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g
revista de estudos ibéricos
IBERO RAFIAS Centro de Estudos Ibéricos
Número 12
Ano XII
2016
2
coordenação deste
COORDENAÇÃO número
DESTE NÚMERO
Rui Jacinto
Alexandra Isidro
Virgílio Bento
Alexandra Isidro
REVISÃO
revisão
Ana Margarida Proença
Alexandra
Ana Sofia Pinto Cunha
Martins
Ana Margarida Proença
Ana Sofia Martins
CAPA E CONCEPÇÃO GRÁFICA
Via Coloris
capa e concepção gráfica
Via Coloris
PAGINAÇÃO
Pride Colour, Lda. - Guarda
paginação
Pedro Bandeira
IMPRESSÃO
Pride Colour, Lda. - Guarda
impressão
Marques & Pereira,
EDIÇÃO
Lda. - Guarda
Centro de Estudos Ibéricos
edição
Rua Soeiro Viegas, 8
Centro de
6300-758Estudos Ibéricos
Guarda
Rua Soeiro Viegas, 8
cei@cei.pt
6300-758 Guarda
www.cei.pt
e-mail: cei@cei.pt
site: www.cei.pt
ISSN: 1646-2858
Depósito
ISSN:Legal: 231049/05
1646-2858
Novembro
Depósito 2016
Legal: 231049/05
Novembro 2012
A opção ou não pelas regras do novo acordo ortográfico é da responsabilidade dos autores.
3
Índice
139 Alfredo Fernandes Martins - Geografia e Arte: em demanda duma poética geográfica
171 Messias Modesto dos Passos - Bye Bye, Brasil: uma viagem pelos sertões
187 Valentín Cabero Diéguez - Reencuentro con el “locus”: escalas y formas de una mirada
203 Jorge Gaspar - Breve roteiro de memórias e vivências. Contextos, morais, passado e futuro
230 Um itinerário poético pela obra fotográfica de Monteiro Gil - Marcela Vasconcelos
269 Investigação
274 Edições
5
Rui Jacinto
CEGOT - Universidade de Coimbra
Fluminense) e Jorge Gaspar (Universidade de Lisboa). Refira-se que esta iniciativa assinala
ainda o Centenário do nascimento de Alfredo Fernandes Martins (1916-1982) e o décimo
aniversário do falecimento de José Manuel Pereira de Oliveira (1928-2006). O olhar cruzado
desta opção permite colocar em diálogo olhares que se formaram em diferentes tempos e
em espaços de distintos continentes. A especificidade de cada olhar carregou cada imagem
duma geograficidade intrínseca que a extravasa e contamina o discurso imagético de cada
um daqueles autores.
A quinta edição do Concurso “Transversalidades – Fotografia sem Fronteiras” (2016)
mostrou a vitalidade do projeto e a capacidade do CEI superar âmbito estritamente transfron-
teiriço. Os resultados quantitativos e qualitativos alcançados atestam a maturidade e a valia
da iniciativa: foram submetidas cerca de 700 candidaturas (mais do dobro do ano passado)
e a sua penetração aumentou, atingindo uma representação superior a 30 países. Embora
predominem concorrentes de Portugal (30%) e do Brasil (28%), a presença da América La-
tina é relevante (16%), sobretudo da Argentina com 7%, bem como dos Países de Língua
Portuguesa (especialmente Moçambique).
Estamos perante um concurso predominantemente jovem (mais de 40% dos concorrentes
tem menos de 30 anos), equilibrado em termos de género (mais de 40% dos concorrentes
são do sexo feminino) e com uma elevada taxa de participação de profissionais (fotógrafos,
fotojornalistas, jornalistas, designers e outras ligações às artes, etc.). As sete centenas de par-
ticipantes, provenientes de quase todos os continentes, asseguram uma representatividade
alargada, geográfica e profissional, lançando múltiplos olhares sobre pessoas e paisagens
que garantem uma mostra onde podemos contemplar a riqueza e a diversidade natural,
humana e cultural do planeta.
É de sublinhar, ainda, a exposição “Olhos nos Olhos”, do fotógrafo Monteiro Gil, integra-
da na justa homenagem que lhe será prestada, como reconhecimento da sua obra artística e
do inestimável contributo que deu para lançar e consolidar o Transversalidades.
Rui Jacinto
7
Este texto procura discutir o conceito de região cultural visando apontar um caminho
de investigação sobre a dinâmica regional em um país profundamente heterogêneo como
o Brasil. A temática da região cultural tem longa tradição na geografia, contribuindo para a
compreensão da ação humana no tempo e no espaço.
O trabalho divide-se em cinco partes. Na primeira conceitua-se brevemente a região
cultural, enquanto na segunda discute-se sobre o processo de identificação e formação de
regiões culturais nos países de povoamento europeu. Três exemplos de regiões culturais e a
perspectiva política em torno da qual uma leitura pode ser feita, constituem, respectivamente,
a terceira e a quarta parte deste texto. A quinta e última focaliza a temática da região cultural
considerando o Brasil. Isto será feito a partir de alguns pontos que resgatam aspectos
discutidos anteriormente.
Regiões culturais são áreas habitadas “em qualquer período determinado por
comunidades humanas caracterizadas por culturas específicas” (Wagner e Mikesell, 2000,
p. 122), identificadas com base na combinação de traços culturais materiais e não-materiais,
que tendem a originar uma paisagem cultural, como evidenciado nos estudos das regiões
francesas empreendidas pela Escola Vidalina de geografia. As regiões culturais são áreas
apropriadas, vivenciadas e por vezes disputadas. Apresentam geo-símbolos, fixos diversos que,
por serem dotados de significados identitários fortalecem a identidade cultural dos grupos
que as habitam (Bonnemaison, 2000). As regiões culturais são, via de regra, nomeadas,
isto designando-as como diferentes entre si. A contigüidade espacial dos traços culturais
é fundamental para a sua constituição, pois dela depende a comunicação imediata entre
os seus membros, por meio da qual a existência e reprodução cultural é em grande parte
viabilizada. Por outro lado, as regiões culturais podem ser reconhecidas em diversas escalas
espaciais, constituindo a mais contundente expressão da espacialidade da cultura.
Sua importância não reside na identificação e descrição de diferenças regionais como um
fim em si mesmo, mas como um meio para a compreensão da diferenciada e desigual ação
humana no espaço e no tempo. Compreensão que pode contribuir para políticas culturais
que visem aquilo que Mitchell (2000) denomina justiça cultural, para a qual a espacialidade
é constituinte. A sua importância é enorme no âmbito da Escola de Berkeley, na qual,
juntamente com cultura, paisagem cultural, história da cultura (no espaço) e ecologia cultural,
constitui um dos temas preferenciais (Wagner e Mikesell, 2000). Ressalta-se que as regiões
culturais não são permanentes. Criações humanas estão submetidas a processos culturais
que, em maior ou menor grau as transformam. O grau de transformação, acentuado pela
globalização, a sua natureza e os agentes sociais de mudança e de resistência, são pontos
que interessam à geografia cultural, valorizando as regiões culturais e o seu estudo.
Norton (2000) aponta três tipos de regiões culturais, a saber: regiões formais, funcionais
e vernaculares. Os dois primeiros tipos podem também ser referidos à geografia econômica
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
10
As regiões culturais não se constituem em objeto de interesse por parte dos geógrafos
brasileiros, a despeito, de um lado, da heterogeneidade cultural do país e, de outro, do
interesse dos geógrafos pela regionalização. Assim, desde o início da década de 1940, foram
definidas as regiões naturais brasileiras (Guimarães, 1941) e regiões marcadas pela ação
humana, como aquela da divisão regional do Brasil realizada pelos geógrafos do IBGE em
1967. Mesmo que aspectos culturais fossem considerados, o interesse pela regionalização do
país esteve assentado em bases econômicas, tendo sido definidas tanto regiões homogêneas
como regiões funcionais. Indicadores associados à divisão territorial do trabalho, condições
de vida e lugares centrais foram considerados, deixando-se de lado indicadores de raça,
religião, modo de falar, dieta alimentar, origem étnica, etc.
O interesse pelas regiões culturais aparece entre não-geógrafos. A década de 1930
vê surgirem os primeiros estudos definindo regiões culturais, valorizando a habitação ou
a alimentação ou ainda a cultura segundo uma acepção mais ampla. Os trabalhos de
Donald Pierson e Mário Wagner Vieira da Cunha são exemplos (Diégues Jr., 1977). Roger
Bastide (1980/1958) e Manuel Diégues Jr. (1977) contribuíram para a temática, o primeiro
identificando tipos e regiões culturais contrastantes e o segundo um conjunto de regiões
culturais. É olhar a procura da heterogeneidade cultural do espaço que permite identificá-las,
como se deu entre os referidos não-geógrafos.
A identificação e descrição de regiões culturais por Manuel Diégues Jr., publicada
originalmente em 1952, foi baseada no processo de ocupação humana, no qual articulavam-se
aspectos do meio natural e da atividade econômica preponderante. Cada região apresentava
“tipos humanos característicos (...) condições sociais específicas (e) situação representativa da
atividade implantada” (p. 36). As regiões identificadas foram as seguintes:
As regiões culturais propostas por Diégues Jr. foram identificadas com base em informações
referentes ao longo período que se estende do início da colonização portuguesa ao final
da década de 1940. Constitui um enorme esforço intelectual e referência obrigatória para
estudos sobre regiões culturais. As regiões culturais identificadas, contudo, apresentam,
a partir de meados da década de 1950, diferenciada capacidade de permanência, tendo
sido afetadas por processos sócio-culturais que começaram a alterá-las, afetando a longa
e relativa estabilidade que a quase totalidade delas apresentava. Poder-se-ia afirmar que
essas regiões estariam no estágio denominado por Meinig como o de impacto da cultura
nacional (e global) e, em breve, e para algumas regiões, no estágio de dissolução da cultura
regional?
Os processos de industrialização e urbanização verificados a partir da década de 1950
foram intensos e decisivos no desencadeamento de outros processos sócio-culturais e
suas conseqüências sobre as regiões culturais. A industrialização do campo, a ampliação
e diversificação de correntes migratórias, estabelecendo contatos entre culturas regionais
distintas, a continuidade da incorporação de novas áreas em escala e rapidez sem precedentes
e a efetiva integração nacional atuaram, e ainda atuam, alterando a organização espacial
brasileira. Ainda que com ritmos diferentes estão em curso e devem prosseguir. Isto nos leva,
em princípio, a considerar afirmativa a resposta à indagação acima formulada.
Cada divisão regional tem a marca de seu tempo, isto é, reflete as condições objetivas
e subjetivas de sua construção, assim como as características da realidade espacial. Ambas,
condições e realidade mudam, impondo a necessidade de revisões de ordem conceitual e
operacional. Trata-se, pode-se dizer, de uma atualização renovada.
Tendo em vista os conceitos apresentados no tópico relativa à identificação e formação de
regiões culturais, à dimensão política delas e os processos sócio-culturais em curso no Brasil,
apresentaremos alguns pontos que julgamos pertinentes a respeito das regiões culturais
brasileiras e de sua dinâmica. A proposição de Diégues Jr. constitui-se no quadro de referência
empírica para os pontos que se seguem, os quais devem ser considerados como uma base
para discussão.
I – Como se constituíram no Brasil as regiões culturais? Quais foram os seus focos iniciais
(hearths) e núcleos (cores)? A este respeito pode-se pensar na existência de dois ou
mais núcleos (cores) para cada região cultural? Pensa-se, por exemplo, no Nordeste
Agrário do Litoral, na região denominada Mediterrâneo Pastoril e nas áreas de
Colonização Européia.
II – As franjas (spheres) das regiões culturais merecem menção especial. Que meca-nismos
e agentes sociais criaram essas zonas de transição entre regiões culturais distintas?
Variaram elas no tempo, sendo caracterizadas por avanços e recuos? Que conflitos
foram estabelecidos nas diversas franjas, zonas de tensão entre culturas diferentes?
Pensa-se, a este respeito nas franjas entre áreas de distintos tipos de vegetação, floresta
e campos no Sul, floresta e cerrado no Centro-Oeste e floresta e caatinga no Nordeste.
O Agreste nordestino é, nesse sentido, uma área de interesse.
III – Que “ilhas culturais” existem no Brasil e como foram diferenciadas das regiões culturais
em que se situam? Os brejos de altitude ou de exposição do Nordeste e áreas ocupadas
por pequenos grupos, como os menonitas e ucranianos no Paraná, aparecem como
áreas de interesse. Pequenas áreas formadas em torno de antigos quilombos são
também de interesse para o geógrafo cultural.
IV – É possível distinguir estágios no processo de formação das regiões culturais brasilei-
ras? Como se caracteriza cada um deles em termos de processos, agentes sociais
e as temporalidades associadas a cada estágio? Tratar-se-ia, em realidade, de uma
periodização dos processos culturais no espaço? Pensa-se, neste caso, na área do
Oeste baiano, na zona cacaueira e nas áreas de campo incorporadas ao complexo
agro-industrial.
V – Onde e em que condições ocorreram os processos de duplicação, desvio e fusão du-
rante a formação das regiões culturais brasileiras? Mais especificamente, questiona-se
a respeito dos embates entre culturas distintas, a exemplo do Oeste baiano (Haesbaert,
1997). Poder-se-ia falar em fusão cultural nessa região de cerrado?
VI – Onde e em que condições aparecem regiões culturais emergentes? Este ponto é de
fundamental importância em um país como o Brasil, onde há, no começo do século
Roberto Lobato Corrêa
17
À Guisa de Conclusão
Ao longo deste texto alguns pontos a respeito das regiões culturais foram brevemente
apresentados e discutidos, enquanto outros foram deixados de lado. Queremos, concluir este
texto insistindo em apenas um ponto. É possível falar, no começo do século XXI, em regiões
culturais em um país como o Brasil? Dada a complexidade e desigualdade com que processos
sócio-culturais ocorrem no espaço brasileiro, acreditamos que, em princípio, é possível falar
em regiões culturais, residuais e emergentes. Mas está não é uma resposta, mas apenas uma
hipótese. As respostas advirão de pesquisas empíricas, em várias escalas espaciais, apoiadas
em um sólido embasamento na geografia cultural, tanto em sua versão saueriana, como em
sua versão renovada.
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159-222.
Agradecimentos
Gostaria de agradecer ao CEI a oportunidade e o apoio concedido, e agradeço igualmente
a Sara R. e a G. M. o seu apoio e ajuda, e agradeço às senhoras que tiveram a paciência e
disponibilidade mesmo tendo muitos afazeres de nos “aturar”.
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21
Resumo
A organização do espaço e a sua figuração nos mapas faz-se através de pontos, linhas
e áreas. Núcleos populacionais, eixos de circulação e espaços mais ou menos extensos de
produção económica ligam-se em redes, que se modificam ao longo do tempo, de região
para região. A representação gráfica dessas realidades foi fixada em mapas e plantas, a
diversas escalas, e difundida de forma manuscrita ou impressa.
Nesse vasto e diverso universo documental procurámos o “local” através do seu
topónimo, com base nas etapas de evolução da Cartografia luso-brasileira dos últimos
séculos, selecionando exemplos sobre a construção e manipulação das imagens cartográficas
e, particularmente, sobre a sua leitura e consumo, tentando reconstituir momentos distintos
do processo de produção dos mapas históricos.
O mapa tem horror ao vazio. No século XVI, sobre os desertos do mapa colavam-se
artísticas cartelas, pedaços de texto, monstros ou pássaros exóticos. O lugar no mapa é a
confirmação da sua existência, da sua importância, do seu poder 1. Daí a curiosidade e a
angústia com que cada um, perante o mapa, procura o seu lugar: a sua aldeia, a sua região,
o seu país. Se encontra sorri vitorioso confirmando a importância do torrão, se não encontra
diz despeitado da fraca qualidade do documento.
O lugar, a que correspondem valores precisos de latitude, longitude e altitude, pode ser
figurado de muitas maneiras, tendo em conta a escala do mapa: um ponto, um círculo
proporcional a qualquer fenómeno, uma cruz de igreja ou um triângulo de moinho, uma
vinheta com o perfil de uma cidade. Unindo-se os pontos formam-se linhas: rios, estradas,
caminhos de ferro, itinerários marítimos. Justapostos em batalhões, os lugares formam
manchas: florestas, cordilheiras, regiões (Monmonier, 1991; Palsky, 1996). A todos – pontos,
linhas e manchas – são atribuídos nomes, os topónimos. Localizado e identificado, o lugar
está pronto a começar a sua vida através dos mapas. E, como as estrelas que observamos no
céu noturno, ainda podemos hoje ver nos mapas lugares que já não existem e, outras vezes,
procuramos em vão na imagem, lugares que sabemos existirem e não foram figurados.
Na evolução da Cartografia dos últimos quinhentos anos, procurámos exemplos sobre a
construção/manipulação e a leitura/consumo do lugar no mapa, tentando entrar e sair do
1 - Muitos são os autores que nas últimas décadas defenderam uma nova visão da História da Cartografia e o
mapa como produção cultural. Ver, v.g.: Cartes et figures.., 1980; Harley & Woodward, 1987-; Jacob, 1992;
Wood, 1993; Casti, 1999; Harley, 2001; Thrower, 2002; Besse, 2003; Jarauta, 2007; Lois, 2009; Alegre i Nadal,
2010.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
22
quadro ou do écran como personagens de Mary Poppins ou de The Purple Rose of Cairo. E
quem não elabora nem lê mapas? Não tem consciência do seu lugar e do Mundo?
No início do século XVII, o piloto Marçal Luís, depois de vinte e oito anos de navegação para
o Brasil e de onze na Carreira da Índia é alvo de uma avaliação em Lisboa, onde se conclui não
saber ler nem escrever, requisitos supostamente indispensáveis para fazer roteiros, elaborar e
ler cartas náuticas, utilizar instrumentos científicos e fazer cálculos matemáticos (Domingues
& Guerreiro, 1987, p. 59). Quantos como ele circulariam e circularam no mar durante os
séculos seguintes, conhecedores profundos do espaço marítimo, das suas correntes, ventos
e marés, e das redes de portos e dos perigos dos litorais? Como e quando recorreriam
aos mapas? Que leitura fariam deles? Marçal foi reconduzido nas suas funções porque a
experiencia e o mérito falaram mais alto.
Fig. 1 – Frontispício da obra A Compendius Chronicle of the Kingdom of Portugal… de John Dauncey, 1661.
restauracionista portuguesa de D. João IV e D. Afonso VI, que trava então as suas grandes e
decisivas batalhas contra Espanha. Sendo Catarina uma princesa católica e não sendo seguro
que esse apoio militar e diplomático fosse proveitoso para Inglaterra, mostrava-se importante
informar e cativar as elites britânicas para a decisão do monarca e dos seus conselheiros. A
obra de Dauncey faz parte da propaganda para legitimar a nova dinastia brigantina, para
divulgar a Geografia e a História de um país pouco conhecido e, particularmente, para explicar
a importância do império colonial português, que tão útil poderia ser para os interesses geo-
políticos e comerciais ingleses (Garcia, 1998).
Analisemos a gravura do frontispício da obra (fig. 1) onde sobre um retângulo se dispõem
sete imagens: os retratos de D. João IV (fundador da dinastia), D. Afonso VI (o então rei de
Portugal) e Catarina de Bragança (a noiva de Carlos II); um hemisfério da Terra, provavelmente
o português, recordando o estipulado por Alexandre VI no Tratado de Tordesilhas, sob o qual
e como título surge o termo “Lusitania” (Portugal herdeiro da Lusitânia) e, finalmente, três
vistas de cidades portuguesas – Braga, Coimbra e Lisboa.
O lugar no mapa – Portugal -, dá-se a conhecer em três escalas: a do país peninsular
através dos retratos da Família Real, família que em breve se ligará à dos Stuarts, monarcas
das Ilhas Britânicas; a do Império colonial através da figuração da Terra; a dos centros de
poder, as cidades portuguesas de Braga, capital religiosa pela presença do Arcebispo Primaz
das Espanhas; de Coimbra, capital intelectual pela sua Universidade; e Lisboa, capital política
onde reside o Rei e a Corte. Estas são as cidades portuguesas que a Europa culta conhece
graças às imagens divulgadas desde os finais do século XVI nas edições de Civitates Orbis
Terrarum de Braun e Hogenberg (Alegria et al., 2012, p. 228-233).
Contudo, observando melhor a gravura inserta na obra de Dauncey damo-nos conta de
algumas particularidades interessantes: para Lisboa, da vista/planta original (vol. V, ca. 1598,
2), apenas se seleccionou o detalhe do Castelo de São Jorge (Lisbon Castle), enquadrado
pelas armas de Portugal; e quanto às vistas de Braga e Conimbria (vol. V, ca. 1598, 3 e
4) nenhuma relação apresentam com as originais, antes foram “recortadas” de vistas de
outras cidades, provavelmente do Norte da Europa, pelos tipos de edifícios figurados, e
“coladas” na gravura do frontispício. Mas, para o leitor inglês as longínquas e desconhecidas
cidades portuguesas poderiam aparecer como o editor o decidisse. O leitor não teria muita
capacidade para criticar e o editor estava sobretudo preocupado com o lucro, nas vendas da
obra (Daveau, 1998).
Fig. 2 – Plano do Arraial de S. Pedro d’El REy fundado e erigido em novo julgado no ano de 1781 por Luís
d’Albuquerque de Mello Pereira e Caceres. Escala ca. 1:3.500. 1781. 1 planta: ms., color.; 51x59 cm (Biblioteca
Pública Municipal do Porto, Pasta 24 (23).
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
24
património dos governadores (Presídio de Nova Coimbra, Casal Vasco). Essa monumentalização
pessoal no espaço torna-se mais interessante quando o dono seguinte apaga os graffiti do
antecessor e os substitui pelos seus.
O bairro de Jack
Quem lançar os olhos para o mapa da City de Londres notará a figura de um peixe ou
cetáceo colossal, de focinho erguido para o Banco de Inglaterra e para a Bolsa, como se se
preparasse a devorar estes dois centros de riqueza humana. Duas linhas de mar delimitam o
corpo enorme do animal: ao longo do dorso corre Cornhill e Leadenhall; ao longo do ventre
Lombard Street e Fenchurch: Gracechurch Street separa a cabeça do tronco, como se ali
estivessem localizadas as guelras do monstro. É este o centro comercial do mundo; é através
dos escritórios desta rua, é através dos vasos deste tubarão que corre, como sangue ou como
excrementos, todo o ouro da terra. Mas quem continuar para leste, entrará a poucos passos
em Aldgate Street e, a poucos metros, em Whitechapel, o bairro de maior miséria, dos mais
imperscrutáveis dramas, dos mais repugnantes crimes de toda a humanidade (Reis, 1988, p.
104).
devorar a riqueza acumulada na cidade dos ímpios. Todo o comércio passa pelas guelras do
grande peixe e todo o ouro da terra, circula no seu corpo como sangue ou fezes. A toda esta
Geografia simbólica da Londres dos ricos, que se concretiza com base na toponímia urbana,
para dar maior veracidade à narrativa, opõe-se a Londres dos miseráveis e dos criminosos,
onde Jack actua. A sua existência e a dos seus crimes não pode ter outra explicação senão
a desigualdade social contra a qual Batalha Reis e os seus amigos se haviam batido nas
Conferências do Casino, em 1871 (Marinho, 1996). A prová-lo está o suposto inquérito feito
pelo cronista no bairro dos crimes: “E se eu fosse o assassino de Whitechapel ? A mulher
encarou-me, sorriu, encolhendo os ombros e disse-me: Achas que é melhor morrer à fome?”
(Reis, 1988, p. 106).
No ano seguinte a estes acontecimentos elaborar-se-á o Descriptive Map of London
Poverty, inserto no 2º vol. da obra do filantropo Charles Booth, Life and Labour of the People,
Londres, 1891 (fig. 3). A legenda “qualitativa” explica o observável nos quarteirões figurados
na planta: a negro, as classes baixas, violentas e semi-delinquentes; a azul, os muito pobres
mas também a miséria crónica ou ocasional; a azul claro, os pobres; a cinzento claro, os
remediados mais ou menos pobres; a rosa, os bastante remediados; a vermelho, a classe
média endinheirada; a amarelo, os muito ricos (Elliot, 2006). O negro dos maus, o azul (blue)
dos tristes e pobres, o neutro cinza dos medíocres, o vermelho e amarelo-ouro dos ricos. Para
além da simbólica das cores está no mapa cada posta do peixe de Batalha Reis.
A aldeia galega
A mais tocante história sobre o lugar no mapa é a dos emigrantes galegos. No início do
século XX, Ramón Otero Pedrayo, um dos grandes defensores da Pátria galega percorreu as
colónias dos seus emigrantes na América do Sul (Otero Pedrayo, 1973, p. 364-365). Em cada
cidade apresentava sempre uma conferência, a sua conferência sobre a Galiza (Geografia,
História e Cultura), na associação filantrópica, musical e recreativa da comunidade (García
Álvarez, 2006). Consigo levava um grande mapa parietal, a Carta Geométrica de Galicia
dividida en sus provincias (1845), de D. Domingo Fontán, que fazia colocar na sala, como telão
de fundo (fig. 4). Depois da conferência, enquanto a multidão confraternizava ruidosamente,
havia sempre um dos velhos emigrantes que se chegava discretamente ao mapa, para o
observar com detalhe. Depois, colocava o indicador sobre o nome da sua aldeia, e chorava.
Fig. 5 – Aula de Música no Posto de Protecção aos Índios Parecis, Estação de Utiariti, Mato Grosso, 1910.
Aula de música
No Museu do Índio, no Rio de Janeiro, existe uma notável fotografia, datada de 1910
(Franchetto, 2000, p. 46). Nela se observa uma particular banda filarmónica em pleno ensaio
musical (fig. 5). Trata-se de um grupo de jovens índios Parecis, muito compenetrados nas
instruções do maestro, que pontifica ao lado da ardósia com a suposta pauta. Os músicos, de
terno e botins (alguns não chegam ainda com os pés ao chão) tocam trompas, trompetes e
flautas. O cenário compõe-se com uma mesa, sua toalha branca e jarra com flores, procurando
fazer esquecer o mau estado do telhado e do tabique do fundo. Mas, justamente sobre essa
parede improvisada, dominando todo quadro, um grande mapa parietal da América do Sul,
onde sobressai o Brasil, pátria de todos os brasileiros, incluindo os índios Parecis. Assim os
tentarão informar e convencer do seu lugar no Mundo. Mas, os Parecis tinham há já muito os
seus lugares noutros mapas, que provavelmente evocam enquanto aprendem o Hino (Lima,
2006). Mapas de escalas bastantes distintas daquela que irremediavelmente domina sobre
as suas cabeças.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
28
Fig. 6 – Pormenor de Italia 2008. Mapas Michelin, National 735, esc. 1: 1.000.000.
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A viagem do camião
Ce pays perdu
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Eda Góes
31
1. Introdução
Quando lançamos um olhar pela história da cartografia, não deixa de ser tocante a
capacidade inventiva do ser humano, expressa através da multitude de materiais, técnicas e
formas de representar os fenómenos no espaço.
Aquilo que parece ser uma das mais antigas representações cartográficas conhecidas foi
descoberta num sítio arqueológico do Paleolítico Superior, localizado na Caverna de Abauntz
(Navarra, Espanha). O achado (fig. 1), correspondendo a duas rochas gravadas, cada uma
com cerca de 1Kg de peso, tem sido interpretado como correspondendo à representação
de elementos da paisagem regional, incluindo montanhas, rios e lagos, bem como possíveis
rotas de percursos para acesso a diferentes sectores do espaços abrangido (P. Utrilla et all.,
2009).
Fig. 1- Ilustração do Lado A do Bloco 1 descoberto na Caverna de Abauntz, com destaque para a representação
dos elementos físicos da paisagem (rios, montanhas, áreas inundadas e acessos) (fonte: P. Utrilla et all., 2009)
Nas palavras dos próprios autores, “todas estas gravuras poderiam ser um esboço ou um
mapa simples da área em redor da Caverna. Poderiam representar o plano para uma caçada
futura ou talvez a narrativa de uma caçada que já tivesse acontecido”. Ou seja, mesmo
neste contexto primitivo, a representação espacial da percepção do território que se domina
pode ser encarada numa perspectiva estritamente utilitária e servir para localizar em termos
relativo a posição das áreas húmidas face aos sectores montanhosos; identificar a posição
de corredores de passagem ou a localização de sítios com interesse relevante. Mas pode
também ser uma narrativa gráfica de um evento que se planeia ou a ilustração documental
de um episódio relevante da história da comunidade.
Em qualquer dos casos, fica evidente a importância assumida pelas técnicas de representação
simbólica dos fenómenos no espaço, fornecendo ao seu artífice uma capacidade acrescida
para apreender as inter-relações que se estabelecem entre os diversos componentes do seu
Rui Ferreira
33
Pese embora a sua simplicidade, esta é uma representação espacial poderosa, pois evi-
dencia o contraste entre um mundo conhecido, organizado, seguro e central, face a uma
periferia hostil, selvagem e difusa. A função deste tipo de mapas tem muito menos a ver
com a localização absoluta ou relativa dos lugares e muito mais com a demonstração da
capacidade de domínio sobre o espaço.
Fica portanto evidente que o mapa, usado como instrumento de suporte e demonstração
de poder, é uma realidade que possui raízes históricas profundas. No entanto, vai ser necessário
percorrermos dois milénios e meio para que, de forma ainda mais impressiva, consigamos
vislumbrar nos mapas a junção plena desta dupla função, consequência do desenvolvimento
de técnicas precisas de posicionamento dos lugares e formas inventivas de representar as
entidades geográficas aí presentes.
Na fig. 4 podemos observar um bom exemplo para ilustrar esta ideia. As duas imagens
representam o mesmo lugar. A diferença mais marcante reside no modo como, cada uma
delas, nos permite apropriar esse lugar. A primeira ilustra a perspectiva binocular “normal”,
mais contemplativa e parcelar, que decorre de uma observação horizontal ou oblíqua. A
segunda, com um foco zenital, evidencia um domínio sobre a natureza que se expressa
através da vontade de “tudo saber e tudo poder”, já que permite observar o objecto de
interesse a partir de um plano superior, omnipresente, simbolicamente semelhante aos
deuses do Olimpo. Novas técnicas de representação gráfica permitem agora acrescentar
à percepção plana do espaço uma visão de profundidade volumétrica, tornando evidente
através do mapa o carácter tridimensional da superfície terrestre.
O poder marcante da imagem cartográfica pode ainda ser demonstrado através de um
outro tipo de mapas que também aliam os posicionamento espacial dos lugares a novas
técnicas representativas (fig. 5). Num contexto civilizacional marcado pelo domínio tecnológico
europeu, alicerce da sua hegemonia imperial à escala planetária e, paradoxalmente, germe
da sua instabilidade geopolítica interna associada a um crescente aprofundamento das
correntes nacionalistas radicais, surgem os mapas satíricos, uma forma simples e eficaz de
transmitir uma mensagem forte através da imagem cartográfica estilizada.
O poder deste tipo de mapa não reside propriamente na informação cartográfica
que incluem. Antes na apropriação dessa base como elemento estrutural de suporte à
representação caricaturada, neste caso, da sociedade de um país. O humor satírico e
grotesco, pelas suas características intrínsecas, possui uma elevada capacidade de penetração
social, particularmente, nas vastas classes menos favorecidas e iletradas que, deste modo,
conseguem assimilar a mensagem de forma espacializada, mesmo com reduzidas destrezas
de leitura cartográfica.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
36
Fig. 5. Mapa francês satírico da Europa (1870), da autoria de Paul Hadol (1835–1875)
O Atlas de Portugal (fig. 6), publicado por Amorim Girão em 1940 e reeditado em 1958,
é um bom exemplo desta concepção de atlas. Corresponde a um conjunto de mapas de
pequena escala, abarcando o território nacional e os territórios ultramarinos, organizado
sistematicamente de modo a fornecer ao leitor uma imagem sintética sobre as origens do
território, as características físicas dominantes, os traços mais marcantes das suas gentes, os
padrões mais relevantes das principais actividades económicas e a sua organização admi-
nistrativa.
Ainda que a escala espacial não permita um grande rigor na informação geográfica
disponibilizada neste tipo de documentos, a sua organização sintética e sistematizada,
constitui uma característica distintiva dos atlas e o elemento que mais contribui para os
tornar tão populares. De certo modo, e em função disso, poderíamos dizer que, na primeira
metade do séc. XX, os atlas desempenharam o papel assumido actualmente pelos Sistemas
de Informação Geográfica, enquanto plataformas de difusão da informação geográfica.
1 - O conceito de Holon corresponde a um a noção que incorpora, simultaneamente, o todo e as partes, possibil-
itando que as abordagem holísticas possam revelar padrões não evidentes através de abordagens mais segmenta-
das. É uma ideia associada à Teoria Integral (cfr. Arthur Koestler, 1967 e Ken Wilber, 1996) ou, numa terminologia
mais recente, ao conceito de emergência na Teoria dos Sistemas Complexos. (cfr. Neil Johnson, 2011).
Rui Ferreira
39
Desde logo, há um aspecto incontornável que decorre dos avanços recentes nas
tecnologias de informação geográfica: o aumento exponencial dos dados disponíveis. Hoje
em dia, tanto em modo vectorial como em modo raster, é possível ter acesso a enormes
volumes de dados espacializados, o que acarreta um desafio importante, tanto ao nível dos
processos de integração e análise como, posteriormente, ao nível da sua representação.
Além disso, a massificação da tecnologia e o desenvolvimento de sistemas móveis levaram
a que a tradicional barreira que separava o produtor do utilizador de dados geográficos seja
hoje muito ténue. Em consequência desta computação ubíqua, é frequente que, mesmo sem
disso termos consciência, muitos aspectos do nosso dia-a-dia sejam directamente tocados
pelo resultado de processos de análise que incorporam dados geográficos. Paralelamente,
muitas das decisão quotidianas que tomamos são, também elas, utilizadas com fontes na
alimentação de sistemas visando a análise espacializada de padrões comportamentais.
A ubiquidade na computação acarretou outra mudança social interessante. Indepen-
dentemente de onde nos encontremos, temos hoje em dia, a capacidade de aceder a dados
georreferenciados, nalguns casos, actualizados em tempo real, permitindo-nos basear as
nossas decisões em volumes crescentes de informação espacializada. Nalgumas situações,
nem sequer temos que implementar o esforço de ponderar as opções e decidir, podendo
apenas limitar-nos a aceitar a decisão tomada ou, pelo menos, sugerida pelo próprio sistema
computacional.
Outra vertente dos efeitos da computação ubíqua e da crescente automatização dos
processos de recolha e difusão de dados está relacionado com o contributo que cada um de nós,
individualmente, pode dar para expandir o volume de informação geográfica universalmente
disponível. Este processo, comummente designado como VGI (acrónimo anglo-saxónico
para Volunteered Geographic Information) é um caso particular de um conceito mais amplo
de conteúdo gerado pelos utilizadores (UGC - User-Generated Contente), que tem vindo a
assumir alguma importância nos últimos tempos.
Os efeitos decorrentes destas dinâmicas, nomeadamente em termos de qualidade dos
dados e credibilidade dos produtos resultantes da sua utilização, mas também em termos
dos efeitos associados à georreferenciação de informação subjectiva, emocional ou privada,
abriram uma nova linha de reflexão no seio da Geografia, denominada como Neogeografia
(cfr. M. Goodchild, 2009; M. Graham, 2010; M. Wilson; M. Graham, 2013).
A Neogeografia pode ser definida como o uso de informação, técnicas e ferramentas
geográficas por utilizadores sem formação certificada na área, no âmbito de actividades
pessoais ou colectivas sem carácter formal ou validade científica (Turner, Andrew J., 2006; A.
J. Flanagin; M. J. Metzger, 2008).
Apesar deste carácter informal do uso dos dados e das técnicas geográfica, os fenómenos
associados à Neogeografia constituem matéria de reflexão interessante no âmbito da
próprio ciência geográfica, enquanto manifestação concreta das tendências sociais
contemporâneas.
Deste modo, o impacto da revolução digital nos domínios da Geografia não se manifesta
apenas em termos técnicos mas, igualmente, ao nível da necessidade de se repensarem os
modelos teóricos que sustentam a análise do objecto de estudo, de modo a permitirem a
incorporação dos contributos activos de não especialistas no enriquecimento do conhecimento
geográfico. Igualmente, os fenómenos decorrentes da democratização do uso da informação
geográfica no seio dos mais variados domínios sociais levanta novas questões de forma e de
conteúdo que necessitam de ser encaradas.
Só para que se tenha uma ideia genérica da importância deste tipo de dinâmicas, apresen-
tam-se a seguir três exemplos concretos que ilustram várias cambiantes do fenómeno.
Na fig. 10, podemos observar a interface de uma das aplicações mais tradicionais neste
domínio. O projecto wikimapia, como o próprio nome indica, consiste basicamente numa
plataforma de carregamento voluntário de dados geográficos muito semelhante ao conceito
implementado na wikipédia, evidenciando, aliás, potencialidade e limitações idênticas.
Tal como acontece aí, a exactidão dos dados é assegurada pela revisão por parte de múl-
tiplos utilizadores, o que, igualmente, não oferece garantias absolutas de rigor. Outro aspecto
relevante prende-se com as assimetrias de cobertura territorial no volume de dados: áreas
densamente povoadas e territórios mais urbanizados tendem a dispor de dados mais completos,
tanto em volume como exactidão.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
42
A fig. 11 ilustra o projecto noisetube, uma ideia interessante mas que evidencia claras
limitações nesta fase de desenvolvimento. Resumidamente, pretende-se criar informação
sobre as características de ambiente sonoro nos espaços urbanos, com base na utilização de
aplicações especificas de medição de ruído instaladas em smartphones.
Apresar de conceptualmente atraente, esta ideia apresenta desafios técnicos importantes
para seja possível obter resultados minimamente válidos. Além disso, a dinâmica actual
do projecto não parece evidenciar uma participação muito activa de um número relevante
de utilizadores, o que se traduz em fortes limitações de cobertura espacial, bem como de
validação dos dados disponibilizados.
6. Conclusões
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45
Em Fevereiro de 2016 realizei, como o meu colega Bruno Martins, uma viagem de in-
vestigação científica à Ilha do Fogo, em Cabo Verde. De forma espontânea, acabámos por
realizar, sessenta anos depois, aquilo que Orlando Ribeiro fizera na década de 50 do séc.
XX, quando interrompeu entusiasticamente as suas atividades académicas, profissionais e
pessoais em Lisboa, para ir observar e documentar a erupção de 1951. Também fomos com
muito entusiamo estudar o que se passou com a população autóctone e com o ambiente
físico de Chã das Caldeiras, na cratera principal do vulcão, após a paulatina e destrutiva
erupção de final de 2014/início de 2015.
Não é fácil chegar à ilha, sobretudo quando se tem de conjugar um conjunto de impe-
rativos ligados à disponibilidade logística, temporal e financeira. Na prática, significou que foi
inevitável a passagem por outras partes do arquipélago até ao destino – Lisboa/Sal/Santiago/
Fogo – e da área de estudo até Portugal – Fogo/Santiago/Boavista/Sal/Lisboa – com períodos
de paragem que foram de poucas horas até alguns dias.
Na viagem de retorno fizemos a paragem mais longa, na ilha de Santiago, em que esti-
vemos dois dias inteiros mais algumas horas. Sendo necessário capitalizar o tempo e os
recursos disponíveis, aproveitámos para fazer investigação paralela para trabalhos em curso e
outros futuros temas, tanto na capital com fora, na ilha, falando com as pessoas, visitando os
lugares, preenchendo o diário de observação e completando a recolha de material fotográfico.
Usamos para isso o sistema de transportes local – as hiaces – partilhando a quotidianidade da
população local, o que nos aproximou ainda mais desta comunidade.
Na cidade da Praia, a partir do “Plateau”, pudemos observamos a paisagem humana na re-
lação conflituosa e cooperante com o ambiente físico, a complexa e dinâmica cronotopia do
espaço urbano ocupado por gentes e atividades diversas. Numa lógica sinergética, visitámos
e observámos um dos assentamentos iniciais, pelo que fomos à Cidade Velha, uma antiga
povoação construída por portugueses na confluência do vale-rio com o mar, que deixou
marcas discretas mas indeléveis na paisagem, ao representar um tempo-espaço específico da
expansão marítima portuguesa.
