Problema do Ensino
(texto da conferência - março 2000 - na Fac. de Educação da USP para o curso de
doutorado:"A Educação para as virtudes na Tradição Ocidental")
Aquele impacto a que nos referimos teve o seu lado positivo, e Sócrates, a sua
louvação. Isso veio a traduzir-se na consolidação de um tipo de influência
espiritual multifacetada, que se costuma designar pelo nome de socratismo.
De fato, de seu convívio partilharam pessoas de condição social, objetivos e
interesses variados e, por vezes, até contrários; após a sua morte algumas
dessas pessoas se agruparam em orientações espirituais diferentes, apenas em
alguns pontos coincidentes, às quais não negavam a poderosa ascendência
socrática. Podem ser lembrados, aqui, alguns líderes e suas escolas, como o
grande Platão (Atenas) e a Academia, Aristipo (Cirene) e os cirenaicos,
Diógenes e os cínicos, Euclides (Megara) e os megáricos, entre outros. Todas
essas correntes dariam, na fase helenística da cultura antiga, resultados
significativos, pelo débito a elas devido por algumas das orientações
filosóficas mais importantes daquele período.
O "grande mestre" tem sido a opção preferida dos filósofos e dos educadores.
Esses últimos, com muito orgulho, gostam de lembrar o hábil inquiridor, que
finge tudo ignorar para tudo demolir, e investir, a seguir, desonerado dos
julgamentos precipitados, na construção do saber, legitimado pela participação
do interlocutor. Nesse grupo de admiradores, que sublinham sua condição de
"maiêutico", infiltraram-se alguns admiradores vigorosos que se apressam em
identificá-lo com o homem que inventou um grande método de ensino.
Se quisermos conhecer o tipo humano que aparece como ideal dessa cultura,
tão presente na tradição literária, temos que considerar a importância que os
gregos davam à aparência e ao caráter. O homem em sua plenitude (areté)
deve ser belo (kalós) e de valor (agathós). Esse homem belo é sempre, nas
origens, uma criatura de estirpe, um nobre. Conhece os refinamentos da vida
elegante, sabe receber, é experimentado nos jogos e se sobressai em todas as
circunstâncias, na assembléia ou no conselho, na qualidade de orador; no
combate também, exibindo técnica e coragem diante do inimigo. Alcançar a
kalokagathia, isto é, corpo e espírito excelentes, eis, de forma resumida, o
supremo bem.
Quando Sócrates emerge no cenário grego, essa tradição vai ser questionada.
Atenas é uma "cidade-escola". Centro cultural da mais alta importância,
caminho obrigatório de passagem ou de estadia das figuras mais brilhantes
daquela época. Pólo irradiador do saber, para onde poetas, adivinhos,
retóricos, professores de eloqüência, declamadores, pesquisadores da
natureza, intelectuais de toda espécie afluem, circulando pela ágora; ali, a fina
flor da juventude freqüenta ilustres estrangeiros, discute sobre todos os temas
e questiona, racionalmente, os fundamentos da vida religiosa, social, familiar,
política. Atenas tem poder – ela governa um império, e lidera a Grécia,
sustentando seu brilho com os recursos dos aliados, que protege do perigo
persa e animada pelo vigor do regime democrático. Quando Sócrates, ao final
da vida, é julgado e condenado por um tribunal popular, Atenas, esgotada à
exaustão, perdera a Guerra do Peloponeso, e, com ela, o império marítimo que
a consagrara, sob o governo de Péricles, como líder da Grécia; esforçava-se
por superar as conseqüências políticas de dois golpes oligárquicos (411 e 403
a.C.), lutando por manter a paz e, com ela, internamente, a democracia,
regime político restaurado ao qual associava a sua glória, e que, agora, cabia
preservar.
Foi dentro desse quadro cultural e político que emergiu, cresceu, se impôs e
brilhou a figura de Sócrates. Essa Atenas clássica conheceu todo o poder da
atuação de sábios racionalistas, críticos implacáveis da tradição em todos os
sentidos, extremamente hábeis, alguns deles, em desenvolver e ensinar
técnicas de comunicação, que os jovens, futuros líderes da cidade, viriam a
aplicar com perícia, visando ao êxito nas assembléias populares e no
Conselho.
