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A RETÓRICA DA PERDA é um mudo


sobre as modalidades <lr “Invençiit)
c(l$çursiva” do Brasil produz
idas desde a
década de trinta até os anos oitenta des
te século, tomando como referência o
“patrimônio cultural". Para tal, sfla foca
lizadas duas figuras exemplares: Rodrigo
Melo Franco de Andrade, representante
maior da estratégia de narração da Idea
tidade nacional brasileira a partir do pa
trimônio, caracterizada pela ênfase na
civilização e natradição; eAloisio de Ma-
galhães, cuja ênfase recai sobre o cará-
ter jovem, culturalmen
te diverso o em
desenvolvimento do país.
Uma visão geral do que seja o livro, no
entanto, não pode parar aí. Não se pode
deixar de indicar o extremo interesse que
a construção do objeto provoca ao indi-
car o seu lugar no cruzamento de ques-
tões várias. Entre estas, podem ser men-
cionadas: as modalidades de construção
discursiva da nação como comunidade
imaginada, entre as quais se coloca a
construção enquanto patrimônio; os usos
da objetificação cultural na forma de en-
tidades sóciocientíficas como nação, soci-
edade e cultura; as analogias entre ale-
goria, ruína e patrimônio; o barroco como
“signo totêmico” da identidade nacional
brasileira; as associações entre os discur-
sos a partir do patrimônio e os discursos
modernistas; o papel dosjntelectuais na

produção de valores supostamente em


declínio e a análise dessa operação como
estratégia de apresentação da cultura
nacional comouma realidade bjetiva;
o a

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í ,
h £op°-

A RETÓRICA DA PERDA

os discursos do patrimônio cultural no Brasil

f*
Ministro da Cultura
F ranci sco W effort

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/ IPHAN

P resident e
G lauco C amp ei Io

D epa rtamento de P romoção / D eprom

Diretora
J urema K opke Eis A rna ut

C oordenad or de E ditoração
Sebastião Uchoa Leite

Universidade Federal do Rio de Janeiro

R eitor
P aulo A lcânt ara G omes

Vice-reitor
J osé H enrique V ilhena de P aiva

C oordenadora do F orum de C iência e C ultura


M yri am Dauel sber g

Editora UFRJ

Di retora
Heloisa Buarque de Holanda

E ditora A ss istente
Lucia Canedo
C oorden ador a de P rodu ção
A na C arreiro
José Reginaldo Santos Gonçalves

A RETÓRICA DA PERDA

os discu rsos do patrim ônio cu ltural no Brasil

Edit ora UFRJ / M inC - I PH AN


A retórica da perda:
O s d iscursos do patri mônio cultural no Brasil

©1 996-Co pyright b y J osé R egin aldo S antos G onçalves

E dição de t exto
J osé A ntônio N o nato/ IP H A N

P rojeto G ráf ico


A lice B rito/ E ditora UFRJ

E ditoração eletr ôn ica


Fátima Agra

C ons elho E ditorial da U FRJ

H eloi sa Buarque de H oll an da (presi den te),


C arl os Lessa , F ernando Lo bo C arneiro, F lora Süsseki nd,
G ilbe rto V elho, M argari da de S ouza N eves.

G -635r G onçalves, J osé R eginaldo S antos


A retórica da perda: os discursos
do p atrim ôn io c ultural no B ras il/ J osé
R eginaldo Santos G onça lves - R io de
J aneiro: E ditora UFR J ; IP H A N , 1996.
156 p; 15 x 20,5 cm
ISBN 85-7108-163-8

1 - C ultura - Bra sil. 2.P atrimônio


Qbfitural. 1.T ítulo.
CDD:306
■ Agradecimentos

O rigina lmen te uma tese de doutorado de fendida no


Departamento de Antropologia da Universidade de Virgínia, nos
EUA, em 1989, posteriormente traduzida e adaptada para
publicação, este livro, como todo e qualquer empreendimento
humano, supõe muitas dívidas para com pessoas e instituições.
Na Universidade de Virgínia, pude contar com o apoio e
o estímulo intelectual dos seguintes professores:
R ichard H andler or ientou, com s ens ibilidade e
competência, a elaboração de minha tese.
V ictor T urner , E dith T urner , R oy W agne r, J .D. S apir, C hris
C rocker , F red D amon, J eff H antman, Susa n M ackinno n, H.L.
S enevi ratne e G eorge M entore foram fundamentai s c om o font es de
apoio institucional, pessoal e intelectual em diferentes momentos
do longo processo de realização de uma tese de doutorado num
país estrangeiro.
R ichard R orty represent ou um notável exe mp lo de
co mpetência, e rudi ção e ge nerosidad e intelect ual. C onhecê-lo
repercutiu de modo sensível em minha formação intelectual.
No Brasil, não posso deixar de assinalar e agradecer o
papel de cis ivo qu e desempenhou o P rof. R ober to D aM atta na
minha formação como antropólogo, assim como na de muitos de
minha geração.
Y vo nn e M agg ie, ao long o de mu itos anos , tem
contribuído para minha formação intelectual, além do apoio
profissional e institucional que sempre me dispensou.
G ilbert o V elho t em s ido uma referência const ante em
termos de apoio profissional.
O tá vio V elho t em manif est ado uma atenção gener osa pe lo
meu trabalho e, nos momentos em que dele precisei, se fez
presente com amizade e estímulo intelectual.
Heloisa Buarque de Flollanda, com amizade, elegância e
generosidade, tem apoiado de maneira decisiva meus projetos
intelec tua is no C entro In terd isc iplina r de E studos C ontemporâneo s
(CIEC). Sou-lhe imensamente grato.

M aria L aura V iveir os de C astro C avalcanti , N eide E sterci,


G láuc ia Vi11asboas, P eter F ry, A na M aria G alano, M aria D ina
N ogue ira P into e os col egas do P rograma d e P ós-G raduaç ão em
S oc iologia e do L aborat ório de P esq uisa Social do IFCS /UFR J têm
sido bastante solidários. Sem o seu apoio pessoal e institucional
eu não teria chegado à conclusão deste livro.

R icar do B enzaquen t em sido um amigo e int erlo cu tor


cons tante, liana S trozenbe rg tem generosa mente apo iado meu
traba lho em t ermos pessoai s e ins tituciona is. M arc o A ntonio
G onçalves e M aria Li na Leão T eixeira vêm s endo refer ência
constante como amigos e colegas. Lucia Lippi, nos últimos anos,
tem estado sempre presente como amiga e como forte estímulo
intelectual e profissional.

E leanor C rocker , C olin Dunhan, J aime S amp edro, K en


L ittle, D oug D alton, C harles e R osetta W hite, R onnie e Ivone
P anerai, H eloisa e Lee G raham tornaram e xist enc ialmente
significativa minha experiência nos EUA.

O s integrantes do G rupo de T rabalho de P ensament o


S ocial B rasil eiro da ANP O C S têm sido interlocut ores vali osos.

Isad ora, R enata e M ariana têm aco mpanha do meus


projetos com solidariedade constante e, sempre que podem, com
paciência e bom humor.

M areia C ontins leu e com entou os srci nais.

Durante o tempo em que realizei pesquisa nos arquivos


da S P H A N, no R io de J aneiro, p ude co ntar co m a atençã o e o
apoio dos seus funcionários.

O C NP q e o D epart ament o de A ntropologia da


Universidade de Virgínia, em diferentes momentos, concederam-me
bolsas de estudos que tornaram possível a conclusão de meu
projet o; o D epart amento de C iênci as S ociai s do IFCS /UFR J , o
L aboratór io de Pesqui sa S ocial do IFCS /UFR J e o C entro
Interdisciplinar d e E studos C ontemporâneos t êm o ferec ido a poio
institucional constante à realização do meu trabalho.
Su m ário

P atrimônio C ultural e N arrativas N ac ionais 11

A Identificação do Brasil 36

A A propri aç ão da C ultura N acional 63

A R etórica da P erda 88

R edim indo a Nação:


O Brasil em busca de sua identi dad e 115

Os usos da O bjeti fica çã o C ultural 136

Bibliografia 140
Capítulo Um

■ PA TRI M ÔN I O CULTU RA L E NARRATI VAS NA CI ON AI S

" Pal av r as são t a m b é


m a t os"

Ludw ig W ittge ns te in
(In vest ig a ções Fil osófi cas, p . 148)

■ Narrativas nacionais

Este é um estudo sobre os discursos do "patrimônio


cultural" no Brasil. Nele eu analiso as modalidades de invenção
discursiva do Brasil produzidas por intelectuais associados à
formulação e implementação de políticas oficiais de "patrimônio
cultural", desde a década de trinta até os anos oitenta deste
século.
Interpreto esses discursos como "narrativas nacionais", isto
é, modalidades discursivas cujo propósito fundamental é a
construção de uma "memória" e de uma "identidade" nacionais.
Estarei usando as palavras "memória" e "identidade" a partir dos
modos pelos quais determinada categoria social - intelectuais
identificados com projetos nacionais de "patrimônio cultural" no
Brasi l - as de finem em função do emp reendiment o de cons trução
da "nação".
Enquanto construções discursivas, essas definições podem
ser pensadas co mo "at os " — para usarm os a sugest ão da
epígrafe. Aquela categoria de intelectuais, ao definir "identidades"
e "memórias" para a nação, segundo determinados códigos sócio-
culturais, o faz com propósitos pragmáticos, políticos. De modo
que tais definições, a exemplo das "telas terminológicas"
(term ini stic s creens ) de K enneth B urke (1966), têm co ns eqü ênc ias
em termos de práticas sociais, ou em termos de "ação simbólica"