Na mesma linha histórico-geográfica, quisemos visitar outro tempo-espaço português,
daí que tenhamos decidido cruzar a ilha na hiace com destino ao Tarrafal, para conhecer as
ruinas da prisão. A prisão é, na verdade, um campo de concentração construído à imagem
e semelhança arquitetónica e funcional dos erigidos em vários países da europa pelo regime
nazi, com adaptações à vertente utilitária específica, neste caso, um local de condenação e
desterro isolado para presos políticos do regime ditatorial de Salazar.
inexistentes, pois ainda não eram nascidos na época. O que têm essas gerações será uma
imagem territorial construída com base em relatos de terceiros e em imagens fotográficas
e fílmicas, captadas na inevitabilidade do distanciamento geográfico, temporal e emocional
do espaço. Tendo em conta a ideia de Pisón (2009: 262) de que muitas vezes estes espaços
são o testemunho material de um passado, do que restou de uma paisagem que hoje está
desconetada com as funções territoriais do presente, visitar o lugar constituiu-se por isso
como uma experiência fundamental para (re)construir esta imagem territorial, agora com
base num juízo de valor próprio, ainda que afastado da vivência obtusa de quem ali esteve
perversamente confinado.
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48
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As fronteiras e a segurança
internacional na região das Guianas
Daniel Chaves
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de História, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
Universidade Federal do Amapá (Unifap)
daniel.chaves@unifap.br
Fixando o seu potencial como uma “uma espécie de ‘nova fronteira’ do processo de
integração sul-americano” (VIZENTINI, 2008: 1), em um reposicionamento estratégico
de interesse para um diálogo sobre leituras da ideia das calhas amazônicas como rimland
(SPYKMAN, 1942), desde um ponto de vista da estratégia terrestre do continente. Por outro
lado, em perspectiva de escala regional ampliada, torna-se também concernente ao histórico
contexto de conexão entre América do Sul e Caribe/América Central (SIMÕES, 2011: 39-54),
absolutamente respectivo ao debate de integração latino-americana do período posterior a
2ª Guerra Mundial – condensada decisivamente desde a fundação de organismos como a
Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), das Nações Unidas (ONU),
ou a Organização dos Estados Americanos (OEA), ambas em 1948. Os desdobramentos
destes organismos para a integração latino-americana já são conhecidos e até hoje e, ainda
que indiretamente (em larga medida pelo seu ocaso), impactam sobre as “mediterrâneas”
discussões e decisões regionais (MORSE, 1967: 172).
As Guianas e o seu Platô não são, de forma decisiva, um conjunto de países ou uma
região que influencia decisivamente a geopolítica das Américas, em especial da América
do Sul, ainda que seja possível notar diversos momentos em que a sua importância se
viu destacada, e a atenção das potências regionais, e inclusive internacionais, se dedicou
a região. Considerando a emergência de uma configuração multidimensional do sistema
internacional, onde a globalização acentua diferenças, possibilita sinergias conjunturais e
rearranja os parâmetros e políticas sobre as fronteiras inter ou intranacionais (COSTA, 2009:
3), entende-se aqui que a compreensão das geopolíticas das Guianas (a Guiana Francesa,
a República Cooperativa da Guiana, o Suriname, e um plano subperiférico, as unidades
administrativas do Amapá e Guayana Essequiba) é essencial para entender as geopolíticas
que se centram sobre a subregião, e em perspectiva, apontam as potencialidades para que
tal se constitua como área-pivô dos projetos de integração regional. Da mesma forma, pode
ser útil entender que a imersão destas geopolíticas se dá de forma múltipla, em larga medida
por conta da sua necessidade de sobrevivência em um ambiente pouco estruturado no que
diz respeito a regionalização e a subsequente inserção contemporânea, influenciando as suas
perspectivas de securitização e projeção (GRIFFITH, 2003: 1-2). Neste sentido, é preciso fazer
um exercício inclusivo, porém cuidadoso: mais que propriamente recuperar o nexo da relação
comparada entre a formação dos padrões nacionais das Guianas com o restante dos estados-
nações sul-americanos, em especial no que diz respeito à identidade étnica, perfil cultural,
corpo institucional ou padrões de desenvolvimento econômico, seria necessário buscar as
intersecções necessárias para compreender como o processo tardio de inserção guianense
em um sistema regional sul-americano e caribenho. Este último, por sinal, possui destacada
importância para as perspectivas e possibilidades das escolhas políticas e das geopolíticas das
Guianas.
A inserção das Guianas como periferias do sistema sul-americano não é um imperativo
único sobre essa condição – inevitavelmente, falar em uma geopolítica das Guianas
independentes ou pós-coloniais perpassa a existência de um fértil ambiente internacional
para tais comportamentos geopolíticos que inevitavelmente eram novos. Nesse sentido, a
despeito da intensa hegemonia da polaridade Oeste-Leste na Guerra Fria, a polaridade Norte-
Sul também fora importante, especialmente no final da década de ’70, para a promoção de
uma nova ordenança geopolítica na agenda global, por sua vez gradativamente notável
desde a Conferência de Bandung, em 1955. No ambiente de distensão casual da bipolaridade
Oeste-Leste, a luta por justiça econômica e racial – bem como por autodeterminação
política e independência cultural – orientava as ideias-força de redistribuição, compensação
e reorganização do poder em suas mais diversas instâncias. Diante do imperativo do
reconhecimento, não apenas dinâmicas próprias devem ser situadas, mas a forma com
a qual a comunidade internacional recebera tal impulso – e é neste impulso que janelas
de oportunidade conjunturais importantes redimensionaram a relação ultratardia entre as
metrópoles e tais colônias, na direção de proporciona-las a condição pós-colonial tão cara.
Em uma longa jornada de idas-e-vindas, a República Cooperativa da Guiana se tornava
independente em 1966. Nos anos ’70, o embate se afirmou e ganhou força com a proposta
sólida de uma Nova Ordem Econômica Internacional – a NOEI -, um largo conjunto de
barganhas ao sistema de Bretton-Woods estabelecido pelo Norte. Esse conjunto situava-se
em torno de algumas reivindicações específicas dos países em desenvolvimento, dentre os
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
52
quais podemos citar: estabilidade de preços para commodities e matéria prima, transferên-
cia de recursos de países ricos para pobres, industrialização e tecnologia, corporações
transnacionais, acesso a mercados, reforma no sistema monetário internacional e no arranjo
de poder nos foros internacionais (HANSEN, 1981). Em 1974, a Assembleia Geral da ONU
declarava o estabelecimento da nova ordem econômica mundial no seio das discussões
sobre desenvolvimento e matéria-prima e estabelecia um programa e a Carta de Direitos e
Obrigações econômicas dos Estados sobre essa nova ordem após longas e duras discussões
2
. Um ano depois, o Suriname se tornava independente da Holanda.
É possível que se diga que, desde a segunda metade do Século XIX - período no qual,
como ressaltamos, ocorre a inclusão das Guianas em um sistema capitalista bem constituído
-, as Guianas permaneciam até pouco tempo atrás ocultadas em uma geopolítica, como se
fossem paradigmáticas no que diz respeito a invisibilidade política, cultural e econômica na
América do Sul, notáveis apenas em observações carregadas de pejoração sobre crises de
sistemas e estruturas da efetividade e da identidade nacional do Estado, tendo dificuldade
em inserir-se nos processos de desenvolvimento regionais. No entanto, olhares mais
compreensivos, cientes da complexidade da inserção guianense no sistema internacional
notam que tal depende invariavelmente de uma compreensão sobre como o Caribe forjou
tal inserção e sobre como, do ponto de vista pivotal, as Guianas seriam um ponto de junção
entre as geopolíticas caribenhas e sul-americanas. Aqui reside o mais sensível e vital aspecto
das leituras geopolíticas sobre as Guianas, que com investimentos inteligentes, sustentáveis e
inovadores sobre energia, tecnologia e transportes, podem gerar ganhos em escala de médio
e alto valor agregado, contribuindo inevitavelmente para o desenvolvimento regional.
Tais geopolíticas deverão ter especial atenção ao novo contexto de reabertura da
economia cubana a investimentos internacionais (2014), a um cenário de desmontagem do
caráter bolivariano-socialista na Venezuela pós-chavista, do fim da Guerra Civil colombiana e
a revolucionária perspectiva em curto-médio prazo do escoamento de commodities agrícolas
do Centro-Oeste brasileiro. Estes devem surgir através tanto dos eixos em torno dos afluentes
do Rio Amazonas em conexão com a rota BR364-BR319-BR174 (Cuiabá-Porto Velho-Manaus-
Boa Vista), quanto do conjunto multimodal Tapajós-BR-163-Bico do Tocantins, cravando o
Extremo Norte do Brasil – e consequentemente, as franjas do subcomplexo regional – tanto
na geopolítica da exportação das commodities brasileiras quanto das novas possibilidades
políticas do Caribe. Nos nossos termos, a franja setentrional redimensiona o seu papel, em
especial diante da hipótese aventada a de que é necessário constituir a compreensão de que
o Platô das Guianas possui uma geopolítica multidimensional, e que nestas possibilidades, o
seu nexo amazônico-caribenho representa enorme potencial para a integração América do
Sul-Caribe.
Nos termos clássicos idealizados pela bibliografia, a Amazônia deixaria de periferia do
Brasil para se tornar motor geopolítico do continente no Século XXI. Tendo em vista esta
contextualização renovada, e reconhecendo esse imperativo geopolítico caribenho inicial
sobre o Platô, notamos que na primeira onda global de integração regional (a qual se agita
em período contíguo a ascensão da deténte, no seio da Guerra Fria) as recém-independentes
República Cooperativa da Guiana e o Suriname aderiram a Comunidade do Caribe (CARICOM)
3
e ao Tratado de Cooperação Amazônica (TCA, depois Organização do Tratado, OTCA) em
1973 e 1978, respectivamente, sendo este segundo potencialmente relevante do ponto de
vista das conexões Caribe-América do Sul. A emergente Associação dos Estados Caribenhos
(AES) também absorveu as Guianas em uma iniciativa integracionista recente, na chamada
segunda onda global de integração regional (SENHORAS & CARVALHO, 2015: 3), apesar de
ter importância diminuída diante do CARICOM e de outros relacionamentos em construção.
É preciso notar que, como certa exceção peculiar, ainda existam acordos de livre-comércio
e trocas privilegiadas entre as ilhas e departamentos ultramarinos franceses de presença
2 - Declaration on the Establishment of a New International Economic Order; Programme of Action on the Estab-
lishment of a New International Economic Order (S-VI) (A/9556). Disponível em: <http://www.un.org/ga/search/
view_doc.asp?symbol=A/9559&Lang=E>. Acesso em 10 jun 2011.
3 - CARIBBEAN COMMUNITY. Communiqué issued at the conclusion of the sixth inter-sessional meeting of the
conference of heads of government of the Caribbean Community, 16-17 de Fevereiro de 1995, Belize. Disponível
em: <http://www.caricom.org/jsp/communications/communiques/6inthgc_1995_communique.jsp>. Acesso em
12 Fev 2015.
Daniel Chaves
53
determinante na região, e nestes inclui-se a Guiana Francesa – que é uma colônia francesa, e
em última instância, reminiscente do imperialismo francês sobre as Américas. Nesta direção,
no que diz respeito às convergências regionalizantes, a França não está contemplada nestes
arranjos formais como deliberadora votante – como aponta Granger, “A Guiana francesa
encontra-se assim ao cruzamento de vários rumos e conjuntos político-econômicos” (2008:
9). Este contexto representa por um lado certo desafio, mas não necessariamente um óbice,
por outro, considerando-se as enormes potencialidades vis-à-vis a linde brasileiro-europeia
em pleno ultramar sul-americano.
Tal situação específica pode ser interessante para uma discussão decisiva, e cada vez mais
estratégica, sobre a envergadura dos projetos integração das Guianas como um sub-complexo
regional, considerando a singularidade da presença continental de uma potência europeia,
caso único em termos contemporâneos no que diz respeito a terras continentais. É interessante
notar que, apesar de uma trajetória de contestações históricas sobre a fronteira no Platô, em
especial a Questão do Amapá, a presença francesa não é interpretada regionalmente como
hostil ou contra-cooperativa, com a sua presença na Organização do Tratado do Atlântico
Norte (OTAN) sendo raramente advertida quanto aos debates sub-regionais de segurança.
Nesse sentido positivo, a ponte binacional entre esse país e o Brasil é um bom exemplo
de como a cooperação pôde se estabelecer mesmo diante de tal idiossincrasia, mesmo
considerando que tal obra ainda não é usufruída cotidianamente por ambos 4. Problemas
semelhantes foram notados na fronteira entre Lethem (R. C. da Guiana) e Bomfim (Roraima),
na ponte sobre o rio Tacutu, mas com diferentes resultados, na medida em que a obra
se efetivou em uso (SANTOS, OLIVEIRA & SENHORAS, 2009). A questão das fronteiras no
Platô é assunto, como dissemos, para questões fronteiriças entre praticamente todos os seus
estados nacionais envolvidos. A Venezuela reclama a área da Guayana Essequiba (159,500
km²) sobre a R. P. da Guiana; a Guiana disputa (pequenas) áreas em torno do Rio Corentyne
e New River Triangle, com o Suriname; o Suriname, por sua vez, reclama a área que vai do Rio
Marowini ao Rio Litani com a Guiana Francesa, demonstrando a relativa instabilidade no que
diz respeito a determinados consensos geográficos essenciais, remontando a sua precária
formação territorial colonial.
Apesar disto, em corte histórico cosmopolitizante, é possível operar comparações globais
com as transformações e convulsões nas Américas portuguesa e espanhola, coloniais e pós-
coloniais. Tais comparações poderão, inclusive, encontrar ampla relação com discussões
específicas da região amazônica sobre este contexto no que diz respeito aos limites e
fronteiras, tanto formais quanto conceituais, campo relativamente consolidado apesar
de subsidiário a tais discussões, se comparados ao desenvolvimento dos debates sobre as
Guianas. A guisa de analogia e exemplo, podemos citar o arco de movimentos contestatórios
da transição moderno-contemporânea, como o Levante de Berbice (1763-64) (CLEVE, 2007:
55-56), ou a Rebelião dos Escravos de Demerara (1823) (VIOTTI DA COSTA, 1998), ou até
mesmo a Cabanagem e outros conflitos, por exemplo. Nesta mesma direção, devem ser
observadas possíveis relações com desdobramentos da instabilidade europeia posterior a
Revolução Francesa e a Era Napoleônica (1804-1814), como na Invasão da Martinica (1809)
e Guadalupe (1810), ou ainda a Batalha do Suriname (1804), pois é neste contexto que
começam a se conformar e definir os limites entre as colônias - o que até hoje se demonstra
insólito e frágil, com contenciosos de fronteira atuais entre todos os países do Platô, com
a exceção do Brasil diante de seus pares - ainda sob a determinação da expansão imperial
europeia a partir da segunda metade do XIX, que consagraria a segunda onda de expansão
europeia e as suas consequências estruturantes para a periferia do sistema internacional da
época.
A condição periférica destas dinâmicas sociais, desde um ponto de vista histórico
é interessante para uma plêiade de contribuições diversas sobre o papel do Estado e do
mercado nas sociedades de fronteira, bem como suas tensões e conflitos decorrentes, sob
diferentes prismas, que variam desde as relações locais lindeiras (ROMANI, 2013; BAINES,
2013; VAN LIER, 2005), até os novos usos e articulações estratégicas das fronteiras (VILHENA
4 - REIS, Lucas. Brasil ‘abandona’ ponte construída em parceria com a França. Folha de São Paulo, Caderno
Mundo, 25 fev 2015. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/02/1594386-brasil-abando-
na-ponte-construida-em-parceria-com-a-franca.shtml >. Acesso em 10 mar 2015.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
54
SILVA, 2013; SANTOS & PORTO, 2013; SUPERTI, 2013), passando pela trajetória histórica
dos contenciosos sobre a delimitação de tais restrinjas (GRANGER, 2013; SEMERENE
COSTA, 2009; TANAKA, 2007; DONOVAN, 2003), considerando a importante presença das
Forças Armadas como ponta-de-lança de tais fronteiras, contenciosos e governanças até o
protagonismo social das inevitáveis discussões locais de caráter étnico nas suas representações
associativas, dispersas ou reunidas diante do Estado). O reconhecimento destas questões é,
categoricamente, não apenas um elemento vital da integração destes povos e nações com
o restante do continente, mas um imprescindível horizonte para a ação diante das opções
contemporâneas de desenvolvimento sustentável, considerando a inevitável absorção destas
territorialidades em novas cadeias produtivas decorrentes da integração.
As Guianas são, neste sentido, riquíssimas do ponto de vista da pluralidade das possibi-
lidades de revisitar-se a mecânica destas relações no sistema internacional sobre tais temas
topicais vis-à-vis as tendências contemporâneas a redimensionar dinâmicas subalternas e
eleva-las a um ponto de alcance de mesma importância aos temas da grande estratégia,
por exemplo. É importante mapear, aqui, que os níveis de confiança destas relações entre os
Estados no contexto geopolítico contemporâneo mudaram sensivelmente. A inclusão da R.
P. da Guiana e do Suriname na União das Nações Sul-Americanas, na virada da primeira para
a segunda década do Século XXI, apontam para esta direção animadora para as relações
com o resto da América do Sul – o que carecerá de atenção, reiteramos, são os padrões e
níveis de comprometimento com a integração de forma efetiva e sustentável, equilibrando
os interesses e atendendo às necessidades locais, regionais e continentais. O sucesso deste
equilíbrio poderá definir o triunfo ou o fracasso da integração como projeto coletivo e, por
conseguinte, cooperativo. Consequentemente, o futuro do desenvolvimento regional – prio-
ritariamente orientado ao Sul e ao seu papel conectivo com o Norte – também depende
desta correlação de forças, destes princípios e seus resultados.
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56
57
Introdução
Milton Santos (1926-2001) foi e ainda é um dos mais prestigiados Geógrafos brasileiros,
cujo pensamento e abordagem epistemológica são transversalmente inspiradores da
produção do conhecimento geográfico no Brasil, transbordando as suas fronteiras.
Santos procurava a compreensão do espaço, objeto de estudo da geografia, como uma
totalidade, observando-o como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas
de ações: «O espaço seria sociedade encaixada na paisagem, isto é, “a vida que palpita
conjuntamente com a materialidade”» (Santos, 1991:73). Assim, a visão Miltoniana
sublinha a necessidade de se abordarem as duas categorias, espaço e sociedade, de uma
forma indivisa, justificando:
Para esta discussão e ao longo do seu percurso académico, Santos congrega de Rui
Barbosa, político e jurista brasileiro, o ideário libertário, posição que aprofundada através
do contato com Sartre, sublinhando o compromisso que o debate científico deve ter com
a liberdade e a vontade de independência. À medida que investiga a dinâmica económica
subjacente ao desenvolvimento urbano (1970 e seguintes), tendo como primeira referencia
o modelo de desenvolvimento político-económico da américa latina e do Brasil, denuncia o
que designa por “intencionalidade violenta do sistema capitalista”, onde os ciclos recessivos
não emergem como uma consequência mas antes, identifica-os como uma estratégia
criada pelo sistema capitalista para reposicionar os ganhos. Esta posição de denúncia
e de desconstrução dos determinantes de um sistema capitalista, que perspetiva como
imposição violenta sobre os grupos humanos, é legitimada por Leontieff, prémio Nobel da
Economia (1973), voltando a ganhar adeptos após a violenta crise do subprime (2007…):
quadro único na qual a história se dá» (Santos, 2004: 63; Cit. por Faria & Bortolozzi,
2009:34); compreendendo melhor, por esta via, as mudanças do perfil epidemiológico,
associadas ao processo de urbanização e à intensificação das relações sociais, ampliadas
pelo processo de globalização, pelos impactos ambientais e a sua relação com a saúde.
Como mencionam Czeresnia & Ribeiro (2000), num dos mais belos e completos textos
escritos – O Conceito de espaço em epidemiologia; a elaboração teórica de Milton Santos
tem inquestionáveis responsabilidades na moderna investigação em saúde ao insistir na
necessidade de se considerar a importância do encadeamento histórico que está presente
na exploração dos recursos e na consequente transformação das condições físicas do
meio gerando, no caso de algumas endemias (Ex.: doença das chagas), uma explicação
cuja consistência pode ser encontrada através da sobreposição de paisagens geográficas,
associadas à dinâmica do desenvolvimento económico regional: “As sociedades humanas
produziram uma segunda natureza por meio das transformações ambientais oriundas do
processo de trabalho” (Czeresnia & Ribeiro, 2000:8).
Adicionalmente, e tendo como base a abordagem marxista, a epidemiologia social
encetou investigações orientadas para a identificação dos condicionantes sociais e
económicos dos processos epidemiológicos:
De igual modo, esta posição de uma “Geografia Nova e Critica”, que frequentes vezes
encontramos na fundamentação epistemológica dos trabalhos de Geografia da Saúde
brasileiros, recebe de David Harvey, geógrafo britânico marxista formado na Universidade
de Cambridge, um legado continuado e renovado1. Numa linha aparentemente comum,
Harvey denuncia a subjugação/enfraquecimento das políticas públicas ao que designa por
“Partido de Wall Street”, numa referência à captura do sistema político pelo poder financeiro,
comprometendo metas humanistas e, no limite, o bem-comum. Observa a tributação do
Estado como uma estratégia ardilosa e duradoura criada para trazer populações (“marginais/
alternativas”) para o interior da órbita geral da acumulação de capital, pela necessidade de
vender algo que lhe permita satisfazer a imposição do Estado.
abordagem critica:
– Uma via onde se desenham um conjunto de estratégias direcionadas para os
indivíduos ou grupos, cumprindo objetivos de sensibilização, informação e modificação de
comportamentos tidos como potenciadores de risco(s) para a saúde;
– Uma outra via onde se produzem estratégias de intervenção orientadas para a
análise e modificação das estruturas sociais, económicas, políticas e jurídicas, conformadoras
do meio envolvente dos indivíduos, cuja atuação direta ou indireta gera ou acrescenta
situações de vulnerabilidade para a saúde; (Yen & Sime, 1999; Kawachi, 2000; Barnett &
Whiteside, 2002).
Conclusões
Bibliografia
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62
Messias Modesto dos Passos
63
Este texto dá continuidade aos estudos sobre formas simbólicas espaciais (Corrêa, 2005,
2008), procurando trazer à tona outras formas simbólicas e outros contextos. Isto consolida
a temática, denotando ao mesmo tempo a sua importância na análise geográfica. As formas
simbólicas espaciais constituem representações criadas e recriadas, objetos de celebração e
contestação, inseridas efetivamente na organização espacial. Desempenham um ativo papel
na sociedade, podendo ser consideradas como reflexos, meios e condições sociais.
Neste trabalho discute-se inicialmente e muito brevemente as relações entre geografia
cultural, política e significados, seguindo-se três partes nas quais são abordadas as relações
toponímia e política, monumentos, política e identidade e, finalmente, os lugares de
densidade política.
1 - Inédito
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
64
As relações entre política e cultura são explicitadas por Geertz por meio da “política de
significados”, uma expressão que articula dois termos distintos e aparentemente dissociados.
Política de significados constitui-se no embate entre grupos sociais visando a imposição de
significados.
Hall, Williams e Geertz, com suas formulações contribuíram decisivamente para que
as relações entre política, cultura e espaço fossem incorporadas à geografia cultural.
A contribuição de Erwin Panofsky foi também decisiva, ao possibilitar um modelo de
interpretação das formas simbólicas espaciais (Panofsky, 2004), modelo adotado pelos
geógrafos que participaram da coletânea organizada por Cosgrove e Daniels (1988) sobre a
iconografia da paisagem, e por Eyles e Peach (1990) ao estudarem os signos e símbolos da
cidade industrial canadense de Hamilton.
Incorporar a dimensão política ao estudo das relações entre cultura e espaço pressupõe
compreender a natureza rizomática da ciência, na qual todos os seus sub-campos se
interpenetram, sendo cada um enriquecido pelos demais, ao mesmo tempo que os enriquece.
A concepção rizomática opõe-se àquela que considera a ciência à semelhança de uma árvore,
de cujo tronco saem ramos e galhos que não se comunicam diretamente entre si. Segundo
a concepção rizomática a cultura manifesta-se politicamente e a política tem um sentido
cultural. O mesmo se pode dizer das relações entre economia e cultura.
A política de significados pode ser efetivada por meio do espaço, adquirindo assim uma
espacialidade. Trata-se das formas simbólicas espaciais (Corrêa, 2005, 2008), por meio das
quais mensagens são comunicadas a respeito de diversas esferas da vida, com a intenção
de influenciar na preservação ou transformação daquelas esferas. Assim, por exemplo,
reconstrói-se o passado e anuncia-se o futuro. Poder e identidade são temas centrais nessas
intenções, como transparece nos artigos da coletânea sobre diversos monumentos na cidade
do Rio de Janeiro (Knauss, 1999).
As formas simbólicas espaciais podem ser fixas ou móveis. Entre as primeiras estão as
estátuas, obeliscos, templos e memoriais, de longa ancoragem na paisagem, assim como
os modernos shopping centers e parques temáticos. As procissões, paradas e marchas são
exemplos de formas simbólicas espaciais móveis. As primeiras podem ser consideradas como
metáforas visuais (Gombrich, 1954), enquanto as segundas, de acordo com Turner (1982),
metáforas rituais.
Toponímia e Política
A língua é considerada a partir de Herder, comentado por Gade (2003), como o mais
relevante meio para expressar a identidade de um grupo. Constitui-se ela na primeira forma
simbólica, conforme apontado em 1923 por Cassirer (2001). Por meio dela conceitos e
significados são criados e comunicados, estabelecendo-se diferenças entre grupos lingüísticos.
Marca e matriz identitária a língua exibe uma espacialidade manifesta no território lingüístico
seja por meio da fala e das diversas grafias, seja pela toponímia, isto é, o nome de montanhas,
rios, países, regiões, cidades, bairros e ruas.
A toponímia reafirma a identidade dos lugares e de seus habitantes, podendo adquirir
um explícito sentido político quando um dado território é objeto de disputa entre grupos
sociais distintos, quando é objeto de conquista ou ainda quando submetido a profundas
transformações políticas. Nestes casos a toponímia pode ser vista como uma articulação
entre língua, poder territorial e identidade, como apontam Azaryahu e Golan (2001). Como
objeto de política cultural a toponímia está impregnada de tensões e negociações entre
grupos distintos.
Vejamos alguns exemplos, em que as relações entre toponímia e política revelam e
afirmam identidades de grupos. Os exemplos nos remetem a duas escalas espaciais, a do
território nacional ou regional, de um lado, e a do espaço urbano, de outro. Em que sentido
as duas escalas afetam a toponímia é uma questão para investigação.
A Amazônia pombalina (1755. 1778) constitui um eloquente exemplo de política
toponímica visando evidenciar simbolicamente o domínio português sobre um território
economicamente sob o monopólio da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, empresa
criada pelo Marquês de Pombal, Primeiro-Ministro português (Nunes Dias, 1970). A política
Roberto Lobato Corrêa
65
toponímica inseria-se em política mais ampla, que incluia, entre outras ações a elevação de
aldeias, com nomes indígenas, à categoria de vilas, a introdução do gado bovino, das culturas
do anil e do cacau, assim como de escravos africanos.
O domínio econômico é referendado pela alteração toponímica das aldeias, agora erigidas
em vilas, adotando-se nomes de povoações portuguesas. Os exemplos são numerosos,
entre eles Almeirim, Barcelos, Breves, Ega, Faro, Ourém, Santarém e Soure. Esta toponímia
seria divulgada nos mapas e nas conversas de marinheiros. Deste modo difundia-se a posse
portuguesa do território amazônico, estabelecendo-se uma identidade lusa à Amazônia.
A política toponímica foi ativa em inúmeros contextos culturais, a exemplo da hebraicização,
após a criação de Israel em 1948, dos topônimos pré-existentes, como é o caso de Tel-Rabia
renomeada Tel-Aviv (Azaryahu e Golan, 2001) e da desrussificação dos topônimos, após
1991, do Casaquistão, exemplificada com o nome da nova capital nacional, Astana, em
substituição ao nome anterior, Tselinograd (Brunet, 2001).
Dado o muito elevado nome de logradouros públicos existentes em uma cidade, admite-
se que o nome de bairros, praças e ruas sejam oriundos de amplas e complexas lógicas.
Uma hipótese para as cidades brasileiras diz respeito à influência de proprietários fundiários
urbanos, transformados ou não em loteadores, na designação de muitos logradouros e bairros.
O nome deles pode constituir-se em prática de valorização fundiária, ao mesmo tempo que
inscreve no espaço uma estrutura de poder e identidade de classe. Os exemplos na cidade
do Rio de Janeiro, como em outras, são numerosos e significativos. Mas nomear logradouros
públicos e bairros pode envolver tensões e negociações políticas tornadas públicas e objetos
de ações diversas. Dois exemplos apontam para essas tensões e negociações a respeito da
nomeação de logradouros públicos, envolvem contextos culturais distintos.
O primeiro diz respeito à política em torno de renomear ruas de cidades norte-americanas,
especialmente no Sul, homenageando o líder negro Martin Luther King Jr., defensor dos
direitos civis (Alderman, 2000). Os debates envolvendo o movimento negro e as lideranças
brancas foram focalizados em torno da localização das ruas a serem renomeadas, tendo
menor importância o debate em torno de se aceitar ou não que ruas fossem renomeadas.
O movimento negro insistia que essas ruas deveriam ter centralidade, ruas de comércio e de
tráfego intenso, conferindo assim visibilidade e força simbólica ao nome do líder negro. Os
interesses dominantes, brancos e conservadores, temiam que renomear uma importante via
poderia influenciar negativamente as vendas comerciais e o valor dos imóveis. Sugeriram
que ruas pequenas, escondidas e sem expressão fossem renomeadas homenageando Martin
Luther King Jr. O debate ressaltou as conexões entre política, cultura e espaço.
O segundo exemplo reporta-se à parte oriental da cidade de Berlim (Azaryahu, 1997). Este
setor da capital alemã foi submetido a diversas alterações no nome de diversas ruas, refletindo
as profundas mudanças políticas a que a cidade passou, sobretudo a partir de 1871, com a
formação do 2º Reich. O nazismo e o comunismo renomearam diversos logradouros públicos.
A reunificação alemão em 1989 trouxe à tona inúmeros problemas políticos, envolvendo
distintos grupos, a exemplo daqueles ligados à democracia cristã alemã e à antiga Alemanha
Ocidental, que desejavam eliminar qualquer vestígio do antigo regime comunita, e daqueles
moderados que queriam preservar os nomes daqueles que conceberam o socialismo, como
Rosa Luxemburgo. Nomes associados a posições políticas antagônicas definiram inúmeros
logradouros públicos da cidade, a exemplo de Bismarck, Hitler, Stalin, Wilhelm Pieck, Marx e
Engels. A história moderna da cidade está inscrita na memória toponímica, revelando a sua
dramática trajetória.
As relações entre toponímia e política, contudo, ainda necessitam de mais estudos
empíricos e reflexões. Há muitas questões a serem respondidas. Uma delas envolve as
condições políticas sob as quais alterações toponímicas são efetivadas e, inversamente, em
que condições mudanças políticas não implicaram em alterações toponímicas. Em relação a
este ponto o exemplo do oeste norte-americano é notável. Após a efetiva incorporação de
grande área localizada então no norte do México, verificou-se a preservação da toponímia
em língua espanhola, que incluía topônimos vinculados ao catolicismo, a despeito do
predomínio de protestantes entre os novos ocupantes. San Francisco, San José, Sacramento,
Santa Barbara, Los Angeles, San Diego, San Antonio, El Paso, Albuquerque e Las Vegas são
exemplos significativos. Os centros urbanos criados após a incorporação norte-americana,
contudo, foram nomeados com termos na língua inglesa. Tolerância ou política de anti-
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
66
conquista, de que nos fala Herman (1999) em seu estudo sobre os nomes de lugares no
Hawai, após a conquista e incorporação do arquipélago à União? Esta política implica em
criar, por meio da manutenção de alguns traços da vida cultural, a impressão de respeito às
diferenças entre os conquistadores e conquistados.
As relações entre política, cultura e espaço manifestam-se nos lugares retóricos (rhetorical
topoi) e lugares vernaculares (verccular topoi), como aponta Boyer (1994). Os lugares retóricos
são entendidos como locais onde a memória oficial e o culto aos heróis nacionais, são
cultivados por meio de rituais oficiais: nesses locais ensina-se os valores dominantes, visando
a continuidade da estrutura política da nação. Os lugares vernaculares, por outro lado, são
locais de manifestação da cultura popular, onde crenças e valores populares são transmitidos
às gerações mais jovens. Os dois lugares, contudo, não necessitam estar separados entre si,
verificando-se, frequentemente, uma superposição espacial entre eles. Contudo, os rituais de
cada um tendem a verificar-se em momentos distintos.
A Plaza de Mayo, localizada no centro de Buenos Aires constitui um exemplo de lugar
retórico tradicional, no qual um processo de contestação redefiniu a sua identidade.
Celebração e contestação convivem no mesmo espaço por meio de formas simbólicas
espaciais antigas e recentes incorporadas à paisagem, como aponta Torre (2000). Trata-se
do mais importante espaço cívico da capital argentina, equivalente, segundo Torre, ao Mall
da capital norte-americana, no qual o poder está representado. Antiga Plaza de Armas da
Buenos Aires colonial, ali estão localizados a Casa Rosada, sede do governo argentino, a
Catedral, com o túmulo de San Martin, o herói da independência nacional, o prédio do
antigo Cabildo e a Pirâmide de Mayo, que comemora a independência nacional.
Entre 1976 e 1983 o lugar retórico, de manifestação do poder, transforma-se, tornando-
se um espaço de contestação, conhecido como o lugar das ‘Madres de la Plaza de Mayo’.
A contestação esteve centrada nos protestos de mulheres, mães e viúvas daqueles mortos
ou desaparecidos durante o regime militar no país. Semanalmente as mulheres, portando
um lenço na cabeça, se reuniam, formando um círculo em torno da Pirâmide de Mayo,
no meio da praça. A materialização desse protesto se fez pela construção em cimento de
lenços em torno da Pirâmide, corporificando simbolicamente o protesto e, ao mesmo tempo,
imprimindo a manifestação na paisagem do lugar retórico. As duas características permitem
falar em lugar de densidade política.
Lugares da retórica e lugares vernaculares podem ser vistos como lugares de densidade
política, que condensam intenções e práticas portadoras de significados políticos. Em muitos
deles esta densidade política verifica-se há muito tempo, mesmo que as formas simbólicas
espaciais, monumentos e rituais, assim como os agentes sociais e intenções implícitas,
tenham mudado ao longo do tempo. Fala-se em lugar de densidade simbólica, com múltiplas
camadas de significados, como argumenta Mandoki (2003) ao estudar o Zócalo, ponto focal
da vida da nação mexicana, cuja força simbólica tem suas raízes na mitologia azteca. Mandoki
reconheceu no Zócalo quatro camadas de significados, caracterizando-o como lugar mítico,
foco principal de Tecnochtilán, a capital azteca, ‘plaza de armas’ do período colonial e ponto
focal da atual cidade e nação mexicana. Prédios governamentais e a catedral convivem com
a multidão, ora festejando, ora protestando.
A Praça do Portão da Paz Celestial, Tiananmen, em Beijing é outro desses lugares retóricos
e vernaculares, dotada de inúmeras camadas de significados, garantindo assim o seu caráter
de lugar de enorme expressão na vida chinesa, como aponta Hershkovitz (1993). Criada no
final do século XIV, juntamente com a cidade, Tiananmen já nasce dotada de importante papel
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
68
simbólico, pois separa a Cidade Proibida, sede do governo, do restante da cidade. Separa
o espaço sagrado do espaço secular. Com a república o papel de Tiananmen é alterado,
assim como a morfologia da área em torno. Torna-se um espaço público, freqüentado pela
população em geral. Ali foi construído o memorial dedicado a Sun Yatsen, o fundador da
república chinesa em 1911, e na praça manifestações de contestação ocorreram durante
a primeira metade do século XX. Tiananmen foi erigida como foco político do regime
comunista, que estabeleceu nova iconografia, reafirmando a sua centralidade política. Os
movimentos de contestação estudantil da década de 1980 tiveram em Tiananmen o seu
epicentro. Verificou-se, portanto, uma continuidade da força política de Tiananmen, um local
de densidade política, com inúmeras camadas de significados, lugar retórico e vernacular, de
celebração e de contestação.
Os lugares de densidade política ocorrem em diversas escalas espaciais como o espaço
público central de uma cidade, a exemplo do Zócalo e de Tiananmen, mas também na escala
de toda uma cidade. Gernika no País Basco é um exemplo, como argumentam Raento e
Watson (2000). Gernika pode ser vista como sinédoque do território basco, irradiando uma
força simbólica que tem suas origens na Idade Média e da sua longa resistência ao domínio
espanhol. Bombardeada pela aviação alemã durante a Guerra Civil Espanhola teve a sua
centralidade política ampliada, para a qual muito contribuiu a tela de Pablo Picasso sobre a
cidade.
A centralidade de Gernika tem como epicentro o local onde se encontram, próximos, os
restos de um velho carvalho e um prédio que representa as velhas tradições agrárias do povo
basco. Gernika, uma pequena cidade, tem apenas uma única camada de significados, porém
espessa, pois nela estão inscritas as lutas de um povo.
Considerações Finais
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70
71
Fortaleza, a Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira (UNILAB)
e a elaboração de novos mapas
José Borzacchiello da Silva
Universidade Federal do Caerá (UFC) Fortaleza
Resumo
Palavras chave: mapas, atlas, traços culturais, centro urbano, ensino superior
I - Introdução
Fortaleza é uma cidade universitária com alunos de vários pontos do Brasil e, nos últimos
anos, dá-se o aumento do número de estudantes estrangeiros, especialmente, os oriundos
de países africanos. A cidade conta com três instituições de ensino público. A Universidade
Federal do Ceará - UFC, a mais tradicional da cidade e do estado, é uma autarquia vinculada ao
Ministério da Educação. Nasceu como resultado de um amplo movimento de opinião pública.
Foi criada em 16 de dezembro de 1954. Possui cerca de trinta mil alunos que frequentam
seus 48 cursos de graduação, 67 de mestrado e 43 de doutorado. A UFC contava em 2014
com 121 estudantes estrangeiros matriculados em seus programas de pós-graduação, sendo
73 alunos de mestrado e 48 de doutorado 1.
Ainda sob o âmbito das instituições públicas de ensino superior, o estado mantém a
Universidade Estadual do Ceará - UECE, “constituída em forma de Fundação com perso-
nalidade Jurídica de Direito Público, criada pelo Decreto no 11.233 de 10 de março de 1975.
Constituída por uma rede multicampi, que privilegia os cursos voltados para a formação de
professores, a UECE vem acumulando experiências e transformando o seu perfil curricular em
razão da melhoria da formação profissional de seus alunos e consequentemente, da elevação
II - A Criação da UNILAB
6 - NISKIER, Arnaldo. Em defesa da língua portuguesa. In Brasil - construindo uma nação, Rio de Janeiro: Con-
federação Nacional do Comércio, 2014, p. 175
7 - Capitanias Hereditárias implantadas pelo rei de Portugal, D. João III, em 1534 para colonizar o Brasil. Com este
sistema o território brasileiro foi dividido em grandes faixas ligeiramente paralelas que foram entregues preferen-
cialmente a nobres ligados à Coroa Portuguesa para administrá-las.
8 - José Martiniano de Alencar, escritor cearense, nasceu em Messejana em 1829 e faleceu no Rio de Janeiro
em 1877. É considerado o fundador do romance de temática nacional.
José Borzacchiello da Silva
75
O indígena idealizado por Alencar não está presente no cotidiano do estado do Ceará e da
cidade de Fortaleza com a mesma beleza, orgulho e altivez. Da mesma forma, os negros
cearenses são ocultados sob a perspectiva cultural do Ceará. Um discurso controverso e
preconceituoso afirmava a não existência de índios, bem como de negros, no Ceará. Cabe
lembrar, entretanto, que nos últimos anos, várias associações voltadas à diferentes objetivos
revelam a presença de pessoas índias e negras, especialmente nas porções periféricas das
cidades. Vários movimentos sociais pautados no orgulho de ser índio e, principalmente, de
ser negro, estão presente na cena cultural e política do Ceará e do Brasil.
