Atlas, não era o cartaz turístico dos nossos dias,
mesmo o acesso automóvel era difícil. A chegada foi surpreendente: o azul do céu
e das lagoas, no meio do silêncio envolvente, são imagens guardadas na memória
da nossa imaginação e que então, como hoje, remetem para o que idealizamos
como um ”teto do Mundo”. Mas a grande surpresa aconteceu quando contatámos
as gentes e em particular as crianças, e olhámos as cabeças rapadas e as longas e
perfeitas tranças, um dos sinais da identidade cultural dos Aït Yaazza.

3. Lund – promotionen na Universidade de Lund 1967

É o momento alto do ano académico na Universidade de Lund e realiza-se desde


1670. Tem lugar na última 6ª feira do mês de maio que, em 1967, calhou no dia 26.
A promotionen, faz parte da aprendizagem de Lund, uma cidade e uma universidade
carregadas de história.
É uma cerimónia plena de tradição e de festa, e a primeira impressão que guardo
na memória é a profusão no uso de raminhos de loureiro… para os laureados…
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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4. Monsaraz – 1967

Foi aqui, olhando a planta de Monsaraz, já lidos Mumford, Gutkind e outros,


que disse para Orlando Ribeiro, “mas isto foi planeado, recorda as bastides”!
Depois li Lacarra e Torres Balbas e visitei o Sudoeste da França onde encontrei várias
bastides que mantinham a designação… e também Puente La Reina e percebi o
que aconteceu em Portugal nos séculos XIII e XIV. A explicação seria confirmada em
Fernão Lopes…
Sobre isto publiquei um artigo em 1969, entretanto, traduzido no Japão.
Luisa Trindade, na sua dissertação de doutoramento (2009), fez referência a um
esquecimento de duas décadas...

5. O Tejo e os seus portos fluviais 1970 – 1980…

Os Portos Fluviais do Tejo foi o título de um artigo que se publicou antes do tempo,
por oportuna falta de material, para a Revista Finisterra. Este proto-ensaio, originaria a
mais repetida e consagrada viagem de estudo/excursão com os alunos do 1º ano.
Replicou-se uma vez, com o Centro Nacional de Cultura: foi a grande aventura
- DE LISBOA AO ESCAROUPIM – em estilo de expedição, subir o Tejo com a maré
numa Lancha de Desembarque Media (LDM) que tinha feito as campanhas da Guiné;
acampamento e caldeirada no areal da margem esquerda do Tejo, peixe apanhado
pelos avieiros no mesmo dia… foi pelos feriados de junho de 1981, dias memoráveis
em que os termómetros atingiram temperaturas superiores a 40 graus.
Jorge Gaspar
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6. Porto Santo, com alunos do Centro de Apoio do Funchal - 1980

O início da aventura atlântica da parceria luso-italiana. Em cada canto, em


cada curva há um motivo de reflexão, que nem o implante aeroportuário destruiu
completamente. Nos limites da sustentabilidade ambiental e económica, a História
mostra-nos como se vão refazendo as estruturas de oportunidades.

7.Buenos Aires 1982

Em 1982 a Argentina, já sem Videla, continuava em ditadura e vivia a ressaca da


derrota das Malvinas: economicamente no fundo, demograficamente depauperada,
social e culturalmente empobrecida e amachucada. Ainda assim continuavam a lutar
e foi histórica a manifestação de 3 de setembro no Luna Park.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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8. O Delta do Rio das Pérolas –1983

Desde as leituras da obra de Pierre Gourou na licenciatura em Geografia, que


sabia da riqueza e da multidimensionalidade da vida nos deltas dos grandes rios
asiáticos. Mas nada como a aprendizagem vivida através do trabalho de campo,
o que me foi possível levar a cabo ao longo de quase duas décadas... Depois
aprofundei conhecimentos e acompanhei os progressos, pelos livros, pelo cinema e,
mais recentemente, pela internet: o delta do Rio das Pérolas transformou-se na maior
megapolis do Mundo, um poderoso triângulo inovador à escala global. Policêntrico:
na distribuição da população, nas especializações funcionais, na distribuição
das infraestruturas de transporte, na criatividade das artes e das tecnologias, na
efervescência dos saberes e das experiências.
Jorge Gaspar
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9. Bombaim – 1983

As grandes metrópoles mundiais sempre me fascinaram, de São Paulo a Tóquio,


de Nova Iorque a Hong Kong, de Los Angeles a Buenos Aires… Bombaim ainda mais.
Sendo uma cidade de fundação tardia (seculo XVI), tornou-se uma encruzilhada de
culturas, plataforma ativa de povos oriundos de outros tempos, onde se conjugam
tradição e inovação. A porta de entrada na India é também uma porta de entrada
para o Mundo. Alem de tudo é a “capital” dos Parsas.

10. Em Singapura o Rafles – 1984/1988

A pluralidade cultural valoriza as diferenças. Aqui, até os britânicos foram


diferentes: é talvez a herança de Somerset Maugham que também frequentava este
hotel. Apesar da floresta de betão, no Rafles continuava-se a adormecer e a acordar
ao som dos passarinhos no pátio/gaiola.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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11. Palestina – (Israel) Regadio no West Bank – 1985

Naquela manhã de junho de 1967 o meu amigo Anders, assistente do Torsten


Hägerstrand, tocou-me à porta para ser confortado: estava aterrorizado com as
perspetivas para Israel, daquela guerra que estourara há poucas horas. Disse-lhe
para ter calma, que Israel iria vencer. Nem eu imaginava que fosse tão rápida, tão
intensa e duradoura a vitória israelita. Depois visitei Israel várias vezes, fiz amigos
israelitas e palestinianos. As dúvidas e as dores cresceram e não se vê uma saída.
Entre outras, a água é uma questão maior…

12. Setúbal – OID 1986-1987 e Lisboa VALIS 1989-1993

Os dois projetos mais marcantes na minha carreira de geografo profissional.


A Península de Setúbal esteve sempre presente nos meus interesses profissionais
ao longo de meio século de atividade. O estudo preparatório da Operação Integrada
de Desenvolvimento (1986-1987) foi um tempo de entusiasmo e de esperanças, em
certa medida concretizadas.
O conjunto de estudos, planos, conferencias e exposições que configuraram o
projeto VALIS - Valorização de Lisboa, resultado de uma encomenda da DG XVI da
Comissão Europeia por recomendação do Parlamento Europeu, alem de manterem
grande atualidade, permanecem como uma importante fonte de sugestões para
o planeamento urbanístico e para a arquitetura, na linha dos ensinamentos de
Francisco de Holanda, o mestre renascentista.
Jorge Gaspar
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13. Umeå – 1988

Em 1988 passei um semestre na Universidade de Umeå como professor visitante


convidado, múltiplas experiências, acumulação de aprendizagens: habitar uma casa
histórica no museu ao ar livre, conviver com um conjunto de colegas tão diferentes
e tão amigáveis, conhecer uma cidade do grande Norte, cosmopolita e animada
- ópera, museus, dança, bibliotecas… e um dia, no Carnaval, as escolas de samba
saíram à rua. Passados 28 anos, ao ver um programa da TV angolana, perguntei-me,
será que Umeå já terá escolas de kuduro? E tem!!

14. As Torres Gémeas – 1991

O fascínio da grande metrópole e a intensidade da paisagem urbana. Esta


fotografia foi feita no contexto de uma excelente visita de estudo organizada pela
FLAD e dedicada aos temas do planeamento, ordenamento e gestão do território.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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15. Barreiro: cidade e sítio – 1993

O sítio corresponde a uma das mais belas frentes de água de Portugal, um


areal entre dois esteiros do Tejo, onde ao longo de séculos a ação dos humanos
aproveitou vantagens, gerou riqueza, atraiu gentes – muitas e variadas gentes. Terra
de utopias recorrentes, de lutas, de esperanças. Terra de cidadãos, uma cidade difícil
de formalizar, uma cidade do futuro: as cidades, como a natureza, têm uma grande
capacidade de se regenerarem.

16. Macau – 1995 O fecho da Baía da Praia Grande

Ao longo de duas décadas, quase sempre por convite de Manuel Vicente, trabalhei
em vários projetos para este território, que em 1980 tinha 16km2 e em 2000 já
chegava aos 25 e hoje já passa dos 30km2. Aí experienciei a contínua tensão entre
passado, presente e futuro no trabalho do geógrafo. O projeto do fecho da Baía da
Praia Grande, que originou dois lagos urbanos, mantendo o desenho da linha de
costa, foi talvez o mais importante projeto urbanístico levado a cabo em Macau. O
trabalho multidisciplinar, coordenado por Manuel Vicente, foi não só estimulante
como compensador e educativo.
Jorge Gaspar
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17. Barcelona, Raval, 1996

Desde a Idade Média que Lisboa se aproxima de Barcelona, pela navegação,


pelas alianças, pelas trocas, pelas afinidades e pelas diferenças. Também o mesmo
acontece entre geógrafos e cartógrafos. Com Horácio Capel tive a felicidade de
um continuado convívio científico e pessoal que muito ajudou ao aprofundamento
das nossas formas de fazer Geografia. A reabilitação urbana tem sido o tema de
uma longa charla que prossegue, em Lisboa, em Barcelona e no resto do Mundo.
O Bairro do Raval não só é um ícone das experiências de reabilitação urbana, uma
quase utopia, como um local de trabalho de alguns jovens artistas portugueses que
conheci e apreciei

18. Mansão Somoza na costa do Pacífico / Ruinas da Catedral de Manágua – 1997

A libertação dos opressores e a construção de identidades são as linhas


dominantes das visões e das políticas dos países da América Central. A Nicarágua,
causticada e empobrecida pela ditadura do clã Somoza, cuja casa de férias, na costa
do Pacífico, foi adaptada a resort e centro de conferências, mantém, ao mesmo
tempo, na capital, o convívio com Carlos Mejia Godoy, na casa-retiro-café da família.
Na Catedral, recorda-se o anátema dos sismos (1931 e 1972) e veneram-se as ruinas
de betão (1928-1938). Hoje há uma catedral nova (1993), moderna, e restaurou-se
(2014) a do século XX.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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19. Varsóvia - Telepizza e Orangerie 2004

Da necessidade de olhar o chão ou o chão também é paisagem e tem as suas


geografias. Em Varsóvia, por umas horas liberto das reuniões de trabalho do projeto
ESPON dedicado ao “alargamento a Leste”, que reunia cientistas europeus, de entre
os quais destaco o querido Peter Hall, fui em demanda das Orangeries, a velha
(XVIII) e a nova (XIX), tema que me é muito afim… a Stara Pomarańczarnia (Alte
Orangerie) e a Nowa Pomarańczarnia (Neue Orangerie)
Jorge Gaspar
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20. Toronto – Dominion Centre – 2005

Uma intervenção magistral no centro da grande metrópole Canadiana: a


articulação de várias escalas, do nacional ao local, a qualidade do desenho urbano
e da arquitetura, a adequação às condições climatéricas, a funcionalidade urbana, o
proporcionar bem-estar e condições para promover a produtividade

21. Crystal Cathedral, Orange County, 2005

A história da Garden Grove Community Church, fundada em 1955, filiada na


Reformed Church in America, é o epítome dos caminhos fantásticos da Califórnia
desde os anos 1950 até à atualidade. O último episódio, sequente à declaração de
bancarrota pela Catedral de Cristal, em 2010, levou à sua aquisição pela Diocese
Católica de Orange, em 2013. Após os trabalhos de adaptação em curso, o templo
será aberto ao culto católico romano em 2017, com a nova designação de Christ
Cathedral.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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22. Valparaíso 2007

Cidade e topónimo que fazem parte do meu imaginário recôndito, situa-se entre
o continente dos lugares imaginados e a lista das cidades vivenciadas, na companhia
de Bartolomeu Cid dos Santos (cf. Gaspar, 2013). Mesmo depois de visitada e
calcorreada continua a pertencer ao território das imaginações.

23. O Cairo – 2010

A par de Fez, que visitei várias vezes entre 1965 e 1978, o Cairo oferece impressivas
paisagens urbanas, que estimulam a aventura da Geografia. Não será por acaso que
ambas inspiraram Ibn Khaldun, um dos grandes pensadores da Idade Média (Tunis,
1332 - Cairo, 1406), que descreveu essas paisagens em textos memoráveis.
Jorge Gaspar
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24. Noruega, Unredal – 2011

A descoberta de grandes e deliciosos queijos de cabra. Embora à margem do


eixo Lund-Copenhaga, que marcou a minha formação de geógrafo e de cidadão, a
Noruega tem estado presente desde a primeira viagem, do extremo sul ao extremo
norte, em 1967. Quantas descobertas, quantas experiências como geógrafo-docente,
conferencista, investigador. E só recentemente descobri a excelência dos queijos de
cabra, únicos. Um dos melhores é o de Unredal: 80 habitantes e 300 cabras.

25. Chioggia – 2015

Desde criança que a paixão pela Geografia foi acompanhada pelo amor ao cinema
e com o tempo as pontes foram sendo lançadas. Io sono Li (Shun Li e o Poeta,2011)
é um filme delicioso, que se insere num humanismo global, o que aproxima Andrea
Segre de Ang Lee. Foi o filme que me levou a Chioggia, uma cidade da Laguna, que
se desenvolveu na órbita de Veneza. A cidade vale bem a viagem, mas descobrir os
ambientes em que decorre o filme alarga o mapa, o que já me levou a Pasolini, Tor
Pignattara, Banglatown e a Roma, pela via Casilina.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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219

Monteiro Gil: A Cor do Olhar


220

Monteiro Gil

Fotografia de Fernando Curado Matos


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Olhar com outros olhos


Rui Jacinto
Universidade de Coimbra

A obra sólida e multifacetada construída por Monteiro Gil ao longo de décadas colocam-
no entre os principais cultores da imagem em Portugal no passado recente. No final da
década de 60, depois de frequentar a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, começa
por expor pintura, desenho e gravura antes de, a partir dos anos 80, assumir por inteiro
a fotografia como expressão criativa. A realização desta singela evocação de um artista
natural da Guarda, hoje e aqui, não é uma homenagem motivada por algum localismo
nostálgico que, embora legitimo, esconderia ou remeteria o meritório trabalho deste
criador para um plano secundário. Também não a podemos resumir a uma mera exposição
de fotografia, “Olhos nos Olhos”, que simbolicamente a materializa, já que representa um
apontamento numa obra vasta e qualificada, a merecer mostra mais ampla e demorada; o
que está aqui em causa é, apenas e só, aproveitar este ensejo para dar testemunho público
do inestimável contributo prestado por Monteiro Gil ao Centro de Estudos Ibéricos.
O caminho percorrido até aqui foi tecido por cumplicidades que se iniciaram durante
o oitavo Centenário da cidade da Guarda e a elaboração de “Um país de longínquas
fronteiras” (1999), iniciativas que coincidiram com o arranque do CEI e haviam de
culminar no lançamento e consolidação, em 2011, dum dos seus projectos emblemáticos:
“Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras”. Sendo esta razão, por si só, suficiente
para justificar a inclusão desta homenagem a Monteiro Gil na programação da edição do
“Transversalidades 2016”, importa referir que aquela mútua cooperação passou ainda por
“Fronteira, Emigração, Memória” (2004) e “Um (e)terno olhar. Eduardo Lourenço, Vergílio
Ferreira e a Guarda” (2008).
O território e a imagem são denominadores comuns a todas estas realizações, elementos
que estão nos genes do CEI e estruturam uma agenda assente no compromisso assumido
para com os espaços mais débeis, frágeis e olvidados, como são os raianos, que apela
à imagem para os desocultar, integrar e, por esta via, ajudar a reabilitar a depauperada
auto-estima e identidade territorial. Fronteira, emigração, memória foram, pois, (e)ternos
olhares que levaram Monteiro Gil a percorrer diferentes rotas, pessoais e migratórias, a
passar por lugares e países sem nunca perder de vista a maternal Guarda, qual estrela
polar sempre a pairar no horizonte pessoal. Tal errância não deixou de alimentar o desejado
retorno, sentimento comum ao perseguido por todos os migrantes na expetativa de (re)
encontro com as origens, esse cais de partida e porto de abrigo, onde permanece ancorada
a ternura dos afetos que apenas se alcança entre os nossos, no aconchego do lar e do lugar
donde somos oriundos.
O itinerário pessoal de Monteiro Gil ajuda a interpretar a sua produção artística, mostra
como a obra não foi indiferente aos territórios que moldaram o olhar do seu criador.
Aproveitou uma das suas primeiras exposições, “Foto-Grafias” (1986), para enviar a
mensagem de “escrever com a luz”, seja a que espontaneamente o sol nos oferece, seja a
que emana do próprio olhar do artista. Se a tivesse designado “foto(geo)grafias” seria mais
consentâneo com o programa que assumiu e os projetos futuros que definem os contornos
da sua obra, onde assume a pretensão de (d)escrever a terra com a luz, mais ajustada
com a leitura e a interpretação do mundo que as suas fotografias nos revelam. Tendo este
universo como pano de fundo, a geografia da obra de Monteiro Gil é definida por espaços
e tempos que leio a partir de três coordenadas: a terra, a viagem, a cor. Este é, pois, o meu
olhar sobre o olhar de Monteiro Gil.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
222