11 P ATR IMÔ NIO CU LTUR AL E NARRATIV AS NA C ION AIS


(para usarmos um outro termo do mesmo Burke), possuindo,
portanto, uma dimensão dramática e não exclusivamente cognitiva.
Essas consequências, obviamente, atingem também os receptores
dessas definições, afetando, em princípio, o modo como diversos
grupos e categorias sociais venham a considerar o que seja sua
"naç ão ", ou o modo como venha m a se se ntir co mo part e dessa
totalidade.
A nação, enquanto uma "comunidade imaginada" (Ander-
son 1989), pode vir a ser construída discursivamente, enquanto
uma literatura (como é o caso das "literaturas nacionais"),
enqua nto uma língua nacional, enquanto uma "ra ça ", um
folclore, uma religião, um conjunto de leis, enquanto uma política
de Estado visando à independência política e econômica, ou,
ainda, uma política cultural visando à recuperação, defesa e
preservação de um "patrimônio cultural". Essas inúmeras
modalidades de construção discursiva da "nação" podem ser
interpretadas como condições para, ao mesmo tempo em que
produtos ou efeitos de estratégias de "objetificação cultural",
atualizadas por determinadas categorias e grupos de intelectuais
em contextos sócio-culturais específicos.

■ Ob jeti ficação Cul tural

Em anos recentes, muitos estudos têm sido produzidos

sobre os processos de invenção de "culturas" ou "tradições"


na ciona is em dif erent es context os históricos. O que sugerem é que
pensemos essas "culturas" ou "tradições", não como dados
ahistóricos, mas como produtos de ações humanas histórica e
s ócio -c ulturalme nte situad as 1. Em um desses estudos, H an dler 1

1A expressão "histó rica e politicamente situadas" é problemática. Ela pode sugerir que
exista substant ivamente algo chamado"política" ou "história". T anto a políticaquanto
a história sã$>construçõesculturais e, como tais, não são realidadespré-exist entes nas
quais estariam sit uadas asações human as. Em outras palavr as, tanto a políticaquanto
a história não sãoanteriores,mas partedas narrativas na cionalistas. Essas narrativas,
por sua vez, não são simplesmenteextos t nosentido estrito da palavra; elas sãoormas
f
de ação,"performances".

1 2 A RETÓRICA DA PER DA
(1984; 1988) sugere o uso da noção de "objetificação cultural"
para pensarmos os processos de invenção de "culturas" e
"tradições" em modernos contextos nacionais. Essa noção é usada
a pa rtir de B enjamin W horf, par a quem "a ob jetifica çã o refere-se
à tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não
materiais (como o tempo) como se fossem algo concreto, objetos
físicos existentes" (1978). Segundo Handler, os processos de
objetificação são particularmente evidentes "quando pensamos em
entidades sócio-científicas tais como nação, sociedade, grupo e
cultura, que abordamos como se fossem coisas no mundo natural.
F aço uso da noç ão de 'ob jetifica çã o c u ltura l' para me referir à
materialização imaginativa de realidades humanas em termos de
discurso teó rico baseado no co nc eito de c ultura" (1 984:55-56).
Com o propósito de sustentar e ilustrar seu argumento, ele toma
como base um brilhante insight de Roy Wagner, de cujo livro, Th e
invention of culture, cita: "...a antropologia nos ensina a objetificar
aquilo a que estamos tentando nos ajustar [durante o trabalho de
cam po] co mo 'cu ltura ', assi m co mo o psican alista ou o xamã
exorcisa as ansiedades do paciente objetificando suas fontes"
(H an dler 1984:56; [ W agn er 1975:8] ).
A interpretação dos processos de invenção de "culturas" e
"tradições" em modernos contextos nacionais recebe uma
contribuição srcinal a partir das sugestões de Handler sobre a
"objetificação cultural". Gostaria, no entanto, de sugerir algumas
questões que, espero, possam enriquecer nossa conversação sobre
essa noção e seu uso para a interpretação de narrativas nacionais
sobre patrimônio cultural.
A pa rtir de de W ho rf, H an dler entende a "ob jetifica çã o "
como "...uma tendência da lógica cultural ocidental a imaginar
fenômenos não-materiais (como o tempo) como se fossem
corporalizados, objetos físicos existentes" (1984:55). A
"objetificação" é determinada por uma "lógica" embutida nas

línguas e culturas ocidentais. Por esse viés, ela tendería a ser vista
co mo um process o que o correría independent e mente de açõe s
humanas contingentes e dotadas de propósito. Em outras palavras,
a própria objetificação seria objetificada como a atualização

13 PA TR IMÔNIO CULTUR AL E NA RRATI VAS NAC IONAIS


au tom ática de uma " lóg ica " linguís tica e cu ltural. O que n os
parece unilateral, na medida em que deixamos de lado questões
complementares tais como: quem objetifica?; o que é
objetificado?; como isso é feito?; com quais propósitos?.
Se nos parece claro que a objetificação "... é

particularmente evidente em nosso pensamento a respeito de


entidades sócio-científicas tais como nação, sociedade, grupo e
cultura, que abordamos como se fossem coisas no mundo natural"
(Handler 1984: 55-56); e que ela é a "... materialização
imaginária de realidades humanas nos termos de um discurso
teórico baseado no conceito de cultura" (1984: 55-56), parece, no
entanto, que seria mais produtivo se incluíssemos em nosso campo
de análise os usos que são feitos dessas "entidades sócio-
científicas" por grupos e categorias em diferentes situações sócio-
cult urais . O que no s pos sibili taria pensá -la tamb ém co mo
estratégias, como ações contingentes e dotadas de propósitos, ao
invés de tão somente atualizações de uma "lógica cultural
ocidental". Uma vez que essa "lógica" não existe
independentemente dos seus usos, o platonismo de Handler não
nos ajuda muito a lidar com a complexidade e a especificidade
dos diversos processos de objetificação cultural.
Importante frisar, no entanto, que o que acabo de dizer
não implica necessariamente em focalizar "o que as pessoas
realmente fazem" como algo "mais real" do que uma dimensão
cultural, um terreno onde supostos "agentes empíricos"
manipulariam símbolos de um modo utilitarista. Em verdade, estou
tomando como ponto de partida o pressuposto antropológico
segundo o qual os indivíduos, assim como seus propósitos, ações
e contextos, são culturalmente modelados.

■ História, cultura e nação como narrativas

possível usar a noção de "objetificação cultural" em

diversas situações. No caso dos discursos sobre identidades étnicas


ou nacionais, o uso objetificado de palavras como "grupo étnico"
e "na çã o" traz como conse quência a conce pção segun do a qual

14 A RETÓR ICA DA PERDA


estas seriam entidades "objetivas", existindo no mundo
independentemente de ações, desejos, idéias e valores humanos,
prontas para serem representadas por um sujeito epistemológico ou
político.
A idéia de uma realidade ficcionalmente constituída não
é nenhuma novidade. Em diferentes áreas das chamadas "ciências
humanas" - assi m co mo nas "ciênc ias naturais" — diversos
autores têm focalizado o papel desempenhado por recursos
ficcionais na construção de teorias científicas e seus objetos. De
diferentes modos, essa perspectiva é elaborada em contraposição
às concepções positivistas da ciência e que a tomam como uma
forma suprema de conhecimento, equacionando-a a uma razão
ahistórica situada acima dos conflitos e incertezas humanas. Em
filos ofia (D ew ey, H eidegger, G adamer , W ittgen stein, D errida,
Rorty); em história da ciência (Toulmin, Kuhn, Feyerabend); em
histór ia intelect ual (W hite, L acapr a), assim co mo em antrop ologia
(Geertz, Wagner), e em outras disciplinas, o "objeto" científico é
cada vez mais entendido como um artefato ou "invenção" (para
usar a metáf ora s ugeri da por W agn er par a o ob jeto p rivileg iad o
dos antropólogos: a cultura), ao invés de uma entidade existente
em si mesma. No caso da tradição antropológica, cabe assinalar,
essa ênfase na dimensão subjetiva do conhecimento é concebida
de modo complementar à dimensão objetiva, o fato social
concebido simultaneamente enquanto "representação" e enquanto
"coisa", para usarmos a terminologia da "escola sociológica
france sa ". Em M arce i Mauss ( 1974) e C laude Lévi- S trauss (1973),
a objetividade da antropologia vai ser entendida como uma forma
de intersubjetividade. Certamente não é meu propósito aqui
resenhar esse complexo movimento cultural de desafio aos
paradigmas positivistas nas ciências humanas e nas ciências
naturais; mas, apenas, tecer alguns comentários sobre o modo
como esse movimento vem sendo explorado por determinados
autores nas ciências humanas e, especialmente, na história e na
antropologia.
No contexto da história enquanto uma disciplina
aca dêmica, a obra d e H ayden W hite vem ass inalando o p apel