Além disso, não há nenhuma relação entre as paisagens descritas por Alencar com as
da atual cidade que exerce a função de capital do estado do Ceará e está incluída entre as
grandes cidades brasileiras. Sua aglomeração metropolitana aproxima-se dos quatro milhões
de habitantes. A cidade com múltiplas atividades é, além de excepcional pólo econômico,
capital administrativa, cidade universitária, nó de importantes redes de comunicação, dentre
outras funções que exerce. Chama a atenção seu dinamismo e seu forte poder de atração
demográfica. Fortaleza recebe migrantes de vários pontos do Brasil. Esse dado contrasta
com a história, posto que o nordeste brasileiro especialmente o Ceará, acusou sucessivas
perdas demográficas em função das dificuldades de fixação da população no campo,
especialmente pela estrutura agrária pautada na presença marcante do latifúndio e pela falta
de oportunidades de emprego e de geração de renda nas cidades. Essa mudança se dá a partir
da segunda metade do século passado quando importantes instituições foram instaladas na
cidade,9 contribuindo no processo de geração de empregos especializados com melhores
salários. Nos últimos anos, discute-se com frequência o ocultamento dos negros cearenses
nas narrativas da vida social do estado. Essa opacidade sobre o negro presente nos discursos
dos segmentos brancos que dominaram a política, a economia e as artes oficialmente
reconhecidas, surge uma nova realidade marcada pela efervescência do movimento negro.
A presença de estudantes negros de diferentes países africanos cria condições de confrontos,
estranhamento e construção de alteridades. O cearense acostuma-se a conviver com esses
jovens estudantes e a partir dessa experiência advinda da função universitária de Fortaleza
e de outras cidades do estado constroem novos mapas com configurações diferentes. Os
estudantes brasileiros de um modo geral, só vêem no planisfério o mapa da América do
Norte e da Europa, dai o estranhamento quando constatam a presença de cidadãos de países
que não estavam habituados a ver nos mapas. Sob essa perspectiva, Langa (2014)10 diz
que “No contexto de diferentes estratégias mobilizadoras, os estudantes africanos saem de
seus respectivos países com expectativas acadêmicas em relação ao Brasil, devido ao maior
nível de desenvolvimento econômico, tecnológico e de produção acadêmica, alimentando
esperanças de facilidade de inserção por conta de uma língua e culturas em comum – a
língua portuguesa, a culinária, a religiosidade e a cultura negra trazida pelos escravos a
permear a vida brasileira”.
A presença de estudantes oriundos de países africanos no Ceará adquire expressividade.
Nas cidades onde eles são mais numerosos, especialmente nos campi universitários, eles
registram as singularidades de suas culturas, organizam-se em busca de direitos e oferecem
inúmeras possibilidades de intercâmbio.
O Jornal Tribuna do Ceará11, em sua edição de 02 de setembro de 2015, noticia que “De
acordo com Polícia Federal, 2.167 africanos possuem registro de residência no Ceará, oriundos
da Angola, Cabo Verde, Congo, Gana, Moçambique, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, São Tomé
e Príncipe, e Guiné-Bissau, este último com maior número de imigrantes, 1.116. Ainda
segundo a PF, entre 2010 e 2014, 3.721 estudantes africanos foram recepcionados pela
imigração cearense...a Universidade Federal do Ceará informa que, atualmente, a instituição
9 - Banco Nordeste do Brasil, Universidade Federal do Ceará e mais tarde o Departamento Nacional de Obras
Contra a Seca - DNOCS
10 - LANGA, Ercílio Neves Brandão, DIÁSPORA AFRICANA NO CEARÁ Representações sobre as festas e as intera-
ções afetivo sexuais de estudantes africano(a)s em Fortaleza IN: Revista Lusófona de Estudos Culturais | Lusopho-
ne Journal of Cultural Studies, Vol. 2, n.1, p. 103
http://estudosculturais.com/revistalusofona/index.php/rlec/article/viewFile/65/79. Visita em 04.08.2016
11 - Jornal Tribuna do Ceará, edição de 02 de setembro de 2015, IN: http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/
cotidiano-2/africanos-quebram-barreiras-e-ja-somam-mais-2-mil-no-ceara/
Visita em 05.08.2016
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
76
conta com 140 estudantes africanos. A metade deles conta com apoio financeiro do Projeto
Milton Santos de Acesso ao Ensino Superior (Promisaes), do Ministério da Educação...e que a
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, (Unilab), que tem seu
campus na cidade de Redenção, a 59 quilômetros de Fortaleza, é pioneira no Estado na
integração entre os países membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP),
especialmente os africanos. Atualmente, a instituição conta com 550 alunos matriculados,
oriundos do continente”.
Os números são significativos e garantem visibilidade aos estudantes de países africanos,
especialmente nos bairros próximos aos campi universitários. Acrescenta-se ainda os casos de
outros estudantes que se encontram no Ceará, em situação irregular em relação às normas
vigentes no país. Dentre eles destacam-se alunos de instituições privadas de Fortaleza que estão
matriculados em faculdades da cidade. Essas instituições veiculam campanhas publicitárias de
propaganda de seus cursos nos países africanos, atraindo considerável número de alunos, ao
mesmo tempo que, com a presença deles, investem em programas de internacionalização de
seus cursos. Quando em Fortaleza, muitos se deparam com dificuldades econômicas para
dar conta dos custos financeiros dos cursos e garantir sua manutenção. Enfrentam também
as dificuldades de se instituírem enquanto sujeitos sociais, cidadãos ligados às normas,
hábitos e costumes de seus países de origem. Segundo Mourão (2016)12, muitos reclamam
do desconhecimento dos brasileiros em relação aos estudantes originários de países africanos
“os estudantes argumentam que por serem vistos como estrangeiros ‘as pessoas acham
que eles têm muito dinheiro e aumentam o valor dos aluguéis’, todavia são constantemente
tratados de forma ‘desqualificada e discriminatória’, como se não pudessem pagar, ou
viver de forma respeitosa com os vizinhos, sendo frequentemente acusados de provocar
confusão e barulho na cidade. Outra experiência destacada por eles, sobretudo vivenciada
na universidade, é a falta de conhecimento dos brasileiros em relação ao continente africano
e aos seus próprios países. Alguns estudantes relataram que ao serem identificados como
“africanos” pela aparência (roupas, cabelos, cor da pele), ou pelos diferentes sotaques, são
automaticamente tratados sem diferenciação”.
A política externa brasileira tradicionalmente sustentou a direção sul/norte, elegendo
a Europa como parceira primordial, respaldada numa forte herança colonial. Mais tarde,
assume destaque os Estados Unidos da América, que logo firmou-se como aliado de ações
que ultrapassavam os interesses comerciais e garantiam sua hegemonia na América do
Sul, onde o Brasil se destaca. Só tardiamente o país se dá conta da necessidade de ampliar
suas relações, voltando-se para Ásia e África. Com o continente africano essa aproximação
tem sido lenta e gradual. Os contatos diplomáticos e comerciais do Brasil com o continente
africano se intensificou nos últimos anos. Em reportagem no jornal da BBC Brasil13, João Fallet
assim se coloca “outrora pedaços de um único território, Brasil e África estão desenvolvendo
um modelo de relações que tem o potencial de religar as duas margens do Atlântico Sul,
segundo um relatório do Banco Mundial obtido pela BBC Brasil. O documento, cuja versão
inicial deve ser divulgada no fim deste mês, analisa a intensificação das relações entre Brasil
e África a partir de 2003, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva elegeu o continente
como uma das prioridades de sua política externa, parte da estratégia de ampliar a influência
brasileira no mundo”.
Além do caráter solidário sustentado por ações de aproximação com os povos dos países
africanos, a construção de vínculos levavam em conta a presença maciça de africanos que
foram trazidos ao Brasil na condição de escravos. Submetidos e constantemente humilhados,
trabalharam muito e foram excessivamente explorados. Entretanto, contribuíram fortemente
na formação do modo de ser, de pensar e de agir do brasileiro com forte marcas das
matrizes dos diferentes reinos africanos subjugados pelo escravismo. Não há dúvida que
as políticas externas brasileiras voltadas aos países africanos, além do caráter de resgate
cultural, também são identificadas com forte interesse comercial. O feixe representado pelas
atividades acadêmicas e trocas de ações científicas e culturais permeia os diferentes interesses,
destacando-se, inclusive, os da segurança. Aguilar (2013)14 diz que “A Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP) se tornou um fórum internacional bastante atuante nas
discussões no campo da segurança e defesa. Com base no documento jurídico denominado
Protocolo de Cooperação da CPLP no Domínio da Defesa, foram criadas a Reunião de Ministros
da Defesa Nacional, a Reunião dos Chefes de Estado Maior de Defesa, e o Centro de Análise
Estratégica (CAE) com a finalidade de discutir a profissionalização das forças armadas, a ética
e a profissão militar”.
A política externa do Brasil busca fissuras onde possa firmar-se face à sua posição na
conjuntura global cada vez mais competitiva, onde países de forte expressão industrial e de
amplo espectro de cobertura comercial, dificultam o ingresso de outros países, especialmente,
os emergentes, como é o caso do Brasil. É nesta direção que o autor prossegue afirmando
que “A visão brasileira da ordem global contemporânea é de uma estrutura multipolar,
assimétrica onde prevalece a incerteza e uma múltipla possibilidade de atores geradores de
insegurança. Nesse contexto, o fortalecimento do multilateralismo seria a melhor opção para
um país do porte do Brasil transitar no sistema, encarar a competição do comércio, responder
às incertezas provocadas por atores estatais e não estatais que afetam a segurança e diminuir
a assimetria com as grandes potências.” Aguilar (2013)15
Essa visão de Aguilar pautada nas perspectivas do multilateralismo e as possibilidades
oferecidas pelo continente africano é reforçada por Therezinha de Castro, renomada geógrafa,
especialista em geopolítica, especialmente do Atlântico, (1999, p.19)16, que define o Atlântico
Sul como o “espaço marítimo compreendido entre: três frentes continentais, América, África
e Antártica; e três corredores, o do norte – constituído pela zona de estrangulamento Natal-
Dakar – e dois no sul –respectivamente entre a Antártica e as frentes continentais americana/
africana, comandada pelo Estreito de Drake e Passagem do Cabo. É assim considerado o
mais internacional dos oceanos”.
Essa importância do Atlântico Sul é histórica quando diferentes rotas foram desenhadas
e inseridas nos mapas e atlas a partir do tráfico de negros escravos, trazidos da África para o
Brasil, especialmente para os portos de Recife, Salvador, Rio de Janeiro e São Luiz. Fortaleza
entretanto, malgrado sua importância atual no rol das metrópoles brasileiras, não se instituiu
como centro importador de escravos africanos. Os vínculos com a África se fortaleciam à
medida que se expandia o cultivo de cana de açúcar. Na mesma proporção, aumentava
a importação de negros africanos submetidos à condição de escravos. Os brasileiros
participavam ativamente na atividade escravocrata. Alencastro (2000) mostra que a chegada
da corte portuguesa ao Brasil não interrompe as atividades de senhores brasileiros com a o
escravismo. “Por isso, a ruptura de 1808 não será tão radical como se tem dito e escrito:
ainda se movia no oceano o braço brasilianizado do sistema colonial: a rede de importação
de mão-de-obra cativa, o tráfico negreiro” (Alencastro, 2000).17
No Ceará, a Abolição da Escravatura, ocorre em 1884 enquanto que no Brasil se dá
somente em 1888. As sucessivas secas e reduzida lavoura canavieira justifica menor
contingente de escravos. Entretanto, isso não significa dizer que os interesses do senhores
fossem diferentes em relação às praças mais conhecidas. A Abolição no Ceará com seus
14 - Aguilar, Sérgio Luiz Cruz. Atlântico Sul: as Relações do Brasil com os Países Africanos no Campo da Se-
gurança e Defesa. In Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais | v.2, n.4, Jul/Dez 2013
p.62 http://www.sebreei.eventos.dype.com.br/resources/anais/21/1365674115_ARQUIVO_textofinal.pdf - Visita
25.03.2016
15 - Aguilar, Sérgio Luiz. op. cit. p.63, http://www.sebreei.eventos.dype.com.br/resources/anais/21/1365674115_
ARQUIVO_textofinal.pdf - Visita 25.03.2016
16 - CASTRO, Therezinha de. América do Sul: vocação geopolítica”. Revista da Escola Superior de Guerra , n.38,
ano XVI, 1999a, pp. 165-188, Apud, BROZOSKI, Fernanda Pacheco de Campos, A REVALORIZAÇÃO GEOPOLÍ-
TICA E GEOECONÔMICA DO ATLÂNTICO SUL NO SISTEMA INTERNACIONAL, Dissertação de Mestrado, 2013,
p. 13, Disponível em: http://www.ie.ufrj.br/images/pos-graducao/ppge/Dissertao_Fernanda_Pacheco_de_C._Bro-
zosk, Visita em 02.04.2016
17 - ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul São Paulo: Companhia
das Letras, 2000, p. 354.
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa
78
18 - MARTINS Paulo Henrique de Souza. Escravidão, Abolição e Pós-Abolição no Ceará: sobre histórias, memórias
e narrativas dos últimos escravos e seus descendentes no Sertão cearense. p. 32, Dissertação de Mestrado, 2012,
UFF - Niterói, Maio de 2012, http://www.historia.uff.br/stricto/td/1641.pdf, Visita em 03.08.2016
19 - VIEIRA, Jofre Teófilo. Entre a Escravidão e a Liberdade: os africanos livres no Ceará (1835-1865), Fundação
Biblioteca Nacional, 2014, p.4.
https://www.bn.br/sites/default/files/documentos/producao/pesquisa/2014//jofre_teofilo_vieira_trab_revisado_0.
pdf Visita em 03.08.2016
79
O território que se estende, a superfície terrestre sob os nossos pés e sob o céu, é
perscrutado na tentativa de o descrever, provavelmente desde que o homem alcançou a
verticalidade, ou desde que o homem é homem. Várias ciências procuram aprofundar a
exactidão desta descrição e cada uma contribui para a compreensão global, ou plena, do
mundo físico. Mas se a descrição da paisagem parte quase inevitavelmente da percepção
visual, se o olhar tem uma papel fundamental para o conhecimento do lugar que habitamos
ou que visitamos, a visão por si só não consegue abarcar a totalidade. A visão deixa um vazio
que só pode ser colmatado com a intervenção dos outros órgãos dos sentidos: uma extensão
de terra com o seu relevo, rochas, flora e fauna seria, pode dizer-se, bi-dimensional, se não
estivesse envolta em sons e cheiros, com uma determinada temperatura e clima, feita de
uma certa rudeza ou suavidade, e tendo mesmo um particular sabor; elementos estes que
percepcionamos na experiência do caminhar e de nos encontrarmos fisicamente presentes
no espaço – e no tempo – para o podermos verdadeiramente observar.
As sensações físicas suscitadas na fruição espontânea ligam-se a elementos que provêm
da imaginação, da emoção, da memória e contribuem para a formação da ideia, do
entendimento relativamente àquele lugar em particular, contribuindo para a formação do
pensamento sobre a paisagem em causa. Esta experiência – multifacetada e ampla – revela-
-nos a dimensão profunda da perspectiva da filosofia da paisagem, que não é compatível
com uma associação de paisagem a mera vista, panorama, ou cenário, porque extrapola a
visualidade e tem na experiência da temporalidade um fundamento essencial. O filósofo que
mais contribuiu para a compreensão da temporalidade na paisagem foi o italiano Rosario
Assunto, sobretudo na sua obra magna Il paesaggio e l’estetica (1973), onde dá conta da
relevância da compreensão da paisagem como inscrita num continuo temporal, em que o
presente não existe fora do passado e futuro, e em que o ser humano, a história, a cidade e
a paisagem existem em complementaridade. Há também nesta leitura uma aproximação ao
mundo ele mesmo, ao real, à vida e ao movimento, uma fuga à quantificação matemática,
às leituras de gráficos, de recenseamento populacional e habitacional, de curvas de nível
ou de mapeamento GPS; a recusa de uma leitura da Terra como se a compreensão de um
lugar geográfico se tratasse apenas de um aglomerado de dados para análise laboratorial
e tecnológica: o olhar da filosofia da paisagem (e de boa parte da geografia, é certo) é
indissociável da compreensão da inter-relação do homem e da natureza (tomando aquele
como parte desta e não como lhe sendo exterior ou externo). Fundamental para o pensamento
da paisagem é também a fruição estética – e o sentimento estético – em tempo real, baseada
na experiência e na renovação da experiência que informa a acção ética. Não podemos
agir e transformar uma paisagem sem a conhecer e compreender a sua realidade, sem a
experienciar, ou, pelo menos, sem escutar os que nela habitam.
Mapear e cartografar o território são partes do processo de leitura; olhar atentamente
para a realidade geográfica, observar os processos que ocorrem, a vida que se desenrola, em
toda a sua amplitude, diversidade e complexidade é olhar para além do visível, transcender a
visibilidade e penetrar numa dimensão já metafísica que nos abre portas para novos lugares
e novas geografias, mesmo nos lugares que pensávamos já conhecer: o exótico ao final da
rua, do lado de lá da estrada, nos confins da cidade.
Uma radiografia, por exemplo, é uma fotografia do território do interior do nosso corpo
e dá-nos sinais precisos, quanto baste, para uma primeira leitura de uma patologia. Se
precisarmos de mais e melhor informação, os scanners modernos vão muito mais longe e
mapeiam tudo em 2 ou 3 D, a cores ou a preto e branco, com ou sem legendas e, como nas
ecografias, com som.
E é assim que hoje se “lê” o que os territórios têm para nos oferecer.
Mas são tão complexos que o Homem não cessa de o tentar perceber numa busca
incessante.
O seu background, quem o habita, como é usado – bem, mal e assim assim –, como nos
podemos articular harmoniosamente com ele e como podemos representá-lo.
Hoje, podemos, com enorme rigor, mapeá-lo e colher informação de importância capital.
Vistas aéreas, plantas, cortes, modelos 3D aquilo que se vê e aquilo que se intui. Podemos
estudá-lo como nunca e prever ainda com mais rigor. Muitas vezes essa forma de o representar
não cessa de nos surpreender. Dos portulanos às cartas, dos mapas das estradas às cartas
militares e agora às leituras via satélite com georeferenciação é toda uma viagem que ainda
não terminou.
Voltemos, para terminar esta pequena viagem, à poética de Leonardo para ler o que
outro italiano notável – Italo Calvino – num dos mais belos livros de sempre, “As cidades
invisíveis”, nos conta.
Percebemos, à medida que a narrativa do veneziano Marco Polo a Kublai Khan evoluiu,
que as cidades invisíves não são mapeáveis nem localízáveis logo a utopia abre um espaço
infinito como aquele que é aberto à ciência.
Se eu fosse geógrafo este seria o meu livro de cabeceira e iria comigo para todo o lado.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
83
El territorio. Sobre él se tiende hoy una idea fija que vuelve en unos momentos en que se
hace necesario, más que nunca lo fue antes: el retener lo Real.
Se trata de luchar por que no se escape aquello que era importante no perder, ni perderse.
El sentido de la tierra. Son momentos históricos estos cuando parece que lo Imaginario –el
“acoso de las fantasías”– está comenzando a socavar la base misma sobre la que nos alzamos:
la confianza en la buena tierra. Ahí está y estaba desde siempre el territorio, el terruño, el
lar: aquello que comienza o debe comenzar cuando la metrópoli y su especial vida se acaba.
Había un límite y está aquí, entre nosotros. La ciudad, la interioridad urbanizada de la misma,
se opone a las sierras, lo sabía el gran Eça de Queiroz, que construyó toda una obra simbólica
sobre la idea de regreso, de vuelta a lo esencial después de la experiencia cosmopolita.
Pero lo cierto es que ese regreso de las energías perdidas todavía, en la realidad del día
a día, no se ha producido (y es posible que no se produzca ya). La evidencia nos dice que
estamos ante un mundo al que de continuo se le ha ido extrayendo la resilience extraordinaria
que le caracterizaba; le ha sido absorbido su vigor antiguo, restándole las fuerzas motrices
que tan necesarias eran para su existencia antigua. La ilimitación, que era su característica
principal, la infinitud de que estaba dotado, ha quedado mermada, lo sabemos. Ya no es
posible confiar, viviendo en él, en una regeneración milagrosa de sus débiles y exhaustas
pujanzas anteriores. Pues, entretanto, crece imparable la conurbación del mundo (mientras
sus modos de vida se imponen por doquier), y al tiempo se estrechan los territorios que
ahora yacen mortecinos, desanimados, deshabitados, incluso carentes de los sistemas de
legitimación material y simbólica (y de eso, en esta ocasión, se trata) de los que, antes, en el
viejo tiempo, se encontraba bien abastecido.
Estamos hablando de la exterioridad a lo que hoy es el sentido de la marcha que imprime
a los hombres, a las cosas y a la propia naturaleza una modernidad sobrevenida, que es
sobre todo urbana o no lo es; cuyo signo indudable es urbano, metropolitano y tiene en la
gran ciudad –en el gran “encierro industrial” que en ella se cumple– su atractor, su imán
verdadero. Abordamos y aborda este proyecto, que se llama Imaginar o território, lo que ha
compuesto desde siempre el “afuera”, lo “abierto” (si queremos nombrarlo en los términos
propios de un Heidegger).
Un concepto nuevo creo que se aviene para esta situación nuestra, que es la creada en
todo el espacio al Oeste de la Península desde hace cincuenta, sesenta años: la del vacío, el
vacuum en ella producido. La “Península [está] vacía” (ello según todos los criterios con los
que en el continente se evalúa ahora mismo la densidad de habitabilidad de un espacio). De
esto se trata. De ese vacío que se abre en la parte de la Península no saturada: aquella que se
encuentra lejos de los litorales base de las industrias nacionales (portuguesa y española) del
turismo. Hablamos de lo que queda entre el arco atlántico y el arco mediterráneo, que son
los dos grandes promotores de progreso y los auténticos generadores y laboratorios para
fórmulas y ritmos de vida actual. La península interior resulta, empero, lo contrario. Deberá
ser, incluso, alimentada artificialmente, sujeta y soportada por las regiones industrializadas de
la vieja “piel de toro”. Aquí queda La Iberia, que siempre fue, desde antes de los romanos. Es
la parte inmóvil, también, de un mundo heredado.
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
84
Há uma poética da paisagem que é imemorial. Desde que o homem libertou o pensamento
e começou a olhar o espaço e a medir o tempo, que os olhos, na surpreendente relação com
a natureza, se fizeram fonte de encantamentos e fascínios, o que não foi outra coisa senão
o começo da aventura da construção da vida. Até onde os olhos alcançam, na descoberta
de espaços infinitos ou na surpresa de pormenores, esses instantes, que às vezes merecem
que o tempo fique suspenso, se construiu uma geografia configurada à ousadia do sonho,
que também aí se compartilhou a aventura de o Homem se fazer a si próprio. Assim subiu ao
alto das montanhas azuis, para ficar mais perto do céu e melhor se defender, assim devastou
florestas para as afeiçoar ao agro e poder viver, assim fez de suaves vales debruados de verde
a casa comum da vida, assim subiu os rios e explorou as margens, aprendendo a respirar com
a água a premonição civilizacional, assim descobriu a terra e aprendeu o mar, assim dilatou
precárias unidades sociais até fazer e refazer lugares, aldeias, cidades, e castelos e muralhas
para defender o terrunho de investidas bárbaras ou sedes violentas de conquista.
Na complexidade desse caminho que se fez andando, na lenta mas persistente superação
de condições atávicas e inóspitas, na defesa das feras e da segurança dos tugúrios, onde se
acolheu para edificar, depois, a casa inicial e o lugar matricial da vida, imagino, se imaginar
se pode, a forma gradual como o olhar se foi dilatando sobre as coisas e os horizontes, na
percepção de uma territorialidade que passo a passo, pedra a pedra (a pedra cor do tempo)
se foi dilatando numa espacialidade de “canto nómada”, para utilizar a dimensão quase
ontológica de Chatwin.
Essa capacidade de ver e experimentar sensorialmente as singularidades da “terra mater”
marcou decisivamente o homem como construtor de uma humanidade a haver – intemporal
utopia colectiva --, e, sobretudo, como primordial desejo de captar e perceber a realidade
próxima, e, logo, o rumor do mundo.
Esse a-bê-cê da vida, tão indiscutivelmente ligado à libertação do pensamento, plasmou-
-se como fio de longa duração na arte (a reprodução de quotidianos arcaicos: Vale do Côa e
Altamira, por exemplo), ou na poesia e na literatura (há um Ulisses com muitas Ítacas dentro
de cada um de nós), num olhar abrangente sobre as coisas e os quotidianos que as palavras
e os versos consumiram numa aventura poética que hoje podemos dizer, como T. S. Elliot,
estar contida em todos os tempos.
Olhar o território, observar as particularidades dos lugares e das coisas, colher paisagens e
fazer delas instantes sublimes que o coração e a memória guardam como coisa nossa, raiz e
fonte de emoções que as palavras e os versos lavram como tesouros em terra funda, aí temos,
se quisermos, a forma como a poética faz corpo com esses horizontes de beleza desmedida.
É por isso que há lugares que nos acompanham sempre como se fossem destinos,
paisagens e momentos que são os nossos dias de prodígios, as nossas cidades da alegria, a
nossa invenção da utopia breve, que é quando sonhamos paraísos ao alcance das mãos e dos
olhos. Essa topografia do pensamento guarda-a cada um como pode, mas talvez esteja dentro
dela aquela sabedoria que faz das verdadeiras viagens (os olhos são viajeiros!) um regresso,
como se a memória guardasse um tempo imaterial e insubstituível que os ruídos da vida
não apagam, nunca. Ainda recentemente, palmilhando a Serra da Estrela, por trilhos muitas
vezes andados, dei comigo a surpreender-me pelas coisas novas que a objectiva do olhar ou
a dimensão sensorial que é, no fundo, a paisagem a respirar (ah, o silêncio absoluto ou a
sinfonia do vento!), moldadas ambas pelo plano aproximado das singularidades graníticas
das montanhas dentro da montanha mãe, pela surpresa dos fios de água que resistem ao
degelo, pelo inesperado bosque das faias de Manteigas a S. Lourenço, ou pelos grandes
planos da Serra imensa que foram o fascínio de Torga, esse infinito visual de que Aquilino e
Vergílio Ferreira fizeram chão lavrado de palavras. O autor de ”Manhã Submersa”, sabe-se
lá se foi nas altas montanhas – “na solidão sideral”, como lhe chamou Eduardo Lourenço
Imaginar o Território | geografia do olhar: observar, ver, imaginar
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–, que sonhou a frase fantástica definidora de pátria como grande aventura humana: “da
minha Língua vê-se o mar!” E o mar real pode bem ser – e é – esse lugar, também como
a Serra, de vastíssimos horizontes, onde, às vezes, passam navios ou bandos de gaivotas, o
mar que lá longe se confunde igualmente, na sua amplidão, com o azul vivo do céu, se o
céu estiver limpo de nuvens e a brisa marítima de feição. Adivinha-se, então, por que razão
os olhos ficam tão presos àquela imensidão de azul que o sol de Verão gosta de desfazer na
diversidade cromática que só as sombras e as transparências são capazes de inventar mares
de prata à luz do dia ou oiro de sol-posto, à despedida da tarde.
À volta do mar, ando muitas vezes com versos de Jorge Luís Borges que num poema, que
é um canto de mistério como só ele sabe fazer, explica que “antes do sonho (ou o terror)
tecer/Mitologias e cosmogonias,/Antes que o tempo se contasse em dias,/O mar, o sempre
mar, já estava e era”. E logo depois, interrogando: “Quem é o mar? Quem é esse :violento/E
antigo ser que dói estes pilares/Da Terra, e é um e muitos mares/Sempre. Com o espanto que
as perfeitas coisas/Elementares deixam, as formosas/Tardes, a luz, o fogo da fogueira”.
Borges fala no “espanto” das “perfeitas coisas” e aí temos o regresso do olhar para a
combustão poética que, neste caso, e por isso citei o poema, é exemplar e definidor do tempo
imemorial da humanidade: “o mar já estava e era”, como as montanhas e as paisagens que
a mão do homem ainda não feriu e podemos encontrar, se soubermos olhar, pelas terras de
“funda memória” (Eduardo Lourenço), ora brandas e suaves, ora severas e austeras destas
Beiras. É na mesma linha que Sophia fala da pátria como espaço “de luz Inteira e clara” e
Eugénio configura a uma pequena aldeia da Beira Baixa, a Póvoa de Atalaia, no sopé da
Gardunha, o nascimento originário da sua aventura poética, a materna casa da poesia.
Foi sempre o olhar, como elemento de substância criadora, que levou para a literatura, a
capacidade de reelaboração da memória, como estímulo da imaginação, que nos permite a
nós apropriarmo-nos da realidade com outros olhos, e, porventura, acrescentar-lhe emoções
outras nascidas da nossa maneira de perceber que os lugares e os horizontes nunca são iguais,
por muitos olhares e fotografias que fizermos deles, como Paul Auster tão bem ensinou.
É decerto esse garimpo do olhar, na procura de uma invenção sem fim sobre a realidade,
que eu encontro quando subo à Nave de Pedra e encontro os horizontes infinitos de
Monsanto. Os olhos caminham, como acontece sempre, à roda da imensidão da planície
com os tais “sobreiros de passo largo a caminho do Alentejo”, de que falava Eugénio,
fixaram-se nos penhascos graníticos, “onde às vezes roçam as águias” (Namora), registaram
lá ao fundo, a enorme Lage do Chão de Boi, perscrutaram ventos vindos da Raia, sonharam
as tais “montanhas azuis” que se divisam ao longe e parecem cercar o horizonte, de onde
quer que se olhe o mundo. A primeira emoção é sempre a de termos aportado a um mundo
inóspito e petrificado que o homem, ao longo de séculos, afeição à sua natureza numa
saga civilizacional de afirmação telúrica e inteireza de carácter. Mas depois, passado o
deslumbramento do plano geral do Monte Sagrado e das suas paisagens afluentes, é nos
detalhes, nas singularidades que fazem o quotidiano do lugar, que os olhos se poisam para
guardar as imagens no bornal da memória.
Olhar: como fez José Cardoso Pires, em busca de uma metáfora para o país, quando
cinematograficamente escreveu sobre S. João do Peso, lugar perdido da Beira agreste: “terra
de pedras, padres e pedintes”. É esse fascínio de descoberta que descobrimos em Eduardo
Lourenço quando vê na sua “crepuscular” Guarda um navio de pedra com a proa virada
para terra, ou nas descrições da Gardunha e do Paul de José Marmelo e Silva (como ele
amplia os nossos olhos!), que também manifesta de uma forma muito bela a perplexidade
do “Adolescente Agrilhoado”, sobre a fronteira entre a aldeia e a cidade, quando o miúdo,
olhando a Covilhã ao longe, pergunta: “Óh, Mãe, na cidade é sempre dia?”
Podia ser interminável esta viagem. Às vezes, perdemo-nos nos intermináveis labirintos
da memória, que é, ao mesmo tempo, barco e âncora dos territórios que amamos. Mas só
aparentemente isso é verdade. Lembro-me sempre da fabulosa história que Alberto Manguel
escreve no seu espantoso livro “Uma História da Curiosidade”: “Northrop Free conta a
história de um médico seu amigo que, ao atravessar a tundra asiática com um guia inuíte,
foi apanhado por uma tempestade. Naquela escuridão gelada, para lá das fronteiras que
conhecia, o médico gritou: “Estamos perdidos!” O guia olhou-o atentamente e respondeu:
“Não estamos perdidos. Estamos aqui.”
É o que eu digo: Estamos aqui e agora.
87
Talvez não exista uma forma suficientemente delicada de equacionar esta questão, nem
seja pertinente a sua discussão, num mundo onde é expectável que cada um de nós seja o
mais útil, produtivo, eficiente e competente possível, cumprindo, sem questionar, padrões e
imposições externas de um certo modelo de sucesso.
Talvez não seja interessante, para a grande maioria dos leitores, ouvir discursar sobre a
iliteracia visual de grande parte dos consumidores de imagens, convictos que a imagem se
tornou num novo esperanto, uma linguagem universalmente compreensível e descodificável,
maioritariamente à luz das emoções.
Talvez Rui Coias tenha, no seu “A função do Geógrafo”, intuído que na fotografia há
quem, como eu, espere ansiosamente pela sombra diante dos olhos, (...) um sono leve que
nos cega e que, tal como na sua íntima geografia, haja também quem tenha ousado fazer
da memória a função do fotógrafo, relembrando que essas vozes tornadas sombras são os
olhos que aproximam os lugares ao coração.
Talvez a função do fotógrafo – daqueles que se sentem fotógrafos, tal como eu - seja,
afinal, ultrapassar a cegueira das evidências, a ditadura da percepção, tornando o acto
fotográfico num exercício de construção de novos mundos. Fotografar, nas suas plenas
possibilidades, torna-se assim na acção consciente de um corpo que decide operar sobre o
mundo, transformando-o, enquanto através desta mesma acção também se transforma. Ser
fotógrafo é assim incarnar esse corpo transformador, detentor de um olhar imaginador que
transfigura e dá a ver um determinado mundo.
Recorrendo à definição de “memória-imaginação”, em A Poética do Devaneio de Bachelard,
em que se põe de lado a História, mesmo que pessoal, enquanto conjunto de factos fixos
e incontestáveis, a fotografia, como práctica artística, apela a uma memória que trabalha
directamente com o imaginário onde, de acordo com Gonçalo M. Tavares, no seu Atlas do
Corpo e da Imaginação, o que importa não é tanto a veracidade, mas a intensidade. Intensidade
e eterno deslumbramento são assim condições sine qua non para a criação fotográfica,
governada pela imaginação, esse reino “da primeira vez”, de acordo com Bachelard.
“O olhar do imaginador é o olhar que se quer espantar; e se já se espantou com uma
coisa e se volta a olhar para ela é porque se quer espantar de novo, provavelmente com um
pormenor diferente”, conclui, em Atlas do Corpo e da Imaginação, Gonçalo M. Tavares.
Imaginar [ver para alem do visível] - ver de olhos fechados [visualizar imagens sem relação
com o perceptível] – são metodologias fundamentais para a criação fotográfica, para atingir
“o reino das imagens, o reino da despalavra”, tal como afirmou o poeta Manoel de Barros,
que encarnou, no seu livro “Ensaios Fotográficos”, um fotógrafo que retrata o silêncio, o
perfume e o vento.
Mas como continuar a “transver” o mundo, tal como Manoel de Barros defendia, num
mundo tão sobrecarregado de imagens, onde o excesso de estímulos visuais barra a imaginação?
Escreve Maria Filomena Molder, em Matérias Sensíveis – “A repetição e a reprodução demencial
de imagens produzem uma carência asténica, uma fome que não quer ser preenchida, um
não querer ver mais”. Não querer ver mais, a saturação do olhar, o seu cansaço, o seu tédio, é
uma das preocupações contemporâneas, defende Gonçalo M. Tavares.
“A reificação da imagem pelo ecrã tornou quase impossível imaginar, enquanto distância
nunca preenchida em relação ao não-visto”. A abundância de imagens, o seu excesso,
acabam por suprimir o espaço em branco – o espaço vazio – imprescindíveis para o “devaneio
e a nostalgia”.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
89
Talvez a função do fotógrafo seja hoje também a criação de espaços onde se fomente o
desejo de imaginar, onde exista a possibilidade de extinção da cegueira das possibilidades – a
cegueira que inibe a criatividade e inventividade.
Talvez acreditando que as possibilidades da imaginação são infinitamente maiores do que
as possibilidades da percepção do mundo se possa caminhar para uma cultura visual onde a
herança das construções imagéticas dos outros não pese mais do que os nossos imaginários
pessoais.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Cuando tenía unos siete años de edad, el maestro que nos intentaba enseñar a leer y escribir
se paseaba por el aula mirando los cuadernos en los copiábamos al dictado los textos que
nos iba leyendo con el fin de mejorar la ortografía, aquella mañana acabábamos de iniciar el
dictado y se paró al lado mío, miró mi cuaderno para ver si iba transcribiendo bien sus palabras,
pero su vista se quedó anclada, no sin cierta sorpresa, en una estrella circular de múltiples
puntas y colores realizada con lápices de colores Alpino que había traído ya dibujada de casa. El
maestro interrumpió su dictado y me preguntó que si la había copiado de algún sitio, todos los
compañeros volvieron sus miradas sobre mí, yo me puse muy nervioso porque había parado la
clase sin quererlo y muerto de miedo mascullando entre dientes casi un murmullo, pude decir
que no, que me la había inventado, que “me había salido de la cabeza”.
No conservo ese cuaderno pero me da igual, la estoy viendo ahora mismo como si la
tuviera delante y cada vez que me acuerdo de la estrella soy capaz de reconstruir todo lo
que aquel día aconteció: cuando la estuve dibujando en casa, el aula con las fotografías de
Franco y José Antonio Primo de Rivera a un lado y otro de un crucifijo ornamentando la pared
de la mesa del maestro que se situaba delante, a la derecha el encerado con la consigna del
día que el maestro había escrito esa misma mañana antes de que nosotros llegásemos a
la escuela, los pupitres de madera con los huecos para poner la pluma y el tintero, el color
ocre de las cubiertas del cuaderno, el gris de la bata del maestro, su pelo canoso, su piel
morena con ciertas arrugas, su andar pausado mientras nos dictaba, sus brillantes zapatos
negros, su vocalización casi perfecta, la luz que nos entraba por la izquierda y aquella estrella
causante de que ahora la recuerde igual que se recuerda una escena de la vida cuando uno
se pone delante del álbum familiar y mira las fotos que alguien hizo mientras ocurrían los
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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acontecimientos más importantes de nuestras vidas, como la primera foto que nos hizo aquel
señor que vino otro día a la escuela, interrumpió las clases -de lo que me alegré muchísimo-
y nos hizo una foto a todos y cada uno de los niños sentados en una mesa plana a modo
bureau y que no tenía mucho que ver con la inclinación de los viejos pupitres manchados de
tinta.
Nos colocó sentados con un ademán que pareciera que éramos muy aplicados poniéndonos
que como que estábamos leyendo, muy repeinados y con un enrollable pictórico para dar
ambiente y a la vez tapar las deficiencias de la pared que había detrás. Después los papás, si
querían tener un hijo que siguiera siendo niño decenios después, tenían que comprar aquel
retrato al precio de casi un mes de alimentación. Claro, la mayoría aceptaban el chantaje
¿quién se privaba de tener una fotografía que congelaba el pasado de tal manera que cuando
fuéramos mayores nada más mirarla pudiéramos recomponer la historia que ahora mismo
estoy escribiendo?
La capacidad de la fotografía de reconstruir nuestro pasado es algo consustancial e
intrínseco a ella misma pero no exclusivo, el ejemplo anterior lo demuestra, al igual que
la memoria del olfato o del gusto pueden regalarnos momentos muy difíciles de explicar y
compartir plenamente con los demás, pero que han quedado grabados en nuestro cerebro
para siempre ¿o debo decir memoria?. Efectivamente, la fotografía ha tenido hasta ahora la
virtud intrínseca de ser la conexión con el pasado, de congelar un instante y si ese instante
era el decisivo se podría recomponer el tiempo anterior y posterior al mismo. Esto ha sido
así durante muchos decenios mientras el hecho fotográfico estaba ligado a conservar ese
momento como si fuera un tesoro, así fue mientras los grandes maestros de la fotografía de
los siglos XIX y XX la utilizaron como un registro en el tiempo.
Nuestra memoria fotográfica no sería lo que es sin la inconmensurable obra de Cartier
Bresson y toda la Agencia Magnum al completo, sin los paisajes de Ansel Adams, sin los
estudios foto-etnográficos de Edward S. Curtis, la fotografía de calle de Atget, o la ingente
obra de Hine, Kertész, Stieglitz, Abbott, Saudek, Evans, Capa, Penn, Klein, Masats, Koudelka,
Avedon o Salgado, por citar a unos cuantos, todos ellos nos han legado obras que por la
importancia que han cobrado se han convertido en fondo de nuestra memoria personal (o
al contrario) sin haberlas realizado, sus fotografías nos han permitido tener una visión de un
mundo, en la mayoría de los casos totalmente ajeno al nuestro, pero que han terminado
perteneciendo a la esencia de cada uno de nosotros ya que su mirada estaba dirigida a
conservar en una imagen aquello que les preocupaba, les motivaba o les inquietaba y que a
la postre coincide y ha coincidido con las inquietudes de muchos de nosotros.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Con la llegada de los sensores digitales y su desarrollo en el siglo XXI, ha cambiado todo.