Os lugares fotografados e os temas que privilegiou apontam uma ligação umbilical


à terra, matricial e omnipresente, estrutural e estruturante, lugar e chão, onde estão as
origens e mergulham as raízes, as pequenas e telúricas pátrias que, intimamente, nunca
abandonamos e acabam por se implantarem os caminhos percorridos ao longo da vida. A
obra remete para uma ancestralidade pontuada por memórias, “Memórias” (1997) - “My
Memories” (1999), que se agarram ao chão, telúrico e granítico, “As Pedras e o Tempo”
(1993), às paisagens, “Landscape” (2006), aos lugares, “Guarda” (Revista Praça Velha, nº
24). Também Monteiro Gil, como Saramago, podia dizer que “a criança que eu fui não viu
a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua
altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem,
fazia parte dela, não a interrogava, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras:
“Que bela paisagem, que magnifico panorama, que deslumbrante ponto de vista!” (José
Saramago, As pequenas memórias. Caminho: 15).
As imagens, de Monteiro Gil estão impregnadas do espírito dos lugares, da pertença
a territórios específico que não se confinam à Guarda nem à telúrica Beira, pois abarcam
espaços que se estenderam a Lisboa, “Lisboa Qualquer Lugar” (1994), e ao seu permanente
diálogo com o “Tajo/Tejo” (1998). As referências às origens apegam-na à “terra” onde
colhe reminiscências dum passado ausente, testemunhos de modos de vidas que mudaram,
“Ruralidades” (1993 e 1994), de saberes e sabores autênticos que o inexorável fio do tempo
ajudou a decantar, como “Leite, Cardo e Mãos Frias” (2009). A Guarda e o seu entorno
foi recortada, ao longo do tempo, por várias fronteiras, percorrida, em todos os sentidos,
por diferentes diásporas: ficamos a saber em “Fronteiras” (1994) que estas não são apenas
politicas, inscritas arbitrariamente no chão pelos homens para dividirem pessoas, lugares,
paisagens; a saga massiva da emigração anónima dos anos sessenta ficou documentada
em “Um País de Longínquas Fronteiras” (2000), enquanto “Um (E)Terno Olhar” (2008)
havia de fixar o nomadismo pessoal de Eduardo Lourenço e de Vergílio Ferreira.
As imagens de Monteiro Gil, embora ancoradas na memória e nas origens, são o resultado
e um convite à viagem, porventura, a razão escondida que o terá levado à fotografia.
Tentar enganar a memória e lidar com a embriaguez da viagem leva a “escrever, tomar
notas, desenhar, enviar cartas, postais ou fotografar, diferentes maneiras de assinalar “na
imensidão extensa e lenta da diversidade os pontos de referência vivos e densos necessários
à cristalização, recordação e fortalecimento das recordações. A substância das recordações
é aquilo que deslumbra o espirito depois de abandonada a geografia” (M. Onfray, A teoria
da viagem: 52).
Mostra-nos a literatura, por outro lado, que a narrativa de viagens é a mais antiga
do mundo e que “a história do viajante tem sempre a natureza da reportagem”. A obra
de Monteiro Gil é indissociável da viagem, das que realizou no seu universo local e pelo
mundo fora, em demanda de paisagens sedutoras para o espirito, icónicas para o olhar.
Tal procura atravessou continentes, partiu da Guarda e de Lisboa, passou por Espanha e
além Pirenéus, alcançou os EUA, chegou a Moçambique. São “Itinerários” (1992), pessoais
e íntimos, viagens locais, “Domestic Itineraries” (2002), que se desdobram em viagens
reais ou imaginárias, “Made in U.S.A. - Impressões de Viagem” (1996) e “Imaginary Travel
Around the USA” (2006), caminhos percorridos pelas “Estradas da América” (1999) à
procura do olhar do outro como acontece em “Olhos nos Olhos” (2016).
Estes olhares, captados cara a cara, em Moçambique, vão ao encontro dessa África
profunda e enigmática, como observou Saramago nas mulheres da Guarda que, além de
bonitas, “olham de frente”. Um olhar mais experimentado na realidade moçambicana
guia-nos entre os meandros que se escondem nessas imagens, permitindo compreender
como, aqui, para além da visão, devemos convocar outros sentidos: “Eu não apenas vejo.
Eu ouço a fotografia”, pois nestas paragens este tipo de “escrita (e a foto enquanto um
modo de escrita) é vencida por uma outra lógica. Neste jogo de miragens e ilusões, África
desnuda-se para melhor se ocultar. Aqueles que acreditam ter focado essências apenas
tocaram aparências em movimento”. Temos presente que quando qualquer “fotógrafo
desembarca em qualquer povoação do continente africano e aí está a instantânea multidão
exibindo as mais afetadas poses reclamando querer “sair” na foto”, “aquela gente emigra
da sua solidão histórica. É como se visitasse outros mundos por via do papelinho impresso.
A inevitável pose resulta do namoro entre o ser e a sua própria imagem” (Mia Couto,
Rui Jacinto
223

Pensatempos: 82). No caso da presente exposição Monteiro Gil não “ilude essa identidade
que outros lhe conferiram, driblando os mitos redutores e folclóricos que tendem a serve-
lhe de moldura”. Além das pessoas e das suas circunstâncias, os belos retratos de Monteiro
Gil mostram tudo isto e muito mais.
Aprendi com Monteiro Gil a importância da cor, como “as claridades diurnas se
alimentam continuamente dos deslumbramentos noturnos”, como as fotografias limpas e
transparentes só acontecem se forem consequência natural dum olhar poético. Ensinou-
me um certo modo de olhar, ler e interpretar a fotografia, a beleza que podem esconder
as mais verdadeiras e autênticas, a necessidade duma entrega obsessiva e o rigor sem
concessões quando se pretendem imagens despidas de ruido. “Depois das aventuras
temerárias, das peripécias planetárias, das fugas selvagens e perigosas”, todos os viajantes
desejam regressar ao lugar de origem, abandonado, onde se pode reencontrar o eixo,
a bussola. A viagem, como o regresso, além de renovar a identidade, mostra como “a
geografia serve antes de mais para elaborar uma poética da existência” (Onfray, ob. cit.:
98; 112).
Como todo o filho pródigo aspira regressar ao lugar onde foi feliz, esta homenagem a
Monteiro Gil é um reencontro com a Guarda onde realizou, em 1968, no Hotel de Turismo
de boa memória, a sua primeira exposição de pintura. Que a exposição de Fotografia
“Olhos nos Olhos” antecipe uma merecida retrospetiva comemorativa de 50 anos de labor
criativo de Monteiro Gil, a realizar na Guarda em 2018.
As fotografias que exprimem o olhar de Monteiro Gil permitem-nos imaginar o mundo
e nele viajar sem sairmos da nossa área de conforto. Que o permitam, também, olhar com
outros olhos.
224

“Olhos nos olhos”


fotografia

13/08/2002 – Argentina Vasco, menina na apanha do algodão, Machamba do Sr. Vasco Fernandes, Mutuáli,
Moçambique
Monteiro Gil
225

11/08/2002 – Meninos vendedores de estrelas do mar, Chocas, Moçambique

31/07/2002 – Meninos junto ao Jardim Josina Machel, Ilha de Moçambique,


Moçambique (Terão como prémio canetas Bic necessárias na Escola)
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
226

07/08/2002 – Jovem mãe comprando roupa para os filhos, mercado do Monapo Rio, Moçambique
Monteiro Gil
227

07/08/2002 – “Através de espelhos”, Mercado do Monapo Rio, Moçambique

20/08/2002 – Grupo de meninas, Naguema, Moçambique


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
228

15/08/2002 – Regresso a casa, Plantação de Necoma (chá), Gurué, Moçambique


Monteiro Gil
229

07/08/2002 – Grupo de amigos, Monapo Rio, Moçambique

07/08/2002 – Namorados, Vila do Monapo, Moçambique


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
230

Um Itinerário Poético Pela Obra


Fotográfica de Monteiro Gil
Marcela Vasconcelos

Le véritable voyage de découverte ne consiste pas à chercher


de nouveaux paysages mais à avoir de nouveaux yeux.

Marcel Proust

A pintura, a gravura e o desenho foram as matérias iniciais da formação e do trabalho


de Monteiro Gil que, juntamente com outros artistas da sua geração, criou em Portugal um
espaço de reflexão e de criação de novas propostas. As suas intervenções, atravessadas por
influências diversas da arte contemporânea, reflectem a permanente inquietação criativa e
o gosto da experimentação.
A fotografia insere-se nesta dinâmica, tendo-se tornado posteriormente a forma
privilegiada de compreender e revelar o mundo. Sem que tenha havido uma ruptura ou
oposição, a fotografia surgiu assim, naturalmente, primeiro, em diálogo com a pintura;
depois, como um meio de expressão autónomo, com eventuais incursões por outras
tendências estéticas. O fascínio pela técnica em si, pela própria máquina que vai fixar o
momento e a emoção, não deve ter andado arredado desta escolha. Contudo, a técnica
não irá afectar o sensível e a experiência plástica original marcará todo o seu trabalho.
Os tempos eram (finalmente!) propícios em Portugal ao envolvimento social, à
participação, ao estabelecimento de uma relação entre o artista, a sociedade e a vida.
Monteiro Gil participa em inúmeras manifestações artísticas que incluem a fotografia e
outras linguagens e que questionam o conceito da obra concebida como um objecto
acabado e oferecido à contemplação. Eram frequentes os projectos realizados em grupo
e viriam mesmo a ser uma constante, a par de iniciativas individuais, sob a forma de
intervenções várias, exposições e publicação de livros, mantendo embora cada artista as
suas características autorais.
“Testemunhar o esplendor”, como disse o poeta Williams Carlos Williams (cit. por
Robert Adams in Beauty in photography), é a razão que leva os poetas a escrever. O
“esplendor”, pressupondo a luz, remete-nos para o universo da fotografia, a que também
não é estranha a função lúdica, mimética e metafórica da poesia. Por que não então uma
abordagem poética ao grande texto que é a obra fotográfica de Monteiro Gil?
Monteiro Gil expõe pela primeira vez um trabalho fotográfico em 1979, integrado num
conjunto de intervenções e exposições realizadas no Centro Cultural de Setúbal, no Museu
de Évora ( O Museu e as Novas Forma de Comunicação) e no Museu Vostell Malpartida, em
Espanha (SACOM II). Nesta fase de utilização de metalinguagens, a expressão plástica e a
poesia experimental andam próximas, traduzidas em transferências de processos estéticos
em que o texto também é “visto” e a imagem “pensada”. O trabalho exposto centrava-
se numa reflexão sobre a própria arte, apelando à participação das pessoas em geral, a
quem era feita a pergunta: “O que é a arte?” As respostas, organizadas em dossiers,
eram expostas, assim como, na sequência disto, as fotografias das mãos que faziam os
registos.
Monteiro Gil inicia assim a sua fotografia de autor com a representação da mão e da
escrita, cujo valor simbólico e poético é evidente. O próprio motivo da mão reaparecerá em
1999, no projecto Tajo-Tejo (exposições e livro) 1 , em que, a par das imagens a cores que

1 - 1998/99 - Espanha: Sala Julio Gonzáles - Ministerio de Educación y Cultura, Madrid; Museu Provincial de Cá-
ceres, Cáceres; Museu de Santa Cruz, Toledo; Antigo Convento de S. Lourenço, Talavera de la Reina; Portugal:
Cordoaria Nacional, Lisboa; Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova; Galeria Municipal de Almada.
Marcela Vasconcelos
231

se referem aos lugares e formando trípticos com estas, aparecem as mãos, fotografadas
a preto e branco, uma forma metonímica de retratar as pessoas: a mão que faz o pão, a
renda, que modela a paisagem...
O humor e a dessacralização do que é tradicionalmente instituído como arte estão
presentes na obra do autor, desde os trabalhos anteriores à utilização da fotografia. É nesta
perspectiva que aparecem, entre outros, trabalhos como Bodas Opus 1, apresentado na I
Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1989 ( de que foi fundador) e Os Lusíadas, na
exposição internacional O Livro de Artista (Galeria Diferença, 1983) .
O carácter lúdico do texto poético, que joga com as palavras, as desordena, reordena,
repete e usa em contextos diferentes ou com novos significados, também caracteriza o
trabalho de Monteiro Gil. É nesta perspectiva que se pode ver, entre outros, o projecto Foto-
Grafias, baseado em conjuntos de macrofotografias que reproduzem pormenores de pinturas
expressamente realizadas para esse fim pelo autor, combinadas de diferentes formas. Para lá
do jogo de texturas e de cores, do jogo entre o táctil e o visual, teremos aqui uma reflexão
sobre a pintura? Sobre a marca da mão e do pincel ou sobre a marca que a luz imprime no
material sensível?
Na primeira exposição deste projecto, Foto-Grafias,1986 (Galeria Diferença, Lisboa;
Cooperativa Árvore, Porto; Círculo de Artes Plásticas, Coimbra), as fotografias das pinturas
eram apresentadas em simetrias, formando painéis. Em 1987, na Caixa de Arte PIPXOU nº 0
(integrada na exposição colectiva Itinerários, no Museu de Arte Antiga) em Faça Você Mesmo,
os kits de fotografias seriam livremente combinadas pelo público. A instalação Assemblage
88 (Galeria Atelier 15, Lisboa e Encontro Europeu de Arte, Guimarães - 1989) trazia outra
novidade: as imagens tinham-se libertado do quadro (que deixara de existir) e associavam-se
em conjuntos de fotografias e de espelhos que percorriam as paredes. Novamente a pintura,
o jogo de texturas, de cores, de formas, e agora também de reflexos, num caleidoscópio que
reflecte o mundo e em que nos contemplamos. Uma reflexão sobre a função mimética da
poesia, da fotografia e da arte em geral? O que poderemos dar a ver que não se possa ver
fisicamente? Pode a fotografia ser uma visão ou um reflexo do mundo? Pode a fotografia
articular a realidade e torná-la inteligível?
O trabalho que está hoje reunido no Museu Vostell Malpartida, Cáceres, Espanha, com
o título My Memories integrou diversas instalações (1980-2010) em Portugal, Espanha e
Brasil 2. É actualmente um conjunto de quarenta caixas de cartão que podem ser dispostas
de diferentes maneiras, fechadas e lacradas. No exterior de cada uma delas, duas fotografias
do objecto que a mesma contém, assim como a respectiva memória descritiva. A caixa,
portanto, como um repositório de memórias ou “fragmentos de auto-retrato”. Ou como a
metáfora da câmara escura e da própria fotografia?
Se em “My Memories” a caixa encerra o objecto/memória, em Domestic Itineraries 3,
o autor conduz-nos “ao outro lado do espelho”, ao interior da caixa, uma vez que é a
intimidade do seu próprio espaço doméstico que é exposto numa linguagem lírica - porque
é de emoções e de memória que se trata. Cada recanto da sua casa é apresentado a preto
e branco, contextualizando um pormenor, a cores, em formato Polaroid, formando pares
fotográficos em cada quadro. Um jogo de enquadramentos que, enquanto seleccionam e
limitam o visível, sugerem novos enquadramentos, isto é, remetem para o invisível. Uma
encenação/realidade em que se adivinha a presença do autor como um dos actores que se
revelam e ocultam ao mesmo tempo, num jogo de sombras e de luz.
A mesma atmosfera silenciosa e poética, nostálgica em muitos casos, é, de resto, uma
das características das fotografias de interiores, em que Monteiro Gil explora sabiamente a
iluminação natural disponível para acentuar a marca intimista das imagens. E os habitantes

2 - 1980 - A Caixa - Galeria Diferença, Lisboa; 1981 - 25 Artistas Portugueses de Hoje - Museu de Arte Contem-
porânea de S. Paulo, S. Paulo, Brasil; 1983 - Palácio D. Manuel, Évora; 1999 – Encontros da Imagem, Braga;
2010 - CONCEPTOS - Selección de Fondos del Museo Vostell Malpartida – Museo Vostell Malpartida, Cáceres,
Espanha.