15 P ATR IMÔN IO CULTURAL E NARRA TIV AS NAC IONA IS


construtivo desempenhado pelos historiadores na sua atividade de
escrever a história, trazendo para essa comunidade intelectual o
desafio de repensar o paradigma objetivista. Desde o seu
Metahistória, srcinalmente publicado em 1973, ele tem sugerido
que o modo pelo qual os historiadores interpretam os "eventos
históricos" supõe o uso de formas narrativas para que deles
(eventos) se possa co ns truir um sentido, não s e tratand o, po rtan to,
de uma simples descrição fiel dos "fatos", supostamente tal qual
eles oc orrem. O texto h istórico é p ensado com o um "art efa to
lite rário " (197 8) prod uz ido pelo histori ado r e por me io do qual
ele ordena os "eventos históricos" dentro de uma estrutura
narrativa2.
O uso moderno de uma forma narr ativa par a es crever
a hist ória é oposto po r W hite a diferentes gêner os tais co mo os
"anais", uma forma de escrever os eventos históricos onde uma

série de acontecimentos datados são apresentados sem qualquer


conexão necessária entre eles; ou à "crônica", onde tais conexões
são el aboradas de m odo frouxo (W hite 1980). A forma na rrativa é
diferenciada pelo uso de um "enredo" por meio do qual os
acontecimentos são rigorosamente interconectados em uma
estr utura seq uenc ial, com u m começ o, um me io e um fim. O
enredo torna possível a apresentação dos eventos históricos como
um todo coerente e interconectado, sendo o que habilita o
hist oriado r a apresentar o que W hite cham a de aco ntec imentos
caóticos e arbitrários como uma totalidade significativa. Os
historiadores impõem sobre tais acontecimentos uma estrutura
ficcional que os re-(a)presenta como se possuíssem em si mesmos
atributos de co erên cia e ob jetivida de . Segundo W hite, "...o relat o
histórico atribui a essa realidade uma forma e, desse modo, torna-

2White considera os "eventos" como value-neutral (1978:47) , como se,de algum


modo, eles pudessem exis tir por si mesmos. Isto supõe um dualismo entre
"esquema conceituai" (na "mente") e "conteúdos" (n o "mundo") que ele poderia
dispensar. Para uma crítica vigorosa desse dualismo, ver Davidson (1984:183-198).

Para uma reflexão sobre "o primado da narrativa" nas interpretações antropológicas,
ver Velho (1992).

16 A RETÓRICA DA PERD A
a desejável na medida em que sobre ela impõe a coerência for
mal, que somente as estórias possuem" (1980:19). Baseando-se na
teoria lacaniana do símbolo, afirma ele que a narrativa histórica
"transforma o real em um objeto de desejo", na medida em que
apresenta a realidade como um todo coerente e distante, inibindo
a dimensã o c a ótica e arbit rária do real. M ais que ist o, enqu anto
um "objeto de desejo", esse "real" é visto como um objeto
distante que, nas palavr as de W hite, "convo ca -no s de long e (este
'longe' que é a terra das formas) e evidencia para nós uma
coerência formal de que nós mesmos carecemos" "[summons us
from afar (this 'afar' is the land of forms), and displays to us a
formal coherence that we ourselves lack"] (1980:20).
A moderna crença segundo a qual os historiadores
des crevem ou devería m descrever os fa tos 'co m o eles real mente
ocorreram' é produzida por meio de uma estratégia onde o
historiador define a autoridade da narrativa como "a autoridade da
próp ria rea lida de " ["the au tho rity of rea lity its e lf"] (W hite
1980:19). O que im plic a em que o hist oriador, enqua nto narrador,
desapareça. O lugar de onde el e fala permanece invi s íve l, sendo
"a própria realidade" que se manifestaria através do seu texto
(A raújo 1988). O passad o que o histori ado r descreve e anali sa é
apresentado como uma "realidade" cuja existência independería do
narrador, sendo sua tarefa a de expor aquele passado tal como ele
real mente oc orreu. D o leitor esper a-se que assuma o pac to de ler
o texto histórico como o espelho de uma realidade que, à espera
do historiador, veio a ser por este refletida em seu texto.
Esse mesmo problema da "autoridade narrativa" vem
sendo discutido por autores que têm se dedicado a repensar o
mo do de produ çã o dos textos e tnográficos (C lifford 1988; G eertz
1988 , 1982; M arcus and C ushm an 1982; C lifford and M arcus
1986). Assim como no caso do discurso do historiador, as

etnografias, na sugestão desses autores, seriam tarnbém "textos" ou


"artefatos lite rários ", segund o a expressão de H ayden W hite.
Enquanto tal, elas seriam entendidas como arranjos narrativos por
meio dos quais uma certa realidade etnográfica vem a ser
produzida ou inventada como uma totalidade coerente. A

17 P ATR IMÔN IO CULT URAL E NA RRATI VAS NA C ION AIS


autoridade dos textos etnográficos, como no caso do discurso do
historiador, seria assim também a autoridade da "própria realidade".
Segundo essa perspectiva, a história, assim como a antropologia,
partilharia as convenções que norteiam as narrativas realistas.
U m desses autores, J ames C lifford (1988), f az uma
resenha da formação e da desagregação da "autoridade
etnográfica" da antropologia, desde os inícios do século XX.
S egundo ele, antropól ogos como M alinow s ki e R adcli ffe-B rown
teriam estabelecido o "gênero etnográfico" com base no método
do trabalho de campo ou observação participante. Desse modo,
suger e C lifford, eles opunh am a natur eza "c ien tífic a " desse
procedimento ao caráter "não-científico" do que chamavam
"história conjectural", a história dos evolucionistas e difusionistas.
Em contraste com o discurso do historiador, baseado na
investigação de documentos, arquivos e monumentos, a autoridade
do et nógrafo estar ia, segundo C lifford, basead a na " e xp e riênc ia"
do pesquisador de campo ou observador participante. A pesquisa
etnográfica "científica" era então oposta ao discurso de viajantes,
funcionários da administração colonial e missionários, cujos textos
eram classificados por esses antropólogos como "não científicos"
(C lifford 1988 : 26-27) . S egund o C lifford, "...o que emergiu na
primeira metade do século vinte, com o sucesso do trabalho de
campo profissional foi uma nova fusão de teoria geral e pesquisa
empírica, de análise cultural com descrição etnográfica" (1988:
26). Desse modo, o antropólogo passava a ser não somente um
teórico, um "antropólogo de gabinete", mas um pesquisador de
campo fazendo uso de teorias científicas para explicar os fatos
etnográf icos que descr evesse. O principa l o bjetivo de ssa
mo dalidade de aut oridade etnográfi ca, para C lifford, é co nve nc er o
leit o r de que o an tropó logo realment e "esteve lá" (C lifford 1988;
Geertz 1988).
Nesse mesmo a rtigo, C lifford discute out ras
modalidades de "autoridade etnográfica" no século vinte,
nofadamente a "interpretativa", a "dialógica" e a "polifônica",
todas elas definidas por oposição à autoridade "experiencial",
baseada na experiência do trabalho de campo ou observação

18 A RE TÓR ICA DA P ERDA


participante. De modos diversos, elas todas questionam aquilo que
C lifford G eertz chamou de "ino cê ncia literária" da modali dade
experiencial. Entretanto, nenhuma delas seria privilegiada,
nenhuma seria "absoluta" ou "pura", sendo cada uma disponível
para ser usada pelos etnógrafos, seu uso sendo uma questão de
"escolha estratégica", não de imposição metodológica. A posição
central ocupada pela "autoridade experiencial" seria desafiada e
considerada como mais uma modalidade, entre outras, de
estabelecimento de autoridade narrativa nos textos etnográficos.
S egund o C lifford, na medida em que ess a aut oridade
narrativa, partilhada por autores e leitores de etnografias, não é
questionada, as 'culturas' ou 'sociedades' estudadas pelos
antropólogos são apresentadas nos textos etnográficos como se
fossem entidades pré-existentes, concretas e coerentes, esperando
para serem represent adas pelos et nógraf os. O papel dos
antropólogos no processo de "invenção" das culturas (no sentido
de finido por R oy W agne r [1973] e com entado por M arsha ll
S ahlins [1985: 152] ), tende a ser de sva lorizad o. D o mes mo modo
que o historiador, o antropólogo aparecería como um narrador não
situado, cujo papel seria o de descrever e analisar fatos
etnográficos independentes de qualquer interpretação.
Uma contribuição importante é trazida por Hayden
W hite e J ames C lifford ao chamarem a at enção, respect ivament e,
da comunidade de historiadores e da comunidade antropológica
(sobretudo a comunidade norte-americana de historiadores e
antropológos) para as dimensões "literárias" dessas disciplinas,
hóspedes nem sempre bem-vindas, sobretudo quando estas
disciplinas se definem de modo exclusivo e dicotômico como
descrição e análise científica de fatos históricos e culturais3. Isso