Si bien es cierto que la fotografía loablemente se ha “democratizado” en el sentido de que
el número de fotógrafos se ha multiplicado exponencialmente, no es menos cierto que esto
mismo ha hecho posible que los millones de fotografías que se realizan en un solo segundo
en el mundo entero, nos producen un inmenso estrés con solo pensar en la imposibilidad
material de discernir cuáles de todas ellas pertenecerán a la memoria colectiva de nuestros
descendientes, de ahí la pugna por prevalecer en las nuevas galerías de exhibición que son
las redes en las que muchos hemos caído y que nos ha llevado a una saturación inimaginable
hace tan solo un par de décadas.
Esta saciedad ha banalizado, en gran medida y salvo honrosas excepciones, el hecho
fotográfico con millones de imágenes en las que los individuos quieren pertenecer al futuro
inmediato delante de un teléfono -con bastón o sin él- pero ese futuro tiene las alas muy
cortas, tanto que ni siquiera se le puede llamar futuro, más bien ni siquiera requiere que esa
imagen tenga un espectador dentro unos pocas semanas, o incluso días u horas.
Cuando una pareja se hace un autorretrato -ahora lo llaman “selfie”- lo único que quiere
es que, como mucho dure unas horas en las redes de internet, las suficientes para constatar
que se estuvo allí, después de eso, el vacío y el olvido, un vacío solo rellenable con otro
tropel de imágenes parecidas o demasiado iguales a las anteriores y esto no ocurre solo con
los autorretratos, también pasa con los paisajes, ya sean urbanos o abiertos, con lo objetual
-fotos de comida por ejemplo- o cualquier otro campo de la fotografía que solo vaya en pos
de un consumo exacerbado y sin medida.
Por tanto, la memoria fotográfica está cambiando en este siglo cargado de interrogantes
políticos, sociales, artísticos… tanto, que corremos un serio peligro de que las imágenes que
estamos tomando no lleguen ni siquiera a ser, y menos pertenecer a ningún acervo cultural,
ni siquiera llegarán a imitar lejanamente a aquella foto de la escuela que mi madre ha besado
tantas veces recordando cuando yo era un niño y ella una joven madre y, por supuesto,
tampoco a aquella estrella pintada de colores que tuvo la virtud de comportarse como una
imagen (de la imaginación había salido) capaz de recrear toda una mañana de escuela en la
triste posguerra española.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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La influencia de la fotografía, desde su aparición en la primera mitad del Siglo XIX, ha sido
decisiva para la percepción y comprensión del paisaje que tenemos en la actualidad.
En sus primeras décadas, la práctica fotográfica discurre por un pequeño número de
temas siendo uno de los más extendidos la fotografía del paisaje, lo que ha tenido una
influencia decisiva para configurar el territorio como paisaje natural o cultural en el imaginario
colectivo.
Las primeras misiones fotográficas acercaron a las sociedades industrial y burguesas
el conocimiento de territorios lejanos, fueron verdaderos viajes exploratorios, en ellas se
documentaban todas las tipologías del territorio, grandes espacios naturales y salvajes,
lugares arqueológicos, sitios pintorescos, ciudades y, también desde sus inicios, espacios de
interés científico relacionados con la geología y el estudio de la naturaleza y sus recursos.
No obstante, es en la segunda mitad del pasado siglo cuando las misiones fotográficas se
sitúan en la esfera de la producción artística, lo que no hace sino aumentar la complejidad de
los términos paisaje y territorio ante la amplitud que plantea la practica fotográfica y uniendo
a los planteamientos tradicionales temáticas urbanas, industriales y la exploración de los “no
lugares”, entendidos no solo como el concepto inicial acuñado por Marc Augé, si no como
espacios residuales característicos de las sociedades contemporáneas, que son verdaderos
indicadores de la voracidad con que se consumen y amortizan territorios y recursos de todo
tipo.
Como fotógrafo, lo que me interesa es el paisaje en el que la intervención humana
transforma el espacio natural. Es decir, mi interés se centra en el paisaje cultural1, en cómo
las sociedades han modificado su entorno natural en función de sus necesidades y de la
tecnología que han sido capaces de aplicar a la superficie terrestre, estos cambios se perciben
como modificaciones de un espacio que se transforma en un palimpsesto en el que se
superponen espacios naturales, agrícolas o ganaderos, vías de comunicación, construcciones,
ruinas, etc.
Fotografiar es un acto consciente de fragmentación. La elección del encuadre implica una
inclusión y una exclusión y reincide en la misma actitud de quien roturó una porción de bosque,
sustituyendo arbolado por pastos o cultivos. Es la misma razón por la que construimos, para
protegernos de la intemperie, del enemigo o, en muchos casos, para aislarnos de nuestros
propios miedos. Finalmente generamos vías de comunicación que son nexos de unión entre
arquitecturas, espacios productivos y espacios naturales, líneas que a su vez re-fragmentan o
re-unen el territorio en parcelas incomprensibles y anacrónicas.
La utilización consciente del encuadre, que es una condición lógica impuesta por los
medios técnicos, se ignora en la continua avalancha de fotografías que en la actualidad se
producen y que no se pueden considerar más que una saturación visual, hasta el punto de
impedir la observación, el análisis y el disfrute de nuestro entorno. Ya prácticamente nadie
mira el espacio que le rodea, solo lo fotografía, y si en algún momento trata de recordar las
experiencias vividas, estas estarán basadas en las tomas acumuladas en nuestros dispositivos
electrónicos y no en la experiencia del lugar.
1 - La cultura es el agente, y el área natural es el medio. El paisaje cultural es el resultado de esa transformación,
SAUER, C. O., The Morphology of Landscape. University of California. Publications in geography 1925
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Por el contrario, el uso consciente del encuadre es lo que diferencia e incide en el concepto
“Imagen y cultura del territorio” ya que la práctica fotográfica consciente genera un lenguaje
de analogías y relaciones que es capaz de estructurar la experiencia del lugar en torno a
valores estéticos que sí son capaces de transmitir al observador de la imagen un “estado de la
cuestión” o la “experiencia subjetiva del lugar”. Estos dos elementos definen la interpretación
del espacio y nos alejan de su interpretación objetiva.
Por último, está cuestión de la generalización de la fotografía aérea, (ya en 1.858 Nadar
registró una marca para realizar fotografías desde globos aerostáticos). Esta práctica ha sido
utilizada desde los inicios de la invención de la fotografía como herramienta fundamental
de estudio por parte de los geógrafos. También en la segunda mitad del Siglo XX empezó a
formar parte del discurso artístico de los fotógrafos.
“Si bien es cierto que la vista desde el avión puede inscribirse en la tradición
de las preocupaciones de la geografía, no en menos cierto que el avión, en la
conciencia de los años 1950 y 1960, produce transformaciones considerables
en la relación que van a mantener los geógrafos con la superficie de la tierra. Los
testimonios más diversos coinciden en este punto: el avión es una conmoción,
una revolución de la sensibilidad espacial y de los objetos geográficos.”2
A estos medios se une el acceso a las imágenes de satélite que permite Google Earth y que
muestran la atracción del gran público por el conocimiento de las estructuras que conforman
la superficie terrestre: el espacio humanizado en que se ha convertido la mayor parte del
territorio. Es a través de la visión objetiva del ojo del satélite transmutado en nuestro ojo
humano donde percibimos las modificaciones que las sucesivas culturas han ido introduciendo
en el medio natural hasta conformar el paisaje cultural con el que nos identificamos o, por
el contrario, que nos produce un extrañamiento en función de las distintas culturas que han
intervenido en su génesis y que, no obstante, nos hace tomar conciencia de nuestra fragilidad
ante una naturaleza en la que solo nos es posible sobrevivir gracias a las modificaciones a las
que ha sido sometida.
2 - Geografías aéreas. Jean-Marc Besse pag. 350, texto publicado en La geografía del territorio, Alex S. MacLean,
Gustavo Gili, Barcelona 2003.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Num passado ainda recente, um olhar local, de um qualquer recanto comum e familiar
aos nossos olhos, por vezes imortalizado com recurso a uma câmera fotográfica, que após
uma cuidada medição das condições de luz, era calculada a abertura da lente e o tempo de
exposição, para de seguida premir o botão disparador. O obturador da câmera abria para
deixar passar a luz que vinha da lente, esta luz incidia na película e tínhamos o nosso olhar local
imortalizado. Mas para esse olhar local se transformar numa imagem, ainda o caminho ia a
meio. Pois a película já exposta, tinha de ser revelada com recurso a alguns químicos, como o
revelador, o banho de paragem e um fixador, este processo em grande parte era feito na total
escuridão, para que a película não absorvesse mais luz e o nosso olhar local ficasse perdido.
Na posse da nossa imagem negativa, passávamos para a etapa seguinte, a ampliação, nesta
etapa a nossa imagem negativa guardada no filme já revelado, transformava-se na imagem
positiva ou seja a imagem final acabada, estampada numa folha de papel, que retratava
o nosso olhar local, este processo contava com um ampliador, papel sensível e de novo o
revelador, banho de paragem e fixador. Um processo demorado meticuloso e ao alcance de
poucos. Dificilmente essa imagem passava do nosso círculo de amigos ou familiares, acabava
guardada em um álbum, ou numa moldura numa qualquer parede, onde poucos olhares se
poderiam cruzar com ela. Estava apenas ao alcance de alguns, a possibilidade de fazer essa
imagem passar fronteiras e viajar pelos olhos do mundo.
Nos dias de hoje, tudo viaja a uma velocidade vertiginosa, o nosso olhar local, após
premir o disparador da nossa câmera fotográfica, pode ser de imediato partilhado numa
rede social, num blogue ou num site, no instante seguinte, pode estar em qualquer ponto
do mundo. A medição de luz da nossa câmera passou a ser feita de forma automática,
calculando os valores de abertura da lente e tempo de exposição de forma a obtermos um
imagem bem exposta no instante em que premimos o botão disparador. A película deu lugar
a um sensor digital que envia a nossa imagem para o processador da câmera fotográfica e a
armazena num cartão de memória. Muitas das câmeras fotográficas de hoje são detentoras
de tecnologias de conexão avançadas, que permitem o envio imediato das imagens para
um endereço especifico de email, um blogue ou uma rede social. Entre o premir o botão
disparador da nossa câmera e transformar o nosso olhar local numa imagem global temos
apenas um pequeno instante, quase imediato.
Nos últimos tempos, todos acabamos por sair de casa com uma ferramenta poderosíssima
que tem a capacidade de transformar um olhar local numa imagem global, esta ferramenta
anda sempre por perto, sempre pronta a captar esse olhar, de forma simples e rápida, com
uma capacidade fotográfica cada vez mais próxima da câmera fotográfica que nem sempre
nos acompanha e com uma ligação ao mundo por várias vias. Cabe-nos a nós decidir quais
dos nossos olhares queremos partilhar com o mundo, o poder de uma imagem partilhada
com o mundo pode ter as mais variadas repercussões, tudo depende dos olhos de quem a vê,
ter este poder todo na palma da mão no nosso smartphone está neste momento ao alcance
de qualquer um.
Um olhar local de algo familiar e comum ao nosso olhar, do outro lado do mundo pode
ser interpretado como uma imagem exótica, rara e que desperta curiosidade aos olhos de
quem a vê.
Vivemos na era do imediatismo, um olhar local, no instante seguinte, transforma-se numa
imagem global.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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A fotografia como
instrumento/complemento de estudo,
a imaginar o território
Jorge Pena
Fotógrafo
destes espaços. Uma fotografia na natureza será sempre mais eloquente, pode descrever
as caraterísticas intrínsecas a um determinado local, no qual a geografia e a biodiversidade
se cruzam, quando a presença humana está presente, sob as mais distintas formas ou
práticas, este registo mostra-nos como estamos intimamente ligados a todos os espaços
que representam de alguma forma a nossa vida em algum momento. Numa fotografia de
uma cidade existe também uma mensagem, por vezes até critica de como os espaços que
nos rodeiam no dia-a-dia podem estar melhor bem concebidos ou não, ou se são úteis
ou esteticamente bem implementados, ou mesmo se lhes falta alguma coisa, pois fica um
espaço por preencher na imagem, pode a fotografia servir para comunicarmos todos estes
aspetos.
Desde sempre compreender todos estes espaços foi uma preocupação, objeto de estudo,
que nos leva a ter uma melhor compreensão da nossa existência, e a descobrir qual a melhor
forma de nos ligarmos ao meio que nos rodeia, seja natural ou urbano, ou se for esse o
objetivo, a encontrar a melhor forma de os conciliar.
Imaginar o Território | Rumores do Mundo: memória territorial, cultura visual
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Como paso previo al desarrollo de este modesto texto, nos referiremos a los tres conceptos
que, pivotando sobre la noción de territorio, dan sustento al título. La estética de la imagen que
proyectamos de un determinado territorio podría ser una primera perspectiva, es decir, cómo
es usada la representación del propio territorio para construir identidad, interior y exterior,
del mismo. En una segunda mirada, muy diferente de la anterior, -la estética del territorio
y su representación-, analizaríamos los valores estéticos que particularizan un determinado
territorio, exponiendo sus potencialidades en la imagen que lo representa. Ambas resultan
interesantes y, por tanto, dignas de ser tenidas en cuenta para plantear elementos para el
debate “imagen, territorio y su estética”.
Entendemos por territorio un lugar antropológico, es decir, una realidad física cargada
de sentidos simbólicos, valores culturales, de identidad y memoria, vinculados a un grupo
humano que lo habita, lo utiliza y le da forma. Un espacio natural convertido a lo largo del
tiempo en espacio social y un espacio vivido. “En las últimas décadas en el medio académico
el concepto de territorio ha desbordado los límites fronterizos del pensamiento geográfico,
para adquirir cada vez más una mayor relevancia al interior de otras disciplinas de las ciencias
sociales, tal como ha venido aconteciendo en la sociología, la antropología o la economía”1.
Es en estos nuevos enfoques disciplinarios e interdisciplinarios de las ciencias sociales el
marco en el que la imagen, como documento, amplía su presencia junto a otros registros
ya consolidados y de uso reconocido en el campo de la investigación. Ahora bien, este es
el estadio en el que es categorizada la imagen, en base a la especificidad de los lenguajes
usados en su concreción y su estética, evaluando sus potenciales cualidades como documento
al servicio de las diferentes disciplinas.
Vivimos en un mundo dominado por las imágenes. Hoy nadie cuestiona la importancia
del lenguaje visual como un signo distintivo de nuestra época, capaz, como ningún otro,
de transmisión de ideas e información con una avasalladora penetración social. En este
sentido, la imagen es un elemento, esencial, de construcción, transmisión y asentamiento de
valores antropológicos adscritos a los territorios. Entiendo que la imagen, históricamente, ha
favorecido la sensibilización hacia el paisaje y, por extensión hacia el territorio. Es la mirada
humana sobre un determinado espacio geográfico, propia o foránea, lo que configura el
concepto de paisaje que lo particulariza y lo proyecta con su singularidad. Un acercamiento
al concepto de “paisaje” es el trabajo presentado por Javier Maderuelo (2005) quien señala
que: “El concepto de paisaje debe mucho tanto a los geógrafos que consiguieron representar
el territorio en un mapa a modo de fiel reflejo de la realidad, como al subjetivismo de los
artistas que consiguieron metamorfosear esa realidad física en belleza y sensualidad. Unos
y otros lograron ofrecer visiones paisajísticas del mundo antes de que las personas en su
cotidianeidad descubrieran el paisaje en la contemplación del territorio, de tal forma que la
representación hace emerger el objeto. Esto implica que no tendríamos conciencia paisajística
sin los mapas y sin los cuadros que nos han mostrado muchas de las cualidades que posee el
territorio como paisaje.”2
Se puede decir, sin riesgo a equivocarnos, que el artista con su mirada sobre el territorio
se ha comportado como un mediador entre la naturaleza y la sociedad. De esta manera,
la apreciación de los valores estéticos del territorio ha sido, a lo largo de la historia,
condicionada por las representaciones que del mismo han transmitido los artistas con sus
producciones simbólicas. Y, sucede que, “cada momento histórico presencia el nacimiento
de unos particulares modos de expresión artística, que corresponden al carácter político,
a las maneras de pensar y a los gustos de la época. El gusto no es una manifestación
inexplicable de la naturaleza humana, sino que se forma en función de unas condiciones de
vida muy definidas que caracterizan la estructura social en cada época de su evolución”3.
Los dos últimos siglos han estado marcados por la implantación de la imagen derivada de
la civilización tecnológica, y las últimas décadas por la hiperrepresentación de la realidad
gracias a la aparición de la imagen digital, con todas las derivadas asociadas a la creación de
hiperrealidades más propias de la pintura que de la fotografía. Ahondando en esta misma
perspectiva debemos comprender que: “nuestra mirada, aunque la creamos pobre, es rica y
está saturada de una profusión de modelos, latentes, arraigados y, por tanto, insospechados:
pictóricos, literarios, cinematográficos, televisivos, publicitarios, etc., que actúan en silencio
para, en cada momento, modelar nuestra experiencia, perceptiva o no“4. Todos ellos derivados
del posicionamiento conceptual de los artistas, que entienden la estética que proyectan
en sus obras como la clave de los valores que perciben en el territorio y, que usan como
referencia para sus creaciones. El artista, como creador reconocido socialmente de imágenes
estéticas, es, indirectamente, un creador de opinión. Este creador integrante de una minoría
especializada cuyas aportaciones son respetadas, ejerce una importante influencia sobre
la opinión pública por diversas razones, como el dominio de recursos retóricos, la empatía
estética con su público y su autoridad intelectual.
A modo de contraste, aquí es donde emerge un importante riesgo asociado al poder de
la imagen cuando esta prioriza la envoltura sobre el contenido, dando pie a la aparición de
categorías de representación reducidas a lo trivial. Imágenes desligadas del lugar, en las que
se olvida que el territorio es una realidad compleja integrada por infinidad de componentes
que configuran su particular impronta, que no pueden ser reducidos a contenido visual “sin
más”. Si nos referimos a la relación de la imagen al territorio, su alejamiento con el mismo
la proyecta al campo de la recreación, al de la hiperrealidad. En suma, la imagen no se debe
desligar del territorio del que parte, puesto que, si no es posible crear el lugar, la imagen no
es nada sin su elemento referencial del que transmite su existencia.
El paisaje como elemento cultural del territorio, evidentemente dinámico, nos obliga
a activar una serie de acciones en conexión con su representación que nos posibilite su
comprensión. Aquí toma un especial protagonismo la imagen como documento para el estudio
de la secuencia evolutiva del paisaje, para inventariar con detalle los valores paisajísticos del
territorio, además de poder describir las dinámicas naturales y sociales que han intervenido
en su evolución y transformación. Las imágenes que conservamos adscritas a un determinado
enclave, registradas por multitud de agentes en diferentes periodos, articulan verdaderos
archivos de la memoria, y nos muestran, cómo muchos de esos atributos que particularizan
los valores de un espacio vivido y modelado por el hombre se manifiestan con continuidad
en el tiempo, evolucionan de forma lenta, o se transforman súbitamente en periodos de
cambio. En esta mirada estética sobre el territorio han aparecido en las últimas décadas
nuevos intérpretes, como residentes forasteros, viajeros y turistas, que ponen en valor, con
su mirada culturalmente ajena, aspectos que pudieran haber pasado desapercibidos para
autóctonos. Esta acumulación de representaciones va autografiando el relato de la propia
memoria del territorio, en las que pueden observarse la dramática tensión entre lo efímero y
lo permanente.
La consolidación de esta nueva mirada sobre el territorio protagonizada por el turismo,
fruto de la globalización, va modelando y recreando el mismo, y finalmente, altera su función
así como su estética, porque sucede que: “este tipo de percepción se decanta por una visión
del paisaje como mercancía cultural y como objeto de consumo donde la forma de ver, mirar,
admirar, pasa por el canon estético en boga introducido por la publicidad, los medios de
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Território e imagem:
lugares, paisagens, imagens
104
José Manuel Simões
105
para si um dos principais instrumentos de trabalho do geógrafo, sendo através deste órgão
sensorial que se impregnavam no corpo e na mente as imagens e experienciações do
território. Era no mundo rural, tantas vezes emulsionado na película da sua fiel Leica, que se
sente a realização do mestre como fotógrafo, buscando permanentemente, em cada canto
recôndito, a maturação civilizacional e a harmonização de usos e costumes com o Meio”. O
espólio fotográfico de Orlando Ribeiro, desde sempre depositado na Fototeca do Centro de
Estudos Geográficos (que ele próprio fundou em 1943), é constituído por cerca de 11 mil
fotografias.
Figura1: Fotos de Orlando Ribeiro. Auto-retrato (1937) e Piódão (1954). Colecção do Centro Estudos Geográficos,
IGOT-ULisboa.
Em Portugal, desde cedo muitos fotógrafos também valorizaram na sua obra os olhares
sobre os locais e suas gentes. De entre os pioneiros, destaquem-se designadamente:
I) - Vicente Gomes da Silva (1827-1906) – nascido na Madeira, foi fotógrafo da Casa Real
Portuguesa e fundador, no Funchal, da Photographia Vicente, o mais antigo estúdio
de fotografia existente em Portugal (desde 1982 tornado casa-museu, com um acervo
de aproximadamente 800 mil negativos);
II) - Karl Emil Biel (1838 –1915), negociante, editor e fotógrafo alemão, estabelecido no
Porto, considerado um dos pioneiros da fotografia e da fototipia em Portugal. Fundou
a Casa Biel de Fotografia, foi fotógrafo da Casa Real Portuguesa e dedicou-se também
à fotografia paisagística e das grandes obras de engenharia (construção do caminho
de ferro e dos portos de Leixões e Matosinhos). Como corolário das suas frequentes
viagens pelo país, editou a obra A Arte e a Natureza em Portugal (8 volumes)
III) - Carlos Relvas (1838-1894) – nascido em Lisboa, frequentou os principais ateliers foto-
gráficos da Europa, tendo adquirido os melhores aparelhos de fotografia para criar o
seu próprio atelier, construído junto à sua casa da Golegã. Além de grande retratista,
tendo fotografado no seu atelier toda a sociedade portuguesa, de aristocratas
a camponeses e mendigos, também fotografou paisagens e monumentos, da
Golegã, dos vales do Tejo e do Douro, das cidades de Santarém, Lisboa e Porto,
e das viagens pela Europa, a que acresce a fotografia de cavalos e arte equestre.
IV) - Domingos Alvão (1872-1946) – nascido no Porto, foi fotógrafo oficial de grandes
empresas e instituições e do próprio Estado, tendo sido a sua obra editada em diversas
publicações da época como a Illustração Portugueza e a Gazeta das Aldeias. Em 1934
o Secretariado da Propaganda Nacional publica a obra Portugal, onde se reúne muito
do seu trabalho;
V) - Joshua Benoliel (1873-1932) – nascido em Lisboa, é considerado o pai do fotojor-
nalismo português, tendo colaborado com o jornal O Século, e diversas revistas
portuguesas e estrangeiras como Illustração Portugueza; O Occidente, Panorama,
L’Illustration e o ABC. Na publicação Arquivo Gráfico da Vida Portuguesa: 1903–1918,
surgida anos trinta, foram reunidos postumamente muitos trabalhos fotográficos da
sua autoria.
área da Costa Vicentina, tendo publicado diversos livros e realizado numerosas exposições).
Referência especial para Duarte Belo (1968-…), muito provavelmente o fotógrafo
português que detém um maior acervo de fotografias sobre o país. O seu trabalho é diverso,
com grande aproximação à geografia e aos geógrafos, incidindo frequentemente sobre “a
paisagem e a arquitectura, num levantamento fotográfico documental sistemático que evolui
no sentido da descoberta progressiva do país, desde a natureza geológica e coberto vegetal
das paisagens à imensa complexidade das marcas deixadas no solo pelos gestos humanos
que permanecem na terra ao longo de milénios e definem uma identidade”. Tem diversos
livros publicados, sendo de destacar Portugal - O Sabor da Terra (1996-1997; obra em 14
volumes em co-autoria com José Mattoso e com Suzanne Daveau), e Portugal Património
(2007-2008; obra em 10 volumes, em co-autoria com Álvaro Duarte de Almeida); e Portugal
- Luz e Sombra – O País Depois de Orlando Ribeiro (2012).
Figura 4: Capas de livros sobre Portugal com fotografias de Duarte Belo (1997 e 2012).
Da tradicional fotografia aérea à imagem via satélite, e daqui ao Google Earth, numa
viagem vertiginosa pelas imagens a diversas escalas. Da aproximação à Terra, à Europa
Ocidental, à Península Ibérica, a Portugal, à região de Lisboa, à cidade de Lisboa, e, por fim, à
Torre de Belém, símbolo e orgulho de uma época, de um país e um povo que protagonizaram
o primeiro processo de mundialização.
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
112
Território em mudança
É poder olhar e comparar os lugares em momentos diferentes. Da Benidorm de 1950,
lugar esquecido à beira mar, à Benidorm de 2016, pejada de arranha céus e veraneantes. Da
Lisboa Oriental de 1990, lugar de obsolescências e depósitos de inutilidades, à modernidade
urbanística e cultural da Expo 98 e do Parque das Nações de 2016. Da Banda Aceh (Sumatra,
Indonésia) de 2003 à Banda Aceh de 2004 logo após a devastação da cidade pelo tsunami.
Do projecto do fotógrafo Gabor Ederlyl em Barceloneta, fotografando exactamente o mesmo
recanto de um espaço público da cidade em diferentes horas do dia, ao time-lapse junto ao
elevador de Santa Justa em Lisboa.
Informação geográfica
Desde há longas décadas que o uso da fotografia tornou-se instrumental para aquisição
de informação no estudo dos territórios, sobretudo do ponto de vista das análises sincrónicas
e estáticas, mas também do ponto de vista do estudo de transformações quando se torna
possível comparar fotos do mesmo local ou ângulo de visão em tempos diferentes. Da leitura
estereoscópica da tradicional fotografia aérea à fotointerpretação de imagens de satélite com
sensoriamento espectral e à incorporação em sistemas de informação geográfica de todo o
conjunto de informação obtido a partir da leitura dos registos fotográficos.
4. Epílogo
Busquei no meu baú de recordações a minha primeira viagem, e depois a segunda a
terceira e, tantas outras... Dei-me conta, através do meu acervo de fotografias, de como
foram mudando as minhas motivações fotográficas e a minha apreensão dos lugares e das
pessoas!
Na minha primeira grande viagem - Paris (1972), incessantemente pedia que me
tirassem fotos em diversas posições em frente aos monumentos, sobretudo daqueles que
há muito conhecera nos livros e que agora ia visitando: a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, a
Catedral de Notre-Dame, a Basílica do Sacré Coeur, o Museu do Louvre, L´Opera, o Castelo
de Fontainebleau, o Palácio de Versalhes,… O resultado?! Fotos de José Manuel Simões
adornando os monumentos!
Volvidos dez anos, de regresso a Paris (1982), os itinerários pela cidade e deambulações
pelos monumentos e museus repetiram-se, mas desta feita o objecto fotográfico era
apenas o dos monumentos. Podia ter comprado postais, mas aquelas fotos que eu tirava
obstinadamente eram mais que uma recordação, eram uma forma de me apropriar também
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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dos próprios monumentos, “tinha pegado na máquina e agora trazia-os para casa”!
Nos anos noventa, o número de viagens nacionais e internacionais ampliou-se e
diversificou-se. Desta feita, o desejo compulsório de fotografar monumentos esfumara-se. A
grande motivação radicava agora na sedução dos lugares e nos seus grandes planos: Veneza
e a azáfama do Grande Canal; Atenas e a imensa massa de casario espraiando-se aos pés da
Acrópole; Nova Iorque e as “espetadas” de enormes torres apontando ao céu; Ceuta com o
emaranhado de ruas e “encavalitamento” de casas pejadas de antenas parabólicas,…
Por fim, nas viagens mais recentes, se bem que os grandes planos dos lugares não se
tenham varrido da minha prática fotográfica, as pessoas, suas vivências e singularidades,
ganharam centralidade no meu olhar: o dentista da praça Djemaa el Fna em Marraquesh,
e sua banca de milhares de dentes humanos prontos a ser reutilizados; o reboliço da ruas
estreitas de Katmandu, com pessoas acotovelando-se e cruzando-se em todas as direcções
e em todas as horas, e por entre elas, “sherpas” apressados com enormes carregos às costa
e sadhus maquilhados a rigor vagarosos e sorridentes; os boticários de Jerusalém anichados
em pequenas lojas, por de trás de amontoados de especiarias e mézinhas donde irradiam
intensamente cores e odores; as vendedeiras dos mercados de Bombaim, vestidas com os seus
tradicionais saharis e sentadas em caixas de madeira, por entre montes de frutas e legumes,
num inebriado de cores e sabores; as bicicletas e motoretas de Hanói com cargas monstruosas
(mobílias, frigoríficos, e tudo o mais que for necessário), deslizando com destreza por entre
o tráfego ininterrupto e agressivo; … E, por fim, o violonista romeno que eu fotografara em
Atenas nas proximidades da Acrópole e que passados 4 anos volto a encontrar e a fotografar
na nossa pequena vila de Óbidos!
Um dia destes, volto a pegar na máquina e levarei de novo o território para casa!
Figura 6: Lugares diferentes, o mesmo violinista! Atenas (2010) e Óbidos (2014). Fotos de José Manuel Simões
Referências Bibliográficas
BATCHEN, Geoffrey (ed.) (199) - Burning with desire: the conception of photography, London: The MIT Press.
BUNNELL, Peter C. (2009) - Inside the photograph: writings on twentieth-century photography, New York: Aperture.
GASPAR, Mariana (2013) – retomar percursos que o tempo Interrompeu: uma leitura dos Encontros de Fotografia
de Coimbra. Dissertação de Mestrado em Ciências da Comunicação, Lisboa: UNL-FCHS.
HIRSCH, Robert (199) - Seizing the Light: A History of Photography, Nova Iorque: McGraw-Hill.
MULLIGAN, Therese (1982) - The History of Photography: From 1839 to the Present, Londres: Bulfinch Press.
ROSENBLUM, Naomi (2003) - World History of Photography (4ª ed.), Nova Iorque: Abbeville Press.
SENA, António (1998) - História da imagem fotográfica em Portugal, 1839-1997, Porto: Porto Editora.
Duarte Belo
115
Queluz, 2003
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
116
São Gabriel, Castelo Melhor, Vila Nova de Foz Côa, 1995 Centum Cellas, Belmonte 1996
Estrela, um dos espaços de eleição de Orlando Ribeiro. O livro e a exposição viriam a constituir
uma homenagem ao grande geógrafo, falecido pouco tempo antes.
Casa de Orlando Ribeiro, Vale de Lobos, Sintra, 1997 Casa de Orlando Ribeiro, Vale de Lobos, Sintra, 1997
Pausa
Desde as primeiras viagens, com fotografias captadas ainda sem um propósito definido,
que foi tomando forma um arquivo fotográfico em progressivo crescendo. Com o passar do
tempo, nasceu a necessidade de se criarem formas de referenciação das fotografias de modo
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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a não haver perda da identificação dos locais exatos onde tinham sido captadas. Entretanto,
do registo analógico, em suporte película, evoluiu-se para os suportes digitais.
Atualmente, é um acervo que não se limita a um repositório de imagens, correspondendo
cada vez mais a uma fonte viva de novos projetos e de novas reflexões sobre o espaço português,
sobre as formas de construir, de edificar uma cultura comum, sobre o aprofundamento do
próprio modo de expressão pela fotografia. Consequentemente, este arquivo, para além de
repositório de imagens é, sobretudo, um elemento chave de diálogo com o presente, com
novas formas de mostrar imagens, de as expor, de as editar em diferentes suportes, de, a
partir delas, escrever, expor o pensamento que é por elas motivado. Assume-se o arquivo
fotográfico como uma complexa teia de relações entre imagens de lugares, em que a
organização dos seus elementos potencia, continuadamente, perspetivas renovadas sobre os
locais representados, o que permite descobrir, progressivamente, novos pontos de interesse e
a busca de modos de expressão para os seus possíveis significados e interpretações.
2007 - Capelinhos
Pela primeira vez o detalhe aprofundado sobre as formações da Terra, do chão que
pisamos. Leituras geológicas e um crescente fascínio pela origem e evolução de um planeta
que viria a acolher uma extraordinária diversidade de formas de vida. Da erupção do
vulcão dos Capelinhos resultou um novo pedaço de solo. Sendo uma erupção com origem
no mar, subaquática, que posteriormente se ligou à ilha do Faial, continuando como um
vulcão terrestre, o resultado foi um aumento de área da ilha-mãe. O vulcão dos Capelinhos
mostrou, não apenas à comunidade científica, como se formaram as ilhas açorianas. Nos
anos posteriores, seguiram-se os processos erosivos, provocados pelo vento, pela chuva, mas,
sobretudo, pelo mar, que tiveram como consequência a “devolução” ao oceano de parte
muito significativa das novas áreas. Ficou, no entanto, ali exposta, uma imagem viva da
“fábrica da paisagem”.
Vulcão dos Capelinhos, Horta, Faial, 2007 Pico Verde, Horta, Faial, 2007
Chã das Caldeiras, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 2014 Chã das Caldeiras, Ilha do Fogo, Cabo Verde, 2014
2015 - Inquéritos
Inquéritos à fotografia e ao território: paisagem e povoamento foi uma exposição
coletiva comissariada por Nuno Faria no Centro Internacional de Artes José de Guimarães,
em Guimarães. O objetivo foi mostrar Portugal através da fotografia desde o século XIX
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
120
até à atualidade. A exposição partia da simbólica data de 1881, ano em que se realizou
uma expedição científica à Serra da Estrela organizada pela Sociedade Martins Sarmento.
Esta consistiu numa viagem destinada a aprofundar o conhecimento da última região de
território português mal explorada. Solos de altitude, de lendas e de mitos. Para integrar o
coletivo, foram propostos dois painéis de fotografias que, de algum modo, representam uma
atitude perante o espaço português e a disciplina de fotografia associada ao levantamento
das paisagens. Um dos painéis, composto por 42 fotografias, foi, justamente, sobre recolhas
fotográficas realizadas na Serra da Estrela ao longo de 26 anos, nomeadamente de 1990 a
2015. Um segundo conjunto de imagens destacou metodologias do trabalho fotográfico de
campo, estúdio e edição, a par de uma leitura possível do que pode ser a representação de
um país pela fotografia, através de lugares de índole muito diversa.
Campo
É no campo que este trabalho ganha sentido, forma e razão de existir. É pelo registo
desejado de “toda a terra” e das formas de a expressar por via da fotografia que podemos
propor um “mapa”, a representação de um espaço que constantemente nos escapa à
tentativa de o captar/registar/fixar. Reinventamos os sítios, os lugares, os espaços de vivência.
Para esse mapa sempre em projeto, articulamos fotografias, textos, traços, diferentes formas
de representação, códigos. São aproximações e afastamentos à Geografia, à objetividade
de um conhecimento que se busca, sem deixar de sentir a sedução das margens, dos novos
trilhos sobre territórios extensos, não explorados, sem temer pisar solos não cartografados,
desenhos possíveis de uma vida humana.
Este trabalho é como um somatório de mapas, que, no seu conjunto, definem uma
geografia particular. Mesmo quando representamos espaços próximos e distantes, há o
desígnio do encontro da geografia de um país, da sua caracterização pela imagem fotográfica.
O registo das paisagens, por ser concretizado ao longo do tempo, acaba, também, por ser
a fixação do próprio tempo e das alterações nos lugares decorrentes das ações humanas,
assim como da natureza em si, dos seus elementos/nos seus processos erosivos. Embora se
estabeleça como objetivo o registo sistemático de um espaço determinado, desenvolve-se/
constrói-se, inevitavelmente, uma geografia pessoal. A procura de lugares de “eleição” ou de
lugares síntese que, de algum modo, constituam o resumo do que poderá ser Portugal. Este
é um dos desafios maiores deste trabalho.
Num caminho de liberdade, querem-se ultrapassar limites. Essas linhas virtuais são os
mapas de um atlas. Mas esse atlas não é o somatório de mapas que se ligam através do
recorte de fronteiras, é um mundo imaginário onde se olha a identidade de uma cultura.
Essa cultura é composta por fragmentos desconexos sujeitos ao tempo que tudo altera à
sua passagem. E a “identidade”, pessoal e coletiva, ganha contornos diferentes ao longo do
tempo e variações em diferentes regiões ou mesmo áreas bem mais restritas. Este é, assim,
um trabalho em permanente construção/devir, inacabado. Nas linhas projetadas de um
mapa, na demanda de um atlas, desenhamos o sentido possível de uma existência humana.
Procuramos o espaço, encontramos o tempo.
Geopatrimónio e imagem
Lúcio Cunha
CEGOT - Universidade de Coimbra
Um dos autores de livros de viagens que mais aprecio no nosso país, Gonçalo Cadilhe,
escreve a propósito das fotografias com que ilustra os seus livros: “As minhas fotografias
procuravam armazenar momentos cuja qualidade visual fosse tão metafísica que permitisse
mantê-los congelados no tempo por uma lente para serem reproduzíveis num tempo qualquer
do futuro. Aqueles lugares talvez nunca fossem belos, mas no instante em que eu estivera
lá, neles, tinham encenado o melhor de si próprios.” E, conclui sobre as imagens dos lugares
que vê, vive e sente em cada uma das suas viagens: “O que me interessava fotografar era a
minha própria felicidade, feita de luz e pureza sobre a paisagem. Cada fotografia minha era
um lugar dentro de mim”1.
Embora as formas de relevo e outros elementos do meio natural abiótico desde sempre
tenham sido valorizadas pelas comunidades humanas numa perspectiva social e cultural,
apenas nos finais do século XX os estudos sobre a importância da geodiversidade, do
geopatrimónio, da geoconservação e do geoturismo se desenvolvem e procuram os dados
científicos que suportam o seu conhecimento e valorização, que justificam o seu significado
ecológico, social e cultural e que proporcionam a sua divulgação e os mecanismos de
conservação adequados.
Ao abarcar todo o conjunto de elementos naturais abióticos existentes à superfície da
Terra, os conceitos de geodiversidade, mais amplo, e o de geopatrimónio, mais restrito, por
incluir apenas aqueles elementos que, dadas as suas características científicas, pedagógicas,
estéticas ou culturais, merecem ser estudados, preservados, divulgados e valorizados,
desempenham um importante papel no estudo das Ciências da Terra (Geografia; Geologia)
e das Ciências Sociais (Arqueologia; Geografia e Ciência do Turismo).
Em todo o processo de inventariação, avaliação, conservação, divulgação, promoção e
valorização da geodiversidade e, mais especificamente do geopatrimónio, a imagem detém
um importante papel, independentemente do valor estético que tenham os objectos em
análise. Quando nos referimos ao património geológico (minerais, rochas, fósseis) é através
da imagem que se mostra a especialistas e leigos as características especiais, os brilhos, as
texturas e as estruturas que as apontam como elementos especiais, singulares e raros, ou seja
como elementos dignos de valor patrimonial. No que se refere ao património geomorfológico,
aquele que se prende com o valor das formas de relevo, vistas a diferentes escalas, a imagem
é ainda mais determinante. De facto, a imagem (do simples esboço ao desenho complexo
e à pintura artística; da fotografia mais simples ao filme mais elaborado), joga aqui o papel
de uma leitura social e culturalmente interpretada, que se junta à leitura mais fria e objectiva
das formas, das dimensões, das estruturas e dos complexos paisagísticos que as valorizam
científica e patrimonialmente.
Mais do que património natural, o geopatrimónio e, particularmente, o património dado
pelas formas de relevo, o património geomorfológico, constituem-se como verdadeiros
patrimónios culturais. Se, de facto, este tipo de património não é “construído” ou “criado”
pelos seres humanos como reflexo dos seus hábitos culturais em determinado momento
histórico, ele só tem verdadeiro sentido através da sua apreciação pelas comunidades
humanas, apreciação que quase nunca é feita de modo directo e imediatista, mas que
envolve, em regra, sentimentos estéticos colectivos que misturam tradições mais ou menos
1 - Gonçalo Cadilhe (2012) – Um lugar dentro de nós. Clube do Autor, SA, Lisboa, 223 p.