3 - 1998 – Paris Photo - Stand Galeria Diferença, Carrousel du Louvre, Paris, França; 2002 - Galeria Fonseca
Macedo, Ponta Delgada; 2004 - Stand da Galeria Fonseca Macedo em: Arte Lisboa, ForoSur 2004 - Feira
Iberoamericana de Arte Contemporâneo, Cáceres, Espanha, ArtSalamanca07 (2007) e Arte Santander 08
(2008), Santander, Espanha.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
232

desses espaços, bares, cafés, transportes públicos, contemplando até por vezes a própria
sombra, são a imagem do hábito transformado em memória.
Nas fotografias de exterior de As Pedras e o Tempo (exposição e livro), 1993 S.N.B.A.,
Lisboa ou de Lisboa Qualquer Lugar (exposição e livro), 1994 S.N.B.A., Lisboa, também há
um especial tratamento da luz natural que, ora se derrama pelas calçadas ou pelas superfícies
líquidas, ora dá lugar a sombras que cavam texturas e mistério.
Se a exploração da luz natural é uma constante em todo o trabalho desenvolvido em
vários géneros, também se verifica um gosto especial pela iluminação nocturna, sem recurso
a fontes de luz que não sejam as disponíveis nos próprios locais, tanto interiores como
exteriores, para captar a magia da noite. Como exemplos, O madeiro do Natal, na Guarda
(in Um (e)terno olhar) ou As Luzes no Atlântico, 2000 4 , em que as cidades da Madeira
emergem da sombra em todo o seu esplendor, sob um céu azul cobalto.
As imagens que integram o livro Made in USA - Impressões de Viagem, 1996, as
fotografias da América percorrida de costa a costa pelo grupo Íris, vêm ao encontro do
nosso imaginário, certamente influenciado pelo cinema - pelo que se pode estar a entrar
no domínio da intertextualidade. Temos a estrada a perder-se na lonjura, as planícies vazias,
pontuadas por uma estação de serviço, um cão, um homem a cavalo que mais parece saído
de uma ficção do que real, um bar com jukebox, uma silhueta de cowboy... Tudo envolvido
pelo vento. E pelo silêncio. As imagens poderiam até manter-nos à distância, não fora o facto
do fotógrafo partilhar o ponto de vista e de nos dar a sensação de “estar lá” também, com
frequentes enquadramentos através de pára-brisas e retrovisores ou colocando em primeiro
plano algo que referencie o tempo e o lugar. Além disso, criou dinâmicas e perspectivas
fora do vulgar, recorrendo a grandes oculares que agigantam o camião ou enfatizam o
omnipresente automóvel, conferindo por vezes um tom surrealista às cenas.
O texto poético é musical. Continuando no plano sensorial, também as imagens, isoladas
ou associadas, podem transmitir sonoridades, com as suas aliterações, ritmos e pausas. Por
outro lado, são conhecidas as sinestesias, as associações entre a música e a cor. E talvez seja
nos trabalhos a cor, com a qual compõe com rigor, que Monteiro Gil deixa adivinhar o seu
gosto pela música, que escuta permanentemente. Curiosamente, Ansel Adams, uma das
suas referências mais antigas, era músico de formação...
Em The Iron Age, projecto conceptual que integrou instalações ocorridas em Portugal
(1991 e 94), França (1992) e Espanha (2001) 5, a par de uma recuperação estética de objectos
de uso utilitário, temos os sons vibrantes das cores primárias que se combinam em variações
e repetições. Quais serão as cores do Jazz?
Sonoridades diferentes são as do projecto fotográfico Imaginary Travel Around The USA
(2004)6 e Around Azores (2009)7, que marca, de certo modo, um regresso à pintura. A
partir do visionamento de fotografias suas, cria novas imagens, que organiza rigorosamente
em séries, formando quadros. O movimento da câmara evoca o movimento do fotógrafo/
observador em viagem e introduz uma nova dinâmica temporal às imagens a que o efeito de
flou confere um carácter quase abstracto. E as cores, libertando-se da tirania dos contornos
das coisas, fluem, em movimentos ritmados, harmonizando-se numa sinfonia visual.
Perante a fotografia documental de Monteiro Gil, põe-se uma questão: continuaremos
num universo poético? Fotografar é, já por si, um acto poético na medida em que há um
trabalho sobre o real. E se há uma “qualidade poética dos seres e das coisas susceptível de
ser revelada apenas pela fotografia”, como diz Edgar Morin (in Qu’est-ce que le cinéma?), o

4 - Publicado na Revista FotoDigital (Portfólio Luzes no Atlântico), Lisboa, Janeiro de 2003.

5 - 1992 - 5 Photographes Portugais - Galeria Robert Doisneau-Centre Culturel André Malraux, Vandoeuvre-
Nancy, França; 1994 - Fronteiras - S.N.B.A., Lisboa; 2001 - Portugueses en el Museo Vostell ¿ Y Qué Hace
Usted Ahora ? - Museo Vostell Malpartida, Cáceres, Espanha.

6 - 2004 - 30 x 30, Galeria Diferença, Lisboa; 2005 - FAC, Lisboa, F.I.L., Stand da Galeria Diferença; 2006 - Imagi-
nary Travel Around the USA, Galeria Diferença, Lisboa

7 - 2010 – Imaginary Travel Around Azores - Aniversário dos 10 anos de atividade da Galeria Fonseca Macedo -
Com edição de Caixa comemorativa; 2012 - Colectiva de Fotografia, Galeria Diferença, Lisboa
Marcela Vasconcelos
233

autor não deixou de a revelar neste género fotográfico à qual juntou uma forte componente
humanista.
A maior parte da fotografia documental de Monteiro Gil está relacionada com projectos
que desenvolveu na Guarda, cidade de onde saiu há muito tempo mas de onde nunca
partiu.
Kundera disse que “a memória não filma, mas fotografa”. Sendo a fotografia memória,
neste caso ela é simultaneamente sujeito e objecto. Com os afectos à flor da pele mas sem
nostalgias inúteis, gosta de se perder pelas ruas, de observar os seus recantos, tentando
retratar a alma da cidade tal como ela é, actualmente. Mas “os barrocos deixam marcas...”
e, imagina-se, a montanha, o rio, o nevoeiro, o sincelo, também. Tal como terão deixado, em
tempos e modos diferentes, a dois grandes vultos da Cultura Portuguesa Contemporânea,
homenageados em 2008 pelo Centro de Estudos Ibéricos com a publicação do livro Um (e)
terno olhar - Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, C.E.I. Guarda, projecto cuja
parte fotográfica esteve a cargo de quatro fotógrafos, entre os quais Monteiro Gil.
Um País de Longínquas Fronteiras (2000) 8, foi um importante projecto sobre a emigração
na região da Guarda, em que Monteiro Gil participou em co-autoria com Fernando Curado
Matos e Luis Azevedo. Coerentemente com a intencionalidade da obra, as imagens que
integram as três partes do livro, As origens, A peregrinação e O reencontro, mostram que
a fotografia pode ser um meio de criar, manter ou reactivar os laços sociais entre diferentes
grupos de uma comunidade. As fotografias incluídas na primeira parte, As origens, estão
paradoxalmente mais próximas do presente, não tanto pelas circunstâncias temporais da
sua criação como pelo facto de a beleza que caracteriza cada elemento da paisagem ser
a beleza já idealizada pelos que partiram. Nos capítulos seguintes, os retratos do autor
mostram uma intersubjectividade, uma inequívoca relação de proximidade sujeito/fotógrafo,
assim como, ao mesmo tempo, uma grande eficácia visual, na escolha do contexto, dos
objectos que rodeiam (ou definem) os retratados e na escolha do ângulo de visão.
O humanismo patente em trabalhos anteriores, assume uma expressão particular em
Wòna Ni Maitho (Ver com os próprios olhos) 9, com início em 2002 e de que resultou a
recente exposição Olhos nos Olhos, 2016 (Galeria Diferença, Lisboa). A recolha das imagens
foi feita em Moçambique e haveria talvez a tentação de ceder a um certo folclorismo.
Contudo, mais uma vez, Monteiro Gil assume uma expressão actual do “humanismo
fotográfico” ao retratar pessoas na singularidade concreta e quotidiana dos lugares. As
pessoas, com quem o fotógrafo estabelece uma grande empatia, não só o consentem,
como lhe devolvem o próprio olhar. E nesse olhar, no reflexo de uma emoção, encontramos
a universalidade da condição humana. Victor Hugo, a propósito da sua poesia, e consciente
desta universalidade, disse que, quando falava de si próprio, era de nós que falava. Monteiro
Gil, falando do outro, fala de si e de todos nós.
Não sabemos que projecto se seguirá. Mas uma coisa é certa: Monteiro Gil continuará
a tentar mostrar-nos “a cor do olhar”.

8 - Livro: Um país de longínquas fronteiras, 2000, Guarda, ed. C.M.G.; 2000 - Com o mesmo nome, exposição
de fotografia, Paço da Cultura, Guarda; 2004 - Fronteira, Emigração, Memória, Paço da Cultura, Guarda.

9 - 2004 - Photofesta - Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, Moçambique


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
234

“Imaginary Travel Around the USA”


fotografia

2004/2005 – Grand Canyon, Arizona, U.S.A. – #1


Monteiro Gil
235

2004/2005 – Monument Valley, Utah/Arizona, U.S.A. – #2


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
236

2004/2005 – Petrified Forest, Arizona, U.S.A. – #2


Monteiro Gil
237

2005/2006 – Canyon the Chelly, Arizona, U.S.A. – #1


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
238

2004/2005 – Grand Canyon, Arizona, U.S.A. – #2


Monteiro Gil
239

2005/2006 – Alta Mines, Colorado, U.S.A. - #2


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
240

Monteiro Gil
António José Dias de Almeida

“Jed já não se lembrava de quando começara a desenhar. (...) Jed consagrou a sua vida
(pelo menos a sua vida profissional, que não tardaria a confundir-se com a sua vida em geral)
à arte, à produção de representações do mundo, nas quais porém as pessoas de nenhum
modo se supunha viverem. (...).
Quando entrara nas Belas Artes de Paris, Jed abandonara o desenho, trocando-o pela
fotografia. (...)” – Transcrevi breves passagens do excelente romance de Michel Houllebecq,
O mapa e o território, prémio Concourt, editado em França em 2010.
Ao contrário de Jed, protagonista do referido romance, Monteiro Gil, natural da Guarda,
onde nasceu em 1943, ingressa em Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,
Escola pela qual é diplomado, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian de 1964
a 1968. Neste ano (1968), terá iniciado as suas primeiras exposições individuais, na Casa
da Imprensa, Lisboa (Pintura), Clube de Caça e Pesca, Setúbal (Pintura) e Hotel Turismo,
Guarda (Pintura). Lembro-me bem desta última. Se me lembro... Era a primeira vez que nós,
os amigos e colegas liceais do Beto Gil, o víamos, plasticamente falando, diante dos nossos
olhos... E gostámos.
Em 1976 e 77, expôs Desenho em Lisboa, nas Galerias Grafil e S. Francisco e, no Porto,
na Galeria 2, Desenho e Gravura. Pois bem. Ao contrário do exímio e apaixonadíssimo
fotógrafo de mapas Michelin, que protagoniza o romance de Houllebecq, o primeiro trabalho
em que a fotografia surge na obra – hoje muito vasta e valiosa – de Monteiro Gil, data
de 1979 e aconteceu no Museu de Évora. Consultando a cronologia das suas exposições,
não mais a fotografia deixa de estar presente, assumindo um particularíssimo e apreciado
destaque.
Aparentemente, talvez a mais lógica sequência seja a de Monteiro Gil e, afinal, de tan-
tos outros que, como ele, pela pintura e pelo desenho tenham começado evoluindo(?)
posteriormente para a fotografia.
Se bem interpreto Umberto Eco, num pequeno texto escrito em 1961 e incluído no volume
A Definição da Arte, a fotografia apareceria como uma “insurreição” na evolução da pintura,
impondo-se-lhe. “Com a diferença de que a fotografia, ao reconhecimento da arte que
pode existir nos fenómenos naturais, acrescenta todo um conjunto de operações manuais
e, portanto, de decisões formativas autónomas (...). A fotografia constitui-se, assim, como
arte autónoma e faz – não só comercialmente, mas também esteticamente – concorrência
à pintura. Referimo-nos à pintura figurativa, bem ententido.” E, ainda, do mesmo autor, no
referido texto: “Assim, enquanto a pintura se orientava para as mais elaboradas experiências
formais (...), a fotografia procurava, pela sua parte, exprimir o real, assumindo também na
sua casualidade e imprevisibilidade, em todas as suas sugestões e apelos, uma reinterpretação
e reconstrução do imediato.”
Esta reinterpretação e reconstrução do imediato parece-me constituir uma curiosa in-
dicação para abordar a obra do artista Monteiro Gil (embora para tal sinta imensas limitações,
cumpre-me confessá-lo).
Revisitando alguns catálogos que possuo e relembrando imagens que me foi dado
observar, ao mesmo tempo que consulto, de novo, o currículo artístico de Monteiro Gil,
posso (podemos) constatar que não existe uma separação (hipoteticamente pensar-se-ia que
isso acontecesse... ) entre exposições de Fotografia Conceptual e exposições de Straight
Photography (expressão de difícil tradução em português). Bem pelo contrário. Verificamos
que ambos os géneros, propositadamente coexistem, sem notória predominância de qualquer
deles.
A arte de representar uma realidade não real, obtendo um conceito singular da realidade,
consegue-o exemplarmente Monteiro Gil em várias exposições de Fotografia Conceptual,
António José Dias de Almeida
241