3É necessário evitar aqui ohábito de postular uma distinção ontológicaentre o objeto


das ciências humanas e as d ciências naturais, ou entr
e interpretação e explica
ção,
ciências "soft" e "hard". Essasdicotomias, estabelecidas por Dilthey e outros, podem,
no máximo, serrecuperadas de modorelacionai e provisório, demarcando espaç
os
diferenciais em que se configuramualmente
at so vários empreendimentos científicos
,
asdiversas modalidadesdiscursivas.1

19 P ATR IMÔNIO CULTURAL E NARRAT IVAS NAC IONA IS


evidentemente, não significa afirmar que o que historiadores e
antropólogos têm produzido e continuam a produzir seja
invalidado, mas que seus textos podem ser avaliados também a
partir de um outro padrão complementar. Historiadores e
antropólogos recebem o convite para que percebam o que sempre
fizeram: prosa, ou um certo gênero de prosa.
Embora essa sugestão evoque, inevitavelmente, a
surpr esa de M .J ourdain*, não precisamos, no ent anto, tom á- la
literalmente. As propostas de pensarmos o texto histórico como
"artefato literário" ou a "etnografia como texto" podem ser
pensadas como metáforas por meio das quais podemos nos
aperceber de dimensões sempre presentes, embora nem sempre
notadas, em no ssos empreendimen tos cie ntíficos . O u correrem os o
risco de congelar essas metáforas, transformando-as ingenuamente
em objetos, supostos novos objetos da antropologia.

Nes te est udo, faço uso da s idéias d e W hite e C lifford


para enriquecer a discussão sobre modernos processos de
objetificação cultural. A tese da constituição ficcional do 'passado'
/ pelos hist oriadores, e d a 'cu ltu ra ' pelos ant ropólogo s, é usada
para interpretar as estratégias narrativas presentes nos discursos
sobr e identi dades e memórias n acionais, em geral, e sobre a
identidade e memória nacional brasileira, em particular. A 'nação'
— assim com o seu 'pas sado ' e sua 'c ultura ' — é apresent ada,
nesses discursos, como uma entidade dotada de coerência e

continuidade. Essa coerência, no entanto, seria menos um dado


ontológico do que o efeito daquelas estratégias narrativas.
Em outras palavras, a coerência narrativa é concebida,
ilusoriamente, como coerência factual. A nação é transformada
num di stant e o bjeto de des ejo — o distante passad o n ac iona l, a
ident idade na cional aut ênti ca — contaminado pela co erênc ia com
que é narrado e, simultaneamente, buscado. Incoerências e

* Refere-seà peça Le bourgeois gentil


homme, de Molière. MonsieurJ ourdain, burguês

abastado, quer se ni struir, e descobre, como seu mestre de filosofia, que tudoque não
é verso, é prosa. Assim, M. Jourdaindescobre, comsurpresa, quetudo que ele fala é
prosa.(Nota dos editores).

2 o A RETÓR ICA DA PERD A


tllferenças, indeterminação e contingência são expulsas dos limites
ilesse discurso nacional e concebidas como parte de nossa vida
cotidiana. A coerência e a integridade de que carecemos são
projetadas numa dimensão ausente, que é tornada presente pelas
narrativas sobre a identidade e o passado nacional. Enquanto um

ob jeto de des ejo, a nação é parado xal mente e xpe rimentada por
tneio de sua ausência. No entanto, essa distância ou ausência
liada mais é que o efeito do desvio diferencial entre coerência e
Inc oe rência, desejo e objeto de desejo, ambos existindo co mo
parte integrante dos discursos nacionais. Nestes, no entanto, esses
desvios diferenciais são representados de maneira não relacionai,
na medida em que a nação é objetificada na forma de uma
entidade distante, integrada, unificada, idêntica a si mesma,
presente, ainda que ausente, próxima, ainda que distante. Há

nesses discursos um processo ilusório, que consiste na tentativa de


superar ou transcender essa distância ou ausência por meios
narrativos. Sendo esta uma tarefa interminável, as narrativas
nacionais estão sendo sempre contadas e recontadas, assim como
ocorre com os mitos. Nesse processo, aquela distância ou
ausência, a distância entre linguagem e experiência, entre símbolo
G o que é s imbo liz ad o, s ignif icante e signifi ca do, desejo e ob jeto
do desejo, é permanentemente recriada, embora sob o impulso
mágico de transcendê-la.

■ O patri mô nio c ultural c om o apropriação e per da

A história, assim como a antropologia, sem falar no


folclore , dese mpenha papel import ante na articu laç ão das A
narrativas nacionais sobre patrimônio cultural. No entanto,
enquanto antropólogos, historiadores, óu folcloristas, escrevem
textos de descrição e análise de sociedades, culturas, instituições,
rituais, etc., aqueles que lidam pragmaticamente com o chamado

"patrimônio cultural" dedicam-se às práticas de colecionar,


restaurar e preservar objetos com o propósito de expô-los para que
possam ser vistos e preencham as funções pedagógicas e políticas
que lhe são atribuídas. Desde seu começo enquanto um gênero

2 1 P ATR IMÔNIO' C ULTU R AL E NARRAT IVAS NA CIO NA IS


cultural nas sociedades ocidentais modernas, desde fins do século
XVIII e inícios do século XIX, as chamadas práticas culturais de
"preservação histórica" têm estado voltadas para a identificação,
coleta, restauração e preservação_de.„objetos culturais no sentido
geral desse term o (Bann 19 84; Lagarde 197 9). Estes po de m ser
pensados como parte de um "sistema de objetos" (Baudrillard
1968) cujo papel no processo de formação de identidades de
grupos e categorias sociais nas modernas sociedades ocidentais
tem s ido disc utido por v ários aut ores ( C lifford 1988; Bunn 1980;
D efer t 1982; F abian 1983; S tewart 1984; S tocking 1985; M itc he ll
1989; Breckenridge 1989). Diferentes modalidades de objetos, na
forma de "coleções", vieram a ser apropriadas e visualmente
dispostas nos modernos museus ocidentais e em instituições
similares, com o propósito de representar categorias sociais e
culturais tais como primíf ivõ/civílizado, passado/presente, exótico/

familiar, cultura popular ou cultura de massa/cultura erudita,


cultura estrangeira/cultura nacional, etc. Essas práticas de
colecionameritO é exposição respondem ao desafio de salvar esses
objetos do desaparecimento, transformando-os em coleções
representativas do sistema de oposições e correlações em que se
inserem essas categorias.
A nortear essas práticas está uma concepção moderna
de história, em que esta aparece como um processo inexorável de
destruição, em que valores, instituições e objetos associados a

uma "cultura", "tradição", "identidade" ou "memória" nacional


tendem a se perder. Os remanescentes do passado, assim como as
diferenças entre culturas, tenderíam a ser apagadas e substituídas
por um espaço marcado pela uniformidade. Esse processo é
considerado de modo unívoco, reificadamente, sem que se leve
em conta, de modo complementar, os processos inversos de
permanên cia e recriação das dif erenças em out ros plan os. O efeit o
dessa visão é desenhar um enquadramento mítico para o processo
histórico, que é equacionado, de modo absoluto, à destruição e
hÓmogeneização do passado e das culturas. Na medida em que
esse processo é tomado como um dado, e que o presente é
narrado como uma situação de perda progressiva, estruturam-se e

22 A R E T Ó R IC A D A P E R D A
legitimam-se aquelas práticas de colecionamento, restauração e
preservação de "patrimônios culturais" representativos de
categorias e grupos sociais diversos.
No entanto, este discurso, que se opõe vigorosamente
àquele processo de destruição, é o mesmo que, paradoxalmente, o
produz. Os objetos que vêm a integrar as coleções ou os
patrimônios culturais, retirados do contexto histórico, social, cul-
lural e ecológico em que existem srcinalmente, são recodificados
i om o propósito de servirem como sinais diacríticos das categorias
e grupos sociais que venham a representar. Esses discursos operam
concomitantemente em um plano de fragmentação e em outro de
integração, cada um deles alimentado pelo outro, através de um
processo similar ao que Bateson chamou de "cismogênese" (1972).
Num mesmo movimento produzem-se, transformados em coleções

e patrimônios culturais, os objetos que estão sendo destruídos e


dispersados. Esses objetos são concebidos nos termos de uma
imaginária e srcinária unidade, onde estariam presentes atributos
tais como coerência, continuidade, totalidade e autenticidade.
Unidade imaginária que estaria situada num plano necessariamente
distante no tempo ou no espaço: no passado nacional, nos
primitivos, no exótico, no popular, etc.
Nessa perspectiva, o presente, assim como tudo o que
é espacialmente próximo, aparecerá corroído por um processo de

perda opos to àqu ela sit uaçã o srcinal — distante no tem po ou no


espaço — defini da por coerência, integri dade e co ntinui dade . Os
efeitos desse esquema de pensamento em termos de práticas
envolvendo os chamados patrimônios culturais será o de
desenvolver um interminável trabalho de resgate, restauração e
preservação de fragmentos visando a restabelecer uma
continuidade com aquela situação srcinária. Embora haja um
lamento constante em relação a esse processo de fragmentação e
perda, ele, na verdade, não é apenas um fato exterior ao discurso,
mas algo que coexiste com o esforço de preservação tal como
aparece nos discursos sobre patrimônio cultural.
A noção de "apropriação" desempenha uma função
central nos discursos do patrimônio cultural. Palavras como h er i -

