Por André Santos Luigi* e Rodolfo de Souza** | Fotos: Shutterstock / Wikimedia | Adaptação
web Caroline Svitras
Aquele que pesquisar sobre a temática do racismo a partir de um enfoque filosófico certamente
se deparará com um enorme vazio. De fato, não podemos afirmar que o racismo seja um tema
caro à Filosofia. Não porque não seja possível conceituá-lo filosoficamente – conforme definição
de Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992) –, mas simplesmente porque os
filósofos não se apropriaram dele.
Segundo Michel Foucault (1926-1984), “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política
geral’ de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”.
O autor adverte que nossa sociedade criou uma complexa “economia política da verdade”, em
que a produção da verdade “é produzida e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas
dominante, de alguns grandes aparelhos políticos e econômicos (universidade, exército,
escritura, meios de comunicação)” tornando-se “objeto de debate político e de confronto
social”. Para que determinadas “verdades” sejam aceitas como tal, é preciso silenciar outras
“verdades”. Trata-se do silêncio como ato de poder, não como ausência da fala. É justamente o
que ocorre com os processos de discriminação: é preciso silenciar o conceito para que o pré-
conceito possa existir. Assim, a produção do conhecimento não se dá apenas para incrementar o
saber humano, mas também para afirmar determinadas verdades e silenciar outras.
Para se ter uma ideia, enquanto o número de mulheres brancas assassinadas diminuiu 9,6%
entre 2003 e 2013, o número de mulheres negras assassinadas no mesmo período disparou
54,2%. Em 2013, 13 mulheres foram assassinadas por dia no Brasil, em média, e 66,3% delas
eram negras. O mesmo processo se dá com os homens. Hoje, 82 jovens com idade entre 15 e 29
anos são assassinados diariamente no Brasil, e 77% são negros. Entre 2003 e 2012 o número de
pessoas brancas mortas por armas de fogo caiu 29%, enquanto que entre os negros o índice
aumentou 14,1%. Hoje, um jovem negro tem 250% mais chances de morrer de forma violenta
do que um jovem branco.
Diante desses dados, Kabengele Munanga (1940) sentencia: “nosso racismo é um crime
perfeito”. Crime, pelos números hediondos que produz, e perfeito porque somos incapazes de
reconhecer quem são os verdadeiros responsáveis. Para melhor compreender esta definição de
crime perfeito é preciso desarticular o racismo desvendando seus mecanismos. De forma
sistemática poderíamos dividir os mecanismos em três etapas: 1) naturalização; 2)
culpabilização; e 3) criminalização.
Spike Lee propõe temáticas que revelam as contradições raciais existentes nos EUA
Entretanto, a acomodação que a naturalização propicia às vezes desmorona. Em situações
extremas, quando o racismo não pode mais ser negado, entra em cena a culpabilização. Sua
função é operar uma inversão. A culpabilização permite afirmar, por exemplo, que não somos
atendidos por médicos negros porque os negros não optam por cursar Medicina. Não
conhecemos políticos negros porque os próprios negros não votam em negros. E assim por
diante. Desta forma, é possível inverter a lógica do problema imputando a culpa do racismo na
própria vítima do racismo. O racismo novamente não é problematizado como fenômeno social e
se torna uma questão individual. Como se o negro pudesse escolher ser vítima do racismo ou
não. Quando denuncia o racismo, logo escuta que está tentando transferir “seu problema”. No
máximo, o que se oferece é compaixão. Mas uma compaixão que reconhece a condição social
desfavorável do negro para logo em seguida lhe impor a cobrança para que se esforce e supere o
racismo. E aqui entra em cena a criminalização. Aqueles que não se esforçam o suficiente para
superar as barreiras sociais impostas pelo racismo devem ser responsabilizados. Se não existe
racismo (naturalização) a culpa pela situação do negro é do próprio negro (culpabilização),
assim, se o negro não é capaz de lidar com esta situação, ele deve arcar com as consequências
(criminalização). Não se trata da criminalização judicial apenas, mas da criminalização que
argumenta a “necessidade” de punição.
O encarte Racismo cordial, publicado pela Folha de São Paulo em 1995, denuncia que mais de
80% dos brasileiros que participaram da pesquisa alegaram que há racismo no País, mas quando
questionados se já haviam discriminado alguém, a maioria disse que não. Significa que há
racismo, mas sem racistas. Portanto, “nosso racismo é um crime perfeito, porque é a própria
vítima que é responsável por seu racismo”.
filme A hora do show retrata críticas sociais fundamentais que mostram ao espectador os limites
morais dos personagens e, consequentemente, da nossa sociedade
As Diretrizes, elaboradas pela Professora Doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, são muito
mais do que um mero mecanismo de regulação legal. Seu texto propõe um projeto pedagógico
que, obviamente, aponta para um projeto de sociedade livre do racismo. Trata-se da educação
antirracista que se funda em três grandes pilares, cada um com um objetivo específico:
Não se trata de uma educação voltada apenas para negros e negras, ao contrário, trata-se de
oferecer a oportunidade da construção de uma sociedade mais igualitária. Fica evidente que
estamos falando de atividades pedagógicas que vão muito além da simples realização de feiras e
eventos culturais no dia 20 de novembro.
*André Santos Luigi é bacharel e licenciado em História pela USP. Mestre em Educação, estuda
Relações Étnico-Raciais. É membro do grupo de pesquisa ETNS, da UFSCar. Atua como
Coordenador do Cursinho Popular EPA. asluigi@hotmail.com
**Rodolfo de Souza é bacharel em Filosofia pela Puc-Campinas e atua como professor da rede
pública de São Paulo. rodolfoidt@yahoo.com.br