dentro das quais destaco “My Memories” (Instalação fotográfica) que esteve patente em
1999, nos Encontros da Imagem em Braga. Inserido no catálogo dos referidos Encontros,
Nancy Dantas escreve que o autor (através de caixas, que fechadas e lacradas se transformam
em relicários e os objectos que escondem em objectos sagrados), “faz a representação de si
mesmo, procura contactar com o passado ou com o ausente sob a forma de uma imagem.
É o pôr em contacto, é uma tentativa de mediação, é o assumir mais uma vez algo que fora
relegado à memória.”
Quanto a mim, um aspecto curioso passa-se com o projecto TAJO TEJO – Doze objectivos
fotográficos, que dá origem a um livro editado em Madrid em 1998, a propósito da Grande
Exposição de Lisboa ocorrida nesse mesmo ano e que serviria de catálogo às exposições que,
entretanto, ocorreram em Espanha (Madrid, Cáceres, Toledo, Talavera de La Reina) e em
Portugal (Cordoaria Nacional – Lisboa, Centro Cultural Raiano – Idanha-a-Nova e na Galeria
Municipal de Almada, esta já em 1999). É um trabalho em que participam seis fotógrafos
espanhóis e seis fotógrafos portugueses. Pois bem. Folheando as páginas do Catálogo, na
parte que diz respeito a Monteiro Gil, olhando com atenção para as 24 fotografias, noto a
importância das mãos de velhos fotografadas a preto e branco (8 fotografias) em contraste,
se assim se pode dizer, com fotografias a cores, representando paisagens, cromaticamente
diferenciadas, assim como uma porta e uma janela singelamente ornamentadas. Vistas de
per si, cada uma delas poderia (pode) ser apreciada como fotografia “directa” (tradução
espanhola de straight photography), criando perante os nossos olhos imagens que
objectivamente retratam a realidade do mundo, sem manipulação do fotógrafo.
Todavia, se lermos com atenção o texto informativo de Monteiro Gil, escrito no catálogo,
ficamos a saber que o “grosso da recolha fotográfica (717 diapositivos e número semelhante
de negativos a preto e branco) foi efectuado de Abril a Junho de 1996 e incidiu sobre as
gentes, as aldeias, os animais, a vegetação, a paisagem e, evidentemente, o rio e os seus
afluentes.” Feita a selecção do material mais ficamos a saber que o autor, quer para o livro,
quer para a exposição, optou “pela forma de trípticos construídos à volta de cada aldeia
visitada.” No livro não me parece que isso se note. Visualizando, porém, imagens da exposição
que me foram facultadas é notório esse agrupamento em trípticos fortemente motivados e
significativos. Vale a pena, para concluir a abordagem que fiz deste projecto luso-espanhol,
citar o último parágrafo do texto atrás referido: “Do elemento humano, optei por representar
apenas as mãos, estabelecendo assim uma relação directa e simbólica, entre estas e a
terra que ajudaram a transformar. Optei também pelo preto e branco para o elemento
humano e a cor para os restantes aspectos com a intenção de reforçar esta simbologia
e, simultaneamente, criar conjuntos plasticamente agradáveis onde os diversos aspectos
não se anulem mutuamente.” Os sublinhados são meus e pretendem realçar que, de facto,
no seu conjunto, estas fotografias assim expostas são também magníficos exemplos de
Fotografia Conceptual.
Nem o tempo, nem o espaço me permitem, com as limitações que também já referi,
oferecer aos leitores uma panorâmica mais pormenorizada deste género fotográfico da obra
de Monteiro Gil.
Tentemos, agora, num relance que forçosamente deverá ser breve, abordar alguns aspectos
relevantes de fotografias que possam ilustrar outro domínio, o da Straight Photography.
Foram muitas as exposições quer individuais, quer colectivas, onde Monteiro Gil exibiu o seu
enorme talento e a sua finíssima sensibilidade artística.
Referir-me-ei com mais pormenor àquelas que, de algum modo, tenham a Guarda e a
região como referentes. A razão essencial, aqui a declaro, é a de poder com mais facilidade
compulsar os catálogos que contêm muitas dessas fotografias: Um País de Longíquas
Fronteiras cuja exposição esteve patente no Paço da Cultura da Guarda em 2000; um (e)
terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, em 2008 na Biblioteca Eduardo
Lourenço e leite, cardo e mãos frias, exposição também realizada no Paço da Cultura.
Comecemos por Um País de Longínquas Fronteiras. “As imagens expostas (ano 2000 –
Guarda) e que se perpetuam no livro dado à estampa (o catálogo que me serve de guia), além
de proporcionarem uma serena e desapaixonada reflexão sobre um fenómeno tão presente
quão complexo, pretendem prestar uma justa e sentida homenagem aos que partiram,
homens e mulheres que estiveram envolvidas na grande aventura da emigração portuguesa.
É por outro lado, uma forma de a vetusta cidade da Guarda se reencontrar com o
seu passado, tão marcado por diferentes diásporas, se reconciliar com a sua identidade,
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
242

pois estamos certos, povos e indivíduos só têm o passado à sua disposição. É com ele que
imaginam o futuro. (Os sublinhados são da minha responsabilidade).
Neste magnífico projecto foto(geo)gráfico participou, com outros dois fotógrafos
(Fernando Curado Matos e Luís Azevedo), Monteiro Gil. São da sua autoria muitas e
belíssimas fotografias, que ilustram com pertinência e qualidade, as três etapas que compõem
este roteiro paradoxalmente tão doloroso, mas também recheado de emoções felizes e de
sucessos vivenciais e económicos: As Origens; A Peregrinação; O Reencontro.
No capítulo Origens há lugar para paisagens amplas, mas igualmente surgem pormenores
de aldeias, com as suas idiossincrasias: pessoas, animais, objectos de uso quotidiano.
Quero, neste primeiro capítulo, destacar duas lindíssimas fotografias que nos prendem de
imediato pela sua beleza cromática, pela variedade de elementos que as compõem e que
vivamente nos cativam. Refiro-me às fotografias “Rio Távora” (2000) e “Rio Mondego –
Faia” (1999). Também as casas, as da Faia, por exemplo, captaram a atenção do fotógrafo
que, directamente, para a posteridade as fixou.
A Peregrinação provoca e motiva o interesse dos três fotógrafos e Monteiro Gil não
escapa às circunstâncias especialíssimas de nos pôr diante dos olhos sugestivas imagens
muito ligadas à diáspora, desde a partida, aproveitando, por exemplo, a narrativa de António
Gonçalves, fotografando-o na sua sala de Santo Estêvão com a intrínseca expressividade de
um óptimo contador de famosas e perigosas histórias, ligadas ao seu papel de passador e
dos caminhos de emigração a salto... Com aventuras e desventuras, a viagem consumar-se-ia
através de emblemáticas estradas como as A62, A68, A1 e a N620 em Espanha e, de França,
a N10 e a A10 adequadamente captadas pela objectiva de Monteiro Gil. Vislumbra-se o fim
que se concretiza em Paris - em Austerlitz ou na Gare de Montparnasse - fotografado por
Monteiro Gil em Março de 2000 para que nós, os Spectatores, na classificação feliz de R.
Barthes, as possamos apreciar e, através delas, possamos recordar muitos episódios de que
fomos testemunhas indirectas. Culmina esta peregrinação com os “peregrinos”, salvo seja,
já instalados nas suas casas como nos dizem as fotogafias do nosso autor, obtidas, ou no
conforto de uma sala em Tercis-les-Bains (Out., 1999) ou na feliz e sorridente expressão de
Clara Leal, na sua casa em Aast (Out., 1999) ou ainda no despreocupado passeio de Irene Vaz
Barroco, junto a uma banca de coloridas flores no mercado de domingo em Lalies-du-Salat,
França (Nov. 1999). Impossível passar ao lado de um instantâneo fotográfico, no qual uma
menina luso-descendente, à mesa durante a refeição, olha apreensiva para a câmara que lhe
soube captar, com mestria, o olhar, a fisionomia do rosto e a mesa modesta onde jazem duas
garrafas, restos de comida. Enfim, uma criança com o futuro à sua frente, que curiosamente
o prescruta no exacto momento em que é fotografada. (Paris, Março de 1999). A integração
no novo espaço, urbano por excelência, cosmopolita, também Monteiro Gil a captou e teve
a finura e a subtileza de no-la transmitir através de uma sequência fotográfica dinâmica (a
linguagem das mãos) na Lição de Carlos Janela Antunes no café da Av. Philippe Auguste,
Paris, Março de 2000.
Finalmente, o Reencontro! Quem partiu, sofrendo as agruras de viagens difíceis,
muitas vezes a salto, “outro” voltou e, embora seja o mesmo, inevitáveis metamorfoses se
operaram. As aldeias de origem dos emigrantes, elas próprias se transformam e disso mesmo
os fotógrafos, nomeadamente o nosso Monteiro Gil nos dá conta através das fotografias
que ilustram este capítulo da saga. É o regresso à familiaridade dos seus, é o reencontro nas
festas, nas procissões, nos bailaricos, nas touradas, nas capeias raianas.É, enfim, o regresso
às raízes. Igualmente, no conforto das novas casas construídas, Monteiro Gil, por exemplo,
retrata-nos a já nossa conhecida (vimo-la num mercado de domingo em Salies-du-Salat)
Irene Vaz Barroco, comodamente sentada em confortável “maple” num recanto da sala
acolhedora da sua nova casa nos Fóios... É boa ocasião para Monteiro Gil e Fernando Curado
Matos captarem, em sugestiva sequência fotográfica, a expressiva figura de José Troufa,
contando, em Vila Nova de Foz Côa, as suas aventuras e desventuras... vividas, afinal, em Um
País de Longínquas Fronteiras.
Sem qualquer menosprezo obrigo-me a omitir neste texto, que já vai longo, uma exposição
muito específica, leite, cardo e mãos frias efectuada em 2009, também no Paço da Cultura
da Guarda.
Fixar-me-ei um pouco na que teve lugar na Biblioteca Euardo Lourenço aquando da sua
inauguração, em 27 de Novembro de 2008.
Apraz-me registar que na organização do volume/catálogo um (e)terno olhar tive o gosto
António José Dias de Almeida
243

e o privilégio de nela ter colaborado. Foi uma oportunidade de ter um contacto mais activo
com o meu antigo colega liceal, contemporâneos universitários em Escolas diferentes em
Lisboa e, colegas como docentes também em diferentes Liceus, pois o artista Monteiro Gil,
durante trinta e muitos anos, exerceu funções de professor do Ensino Secundário...
Com a ajuda do catálogo, relembro fotografias com que Monteiro Gil enriqueceu a
exposição que então se realizou. Captaram, de forma muito oportuna e com qualidade a
que o autor nos habituou, espaços, edifícios e elementos simbolicamente referenciais da
Guarda. Assim, a Torre de Menagem, envolvida por um suave manto de nevoeiro, transmite-
nos subtilmente um certo halo de mistério, conseguindo o fotógrafo, pelo menos neste caso,
projectar uma característica da cidade: cidade altaneira encimada pela velha torre, vestígio
único de antigo castelo roqueiro. Outro elemento que sobressai é, como não podia deixar
de ser, a neve. Vemo-la a realçar a elegância da Igreja da Misericórdia, ou a beleza do Jardim
Dr. Lopo de Carvalho com a respectiva estátua. O ex-libris da Guarda, a Sé Catedral, motiva,
evidentemente, belas fotografias presentes neste catálogo, cativando-me especialmente a
que nos mostra, numa perspectiva original, a escadaria que dá acesso à porta lateral virada
para a Praça Velha, vendo-se à direita uma das torres sineiras envolta, aliás como toda a
fachada lateral, suave nevoeiro que lhe empresta um tom reflexivo e de meditação, bem
patente também numa fotografia, ao crespúculo, obtida do lado da Praça Velha (Praça Luís
de Camões). Esta Praça é também espaço privilegiado de outras fotografias e gostava de
destacar a que retrata, em plena noite de Natal, o madeiro cujas labaredas flamejantes,
parecem aquecer pessoas que indistintamente rodeiam a fogueira. Outros edifícios ou
pormenores significativos do Centro Histórico são objecto da câmara de Monteiro Gil. Sejam
exemplos a Igreja da São Vicente e a elegante e singular janela manuelina da Rua Direita.
Desta exposição muito haveria ainda a dizer. Não me permite o espaço de que disponho,
mas, por pessoalíssimas razões, quero elogiar duas fotografias que muito me dizem: uma
casa simples, muito simples rodeada por frondosas e seculares castanheiros em flor, localizada
perto de Famalicão da Serra. A objectiva conseguiu captar os mais importantes elementos
caracterizadores da paisagem sobranceira à aldeia e na outra fotografia, o pormenor, talvez
mesmo o “por maior” registado pela câmara do fotógrafo – os ouriços. Medeiam entre as
duas fotografias, como é lógico, quatro meses. A do souto é obtida em Junho e a dos ouriços
em Outubro. E, quanto a este (e)terno olhar com muita pena, por aqui me fico.
Para concluir, uma brevíssima apreciação de alguns retratos dentre “os 30 escolhidos de
um conjunto de algumas centenas recolhidas em Moçambique, em Julho e Agosto de 2002,
numa faixa de cerca de 200 por 500 km compreendida entre a ilha de Moçambique, Nacala,
Memba (no litoral) e Gurué, Lioma, Mutuáli (no interior)”. Monteiro Gil, sobre esta exposição
que intitulou Olhos nos Olhos, (a última exposição por ele realizada) e que teve lugar este ano
(2016) de 13 de Fevereiro a 12 de Março, na Galeria Diferença em Lisboa, acrescenta esta
importante informação: “Foram retidos para escolha apenas os retratos em que os retratados
olham directamente para a câmara). Trata-se, portanto, de retratos consentidos, por vezes
mesmo solicitados (...).” Infelizmente, não tive oportunidade de ver a referida exposição e
bem gostaria de o ter feito. Foram-me, porém, facultadas em DVD, alguns desses retratos
que muito me sensibilizaram. Pude, através dessas imagens, recordar tempos em que aquelas
zonas moçambicanas andei (“malhas que o império tece”) e rever, por estes rostos, outros
que também eu conheci, por exemplo, na Ilha de Moçambique.
Os retratos, vistos isoladamente, denotam a finura, a subtileza de quem teve o talento
de os captar. Gosto particularmente do retrato das três meninas que, olhos nos olhos, nos
emocionam e seduzem, e isso é uma preciosa dádiva da sensibilidade de Monteiro Gil.
A exposição é um feliz resultado da montagem dos vários retratos que, afinal, nos
transmitem os “Os olhares de crianças, homens e mulheres em lazer ou nas suas actividades,
vindos da pesca ou vendendo ou comprando no mercado, nos seus trabalhos quotidianos,
da apanha do algodão ou do fabrico de tijolos.”
E termino completando a citação: “Olhares serenos, descontraídos, despreocupados, no
dia a dia quotidiano, em poses naturalmente criadas pelos fotografados.”
Em síntese final, Monteiro Gil é, indiscutivelmente, um enorme artista de quem tenho o
privilégio de ser amigo e grande admirador.

Guarda, 6 de Outubro de 2016


Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
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Monteiro Gil: Curriculum Vitae

MONTEIRO GIL
Nasceu na Guarda em 1943. Vive e trabalha em Lisboa. Diplomado pela Escola Superior de
Belas Artes de Lisboa. De 1964 a 1968 foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi
professor do Ensino Secundário Oficial e ensinou também Gravura e Fotografia. De 1992 a
1997 fez parte do “Grupo IRIS”. A sua pesquisa pessoal contou com o apoio da “CONTAX”
de 1996 a 2000.

Exposições, intervenções e instalações individuais ou de pequeno grupo:


1968. Casa da Imprensa, Lisboa (Pintura);
Clube de Caça e Pesca, Setúbal (Pintura);
Hotel de Turismo, Guarda (Pintura).
1976. Galeria Grafil, Lisboa (Desenho).
1977. Galeria S. Francisco, Lisboa (Desenho);
Galeria 2, Porto (Desenho e Gravura).
1979. Centro Cultural de Setúbal - l.º Festival de Jazz Contemporâneo (Intervenção);
“O Museu e as novas formas de Comunicação” (Intervenção e exposição) - Museu
de Évora;
“SACOM II” (Intervenção e exposição) - Museu Vostell Malpartida, Espanha .
1980. Intervenções em diferentes locais públicos de Lisboa.
1986. “Foto-Grafias” (Fotografia) em:
Galeria Diferença, Lisboa;
Cooperativa Árvore, Porto;
Círculo de Artes Plásticas, Coimbra.
1988. “Assemblage 88” (Instalação Fotográfica) - Galeria Atelier 15, Lisboa.
1990. “Trabalhos Recentes” (Fotografia) - Galeria AAPACO, Lisboa.
1994. “Os Jardins de Lisboa” (Fotografia Instantânea Polaroid sx-70) em:
Galeria Diferença, Lisboa;
Galeria Municipal de Alverca.
1997. “Memórias” (Fotografia) - Galeria Época, Guarda.
1999. “My Memories”(Instalação Fotográfica) – Encontros da Imagem, Braga;
“Estradas da América”, Paço da Cultura, Guarda.
2000. “Um País de Longínquas Fronteiras” (Fotografia), Paço da Cultura, Guarda.
2002. “Domestic Itineraries” (Fotografia), Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada.
2006. “Imaginary Travel Around the USA” (Fotografia), Galeria Diferença, Lisboa.
2009. “Leite, Cardo e Mãos Frias” (Fotografia), Paço da Cultura, Guarda.
2016. “Olhos nos Olhos” (Photography), “Diferença” Gallery, Lisbon.