23 P ATR IMÔNIO CULTUR AL E NARRA TI VA S NAC IONAIS


tage (em inglês), p a t rím oi n e (em francês) ou patrimônio qualificam
essa função enquanto uma forma de propriedade herdada, em
oposição a uma propriedade adquirida. Apropriarmo-nos de alguma
coisa implica uma atitude de poder, de controle sobre aquilo que
é objeto dessa apropriação, implicando também um processo de
identificação por meio do qual um conjunto de diferenças é
transformado em identidade. No contexto dos discursos sobre o
patrimônio cultural, a apropriação é entendida como uma resposta
necessária à fragmentação e à transitoriedade dos objetos e
valores. A propr iar-se é sinô nimo d e preservação e de finiçã o de
uma identidade, o que significa dizer, no plano das narrativas
nacionais, que uma nação torna-se o que ela é na medida em que
se apropria do seu patrimônio. Em outras palavras, as práticas de
apropriação e colecionamento são entendidas como um esforço no
sentido de restabelecer ou defender a continuidade e a integridade
do que de fine a identi dad e e a me mó ria nac iona l; um es forço no
sentido de transcender a inautenticidade e garantir a
"autenticidade" ao restaurar e defender um evanescente
"se ntime nto de ser" (T rilling 1971).
Nos discursos sobre patrimônios culturais, a "perda" é
uma imagem por meio da qual as diferenças e a fragmentação são
colocadas para fora das práticas de apropriação, como algo que
lhes é totalmente externo. Operando desse modo, esses discursos
asseguram que o objeto principal dessas práticas, a cultura
nacional ou o "patrimônio cultural", permaneça ilusoriamente

como algo coerente, íntegro e idêntico a si mesmo. Desse modo,


a perda e a fragmentação são projetadas para fora do discurso,
co mo se representassem uma vi o lên cia externa. N o entant o, o
que os intelectuais nacionalistas associados aos chamados
patrimônios culturais chamam de "perda" é, na verdade, o efeito
de diferenças que, por sua vez, são pré-condições existentes no
interior mesmo das práticas de apropriação, no interior das
cdlturas nacionais enquanto culturas apropriadas. Nesse sentido,
poderiamos dizer, no jargão de Derrida, que as práticas de
apropriação estão divididas contra si mesmas. Seus objetos
simultaneamente são e não são; estão presentes e ausentes; na

2 4 A RE TÓR ICA DA PE RDA


verdade, não se opõem a uma perda ou fragmentação definidas
em termos absolutos como fatos exteriores àquelas práticas.
Numa interpretação sofisticada sobre objetos e
coleções nas modernas culturas ocidentais, Susan Stewart (1984)
afirma que é o distanciam en to dos objet os no tem po e no e s p a ç o ^
que os transforma em "objetos de desejo": objetos "autênticos",
quo merecem ser buscados e resgatados como parte representativa
de um patrimônio cultural ou de uma tradição. Ela focaliza a
noção de l o n g i n g , que traduziriamos aproximadamente como "um
permanente e insaciável desejo"(1984: IX-XI). A linguagem, para
ela, é pensada como a presença (o significante) de uma ausência
(o significado). E a relação entre significante e significado como
uma relaçã o estrutural mente mediada po r um permanent e e
insaciável desejo. Segundo Stewart, os modernos museus e as
coleções ocidentais buscam realizar a interminável e impossível
tarefa de cobrir o intervalo entre linguagem e experiência. Essa
"estrutura do desejo", para Stewart, "é paralela à formulação
lacaniana segundo a qual o símbolo manifesta-se,
fundamentalmente, através do assassinato do objeto que é
desejado e que essa morte constitui no sujeito a eternalização do
seu desejo" (1984:143). Desse modo, objetos e coleções são
pensados por Stewart como linguagem ou símbolos, como

significantes. É a distância espacial ou temporal em relação àquilo


que el es sign ifica m (que pode ser o passado, o po pular, o
primitivo, o exótico, o autêntico) que os faz desejáveis e,
consequentemente, alvo das práticas de apropriação, restauração e
preservaçã o. _Êles são considerados, ao mes mo temp o, co mo uma
presença e uma ausência. Enquanto significantes, esses objetos são
usados para significar uma realidade que jamais poderá ser trazida
por eles, uma realidade que será, como todo objeto de desejo,
para sempre ausente. As práticas de apropriação, restauração e
prese rvação desses ob jetos são e strutural mente articuladas po r um
"desejo permanente e insaciável" pela autenticidade, uma
autenticidade que é o efeito de sua própria perda.
O mod elo de S tewart, baseado na teo ria lacan iana do
símbolo, ou do significante como a ausência de um objeto de

P ATR IMÔ NIO CULTURAL E NA RRATI VA S N AC ION AIS


desejo (o significado), exige um contraponto na proposição de
J acques D errida, se gundo a qua l s ignific ante e significado são
intercambiáveis e não exteriores um ao outro; e que a divisão
entre o primeiro e o segundo existe no interior de cada um deles,
sendo cada um o desvio diferencial do outro. Assim, para Derrida,
essa divisão entre significante e significado não é precisamente

uma ausência, uma perda, mas a pré-condição, a estrutura


diferencial básica para o processo de significação. Desse ponto de
vista, Stewart se deixa seduzir pela mesma espécie de nostalgia
articulada por Lacan e criticada por Derrida como a busca de um
"significante transcendental" (Derrida 1976: 18-26; 1987: 413-496;
ver também o prefácio de Spivak à tradução inglesa de De Ia
grammatologie , pp. 1XIV-1XV). Pois, para Stewart, as coleções são
pensadas como uma ausência, ou uma ausência presente, no
mesmo sentido em que o símbolo, para Lacan, é definido como
uma ausência. O que é um modo de obje tificar, ou es se nciali za r,

as coleções como uma interminável tentativa de trazer para o seu


interior uma ausência exterior, o significado ou a realidade por
elas significada. Assim como as narrativas nacionais sobre os
patrimônios culturais, a interpretação de Stewart é articulada por
essa oposição. Só que, neste último caso, é o significante que é o
polo privilegiado, enquanto que, no primeiro, enfatiza-se o polo
do significado, pois o que buscam as narrativas nacionais é,
precisamente, um significado transcendental.
Do ponto de vista de nossa análise, o que nos importa
é que a "estrutura do desejo" descrita por Stewart está presente
nas narrativas nacionais sobre patrimônios culturais. É por
intermédio dessa estrutura que a nação é retirada da história e da
contingência e transformada num distante objeto de desejo, numa
entidade estável e permanente, dotada de coerência e
continuidade.

/
■ Redenção: o patrimônio como alegoria

O s entido da palavra alego ria está ass ociado a uma


forma de representação onde recursos dramáticos, literários ou

26 A RE TÓR ICA DA PERDA


pictóricos são usados para ilustrar concretamente uma idéia ou
princípios morais e religiosos. Além disso, a alegoria, como sugere
a próp ria etimo log ia, repr esent a uma co isa co m o propó sito de
significar uma outra. De acordo com os especialistas em teoria
literária, a alegoria é um gênero literário que pode ser entendido
como uma estória narrada sobre uma situação histórica presente,
na qual existe um forte sentimento de perda, transitoriedade, ao
mesmo tempo em que existe um desejo permanente e insaciável
pelo resgate de um passado histórico ou mítico, além de uma
permanente esperança de um futuro redimido (Benjamin 1977; De
M an 1979; 1981; G reeenblatt 1981; J ameson 1981; 1986; Lavie
1989). S egundo G reen blatt, " ...a alegoria emerge em períodos de
perda, períodos nos quais uma autoridade familiar, política ou
teológica, uma vez poderosa, é ameaçada de desaparecimento. A
alegoria emerge, assim, a partir da ausência dolorosa daquilo que
ela espera recu pe rar... " (1981: V III). M ais que isto, as alegori as
não apenas ilustram ou expressam uma tal situação de perda, mas
atualizam, em sua própria estrutura, essa combinação de um
sentido de transitoriedade e um desejo de redenção. Desse modo,
elas não somente expressam um desejo por um passado glorioso e
autêntico; elas, simultaneamente, expõem o seu desaparecimento.