Imaginar o Território | Território e imagem: lugares paisagens, imagens
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ancestrais com elementos místicos e mesmo religiosos, mais ou menos observados e vividos
pelas populações.
Montanhas altas, volumosas e íngremes, planícies abertas, praias douradas ou cavernas
sem luz, mais do que formas de relevo, são percepcionadas através de experiências individuais
e colectivas que as tornam património de cada um e de todos. Por isso a imagem é aqui
fundamental, quer na divulgação, quer no próprio processo de patrimonialização ou, se
preferirmos, de interpretação científica, didática, estética e cultural. A montanha suaviza-se e
ganha cores de vida. A planície centra-se nas actividades humanas que proporciona ou no rio
que a constrói. A praia vê o dourado das areias brilhar mais contra o azul do céu ou o verde
do mar. A caverna ganha luz e mostra aos leigos, com medo do escuro e do desconhecido,
todo o brilho e esplendor das suas concreções.
A imagem, particularmente, a imagem fotográfica é, assim, um poderoso meio de
patrimonialização, o que cria ao fotógrafo uma responsabilidade acrescida. Não basta a
simples apreciação e interpretação estética das formas de relevo ou das feições geológicas.
As luzes, os contrastes, os ângulos, as aberturas, as distâncias focais servem um propósito,
que é o de elevar uma forma de relevo, um vestígio paleontológico ou um afloramento
rochoso com características particulares à categoria de geopatrimónio.
E o fotógrafo passa a ter preocupações de cientista, valorizando os aspectos mais raros,
mais singulares, mais expressivos ou cientificamente mais relevantes… Ou então o cientista,
geógrafo, geólogo ou arqueólogo, tem de se tornar fotógrafo, aprender a ser paciente como
ele, escolher ou esperar a luz certa, repetir ângulos, mudar de equipamento na busca da
fotografia certa, daquela cuja beleza seja capaz de suscitar as emoções suficientes à condição
patrimonial de um ente que, embora inanimado, marca condições de vida.
Estão hoje disponíveis, sob a forma física de livros, vídeos, coleções de “slides”, ou sob
a forma menos materializável de sítios ou páginas web, imagens que ilustram elementos
geopatrimoniais isolados, em conjunto ou integrados nos diferentes tipos de paisagens
culturais que justificam. Em áreas ambientalmente protegidas, em geoparques ou áreas de
lazer, estas imagens permitem dar a conhecer o geopatrimónio, valorizando os territórios que
dele são detentores e ajudando a criar estratégias de marketing com vista à sua utilização
geoturística, desportiva e de lazer.
Dois diferentes exemplos deste encontro entre geopatrimónio e imagem podem
ser analisadas, entre muitos outros, nos livros “Geomorfologia da Gardunha – Figuras e
formas graníticas da Serra da Gardunha”2 e “Património geológico – Geossítios a visitar em
Portugal”3.
No primeiro são as excelentes imagens de um fotógrafo profissional que servem a
promoção de um património geomorfológico, ligado à geomorfologia granítica de pormenor.
Como foi escrito no prefácio do livro “a magia do olhar do fotógrafo transforma as pedras
graníticas, cinzentas e frias em animais exóticos, em soldados, em cabeças e olhares de velhos
guardiões da serra, e até em ET’s ou em côdeas de broa”, ou seja a imagem encarrega-se de
descodificar o sentido dado pelas populações às formas de relevo granítico, às suas fendas
meteóricas, às bolas de erosão ou às pias, que serviram de pratos com que princesas antigas
matavam a fome aos seus súbditos.
O segundo trabalho é um trabalho de cientistas, em que as imagens, igualmente
excelentes, servem propósitos científicos específicos conforme o tipo de valorização geológica
ou geomorfológica que os autores do livro pretendem para cada elemento geopatrimonial.
Da imagem para a ciência ou da ciência para a imagem, parece não haver dúvida que no
caso específico de valorização de territórios com base no seu património natural abiótico, a
imagem, particularmente a imagem fotográfica, desempenha um papel central.
Pelo carácter holístico, a imagem fotográfica valoriza a articulação do geopatrimónio, e
particularmente, das formas de relevo com os seres humanos (pelo valor cénico, cultural e
religioso do relevo: montes; grutas; praias) e, sobretudo, pela sua fácil percepção estética
(espectacularidade; grandiosidade; beleza; diversidade), proporcionando uma maior aceitação
2 - António José da Conceição (2014) - Geomorfologia da Gardunha – Figuras e formas graníticas da Serra da
Gardunha. GEGA, São Vicente da Beira, 153 p.
3 - José Brilha e Paulo Pereira (2011) - Património geológico – geossítios a visitar em Portugal. Universidade do
Minho, Braga, 137 p.
Lúcio Cunha
123
do seu valor patrimonial pelo grande público e, mesmo, uma maior e melhor utilização em
termos geoturísticos. Por outro lado, a imagem fotográfica permite fazer uma análise multi-
escalar dos elementos geopatrimoniais, integrando características singulares e de pormenor,
num conjunto mais amplo, por vezes mesmo na paisagem que o envolve e determina.
Embora, por comodidade de análise, tenhamos de segmentar a realidade patrimonial, quase
sempre um geossítio de pormenor, uma área com valor geopatrimonial e, por maioria de
razão, uma paisagem cultural, valem, não por uma, mas por um complexo conjunto de
características que o definem (quanto menor a escala e o pormenor, maior a complexidade
de características). A geologia, a geomorfologia, a pedologia e a hidrografia criam um quadro
natural abiótico, cuja valorização patrimonial pode acontecer por si própria, mas que, em
regra, ganha melhores e mais rigorosos contornos quando lhe associamos a ocupação pela
vegetação, os vestígios da ocupação humana histórica ou pré-histórica e, mesmo, a ocupação
rural ou urbana actuais e que, se enquadram quase sempre nesse quadro natural abiótico.
As muitas fotografias das vertentes do Douro Vinhateiro, do Rio Mondego frente à cidade
de Coimbra ou do Vale das Buracas no Maciço de Sicó, são apenas alguns exemplos de como
uma paisagem se patrimonializa, como corresponde à articulação entre diferentes tipos de
património (geológico, geomorfológico, hidrológico, ecológico, histórico-arqueológico;
arquitectónico), à integração de escalas com elementos de distintos significados genéticos e
científicos, bem como à percepção pelos seres humanos do significado patrimonial de muitos
elementos da Terra que pisam e vivem todos os dias.
124
Valentín Cabero Diéguez
125
Uma Utópica Viagem pelos Mares do Sonho1. Coube-me intervir na conferência com
que se inicia o encerramento das diversas iniciativas concretizadas através do Projecto Cidade
e Território - Coimbra, o País e o Mundo, com que a Geografia de Coimbra se associou aos
eventos realizados no âmbito de Coimbra Capital Nacional da Cultura.
Pensando em Coimbra, em Geografia e na dimensão cultural que delas emana, logo se
nos impõe o nome incontornável do Professor Alfredo Fernandes Martins. Professor desta
Universidade, Mestre e pioneiro da Geografia portuguesa, alia a sua estatura cívica à de
cidadão de Coimbra, que estudou minuciosamente e com quem estabeleceu uma relação
íntima e cúmplice, reflexo da perfeita comunhão entre o cidadão e a sua cidade. Se outros
motivos não existissem, estas seriam razões de sobra para que o seu nome ficasse associado
a uma realização com que se pretendeu reabilitar a depauperada auto-estima coimbrã.
Vivemos momentos em que a memória é tão leve e tão breve que não é só a erosão do
tempo que remete para as margens do esquecimento e da indiferença alguns dos nossos
melhores. Perante tais circunstâncias, não podia a nossa geração deixar passar em claro a
oportunidade de saldar uma dívida de gratidão para com o nosso Professor e admirado
Mestre Alfredo Fernandes Martins. Com esta singela homenagem pretende-se lembrar,
tão só, as admiráveis lições frente ao quadro preto, enquanto, vagamente contemplava o
horizonte que se abatia sobre os campos do Mondego, como o gratificante convívio mantido
no corredor, no bar da Faculdade ou no Arcádia.
A todos tocou com a elegância e eloquência do verbo quando, calcorreando quadros
naturais e humanos impressivos e singulares, ia fazendo, nos sítios próprios, descrições ímpares
das deslumbrantes paisagens que compõem o nosso diversificado mosaico regional. A Beira
Baixa e o Maciço Calcário assim se impuseram como lugares de memória e de culto para a
Geografia de Coimbra, cenários a que tamanha ausência confere uma certa religiosidade,
onde se regressa com a saudade dos inolvidáveis momentos aí partilhados.
Ao lembrarmos o Professor Alfredo Fernandes Martins, da forma que melhor podem
e sabem, estes seus discípulos apenas pretendem testemunhar ensinamentos subtilmente
transmitidos pelo Mestre: na ciência como na vida, humildade, rigor e memória só são
verdadeiros quando conjugamos razão com emoção. Não reunindo arte suficiente para
discorrer com a necessária desenvoltura sobre uma personalidade tão rica, complexa e
controversa, caberá aos convidados destacar com mais propriedade os méritos e as diferentes
facetas do Professor Alfredo Fernandes Martins.
Agradecemos contributos tão qualificados que não desmerecerão o homenageado. À
Paula Fernandes Martins queremos expressar, igualmente, o nosso reconhecido agra-
decimento pelo qualificado e pertinente aconselhamento, a disponibilidade em ceder o
material indispensável para a realização da exposição e do catálogo a lançar a 6 de Março, a
paciência em nos acompanhar durante estes meses de pesquisa.
para a nobre missão de demandar mundos e mares nunca dantes navegados, embarcar em
viagens imaginárias como aquela Viagem nunca feita por Fernando Pessoa: “foi por um
crepúsculo de vago outono que eu parti para essa viagem que nunca fiz. (…) O mar, recordo-
me, tinha tonalidades de sombra, de mistura com fugas ondeadas de vaga luz – e era tudo
misterioso como uma ideia triste numa hora de alegria, profético não sei de quê.
Eu não parti de um porto conhecido. Nem hoje sei que porto era, porque ainda nunca
lá estive. Também, igualmente, o propósito ritual da minha viagem era ir em demanda de
portos inexistentes – portos que fossem apenas o entrar-para-portos; enseadas esquecidas
de rios, estreitos entre cidades irrepreensivelmente irreais. Julgais, sem dúvida, ao ler-me,
que as minhas palavras são absurdas. É que nunca viajastes como eu” (Fernando Pessoa
– Livro do Desassossego – 2ª parte). Porque o real e o imaginário estão tão próximos que,
por vezes, se confundem, “A melancolia do geógrafo” é um sentimento tão comum a este
tipo de personagem extraviado como à generalidade dos poetas e sonhadores, o que levou
Brigitte Paulino-Neto a reconhecer que o geógrafo “É o que não receia reconhecer que está
desorientado, o que confessa a sua predisposição para partir sem se deslocar, para evadir-se
sem ir a nenhum lugar, para dizer que, sem nunca sair do mesmo sítio, está perdido, para
declarar que precisa de pontos de referência.”
“Creio que não devemos renunciar à palavra “Oriente”, uma palavra tão bonita, visto
que nela, por feliz casualidade está o ouro” como refere Jorge Luis Borges (Obras Completas,
Circulo de Leitores, vol. III: 243). Qual Fernão Mendes Pinto, peregrinando por locais e destinos
exóticos, também o Professor Alfredo Fernandes Martins é animado pelo desejo de evasão
que o leva, mesmo que platonicamente, em demanda do Oriente e dos Mares do Sul. Na
hora do regresso, como quando ao terminar a sua viagem à Galiza se nos dirige, recordamos:
“Lembrei-me de vós, lembrei-me do velho peregrino, lembrei-me de mim. E no fluir de íntimo
diálogo, recordei certas páginas de Ernest Hemingway, alguns passos da obra de Antoine
de Saint-Exupery... E de novo a minha lembrança voltou para vós, voltou para todos nós – e
considerei que, para além de quanto nos separaria, estava o elo comum da nossa condição
humana. Isso nos dava fraternidade – e, na tarde de bruma, fraternalmente desejei que cada
um de nós saiba cumprir bem o seu destino”.
“nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto
sem peixes. Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e
alegres e não vencidos. (…) o velho sempre pensava no mar como feminino, como algo
que entrega ou recusa favores supremos, e, se tresvariava ou fazia maldades era porque
não podia deixar de as fazer. A lua influi no mar como as mulheres, pensava ele.”
2 - Fernando Rebelo (2008) – A geografia física de Portugal na vida e obra de quatro professores universitários:
Amorim Girão, Orlando Ribeiro, Fernandes Martins, Pereira de Oliveira. Minerva, Coimbra. António Campar de
Almeida, António Gama, Fernanda Delgado Cravidão, Lúcio Cunha, Paula Fernandes Martins e Rui Jacinto (2006)
- Alfredo Fernandes Martins: geógrafo de Coimbra, cidadão do mundo. IEG, Coimbra.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
132
São sempre lembrados os dotes oratórios de Alfredo Fernandes Martins pelas aulas e
pelas intervenções públicas, que se prolongavam pela palavra escrita, sofisticada e criativa,
como testemunham os textos publicados. À dimensão literária temos de juntar a imagem,
sobretudo o desenho, a cartografia e a fotografia, valências que colocou ao serviço da
Geografia, onde explorou a vertente estética, sobretudo quando observava as paisagens
durante as viagens ou o trabalho de campo, captando a faceta mais poética que a geografia
sempre encerra. Quando se olha para o conjunto da sua produção fica a sensação que o
seu labor nunca se confinou à estrita abordagem científica, assumindo a relação tensa que a
geografia continua a manter com a arte, como se, desta maneira, procurasse encontrar um
sentido para a vida, quiçá, uma poética para a geografia.
A obra de Alfredo Fernandes Martins tem latente potencialidades que nos remetem para
uma “cartografia afectiva de uma rota cujos locais têm rosto de gente e onde espaço e
tempo são as coordenadas que mais mentem” (Pedro Rosa Mendes, A Baia dos Tigres).
No ano em que se comemora o Centenário do seu nascimento propomos revisitar o seu
percurso criativo com o único propósito de retirar das brumas da memória um eminente
Professor, enfatizando as qualidades estéticas e artísticas que se escondem na sua obra.
Espirito irreverente e inquieto, tinha um modo próprio de estar, olhar e imaginar mundo,
confluindo neste perfil multifacetado o Geógrafo, o Professor, o Cidadão comprometido e o
Homem de Cultura.
. O homem de cultura. O retrato que chegou até nós, por várias vias, foi o de um idealista
romântico, com alma de poeta, norteado por nobres ideais, como nos deu a conhecer a pena
de Vergílio Ferreira, com quem privou em Coimbra. Na hora da despedida, o grupo a que
pertenciam, realizou um jantar no restaurante Flecha, já desaparecido, da Rua da Sofia, onde
Alfredo Fernandes Martins escreveu a seguinte dedicatória, fraterna, onde o idealista revela
um fino recorte literário: «Vergílio! Nunca se encontram tarde os homens de boa-vontade,
nunca deixou de amanhecer para os poetas, e há sempre um juvenil lirismo nos homens de
boa-vontade que marcham para a luta empolgados por um nobre ideal. Seremos pioneiros!
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
134
Que os nossos corações subam alto, que as nossas mãos se dêem» (Conta–Corrente III,
1983).
Viveu intensamente o seu tempo, comprometido com os grupos politico-culturais de
vanguarda e mantendo um convívio íntimo com personalidades representativas do panorama
cultural. As diferentes tertúlias que frequentava organizavam-se consoante as causas e os
cafés onde se reuniam, pois não era indiferente ir ao Montanha, ao Arcádia, à Brasileira
ou à Central. Está documentado fotograficamente que frequentava a casa de João José
Cochofel, hoje Casa da Escrita, onde foi concebido o Novo Cancioneiro, pilar estruturante do
designado neo-realismo. A intimidade estabelecida neste convívio havia de levar Fernando
Namora, uns anos mais novo, quando ainda vacilava entre a pintura e a escrita, a fazer a
caricatura de Alfredo Fernandes Martins, para o livro de curso. Este desenho, que não havia
de figurar na referida publicação, dedicou o futuro escritor “ao Fred com um abraço de
amizade e admiração”, assinalando as paixões científicas do seu amigo na lombada de três
livros que esquiçou: Geografia Matemática, Geografia Física e Geografia Humana.
Na linha deste diálogo intelectual, depreende-se a cumplicidade com Miguel Torga, numa
passagem do seu Diário (Coimbra, 2 de Março de 1943), onde discorre sobre o sentido e
o significado da geografia, ao referir que “já por várias vezes tentei interessar um geógrafo
meu amigo numa ideia velha que trago encasquetada, mas não há maneira. Defende-se dela
como de um perigo iminente. A coisa parece paradoxal à primeira vista e, talvez por isso, é
difícil convencê-lo da lisura do meu pensamento, e levá-lo a aproveitar a sugestão, que se me
afigura curiosa. Trata-se do seguinte: Até aqui, para os herdeiros de Estrabão, o humano, em
relação ao meio, ou é vítima ou algoz. Explicam-se os sentimentos e as estaturas pelas nuvens
e pelas águas de regadio, ou então ensina-se à posteridade que foi um tiro de dinamite que
estragou o perfil de certa fraga. Ora eu sugeria o alargamento desse critério estreito, e que se
fizesse do homem um dos elementos fundamentais da geografia. Que no processo científico
de qualquer troço do mundo figurasse o habitante do sítio, considerado já como factor em
meu fraco entender, uma contribuição substancial para melhor compreensão da sua íntima
realidade. (…) O meu amigo geógrafo argumenta-me com razões de método, chama a isto
uma ideia poética, e fala no sarilho científico que seria semelhante geografia psicológica.
Diante de tais argumentos, calo-me, vencido mas não convencido.” O interlocutor, claro, só
podia ser Alfredo Fernandes Martins.
A relação entre geografia e arte já fez correu muita tinta, preocupação que entre nós,
embora sem uma consistente elaboração teórica, começou a ser formulada por Amorim
Girão. Em algumas passagens da sua obra, este autor fez notar a importância e utilidade
da Geografia explorar o relacionamento com o desenho, a fotografia e a literatura, para
não falar com a cartografia, cujo convívio remonta às origens mais remotas. No prefácio
à 1ª edição da Geografia de Portugal (1940) escreveu, a este propósito, sobre a vantagem
de “uma profusa documentação gráfica e fotográfica (as figuras também falam na sua
linguagem internacional)”, referindo que “pela selecção e pela variedade dos mapas, dos
esboços e das fotografias, procuramos falar tanto aos olhos como à inteligência. A ilustração
por fotografias aéreas, já hoje indispensável em trabalhos desta natureza, foi uma das nossas
maiores preocupações”.
Na senda do trabalho pioneiro de Barros Gomes e das suas Cartas Elementares (1886), fez
um forte investimento na cartografia, coordenando a elaboração de mapas, com fins didáticos,
que haviam de ser compilados e originar o primeiro Atlas de Portugal (1940; 2ª ed. 1958),
que publicou por altura da comemoração do V Centenário da morte do Infante D. Henrique.
A relação entre a literatura e a geografia foi equacionada nestes termos: “acusam-se muitas
vezes os geógrafos de literatos, querendo significar que eles desprezam todo o contacto com
a realidade, vivendo no domínio da pura fantasia. Fala-se de “literatura geográfica” quase
sempre com intuitos de maldizer; e, deturpando muito embora a expressão, também se terá
falado de “geografia literária” mais ou menos no mesmo sentido”. Reconhece, no entanto,
que “nenhum geógrafo evocou melhor as estepes russas do que Tolstoi, nem a região cheia
de sol da Provença teve melhor intérprete que Mistral, nem as áridas planícies manchegas
mais genial paisagista que Cervantes (Girão, 1952: 105-106).
Amorim Girão, embora reconheça a importância destes modos de expressão para a
Geografia, não explicitou o potencial artístico desta cumplicidade. Alfredo Fernandes Martins
foi mais além, não se limitou a contemplar ou ser um admirador passivo destas artes, pois
cultivou-as por gosto pessoal ou para ilustrar os seus escritos e ensaios. Além da literatura,
os desenhos, mapas, fotografias e, mesmo, os filmes que realizou, aproximaram-no das artes
visuais, evidenciando a importância e o papel que lhes atribuía enquanto meios eficazes de
divulgação e instrumentos úteis à formação duma efetiva cultura territorial. No ano em que
se comemora o Centenário do nascimento do Professor Alfredo Fernandes Martins, este
ensaio tem por objetivo divulgar o seu engenho em diferentes artes, da literatura, desenho
e cartografia à fotografia, onde deu largas à sua imaginação fértil espraiando o seu talento
e qualidades de esteta na incessante procura duma Geografia poética ou, se preferirmos, na
demanda duma poética para a Geografia.
calcário estremenho, 1949: 16). Quando assim é as cartas contêm um enorme manancial
de informação que deve ser criteriosamente estudado, com minúcia e rigor, como fez na
preparação do artigo sobre “A configuração do Litoral português no último quartel do Século
XIV”: “No canto inferior direito do mapa sub judice, deparei, não sem surpresa, com esta
nota: “O traçado do litoral e da fronteira é da época”. Ora, esta indicação impõe um novo
exame da carta – e a partir deste instante o geógrafo está no seu domínio, julgará sobre
matéria que lhe é familiar. A reconstituição da fronteira terrestre, muito embora o exigissem
os troços de raia seca, pouco interesse me despertou; mas devo confessar que outro tanto
não sucedeu no que diz respeito ao litoral, pois observei atentamente a linha de costa e
o debuxo dos estuários, visto tratar-se de desenho intencional aquilo que eu, no primeiro
relance de olhos, supusera um decalque despreocupado.”
1 - As páginas que se seguem compilam alguns dispersos, publicados pelo Professor Alfredo Fernandes Martins, em
diversos jornais, entre 1938 e 1953, breve antologia que permite lançar um novo olhar sobre a sua obra e descobrir
uma faceta menos conhecida do autor.
2 - “Crónica mensal das artes, ciência, literatura e crítica”, in Jornal da Figueira, Ano I, nº 5. Figueira da Foz, 27 de
Abril de 1938. A crónica abre com a seguinte explicação: “Neste artigo e em todos os que se seguirem com o ca-
rácter deste, de problemas que se discutam, são postos ao alcance de todos. Não se exige, para a sua compreensão,
uma cultura global desenvolvida, nem, muito menos, qualquer leitura especializada do assunto; apenas um mínimo,
que sempre possuem os leitores das publicações deste género. Não queremos empregar o termo de divulgação, a
que andam ligadas responsabilidades muito grandes que, não só os nossos colaboradores – jovens por via de regra
– quereriam tomar para os seus artigos, como também não se coadunariam com a índole desta “crónica”. Mas é
nosso intuito, justamente, fomentar o gosto do grande público por questões gerais de interêsse comum.”
Alfredo Fernandes Martins
141
23
As descobertas de Cook e de Furneaux – que com aquele fizera os cruzeiros de I772 e
I774, mas a bordo de um outro navio – Adventure – obrigavam contudo a hipótese da sua
variante. No caso de haver terras tratar-se-ia de uma massa continental ou de um ou vários
arquipélagos, ligados por mares gelados?
Entretanto em 1819, Smith, navegando no «Williams», assinalava uma nova terra, a 62°
de latitude, e oito meses depois êle descobre ainda o arquipélago a que chamou as Shetlands
do Sul.
A pouco e pouco os intrépidos pescadores de baleias e os caçadores de focas, que se
aventuram nos mares austrais, arrancam ao desconhecido, assinalam nos mapas novas terras:
ao sul das Shetlands, um outro grupo de picos; a Este daquele arquipélago as Orcades do Sul,
operando-se ainda reconhecimentos na Terra de Palmer.
A-pesar-de tudo, após a expedição de Cook, só a russo-alemã de F. G. Bellinghausen, em
1819-21 merece um tal nome.
Era a expedição constituída por dois barcos, o «Vastok» e o «Mirni», e do seu cruzeiro,
todo realizado nas proximidades do círculo polar, se trouxe a certeza de que a Terra de
Sandwich não era mais do que um grupo de pequenas ilhas. Além disso, novas terras se
arrancaram à bruma: a ilha de Pedro I e a Terra Alexandre I.
Em 1823 e na zona americana, o capitão baleeiro inglês Weddel, navegando na «Jane»,
de conserva com o «Beanfay», comandado por Brisbane, depois de atravessar um mar
coberto de «icebergs» e com ventos contrários, encontrou-se numa região quase calma mas
sem que o tempo claro deixasse aperceber qualquer vestígio de terra.
Calculando a posição dos navios, verificou-se que se encontravam a 34º 16’ de longitude
W e a 74° 15’ de latitude Sul – sendo esta última coordenada a mais alta que se atingira nas
viagens austrais.
Este cruzeiro foi por muitos posto em dúvida, alegando-se que era impossível em barcos
tão pequenos e de tão escassa tripulação – a «Jane» tinha 22 homens – atingir latitudes que
outros em melhores condições não tinham alcançado.
Porém, a História das viagens polares fez justiça ao modesto pescador inglês e o golfo
onde ele foi o primeiro a navegar e a que chamara mar de Jorge IV, nome que foi firmado
com três «hurrahs» da marinhagem, figura hoje nas cartas como Mar de Weddell.
Os anos decorrem e em 1828, não é já só o interesse de descobrir novas terras que iça as
velas dos barcos que se fazem ao mar austral. Assim, nesse ano, o «Chanticleer», comandado
por Foster, leva como missão o estudo do magnetismo e a medida da força da gravidade
nessas longínquas paragens, encargos estes de que satisfatoriamente se desempenha.
Mas a descoberta de novas terras, a procura de bons locais para a pesca, são ainda
os motivos mais poderosos e os que despertam mais entusiasmo; e, assim, Biscoe, outro
baleeiro inglês, em 1830 e 1831, assinala, na zona americana, a ilha Adelaide, o arquipélago
Biscoe, a terra de Graham, e no sector indico, apercebem, à distância e entre a bruma, uma
região montanhosa.
Sucessivamente Avery, Kemp, e Ballery marcam, nos mapas, novas linhas de costa ou
outras ilhas.
Porém, depois da missão de Foster, só em 1838, um verdadeiro cruzeiro científico aproa
à Antártida – a expedição francesa do capitão de fragata Dumont d’Urville.
O principal objectivo desta expedição era verificar quanto havia de exacto no relatório de
Weddell e saber quanto se poderia avançar além da latitude de 74° 15’ que, segundo dissera,
o baleeiro inglês atingira.
Para o desempenho dessa missão tinha Dumont d’Urville duas corvetas – «Astrolabe» e
«Zélée» – esta comandada por Jacquinot.
Depois de abandonarem o estreito de Magalhães, os dois barcos atingiram, por assim
dizer facilmente 63º 40’ lat. S, mas aí a «banquise» – mar gelado, um caos de blocos de
gelos, encravados uns nos outros – não os deixou ir mais além. Navegando para as Orcades
do Sul, daqui partiram para uma segunda tentativa, mas a latitude então alcançada ainda foi
menor: 62° 20’ S e 37º long. W.
3 - “Crónica mensal das artes, ciência, literatura e crítica”, in Jornal da Figueira, Ano I, nº 12. Figueira da Foz, 21
de Maio de 1938.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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Nestas paragens, só após mil peripécias os barcos foram arrancados aos gelos.
E após incontestáveis esforços, a-pesar-de toda a boa vontade e da abnegação da
marinhagem, Dumont d’Urville teve de retroceder, pois, teimosamente, o Mar de Weddell,
com uma tão terrível «banquise» com essa bruma espessa que não deixava ver a proa dos
navios, era uma barreira intransponível em frente do Polo!
Além das amostras geológicas e zoológicas que os naturalistas colheram, a expedição
francesa marcou ainda no mapa novas terras: no sector do Índico, entre outras, a ilha da
Geologia e a Terra Adélia, o nome da mulher de d’Urville, e na zona americana as Terras de
Luiz Filipe e Joinvile.
Ainda a esta expedição se deve a primeira carta precisa das regiões antárticas até então
exploradas.
Em 1839, o inglês Wilkes aparelha, também com rumo à Antártida, cinco navios postos à
sua disposição pelo Governo norte-americano.
As explorações dos diferentes barcos poucos resultados deram; contudo verificou-se que
a Terra Luiz Filipe não era mais do que a continuação da Terra de Palmer e além disso, tanto
na zona do Índico como na americana, outros territórios foram reconhecidos, mas … como
sempre a «banquise» detinha todos os desejos de ir mais além!
Entretanto, em 1841, o comandante inglês James Clarck Ross, aproa de novo ao sector
índico da Antártida, sem que daí resulte qualquer dado de importância; no sector americano,
porém, em 1842, é mais feliz.
Partindo das Shetlands, encontra à proa dos seus navios um grande golfo, ainda não
assinalado, e nas costas, erguendo-se majestosos entre as neves eternas, dois vulcões – o
Erebus e o Tenor, assim chamados por serem estes os nomes dos navios deste cruzeiro.
Mas, como sempre, mais uma vez a «banquise» impediu que se mantivesse a proa ao sul.
Porém, bordejando os gelos, com rumo a Este, Ross encontrou, finalmente, uma passagem
e conseguiu atingir a latitude de 71º 30’ à longitude de 15°W.
(Continua). 4
4 - Estas crónicas não continuaram porque, numa cópia deste artigo, o autor deixou a seguinte nota escrita pelo
seu punho: “Não foi publicada a continuação porque o jornal foi suspenso por ordem do Governo. Perdeu-se o
original”.
5 - Via Latina (Orgão da Associação Académica de Coimbra), Ano I, nº 1, 30 de Março de 1941.
Alfredo Fernandes Martins
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para quê tanto sacrifício, quando se chegava ao Polo unicamente para transmitir ao Mundo
a mensagem dos Norueguesas, ou seja confessar a própria derrota?!...
Tal foi a missão confiada pelo destilo aos cinco bravos da esquadra do Sul.
A 4 de Janeiro, a menos de 240 quilómetros do objectivo, a esquadra do tenente Evans,
que até então acompanhara a de Scott, recebeu ordem da retirada, tal como tinha acontecido
sucessivamente às outras, conforme iam sendo escalonados ao longo da pista os depósitos de
víveres. A propósito, escreveu Scott no seu Diário: «A segunda esquadra segue-nos a princípio.
Porém, logo que estou certo da podermos avançar facilmente, paramos e apertamos as
mãos dos nossos camaradas. Teddy Evans fica terrivelmente desapontado por não continuar
acompanhar-nos, mas ele compreende bem as coisas e conduz-se corajosamente. O bravo
do Crean chora e Lashley parece muito sensibilizado por ter de nos deixar».
Ressalta nitidamente o desgosto daqueles três homens por terem recebido ordem de
retirada. Nem se pode cumprir com alegria semelhante determinação quando se chega a 87°
32’ Sul e se está a dois passos da glória, pois sob o comando de Scott, que vai continuar para
o Sul atinge-se, decerto, primeiro do que ninguém o Polo Antártico. Esta certeza absoluta,
vibra nas almas de Teddy Evans, de Crean e de Lashley, como vibra, na alma de todos os
inglesas, porque, ao regressar da sua tentativa frustrada, em 1909, obrigado a recuar, por
falta de víveres, depois de atingir 88° 23’, a 170 quilómetros do objectivo, dissera Shackleton,
referindo-se a Scott: «Será ele quem vai ao Polo e será melhor assim!».
Naquele inverno de 1911, ninguém duvidava de tal afirmativa. Scott ia atingir o Polo…
Em Janeiro de 1912, a esquadra do tenente Evans, poupada por um capricho da sorte, não
assiste, frente a frente, ao desabar daquela certeza, a esse tremendo traumatismo moral. A
derrota, não tem um travor tão amargo, esbate-se, atenua-se, quando se toma conhecimento
dela, longe, muito longe do lugar onde se faz sentir; a crueza da desilusão tem como lenitivo
a distância, e os quartéis de inverno estão a mil e trezentos quilómetros do pavilhão negro
de Amundsen!
Agora, são unicamente 5 homens quem avança para o Sul, sempre para o Sul! O frio
- um frio como nunca se esperaria suportar durante o verão antártico - as tempestades de
neve, a pista mole que prende o trenó e atrasa a marcha, tudo isso não consegue arrefecer
o entusiasmo daqueles homens. Eles ardem sobreaquecidos pela ardente chama interior que
a certeza do triunfo faz crepitar; vivem do calor da antecipada vitória; entregam a uma
tal fogueira todos os seus valores morais. Vale a pena suportar o frio, sofrer tudo, quando
se caminha para a imortalidade e temos Alguém, longe, muito longe, que vai partilhar da
intensa alegria da vitória.
Antes de partir para a Antártida escrevera Scott a sua mulher, quando já esperava um
filho, essa criança que seria a herdeira do seu nome a da sua glória: «Tu preferes, eu sei, que
me esforce por realizar grandes coisas interessantes seja porque preço for!» Scott caminha
para a realização, certo de que chegará ao fim; só desconhece o preço da sua façanha… só
desconhece isso, e isso, é a Morte.
Aquele pavilhão negro…
A 15 de Janeiro a certeza da vitória, ainda que envolta numa ligeira dúvida, transparece
no Diário de Scott: «Como é agradável pensar que só duas longas caminhadas nos separam
do Polo!... agora o sucesso é certo; um só receio nos preocupa: que os Noruegueses nos
tenham precedido... Estamos somente a 43 kms do Polo! Nós devemos vencer agora».
No dia seguinte, suportando temperaturas inferiores a -30°, os cinco homens continuam a
marcha: «...pensando que amanhã, chegaremos ao fim, partimos cheios de entusiasmo...».
De súbito, primeiro do que a ninguém, a realidade surge, sem artifícios, aos olhos
penetrantes de Bowers: para o Sul da posição ocupada pelos ingleses, um «cairn», montículo
de gelo feito pelo homem, referência a passagem de alguém…
«Parto Sul. Amundsen» - dizia o telegrama enviado da Madeira pelo Norueguês; e a 22
de Fevereiro de 1911 recebera Scott a informação de que ele havia instalado quartéis de
inverno na baia das Baleias, distanciado menos 120 quilómetros do Polo que a expedição
inglesa.
Um «cairn» ?!... Mas - e quanto pode o desejo de não nos sentirmos ultrapassados!
— não! Não pode ser! Talvez uma sombra longada, talvez uma falha no sudário de gelo,
mas nunca um «cairn»! O terrível desespero de náufrago que a tudo se agarra esperando a
salvação! Talvez seja a miragem... aquela extraordinária atmosfera, aquela bruma pegajosa,
Alfredo Fernandes Martins
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que deformam tudo, são até capazes da brincar com os sonhos de cada um, a fingir que os
desfazem… Não deve ser um «cairn». Será, tudo! Mas um «cairn»?!... Não, isso não! Como
se pode, assim destroçar a nossa mais bela ilusão?!...
E marcha-se ainda, caminha-se talvez com medo de ir ao encontro de uma certeza que
nos mata, mas na esperança de que ela se transforme apenas num pesadelo, nada mais do
que uma alucinação dos nossos nervos sobreexcitados. Mas... a realidade não cede os seus
direitos! Que importa que a nossa chama interior se extinga num sopro?!... Que influência
tem um desgôsto humano, o desabar do mais lindo sonho, em face da marcha fatal do
tempo?!... Nem o holocausto de 5 vidas, teria feito atrasar o calendário 30 dias! A realidade,
esta palavra banal teria em breve para Scott e seus camaradas este significado monstruoso:
Impossível! Nada, nem ninguém, o poderia evitar.
A marcha continua. Uma ténue esperança subsiste ainda na alma da pequena patrulha;
trinta minutos depois, Bowers distingue uma sombra longínqua. Não já ilusão possível e
não tarda que se destaque perfeitamente, num contraste violento com a brancura da neve,
uma bandeira negra. Escreveu-se no Diário: «Em volta, vestígios de acampamento; sinais
de ida e vindas de trenós, de skis e as marcas bem nítidas das patas de muitos cães, Isto
revela-nos tudo. Os Noruegueses chegaram antes de nós e foram os primeiros a atingir o
Polo. É uma terrível decepção e eu estou muito penalizado sobretudo por causa dos meus
bravos camaradas. Numerosos pensamentos nos assaltam e discutimo-los longamente.
Amanhã avançaremos até ao Polo, depois bateremos em retirada para os nossos quartéis
de inverno, com toda a velocidade de que formos capazes. Todos os sonhos se desfizeram;
o nosso regresso será fastidioso. Certamente a altitude diminui e, certamente também, os
Noruegueses descobriram um itinerário fácil».
... e acamparam tristemente...
(II) 6
… e acamparam tristemente: as almas amarfanhadas na pesada angústia da derrota.
No dia seguinte, «sem que ninguém tivesse dormido muito, por causa da nossa descoberta
de ontem…», recomeçaram a marcha; o entusiasmo desaparecera, só o dever os levava até
esse ponto matemático de latitude igual a 90º Sul, o dever de aí desfraldarem uma bandeira
de vencidos... E embora, à excepção de Scott, todos sofressem horrorosamente, com as
mãos e os pés gelados, caminharam ainda 21.500 metros, aguentando um vento forte que
soprava de frente e uma temperatura de 30º negativos… E por fim: “O Polo! Sim, mas em
circunstâncias bem diversas daquelas que nós esperávamos… Meu Deus! Que horrível região!
e como é terrível termos sofrido tanto para chegar aqui e afinal não sermos recompensados
pela glória da prioridade! Ao menos, já é alguma coisa termos chegado ao fim».
Como se adivinha a desilusão nestas linhas singelas! Amundsen chegou ao Polo, graças
aos serviços inestimáveis que lhe prestaram os seus cães… Scott, após a sua expedição de
1902, a bordo do «Discovery», havia escrito: «Segundo a minha opinião, nenhum «raid»
executado com o auxílio de cães atinge a grandeza de bela realização que se obtém quando
um grupo de homens vai pelos seus próprios meios afrontar as atribulações, os perigos e as
dificuldades, e graças a dias e semanas de um esforço físico, chega a resolver um problema
do grande Desconhecido. Sem dúvida neste caso, a conquista é, certamente, mais nobre e
magnífica».
Porque assim pensava e lhe custava a assistir ao sofrimento dos animais, só utilizou cos
póneis e os cães na travessia da barreira de Ross. Quando os pequenos cavalos começaram
a mostrar provas de cansaço, foram abatidos a tiro; os cães, antes da ascensão completa do
glaciar de Beardmore, abandonaram a caravana, retirando para os quartéis de inverno.
Se a esquadra do Sul tivesse chegado primeiro do que ninguém, aquela ternura pelos
animais teria sensibilizado toda a gente... Mas a multidão não perdoa quando, certa do nosso
triunfo, nos sabe ultrapassados por alguém que não desdenhou utilizar todos os recursos,
mesmo aqueles que nos pareceram menos nobres. Compaixão pelos cães?!... Que ridícula
sensibilidade! Não foram eles um factor decisivo na vitória de Amundsen?!...
Como todos os pormenores tornavam mais asfixiante aquela derrota.! De que valera
a Scott ter sido o primeiro a dizer que não era impossível atingir o Polo e demonstrá-lo
praticamente no seu «raid» de 1902?! Abrira o caminho, mas chegara vencido!
A 18 de Janeiro, certos de que o acampamento estabelecido na véspera não está bem no
Polo, retomam a pista. Mais uma vez Bowers - sempre ele - descortina um novo testemunho
da derrota: a tenda de Amundsen, onde encontram a mensagem dos Noruegueses. A
800 metros, vê-se o patim de trenó que deixaram a localizar o Polo, pormenor que Scott
relata nobremente: «Os nossos predecessores determinaram com cuidado a sua posição e
cumpriram inteiramente o seu programa.»
Depois, os ingleses determinaram com o maior rigor a situação do Polo e aí arvoraram a
sua bandeira, aquela bandeira que não flutuou tão orgulhosamente como tanto o haviam
desejado: «desfraldámos o nosso pobre e humilhado «Union Jacks»».
«Agora - escreve Scott - voltamos as costas ao objectivo da nossa ambição, para começar
um novo trabalho singularmente rude: 1280 kms durante os quais teremos de rebocar o
nosso trenó, à custa de dolorosos esforços, Adeus à maior parte dos nossos sonhos!»