Exposições coletivas (seleção):


1973. “13 + 1 Novos Gravadores” - Galeria Grafil, Lisboa.
1974. “Gravura Portuguesa Contemporânea” - Galeria Espaço, Porto;
“Gravura Portuguesa de Hoje” - Galeria Gordillo, Lisboa;
“Perspectiva” – S.N.B.A., Lisboa.
1975. “Figuração Hoje ?” - S.N.B.A. (Sociedade Nacional de Belas Artes), Lisboa;
1976. “Gravura Portuguesa Contemporânea” - S.N.B.A., Lisboa;
“Exposição de Arte Moderna Portuguesa” em:
Museu de Lund, Suécia;
S.N.B.A., Lisboa;
1977. “I Exposição Nacional de Gravura” - Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;
“O Papel como Suporte da Expressão Plástica” - S.N.B.A., Lisboa;
“Portuguese Contemporary Art” (Exposição organizada pela Secretaria de Estado
da Cultura) - Belgrado, Jugoslávia.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
245

1978. “Cultura Portuguesa em Madrid” (exposição organizada pela S.E.C.) em:


Madrid, Espanha;
S.N.B.A., Lisboa;
“Mitologias Locais” - S.N.B.A., Lisboa;
“Gravura Portuguesa” (exposição organizada pela “Gravura”) - Rio de Janeiro e
Belém, Brasil;
“18 x 18 Nova Fotografia” em:
Galeria Grafil, Lisboa;
Centro de Arte Contemporânea, Porto.
1979. “LIS’79 – 1 ª Bienal de Desenho de Lisboa” em:
Galeria de Arte Moderna da S.E.C., Lisboa;
Centro de Arte Contemporânea, Porto.
1980. “A Caixa” - Galeria Diferença, Lisboa;
Stand da Galeria Diferença na FILCOOP, Feira Industrial de Lisboa, Lisboa.
1981. “25 Artistas Portugueses de Hoje”- Museu de Arte Contemporânea de S. Paulo,
S. Paulo, Brasil.
1982. “Outdoor” - Recife (nas ruas da cidade), Brasil.
1983. “Exposição Retrospectiva da Actividade da Diferença” - Palácio de D. Manuel, Évora;
“O Livro de Artista” (exposição internacional) - Galeria Diferença, Lisboa.
1984. “Artistas Fotógrafos em Portugal” em:
Museu de Arte Contemporânea de S. Paulo, S. Paulo;
Brasília, Coritiba e outras cidades do Brasil.
1985. “Celebração” - Galeria Diferença, Lisboa;
Participação na Caixa de Arte “PIPXOU nº único a)” (40 exemplares) – Galeria
Diferença, Lisboa;
“Diferença-Diálogo” - Galeria Diferença, Lisboa.
1986. “19 Artistas na Diferença” (exposição organizada por convite da Associação
Internacional dos Críticos de Arte) - Galeria Diferença, Lisboa.
1987. Participação na Caixa de Arte “PIPXOU nº 0” (80 exemplares), integrada na
retrospectiva de Ernesto de Sousa “Itinerários” - Museu Nacional de Arte
Antiga, Lisboa.
1988. “Na Fotografia a Diferença” (exposição itinerante) em:
Galeria Municipal da Amadora;
Museu Municipal de Loures;
Galeria Municipal de Vila Franca de Xira;
Círculo de Artes Plásticas de Coimbra;
“I Forum de Arte Contemporânea”, Stand da Galeria Diferença - Forum Picoas,
Lisboa;
“F.I.C.- Feira das Industrias Culturais”, Stand da Galeria Diferença - Feira das
Industrias, Lisboa.
1989. “I Bienal de Fotografia” - Vila Franca de Xira;
“Encontro Europeu de Arte”, Stand da Galeria Diferença, Guimarães.
1991. “II Bienal de Fotografia” - Vila Franca de Xira.
1992. “5 Photographes Portugais” - Galeria Robert Doisneau-Centre Culturel André
Malraux, Vandoeuvre-Nancy, França;
“Itinerários” (com o Grupo IRIS) - Galeria S. Bento 34, Lisboa.
1993. “As Pedras e o Tempo” (com o Grupo IRIS) em:
S.N.B.A., Lisboa;
Galeria da Casa Municipal da Juventude, Almada;
Galeria de Arte do Hotel Jupiter, Praia da Rocha;
Palácio D. Manuel, Évora;
“Ruralidades” (com o Grupo IRIS) - Casa Museu Dr. Sousa Martins, Alhandra
(exposição integrada na “III Bienal de Fotografia” de Vila Franca de Xira).
1994. “Fronteiras” - S.N.B.A., Lisboa;
“Ruralidades” - Galeria da Quinta da Piedade, Póvoa de Santa Iria;
“Ruralidades” (exposição em itinerância pelo mundo através do Instituto Camões);
“Les Portes Ouvertes de la Bastille” - Paris, França;
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
246

“Fotógrafos Portugueses” - FNAC Bastille, Paris, França;


“Lisboa Qualquer Lugar” - S.N.B.A., Lisboa;
1996. “Made in U.S.A.” - Casa da Cerca, Almada;
“Seis Fotógrafos Portugueses”, Museu de Fotografia Contemporânea Ken Damy,
Brescia, Itália.
1997. “Aspects de la Photographie Portugaise”, exposição itinerante em França
através da Agência CRÉAT’IM (Albi, Graulhet, Castres et Rodez);
“Made in U.S.A.” - Casa dos Crivos (Encontros da Imagem), Braga;
“FAC - Feira de Arte Contemporânea” (Stand da Galeria Diferença ), Lisboa;
“Paris Photo 97” (Stand da Galeria Diferença), Carrousel du Louvre, Paris;
1998. “Tajo Tejo-Doce Objectivos Fotográficos” em:
Espanha:
Sala Julio Gonzáles - Ministerio de Educación y Cultura, Madrid;
Museu Provincial de Cáceres, Cáceres;
Museu de Santa Cruz, Toledo;
Antigo Convento de S. Lourenço, Talavera de la Reina;
Portugal:
Cordoaria Nacional, Lisboa;
Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova;
“Paris Photo 98” (Stand da Galeria 1839), Carrousel du Louvre, Paris, França.
1999. “Tajo Tejo-Doze Objectivos Fotográficos”, Galeria Municipal de Almada;
“ARCO’99” (Stand da Galeria Diferença), Madrid;
“A Memória e a Diferença - Olhar uma Galeria” - Galeria Diferença, Lisboa;
“Paris Photo 99” (Stand da Galeria Diferença), Carrousel du Louvre, Paris, França.
2001. “Portugueses en el Museo Vostell ¿ Y Qué Hace Usted Ahora ?“ - Museo Vostell
Malpartida, Cáceres, Espanha;
“FAC - Feira de Arte Contemporânea de Lisboa”, Stand da Galeria Diferença.
2002. “Critério Visível”, Centro Português de Fotografia, Porto;
“50 Fotógrafos Portugueses dos Anos 50 à Actualidade”, Museu de Serralves,
Porto.
2003. “Colectiva em Movimento”, Galeria Diferença, Lisboa.
2004. “ForoSur 2004 - Feira Iberoamericana de Arte Contemporâneo”, Stand da
Galeria Fonseca Macedo, Cáceres, Espanha;
“Photofesta” Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, Moçambique;
“30 x 30”, Galeria Diferença, Lisboa;
“Arte Lisboa”- Feira de Arte Contemporânea de Lisboa, F.I.L., Stand da Galeria
Fonseca Macedo;
“Fronteira, Emigração, Memória”, Paço da Cultura, Guarda.
2005. “A Extensão do Olhar” - Centro de Artes Visuais, Coimbra;
“Colecção Nacional de Fotografia: Novas Aquisições” - Centro Português de
Fotografia, Porto;
“FIC - Feira de Arte Contemporânea de Lisboa”, F.I.L., Stand da Galeria Diferença.
2006. “Landscape”, Galeria Diferença, Lisboa.
2007. “ArtSalamanca 07”, Stand da Galeria Fonseca Macedo, Salamanca, Espanha.
2008. “Arte Santander 08”, Stand da Galeria Fonseca Macedo, Santander, Espanha;
“Um (E)Terno Olhar”, Biblioteca Eduardo Lourenço, Guarda.
2009. “Trinta Anos de Diferença – II”, coletiva de Fotografia, Galeria Diferença,
Lisboa.
2010. “CONCEPTOS - Selección de Fondos del Museo Vostell Malpartida” – Museo
Vostell - Malpartida, Cáceres, Espanha.
2011. “Pivate Lives – Colectiva de Fotografia”, Centro Cultural de Cascais, Cascais.
2012. “Colectiva de Fotografia”, Galeria Diferença, Lisboa; “Um (E)Terno Olhar”,
XIV Semana Cultural da Universidade de Coimbra,.
2013. “Artistas españoles y portugueses en la colección del Museo Vostell
Malpartida” – Museo Vostell Malpartida, Cáceres, Espanha.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
247

Coleções
Está representado em diversas coleções particulares e oficiais dentre as quais:
Em Portugal:
Ministério da Cultura - Centro Português de Fotografia, Porto;
Ministério da Cultura - Instituto Camões, Lisboa;
Câmara Municipal da Guarda;
Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;
Fundação Cidade de Lisboa;
Encontros da Imagem, Braga;
Casa da Cerca / Centro Cultural de Almada;
Kodak Portuguesa, Lisboa;
Fundação PLMJ, Lisboa;
Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada, Açores.
Espanha:
Museu Vostell Malpartida, Cáceres;
Fundación Fernando Maria Centenera Jaraba, Madrid.
França:
Centre Culturel André Malraux, Vandoeuvre-Nancy;
Museu Nicephore Nièpce, Chalon sur Saone;
Galerie du Château D’Eau, Toulouse.
Bélgica:
Musée de la Photographie de Charleroi, Charleroi.
Suiça:
Musée de L’Elysée, Lausanne.
Itália:
Museu de Fotografia Contemporânea Ken Damy, Brescia.

Bibliografia
1979. Revista “CANAL”, Paris, Julho;
Revista “SEMA”, Lisboa, Julho;
1982. Revista “SEMA”, Lisboa, Maio;
1985. Colecção de postais “Mercados”, Lisboa;
1993. Livro “As Pedras e o Tempo”, Lisboa;
1994. Livro “Lisboa Qualquer Lugar”, Lisboa;
1996. Livro “Made in U.S.A. - Impressões de Viagem”, Lisboa;
1998. Livro “Tajo Tejo - Doze Objectivos Fotográficos”, Madrid;
1999. Livro “História e Cultura Judaica” (colaboração fotográfica), Museu da
Guarda;
2000. Livro “Um País de Longínquas Fronteiras”, Guarda.
2003. Revista “FotoDigital” (Portfólio “Luzes no Atlântico”), Lisboa, Janeiro;
2004. Revista “Super Foto Prática” (Portfólio “Domestic Itineraries”), Lisboa,
Dezembro;
Livro “Extensão do Olhar – uma Antologia Visual da Fotografia
Contemporânea”, Fundação PLMJ / Assírio e Alvim, Lisboa;
2005. Revista “Super Foto Prática” (Portfólio “Fronteira, Emigração, Memória”),
Lisboa, Janeiro;
Revista “FotoDigital” (Portfolios “Fronteira, Emigração, Memória” e “Um Pais
de Longínquas Fronteiras”), Lisboa, Janeiro 2005.
2008. Livro “Um (E)Terno Olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda”, C.E.I. Guarda.
Revista “Praça Velha” nº 24 (Portfólio sobre a Guarda), Guarda, Novembro;
Revista “FotoDigital” (Portfólio “Um (E)Terno Olhar”, Lisboa, Dezembro;
2009. Livro “Leite, Cardo e Mãos Frias”, N.A.C., Guarda 2009

Conta ainda com referências críticas na imprensa diária e semanal de diversas personalidades
entre as quais o Dr. Alexandre Pomar, Drª Cristina Azevedo Tavares, Dr. Eduardo Prado
Coelho, Dr. João Pinharanda, Drª Luísa Soares Oliveira, Drª. Margarida Medeiros e Drª.
Leonor Nazaré.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
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Prémio Eduardo Lourenço


[XII Edição | 2016]
250
Prémio Eduardo Lourenço Prémio Eduardo Lourenço
251

Luis Sepúlveda:
breve perfil

Foto de Daniel Mordzinski

No universo da literatura ibero-americana, a obra de Luis Sepúlveda ocupa um lugar


muito especial, pela natureza da sua fidelidade às raízes latino-americanas, aos territórios
oníricos da criação, à dimensão fantástica da sua escrita, à reelaboração da memória dos
lugares e das pessoas na sua relação arterial com a História do Chile e as suas comunidades
originárias.
Na incessante ação criadora, que é a sua forma de fazer literatura, não faltam à escrita
do autor de O Velho que Lia Romances de Amor, a expressão identificadora de realidades
primordiais e uma dimensão plástica da linguagem que lhe conferem uma certidão de
autenticidade, e de estilo, só alcançável pelos grandes escritores.
A natureza dessa originalidade criadora, que é um traço distintivo dos seus livros, fez
que as suas palavras voassem por cima das fronteiras para se tomarem matéria de sonhos
de alcance universal. Em certo sentido, poderia dizer-se que ele materializou aquele desejo
tão bem formulado pelo grande escritor brasileiro, João Guimarães Rosa quando disse: voa,
palavra! E as suas palavras fizeram-se parte inteira do sonho de milhares e milhares de leitores
em todo o mundo. Ele dirá numa entrevista: “Voar, ter asas, não é só levantarmo-nos no ar,
é caminharmos com passos próprios. Elevarmo-nos confiando apenas nas nossas próprias
forças”.
A universalidade da obra de Luis Sepúlveda radica na sua capacidade para, contando
histórias que mergulham às vezes em realidades que são retratos particulares da condição
humana, adquirirem pela sua comum humanidade, sentido planetário inerente à esperança
de que a literatura tem, desde a sua matriz originária, desde a Antiguidade Grega aos nossos
dias, o compromisso de contribuir para a edificação de um mundo mais habitável.
No caso de Luis Sepúlveda essa contingência cruza-se com a sua biografia, também
vincadamente expressa na sua obra criadora (Octávio Paz), estando na primeira linha de
defesa das liberdades, por exemplo, no golpe militar fascista de 11 de Setembro, de Pinochet.
Luis Sepúlveda estava no Palácio de La Moneda a fazer guarda ao Presidente Allende,
como membro da Unidade Popular chilena. Esse e outros combates cívicos levaram-no aos
caminhos do exílio. Têm sido múltiplas as suas navegações: viajou e trabalhou no Brasil,
Uruguai, Paraguai e Peru. Viveu no Equador entre os índios Shuar, numa missão de estudo da
UNESCO. Foi amigo de Chico Mendes, herói da defesa da Amazónia, a quero, aliás dedicou
O Velho que Lia Romances de Amor.
Autor de uma obra multifacetada- além de escritor, foi jornalista e realizador de cinema
- construiu o seu universo ficcional longe do Chile, o que lhe permitiu regressar sempre
distanciadamente aos territórios da infância e às vicissitudes de se fazer a si próprio como
homem e cidadão. Essa vertente foi importante para estimular a memória e porventura
consolidar a sua escrita com a dimensão do fantástico latino-americano.
Se nos ativermos às suas principais obras, em que se destaca a humaníssima narrativa
de O Homem que Lia Romances de Amor (1989) descobrimos facilmente que a cartografia
do imaginário chileno é uma âncora fundamental da ficção de Luis Sepúlveda. É importante
Prémio Eduardo Lourenço
252

sublinhar, também, que na vastidão da sua bibliografia se deve dar atenção à forma como
Sepúlveda domina os géneros literários, como é o caso da sua dimensão de cronista ou autor
de livros de viagens (Patagónia Express (1995), Mundo do Fim do Mundo (1996), Crónicas
do Sul (2011), ou de ficcionista que faz da memória questão que tem consigo mesmo (O
General e o Juiz (2002), As Rosas de Atacama (2000), ou até na literatura infantil História de
um gato e de um rato que se tornaram amigos (2012) e História do Caracol que descobriu a
importância da lentidão (2013).
Autor ibero-americano, Luis Sepúlveda vive em Gijón, a Ibéria é hoje o seu lar. Poucos
autores, como ele, têm trabalhado em louvor da Língua e da Cultura espanholas, fazendo
da pátria idiomática que tem a dimensão plurinacional de vários continentes uma aventura
criadora em que o homem é a medida de todas as coisas.
Prémio Eduardo Lourenço
253

Prémio Eduardo Lourenço [2004-2015]


Premiados

2004 | Maria Helena da Rocha Pereira 2011 | Mia Couto


Catedrática jubilada da Universidade de Coimbra Escritor, jornalista e biólogo moçambicano

2006 | Agustín Remesal 2012 | José María Martín Patino


Jornalista Escritor e Teólogo Jesuíta espanhol

2007 | Maria João Pires


Pianista 2013 | Jerónimo Pizarro
Professor de Literaturas Hispânicas e
investigador da obra de Fernando Pessoa