I struturalmente, trata-se de uma forma de representação que está


baseada na própria desconstrução do seu referente.
De certo modo, podemos pensar qualquer texto
literário, pintura ou performance dramática como alegoria, ou
explorarmos a sua dimensão alegórica, já que esta jamais existe
Isoladamente como uma qualidade intrínseca a determinada obra,
mas sempre de modo complementar a outras dimensões de
representação (por exemplo, a representação realista). Assim é que
autores co m o J ames C lifford e out ros sugerem qu e pensemos a
elnografia como alegoria, ou melhor, que exploremos as suas
dimensões alegóricas, uma vez que estas jamais esgotam as
funções de qua lquer texto e tnog ráfico (C lifford and M arcus 1986:
'♦M 121). A s narrativas s obre p atrimô nio s cu ltura is e stão baseadas
gm narrativas históricas ou antropológicas sobre a memória e a
identidade nacionais. Num nível mais explícito, tratam-se de

2 7 P ATR IMÔ NIO CULTURAL E N ARRAT IVAS NAC IONAIS


narrativas realistas cujos referentes são os eventos e personagens
históricos que formaram a nação, ou as idéias e valores que
formam a identidade nacional. Num nível menos explícito, no
entanto, essas narrativas apresentam uma dimensão alegórica, uma
vez que ilustram concretamente, por meio de objetos, princípios
abstratos. Desse modo, pode ser analiticamente produtivo pensar
os patrimônios culturais como alegorias por meio das quais idéias
e valores classificados como "nacionais" vêm a ser visualmente
ilustrados na forma de objetos, coleções, monumentos, cidades
históricas e estruturas similares.
Naquele mesmo texto, onde explora a dimensão
alegó rica da et nografi a, C lifford apoia-se em W alter B enjamin,
para quem a "moderna alegoria" está baseada em um sentido do
mundo como transitório e fragmentário, sendo a história concebida
não como um processo criativo, mas como "inevitável declínio"

(1986:119). Desse modo, o material análogo à alegoria é a "ruína"


("As alegorias são, no reino do pensamento, o que as ruínas são
no reino das coisas" (Benjamin 1984:200), uma estrutura em
processo de desaparecimento e que convida a um permanente e
obsessivo processo de reconstrução no plano imaginário.
As narrativas nacionais sobre patrimônio cultural estão
estrutural mente articulada s po r essa opo siçã o entre trans itorieda de
e permanência, sendo que as práticas de resgate, restauração e
preservação incidem sobre objetos que podem ser pensados como
análogos a ruínas, quando não se constituem literalmente em
ruínas. C omo tai s, esse s objetos estão sempre em processo de
desaparecimento, ao mesmo tempo em que provocando uma
permanente reconstrução. Esse interminável jogo entre
desaparecimento e reconstrução é que move as narrativas
nacionais sobre patrimônio cultural em sua busca por
autenticidade e redenção.
^ A lguns autores têm cha mad o a atençã o para a funçã o
desempenhada por essas narrativas na autenticação do real (Bann
1984; Lass 1988). Roland Barthes chamou a esse processo "efeito
de real" ( 1' eff et d e r é
el ), o qual é produzido através do uso de
detalhes aparentemente insignificantes em narrativas realistas

2 8 A RE TÓR ICA DA PERDA


(Barthes 1988: 159-165). Ele se pergunta pela função de detalhes
aparentemente tão insignificantes quanto a frase "um velho piano
suportava, sob um barômetro, um monte piramidal de caixas e
cartões" em um texto de Flaubert onde ele descreve uma sala de
visitas em Un coeur simple; ou, "ao cabo de hora e meia batem
suavemente à pequena porta que estava atrás dela", uma frase de
M ich e let co ntan do a mor te de C harlot te C orday em Histoire de Ia
Irance. Segundo ele, "semioticamente, o 'detalhe concreto' é
constituído pela colisão direta de um referente e de um
significante: o significado fica expulso do signo e, com ele,
evidentemente, a possibilidade de desenvolver-se uma forma de
significado, isto é, na realidade, a própria estrutura narrativa (...)"
t: a isso que se poderia chamar "ilusão referencial" (1988 : 164).
Segundo Barthes "...o barômetro de Flaubert, a pequena porta de
M ich e let afinal não dize m mai s do que o seguint e: nós som os o
real; é a categoria do 'real' (e não os seus conteúdos contingentes)
que é então sign ificada ; noutras palav ras, a próp ria carên cia do
significado em proveito só do referente torna-se o significante
mesmo do realismo: produz um efeito d e real, fundamento desse
veross ímil inconfess o que forma a es tética de toda s as obras
correntes da modernidade" (1988: 164). Ele associa esse processo
ao realismo literário e à narrativa histórica assim como a outras
instituiçõe s, cu ltura is baseadas numa incessante neces sidade de

autenticar
históricos eo exóticos,
real: fotografias,
turismo, reportagens,
especialmenteexibições de objetos
aquele voltado para
lugares e monumentos históricos, instituições que atualizam o
princípio do "ter-estado-presente" ou "estive-lá", por meio do qual o
'real' é pensado e experimentado como auto-suficiente (1988: 163).
E vident emen te esse é um outro mo do p elo qual é possível
descrever e interpretar o chamado processo de "objetificação": o
que Barthes vai chamar de "ilusão referencial" ou "efeito de real".
O que é imp ortante para os pr opó sitos de nossa análise é o fato
de que o "detalhe concreto" na narrativa realista, assim como nas
narrativas nacionais sobre patrimônios culturais, desempenha
es trutural ment e a funçã o de rea liza r uma m ediaç ão s imbó lica
entre linguagem e experiência, entre o passado ou a identidade

29 PAT R IMÔ NIO CULTURAL E NARRAT IVAS NA CION AIS


nacional e os indivíduos que compõem a nação. E o fazem
enquanto se configuram como a própria categoria do real. No
entanto, para que cada um desses pormenores desempenhe essa
função mediadora eles devem estar, de certo modo, marcados pela
ambiguidade: estão, ao mesmo tempo, na narrativa e fora dela;
representam a realidade e, ao mesmo tempo, são a realidade; são

parte das narrativas e, ao mesmo tempo, são supérfluos, uma vez


que elas poderíam continuar sem eles; tornam a narrativa possível,
ao mesmo t em po em que negam a sua po ss ibilidade ; eles são e,
simultaneamente, não são, estando divididos contra si mesmos.
Enquanto entidades ambígüas, eles desafiam, ao mesmo tempo em
que intermediam as oposições polares entre passado e presente,
representação e realidade, linguagem e experiência. São, de certo
modo, equivalent es ao que J acques D errida chamou de
"indecidíveis": unidades textuais ou "unidades de simulacro" que
são, ao mesmo tempo, falsas e verdadeiras, ou nem falsas nem

verdadeiras, e que, habitando as oposições filosóficas, metafísicas,


resistem a elas e as desorganizam "... sem jamais constituírem um
terceiro termo" (1981a: 43)4.
A imagem das "ruínas" nos textos de Benjamin sobre a
alegoria pode ser interpretada de modo similar, na medida em que
são, ao mesmo tempo, desaparecimento e reconstrução
imaginativa; ou, nem uma coisa e nem outra. Nesse sentido,
desaparecimento e reconstrução não são os dois polos de uma
oposição binária, mas o produto de suas relações diferenciais. Em
outras palavras, o desaparecimento é a diferença ou o desvio
diferencial da reconstrução imaginativa. Uma vez que estou
assumindo que os objetos classificados como "patrimônio cultural"
são análogos às ruínas, é possível dizer que podem ser
cons iderados por esse dup lo aspec to: des apa recimento e
reconstrução imaginativa, perda e apropriação, dispersão e
co leção, des truição e preservação, con tingên cia e redenção.
Marcadas pela busca por autenticidade e redenção, as

4 Exemplosdo que Derrida chama de "indecidíveis" sãoo "suplemento", em Rousseau


(1976:141 -157); e o "f
armakon" de Platão (1981 b: 61 -156).

3 o A RE TÓR I CA DA PERDA
narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural desencadeiam
práticas que são, simultaneamente, redentoras e contingentes,
nutenticadoras e não-autenticadoras. Isso quer dizer que a
autenticidade e a redenção buscadas não são qualidades que são
resgatadas ao final do empreendimento de resgate e preservação
rio patrimônio; na verdade, elas são o efeito da diferença entre a
busca do passado autêntico ou da cultura popular autêntica, ou
ainda da identidade nacional autêntica e essas entidades
objetificadas. Essas narrativas implicam, assim, não apenas o
passado ou a identidade nacional como entidades objetificadas em
él mesmas, mas a idéia mesma de uma busca dessas entidades.
I slas são pensadas como pré-existentes, ainda que em processo de
desaparecimento e como entidades cuja existência redimida deverá
M>r atua liza da pe lo res ultado da busca da a uten ticida de . A inda que
essa busca e o seu objetivo final possam ser ideologicamente
pensados como dois momentos externamente separados, eles
podem ser melhor entendidos como o efeito de seu desvio
diferencial.

■ As narrativas sobre patr imônio cultural como alego rias da formação


nacional

As estórias narradas por intelectuais nacionalistas sobre o


patrimônio cultural brasileiro são, basicamente, estórias de
apropriação, narradas para responder a uma situação de perda e
* oin o prop ós ito de co ns truir a naç ão 5. O pa trimô nio é narr ado

“ I )©sde a quarta década deste século, o gênero cultural"preservaçãohistórica", no


Hrasll, é mais conhecido pela expressão "patrimônio histórico e artístico", "patrimônio
B tijtliral" ou simplesmente"patrimônio". Mais recentemente,desdeos anos setenta, a
I «lavra"memória", ou "memória cultural" étambém usada. Emcontraste com a
f i iltura anglo-americana, a expressão"preservação histórica", emboraconhecida, não
ê multo utiliz ada. No entanto, o verbo "preservar"frequentement
é e usado,
f vitlei ítemente,a escolha eusodessas palavras é menos umaquestão de significado s
i»ilthtstx:os do que de contexto. Em minha análise faço uso das palavras "p
atrimônio"
»ni "| Mtrimônio cultural" paradesignar o objeto do que, no mundo anglo-americano, se
' hlimaria de "políticas oficiais de pr
eservação histórica".