Como Sócrates se situa diante desse quadro? Em que contexto e motivado por
que preocupações ele irá agir, notabilizando-se pelo uso de uma tekhné
investigativa, que depois se iria rotular de "método socrático"?
Sócrates rompe com toda essa tradição, embora, curiosamente, ele próprio
seja um produto da velha escola, aquela que "formou os heróis de Maratona".
Haja vista a referência, em mais de uma fonte, a feitos heróicos por ocasião de
eventos militares (Delos, Potidéia). Mas com ele, questionado, o paradigma
não suporta a inspeção crítica da razão. O modelo de coragem (Lakhes), o
modelo de piedade (Eutífrone), o modelo de temperança (Cármides), que
preenchem os requisitos tradicionais a respeito dessas qualidades, mostram-se
inconsistentes, todos eles, sucumbindo à laboriosa e astuta dialética socrática.
Ainda mais uma vez, paradoxalmente, respeitando a convicção grega de que a
lei consigna a justiça e nesta estão reunidos todos os valores cívicos, o mesmo
Sócrates, que duvida da capacidade política do cidadão ateniense comum para
bem votar as leis da polis, é quem, em obediência à idéia comum de
excelência, aprovada por essa mesma maioria cuja competência vem de
questionar, vai desafiar a assembléia ensandecida, no julgamento dos generais
da batalha das Arginusas, empenhado em fazer cumprir as leis. Apesar de
opor sérias dúvidas ao processo (democrático) pelo qual foram estabelecidas.
Olhar o homem como uma unidade superior à soma do corpo e do espírito vai
implicar, para Sócrates, uma reformulação estética de alcance inestimável. A
beleza física, tão importante desde a épica, preserva seu valor, mas submetido
a uma abrangência, que é o homem por inteiro. Dentro dessa perspectiva, o
belo corpo, a ação corajosa, associados, com uma certa regularidade, às
exibições atléticas e esportivas, aos feitos heróicos de guerra, são repensados
em função de uma idéia de homem mais elaborada. É preciso considerar o
homem na sua totalidade, o que se encaixa numa filosofia educativa que
subordina a ação humana a uma reflexão sobre a vida e a qualidade da vida.
Alcançar a vida boa, viver bem, transforma-se, com Sócrates, em um projeto
filosófico do mais alto alcance, com muito claras implicações de ordem
educativa. Daí a importância de se determinar que bens devem ser eleitos
como dignos de serem buscados e de que males fugir. Ora, como conhecer e
determinar essa tábua de bens - refiram-se eles à saúde, à honra, ao poder, à
riqueza, à glória - e como direcionar a conduta para a sua realização, no plano
individual e coletivo? Qual a chave para a vida feliz?
A areté pode ser cognoscível e, por isso, pode ser ensinada (didaktón). Mas é
porque sua natureza participa da ciência que isto é compreensível. Enquanto
ciência, deve, contudo, iluminar a vida. A coerência entre saber e agir se
impõe, porque, se for diferente, haverá uma ruptura dentro do homem e seus
passos serão desencontrados, como os de um cego sem amparo. A razão é o
fator crítico que possibilita o discernimento e favorece a escolha da tábua de
bens hábeis em levar-nos ao encontro da felicidade.
E o mestre? Ele só pode operar como um braço auxiliar da razão, que, uma
vez ativada, traz em si o princípio que a faz produzir, isto é, conhecer.
Interferir nesse processo, colocando na alma do outro um saber que não
nasceu ali é uma opção pelo fracasso. Ele não promove a conversão, ele não
opera o ‘milagre’ que levar a agir. Ou, se o fizer, a conduta assim provocada
terá a qualidade das imitações, e bastará uma circunstância negativa para
desviá-la de seu verdadeiro fim. Tal como ocorre com estátuas de Dédalo,
"saberes" transplantados têm a leveza das plantas que não têm raízes. Apenas
o encadeamento promovido dialeticamente pela razão pode aprofundá-los, e
consolidando-os, torná-los fixos.