2008 | Ángel Campos Pámpano


Poeta, tradutor, editor e professor

2014 | Antonio Sáez Delgado


Professor de Filologia Hispânica na Universidade de Évora

2009 | Figueiredo Dias


Catedrático jubilado da Universidade de Coimbra

2015 | Agustina Bessa-Luís


Escritora

2010 | César Antonio Molina


Autor de obras de ensaio, prosa e poesia
254

Intervenções na Sessão de Entrega


do Prémio Eduardo Lourenço 2016
Prémio Eduardo Lourenço
255

Álvaro dos Santos Amaro


Presidente da Câmara Municipal da Guarda

  

Esta é já a 12ª edição do Prémio ao qual o Professor Eduardo Lourenço acedeu a dar
o nome e que visa galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no
âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas.
O historial do Prémio Eduardo Lourenço e o próprio percurso do Centro de Estudos Ibé-
ricos provam que já se ultrapassou a dimensão transfronteiriça da Ibéria e se assumiu uma
dimensão além-fronteiras. Este ano, o júri entendeu novamente deixar o espaço ibérico euro-
peu, galardoando um escritor da Ibéria para além do Atlântico.
Com esta orientação, o iberismo adquire um significado mais enriquecedor por incorporar
uma herança cultural que faz jus à dimensão universal do legado peninsular que se difundiu
pelo mundo.
Parabéns, Luis Sepúlveda.
Seja bem-vindo a esta cidade de fronteira, fortaleza do passado e guardiã da identidade
portuguesa ao longo de séculos que está agora aberta a novos rumos, pontes e diálogos com
a Ibéria de aquém e além-fronteiras, a Europa e o Mundo.
Ao unir os nomes de Eduardo Lourenço e Luís Sepúlveda, o CEI estabelece uma ponte
com um distante país, recuperando seculares ligações históricas que entroncam na Memória
dos Descobrimentos.
Uma união que ultrapassa as rotas das Caravelas, e onde relevam os valores da solidarie-
dade humana, da consciência social e da liberdade que os caracterizam.
Tal como o patrono desta Biblioteca, o guardião de histórias Luís Sepúlveda é um cidadão
do mundo, ativista político e militante social.
O Júri desta 12ª edição do Prémio Eduardo Lourenço reconheceu o seu trabalho em lou-
vor da Língua e da Cultura espanholas e a expressão e difusão da sua obra tanto em Portugal
como em Espanha, que o tornam um mediador da Cultura Ibérica.
Permitam-me acrescentar uma nota pessoal: do que já tive oportunidade de ler, transpa-
rece o talento inquestionável para extrair beleza dos sítios por onde passa e das pessoas com
as quais trava conhecimento.
Ao descrever as memórias, experiências, pessoas e imagens de territórios distintos, Luís
Sepúlveda prova, com simplicidade e emoção, que a escrita não tem fronteiras.
Por isso, esta cidade de Fronteira - que tem lutado pelo esbatimento das linhas de se-
paração e pela criação de espaços de coesão e convergência – orgulha-se de o receber hoje e
de lhe entregar o Prémio que contempla a cultura, cidadania e cooperação ibéricas.
No ano passado, quando entregámos nesta mesma sala o Prémio Eduardo Lourenço
a Agustina Bessa Luís, lancei aos nossos parceiros das duas Universidades e do Instituto
Politécnico o desafio para a reflexão acerca do futuro deste ou de outro Prémio que in-
centivasse e distinguisse aqueles que nos ajudam a pensar e a concretizar estratégias de
progresso para estes territórios designados de baixa densidade mas – acrescento e insisto;
mas insisto, mesmo – de elevado potencial.
Paralelamente, o novo ciclo de políticas comunitárias que agora se inicia convoca-nos e
estimula-nos a novas abordagens tendo em vista oportunidades criativas de desenvolvimen-
to e coesão.
O estímulo à investigação, o apoio ao estudo e o impulso de iniciativas inovadoras ori-
entadas para a projeção dos nossos territórios comuns dão o mote ao novo Prémio que hoje,
em nome da Direção do Centro de Estudos Ibéricos, aqui apresento.
O Prémio CEI – IIT - “Investigação, Inovação e Território” terá como objetivo distinguir
a “investigação inteligente”, a inovação e o empreendedorismo, sempre numa linha de
compromisso com as regiões de fronteira.
Prémio Eduardo Lourenço
256

Contemplará – posso já revelar – duas modalidades:


Uma primeira de Investigação, para premiar estudos sobre temas relevantes na defesa do
património e dos valores naturais; da coesão social e do desenvolvimento local.
Uma segunda linha terá como foco Inovação e Território, para iniciativas inovadoras na
valorização dos recursos endógenos; no uso das tecnologias ao serviço do desenvolvimento
e qualidade de vida; e na inovação territorial.
O Prémio estará dotado com 5 mil euros, a dividir pelas duas modalidades, ou seja, os
trabalhos ou projetos selecionados receberão um apoio do CEI no valor de 2 mil e 500
euros.
O Centro de Estudos Ibéricos continua assim a estimular a cooperação e o intercâmbio
entre pessoas, instituições e territórios, apostando no justo equilíbrio entre a investigação
e a ação – entre o pensar e o fazer – para distinguir tanto trabalhos, estudos e projetos de
investigação como boas práticas de desenvolvimento económico e social, orientadas para a
projeção da nossa realidade.
Assim, assumindo – sempre! – a Cultura e o Conhecimento como bases do desenvolvimento
social, anuncio aqui que já em 2017 teremos dois prémios: o Prémio Eduardo Lourenço, que
continuará a celebrar um valor consagrado e a reconhecer um percurso; e o novo Prémio
“Investigação, Inovação e Território” que incentivará novas valias e abordagens territoriais
inovadoras, distinguindo aqueles que nos ajudam a pensar e a concretizar estratégias de
progresso.
Desde a sua criação que o rumo do Centro de Estudos Ibéricos se mostrou comprometido,
solidário e reivindicativo para com os territórios de fronteira, advogando que as relações
fronteiriças devem assentar num espírito de reciprocidade, cooperação e diálogo.
No limiar de um novo ciclo de políticas públicas, o CEI continuará focado no reforço da
competitividade dos territórios de baixa densidade, na promoção de uma coesão social mais
inclusiva, na promoção do acesso aos serviços e qualidade de vida e no apoio a iniciativas de
cooperação geradoras de dinâmicas públicas e privadas positivas.
Numa Europa que tantas interrogações nos provoca por estes dias e que volta a conhecer a
fronteira enquanto separação e limite, cumprindo uma função que julgávamos ultrapassada,
concluímos que não há espaço mais europeu do que a nossa Península Ibérica.
O caminho passa pela cooperação, pelo entendimento, pelo diálogo e pela união de
esforços em torno de um projeto comum de Europa que foi sonho, que devemos prosseguir
como construção e, se necessário, defender como quimera.
A Guarda fará sempre a sua pequena mas enorme parte. Está na nossa História. E está na
natureza da nossa Gente.
Meu Caro Luís Sepúlveda: quero que se sinta, desde hoje, também como um dos nossos!

Discurso proferido na sessão de entrega do Prémio Eduardo Lourenço


Prémio Eduardo Lourenço
257

Eduardo Lourenço
Director Honorífico do CEI

Nas páginas que antecedem o livro famoso que se tornou uma espécie de referência
quase mítica, “O velho que lia romances de amor”, há uma frase que precede a história
que diz assim: “Sou um escritor mas não tenho palavras para contar o que se sente numa
rede, no meio da Amazónia, quando a noite envolve tudo e a chuva cai sem piedade”. Não
tenho esta experiência da rede para entrar em considerações sobre este belo romance, mas
estive uma vez na Amazónia, que não é como estar uma vez em Cacilhas ou no norte do
nosso pequeno País. Lembro-me muito bem o que é estar na Amazónia só por uma noite e
é como se assistíssemos a um apocalipse parecido com o nascimento do próprio mundo. De
madrugada, ouve-se um ruído imenso como uma espécie de um tremor de terra subterrâneo
e acorda-se para descobrir que os animais da Amazónia acordam ao mesmo tempo, num
barulho ensurdecedor de fim do mundo.
É verdade que, culturalmente falando, não tenho uma experiência de outro mundo
como tenho da velha Europa. Essa Europa que atravessa, neste momento, um momento de
perturbação, que se quer desfazer numa espécie de um caos que não se sabe para onde vai.
De repente, todos esses mundos que nasceram da Europa ou da sua ação aparecem ou como
um recurso possível para o apocalipse se manifestar ou para serem de facto um ponto onde
os Ulisses europeus se possam refugiar (o maior de todos já está refugiado, domina o mundo,
e chama-se Estados Unidos). O outro mundo com um passado mais modesto, mas grandioso
chama-se América do Sul. É verdade que a América do Sul não é apenas um acontecimento
geográfico entre outros, foi o começo de uma nova leitura do conhecimento do planeta que
nós habitámos e foi, sobretudo, o triunfo de uma temporalidade que nos era totalmente
desconhecida e que não tinha, nem podia ter, leitura.
No imaginário dos diversos autores latino-americanos, sobretudo os das gerações dos
países independentes, não fazem outra coisa senão instalarem-se nesse tempo, que não é
tempo europeu, tempo que nós lhe demos, quando Descobridores portugueses ou espanhóis
atracaram do outro lado do Atlântico. É qualquer coisa que não tem nome, uma espécie de
tempo zero. Nós levámos para o outro lado do Atlântico, no século XVI, a nossa cultura, a
nossa língua, a nossa temporalidade e nomeamos as coisas com as nomeações históricas
do nosso próprio passado de ocidentais europeus. Mas ficou por nomear esse tempo que já
lá estava antes que nós chegássemos. Esse tempo que foi uma perplexidade para algumas
criaturas excecionais que tiveram que se enfrentar com diversas maneiras de ser de cultura de
humanidade que era representada pelos índios da América, como foram batizados. Já nesse
batismo é tudo um engano que nunca mais será reposto. A única pessoa que se preocupou
até hoje foi Las Casas, que se admirou imenso com os evangelistas portugueses que quando
chegavam a algum sítio a única coisa que faziam era pregar numa árvore o que era um
resumo da História do mundo, levada pelo ocidente cristão. Claro que os índios não podiam
ler essas missivas, por isso, Las Casas pensa que tal era um acto irrisório dos mais absurdos.
Na verdade, essa América Latina, apesar do engano ou do erro do não conhecimento da
realidade, fala as línguas nativas desses países. Raros livros escritos por latino-americanos me
deram a impressão - como diz Pablo Neruda no seu “Canto general” - de recuperar, de outra
maneira, essa nova visão do mundo do lugar que não é o lugar universal, absoluto e abstrato
importado do Ocidente.
O romance de Luis Sepúlveda mostra uma visão interna porque com a história do seu
“velho que lia romances de amor”, não conta só uma história com o mais universal dos
sentimentos que movem a ficção, mas recria, de algum modo, uma visão humanizada.
De facto, não sendo militante ecologista, embora seja militante na ordem política, Luis
Sepúlveda compadece-se com o outro, o outro de si mesmo. O velho é alguém em quem ele
se reconhece como sendo aquele que se desconhecia até ao encontro mágico, porque esse
velho tem um segredo: quando nos é apresentado nas primeiras páginas, diz-se que possuía
Prémio Eduardo Lourenço
258

uma espécie de secretária bizarra, altiva, na qual estava um certo número de livros que eram
pequenos romances de amor - a maioria deles de origem europeia. As histórias de amor são
sempre uma sub história. No tempo em que o romance se passa era assim, mas hoje é ainda
mais complicado.
A história de “O Velho que lia Romances de amor” vai mais longe e transforma aquilo
que foi uma espécie de exceção num tempo excecional, sem leitura possível, em qualquer
coisa que é do nosso tempo. A única coisa que julgo que é importante naquilo que fazemos,
naquilo que somos, naquilo que o mundo é ou pretende ser é, de facto, reconhecer a sua
intrínseca e genérica humanidade. Quem ler este livro terá a confirmação de que isso é feito
não apenas em termos de grande conhecimento do outro em quanto tal, mas que é uma
espécie de continuação da primeira grande epopeia da América Latina que é a “Epopeia” de
Pablo Neruda. Este livro repercute toda essa grande sabedoria, autóctone do continente que
tem a sua originalidade: a América Latina. Este Continente herdou de um dos países que o
descobriram que o mundo é um todo e o descobridor dessa totalidade foi um português
chamado Magalhães, que dará o nome a um estreito, até então impenetrável. Magalhães é
o primeiro que informa que o mundo é realmente redondo.
Este livro é não só um belo romance de amores, no sentido mais forte do termo, a
invenção de um personagem extremamente tocante, de uma sobre humanidade no mundo
desumanizado e, por isso mesmo, felicito o Júri (e identifico-me com ele) por ter atribuído o
Prémio a Luis Sepúlveda.

Transcrição do discurso do Professor Eduardo Lourenço


Prémio Eduardo Lourenço
259

Fernando Paulouro
Jornalista. Escritor

Uma escrita feita da matéria dos sonhos

Venho aqui hoje, despido de vaidades, como quem cumpre um honroso encargo: dar um
abraço de gratidão ao escritor Luís Sepúlveda, por tudo aquilo que ele acrescentou, como
matéria de sonhos, à nossa inquietação cidadã, ao nosso universo cultural, à nossa condição
de leitores, circunstância em que nós somos literatura, como um dia lembrou Eduardo
Lourenço.
Foi para mim uma enorme honra ter sido eu a propor a candidatura de Luís Sepúlveda
a este prestigiado galardão e penso sinceramente que a sua obra se ajusta, como poucas,
ao patrono do prémio, o autor da luminosa ideia do Centro de Estudos Ibéricos, essa outra
“jangada de pedra” a ir pelo mundo, levando a Ibero-América e os continentes da Lusofonia,
como se quiséssemos ter ouvido palavras antigas de Herberto Hélder, quando o poeta
defendeu em 76 (há quantos anos!) que “as línguas portuguesa e castelhana, reconhecendo-
-se os divórcios e ignorâncias em que estão, podem afirmar-se como um nó cultural de onde
partiu o impulso criador que tem exemplo frontal na chamada América Latina e se instituiu
mais recentemente em África”.
Esse sentimento de pátrias idiomáticas comuns partilha-o Luís Sepúlveda com o universo
pessoano (“a minha pátria é a língua portuguesa”), pois também ele escreveu no regresso
aos territórios da infância, a propósito da descoberta de uma biblioteca: “entrei pela primeira
vez no que seria e é a minha única pátria: o meu idioma e as suas palavras.” (O Poder dos
Sonhos).
No universo da literatura ibero-americana, a obra de Luís Sepúlveda ocupa um lugar muito
especial, pela natureza da sua fidelidade às raízes latino-americanas, aos territórios oníricos
da criação, à dimensão fantástica da sua escrita, à reelaboração da memória dos lugares e
das pessoas na sua relação arterial com a História e as suas comunidades originárias.
Na incessante acção criadora, que é a sua forma de respirar com palavras, não faltam
à escrita do autor de O Velho que Lia Romances de Amor a expressão identificadora de
realidades primordiais e uma dimensão plástica da linguagem que lhe conferem uma certidão
de autenticidade, e de estilo, só alcançável pelos grandes escritores. Enquanto navegava no
prazer da leitura pela obra plurinacional de Luís Sepúlveda, não pude deixar de pensar que
a sua escrita tem uma marca identificadora: a matéria dos sonhos. E, nessa contingência,
penso que ela não reflecte mais do que a condição humana, na filiação de um pensamento a
que podíamos juntar a literatura universal, personificada em Shakespeare ou Cervantes, cuja
imortalidade estamos ou devíamos estar a comemorar, ambos obreiros de sonhos desmedidos
ou não fosse o homem “feito da matéria dos sonhos”, como escreveu o criador de Hamlet.
Os ditadores torcionários da América Latina, cujos nomes não digo para não sujar a folha
branca, também proibiram, muitos séculos depois da Inquisição o ter proibido, o Quixote,
alegando que os livros de cavalaria eram perigosos pois faziam sonhar! Por isso, certamente
também por isso, Luís Sepúlveda reclama para si a condição de escritor e sonhador.
Essa realidade de dimensão ontológica, a que se alia o combate pela memória como
equação de preservação da vida (em que sonhos, dramas, indignidades, esperanças, euforias
se misturam), projecta-a Luís Sepúlveda como um irrecusável compromisso de escritor, que é,
também, a expressão maior da comum humanidade que os seus livros transmitem, sempre
em louvor do homem, como se partilhassem todos eles o imemorial aviso de Antígona:
”nada há mais maravilhoso do que o Homem”.
É esse o vector que ele exprime de forma lapidar: “Sonho e não me importo que uma
visão do lucro como única orientação do homem estigmatize os sonhos e os sonhadores.
Considero-me um sonhador, paguei um preço bastante duro pelos meus sonhos, mas são
Prémio Eduardo Lourenço
260