3 1 P ATR IMÔ NIO CULTURAL E NARRAT IVAS NAC IONAIS


como num processo de desaparecimento ou destruição, sob a
ameaça de uma perda definitiva. Essa narrativa pressupõe uma
situação primordial feita de pureza, integridade e continuidade,
situação esta seguida historicamente por impureza, desintegração e
descontinuidade. A história, de certo modo, é vista como um
processo destrutivo. A fim de que seja possível fazer frente a esse

processo estabelecem-se estratégias de apropriação e preservação


do patrimônio. Nesse sentido, a nação, ou seu patrimônio cultural,
é construída por oposição a seu próprio processo de destruição.
De modo similar ao que faziam determinados tipos de
antropólogos engajados no resgate de culturas primitivas em vias
de desaparecimento, intelectuais nacionalistas têm como propósito
fundamental a apropriação, preservação e exibição do que eles
consideram como o que pode ser salvo do processo de destruição
e perda do patrimônio cultural da nação. É possível dizer, de
certo modo, que aquilo que antropólogos e historiadores fazem, ao
escrever livros sobre culturas distantes no espaço e no tempo,
intelectuais nacionalistas associados às políticas de patrimônio
cultural fazem enquanto colecionam, restauram, preservam e
exibem objetos e atividades culturais objetificadas, associadas a
uma suposta existência srcinal ou primordial da nação.
Enquanto alegorias, as narrativas nacionais sobre o
patrimônio cultural expressam uma mensagem moral e política: se
a nação é apresentada no processo de perda de seu patrimônio
cultural, consequentemente sua própria existência está ameaçada.
Este patrimônio tem que ser imediatamente defendido, protegido,
preservado, restaurado e apropriado pela própria nação ou por
seus representantes, de modo a evitar a sua decadência e
destruição. De acordo com essas narrativas, a nação será redimida
na medida em que seu patrimônio cultural venha a ser apropriado
e protegido contra um processo histórico de destruição. Para que
a nação possa existir, enquanto uma entidade individualizada e
independente, ela tem que identificar e apropriar-se do que já é
sua propriedade: seu patrimônio cultural.

Essa propriedade 'representa', ao mesmo tempo em


que 'é', a nação em sua forma srcinal ou primordial. Nesse

3 2 A RETÓR ICA DA PERDA


sentido, as narrativas nacionais sobre o patrimônio não apenas
ilustram a existência da nação enquanto uma busca por uma
identidade cultural srcinal e contínua apesar de ameaçada, mas
s.lo' essa busca. O pa trimô nio é co nce bido co mo uma 'expressão'
da identidade nacional em sua integridade e continuidade. Ao

tnesmo tempo, o patrimônio é concebido, numa relação


tuelonímica, como sendo a própria realidade que ele expressa.
|les se mo do, prese rvar o patrimôn io é preservar a nação.
Ameaças ao patrimônio são ameaças à própria existência da nação
t om o uma e ntidad e presente, au to- idên tica, dotada de front eiras
bem delimitadas no tempo e no espaço.
As estórias sobre o patrimônio cultural são narradas a
partir da autoridade da 'nação'. É possível dizer que aqueles que
narram essas estórias 'representam' a nação, no duplo sentido em
que falam e agem em seu nome, ao mesmo tempo em que a
expressam através do patrimônio que preservam. A nação
brasileira, concebida como uma entidade individualizada, integrada
e dcsdobrando-se num continuum temporal, é o princípio
metafísico que dá coerência a essas estórias de perda, apropriação
m redenção. No entanto, a autoridade para falar em seu nome, ou

para preservar o seu patrimônio, não é obviamente um dado.


t ;uem tem a utoridad e para diz er o que é e o que não é o
pa trimô nio cu ltural brasil eiro? Q uem tem autoridade par a
preservá-l o? C omo essa autoridade é cu ltura lme nte construída?
No capítulo dois discuto como alguns intelectuais
nacionalistas associados às políticas de patrimônio cultural no
Brasil desempenharam a tarefa de identificar e autenticar a nação
brasileira. F oc alizo as estratégias na rrativas as sociadas aos nom es
de dois intelectuais bastante conhecidos pelo seu engajamento na
formulação e implementação das políticas de patrimônio cultural
no B rasil: R odrigo M elo F ranco de A ndrade e A loísio M agal hães.
No discurso de cada um deles o Brasil é objetificado de certo
modo e segundo determinados propósitos. Exploro contrastivamente
as estratégias através das quais esses intelectuais, por meio de
narrativas diversas, inventam o patrimônio cultural, a nação
htnsileira e a eles próprios, enquanto guardiães desse patrimônio.

3 3 PAT RIMÔ NIO CULTURAL E NA RRAT IV AS NA CIO NAIS


O va lor d este ú ltimo é medido em t ermos de su a "au ten ticida de ",
ou em termos de seu poder de "expressar" o que seja a nação
brasileira. Desse modo, o patrimônio é usado para autenticar tanto
a existência do Brasil enquanto nação quanto a autoridade dos
intelectuais nacionalistas para falar em nome do patrimônio, para
identificar, proteger e preservar a identidade nacional. Sugiro,

nesse capítulo, uma interpretação de como o valor "autenticidade"


é produzido pelo discurso desses intelectuais engajados em
políticas de patrimônio cultural, nas últimas cinco ou seis
décadas, no Brasil.
A visão da cultura nacional brasileira enquanto
"apropriação" de um determinado "patrimônio" é discutida no
capítulo três. As políticas de patrimônio cultural no Brasil são
descritas como ações visando à apropriação de uma cultura
nacional. A nação brasileira é, assim, produzida de diferentes

modos, por meio dessas ações de apropriação. Ao explorar o


modo como as narrativas de Rodrigo e Aloísio descrevem as
políticas oficiais de preservação, focalizo o papel da apropriação
enquanto estratégia concebida para se contrapor ao que, nesse
co ntexto na rrativo, repr esenta dispersão e des truição d a cultura
nacional.
No capítulo seguinte, analiso como o discurso desses
intelectuais descreve o presente histórico enquanto uma situação
caracterizada pela "perda" daquilo que eles concebem como o
"patrimônio histórico e artístico nacional" (Rodrigo), ou os
"componentes culturais básicos" (Aloísio) da nação brasileira. De
certo modo, as políticas por eles formuladas e implementadas são
movidas por esse sentido de perda.
Em seguida, analiso as narrativas que informam os
discursos de cada um desses intelectuais enquanto uma "busca" da
identidade c ultural. M eu argume nto é o de que, para esses
intelectuais engajados nas políticas de patrimônio cultural, o sentido
da "perda" não é mais importante do que o sentido de "esperança"
e de possibilidades abertas ao futuro. Assim, as políticas de
patrimônio cultural são interpretadas como perf orm ance s alegóricas
dramatizando a busca de uma identidade em perigo.

3 4 A RE TÓRICA DA PER DA
Finalmente, no capítulo seis, discuto os usos da noção
i Im "objetificação cultural" e as possibilidades que oferece para

pousarmos, de um modo diverso das ideologias culturais correntes,


A relação entre nação e cultura no Brasil.

3 5 PA TR IMÔNIO CULTURAL E NA RRATI VA S N AC IONAIS


Capítulo Dois

■ A IDEN TIFI CA ÇÃ O D O BRASI L

"O acervo dessas produções da sucessão


já longa
de nossos p
redecessores é que,ligando os brasileiros

de hoje às populaçõesque os antecederam, srcinários

da própria et rra ou provindas de outros continentes, em

verdade autent
ica e afirma a existência doBrasil."
Rodrigo Melo Franco de Andrade

"...existe vastagama debens — procedent


es sobretudo do
fazer popular— que, porestarem inseridos nadinâmica

viva do cotidiano, não sãoconsiderados como bens culturais

nem uti lizados na formulação depolíticas econômica e

tecnológica. No entanto, é a partir deles que seafere o

potencial, sereconhece a vocação e sedescobrem os


valores maisautênticos de uma nacio
nal idade".