E assim começou a retirada. Voltam a passar pela «sinistra bandeira negra» de Amundsen
e seguem durante dias a pista anteriormente percorrida. Marcham vergados ao peso da
desilusão; sofrem consecutivas tempestades de neve; chegam a suportar -40º. A natureza
enfurecida não lhes dá quartel; o inverno antártico aproxima-se e nos depósitos nem sempre
encontram víveres e combustível em tal quantidade como seria de desejar. Sobrecarregando
uma situação já por si desesperada, o amargo travor da derrota, a certeza da cruel decepção
que lhes reservara o Destino! E os dias passam lentamente…
A 21 de Março estabelecem acampamento a 20 kms de One Ton Depot – o depósito que
significa: Salvação! Unicamente três homens, erguem a tenda: Scott, Bowers e Wilson.
Edgar Evans, com o moral abatido pelo terrível desengano e após uma queda quando
marchava sobre skis, ficara quase inconsciente. O nariz e as mãos gelaram-lhe; depois, um
pé… Tornara-se uma causa de permanente inquietação para os seus camaradas, quando,
perdida completamente a razão, morreu a 15 de Fevereiro, ao acabarem a descida do glaciar
Beardmore.
Oates, por seu turno, a 2 de Março estava já em péssimas condições físicas. Os pés e as
mãos gelaram-lhe; mal pode andar, atrasa a marcha, retarda a salvação. Reconhece que é um
estorvo. A 15 de Março, pela manhã, afirmando que não pode ir mais longe, pede aos seus
camaradas que o abandonem no saco-leito e continuem a marcha. Não escutam as razões
dramáticas que terá alegado e convencem-no a segui-los. À noite, porém, enorme no seu
gesto, digno da tragédia que os irmana, manifesta o seu desejo de sair fora da tenda a dar
um pequeno passeio…
O «diário» de Scott e, alguns meses depois, o documento colocado naquele lugar por
Cherry-Garrard e Atkinson, explicam tudo: «Perto daqui, em Março de 1912, à volta do Polo,
morre um valente gentleman, o capitão E. G. Oates, dos Dragões Innisklling. Voluntariamente,
durante uma tempestade de neve, foi ao encontro da morte, para tentar salvar os seus
camaradas esgotados. Esta nota foi deixada pela expedição de socorro de 1912».
Por isso, naquele dia de 21 de Março, unicamente 3 homens levantavam a tenda,
distanciados somente 24 kms para Norte do local onde um segundo cadáver lhes ficara a
balizar a pista… Erguiam a tenda, essa tenda que seria o seu túmulo. Estava escrito! A sorte
não quisera outorgar-lhes o triunfo, dava-lhes em troca o martírio. E a Morte aureolaria de
glória os nomes desses bravos, tão grandes na sua desgraça, de um tão admirável estoicismo
no sacrifício, que em nada perderam ao lado de Amundsen, o rival vitorioso.
A Morte ia libertá-los de um pesadelo, sublinhar o seu heroísmo, transmudar a derrota
numa apoteose. Aos olhares da humanidade, se os primeiros são bem-quistos e adulados, os
heróis, vencidos por um golpe fortuito, e os mártires tornam-se sobrenaturais. Ama-se mais o
Napoleão de Waterloo que o Imperador de Austerlitz, e apaga-se o nome de Wellington.
Tinham andado quase todo o caminho do regresso; estavam a cerca de 79º 5o’ Sul, a 20
kms de One Ton Depot, quase a tocarem o extremo Norte da barreira de Ross, a menos de
300 kms dos quartéis de inverno, onde nunca chegaram... E têm já esta certeza. Sobre isso,
não deixa qualquer dúvida esta frase: «Hoje perdemos toda a esperança».
Mas não se entregam vencidos, lutarão «até ao último biscoito, embora seja impossível
reduzir mais as rações», como se escrevera já uma semana antes. Os três sobreviventes,
Alfredo Fernandes Martins
147
quase esgotados, esperam ainda vencer os 20 km, os que separam de One Ton Depot, apesar
de os pés gelados os impedirem quase de marchar. Scott, embora em melhores condições
físicas de que os outros dois, tem o pé direito em tal estado que considera a amputação o
menor dos males em perspectiva!
Falta vencer unicamente 20 kms, mas é humanamente impossível dominar a tempestade
de neve, o furioso turbilhão que mascara a pista, o vento que ameaça derrubar a tenda a
cada instante!
«Então, a agonia começa, – escreverá um dia um dos colaboradores de Charcot, na
expedição à Antártida a bordo do «Pourquoi-Pas?» – agonia lenta e desesperada, da qual
ninguém fará o relatório, mas que se adivinha, mesmo nos detalhes mais horríveis, porque
outros, algures, ao Norte e ao Sul, morreram também de fome e de frio, e alguns sobreviventes
contaram os seus sofrimentos».
A 22 e 23 de Março, Scott escreve: «Mais violenta do que nunca a tempestade de neve.
Wilson e Bowers não estão em condições de meter-se ao caminho. Amanhã, a última
tentativa! Não temos nenhum combustível e unicamente nos restam um ou dois dias de
víveres. A morte deve estar próxima; decidimos não lhe apressar a vinda. Marcharemos para
o depósito com ou sem o nosso material e morreremos sobre a nossa pista».
Estas linhas parecem um sumário do que iria passar-se! Um único ponto se não cumpriu:
a marcha para o depósito de One Ton… A Morte rondava, e todos a esperavam sem pôr um
ponto final a tanto sofrimento. Nas dramáticas circunstâncias em que se verificou a retirada,
várias vezes a ideia do suicídio deve ter pairado nos acampamentos, e tão imperiosa que a 11
de Março chegaram a distribuir 30 «tablettes» de ópio por homem, reservando Wilson um
tubo de morfina. Todavia, Oates é o único que se suicida, não por temor ao sofrimento ou
cobardia em face de tal tragédia, mas num acto de abnegação acima de todo o elogio, e que
viverá na memória dos homens, ao menos enquanto a Antártida chamar a si o entusiasmo
dos exploradores.
Os valentes, quando a salvação dos camaradas não exige o sacrifício, olham de frente a
Morte! Caminham até onde o permitam as suas forças ou o consinta o seu sofrimento, quer
seja para gritarem o seu triunfo ou para servirem de pregoeiros da vitória de um rival bafejado
pela Sorte.
Na carta escrita a um amigo querido, Scott, já pouco menos do que moribundo, declara:
«Embora tivéssemos abordado o projecto de pôr fim ao nosso sofrimento quando as
coisas tocassem esse extremo, agora decidimos morrer de morte natural sobre a pista da
caravana!»
O fim aproxima-se. A Morte ronda dias seguidos a minúscula tenda; esgotam-se os víveres,
acaba-se a provisão de combustível… Muito custa a fabricar a coroa do martírio!…
A 29 de Março, Scott escreve as derradeiras linhas do seu Diário: «Desde o dia 21, a
tempestade constante de WSW e SW. A 20, nós tínhamos combustível para preparar seis
chávenas de chá e viveres para dois dias. Durante todo o tempo estivemos prontos a partir
para o depósito, distante 20 kms., mas, lá fora, havia sempre espessos turbilhões de neve
açoutados pela tempestade. Agora toda a esperança deve ser abandonada. Nós resistiremos
até ao fim, mas enfraquecemos a pouco e pouco; a morte não deve estar longe. É terrível,
não posso escrever mais tempo. R. Scott. Por amor de Deus, tomai conta dos nossos».
Mais tarde, a 11 de Novembro de 1912, a patrulha de socorro, encontraria três cadáveres...
A Morte arrebatara toda a esquadra do Sul, para a imortalizar! Wilson e Bowers pareciam
dormir nos sacos-leito; Scott, ajoelhado, estendia sobre Wilson o braço esquerdo. Tinha junto
de si o Diário e ao lado o saco de amostras geológicas – um saco de 16 kgs que nem nas
piores condições tinham abandonado. Ao contrário do feito desportivo de Amundsen, a
expedição inglesa tinha objectivos científicos!
Scott parece ter sido o último a morrer. Bebera o cálice até às fezes; a nada fora poupado.
Nem ao destroçar dos seus mais belos sonhos, nem à tortura indizível de assistir à morte de
todos os seus camaradas!
Ficara até ao fim no seu posto. Marinheiro como era, não abandonara a sua equipagem,
não desertara, não se deixara vencer pelo pavor da Morte!
Permanece na tenda, como um comandante no mar fica na ponte de comando. Escreve o
elogio fúnebre dos seus camaradas, vela-lhes a agonia, redige a sua emocionante «Mensagem
ao Povo Inglês», conta aos seus amigos e família as circunstâncias em que fora vencido.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
148
Certo da sua derrota no Polo, implora a sua mulher - tão ambiciosa do seu triunfo - que
nem ela nem o filho tenham vergonha dele, e pensando ainda no filho, o amor de Pai junta-
se ao orgulho de explorador, quando acrescenta: «Que extraordinárias coisas eu vos poderia
contar sobre a expedição! Quantas histórias haveria para o petiz! Mas porque preço tudo
isto foi pago!»
Embora! A sorte se o não deixou de ter a glória de ser o primeiro no Polo, tornou ao
menos a sua agonia num espectáculo de tamanha grandeza moral, que o nome de Scott
será sempre pronunciado com a veneração que merecem os pioneiros, mortos ao serviço do
conhecimento humano. E. Scott morreu na Antártida.
Há poucos anos, quando Jean Rouch, visitava uma Escola Naval Inglesa, o oficial que lhe
servia de guia exclamou em frente do retrato de Scott, depois de haverem percorrido uma
extensa galeria de marinheiros, heróis do Império: - «este é o maior!»
Sem dúvida! Se os outros, sucumbindo no frenesim dos combates, bem tinham merecido
do Império, Scott, morto no sudário antártico, bem merecera da humanidade.
Marcel Loubens encontrou a morte quando, na força da vida, buscava aumentar o pecúlio
do conhecimento humano.
Porventura outros exploradores, mormente nas regiões polares e na alta montanha,
terão sucumbido em circunstâncias mais e espetaculosas ou mais propícias a desencadear no
comum das gentes o irreprimível arrepio emocional; em todo o caso, o guia da esquadra de
profundidade da expedição de Max Cosyns, sepultado na sua pista depois de ter sido derribado
pela asa da morte na simplicidade trágica das consequências de uma queda vertical de 40
metros, nas profundezas de uma caverna, bem merece a comovida lembrança e o respeito
daqueles outros trabalhadores que, em qualquer parte do mundo e não importa sob que
bandeira fizeram o dom de suas vidas à investigação científica; bem merece a homenagem
de quantas, perdidas já as restantes ilusões, souberam guardar intacto e virginal esse fecundo
amor de conhecer.
Outros espeleólogos em outras cavernas continuarão a descer para a profundidade,
arrastados por esse sadio desejo de rasgar o véu, de devassar o mistério, solicitados pelo
aliciante apelo do desconhecido – e esses homens bem poderão levar em seus corações,
como lábaro, o nome de Marcel Loubens.
Luctor et emergo 8
No primeiro ímpeto, por mais duros que sejam os golpes despedidos, a adversidade só
leva de vencida aqueles que se dão por vencidos, apenas terá poder sobre esses quantos que,
cruzando os braços, se tornam presa fácil do desânimo e renunciam à luta. Mas quando os
golpes cruéis ganham persistência e, desapiedados, minam as mais ardorosas forças morais,
não seria justo rotular de fraqueza a inevitável rendição, já que a resistência e a capacidade
de sofrimento dos seres humanos têm seu limite. Nestas circunstâncias, o que maravilha é
haver quem recuse obstinadamente render‑se e saiba encontrar, na chaga aberta das próprias
feridas, novos alentos para defrontar as vicissitudes amaríssimas do seu destino – e dessa
têmpera é forjada a alma indómita dos Holandeses.
Palmo a palmo, vitórias alternando com desaires numa luta incessante e sempre renovada,
gerações de Holandeses, ao longo de séculos de esforços coordenados e persistentes,
conquistaram aos pântanos e às turfeiras, ao domínio marinho e aos alagadiços dos rios,
duas quintas partes da Terra Pátria. Quilómetros e quilómetros de diques; milhares e milhares
de moinhos para esgotamento das águas; canais e mais canais de drenagem; um polder a
somar‑se a um outro polder; a coalescência de ilhotas costeiras, as tranquilas perspectivas
das terras baixas, o magnífico tapete dos campos de tulipas – tudo isso testemunhava e
constituía os troféus da vitória. E aos obreiros denodados desse triunfo bem cabia o direito de
afirmarem orgulhosamente que «Deus criou os mares, e o Holandês fez as costas».
Mas, apesar de tudo, a ameaça sempre eminente das águas não permitiu jamais uma
pausa no esforço, porquanto esses dois quintos da superfície total do solo pátrio estão abaixo
do nível do Mar do Norte; e, deste jeito, se um dique rebenta, se as ondas alterosas rasgam
brecha na linha de dunas, logo as águas entram de roldão, a subverter abruptamente, num
torvelinho de morte e destruições, todo o justo prémio da tarefa tenacíssima.
E isso aconteceu muitas vezes, tantas que bem poderá dizer-se não haver um século da
história das Províncias Unidas que não registe a memória de perdas temporárias ou definitivas
de territórios anteriormente conquistados ou em vias de recuperação. E ao evocar os lances
emocionantes da batalha sempre acesa, importa considerar que opor-se obstinadamente à
fúria cega das forças naturais não é missão para qualquer – mas o Holandês, esse, dir-se-ia
que foi talhado para tal. Com efeito, sempre que a mortalha das águas cobriu tragicamente
os polders devastados e as aldeias destruídas, a gente holandesa, após um primeiro instante
de assombro, tem sabido em todos os tempos reagir corajosamente, voltar de novo à luta,
continuar o esforço fecundo da conquista da terra mártir.
E gora mais uma vez um sopro de tragédia varre avassaladoramente as terras baixas.
Sob o ímpeto brutal das marés vivas conjugadas com furiosas tempestades, estacarias e
diques abriram brechas, esventrados, desfeitos pelo violento martelar das águas revoltas;
Nocturno compostelano 10
Atenuado pela distância e pelos sucessivos anteparos de quarteirões velhos de séculos, o
bulício exuberante dos que passeiam e se enamoram nos modernos jardins de La Herradura
não perturba, ao de leve sequer, a serena melancolia do cair da noite neste dédalo de ruas e
pracetas circunvizinhas da grande catedral. E, de súbito, ao dobrar de mais uma esquina, o
santuário famoso — meta almejada dos milhões de peregrinos que, nos tempos medievos,
desfilaram em torrente pelo caminho de Santiago — surge desafogado e solene, obrigando-
nos a erguer os olhos para que descortinemos no negrume dos céus a perspectiva aérea da
fábrica magnífica.
Alheio e à distância de séculos da corrente caudalosa da peregrinação, apenas mais um
no couce dos muitos milhares de turistas que vieram após, chegou alfim a minha hora de
pisar também o lajedo granítico desta encantadora Plaza de las Platerias. E, se em lugar da
fé dos peregrinos de antanho, se em vez do bordão e do bornal deles, trago comigo o meu
criticismo céptico, uma câmara de cinema a tiracolo e deixei lá em baixo, à porta de uma
fonda estudantil, o auto em que viajo — nem por isso, chegado aqui, deixo de experimentar
uma extraordinária e profunda emoção, emoção arrebatadora que nasce do sentimento do
belo, que brota impetuosa dos reflexos subjectivos da obra feita; emoção que fico a dever a
não sei que anónimos artífices consumidos já no pó dos séculos, a esses quantos arquitectos,
canteiros e imaginários que, empolgados por sua crença fervorosa ou por anseios de ideal
Pormenor de retábulo 11
No resguardo do vetusto recinto muralhado, a evocadora Lugo — que foi capital dos
Suevos — ficara quilómetros para trás, volvida já apontamento breve no meu caderno de
viagem. E, transposto o âmbito ameno e fresco do mimoso vale do Minho, não tardaria que
a sóbria traça das linhas mestras do cenário acusasse a simplicidade austera das superfícies
altas do velho maciço galaico. Lá longe, na melancolia dos horizontes distantes, serranias
arrasadas ainda soerguem pesadas dobras de relevo; mas, nos imediatos confins, apenas a
profunda cutilada de um que outro valeiro introduz pormenor destoante na branda ondulação
da severa topografia.
No descair despenhado das encostas e no rígido desenvolvimento das chapadas, a
pedra punge um pouco por todo o lado — e, por entre os fraguedos, esparsas brenhas
de giestas e algum tojo quebram a monotonia dos escalvados. E há castanheiros e mais
castanheiros, e carvalhos, e faias, e olmos. Aqui e além, aponta o bucolismo de prados onde
pascem cabeças e mais cabeças de gado bovino. De longe em longe, algumas poucas leiras
amanhadas desdobram-se em torno dos raros núcleos povoados, ao redor desses humildes
casais cobertos de lousa.
Triste e severo, este recanto da paisagem galega.
Chovera de manhã - e, lavada por essa chuva miudinha e fria, a tira asfaltada da carretera
espelhava sombrios reflexos... Nuvens esfarrapadas pelo vento passavam céleres, a roçar de
leve o tope dos castanheiros; na tristura dos planos longínquos espessara-se mais e mais a
cortina de nevoeiros baixos. Não restava um palmo de azul em toda a redondeza do céu.
Disparado como seta, passara por nós, caminho de Orense, um auto de matrícula
francesa. Ainda lhe ouvíamos o ranger dos pneus no desfazer de uma curva, quando nisto,
abruptamente, como se tivera lugar súbita revolução no fluir lógico das idades, como
se o tempo corresse vertiginosamente ao arrepio, todo o sincronismo coerente de havia
instantes ficou baralhado, confuso - e tal ocorreu quando, sem tir-te nem guar-te, aquele
velho, ressurgindo do fundo dos séculos, venceu uma derradeira volta de atalho e entrou na
estrada.
Aquele velho...
Talhado a toscos golpes de podoa num qualquer madeiro de duro roble, apenas numa ou
noutra feição houvera o esmero de delicados toques de goiva. O burel humilde dos peregrinos
vestia-lhe o corpo magro. Um leve bornal pesava-lhe nos míseros ombros descaídos; numa
dobra do esparto que lhe cingia a cinta, trazia presa uma cabaça. Nos olhos fatigados havia
um lampejo de fé e de febre; na seca mão nodosa, o bordão de caminheiro; na cabeça, um
enrodilhado chapéu de pano alvadio. Um ventinho ligeiro, que soprava das Astúrias, agitava-
lhe brandamente a prata dos finos pelos da barba...
Ele quedara, especado nas esguias e nervosas pernas de velho montanhês, a considerar-
nos, surpreso da brusca paragem que fizéramos. Estava queimado do sol das jornadas,
macerados os pés das léguas do caminho, cobertas as sandálias do pó das veredas percorridas.
As vieiras pendentes da romeira e o tradicional caminho de peregrinação por onde vinha de
rota batida mostravam claramente o destino que demandava – e esse era o santuário famoso
de Santiago de Compostela,
Aquele velho – sim, ele teria seu moio e pico de anos – teve para nós um franco sorriso
de simpatia humana e, num arroubo de alegre misticismo, ficou a dizer-nos ingenuamente
da jornada que empreendera. E, enquanto ele falava, a minha perplexidade aumentava de
ponto, pois não acontece todos os dias que nos salte assim pela frente um testemunho
vivo do século XII. E de mim para mim, repetia-me insistentemente que para não haver
anacronismo, para que não existissem contradições temporais, importava que este velho
e o automóvel, e as torres de alta-tensão, e os postes telegráficos e esta minha câmara de
cinema não coexistissem no espaço e no tempo. Sim, porque tal simultaneidade de presenças
chegava a ser inquietante.
Se a oportunidade era quinhão do velho, então que desaparecesse tudo quanto afirmava
o século XX! Se a justeza no tempo lhe competia, então que passassem ricos-homens e
A palavra e a imagem
A Serra dos Candieiros: extremo setentrional Cultura de arroz de montanha na ilha de Lução
(Filipinas)
Alfredo Fernandes Martins
157
“Aceitar como pertinente a imposição tirânica do quadro natural, seria diminuir a condição
humana, restringir o valor da inteligência e desse extraordinário instrumento que é a mão.
E ainda mais: significaria aquiescência a um dogma tão absurdo como esse de admitir a
invariabilidade de actuação deste ou daquele grupo de homens num determinado meio,
quer esses grupos estivessem apetrechados com a rudimentar técnica dos primitivos, quer
senhores de uma qualquer outra cultura mais adiantada na escala do progresso.
Assentemos que nem todas as transformações culturais da paisagem, nem todas as
migrações de grupos humanos, nem a maior parte das fronteiras, nem todas as fórmulas
jurídicas, nem os regimes políticos poderão ser fatalmente explicados única e exclusivamente
pela posição ou pela situação geográfica, tomadas que sejam estas duas noções na totalidade
do seu significado fisiográfico, isto é, com tudo o que implicam quanto a clima, solo, relevo,
tipo de associações vegetais espontâneas ou distância ao mar” (Á guisa de prefácio. Princípios
de Geografia Humana, de Pierre Vidal de la Blache, 1954 - 2ª edição).
Legenda:
1 – Abóbadas anticlinais; 2 – Cuvetas sinclinais; 3 – Abrupto de escarpa de falha; 4 – Grande abrupto de es-
carpa de falha; 5 – Frente de cavalgamento; 6 – Cavalgamento que se traduz por uma inversão do relevo; 7 –
Valeiros suspensos por falha; 8 – Escarpa de erosão, cornijas de calcário duro de vertentes abruptas dos vales;
9 – Canhão; 10 – Vale transversal de dobras anticlinais células cársicas (uvalas, vales cegos); 15 – Sector onde
predominam os valeiros de vertentes em down; 16 – Perda; exsurgências e ressurgências; Ponors emissivos;
17 – Superfície pliocénica dos confins ocidentais do Maciço; 18 – Bacia terciária do Tejo; 19 – Rochas eruptivas
eocénicas que se traduzem no relevo; 20 – Colinas modeladas nas formações do Neojurássico; 21 – Colinas
modeladas no Belasiano; 22 – Belasiano do fundo do graben dos Amiais; 23 – Bacia cretácica de Ourém; 24
– Vales tifónicos; 25 – Regiões calcárias carsificadas exteriores ao Maciço; 26 – Nível da charneca; 27 – Forma-
ções siliciosas grosseiras superficiais jacentes nos planaltos; 28 – Planaltos carsificados: a – planalto de Santo
António; b – planalto de São Mamede; c – plataforma de Fátima.
Abreviaturas: F – Fátima; A – anticlinal do Alqueidão; M – Minde; Md – Mendiga.
N.B. – Por lapso não foram figurados no desenho as manchas da formação siliciosa grosseira do Arrimal e de
Santa Catarina da Serra.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
160
Jangada (Raiva)
“A Estrêla é a abóbada mais saliente do solar português; de cenário sempre variado – nos
desfiladeiros, nos esporões majestosos dos Cântaros, nas naves, nas lagoas – tudo nela é
grandioso, tão grandioso que se traduz, como notou Emídio Navarro, pela persistência dos
aumentativos na toponímia local – fragões, covões, malhões – tal a impressão recebida pelos
que se deslocam nessas paragens.
O Mondego é o fulcro! De todos os rios que drenam o planalto beirão, ele será o único
a atingir o mar. Por isso os outros lhe prestam vassalagem – pagam-lhe o tributo das suas
águas.” (O esforço do Homem na Bacia do Mondego)
“E a humilde gota de água que não desceu os declives da superfície para, sempre à luz
do Sol, seguir até o mar, essa humilde gota, símbolo de tantas outras que se infiltram por
uma diáclase, por uma juntura, por um algar, por uma fenda qualquer, para deslizarem,
murmurando, nos canais subterrâneos ou rolar nos lagos de húmidas abóbodas, panejadas de
estalactites, essa gota foi, e é, um maravilhoso escultor” (O Maciço Calcário Estremenho).
“A minha Mulher
Camarada que tantas vezes marchou a meu lado”
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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Rui Jacinto
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José Manuel Pereira de Oliveira (Santa Maria, Torres Novas, 2 de Julho de 1928 –
Coimbra, 2006), licenciou-se em Ciências Geográficas (1955) e defendeu em 1973 a sua
tese de doutoramento em Geografia Humana sobre “O Espaço Urbano do Porto. Condições
Naturais e Desenvolvimento”. Além desta obra e de “Trabalhos de Geografia e História”
(1975), coletânea de trabalhos, revistos, reeditados e inéditos, publicou dezenas de artigos e
foi coordenador de diversos projetos de investigação nacionais, onde se destaca: Dinamismos
sócio-economicos e (re)organização territorial: processos de urbanização e de reestruturação
produtiva (Programa de Estimulo no domínio das Ciências Sociais - PCSH/C/GEO/143/91)
e GEOIDE: Geografia, Investigação para o Desenvolvimento (ALFA’ Programme – Project
3.0214.8), dinamizado pela Rede ATLANTIS, que envolveu geógrafos das Universidades
de Coimbra, Bordeus III, Salamanca, Middlesex University, São Paulo-Presidente Prudente
(UNESP), Católica do Perú e Autónoma do México, dando inicio ao diálogo que a Geografia
de Coimbra viria a intensificar com as Universidades brasileiras.
Professor catedrático (1983-1998) e coordenador dos mestrados em Geografia da Facul-
dade de Letras da Universidade de Coimbra, foi Doutor Honoris Causa pela Universidade do
Porto (2001), sócio fundador da Associação Portuguesa de Geógrafos, da Comissão Nacional
de Geografia (vice-presidente e presidente em 2000), membro do conselho científico para
a instalação do Curso de Geografia da Universidade do Minho (1996-1997) e presidente da
Comissão Permanente de Avaliação Externa das Universidades Portuguesas para a área da
Geografia.
Foi Delegado Regional da Região Centro, do Ministério da Cultura (1980-1989) e re-
presentante de Portugal no grupo de peritos do Projeto n.º 10 - “Cultura e Região – Dinâmica
Cultural e Desenvolvimento Regional”, do Conselho da Europa.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
166
“O espaço urbano do Porto, definido pelo seu perímetro administrativo actual, organizou-
se no decorrer dos séculos sobre uma superfície topográfica que não apresentava grandes e
inultrapassáveis obstáculos à humanização.
(…) Nascida, talvez, do esforço de travessia do Douro, no cruzamento que se tornaria
cheio de vicissitudes mas também de riquezas, teve primeiro que se defender, trepando e
resguardando-se em amuralhado e exíguo âmbito, rochoso e alto. Dali comandava o rio e
o seu tráfego que em breve fazia alastrar actividades e povoamento ao longo da ribeira do
Douro.
Seguro, assente e organizado, primeiro em termos de senhorio doado e mais tarde,
depois de longas e tenazes lutas que envolveram a Mitra, a Coroa e a efervescente massa de
mercadores e mesteirais, como município com foral próprio, alastrou trepando penosamente
a vertente difícil do Douro, a favor do afeiçoado passo insculpido pelo rio da Vila, contido no
âmbito da muralha que D. Afonso IV iniciou e seu neto D. Fernando concluiu.
Delineada com largueza, a cinta amuralhada, tempos depois, não podia mais conter a
crescente urbanização.
Vencida a vertente, sucedeu-lhe a expansão no espraiado das áreas largamente
trabalhadas no granito ou nos revestimentos quaternários das praias antigas e dos terraços,
pelas cabeceiras dos afluentes do Douro e do Leça.
Segue como linhas-mestras os velhos traçados viários que, vindos de longínqua data,
permaneceram funcionais até aos nossos dias, escoando em direcção ao porto e às pontes
de passagem as riquezas de entre Douro e Minho e Trás-os-Montes a encontrarem-se e a
trocarem-se com as que provinham das Beiras interior e litoral, ou do S e todas a reunir-se
para saírem a barra em direcção aos portos da Europa, em especial os de França, Inglaterra,
Flandres c mais longe ainda, do Báltico e do Mediterrâneo, da África e da Índia, de onde
lhe chegavam em troca novos e diferentes motivos de comércio a par de luzes de saber no
domínio das ciências e das artes. (…)
Foi assim alastrando o desenho do seu casco e enriquecendo as suas actividades, quase
colmatando hoje o território que viu o seu perímetro definido nos fins do século passado.
Não deixou, porém, de diversificar-se no seu todo. Na complexidade das relações
entre as suas construções, as suas ruas, e as suas praças, jardins e matas, públicas ou
privadas, concentraram-se ao longo dos séculos estruturas espaciais diferentes, ocupações
predominantes, quer habitacionais, quer de labor que ora se segregam ora se confundem,
criando ambiente e paisagens urbanas distintas.
Sem grande esforço é possível verificar através de uma deambulação cuidada a riqueza
de variedade dessas paisagens.
Eis todo um espaço urbano que está longe de ter uma mesma densidade de povoamento,
que mostra ainda amplas clareiras de ambiência rural, mas que no contexto regional se
distende, prolonga e coalesce. Com as áreas urbanas ou suburbanas dos concelhos limítrofes
com os quais de há muito estreitou fortemente os laços de uma ampla gama de interesses.”
(O espaço urbano do Porto, 1973: 440-441)
Avenida dos Aliados. Monchique. Restos do edifício do Convento e da casa das Sereias
Passeios calcetados a preto (basalto)
e branco (calcário)
Muro dos Bacalhoeiros. Restos das muralhas A Rua de Miragaia. Os famosos cobertos
fernandinas
O Largo da Feira de São Bento (actual Praça de Almeida A Rua de «O Comércio do Porto», antiga Rua Nova
Garrett), vendo-se a Rua do Corpo da Guarda, A Rua de São Francisco ou da Ferraria Nova ou de Baixo
de Mouzinho da Silveira e a Rua das Flores
A Rua Escura. Ao fundo, A Rua Escura. Mercado de levante A Rua Escura. Mercado de lavante
a Cruz do Souto
Rua de São Victor. Uma ilha Rua de São Victor. Entrada de uma Rua de São Victor. Uma ilha do tipo
ilha, sob um prédio varanda
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
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Lisboa Lisboa
Lisboa
Paris Paris
(Fotos de 1999)
Messias Modesto dos Passos
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Colonização e garimpo
(Fotos de 2004)
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O Garimpo no Tapajós. O garimpo seduz como mulher, embriaga como bebida e vicia
como o jogo” (Anônimo).
Para muitos o “garimpo é a última fronteira”. No entanto, a extração informal (e nem
sempre tão informal) desse precioso mineral faz parte da história socioeconômica e cultural
de uma vasta área do eixo da BR-163 que, grosso modo, poderia ser delimitada a partir
de Peixoto de Azevedo, no estado do Mato Grosso e se prolongando até o estado do Pará
- Castelo de Sonhos, Novo Progresso e, notadamente o Crepori e o Creporizinho que mo-
tivaram a construção da Transgarimpeira, a partir de Moraes de Almeida.
As áreas de influência das cidades de Castelo de Sonhos, Novo Progresso, Moraes de
Almeida têm suas origens e sua economia atual, baseadas no tripé: garimpo de ouro, ma-
deira e pecuária.
A colonização privada alcançava assim, via Cuiabá-Santarém, as frentes garimpeiras
que desde o final dos anos 1950 já vinham ocupando pontualmente áreas densamente
irrigadas e ricas em ouro de aluvião no vale do Tapajós, ao sul do planalto santareno, em
torno de rios como o Jamanxim, o Crepori e Creporizinho, e que se encontram na origem
de cidades como Castelo de Sonhos e Novo Progresso.
Com a decadência do garimpo, a atividade madeireira foi tomando espaço na região,
com grande influência no processo de ocupação de Castelo de Sonhos.
(Fotos 2004)
(Fotos de 2015)
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
178
O Noroeste do Paraná. Das três parcelas territoriais da raia, o Noroeste do Paraná foi a
única contemplada com uma concepção moderna de colonização: a construção de vias de
circulação e o desenho de pequenos centros urbanos, “coordenados” por cidades de porte
médio (Maringá, Paranavaí, Cianorte, Umuarama
); ao mesmo tempo, o parcelamento dos
lotes rurais obedeceu a uma concepção, cujo objetivo maior era o dinamismo da economia e
das relações amplas determinantes para o desenvolvimento regional.
No entanto, o ciclo do café” no Norte do Paraná, que motivou todo o processo de
ocupação inicial (1930), entrou em crise a partir dos anos 1970. A crise da cafeicultura resultou
na migração da população jovem para as cidades da região e para a Amazônia brasileira. A
população envelhecida se presta como indicador da falência do modelo implantado pela
Companhia de Terras Norte do Paraná.
O Sudeste Sul matogrossense. A ocupação do Sudeste Sul mato-grossense foi uma
consequência lógica (“osmose”) da capitalização observada nas áreas próximas e de ocupação
anterior. O fato do capital “externo” se apropriar, majoritariamente, do espaço tem um peso
significativo (negativo) na gestão do território, ainda hoje.
“O espaço humano - do ser - não é um dado a priori, ele é sempre construído, estando,
assim, destinado a sofrer variadas transformações. Se é válido admitir que “o lugar é uma
parte do ser”, isso corresponderia a considerar que a construção do espaço cotidiano
acompanha a construção do ego. O espaço do Homem, ou seja, o imaginário do indivíduo
e aquele do coletivo na realidade social deveriam estar em sintonia, devendo o primeiro
estruturar o segundo. (…)
O “olho armado” do geógrafo seria um pré-requisito basilar e primário capaz de enfrentar
as dicotomias e jogos de contraste que se apresentam como expressões de realidades básicas
e não como maldições intransponíveis a decifrar. A suposta “maldição” de confrontar o
homem e o seu meio (sociedade e natureza) associa-se às oposições dia-noite, sol-chuva,
frio quente… vida-morte, numa complementariedade que sob a passagem do tempo, e
expressando-se diferentemente nos espaços, revela, exibe o trabalho do homem em ordenar,
afeiçoar a obra da natureza, supostamente caótica em seu(s) cosmo(s).
E os lugares do homem, em suas diferentes configurações, tradicionalmente vistas como
“regiões” - associemos este vocábulo à ideia básica do que perseguimos sob diferentes vieses
- não são objetos de preocupação apenas para os geógrafos, no campo científico, pois que
são facilmente identificáveis no domínio das artes, como a literatura onde o “regionalismo”
é uma exaltada categoria.”
(CACM, 2008 – Geografia Sempre. O Homem e seus mundos. Ed. Territo)
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
181
Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória ( Capa do vol. 3). Fazenda O BONITO, em Alto Longa, Piaui. 1993.
Deslizamentos na Estrada Rio-Santos. Excursão sobre problemas ambientais. Reunião circulante com colegas russos. Julho
de 1982. Desenho feito com caneta esferográfica..
Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória. Matadouro Municipal de Teresina, Piaui. Desenho a nanquim e guache. 1993.
Arredores da cidade de Sugadaira, deixada de lado pela ferrovia, parou no tempo e tornou-se um laboratório de geografia
urbana. Desenho feito a nanquim e grafite. Japão, Outubro de1982.
Figura ilustrativa da obra Rua da Glória. Casa do coronel Abílio Pedreira Veras, na esquina da rua da Estrela com o Lago do
Poço. Desenho feito a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993
Figuras ilustrativas da obra Rua da Glória. Casa do Dr. Evandro Rocha, na rua da Glória ao lado do Mercado Publio. Desenho
feito a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
183
Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória. Duas fazendo piauinses pertencentes a família Castelo Branco. O desenho superior
da fazenda São Domingos hoje esta ocupada pelo MST (Movimento dos Sem Terra). O desenho abaixo.tiff
Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória (Capa do vol. 1). Casa do Capitão Ludgero, bisavô do autor, situada na rua da Glória,
feita de adobe e palha. Desenho a nanquim e guache. Teresina, Piaui, 1993.
Paisagem da cidade de Kanasawa, onde se destaca a rua coberta, a direita no desenho. Desenho feito a naquim e grafite.
Japão, dezembro de 1982.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
184
Paisagem da cidade de Florianópolis. com destaque para ponte Pencil, ao fundo. Desenho a naquim. Março,1986.
Figura Ilustrativa da obra Rua da Glória. Casa do Major Santidio, avô paterno do autor, situada à rua Santo Antônio. O entor-
no é reconstituição do inicio dos anos 30. Desenho a nanquim e guache, 1993.
Caderno de campo. Anotações e croquis. Registros de Caderno de campo com anotações e croquis feitos na
quilometragem e croquis da paisagem feitos com Bahia em 1979
o carro em movimento. Bahia, 1979.
Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
185
Jornal produzido artesanalmente pelo autor, em cada estação do ano, onde informava aos amigos sobre suas atividades no
Japão. Exemplar do outono de 1995.
Cartão de saudações de Natal e Ano Novo, 2007. Miolo do cartão com desenho da paisagem da Cidade de Ouro Preto, 2001
feito pelo autor. Perfis do autor aos 18 anos feito por um artista no Pão de Açúcar, RJ e aos 79 por artista mineiro.
Bloco Diagrama. Representação tridimensional dos sistemas atmosféricos atuantes na região norte do
Brasil. Desenho feito com caneta esferográfica, 1998.
Bloco diagrama da parte centro-norte do território piauiense, contextualizando relevo, drenagem e as locali-
dades importantes que constam na obra Rua da Glória. Desenho feito a nanquim e grafite, 1993.
187
mirada. Son testimonios, ciertamente, de un medio rural vivo, pero cargados entonces de
pobrezas, miserias, marginación y olvido. Y en estos entornos descubrimos hoy verdaderos
paraísos.
Estamos ante unas nuevas relaciones campo-ciudad que redefinen el significado de los
lugares y del medio rural. En unas circunstancias de crisis tan difíciles y complejas como la
que padecemos, y en el contexto de una globalización que no reconoce los límites y culturas
diferenciadas en la ocupación del territorio, el reencuentro con lugares lejanos o próximos
nos lleva a la reivindicación de unos vínculos más respetuosas con las herencias patrimoniales
y con esa biodiversidad geográfica que intentamos recoger en nuestra mirada. El lugar y los
lugares aquí representados nos recuerdan la trabazón social y humana en la construcción
de los territorios, la conciencia de pertenencia, la necesidad colectiva de cuidar y custodiar
la tierra, la defensa y conservación de los bienes comunes, tal como hemos señalado en
otros escritos (2006, 2012, 2014, 2015, 2016), o el encuentro con paisajes y referencias
inmateriales que nos emocionan y nos reconcilian con entornos cargados de memoria y
humanidad. Pensar el territorio y descubrir las enseñanzas de sus paisajes y de sus gentes
sigue siendo apasionante. Y una necesidad vital.
Monsanto 1995
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
190
Monsanto 1995
Aliste
Miranda 1999
Valentín Cabero Diéguez
191
Arribe 1999
Astorga
Astorga
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
192
Castrillo de Cabrera
Manzaneda 1972
La Guardia
Valentín Cabero Diéguez
193
Carucedo 1985
El Salvador
Naranjos 1991
Albufera 1991
Bujaraiza
Valladolid 1991
Jucar 1991
Sampaio 1997
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
196
Iguazú 1997
Maringa 1997
197
Rogério Haesbaert
Natural de São Pedro do Sul, Rio Grande do Sul, onde nasceu em 1958, é licenciado e
bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Santa Maria (Rio Grande do Sul), mestre
em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, doutor em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo (com estágio doutoral no Instituto de Ciências Políticas de Paris) e
com pós-doutorado na Open University (sob supervisão da geógrafa Doreen Massey).
Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
Fluminense (Niterói, Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Territoriales
y Ambientales da Universidade de Buenos Aires. Professor visitante na Open University
(Inglaterra), universidades de Paris VIII e Toulouse-Le Mirail (França), no CRIM-UNAM
Cuernavaca e na Cátedra Élisée Reclus do Colégio de Michoacán (México) e na Universidade
de Tucumán (Argentina).
Autor, entre outros, de “O mito da desterritorialização: do ‘fim dos territórios à
multiterritorialidade” (também publicado em espanhol), “Regional-Global: dilemas da região
e da regionalização na Geografia contemporânea” (no prelo em espanhol) e “Viver no Limite:
território e multi/transterritorialidade em tempos de in-segurança e contenção”.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
198
que já ficaram no passado, mas na capacidade de evocar, num futuro presente, identificações
e diferenças que fazem de nossas vidas algo mais fértil e mobilizador.
Essas imagens, mais do que “meus” retratos, a partir de agora podem fazer parte, também,
do imaginário de cada um de seus visualizadores. Elas demonstram, assim, com clareza, penso,
o poder que a representação (fotográfica ou não) de nossas paisagens (pois paisagem é, antes
de tudo, re-presentação) podem ter na reconstrução de nossos lugares enquanto espaços
efetivamente vividos.