tão belos, tão plenos e tão intensos que voltaria a pagá-los uma e outra vez. Creio que não
há sonho mais belo do que o de um mundo onde o pilar fundamental da existência seja a
fraternidade, onde as relações humanas sejam sustentadas pela solidariedade, um mundo
onde todos compartilhemos da necessidade de justiça social e actuemos com coerência.”
“Os meus sonhos são irrenunciáveis, são indomáveis, pertinazes, e desafiam o horror do
pesadelo ditatorial”, escreveu ele, e “a palavra escrita é a grande depositária dos sonhos.”
Esta questão liga-se como um fio à memória e à sua democratização social porque,
diz Sepúlveda, “primeiro sou cidadão e homem livre depois sou escritor”. É bom ler estas
palavras num tempo em que a responsabilidade ética de olhar e de reportar “o rumor do
mundo” se dissolve no esquecimento e no silêncio e quando, como recentemente lembrava o
escritor e jornalista Manuel Rivas, citando Camus, “não se pode perdoar à sociedade política
contemporânea converter-se numa máquina para fazer desesperar os homens”.
Mas estamos aqui e agora a celebrar um autor e o poder da linguagem, um escritor
cuja forte consciência ecológica o conduz sempre a defender os patrimónios comuns da
humanidade, como é o caso da Patagónia ou da longa noite austral da Terra do Fogo, que
são terras do coração de Mundo do Fim do Mundo. Nesta viagem de palavras, detenho-
me agora num livro que é fascinante pela densidade humana e pode ser, de certo modo,
uma síntese de muitos outros livros, O Velho Que Lia Romances de Amor.  Comovente a
narrativa pelo contexto fabuloso do universo onírico da floresta, pela denúncia do progresso
envenenado e destruidor da natureza, pela humanidade dos índios xuar, pelas figuras do
dentista e do velho (a premonição da sabedoria), pelo diálogo entre o livro e o leitor, pelo
elogio dos livros de amor, onde ressuma, e estou a citar, “um amor puro sem outro fim que
o próprio amor”.
É comovente o fascínio do velho a descobrir a aventura de juntar palavras e toda a
ingenuidade da concretização do prazer da leitura, quando descobre que os livros de amor
são, a mais das vezes, “histórias de duas pessoas que se conhecem e se amam a lutar para
vencer as dificuldades que as impedem de ser felizes.”
No fundo, a conversa entre o dentista, o dr. Rubicundo Loachamín, e o velho, António José
Bolívar, um homem de sabedoria desconcertante, transporta-nos para o mundo surpreendente
onde nascem o desejo da leitura e o sortilégio do livro (neste caso os romances de amor)
como forma superior de superar a solidão. Mas Luís Sepúlveda, que tem na reelaboração da
memória alimento privilegiado do seu fazer literatura, cruza essa maneira de olhar o mundo
com a sua biografia, também vincadamente expressa na sua obra criadora (como dizia
Octávio Paz dos poetas), estando na primeira linha a defesa das liberdades, por exemplo, no
golpe militar fascista de 11 de Setembro, de Pinochet. Luís Sepúlveda fazia parte da guarda
ao Presidente Allende, no Palácio de La Moneda, como membro da Unidade Popular chilena.
Esse e outros combates cívicos levaram-no aos caminhos do exílio, mas o Chile acaba por
estar sempre presente no coração da sua obra.
Não me importo de dizer que eu e muitos da minha geração, chorámos lágrimas de
desespero pelo crime contra a democracia chilena do Presidente Allende, tempo de “chacais”,
como diz um verso indignado de Pablo Neruda, tempo que fez então do Chile um reduto de
ignomínia e de morte.
É por isso que ainda me comovo quando leio essas narrativas de Luís Sepúlveda, com
nomes e rostos de companheiros e amigos liquidados, torturados ou desaparecidos, ou
quando o autor lembra as Mães e as Avós da Praça de Maio, essas estupendas mulheres
argentinas, lutando pela memória dos que foram assassinados em terra ou lançados vivos de
aviões da morte para as águas geladas do alto mar.
Essa inquietação de contar, de fazer viver a memória através da palavra, surge muito
nítida em As Rosas de Atacama, quando, face à barbárie nazi que o campo de concentração
de Bergen-Belsen documenta, Sepúlveda lembra a inscrição feita numa pedra por um preso,
talvez com um prego, sabe-se lá, que dizia dramaticamente: “Eu estive aqui e ninguém vai
contar a minha história”.
Não se sabe o nome, nem se conhece o rosto da vítima. Mas nesta simples história estão
contidos todos os rostos, todos os nomes – e são milhões! – daqueles que, como no fabuloso
poema de Jorge de Sena a Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, “Nenhum
Juízo Final, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram,
aquele gesto de amor, que fariam amanhã.”
Prémio Eduardo Lourenço
261

Mas às vezes, há nomes, como na história “A Morena e a Loira”, Carmen e Márcia, a


evocação da tortura e do mundo concentracionário de Pinochet. A fundura do drama toca
as lágrimas da narrativa de uma e de outra, idênticas na circunstância do mesmo inferno,
como na breve página que eu trago aqui como preito de memória. Evoca Luís Sepúlveda:
“Era de noite em S. Tiago do Chile quando foram arrancar a morena de sua casa,
quando, à pancada, a separaram do filho, quando, aos empurrões, a levaram até ao
automóvel sem matrícula, e com um adesivo apartaram dos seus olhos o mundo.”
“Era de noite em S. Tiago do Chile quando foram arrancar a loira de sua casa, quando,
à pancada a separaram do filho, do retrato do companheiro assassinado, quando, aos
empurrões, a arrastaram até ao automóvel sem matrícula, e com um adesivo apartaram os
seus olhos do mundo.”
“Não era de noite nem de dia quando a morena, nua e tremendo depois dos primeiros
interrogatórios, ergueu ao de leve a venda que lhe cobria os olhos. Tempo morto. Tempo
sem medida. A morena viu-se suja de hematomas causados pelas pancadas, de queimaduras
deixadas pelos eléctrodos. Então mordeu os lábios e com todo o amor do mundo murmurou:
Não falei, não lhes disse nada, não me venceram”.
“Não era de noite nem de dia quando a loira, nua e tremendo depois dos primeiros
interrogatórios, ergueu ao de leve a venda que lhe cobria os olhos. Tempo suspenso. Tempo
sem mecanismos que o regulem. A loira viu-se suja de marcas de botas, com os traços do
aguilhão eléctrico a marcar-lhe a pele. Então mordeu os lábios e com todo o amor do mundo
murmurou: Não falei, não lhes disse nada, não me venceram”.
Mas o que importa assinalar é a ternura com que Luís Sepúlveda fala delas: “As duas
choraram, por certo, mas pouco, porque as mulheres gloriosas da minha geração e da minha
história não permitiram que a dor se impusesse aos deveres e os deveres eram: organizar o
silêncio, confundir a canalha fardada, resistir”.
A história, desta vez, tem um final feliz:
“Agora, vinte e cinco anos depois, Carmen Yañez, a morena, vê os seus poemas
publicados em Espanha, na Alemanha, na Suécia e na Itália. Márcia Scantlebury, a
loira, vê os seus artigos publicados em muitas línguas. Vejo-as caminhando, que
lindas!, atraso-me ou adianto-me e cada vez me parecem mais bonitas, enquanto
as pombas levantam voo à sua passagem e no céu escrevem: Salve, companheiras!”
Meus amigos,
É sempre bom ir a Borges em busca da sabedoria do tempo, para terminar. Conta
ele em Inquirições que “no oitavo livro da Odisseia lê-se que os deuses tramam
desgraças para que às futuras gerações não lhes falte algo que contar” e que a de-
claração de Mallarmé ”O mundo existe para chegar a um livro” parece repetir, uns
trinta séculos depois, o mesmo conceito de uma justificação estética dos males.
No caso de Luís Sepúlveda e da sua obra, devemos apenas tomar posse da declaração de
Mallarmé para dizermos que o seu mundo existe, e vai à sua procura, para chegar como um
destino a muitos livros. São esses livros que merecem o Prémio Eduardo Lourenço. São esses
livros que continuam a fazer-nos sonhar.

Discurso de homenagem a Luis Sepúlveda proferido na sessão de entrega do Prémio Eduardo Lourenço
Prémio Eduardo Lourenço
262

Luis Sepúlveda
Premiado

Cuando recibí la noticia de este Premio, sentí una emoción muy particular. No la emoción
teñida de vanidad y orgullo de cuando alguien recibe un premio ¡no! Fue una emoción muy
particular y quiero contar el porqué de esa emoción.
Cuando yo comencé mi exilio, en Hamburgo, en el año 1980, frecuentaba a un viejo
profesor, a un hispanista, llamado Hans Karl Schneider y teníamos un acuerdo: yo lo
frecuentaba en su casa para que él perfeccionara mi gramática y la lengua alemana y el
frecuentaba mi casa, como él decía “para no oxidar” su castellano. Y un día, hablando
de muchas cosas, me llevó un libro y me dijo: Este es un libro que no vas a olvidar. Es un
libro de un profesor portugués que pasó por esta Universidad hace ya muchos años...” y me
entregó un ejemplar de “Heterodoxia” y fue el primer encuentro que tuve con mi respectado,
admirado, mi querido amigo Eduardo Lourenço. Ciertamente era un libro en portugués y con
la ayuda de un diccionario fui leyendo, lentamente, aquellas páginas y me quedé asombrado
de muchas cosas. Una de la enorme audacia de ese libro porque fue publicado exactamente
el año en que yo nací, en 1949, es decir que en ese año ya había un hombre, un intelectual,
un pensador portugués que se atrevía a formular teorías tan revolucionarias y subversivas
como su defensa de la pluralidad como un absoluto, sin matices, la pluralidad ¿es o no es?
Fue una de las primeras lecciones que me dejó la lectura de ese libro y es una lección que no
he olvidado. Luego, quedé muy sorprendido de que, tantos años antes de que se pusiera de
moda un cómodo lenguaje progresista, ese Pensador portugués, ese Intelectual portugués se
atreviera a formular otra teoría rebelde, revolucionaria, al sostener que el laicismo es la única
garantía que tenemos para ser como queremos – es otra lección entre muchas otras que
he aprendido de Eduardo Lourenço y que no olvido. Eso hace, entonces, que al recibir este
Premio que lleva su nombre, sienta realmente una emoción muy especial. Esa emoción crece,
se multiplica porque, realmente, no es una exageración cuando muchos de mis lectores
opinan que soy el más portugués de los latinoamericanos o el más latinoamericano de los
portugueses.
Hay una relación íntima entre Portugal y yo, que es muy fuerte y talvez tiene que ver con
que yo soy un hombre del sur, de muy al sur. De hecho, nací en Chile en un territorio que
está en la región del norte pero, anímicamente, es decir, mi espíritu, mi alma, mi forma de
moverme, mi forma lenta de hablar, mi forma lenta hasta de respirar…es muy del sur, es muy
de los territorios australes que se conocen como la Patagonia y la Tierra del Fuego. Y ahí
sí que nos parecemos mucho: tanto los portugueses como los que venimos de esa región
del sur del mundo somos tremendamente discretos…no hacemos las cosas más grandes del
mundo, las hacemos pequeñas, pero bien; no nos metemos en las empresas más importantes
del mundo, asumimos aquellas empresas a que somos capaces de conducir hasta el final y,
salgan bien o mal, nos dejan la satisfacción de haber llegado hasta al final. Y hay una relación
también muy especial con Portugal que nace mucho antes de que empezaran a publicarse
mis libros traducidos al portugués.
Me acuerdo y es uno de los recuerdos imborrables de mi vida que un 25 de abril del año
1974, yo estaba en una cárcel del sur de Chile (la cárcel de Temuco), un lugar frío, húmedo,
atroz…y los tratos no eran precisamente cordiales que nos dispensaban los militares, pero
curiosamente ese día de abril los militares amanecieron extraños, con un comportamiento
desacostumbrado. Por primera vez en mucho tiempo no nos insultaban, por primera vez en
mucho tiempo no sacaron a ninguno de nosotros a darle una golpiza, por primera vez en
mucho tiempo nos dejaron tranquilos y los 1500 prisioneros políticos que estábamos en esa
cárcel nos preguntábamos “¿Y qué les habrá pasado a estos tipos, que se comportan de esa
manera tan humana?” Y yo le pregunté a un oficial: “¿Qué ocurre? ¿Por qué han cambiado
Prémio Eduardo Lourenço
263

tanto de actitud?” Y vi que ese oficial tenía miedo…en su rostro, en su cara había miedo, en
su voz había miedo y me respondió: “Estamos así porque ustedes ganaron en Portugal”. Esa
victoria de la democracia, ese final de la dictadura en un país tan lejano llegó hasta nosotros
como un bálsamo, llegó con su maravilloso mensaje de optimismo de que era posible
cambiar las cosas. Evidentemente nos siguió importando el sufrimiento, el hecho de estar
encarcelados pero una vez más entendimos que valía la pena eso que estábamos pasando,
porque en aquel país lejano llamado Portugal, del que sabíamos muy poco, nos llegaba el
mensaje de que era posible cambiar las cosas y que del cañón de un fusil no salieron balas
sino que sirvieron, en cambio, para colocar flores, para colocar claveles en su interior.
Este Premio tiene, para mí, un significado muy especial y muy emotivo, y ya he señalado
las razones, de que lleva el nombre de un hombre que admiro y luego porque lo siento
como ese abrazo discreto de los portugueses, porque hasta en eso nos parecemos: no nos
abrazamos con grandes aspavientos ni gritando todo el cariño que nos tenemos, sino que
nos abrazamos con cierta timidez, con cierta medida timidez que hace sentir mucho más un
afecto que nos profesamos. Soy un escritor, creo ficciones, toco también la realidad, soy un
periodista, me enfrento a la realidad, soy un hombre, quiero cambiar la realidad…y eses tres
factores se conjugan en eso que es mi obra literaria que tan generosamente ha alabado mi
amigo.

Transcrição do discurso de Luis Sepúlveda


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265

CEI
Atividades | 2016
266
267

I. Ensino e Formação
XVI Curso de Verão
Espaços de fronteira em tempos de incerteza: pensamentos globais,
ações locais

Teve lugar de 6 a 9 de julho, na Guarda, a décima sexta edição dos Cursos de Verão,
iniciativa que o CEI realiza desde 2001 e que constitui uma das imagens de marca do Centro.
Tiveram lugar mais de 25 comunicações que ofereceram olhares diversos e complementares
sobre territórios próximos e distantes, desde a raia central ibérica até ao interior do Brasil ou
Moçambique, serviram para criar um diálogo frutífero, que terá continuidade na geração
de novos projetos de investigação e na criação e consolidação de redes de cooperação
académica internacional. Realizaram-se ainda três conferências: (i) Por uma geo-foto-grafia
da fronteira agrícola no eixo da BR-163 (de Cuiabá/MT a Santarém/PA) - Messias Modesto
dos Passos (Univ. Estadual Paulista - Presidente Prudente - UNESP); (ii) Alternativas políticas
de diálogo en la Península Ibérica - Francisco Ramos Antón (Consejo Consultivo de Castilla y
León); (iii) Oficina de História da Guarda: história ibérica, história local sem muros - Rita Costa
Gomes (Towson University, USA).

O Curso realizou-se com dois dias de trabalho de campo visitando alguns lugares e
territórios emblemáticos da raia central ibérica, onde a vivência direta dos lugares, a perceção
dos seus elementos simbólicos, e inclusivamente o esforço físico para recorrer a sus áspera
topografia, cumpriram um papel de contraponto vital importante para o entendimento e a
sintonia com o território e a valorização das dificuldades de sobrevivência em meios de baixa
densidade. O grupo participante, que superou o numero das edições anteriores, mostrou uma
atitude participativa excelente e o desejo de continuar a participar em próximas edições deste
Curso, para seguir cultivando uma cumplicidade já criada e muito produtiva para o estudo
das relações fronteiriças e a procura de vias de cooperação orientadas para a preservação,
desenvolvimento e integração destes territórios.
CEI Actividades | 2016
268

Nesta edição participaram países e instituições como: Universidade de Coimbra (UC);


Universidade de Salamanca (USAL); Universidade de Aveiro (INET-MD); Universidade do Porto;
Instituto Politécnico da Guarda (IPG - UDI); Consejo Consultivo de Castilla y León; Asociación
de Antropología de Castilla y León “Michael Keny”; Universidade Eduardo Mondlane;
Universidade Estadual Paulista - Presidente Prudente (UNESP); Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UNIRIO); Universidade Federal do Maranhão; Universidade Estadual do Maranhão
(UEMA – NEPA); École des Hautes Études en Sciences Sociales – Paris; Università Itália; Towson
University.

6 de julho - Painel I. Paisagens, patrimónios e a valorização


dos recursos do território
Moderação e Apresentação: Lúcio Cunha (Univ.Coimbra) e María Isabel M. Jiménez (Univ.
Salamanca). Intervenções: Javier Alejandro Lifschitz (Univ.Federal do Estado do Rio de Janeiro
- UNIRIO); Pedro Javier Cruz Sánchez (Asociación de Antropología de Castilla y León “Michael
Keny”); Ângela Catarina D. F. Martins de Jesus (Faculdade de Letras – Univ. Coimbra); Joana
Capela de Campos (Dep. Arquitetura - Darq – FCTUC); Henrique Manuel Martins de Jesus
(Faculdade de Letras – Univ. Coimbra); David Mota Álvarez (Enseñanza Secundaria Junta de
Castilla y León); Bruno Zucherato (Faculdade de Letras – Univ. Coimbra); Ulisses Denache
Vieira Souza (Universidade Federal do Maranhão - UFMA); Giampietro Mazza (Università);

Painel II. Desequilíbrios socioeconómicos e coesão territorial


Moderação e Apresentação: Valentín Cabero (Univ. Salamanca), Rui Jacinto (Univ.
Coimbra). Intervenções: Ana Maria Cortez Vaz e João Luís Jesus Fernandes (Departamento
de Geografia - Faculdade de Letras Univ. de Coimbra / CEGOT); António Cordeiro Feitosa
(Univ.Federal do Maranhão); José Sampaio de Mattos Junior (Univ. Estadual do Maranhão –
UEMA); António Nivaldo Hespanhol (Univ. Estadual Paulista - Presidente Prudente - UNESP).

7 de julho - Trabalho de campo - Rota Ibérica: I. Paisagens


e patrimónios fronteiriços
Coordenação: Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); Rui Jacinto (Univ.Coimbra).
Roteiro: Guarda, Navasfrías (El Rebollar) - Sierra de Medas-Valverde del Fresno- Sabugal-Guarda

8 de julho - Painel III. Cooperação territorial e esbatimento de fronteiras


Moderação e Apresentação: Valentín Cabero (Univ. Salamanca), António Pedro Pita (Univ.
Coimbra). Intervenções: Ana da Piedade Guerreiro Madeira Elias Pinheiro (Escola Básica Grão
Vasco / CECH da FLUC); Fernando Manuel Videira dos Santos e Daniela Maria Vaz Daniel;
Mª Concepción López Jambrina (E.O.I); Willian Morais Antunes de Sousa (École des hautes
études en sciences sociales - EHESS Paris); Isabel Maria Casimiro (Univ. Eduardo Mondlane);
Márcia Manir Miguel Feitosa (Univ. Federal do Maranhão; João Garcia (Dep. Geografia – Univ.
Porto;

Painel IV. Outras fronteiras: intercâmbios de saberes,


novos diálogos territoriais
Moderação e Apresentação: Rui Jacinto (Univ.Coimbra), Ignacio Izquierdo (Univ.
Salamanca). Intervenções: Maria do Rosário da Silva Santana (UDI- Instituto Politécnico da
Guarda); Helena Maria da Silva Santana (INET-MD; Univ. Aveiro; João Carlos Trindade (Centro
Terra Viva - Estudos e Advocacia Ambiental -Maputo); Francisco José Araújo (Universidade
Federal do Maranhão); Rui Jacinto (CEGOT/Univ. Coimbra); José Gilberto de Souza (Univ.
Estadual Paulista - UNESP- Rio Claro); Rosangela Aparecida de Medeiros Hespanhol (Univ.
Estadual Paulista - UNESP- Presidente Prudente); Cláudio Artur Mungói (Univ. Eduardo
Mondlane, Moçambique).

9 de julho - Trabalho de campo. Rota Ibérica: II. Paisagens naturais, patrimónios


culturais
Coordenação: Rui Jacinto (Univ.Coimbra); Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca).
Roteiro: Guarda – Pinhel – Cidadelhe – Longroiva – Meda - Marialva - Trancoso – Linhares
da Beira – Guarda
CEI Actividades | 2016
269

II. Investigação
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa.
O Atlas. No princípio, era o Mapa

Realizou-se no dia 14 de abril, em Coimbra,


organizado pelo Centro de Estudos Ibéricos, com o
apoio do CEGOT e do Departamento de Geografia
e Turismo da FLUC, o Seminário “O Atlas. No
princípio, era o Mapa. As Novas Geografias dos
Países de Língua Portuguesa”, integrado na 18ª
Semana Cultural da Universidade de Coimbra.

Programa
O Atlas, o Mapa, a Geografia: ler o Mundo,
interpretar o território
Moderação: Fernanda Maria Cravidão (Univ.
Coimbra). Intervenções: João Carlos Garcia (Univ.
Porto; Rui Ferreira (Univ. Coimbra); Daniel Chaves
(Univ. Federal do Amapá).
Geografia e Imagem: para uma foto(geo)
grafia da lusofonia
Moderação: Rui Jacinto (Univ. Coimbra).
Intervenções: José Manuel Simões (Univ. Lisboa);
Fátima Velez de Castro (Univ. Coimbra); Duarte
Belo (Arquiteto; Fotógrafo).
Os Países de Língua Portuguesa. Mapas
para um novo Atlas
Moderação: Lúcio Cunha (Univ. Coimbra).
Intervenções: Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); Paulo Nossa (Univ. Coimbra);
José Borzacchiello da Silva (Univ. Federal do Ceará. Fortaleza).

Nesse mesmo dia, foi inaugurada, na Prisão Académica, em Coimbra, a Exposição


Transversalidades 2015.
CEI Actividades | 2016
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III. Eventos e Iniciativas de Cooperação


Prémio Eduardo Lourenço 2016: sessão de entrega a Luis Sepúlveda

O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e Diretor
Honorífico do CEI, destina-se a premiar personalidades ou instituições com intervenção
relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas. O Júri desta edição foi
constituído pelos membros da Direção do Centro de Estudos Ibéricos (Presidente da
Câmara Municipal da Guarda, Reitor da Universidade de Salamanca, que preside, e Reitor
da Universidade de Coimbra) membros das Comissões Científica e Executiva do CEI e por
personalidades convidadas: Dr. Guilherme Valente (Presidente do Conselho de Administração
da Gradiva), indicado pela Universidade de Coimbra, e Prof. D. Florencio Maíllo (Professor
na USAL e pintor) e D. Ignacio Francia (jornalista do El País), indicados pela Universidade de
Salamanca.
Considerando o espírito do Prémio, o Júri galarduou Luís Sepúlveda reconhecendo o
trabalho do Escritor em louvor da
Língua e da Cultura espanholas,
fazendo da pátria idiomática, que
tem a dimensão plurinacional de
vários continentes, uma aventura
criadora em que o Homem é
a medida de todas as coisas.
Destacou ainda a dimensão de
um diálogo ibérico alargado,
inspirador da vida e obra, tanto
do Patrono do Prémio como de
Luís Sepúlveda, salientando a
expressão e difusão da obra do
Autor, tanto em Portugal como em
Espanha, tornando-o mediador da
Cultura Ibérica.
A sessão solene de entrega do
galardão a Luis Sepúlveda teve
lugar, na Guarda, no dia 1 de julho
de 2016, tendo sido presidida pelo
Presidente da Câmara Municipal da
Guarda, Álvaro dos Santos Amaro.
Na cerimónia intervieram, além do
Presidente da Câmara Municipal
da Guarda, o Prof. Eduardo
Lourenço, Fernando Paulouro,
que fez o elogio ao premiado, Luis
Sepúlveda.
CEI Actividades | 2016
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Transversalidades 2016: Fotografia sem fronteiras - concurso

A aposta do Centro de Estudos Ibéricos (CEI) no reforço do eixo cultural e científico


organizado por Coimbra, Guarda e Salamanca e na superação do âmbito estritamente
transfronteiriço passa pela cooperação e o envolvimento ativo de pessoas e instituições de
todos os países de expressão ibérica. Conjugando este pressuposto com a importância que
a imagem assume nas sociedades contemporâneas, tem o CEI vindo a desenvolver o projeto
Transversalidades - Fotografias Sem Fronteiras com um duplo objetivo: aproveitar o valor
estético, documental e pedagógico da imagem para promover a inclusão dos territórios
menos visíveis, inventariar recursos e valorizar paisagens, culturas e patrimónios locais;
fomentar a troca de informação e de conhecimentos entre territórios de matriz ibérica, sejam
os Países de Língua Portuguesa espalhados por vários continentes ou os que se localizam na
América Latina.

A quinta edição do Concurso Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras, que decorreu


entre 11 de março e 31 de maio de 2016, alcançou resultados quantitativos e qualitativos
que atestam a maturidade e valia da
iniciativa: foram submetidas cerca
de 700 candidaturas (mais do dobro
do ano passado) e a sua penetração
aumentou ao atingir mais de 30 paí-
ses representados. Estamos perante
um concurso predominantemente jo-
vem (mais de 40% dos concorrentes
tem menos de 30 anos), equilibrado
em termos de género (mais de
40% dos concorrentes são do sexo
feminino), com elevada participação
de profissionais (fotógrafos, fotojor-
nalistas, jornalistas, designers e ligados
às artes, etc.); é de sublinhar que,
embora predominem concorrentes
de Portugal (30%) e do Brasil (28%), é
relevante a presença da América Latina
(16%), sobretudo a Argentina com
7%, e dos Países de Língua Portuguesa
(especialmente Moçambique).
As sete centenas de partici-
pantes, provenientes de quase
todos os continentes, asseguram
uma representatividade alargada,
geográfica e profissional, com
fotógrafos, fotojornalistas, desi-
gners e outras artistas a mar-
carem presença assinalável. Os
múltiplos olhares que lançam
sobre pessoas e paisagens de
diferentes continentes asseguram
uma mostra onde se contempla a
riqueza e a diversidade natural, humana e cultural do planeta.
O Júri do “Transversalidades 2016 -Fotografia sem Fronteiras”, constituído por Rui Jacinto,
Lúcio Cunha e Pedro Pita, da Universidade de Coimbra, Valentín Cabero, da Universidade
de Salamanca, e pelos fotógrafos Jorge Pena, Santiago Santos, Susana Paiva e Victorino
García, selecionou entre mais de 3500 imagens submetidas a concurso, 38 fotografias que
se repartem pelas categorias de Melhor Portfolio, Melhor Portefólio temático e Menções
Honrosas repartidas pelos vários temas do Concurso.
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Premiados

Melhor Portfólio (Vencedor absoluto)


Arturo López Illana (Madrid, Espanha).

Tema 1- Património natural, paisagens e biodiversidade


Melhor Portfólio: João Pedro Costa (Portimão, Portugal).
Menções Honrosas: Julio Castro Pardo (Corunha, Espanha); Nima (Teerão, Irão).

Tema 2 - Espaços rurais, agricultura e povoamento


Melhor Portfólio: Teo Liak Song (Johor Bahru, Malásia).
Menções Honrosas: Amitava Chandra (Kolkata, Índia).

Tema 3 - Cidade e processos de urbanização


Melhor Portfólio: Luz (Madrid, Espanha).
Menções Honrosas: Carlos Costa (Vila Nova Gaia, Portugal); João Antonio Benitz Rangel
dos Santos (Brasília, Brasil); Rodolfo Gil (Lisboa, Portugal); Leonardo (Recife, Brasil); Wong Chi
Keung (Hong Kong, China).

Tema 4 - Cultura e sociedade: diversidade cultural e inclusão social


Melhor Portfólio: Arez Ghaderi (Sanandaj, Irão).
Menções Honrosas: Amadeo Velázquez Riveros (Asunción, Paraguai); Andrés Juárez
(México, México); Miguel Louro Costa (Cascais, Portugal); Miguel Mesquita (Coimbra,
Portugal).

As fotografias premiadas e outras imagens selecionadas figuram no Catálogo e em duas


Exposições inauguradas em novembro: “Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras.
Foto(Geo)Geografias: coordenadas e sinais de mudança” e “Rumores do Mundo: olhar a
diversidade que nos Rodeia”.

Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras. Exposições


. Foto(Geo)Geografias: coordenadas e sinais de mudança”. Inauguração a 25 de no-
vembro na Galeria de Arte do Teatro Municipal da Guarda.
. Rumores do Mundo: olhar a diversidade que nos Rodeia. Inauguração a 25 de novem-
bro no Café Concerto do Teatro Municipal da Guarda.
. Imaginar o território: uma geografia do olhar. Inauguração a 26 de novembro na
Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço
. Olhos nos Olhos. Fotografias de Monteiro Gil. Inauguração a 26 de novembro no Paço
da Cultura.
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Itinerância Exposição Transversalidades 2015. Fotografia sem Fronteiras

Salamanca

Esteve patente em março, na Faculdade de Geografia e História da Universidade de Salamanca, a


exposição Transversalidades 2015. Fotografia sem Fronteiras.

Coimbra

No âmbito da 18ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, esteve patente de abril a maio,
na Prisão Académica da Universidade de Coimbra, a exposição Transversalidades 2015. Fotografia
sem Fronteiras.
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IV. Edições
Revista de Estudos Ibéricos
Iberografias 12 [2016]
Este número da Revista Iberografias compila as comunicações proferidas no âmbito do
Seminário “O Atlas. No princípio, era o Mapa. As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa”, sendo dado destaque ao Prémio Eduardo Lourenço atribuído, em 2016, a Luis
Sepúlveda.
Inclui um dossier onde se debate a relação entre fotografia e território organizado em três
tópicos: Imaginar o território, Geografia e Poética do Olhar e Monteiro Gil: A Cor do Olhar.
Finalmente, é feito o registo das atividades realizadas pelo CEI, em 2016.

Coleção Iberografias
Nº 31 - Diálogos (Trans)fronteiriços – Património,
Territórios, Culturas.
Este número da Coleção Iberografias, coordenado por
Rui Jacinto e Valentín Cabero, reúne textos de mais de vinte
autores, resultantes de intervenções realizadas durante o XV
Curso de Verão de 2015, subordinado ao tema Iberismo e
Lusofonia: Paisagens, Territórios e Diálogos Transfronteiriços.
Foi apresentado em Coimbra, no dia 14 de abril, em
Coimbra, por ocasião do “Seminário O Atlas. No princípio,
era o Mapa. As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa” e do XVI Curso de Verão “Espaços de fronteira
em tempos de incerteza: pensamentos globais, ações locais”,
no dia 6 de julho, na Guarda.

Catálogo
Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras
O Catálogo Transversalidades reúne um conjunto significativo de fotografias submetidas
à edição de 2016 do Concurso Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras.
Estruturado em quatro temas - “Património natural, paisagens e biodiversidade”, “Espaços
rurais, agricultura e povoamento”, “Cidade e processos de urbanização” e “Cultura e
sociedade: diversidade cultural e inclusão social” -, o Catálogo conta com textos de: Rui
Jacinto (Universidade de Coimbra); Helena Freitas (Universidade de Coimbra); Caio Augusto
Amorim Maciel e Priscila Vasconcelos (Universidade Federal de Pernambuco); Teresa Pinto
Correia (Universidade de Évora); João Rua (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro);
António Bandeirinha (Universidade de Coimbra); Sandra Lencioni (Universidade de S. Paulo);
Clara Almeida Santos (Universidade de Coimbra); e Maria Teresa Duarte Paes (Universidade
Estadual de Campinas).
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