Sem esquecer que o viver é sempre, também, profundamente criativo e simbólico.
Que a diferenciação manifesta dos lugares configurados através dessas imagens possa ser
reinventada na simbologia vivida própria de cada um de seus novos “leitores”.
Janela artesanalmente esculpida em casa Café da manhã no alto de uma casa em Luxor,
da aldeia de Antoetra - Madagascar, 2013 visto de um balão - Egito, 2010
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
200
Casa-túnel construída pelos vietnamitas durante Casa com arquitetura de influência colonial
a guerra, na área da antiga fronteira do Vietnam francesa em Ambositra - Madagascar, 2013
do Norte com o Vietnam do Sul, 2012
Casas-palafitas no lago Tonle Sap - Camboja, 2012 Barco-casa no delta do rio Mekong, Vietnam, 2012
Barco encalhado durante maré baixa no delta Cena cotidiana em aldeia da minoria tai junto
do Mekong - Vietnam, 2012 ao lago Ba Be - norte do Vietnam, 2012
Lavagem de roupa junto à ferrovia no planalto Motocicleta em estrada no norte do Vietnam, 2012
de Madagascar, 2013
Transporte em burrico - Memphis, Egito, 2010 Carrocinha de gás puxada por burrico - Luxor, Egito
Burrico á espera de turistas cansados - Petra, Jordânia, 2011 Sobrecarga no porto de Nuweiba,
península do Sinai - Egito, 2010
Barcos na baía de Ha Long, norte do Vietnam, 2012 Ferrovia Fianarantsoa-Costa Leste, Última
linha de trem de passageiros do país, 163 km
percorridos em 13 horas - Madagascar, 2013
Templo budista de minoria cambojana no sul do Vietnam – 2012 Templo nabateu Al Khazneh - O Tesouro
- Petra, Jordânia, 2011
Monastério budista de tibetanos fora do Tibet oficial, Labrang, província de Gansu - China, 1992
203
Jorge Gaspar
Por isto, o simpático convite do Rui levou-me à mais infrutífera das escavações.
Então, fiz ao contrário, escolhi os temas e fui buscar uma ou outra foto que se
adequava. Enfim, foi o que se pode arranjar e assim cheguei a este breve roteiro de
memórias e vivências, no sentido com que Ortega Y Gassett cunhou o termo.
Como disse, parti da memória para a fotografia, embora algumas vezes tenha
sido obrigado a fazer o percurso inverso, pois a fotografia é também um estimulador
de memórias. Mais, a fotografia inquieta, acorda o esquecimento. E aí a ação começa
a ser interessante, interessante e perigosa.
2. Imilchil – 1966
Naquele tempo Imilchil, no Alto Atlas, não era o cartaz turístico dos nossos dias,
mesmo o acesso automóvel era difícil. A chegada foi surpreendente: o azul do céu
e das lagoas, no meio do silêncio envolvente, são imagens guardadas na memória
da nossa imaginação e que então, como hoje, remetem para o que idealizamos
como um ”teto do Mundo”. Mas a grande surpresa aconteceu quando contatámos
as gentes e em particular as crianças, e olhámos as cabeças rapadas e as longas e
perfeitas tranças, um dos sinais da identidade cultural dos Aït Yaazza.
4. Monsaraz – 1967
Os Portos Fluviais do Tejo foi o título de um artigo que se publicou antes do tempo,
por oportuna falta de material, para a Revista Finisterra. Este proto-ensaio, originaria a
mais repetida e consagrada viagem de estudo/excursão com os alunos do 1º ano.
Replicou-se uma vez, com o Centro Nacional de Cultura: foi a grande aventura
- DE LISBOA AO ESCAROUPIM – em estilo de expedição, subir o Tejo com a maré
numa Lancha de Desembarque Media (LDM) que tinha feito as campanhas da Guiné;
acampamento e caldeirada no areal da margem esquerda do Tejo, peixe apanhado
pelos avieiros no mesmo dia… foi pelos feriados de junho de 1981, dias memoráveis
em que os termómetros atingiram temperaturas superiores a 40 graus.
Jorge Gaspar
207
9. Bombaim – 1983
Ao longo de duas décadas, quase sempre por convite de Manuel Vicente, trabalhei
em vários projetos para este território, que em 1980 tinha 16km2 e em 2000 já
chegava aos 25 e hoje já passa dos 30km2. Aí experienciei a contínua tensão entre
passado, presente e futuro no trabalho do geógrafo. O projeto do fecho da Baía da
Praia Grande, que originou dois lagos urbanos, mantendo o desenho da linha de
costa, foi talvez o mais importante projeto urbanístico levado a cabo em Macau. O
trabalho multidisciplinar, coordenado por Manuel Vicente, foi não só estimulante
como compensador e educativo.
Jorge Gaspar
213
Cidade e topónimo que fazem parte do meu imaginário recôndito, situa-se entre
o continente dos lugares imaginados e a lista das cidades vivenciadas, na companhia
de Bartolomeu Cid dos Santos (cf. Gaspar, 2013). Mesmo depois de visitada e
calcorreada continua a pertencer ao território das imaginações.
A par de Fez, que visitei várias vezes entre 1965 e 1978, o Cairo oferece impressivas
paisagens urbanas, que estimulam a aventura da Geografia. Não será por acaso que
ambas inspiraram Ibn Khaldun, um dos grandes pensadores da Idade Média (Tunis,
1332 - Cairo, 1406), que descreveu essas paisagens em textos memoráveis.
Jorge Gaspar
217
Desde criança que a paixão pela Geografia foi acompanhada pelo amor ao cinema
e com o tempo as pontes foram sendo lançadas. Io sono Li (Shun Li e o Poeta,2011)
é um filme delicioso, que se insere num humanismo global, o que aproxima Andrea
Segre de Ang Lee. Foi o filme que me levou a Chioggia, uma cidade da Laguna, que
se desenvolveu na órbita de Veneza. A cidade vale bem a viagem, mas descobrir os
ambientes em que decorre o filme alarga o mapa, o que já me levou a Pasolini, Tor
Pignattara, Banglatown e a Roma, pela via Casilina.
Imaginar o Território | Geografia e Poética do Olhar
218
219
Monteiro Gil
A obra sólida e multifacetada construída por Monteiro Gil ao longo de décadas colocam-
no entre os principais cultores da imagem em Portugal no passado recente. No final da
década de 60, depois de frequentar a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, começa
por expor pintura, desenho e gravura antes de, a partir dos anos 80, assumir por inteiro
a fotografia como expressão criativa. A realização desta singela evocação de um artista
natural da Guarda, hoje e aqui, não é uma homenagem motivada por algum localismo
nostálgico que, embora legitimo, esconderia ou remeteria o meritório trabalho deste
criador para um plano secundário. Também não a podemos resumir a uma mera exposição
de fotografia, “Olhos nos Olhos”, que simbolicamente a materializa, já que representa um
apontamento numa obra vasta e qualificada, a merecer mostra mais ampla e demorada; o
que está aqui em causa é, apenas e só, aproveitar este ensejo para dar testemunho público
do inestimável contributo prestado por Monteiro Gil ao Centro de Estudos Ibéricos.
O caminho percorrido até aqui foi tecido por cumplicidades que se iniciaram durante
o oitavo Centenário da cidade da Guarda e a elaboração de “Um país de longínquas
fronteiras” (1999), iniciativas que coincidiram com o arranque do CEI e haviam de
culminar no lançamento e consolidação, em 2011, dum dos seus projectos emblemáticos:
“Transversalidades: Fotografia sem Fronteiras”. Sendo esta razão, por si só, suficiente
para justificar a inclusão desta homenagem a Monteiro Gil na programação da edição do
“Transversalidades 2016”, importa referir que aquela mútua cooperação passou ainda por
“Fronteira, Emigração, Memória” (2004) e “Um (e)terno olhar. Eduardo Lourenço, Vergílio
Ferreira e a Guarda” (2008).
O território e a imagem são denominadores comuns a todas estas realizações, elementos
que estão nos genes do CEI e estruturam uma agenda assente no compromisso assumido
para com os espaços mais débeis, frágeis e olvidados, como são os raianos, que apela
à imagem para os desocultar, integrar e, por esta via, ajudar a reabilitar a depauperada
auto-estima e identidade territorial. Fronteira, emigração, memória foram, pois, (e)ternos
olhares que levaram Monteiro Gil a percorrer diferentes rotas, pessoais e migratórias, a
passar por lugares e países sem nunca perder de vista a maternal Guarda, qual estrela
polar sempre a pairar no horizonte pessoal. Tal errância não deixou de alimentar o desejado
retorno, sentimento comum ao perseguido por todos os migrantes na expetativa de (re)
encontro com as origens, esse cais de partida e porto de abrigo, onde permanece ancorada
a ternura dos afetos que apenas se alcança entre os nossos, no aconchego do lar e do lugar
donde somos oriundos.
O itinerário pessoal de Monteiro Gil ajuda a interpretar a sua produção artística, mostra
como a obra não foi indiferente aos territórios que moldaram o olhar do seu criador.
Aproveitou uma das suas primeiras exposições, “Foto-Grafias” (1986), para enviar a
mensagem de “escrever com a luz”, seja a que espontaneamente o sol nos oferece, seja a
que emana do próprio olhar do artista. Se a tivesse designado “foto(geo)grafias” seria mais
consentâneo com o programa que assumiu e os projetos futuros que definem os contornos
da sua obra, onde assume a pretensão de (d)escrever a terra com a luz, mais ajustada
com a leitura e a interpretação do mundo que as suas fotografias nos revelam. Tendo este
universo como pano de fundo, a geografia da obra de Monteiro Gil é definida por espaços
e tempos que leio a partir de três coordenadas: a terra, a viagem, a cor. Este é, pois, o meu
olhar sobre o olhar de Monteiro Gil.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
222
Pensatempos: 82). No caso da presente exposição Monteiro Gil não “ilude essa identidade
que outros lhe conferiram, driblando os mitos redutores e folclóricos que tendem a serve-
lhe de moldura”. Além das pessoas e das suas circunstâncias, os belos retratos de Monteiro
Gil mostram tudo isto e muito mais.
Aprendi com Monteiro Gil a importância da cor, como “as claridades diurnas se
alimentam continuamente dos deslumbramentos noturnos”, como as fotografias limpas e
transparentes só acontecem se forem consequência natural dum olhar poético. Ensinou-
me um certo modo de olhar, ler e interpretar a fotografia, a beleza que podem esconder
as mais verdadeiras e autênticas, a necessidade duma entrega obsessiva e o rigor sem
concessões quando se pretendem imagens despidas de ruido. “Depois das aventuras
temerárias, das peripécias planetárias, das fugas selvagens e perigosas”, todos os viajantes
desejam regressar ao lugar de origem, abandonado, onde se pode reencontrar o eixo,
a bussola. A viagem, como o regresso, além de renovar a identidade, mostra como “a
geografia serve antes de mais para elaborar uma poética da existência” (Onfray, ob. cit.:
98; 112).
Como todo o filho pródigo aspira regressar ao lugar onde foi feliz, esta homenagem a
Monteiro Gil é um reencontro com a Guarda onde realizou, em 1968, no Hotel de Turismo
de boa memória, a sua primeira exposição de pintura. Que a exposição de Fotografia
“Olhos nos Olhos” antecipe uma merecida retrospetiva comemorativa de 50 anos de labor
criativo de Monteiro Gil, a realizar na Guarda em 2018.
As fotografias que exprimem o olhar de Monteiro Gil permitem-nos imaginar o mundo
e nele viajar sem sairmos da nossa área de conforto. Que o permitam, também, olhar com
outros olhos.
224
13/08/2002 – Argentina Vasco, menina na apanha do algodão, Machamba do Sr. Vasco Fernandes, Mutuáli,
Moçambique
Monteiro Gil
225
07/08/2002 – Jovem mãe comprando roupa para os filhos, mercado do Monapo Rio, Moçambique
Monteiro Gil
227
1 - 1998/99 - Espanha: Sala Julio Gonzáles - Ministerio de Educación y Cultura, Madrid; Museu Provincial de Cá-
ceres, Cáceres; Museu de Santa Cruz, Toledo; Antigo Convento de S. Lourenço, Talavera de la Reina; Portugal:
Cordoaria Nacional, Lisboa; Centro Cultural Raiano, Idanha-a-Nova; Galeria Municipal de Almada.
Marcela Vasconcelos
231
se referem aos lugares e formando trípticos com estas, aparecem as mãos, fotografadas
a preto e branco, uma forma metonímica de retratar as pessoas: a mão que faz o pão, a
renda, que modela a paisagem...
O humor e a dessacralização do que é tradicionalmente instituído como arte estão
presentes na obra do autor, desde os trabalhos anteriores à utilização da fotografia. É nesta
perspectiva que aparecem, entre outros, trabalhos como Bodas Opus 1, apresentado na I
Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira, 1989 ( de que foi fundador) e Os Lusíadas, na
exposição internacional O Livro de Artista (Galeria Diferença, 1983) .
O carácter lúdico do texto poético, que joga com as palavras, as desordena, reordena,
repete e usa em contextos diferentes ou com novos significados, também caracteriza o
trabalho de Monteiro Gil. É nesta perspectiva que se pode ver, entre outros, o projecto Foto-
Grafias, baseado em conjuntos de macrofotografias que reproduzem pormenores de pinturas
expressamente realizadas para esse fim pelo autor, combinadas de diferentes formas. Para lá
do jogo de texturas e de cores, do jogo entre o táctil e o visual, teremos aqui uma reflexão
sobre a pintura? Sobre a marca da mão e do pincel ou sobre a marca que a luz imprime no
material sensível?
Na primeira exposição deste projecto, Foto-Grafias,1986 (Galeria Diferença, Lisboa;
Cooperativa Árvore, Porto; Círculo de Artes Plásticas, Coimbra), as fotografias das pinturas
eram apresentadas em simetrias, formando painéis. Em 1987, na Caixa de Arte PIPXOU nº 0
(integrada na exposição colectiva Itinerários, no Museu de Arte Antiga) em Faça Você Mesmo,
os kits de fotografias seriam livremente combinadas pelo público. A instalação Assemblage
88 (Galeria Atelier 15, Lisboa e Encontro Europeu de Arte, Guimarães - 1989) trazia outra
novidade: as imagens tinham-se libertado do quadro (que deixara de existir) e associavam-se
em conjuntos de fotografias e de espelhos que percorriam as paredes. Novamente a pintura,
o jogo de texturas, de cores, de formas, e agora também de reflexos, num caleidoscópio que
reflecte o mundo e em que nos contemplamos. Uma reflexão sobre a função mimética da
poesia, da fotografia e da arte em geral? O que poderemos dar a ver que não se possa ver
fisicamente? Pode a fotografia ser uma visão ou um reflexo do mundo? Pode a fotografia
articular a realidade e torná-la inteligível?
O trabalho que está hoje reunido no Museu Vostell Malpartida, Cáceres, Espanha, com
o título My Memories integrou diversas instalações (1980-2010) em Portugal, Espanha e
Brasil 2. É actualmente um conjunto de quarenta caixas de cartão que podem ser dispostas
de diferentes maneiras, fechadas e lacradas. No exterior de cada uma delas, duas fotografias
do objecto que a mesma contém, assim como a respectiva memória descritiva. A caixa,
portanto, como um repositório de memórias ou “fragmentos de auto-retrato”. Ou como a
metáfora da câmara escura e da própria fotografia?
Se em “My Memories” a caixa encerra o objecto/memória, em Domestic Itineraries 3,
o autor conduz-nos “ao outro lado do espelho”, ao interior da caixa, uma vez que é a
intimidade do seu próprio espaço doméstico que é exposto numa linguagem lírica - porque
é de emoções e de memória que se trata. Cada recanto da sua casa é apresentado a preto
e branco, contextualizando um pormenor, a cores, em formato Polaroid, formando pares
fotográficos em cada quadro. Um jogo de enquadramentos que, enquanto seleccionam e
limitam o visível, sugerem novos enquadramentos, isto é, remetem para o invisível. Uma
encenação/realidade em que se adivinha a presença do autor como um dos actores que se
revelam e ocultam ao mesmo tempo, num jogo de sombras e de luz.
A mesma atmosfera silenciosa e poética, nostálgica em muitos casos, é, de resto, uma
das características das fotografias de interiores, em que Monteiro Gil explora sabiamente a
iluminação natural disponível para acentuar a marca intimista das imagens. E os habitantes
2 - 1980 - A Caixa - Galeria Diferença, Lisboa; 1981 - 25 Artistas Portugueses de Hoje - Museu de Arte Contem-
porânea de S. Paulo, S. Paulo, Brasil; 1983 - Palácio D. Manuel, Évora; 1999 – Encontros da Imagem, Braga;
2010 - CONCEPTOS - Selección de Fondos del Museo Vostell Malpartida – Museo Vostell Malpartida, Cáceres,
Espanha.
3 - 1998 – Paris Photo - Stand Galeria Diferença, Carrousel du Louvre, Paris, França; 2002 - Galeria Fonseca
Macedo, Ponta Delgada; 2004 - Stand da Galeria Fonseca Macedo em: Arte Lisboa, ForoSur 2004 - Feira
Iberoamericana de Arte Contemporâneo, Cáceres, Espanha, ArtSalamanca07 (2007) e Arte Santander 08
(2008), Santander, Espanha.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
232
desses espaços, bares, cafés, transportes públicos, contemplando até por vezes a própria
sombra, são a imagem do hábito transformado em memória.
Nas fotografias de exterior de As Pedras e o Tempo (exposição e livro), 1993 S.N.B.A.,
Lisboa ou de Lisboa Qualquer Lugar (exposição e livro), 1994 S.N.B.A., Lisboa, também há
um especial tratamento da luz natural que, ora se derrama pelas calçadas ou pelas superfícies
líquidas, ora dá lugar a sombras que cavam texturas e mistério.
Se a exploração da luz natural é uma constante em todo o trabalho desenvolvido em
vários géneros, também se verifica um gosto especial pela iluminação nocturna, sem recurso
a fontes de luz que não sejam as disponíveis nos próprios locais, tanto interiores como
exteriores, para captar a magia da noite. Como exemplos, O madeiro do Natal, na Guarda
(in Um (e)terno olhar) ou As Luzes no Atlântico, 2000 4 , em que as cidades da Madeira
emergem da sombra em todo o seu esplendor, sob um céu azul cobalto.
As imagens que integram o livro Made in USA - Impressões de Viagem, 1996, as
fotografias da América percorrida de costa a costa pelo grupo Íris, vêm ao encontro do
nosso imaginário, certamente influenciado pelo cinema - pelo que se pode estar a entrar
no domínio da intertextualidade. Temos a estrada a perder-se na lonjura, as planícies vazias,
pontuadas por uma estação de serviço, um cão, um homem a cavalo que mais parece saído
de uma ficção do que real, um bar com jukebox, uma silhueta de cowboy... Tudo envolvido
pelo vento. E pelo silêncio. As imagens poderiam até manter-nos à distância, não fora o facto
do fotógrafo partilhar o ponto de vista e de nos dar a sensação de “estar lá” também, com
frequentes enquadramentos através de pára-brisas e retrovisores ou colocando em primeiro
plano algo que referencie o tempo e o lugar. Além disso, criou dinâmicas e perspectivas
fora do vulgar, recorrendo a grandes oculares que agigantam o camião ou enfatizam o
omnipresente automóvel, conferindo por vezes um tom surrealista às cenas.
O texto poético é musical. Continuando no plano sensorial, também as imagens, isoladas
ou associadas, podem transmitir sonoridades, com as suas aliterações, ritmos e pausas. Por
outro lado, são conhecidas as sinestesias, as associações entre a música e a cor. E talvez seja
nos trabalhos a cor, com a qual compõe com rigor, que Monteiro Gil deixa adivinhar o seu
gosto pela música, que escuta permanentemente. Curiosamente, Ansel Adams, uma das
suas referências mais antigas, era músico de formação...
Em The Iron Age, projecto conceptual que integrou instalações ocorridas em Portugal
(1991 e 94), França (1992) e Espanha (2001) 5, a par de uma recuperação estética de objectos
de uso utilitário, temos os sons vibrantes das cores primárias que se combinam em variações
e repetições. Quais serão as cores do Jazz?
Sonoridades diferentes são as do projecto fotográfico Imaginary Travel Around The USA
(2004)6 e Around Azores (2009)7, que marca, de certo modo, um regresso à pintura. A
partir do visionamento de fotografias suas, cria novas imagens, que organiza rigorosamente
em séries, formando quadros. O movimento da câmara evoca o movimento do fotógrafo/
observador em viagem e introduz uma nova dinâmica temporal às imagens a que o efeito de
flou confere um carácter quase abstracto. E as cores, libertando-se da tirania dos contornos
das coisas, fluem, em movimentos ritmados, harmonizando-se numa sinfonia visual.
Perante a fotografia documental de Monteiro Gil, põe-se uma questão: continuaremos
num universo poético? Fotografar é, já por si, um acto poético na medida em que há um
trabalho sobre o real. E se há uma “qualidade poética dos seres e das coisas susceptível de
ser revelada apenas pela fotografia”, como diz Edgar Morin (in Qu’est-ce que le cinéma?), o
5 - 1992 - 5 Photographes Portugais - Galeria Robert Doisneau-Centre Culturel André Malraux, Vandoeuvre-
Nancy, França; 1994 - Fronteiras - S.N.B.A., Lisboa; 2001 - Portugueses en el Museo Vostell ¿ Y Qué Hace
Usted Ahora ? - Museo Vostell Malpartida, Cáceres, Espanha.
6 - 2004 - 30 x 30, Galeria Diferença, Lisboa; 2005 - FAC, Lisboa, F.I.L., Stand da Galeria Diferença; 2006 - Imagi-
nary Travel Around the USA, Galeria Diferença, Lisboa
7 - 2010 – Imaginary Travel Around Azores - Aniversário dos 10 anos de atividade da Galeria Fonseca Macedo -
Com edição de Caixa comemorativa; 2012 - Colectiva de Fotografia, Galeria Diferença, Lisboa
Marcela Vasconcelos
233
autor não deixou de a revelar neste género fotográfico à qual juntou uma forte componente
humanista.
A maior parte da fotografia documental de Monteiro Gil está relacionada com projectos
que desenvolveu na Guarda, cidade de onde saiu há muito tempo mas de onde nunca
partiu.
Kundera disse que “a memória não filma, mas fotografa”. Sendo a fotografia memória,
neste caso ela é simultaneamente sujeito e objecto. Com os afectos à flor da pele mas sem
nostalgias inúteis, gosta de se perder pelas ruas, de observar os seus recantos, tentando
retratar a alma da cidade tal como ela é, actualmente. Mas “os barrocos deixam marcas...”
e, imagina-se, a montanha, o rio, o nevoeiro, o sincelo, também. Tal como terão deixado, em
tempos e modos diferentes, a dois grandes vultos da Cultura Portuguesa Contemporânea,
homenageados em 2008 pelo Centro de Estudos Ibéricos com a publicação do livro Um (e)
terno olhar - Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, C.E.I. Guarda, projecto cuja
parte fotográfica esteve a cargo de quatro fotógrafos, entre os quais Monteiro Gil.
Um País de Longínquas Fronteiras (2000) 8, foi um importante projecto sobre a emigração
na região da Guarda, em que Monteiro Gil participou em co-autoria com Fernando Curado
Matos e Luis Azevedo. Coerentemente com a intencionalidade da obra, as imagens que
integram as três partes do livro, As origens, A peregrinação e O reencontro, mostram que
a fotografia pode ser um meio de criar, manter ou reactivar os laços sociais entre diferentes
grupos de uma comunidade. As fotografias incluídas na primeira parte, As origens, estão
paradoxalmente mais próximas do presente, não tanto pelas circunstâncias temporais da
sua criação como pelo facto de a beleza que caracteriza cada elemento da paisagem ser
a beleza já idealizada pelos que partiram. Nos capítulos seguintes, os retratos do autor
mostram uma intersubjectividade, uma inequívoca relação de proximidade sujeito/fotógrafo,
assim como, ao mesmo tempo, uma grande eficácia visual, na escolha do contexto, dos
objectos que rodeiam (ou definem) os retratados e na escolha do ângulo de visão.
O humanismo patente em trabalhos anteriores, assume uma expressão particular em
Wòna Ni Maitho (Ver com os próprios olhos) 9, com início em 2002 e de que resultou a
recente exposição Olhos nos Olhos, 2016 (Galeria Diferença, Lisboa). A recolha das imagens
foi feita em Moçambique e haveria talvez a tentação de ceder a um certo folclorismo.
Contudo, mais uma vez, Monteiro Gil assume uma expressão actual do “humanismo
fotográfico” ao retratar pessoas na singularidade concreta e quotidiana dos lugares. As
pessoas, com quem o fotógrafo estabelece uma grande empatia, não só o consentem,
como lhe devolvem o próprio olhar. E nesse olhar, no reflexo de uma emoção, encontramos
a universalidade da condição humana. Victor Hugo, a propósito da sua poesia, e consciente
desta universalidade, disse que, quando falava de si próprio, era de nós que falava. Monteiro
Gil, falando do outro, fala de si e de todos nós.
Não sabemos que projecto se seguirá. Mas uma coisa é certa: Monteiro Gil continuará
a tentar mostrar-nos “a cor do olhar”.
8 - Livro: Um país de longínquas fronteiras, 2000, Guarda, ed. C.M.G.; 2000 - Com o mesmo nome, exposição
de fotografia, Paço da Cultura, Guarda; 2004 - Fronteira, Emigração, Memória, Paço da Cultura, Guarda.
Monteiro Gil
António José Dias de Almeida
“Jed já não se lembrava de quando começara a desenhar. (...) Jed consagrou a sua vida
(pelo menos a sua vida profissional, que não tardaria a confundir-se com a sua vida em geral)
à arte, à produção de representações do mundo, nas quais porém as pessoas de nenhum
modo se supunha viverem. (...).
Quando entrara nas Belas Artes de Paris, Jed abandonara o desenho, trocando-o pela
fotografia. (...)” – Transcrevi breves passagens do excelente romance de Michel Houllebecq,
O mapa e o território, prémio Concourt, editado em França em 2010.
Ao contrário de Jed, protagonista do referido romance, Monteiro Gil, natural da Guarda,
onde nasceu em 1943, ingressa em Pintura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,
Escola pela qual é diplomado, tendo sido bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian de 1964
a 1968. Neste ano (1968), terá iniciado as suas primeiras exposições individuais, na Casa
da Imprensa, Lisboa (Pintura), Clube de Caça e Pesca, Setúbal (Pintura) e Hotel Turismo,
Guarda (Pintura). Lembro-me bem desta última. Se me lembro... Era a primeira vez que nós,
os amigos e colegas liceais do Beto Gil, o víamos, plasticamente falando, diante dos nossos
olhos... E gostámos.
Em 1976 e 77, expôs Desenho em Lisboa, nas Galerias Grafil e S. Francisco e, no Porto,
na Galeria 2, Desenho e Gravura. Pois bem. Ao contrário do exímio e apaixonadíssimo
fotógrafo de mapas Michelin, que protagoniza o romance de Houllebecq, o primeiro trabalho
em que a fotografia surge na obra – hoje muito vasta e valiosa – de Monteiro Gil, data
de 1979 e aconteceu no Museu de Évora. Consultando a cronologia das suas exposições,
não mais a fotografia deixa de estar presente, assumindo um particularíssimo e apreciado
destaque.
Aparentemente, talvez a mais lógica sequência seja a de Monteiro Gil e, afinal, de tan-
tos outros que, como ele, pela pintura e pelo desenho tenham começado evoluindo(?)
posteriormente para a fotografia.
Se bem interpreto Umberto Eco, num pequeno texto escrito em 1961 e incluído no volume
A Definição da Arte, a fotografia apareceria como uma “insurreição” na evolução da pintura,
impondo-se-lhe. “Com a diferença de que a fotografia, ao reconhecimento da arte que
pode existir nos fenómenos naturais, acrescenta todo um conjunto de operações manuais
e, portanto, de decisões formativas autónomas (...). A fotografia constitui-se, assim, como
arte autónoma e faz – não só comercialmente, mas também esteticamente – concorrência
à pintura. Referimo-nos à pintura figurativa, bem ententido.” E, ainda, do mesmo autor, no
referido texto: “Assim, enquanto a pintura se orientava para as mais elaboradas experiências
formais (...), a fotografia procurava, pela sua parte, exprimir o real, assumindo também na
sua casualidade e imprevisibilidade, em todas as suas sugestões e apelos, uma reinterpretação
e reconstrução do imediato.”
Esta reinterpretação e reconstrução do imediato parece-me constituir uma curiosa in-
dicação para abordar a obra do artista Monteiro Gil (embora para tal sinta imensas limitações,
cumpre-me confessá-lo).
Revisitando alguns catálogos que possuo e relembrando imagens que me foi dado
observar, ao mesmo tempo que consulto, de novo, o currículo artístico de Monteiro Gil,
posso (podemos) constatar que não existe uma separação (hipoteticamente pensar-se-ia que
isso acontecesse... ) entre exposições de Fotografia Conceptual e exposições de Straight
Photography (expressão de difícil tradução em português). Bem pelo contrário. Verificamos
que ambos os géneros, propositadamente coexistem, sem notória predominância de qualquer
deles.
A arte de representar uma realidade não real, obtendo um conceito singular da realidade,
consegue-o exemplarmente Monteiro Gil em várias exposições de Fotografia Conceptual,
António José Dias de Almeida
241
dentro das quais destaco “My Memories” (Instalação fotográfica) que esteve patente em
1999, nos Encontros da Imagem em Braga. Inserido no catálogo dos referidos Encontros,
Nancy Dantas escreve que o autor (através de caixas, que fechadas e lacradas se transformam
em relicários e os objectos que escondem em objectos sagrados), “faz a representação de si
mesmo, procura contactar com o passado ou com o ausente sob a forma de uma imagem.
É o pôr em contacto, é uma tentativa de mediação, é o assumir mais uma vez algo que fora
relegado à memória.”
Quanto a mim, um aspecto curioso passa-se com o projecto TAJO TEJO – Doze objectivos
fotográficos, que dá origem a um livro editado em Madrid em 1998, a propósito da Grande
Exposição de Lisboa ocorrida nesse mesmo ano e que serviria de catálogo às exposições que,
entretanto, ocorreram em Espanha (Madrid, Cáceres, Toledo, Talavera de La Reina) e em
Portugal (Cordoaria Nacional – Lisboa, Centro Cultural Raiano – Idanha-a-Nova e na Galeria
Municipal de Almada, esta já em 1999). É um trabalho em que participam seis fotógrafos
espanhóis e seis fotógrafos portugueses. Pois bem. Folheando as páginas do Catálogo, na
parte que diz respeito a Monteiro Gil, olhando com atenção para as 24 fotografias, noto a
importância das mãos de velhos fotografadas a preto e branco (8 fotografias) em contraste,
se assim se pode dizer, com fotografias a cores, representando paisagens, cromaticamente
diferenciadas, assim como uma porta e uma janela singelamente ornamentadas. Vistas de
per si, cada uma delas poderia (pode) ser apreciada como fotografia “directa” (tradução
espanhola de straight photography), criando perante os nossos olhos imagens que
objectivamente retratam a realidade do mundo, sem manipulação do fotógrafo.
Todavia, se lermos com atenção o texto informativo de Monteiro Gil, escrito no catálogo,
ficamos a saber que o “grosso da recolha fotográfica (717 diapositivos e número semelhante
de negativos a preto e branco) foi efectuado de Abril a Junho de 1996 e incidiu sobre as
gentes, as aldeias, os animais, a vegetação, a paisagem e, evidentemente, o rio e os seus
afluentes.” Feita a selecção do material mais ficamos a saber que o autor, quer para o livro,
quer para a exposição, optou “pela forma de trípticos construídos à volta de cada aldeia
visitada.” No livro não me parece que isso se note. Visualizando, porém, imagens da exposição
que me foram facultadas é notório esse agrupamento em trípticos fortemente motivados e
significativos. Vale a pena, para concluir a abordagem que fiz deste projecto luso-espanhol,
citar o último parágrafo do texto atrás referido: “Do elemento humano, optei por representar
apenas as mãos, estabelecendo assim uma relação directa e simbólica, entre estas e a
terra que ajudaram a transformar. Optei também pelo preto e branco para o elemento
humano e a cor para os restantes aspectos com a intenção de reforçar esta simbologia
e, simultaneamente, criar conjuntos plasticamente agradáveis onde os diversos aspectos
não se anulem mutuamente.” Os sublinhados são meus e pretendem realçar que, de facto,
no seu conjunto, estas fotografias assim expostas são também magníficos exemplos de
Fotografia Conceptual.
Nem o tempo, nem o espaço me permitem, com as limitações que também já referi,
oferecer aos leitores uma panorâmica mais pormenorizada deste género fotográfico da obra
de Monteiro Gil.
Tentemos, agora, num relance que forçosamente deverá ser breve, abordar alguns aspectos
relevantes de fotografias que possam ilustrar outro domínio, o da Straight Photography.
Foram muitas as exposições quer individuais, quer colectivas, onde Monteiro Gil exibiu o seu
enorme talento e a sua finíssima sensibilidade artística.
Referir-me-ei com mais pormenor àquelas que, de algum modo, tenham a Guarda e a
região como referentes. A razão essencial, aqui a declaro, é a de poder com mais facilidade
compulsar os catálogos que contêm muitas dessas fotografias: Um País de Longíquas
Fronteiras cuja exposição esteve patente no Paço da Cultura da Guarda em 2000; um (e)
terno olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda, em 2008 na Biblioteca Eduardo
Lourenço e leite, cardo e mãos frias, exposição também realizada no Paço da Cultura.
Comecemos por Um País de Longínquas Fronteiras. “As imagens expostas (ano 2000 –
Guarda) e que se perpetuam no livro dado à estampa (o catálogo que me serve de guia), além
de proporcionarem uma serena e desapaixonada reflexão sobre um fenómeno tão presente
quão complexo, pretendem prestar uma justa e sentida homenagem aos que partiram,
homens e mulheres que estiveram envolvidas na grande aventura da emigração portuguesa.
É por outro lado, uma forma de a vetusta cidade da Guarda se reencontrar com o
seu passado, tão marcado por diferentes diásporas, se reconciliar com a sua identidade,
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
242
pois estamos certos, povos e indivíduos só têm o passado à sua disposição. É com ele que
imaginam o futuro. (Os sublinhados são da minha responsabilidade).
Neste magnífico projecto foto(geo)gráfico participou, com outros dois fotógrafos
(Fernando Curado Matos e Luís Azevedo), Monteiro Gil. São da sua autoria muitas e
belíssimas fotografias, que ilustram com pertinência e qualidade, as três etapas que compõem
este roteiro paradoxalmente tão doloroso, mas também recheado de emoções felizes e de
sucessos vivenciais e económicos: As Origens; A Peregrinação; O Reencontro.
No capítulo Origens há lugar para paisagens amplas, mas igualmente surgem pormenores
de aldeias, com as suas idiossincrasias: pessoas, animais, objectos de uso quotidiano.
Quero, neste primeiro capítulo, destacar duas lindíssimas fotografias que nos prendem de
imediato pela sua beleza cromática, pela variedade de elementos que as compõem e que
vivamente nos cativam. Refiro-me às fotografias “Rio Távora” (2000) e “Rio Mondego –
Faia” (1999). Também as casas, as da Faia, por exemplo, captaram a atenção do fotógrafo
que, directamente, para a posteridade as fixou.
A Peregrinação provoca e motiva o interesse dos três fotógrafos e Monteiro Gil não
escapa às circunstâncias especialíssimas de nos pôr diante dos olhos sugestivas imagens
muito ligadas à diáspora, desde a partida, aproveitando, por exemplo, a narrativa de António
Gonçalves, fotografando-o na sua sala de Santo Estêvão com a intrínseca expressividade de
um óptimo contador de famosas e perigosas histórias, ligadas ao seu papel de passador e
dos caminhos de emigração a salto... Com aventuras e desventuras, a viagem consumar-se-ia
através de emblemáticas estradas como as A62, A68, A1 e a N620 em Espanha e, de França,
a N10 e a A10 adequadamente captadas pela objectiva de Monteiro Gil. Vislumbra-se o fim
que se concretiza em Paris - em Austerlitz ou na Gare de Montparnasse - fotografado por
Monteiro Gil em Março de 2000 para que nós, os Spectatores, na classificação feliz de R.
Barthes, as possamos apreciar e, através delas, possamos recordar muitos episódios de que
fomos testemunhas indirectas. Culmina esta peregrinação com os “peregrinos”, salvo seja,
já instalados nas suas casas como nos dizem as fotogafias do nosso autor, obtidas, ou no
conforto de uma sala em Tercis-les-Bains (Out., 1999) ou na feliz e sorridente expressão de
Clara Leal, na sua casa em Aast (Out., 1999) ou ainda no despreocupado passeio de Irene Vaz
Barroco, junto a uma banca de coloridas flores no mercado de domingo em Lalies-du-Salat,
França (Nov. 1999). Impossível passar ao lado de um instantâneo fotográfico, no qual uma
menina luso-descendente, à mesa durante a refeição, olha apreensiva para a câmara que lhe
soube captar, com mestria, o olhar, a fisionomia do rosto e a mesa modesta onde jazem duas
garrafas, restos de comida. Enfim, uma criança com o futuro à sua frente, que curiosamente
o prescruta no exacto momento em que é fotografada. (Paris, Março de 1999). A integração
no novo espaço, urbano por excelência, cosmopolita, também Monteiro Gil a captou e teve
a finura e a subtileza de no-la transmitir através de uma sequência fotográfica dinâmica (a
linguagem das mãos) na Lição de Carlos Janela Antunes no café da Av. Philippe Auguste,
Paris, Março de 2000.
Finalmente, o Reencontro! Quem partiu, sofrendo as agruras de viagens difíceis,
muitas vezes a salto, “outro” voltou e, embora seja o mesmo, inevitáveis metamorfoses se
operaram. As aldeias de origem dos emigrantes, elas próprias se transformam e disso mesmo
os fotógrafos, nomeadamente o nosso Monteiro Gil nos dá conta através das fotografias
que ilustram este capítulo da saga. É o regresso à familiaridade dos seus, é o reencontro nas
festas, nas procissões, nos bailaricos, nas touradas, nas capeias raianas.É, enfim, o regresso
às raízes. Igualmente, no conforto das novas casas construídas, Monteiro Gil, por exemplo,
retrata-nos a já nossa conhecida (vimo-la num mercado de domingo em Salies-du-Salat)
Irene Vaz Barroco, comodamente sentada em confortável “maple” num recanto da sala
acolhedora da sua nova casa nos Fóios... É boa ocasião para Monteiro Gil e Fernando Curado
Matos captarem, em sugestiva sequência fotográfica, a expressiva figura de José Troufa,
contando, em Vila Nova de Foz Côa, as suas aventuras e desventuras... vividas, afinal, em Um
País de Longínquas Fronteiras.
Sem qualquer menosprezo obrigo-me a omitir neste texto, que já vai longo, uma exposição
muito específica, leite, cardo e mãos frias efectuada em 2009, também no Paço da Cultura
da Guarda.
Fixar-me-ei um pouco na que teve lugar na Biblioteca Euardo Lourenço aquando da sua
inauguração, em 27 de Novembro de 2008.
Apraz-me registar que na organização do volume/catálogo um (e)terno olhar tive o gosto
António José Dias de Almeida
243
e o privilégio de nela ter colaborado. Foi uma oportunidade de ter um contacto mais activo
com o meu antigo colega liceal, contemporâneos universitários em Escolas diferentes em
Lisboa e, colegas como docentes também em diferentes Liceus, pois o artista Monteiro Gil,
durante trinta e muitos anos, exerceu funções de professor do Ensino Secundário...
Com a ajuda do catálogo, relembro fotografias com que Monteiro Gil enriqueceu a
exposição que então se realizou. Captaram, de forma muito oportuna e com qualidade a
que o autor nos habituou, espaços, edifícios e elementos simbolicamente referenciais da
Guarda. Assim, a Torre de Menagem, envolvida por um suave manto de nevoeiro, transmite-
nos subtilmente um certo halo de mistério, conseguindo o fotógrafo, pelo menos neste caso,
projectar uma característica da cidade: cidade altaneira encimada pela velha torre, vestígio
único de antigo castelo roqueiro. Outro elemento que sobressai é, como não podia deixar
de ser, a neve. Vemo-la a realçar a elegância da Igreja da Misericórdia, ou a beleza do Jardim
Dr. Lopo de Carvalho com a respectiva estátua. O ex-libris da Guarda, a Sé Catedral, motiva,
evidentemente, belas fotografias presentes neste catálogo, cativando-me especialmente a
que nos mostra, numa perspectiva original, a escadaria que dá acesso à porta lateral virada
para a Praça Velha, vendo-se à direita uma das torres sineiras envolta, aliás como toda a
fachada lateral, suave nevoeiro que lhe empresta um tom reflexivo e de meditação, bem
patente também numa fotografia, ao crespúculo, obtida do lado da Praça Velha (Praça Luís
de Camões). Esta Praça é também espaço privilegiado de outras fotografias e gostava de
destacar a que retrata, em plena noite de Natal, o madeiro cujas labaredas flamejantes,
parecem aquecer pessoas que indistintamente rodeiam a fogueira. Outros edifícios ou
pormenores significativos do Centro Histórico são objecto da câmara de Monteiro Gil. Sejam
exemplos a Igreja da São Vicente e a elegante e singular janela manuelina da Rua Direita.
Desta exposição muito haveria ainda a dizer. Não me permite o espaço de que disponho,
mas, por pessoalíssimas razões, quero elogiar duas fotografias que muito me dizem: uma
casa simples, muito simples rodeada por frondosas e seculares castanheiros em flor, localizada
perto de Famalicão da Serra. A objectiva conseguiu captar os mais importantes elementos
caracterizadores da paisagem sobranceira à aldeia e na outra fotografia, o pormenor, talvez
mesmo o “por maior” registado pela câmara do fotógrafo – os ouriços. Medeiam entre as
duas fotografias, como é lógico, quatro meses. A do souto é obtida em Junho e a dos ouriços
em Outubro. E, quanto a este (e)terno olhar com muita pena, por aqui me fico.
Para concluir, uma brevíssima apreciação de alguns retratos dentre “os 30 escolhidos de
um conjunto de algumas centenas recolhidas em Moçambique, em Julho e Agosto de 2002,
numa faixa de cerca de 200 por 500 km compreendida entre a ilha de Moçambique, Nacala,
Memba (no litoral) e Gurué, Lioma, Mutuáli (no interior)”. Monteiro Gil, sobre esta exposição
que intitulou Olhos nos Olhos, (a última exposição por ele realizada) e que teve lugar este ano
(2016) de 13 de Fevereiro a 12 de Março, na Galeria Diferença em Lisboa, acrescenta esta
importante informação: “Foram retidos para escolha apenas os retratos em que os retratados
olham directamente para a câmara). Trata-se, portanto, de retratos consentidos, por vezes
mesmo solicitados (...).” Infelizmente, não tive oportunidade de ver a referida exposição e
bem gostaria de o ter feito. Foram-me, porém, facultadas em DVD, alguns desses retratos
que muito me sensibilizaram. Pude, através dessas imagens, recordar tempos em que aquelas
zonas moçambicanas andei (“malhas que o império tece”) e rever, por estes rostos, outros
que também eu conheci, por exemplo, na Ilha de Moçambique.
Os retratos, vistos isoladamente, denotam a finura, a subtileza de quem teve o talento
de os captar. Gosto particularmente do retrato das três meninas que, olhos nos olhos, nos
emocionam e seduzem, e isso é uma preciosa dádiva da sensibilidade de Monteiro Gil.
A exposição é um feliz resultado da montagem dos vários retratos que, afinal, nos
transmitem os “Os olhares de crianças, homens e mulheres em lazer ou nas suas actividades,
vindos da pesca ou vendendo ou comprando no mercado, nos seus trabalhos quotidianos,
da apanha do algodão ou do fabrico de tijolos.”
E termino completando a citação: “Olhares serenos, descontraídos, despreocupados, no
dia a dia quotidiano, em poses naturalmente criadas pelos fotografados.”
Em síntese final, Monteiro Gil é, indiscutivelmente, um enorme artista de quem tenho o
privilégio de ser amigo e grande admirador.
MONTEIRO GIL
Nasceu na Guarda em 1943. Vive e trabalha em Lisboa. Diplomado pela Escola Superior de
Belas Artes de Lisboa. De 1964 a 1968 foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi
professor do Ensino Secundário Oficial e ensinou também Gravura e Fotografia. De 1992 a
1997 fez parte do “Grupo IRIS”. A sua pesquisa pessoal contou com o apoio da “CONTAX”
de 1996 a 2000.
Coleções
Está representado em diversas coleções particulares e oficiais dentre as quais:
Em Portugal:
Ministério da Cultura - Centro Português de Fotografia, Porto;
Ministério da Cultura - Instituto Camões, Lisboa;
Câmara Municipal da Guarda;
Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa;
Fundação Cidade de Lisboa;
Encontros da Imagem, Braga;
Casa da Cerca / Centro Cultural de Almada;
Kodak Portuguesa, Lisboa;
Fundação PLMJ, Lisboa;
Galeria Fonseca Macedo, Ponta Delgada, Açores.
Espanha:
Museu Vostell Malpartida, Cáceres;
Fundación Fernando Maria Centenera Jaraba, Madrid.
França:
Centre Culturel André Malraux, Vandoeuvre-Nancy;
Museu Nicephore Nièpce, Chalon sur Saone;
Galerie du Château D’Eau, Toulouse.
Bélgica:
Musée de la Photographie de Charleroi, Charleroi.
Suiça:
Musée de L’Elysée, Lausanne.
Itália:
Museu de Fotografia Contemporânea Ken Damy, Brescia.
Bibliografia
1979. Revista “CANAL”, Paris, Julho;
Revista “SEMA”, Lisboa, Julho;
1982. Revista “SEMA”, Lisboa, Maio;
1985. Colecção de postais “Mercados”, Lisboa;
1993. Livro “As Pedras e o Tempo”, Lisboa;
1994. Livro “Lisboa Qualquer Lugar”, Lisboa;
1996. Livro “Made in U.S.A. - Impressões de Viagem”, Lisboa;
1998. Livro “Tajo Tejo - Doze Objectivos Fotográficos”, Madrid;
1999. Livro “História e Cultura Judaica” (colaboração fotográfica), Museu da
Guarda;
2000. Livro “Um País de Longínquas Fronteiras”, Guarda.
2003. Revista “FotoDigital” (Portfólio “Luzes no Atlântico”), Lisboa, Janeiro;
2004. Revista “Super Foto Prática” (Portfólio “Domestic Itineraries”), Lisboa,
Dezembro;
Livro “Extensão do Olhar – uma Antologia Visual da Fotografia
Contemporânea”, Fundação PLMJ / Assírio e Alvim, Lisboa;
2005. Revista “Super Foto Prática” (Portfólio “Fronteira, Emigração, Memória”),
Lisboa, Janeiro;
Revista “FotoDigital” (Portfolios “Fronteira, Emigração, Memória” e “Um Pais
de Longínquas Fronteiras”), Lisboa, Janeiro 2005.
2008. Livro “Um (E)Terno Olhar – Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira e a Guarda”, C.E.I. Guarda.
Revista “Praça Velha” nº 24 (Portfólio sobre a Guarda), Guarda, Novembro;
Revista “FotoDigital” (Portfólio “Um (E)Terno Olhar”, Lisboa, Dezembro;
2009. Livro “Leite, Cardo e Mãos Frias”, N.A.C., Guarda 2009
Conta ainda com referências críticas na imprensa diária e semanal de diversas personalidades
entre as quais o Dr. Alexandre Pomar, Drª Cristina Azevedo Tavares, Dr. Eduardo Prado
Coelho, Dr. João Pinharanda, Drª Luísa Soares Oliveira, Drª. Margarida Medeiros e Drª.
Leonor Nazaré.
Imaginar o Território | Monteiro Gil: A Cor do Olhar
248
249
Luis Sepúlveda:
breve perfil
sublinhar, também, que na vastidão da sua bibliografia se deve dar atenção à forma como
Sepúlveda domina os géneros literários, como é o caso da sua dimensão de cronista ou autor
de livros de viagens (Patagónia Express (1995), Mundo do Fim do Mundo (1996), Crónicas
do Sul (2011), ou de ficcionista que faz da memória questão que tem consigo mesmo (O
General e o Juiz (2002), As Rosas de Atacama (2000), ou até na literatura infantil História de
um gato e de um rato que se tornaram amigos (2012) e História do Caracol que descobriu a
importância da lentidão (2013).
Autor ibero-americano, Luis Sepúlveda vive em Gijón, a Ibéria é hoje o seu lar. Poucos
autores, como ele, têm trabalhado em louvor da Língua e da Cultura espanholas, fazendo
da pátria idiomática que tem a dimensão plurinacional de vários continentes uma aventura
criadora em que o homem é a medida de todas as coisas.
Prémio Eduardo Lourenço
253
Esta é já a 12ª edição do Prémio ao qual o Professor Eduardo Lourenço acedeu a dar
o nome e que visa galardoar personalidades ou instituições com intervenção relevante no
âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas.
O historial do Prémio Eduardo Lourenço e o próprio percurso do Centro de Estudos Ibé-
ricos provam que já se ultrapassou a dimensão transfronteiriça da Ibéria e se assumiu uma
dimensão além-fronteiras. Este ano, o júri entendeu novamente deixar o espaço ibérico euro-
peu, galardoando um escritor da Ibéria para além do Atlântico.
Com esta orientação, o iberismo adquire um significado mais enriquecedor por incorporar
uma herança cultural que faz jus à dimensão universal do legado peninsular que se difundiu
pelo mundo.
Parabéns, Luis Sepúlveda.
Seja bem-vindo a esta cidade de fronteira, fortaleza do passado e guardiã da identidade
portuguesa ao longo de séculos que está agora aberta a novos rumos, pontes e diálogos com
a Ibéria de aquém e além-fronteiras, a Europa e o Mundo.
Ao unir os nomes de Eduardo Lourenço e Luís Sepúlveda, o CEI estabelece uma ponte
com um distante país, recuperando seculares ligações históricas que entroncam na Memória
dos Descobrimentos.
Uma união que ultrapassa as rotas das Caravelas, e onde relevam os valores da solidarie-
dade humana, da consciência social e da liberdade que os caracterizam.
Tal como o patrono desta Biblioteca, o guardião de histórias Luís Sepúlveda é um cidadão
do mundo, ativista político e militante social.
O Júri desta 12ª edição do Prémio Eduardo Lourenço reconheceu o seu trabalho em lou-
vor da Língua e da Cultura espanholas e a expressão e difusão da sua obra tanto em Portugal
como em Espanha, que o tornam um mediador da Cultura Ibérica.
Permitam-me acrescentar uma nota pessoal: do que já tive oportunidade de ler, transpa-
rece o talento inquestionável para extrair beleza dos sítios por onde passa e das pessoas com
as quais trava conhecimento.
Ao descrever as memórias, experiências, pessoas e imagens de territórios distintos, Luís
Sepúlveda prova, com simplicidade e emoção, que a escrita não tem fronteiras.
Por isso, esta cidade de Fronteira - que tem lutado pelo esbatimento das linhas de se-
paração e pela criação de espaços de coesão e convergência – orgulha-se de o receber hoje e
de lhe entregar o Prémio que contempla a cultura, cidadania e cooperação ibéricas.
No ano passado, quando entregámos nesta mesma sala o Prémio Eduardo Lourenço
a Agustina Bessa Luís, lancei aos nossos parceiros das duas Universidades e do Instituto
Politécnico o desafio para a reflexão acerca do futuro deste ou de outro Prémio que in-
centivasse e distinguisse aqueles que nos ajudam a pensar e a concretizar estratégias de
progresso para estes territórios designados de baixa densidade mas – acrescento e insisto;
mas insisto, mesmo – de elevado potencial.
Paralelamente, o novo ciclo de políticas comunitárias que agora se inicia convoca-nos e
estimula-nos a novas abordagens tendo em vista oportunidades criativas de desenvolvimen-
to e coesão.
O estímulo à investigação, o apoio ao estudo e o impulso de iniciativas inovadoras ori-
entadas para a projeção dos nossos territórios comuns dão o mote ao novo Prémio que hoje,
em nome da Direção do Centro de Estudos Ibéricos, aqui apresento.
O Prémio CEI – IIT - “Investigação, Inovação e Território” terá como objetivo distinguir
a “investigação inteligente”, a inovação e o empreendedorismo, sempre numa linha de
compromisso com as regiões de fronteira.
Prémio Eduardo Lourenço
256
Eduardo Lourenço
Director Honorífico do CEI
Nas páginas que antecedem o livro famoso que se tornou uma espécie de referência
quase mítica, “O velho que lia romances de amor”, há uma frase que precede a história
que diz assim: “Sou um escritor mas não tenho palavras para contar o que se sente numa
rede, no meio da Amazónia, quando a noite envolve tudo e a chuva cai sem piedade”. Não
tenho esta experiência da rede para entrar em considerações sobre este belo romance, mas
estive uma vez na Amazónia, que não é como estar uma vez em Cacilhas ou no norte do
nosso pequeno País. Lembro-me muito bem o que é estar na Amazónia só por uma noite e
é como se assistíssemos a um apocalipse parecido com o nascimento do próprio mundo. De
madrugada, ouve-se um ruído imenso como uma espécie de um tremor de terra subterrâneo
e acorda-se para descobrir que os animais da Amazónia acordam ao mesmo tempo, num
barulho ensurdecedor de fim do mundo.
É verdade que, culturalmente falando, não tenho uma experiência de outro mundo
como tenho da velha Europa. Essa Europa que atravessa, neste momento, um momento de
perturbação, que se quer desfazer numa espécie de um caos que não se sabe para onde vai.
De repente, todos esses mundos que nasceram da Europa ou da sua ação aparecem ou como
um recurso possível para o apocalipse se manifestar ou para serem de facto um ponto onde
os Ulisses europeus se possam refugiar (o maior de todos já está refugiado, domina o mundo,
e chama-se Estados Unidos). O outro mundo com um passado mais modesto, mas grandioso
chama-se América do Sul. É verdade que a América do Sul não é apenas um acontecimento
geográfico entre outros, foi o começo de uma nova leitura do conhecimento do planeta que
nós habitámos e foi, sobretudo, o triunfo de uma temporalidade que nos era totalmente
desconhecida e que não tinha, nem podia ter, leitura.
No imaginário dos diversos autores latino-americanos, sobretudo os das gerações dos
países independentes, não fazem outra coisa senão instalarem-se nesse tempo, que não é
tempo europeu, tempo que nós lhe demos, quando Descobridores portugueses ou espanhóis
atracaram do outro lado do Atlântico. É qualquer coisa que não tem nome, uma espécie de
tempo zero. Nós levámos para o outro lado do Atlântico, no século XVI, a nossa cultura, a
nossa língua, a nossa temporalidade e nomeamos as coisas com as nomeações históricas
do nosso próprio passado de ocidentais europeus. Mas ficou por nomear esse tempo que já
lá estava antes que nós chegássemos. Esse tempo que foi uma perplexidade para algumas
criaturas excecionais que tiveram que se enfrentar com diversas maneiras de ser de cultura de
humanidade que era representada pelos índios da América, como foram batizados. Já nesse
batismo é tudo um engano que nunca mais será reposto. A única pessoa que se preocupou
até hoje foi Las Casas, que se admirou imenso com os evangelistas portugueses que quando
chegavam a algum sítio a única coisa que faziam era pregar numa árvore o que era um
resumo da História do mundo, levada pelo ocidente cristão. Claro que os índios não podiam
ler essas missivas, por isso, Las Casas pensa que tal era um acto irrisório dos mais absurdos.
Na verdade, essa América Latina, apesar do engano ou do erro do não conhecimento da
realidade, fala as línguas nativas desses países. Raros livros escritos por latino-americanos me
deram a impressão - como diz Pablo Neruda no seu “Canto general” - de recuperar, de outra
maneira, essa nova visão do mundo do lugar que não é o lugar universal, absoluto e abstrato
importado do Ocidente.
O romance de Luis Sepúlveda mostra uma visão interna porque com a história do seu
“velho que lia romances de amor”, não conta só uma história com o mais universal dos
sentimentos que movem a ficção, mas recria, de algum modo, uma visão humanizada.
De facto, não sendo militante ecologista, embora seja militante na ordem política, Luis
Sepúlveda compadece-se com o outro, o outro de si mesmo. O velho é alguém em quem ele
se reconhece como sendo aquele que se desconhecia até ao encontro mágico, porque esse
velho tem um segredo: quando nos é apresentado nas primeiras páginas, diz-se que possuía
Prémio Eduardo Lourenço
258
uma espécie de secretária bizarra, altiva, na qual estava um certo número de livros que eram
pequenos romances de amor - a maioria deles de origem europeia. As histórias de amor são
sempre uma sub história. No tempo em que o romance se passa era assim, mas hoje é ainda
mais complicado.
A história de O Velho que lia Romances de amor vai mais longe e transforma aquilo
que foi uma espécie de exceção num tempo excecional, sem leitura possível, em qualquer
coisa que é do nosso tempo. A única coisa que julgo que é importante naquilo que fazemos,
naquilo que somos, naquilo que o mundo é ou pretende ser é, de facto, reconhecer a sua
intrínseca e genérica humanidade. Quem ler este livro terá a confirmação de que isso é feito
não apenas em termos de grande conhecimento do outro em quanto tal, mas que é uma
espécie de continuação da primeira grande epopeia da América Latina que é a Epopeia de
Pablo Neruda. Este livro repercute toda essa grande sabedoria, autóctone do continente que
tem a sua originalidade: a América Latina. Este Continente herdou de um dos países que o
descobriram que o mundo é um todo e o descobridor dessa totalidade foi um português
chamado Magalhães, que dará o nome a um estreito, até então impenetrável. Magalhães é
o primeiro que informa que o mundo é realmente redondo.
Este livro é não só um belo romance de amores, no sentido mais forte do termo, a
invenção de um personagem extremamente tocante, de uma sobre humanidade no mundo
desumanizado e, por isso mesmo, felicito o Júri (e identifico-me com ele) por ter atribuído o
Prémio a Luis Sepúlveda.
Fernando Paulouro
Jornalista. Escritor
Venho aqui hoje, despido de vaidades, como quem cumpre um honroso encargo: dar um
abraço de gratidão ao escritor Luís Sepúlveda, por tudo aquilo que ele acrescentou, como
matéria de sonhos, à nossa inquietação cidadã, ao nosso universo cultural, à nossa condição
de leitores, circunstância em que nós somos literatura, como um dia lembrou Eduardo
Lourenço.
Foi para mim uma enorme honra ter sido eu a propor a candidatura de Luís Sepúlveda
a este prestigiado galardão e penso sinceramente que a sua obra se ajusta, como poucas,
ao patrono do prémio, o autor da luminosa ideia do Centro de Estudos Ibéricos, essa outra
“jangada de pedra” a ir pelo mundo, levando a Ibero-América e os continentes da Lusofonia,
como se quiséssemos ter ouvido palavras antigas de Herberto Hélder, quando o poeta
defendeu em 76 (há quantos anos!) que “as línguas portuguesa e castelhana, reconhecendo-
-se os divórcios e ignorâncias em que estão, podem afirmar-se como um nó cultural de onde
partiu o impulso criador que tem exemplo frontal na chamada América Latina e se instituiu
mais recentemente em África”.
Esse sentimento de pátrias idiomáticas comuns partilha-o Luís Sepúlveda com o universo
pessoano (“a minha pátria é a língua portuguesa”), pois também ele escreveu no regresso
aos territórios da infância, a propósito da descoberta de uma biblioteca: “entrei pela primeira
vez no que seria e é a minha única pátria: o meu idioma e as suas palavras.” (O Poder dos
Sonhos).
No universo da literatura ibero-americana, a obra de Luís Sepúlveda ocupa um lugar muito
especial, pela natureza da sua fidelidade às raízes latino-americanas, aos territórios oníricos
da criação, à dimensão fantástica da sua escrita, à reelaboração da memória dos lugares e
das pessoas na sua relação arterial com a História e as suas comunidades originárias.
Na incessante acção criadora, que é a sua forma de respirar com palavras, não faltam
à escrita do autor de O Velho que Lia Romances de Amor a expressão identificadora de
realidades primordiais e uma dimensão plástica da linguagem que lhe conferem uma certidão
de autenticidade, e de estilo, só alcançável pelos grandes escritores. Enquanto navegava no
prazer da leitura pela obra plurinacional de Luís Sepúlveda, não pude deixar de pensar que
a sua escrita tem uma marca identificadora: a matéria dos sonhos. E, nessa contingência,
penso que ela não reflecte mais do que a condição humana, na filiação de um pensamento a
que podíamos juntar a literatura universal, personificada em Shakespeare ou Cervantes, cuja
imortalidade estamos ou devíamos estar a comemorar, ambos obreiros de sonhos desmedidos
ou não fosse o homem “feito da matéria dos sonhos”, como escreveu o criador de Hamlet.
Os ditadores torcionários da América Latina, cujos nomes não digo para não sujar a folha
branca, também proibiram, muitos séculos depois da Inquisição o ter proibido, o Quixote,
alegando que os livros de cavalaria eram perigosos pois faziam sonhar! Por isso, certamente
também por isso, Luís Sepúlveda reclama para si a condição de escritor e sonhador.
Essa realidade de dimensão ontológica, a que se alia o combate pela memória como
equação de preservação da vida (em que sonhos, dramas, indignidades, esperanças, euforias
se misturam), projecta-a Luís Sepúlveda como um irrecusável compromisso de escritor, que é,
também, a expressão maior da comum humanidade que os seus livros transmitem, sempre
em louvor do homem, como se partilhassem todos eles o imemorial aviso de Antígona:
”nada há mais maravilhoso do que o Homem”.
É esse o vector que ele exprime de forma lapidar: “Sonho e não me importo que uma
visão do lucro como única orientação do homem estigmatize os sonhos e os sonhadores.
Considero-me um sonhador, paguei um preço bastante duro pelos meus sonhos, mas são
Prémio Eduardo Lourenço
260
tão belos, tão plenos e tão intensos que voltaria a pagá-los uma e outra vez. Creio que não
há sonho mais belo do que o de um mundo onde o pilar fundamental da existência seja a
fraternidade, onde as relações humanas sejam sustentadas pela solidariedade, um mundo
onde todos compartilhemos da necessidade de justiça social e actuemos com coerência.”
“Os meus sonhos são irrenunciáveis, são indomáveis, pertinazes, e desafiam o horror do
pesadelo ditatorial”, escreveu ele, e “a palavra escrita é a grande depositária dos sonhos.”
Esta questão liga-se como um fio à memória e à sua democratização social porque,
diz Sepúlveda, “primeiro sou cidadão e homem livre depois sou escritor”. É bom ler estas
palavras num tempo em que a responsabilidade ética de olhar e de reportar “o rumor do
mundo” se dissolve no esquecimento e no silêncio e quando, como recentemente lembrava o
escritor e jornalista Manuel Rivas, citando Camus, “não se pode perdoar à sociedade política
contemporânea converter-se numa máquina para fazer desesperar os homens”.
Mas estamos aqui e agora a celebrar um autor e o poder da linguagem, um escritor
cuja forte consciência ecológica o conduz sempre a defender os patrimónios comuns da
humanidade, como é o caso da Patagónia ou da longa noite austral da Terra do Fogo, que
são terras do coração de Mundo do Fim do Mundo. Nesta viagem de palavras, detenho-
me agora num livro que é fascinante pela densidade humana e pode ser, de certo modo,
uma síntese de muitos outros livros, O Velho Que Lia Romances de Amor. Comovente a
narrativa pelo contexto fabuloso do universo onírico da floresta, pela denúncia do progresso
envenenado e destruidor da natureza, pela humanidade dos índios xuar, pelas figuras do
dentista e do velho (a premonição da sabedoria), pelo diálogo entre o livro e o leitor, pelo
elogio dos livros de amor, onde ressuma, e estou a citar, “um amor puro sem outro fim que
o próprio amor”.
É comovente o fascínio do velho a descobrir a aventura de juntar palavras e toda a
ingenuidade da concretização do prazer da leitura, quando descobre que os livros de amor
são, a mais das vezes, “histórias de duas pessoas que se conhecem e se amam a lutar para
vencer as dificuldades que as impedem de ser felizes.”
No fundo, a conversa entre o dentista, o dr. Rubicundo Loachamín, e o velho, António José
Bolívar, um homem de sabedoria desconcertante, transporta-nos para o mundo surpreendente
onde nascem o desejo da leitura e o sortilégio do livro (neste caso os romances de amor)
como forma superior de superar a solidão. Mas Luís Sepúlveda, que tem na reelaboração da
memória alimento privilegiado do seu fazer literatura, cruza essa maneira de olhar o mundo
com a sua biografia, também vincadamente expressa na sua obra criadora (como dizia
Octávio Paz dos poetas), estando na primeira linha a defesa das liberdades, por exemplo, no
golpe militar fascista de 11 de Setembro, de Pinochet. Luís Sepúlveda fazia parte da guarda
ao Presidente Allende, no Palácio de La Moneda, como membro da Unidade Popular chilena.
Esse e outros combates cívicos levaram-no aos caminhos do exílio, mas o Chile acaba por
estar sempre presente no coração da sua obra.
Não me importo de dizer que eu e muitos da minha geração, chorámos lágrimas de
desespero pelo crime contra a democracia chilena do Presidente Allende, tempo de “chacais”,
como diz um verso indignado de Pablo Neruda, tempo que fez então do Chile um reduto de
ignomínia e de morte.
É por isso que ainda me comovo quando leio essas narrativas de Luís Sepúlveda, com
nomes e rostos de companheiros e amigos liquidados, torturados ou desaparecidos, ou
quando o autor lembra as Mães e as Avós da Praça de Maio, essas estupendas mulheres
argentinas, lutando pela memória dos que foram assassinados em terra ou lançados vivos de
aviões da morte para as águas geladas do alto mar.
Essa inquietação de contar, de fazer viver a memória através da palavra, surge muito
nítida em As Rosas de Atacama, quando, face à barbárie nazi que o campo de concentração
de Bergen-Belsen documenta, Sepúlveda lembra a inscrição feita numa pedra por um preso,
talvez com um prego, sabe-se lá, que dizia dramaticamente: “Eu estive aqui e ninguém vai
contar a minha história”.
Não se sabe o nome, nem se conhece o rosto da vítima. Mas nesta simples história estão
contidos todos os rostos, todos os nomes – e são milhões! – daqueles que, como no fabuloso
poema de Jorge de Sena a Carta a Meus Filhos Sobre os Fuzilamentos de Goya, “Nenhum
Juízo Final, pode dar-lhes aquele instante que não viveram, aquele objecto que não fruíram,
aquele gesto de amor, que fariam amanhã.”
Prémio Eduardo Lourenço
261
Discurso de homenagem a Luis Sepúlveda proferido na sessão de entrega do Prémio Eduardo Lourenço
Prémio Eduardo Lourenço
262
Luis Sepúlveda
Premiado
Cuando recibí la noticia de este Premio, sentí una emoción muy particular. No la emoción
teñida de vanidad y orgullo de cuando alguien recibe un premio ¡no! Fue una emoción muy
particular y quiero contar el porqué de esa emoción.
Cuando yo comencé mi exilio, en Hamburgo, en el año 1980, frecuentaba a un viejo
profesor, a un hispanista, llamado Hans Karl Schneider y teníamos un acuerdo: yo lo
frecuentaba en su casa para que él perfeccionara mi gramática y la lengua alemana y el
frecuentaba mi casa, como él decía “para no oxidar” su castellano. Y un día, hablando
de muchas cosas, me llevó un libro y me dijo: Este es un libro que no vas a olvidar. Es un
libro de un profesor portugués que pasó por esta Universidad hace ya muchos años...” y me
entregó un ejemplar de “Heterodoxia” y fue el primer encuentro que tuve con mi respectado,
admirado, mi querido amigo Eduardo Lourenço. Ciertamente era un libro en portugués y con
la ayuda de un diccionario fui leyendo, lentamente, aquellas páginas y me quedé asombrado
de muchas cosas. Una de la enorme audacia de ese libro porque fue publicado exactamente
el año en que yo nací, en 1949, es decir que en ese año ya había un hombre, un intelectual,
un pensador portugués que se atrevía a formular teorías tan revolucionarias y subversivas
como su defensa de la pluralidad como un absoluto, sin matices, la pluralidad ¿es o no es?
Fue una de las primeras lecciones que me dejó la lectura de ese libro y es una lección que no
he olvidado. Luego, quedé muy sorprendido de que, tantos años antes de que se pusiera de
moda un cómodo lenguaje progresista, ese Pensador portugués, ese Intelectual portugués se
atreviera a formular otra teoría rebelde, revolucionaria, al sostener que el laicismo es la única
garantía que tenemos para ser como queremos – es otra lección entre muchas otras que
he aprendido de Eduardo Lourenço y que no olvido. Eso hace, entonces, que al recibir este
Premio que lleva su nombre, sienta realmente una emoción muy especial. Esa emoción crece,
se multiplica porque, realmente, no es una exageración cuando muchos de mis lectores
opinan que soy el más portugués de los latinoamericanos o el más latinoamericano de los
portugueses.
Hay una relación íntima entre Portugal y yo, que es muy fuerte y talvez tiene que ver con
que yo soy un hombre del sur, de muy al sur. De hecho, nací en Chile en un territorio que
está en la región del norte pero, anímicamente, es decir, mi espíritu, mi alma, mi forma de
moverme, mi forma lenta de hablar, mi forma lenta hasta de respirar
es muy del sur, es muy
de los territorios australes que se conocen como la Patagonia y la Tierra del Fuego. Y ahí
sí que nos parecemos mucho: tanto los portugueses como los que venimos de esa región
del sur del mundo somos tremendamente discretos
no hacemos las cosas más grandes del
mundo, las hacemos pequeñas, pero bien; no nos metemos en las empresas más importantes
del mundo, asumimos aquellas empresas a que somos capaces de conducir hasta el final y,
salgan bien o mal, nos dejan la satisfacción de haber llegado hasta al final. Y hay una relación
también muy especial con Portugal que nace mucho antes de que empezaran a publicarse
mis libros traducidos al portugués.
Me acuerdo y es uno de los recuerdos imborrables de mi vida que un 25 de abril del año
1974, yo estaba en una cárcel del sur de Chile (la cárcel de Temuco), un lugar frío, húmedo,
atroz
y los tratos no eran precisamente cordiales que nos dispensaban los militares, pero
curiosamente ese día de abril los militares amanecieron extraños, con un comportamiento
desacostumbrado. Por primera vez en mucho tiempo no nos insultaban, por primera vez en
mucho tiempo no sacaron a ninguno de nosotros a darle una golpiza, por primera vez en
mucho tiempo nos dejaron tranquilos y los 1500 prisioneros políticos que estábamos en esa
cárcel nos preguntábamos “¿Y qué les habrá pasado a estos tipos, que se comportan de esa
manera tan humana?” Y yo le pregunté a un oficial: “¿Qué ocurre? ¿Por qué han cambiado
Prémio Eduardo Lourenço
263
tanto de actitud?” Y vi que ese oficial tenía miedo
en su rostro, en su cara había miedo, en
su voz había miedo y me respondió: “Estamos así porque ustedes ganaron en Portugal”. Esa
victoria de la democracia, ese final de la dictadura en un país tan lejano llegó hasta nosotros
como un bálsamo, llegó con su maravilloso mensaje de optimismo de que era posible
cambiar las cosas. Evidentemente nos siguió importando el sufrimiento, el hecho de estar
encarcelados pero una vez más entendimos que valía la pena eso que estábamos pasando,
porque en aquel país lejano llamado Portugal, del que sabíamos muy poco, nos llegaba el
mensaje de que era posible cambiar las cosas y que del cañón de un fusil no salieron balas
sino que sirvieron, en cambio, para colocar flores, para colocar claveles en su interior.
Este Premio tiene, para mí, un significado muy especial y muy emotivo, y ya he señalado
las razones, de que lleva el nombre de un hombre que admiro y luego porque lo siento
como ese abrazo discreto de los portugueses, porque hasta en eso nos parecemos: no nos
abrazamos con grandes aspavientos ni gritando todo el cariño que nos tenemos, sino que
nos abrazamos con cierta timidez, con cierta medida timidez que hace sentir mucho más un
afecto que nos profesamos. Soy un escritor, creo ficciones, toco también la realidad, soy un
periodista, me enfrento a la realidad, soy un hombre, quiero cambiar la realidad
y eses tres
factores se conjugan en eso que es mi obra literaria que tan generosamente ha alabado mi
amigo.
CEI
Atividades | 2016
266
267
I. Ensino e Formação
XVI Curso de Verão
Espaços de fronteira em tempos de incerteza: pensamentos globais,
ações locais
Teve lugar de 6 a 9 de julho, na Guarda, a décima sexta edição dos Cursos de Verão,
iniciativa que o CEI realiza desde 2001 e que constitui uma das imagens de marca do Centro.
Tiveram lugar mais de 25 comunicações que ofereceram olhares diversos e complementares
sobre territórios próximos e distantes, desde a raia central ibérica até ao interior do Brasil ou
Moçambique, serviram para criar um diálogo frutífero, que terá continuidade na geração
de novos projetos de investigação e na criação e consolidação de redes de cooperação
académica internacional. Realizaram-se ainda três conferências: (i) Por uma geo-foto-grafia
da fronteira agrícola no eixo da BR-163 (de Cuiabá/MT a Santarém/PA) - Messias Modesto
dos Passos (Univ. Estadual Paulista - Presidente Prudente - UNESP); (ii) Alternativas políticas
de diálogo en la Península Ibérica - Francisco Ramos Antón (Consejo Consultivo de Castilla y
León); (iii) Oficina de História da Guarda: história ibérica, história local sem muros - Rita Costa
Gomes (Towson University, USA).
O Curso realizou-se com dois dias de trabalho de campo visitando alguns lugares e
territórios emblemáticos da raia central ibérica, onde a vivência direta dos lugares, a perceção
dos seus elementos simbólicos, e inclusivamente o esforço físico para recorrer a sus áspera
topografia, cumpriram um papel de contraponto vital importante para o entendimento e a
sintonia com o território e a valorização das dificuldades de sobrevivência em meios de baixa
densidade. O grupo participante, que superou o numero das edições anteriores, mostrou uma
atitude participativa excelente e o desejo de continuar a participar em próximas edições deste
Curso, para seguir cultivando uma cumplicidade já criada e muito produtiva para o estudo
das relações fronteiriças e a procura de vias de cooperação orientadas para a preservação,
desenvolvimento e integração destes territórios.
CEI Actividades | 2016
268
II. Investigação
As Novas Geografias dos Países de Língua Portuguesa.
O Atlas. No princípio, era o Mapa
Programa
O Atlas, o Mapa, a Geografia: ler o Mundo,
interpretar o território
Moderação: Fernanda Maria Cravidão (Univ.
Coimbra). Intervenções: João Carlos Garcia (Univ.
Porto; Rui Ferreira (Univ. Coimbra); Daniel Chaves
(Univ. Federal do Amapá).
Geografia e Imagem: para uma foto(geo)
grafia da lusofonia
Moderação: Rui Jacinto (Univ. Coimbra).
Intervenções: José Manuel Simões (Univ. Lisboa);
Fátima Velez de Castro (Univ. Coimbra); Duarte
Belo (Arquiteto; Fotógrafo).
Os Países de Língua Portuguesa. Mapas
para um novo Atlas
Moderação: Lúcio Cunha (Univ. Coimbra).
Intervenções: Valentín Cabero Diéguez (Univ. Salamanca); Paulo Nossa (Univ. Coimbra);
José Borzacchiello da Silva (Univ. Federal do Ceará. Fortaleza).
O Prémio anual, que tem o nome do ensaísta Eduardo Lourenço, mentor e Diretor
Honorífico do CEI, destina-se a premiar personalidades ou instituições com intervenção
relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas. O Júri desta edição foi
constituído pelos membros da Direção do Centro de Estudos Ibéricos (Presidente da
Câmara Municipal da Guarda, Reitor da Universidade de Salamanca, que preside, e Reitor
da Universidade de Coimbra) membros das Comissões Científica e Executiva do CEI e por
personalidades convidadas: Dr. Guilherme Valente (Presidente do Conselho de Administração
da Gradiva), indicado pela Universidade de Coimbra, e Prof. D. Florencio Maíllo (Professor
na USAL e pintor) e D. Ignacio Francia (jornalista do El País), indicados pela Universidade de
Salamanca.
Considerando o espírito do Prémio, o Júri galarduou Luís Sepúlveda reconhecendo o
trabalho do Escritor em louvor da
Língua e da Cultura espanholas,
fazendo da pátria idiomática, que
tem a dimensão plurinacional de
vários continentes, uma aventura
criadora em que o Homem é
a medida de todas as coisas.
Destacou ainda a dimensão de
um diálogo ibérico alargado,
inspirador da vida e obra, tanto
do Patrono do Prémio como de
Luís Sepúlveda, salientando a
expressão e difusão da obra do
Autor, tanto em Portugal como em
Espanha, tornando-o mediador da
Cultura Ibérica.
A sessão solene de entrega do
galardão a Luis Sepúlveda teve
lugar, na Guarda, no dia 1 de julho
de 2016, tendo sido presidida pelo
Presidente da Câmara Municipal da
Guarda, Álvaro dos Santos Amaro.
Na cerimónia intervieram, além do
Presidente da Câmara Municipal
da Guarda, o Prof. Eduardo
Lourenço, Fernando Paulouro,
que fez o elogio ao premiado, Luis
Sepúlveda.
CEI Actividades | 2016
271
Premiados
Salamanca
Coimbra
No âmbito da 18ª Semana Cultural da Universidade de Coimbra, esteve patente de abril a maio,
na Prisão Académica da Universidade de Coimbra, a exposição Transversalidades 2015. Fotografia
sem Fronteiras.
CEI Actividades | 2016
274
IV. Edições
Revista de Estudos Ibéricos
Iberografias 12 [2016]
Este número da Revista Iberografias compila as comunicações proferidas no âmbito do
Seminário “O Atlas. No princípio, era o Mapa. As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa”, sendo dado destaque ao Prémio Eduardo Lourenço atribuído, em 2016, a Luis
Sepúlveda.
Inclui um dossier onde se debate a relação entre fotografia e território organizado em três
tópicos: Imaginar o território, Geografia e Poética do Olhar e Monteiro Gil: A Cor do Olhar.
Finalmente, é feito o registo das atividades realizadas pelo CEI, em 2016.
Coleção Iberografias
Nº 31 - Diálogos (Trans)fronteiriços – Património,
Territórios, Culturas.
Este número da Coleção Iberografias, coordenado por
Rui Jacinto e Valentín Cabero, reúne textos de mais de vinte
autores, resultantes de intervenções realizadas durante o XV
Curso de Verão de 2015, subordinado ao tema Iberismo e
Lusofonia: Paisagens, Territórios e Diálogos Transfronteiriços.
Foi apresentado em Coimbra, no dia 14 de abril, em
Coimbra, por ocasião do “Seminário O Atlas. No princípio,
era o Mapa. As Novas Geografias dos Países de Língua
Portuguesa” e do XVI Curso de Verão “Espaços de fronteira
em tempos de incerteza: pensamentos globais, ações locais”,
no dia 6 de julho, na Guarda.
Catálogo
Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras
O Catálogo Transversalidades reúne um conjunto significativo de fotografias submetidas
à edição de 2016 do Concurso Transversalidades 2016 - Fotografia Sem Fronteiras.
Estruturado em quatro temas - “Património natural, paisagens e biodiversidade”, “Espaços
rurais, agricultura e povoamento”, “Cidade e processos de urbanização” e “Cultura e
sociedade: diversidade cultural e inclusão social” -, o Catálogo conta com textos de: Rui
Jacinto (Universidade de Coimbra); Helena Freitas (Universidade de Coimbra); Caio Augusto
Amorim Maciel e Priscila Vasconcelos (Universidade Federal de Pernambuco); Teresa Pinto
Correia (Universidade de Évora); João Rua (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro);
António Bandeirinha (Universidade de Coimbra); Sandra Lencioni (Universidade de S. Paulo);
Clara Almeida Santos (Universidade de Coimbra); e Maria Teresa Duarte Paes (Universidade
Estadual de Campinas).
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