AloísioMagalhães

■ A busca da "identidade nacional"

A "identidade nacional" brasileira tem sido, por longo


tempo , um foco de deb ates em di versas disc iplina s a cadê micas —
antr opo logia, so ciologia, crí tica literária — assi m co mo em
diferent es setores das políti ca s oficiais de cult ura — folclore , artes
plásticas, música, patrimônio cultural, etc. Ao longo dos anos

3 6 A RETÓRICA DA PERDA
isleniffl e oitenta, os debates sobre o "patrimônio cultural
hfiB ll©lro" as sumiram algum relevo e o tem a tornou- se cons tante
lios mtios de comunicação. Esses debates podem ser interpretados
t ume* dimensões de uma luta política pela autoridade cultural para
definir ostensivamente o que seja o patrimônio cultural brasileiro e

=<?m© deva ser pro tegido e pres ervado co ntra o des gaste, a
destruição e outras formas de ameaça. Em outras palavras, esses
debates constituem uma luta pela autoridade cultural e política
paro "identificar" e "representar" a cultura nacional, constituindo-
ie em parte de uma busca mais ampla pela identidade nacional
brasileira.
Ao longo dos últimos cinqüenta anos, é possível
Identificar duas importantes narrativas por meio das quais as
políticas oficiais de patrimônio cultural do Estado brasileiro são
*ulluralmente inventadas. A primeira, associada ao nome de
R odrigo M elo F ranco de Andr ade e ao antigo S P HA N (Secret aria
do P atrimôn io H is tórico e A rtís tico N aciona l), foi he gemônica
desde 1937, ano da criação do SPHAN, até, aproximadamente, a
segunda metade da década de setenta. A segunda está associada
ao nome Aloísio Magalhães e ao processo de renovação ideológica
e Institucional da política oficial de patrimônio cultural que, sob
iua liderança, se desenvolveu desde os anos setenta. Esse processo
desencadeou um debate, de certo modo ainda atual, entre
defensores de diferentes e opostas narrativas sobre o patrimônio
t ullura l bra s ileiro . A pa rtir da segunda me tade dos anos set enta, a
(curativa assumida por Rodrigo e pelo antigo SPHAN veio a ser
desafiada por Aloísio e seus seguidores, que faziam uso de uma
nova estratégia de narração da identidade nacional brasileira e,
consequentemente, assumiam uma concepção diversa do
patrimônio cultural. As posições assumidas nesse debate podem ser
interpretadas como efeitos de diferentes estratégias de autenticação
da identidade nacional. A autoridade cultural desses intelectuais é
adquirida na medida em que persuadem sua audiência, seu público,
d# que eles são capazes de "representar", através do seu discurso e
da sua prática à frente da po lítica o ficia l de patr imôn io, da
maneira mais "au têntica ", a identidade cult ural da nação.

.1 7 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
O ato mesmo de formu lar questões sobre a i den tidade
nacional é já um modo de assumir como auto-evidente e auto-
jus tificáve l a exis tência da naçã o, tomand o-a como uma entidade
preexistente que, supostamente, solicita ser pesquisada,
identificada, defendida e afirmada. No entanto, a identidade
nacional não é um produto final dos debates sobre o tema, algo
como um acordo fundado numa descoberta do que realmente seja
a nação, mas, antes, algo que "acontece", de modo controverso,
provisório, a proximado e i nc om pleto ao longo desses debates. Se
estes são meios para a consecução de um determinado fim, qual
seja, a construção da identidade nacional, poderiamos dizer que
ela já existe naqueles, de modo antecipado. Neste estudo, essa
identidade é concebida não como uma entidade unitária e
permanente a ser descoberta, descrita, explicada e preservada, mas
como os efeitos contingentes e provisórios de uma busca pela
identidade assumida como tal por indivíduos, grupos e categorias
sociais em contextos históricos e políticos específicos. Em outras
palavras, o que é usualmente classificado como identidade
brasileira é considerado neste estudo como o efeito, ao mesmo
tempo que sua pré-condição, das narrativas por meio das quais
intelectuais nacionalistas e outras categorias sociais concebem a
cultura brasileira enquanto um objeto permanente de desejo e de
busca.

■ Narrando a cultura brasileira

Esses intelectuais autenticam suas afirmações, propósitos e


atividades referentes à identificação e preservação do patrimônio
cultural por meio de narrativas históricas e antropológicas sobre o
Brasil . De aco rdo com as narrat ivas de que f az em uso, o obje to de
suas preocupações e atividades, o patrimônio, assim como o papel
das instituições a ele associadas são diferentemente concebidos.
Mais que isso, varia o modo mesmo como esses intelectuais formam
e apresentam suas identidades públicas. Assim como o patrimônio
cu ltura l, essas identid ades s ão parte de suas narrativas.

3 8 A RETÓRICA DA P ERDA
Nos próximos parágrafos, faço um contraste entre duas
principais narrativas sobre o patrimônio cultural brasileiro e os
contextos histórico-políticos em que foram geradas. Ao fazê-lo,
não estou tomando o contexto como um conjunto de fatos
históricos existindo por si mesmos, mas como parte dessas
narrativas. Desse modo, não estarei preocupado em estabelecer
uma corresp ondê ncia ent re elas e o que "realme nte ac ontece u". O
que parece mais relevante para este estudo é o fato de que os
Intelectuais associados ao patrimônio, sejam eles arquitetos,
historiadores, escritores ou cientistas sociais, sempre pensam esse
lema nos termos de uma narrativa histórica, onde uma série de
©ventos e personagens são apresentados dentro de um enredo
estruturado numa ordem cronológica.

■ Rodri go , os anos tri nta e o SP H AN :


o Brasil como civilização e tradição

Em sua maioria, esses intelectuais são unânimes em situar


D início das políticas oficiais de patrimônio cultural no Brasil em
1936, quando a criação de uma agência federal de proteção ao
patrimônio foi oficialmente proposta. Segundo eles, é a partir dos
anos trinta que uma política cultural e educacional veio a ser
assumida como uma tarefa do governo federal. Essa política é
descrita com parte de um projeto oficial mais amplo de
modernização política, econômica e cultural do país. Esse projeto
©ra imple me ntad o por uma nova e lite de bases ur banas — em
opo siçã o às velhas eli tes agrárias — que veio a dirigir o país so b
orientação de uma ideologia nacionalista, autoritária e
modernizadora, após a revolução de trinta. Nessa ideologia, as
sume o primeiro plano o projeto de construção de uma nova
nação, através da modernização das estruturas econômicas,
político-administrativas e culturais. Esse projeto veio a ser
Implantado por meio de uma burocracia estatal centralizada e
autoritária, controlada a partir de um pacto entre segmentos das
Velhas e novas elites.

3 9 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
Ainda segundo essa narrativa histórica, o ano de 1937
foi marcado por um golpe de Estado e pela radicalização daquele
projeto modernizador com o estabelecimento do Estado Novo, um
regime político autoritário em que as liberdades democráticas
element ares f oram aboli das. O C ongresso N aciona l assim co mo os

partidos políticos foram fechados. As eleições foram suprimidas, a


imprensa submetida a censura, líderes, partidos e organizações
políticas perseguidos pela polícia. É nesse contexto político
autoritário que veio a ser implementado o projeto de
modernização do país. Na esfera cultural e educacional, grande
núme ro de intelectuais — muitos deles, de di ferent es modos,
identificados com o "movimento modernista"1em arte e literatura
— desempenha ram um i mport ante papel. Seu o bje tivo princ ipa l
era criar um novo Brasil, um novo homem brasileiro, concebido
em termos de uma ideologi a nac ionali sta. O então M inistério da
Educação e Saúde era um dos principais instrumentos políticos e
burocráticos usados para realizar as mudanças propostas nas áreas
de cultura e educação. Esse ministério veio a ser dirigido por
Gustavo Capanema, um intelectual e político associado à elite
intelectual mineira, o qual desempenhou um papel crucial na
criação de instituições culturais e educacionais até o fim do
E stado N ovo , em 1945 (S chwa rtzm an; Bome ny; and C osta 1984;
Bomeny 1992).
Essa questão da identidade nacional brasileira 1

1A despeito das diferençasentre os seus diversosrepresentantes, o modernismo


brasileiro, em contraste com os modemi smos europeus,evet uma inspiração
fortemente nacionalista: um dos seus objetivosprimordiaisera a afirmaçãode uma
autônoma e autêntica cultura brasileira. Além disso, o"modernismo" é co m frequência
pensadocomo uma espécie decomeço" " do Brasil moderno. Nesse senti
do ele é parte
das narrativas onde oBrasil é rep resentado comouma nação mode rna ou em processo
de modernização . No jargão antropológico, ele seriama
u espécie de "mito de srcem "
do Brasil moderno. Aliteratura sobre o modernismo brasileiro é bast ante extensa e não
é por cefto minha intenção resenhá-la aqui. Para uma visão geral, ver Cândido (1971 ;
1976:109-130); sobre a inserção política dos intelectuais modernistas brasileiros, ver
M iceli (1969); e, para uma brilhante análise sobr
e a ideia de modernidade no discurso
modernist a brasileiro, ver Moraes (1983).

4 o A RETÓRICA DA PERDA
Impunha-se aos intelectuais brasileiros desde a independência
po lítica do país em relaçã o a P ortugal, na prime ira met ade do
século XIX. Desde os últimos anos do império e desde a
Instauração do regime republicano, em 1889, as discussões sobre
esse tema cen traram-se na idéia de "raç a " (S kidmor e 1974;
Schwartz 1993). Ao longo da segunda e terceira década do século
XX, o problema veio a ser discutido, não mais em termos raciais,
mas culturais, como uma busca da "brasilidade", de uma
"essência", "alma" ou simplesmente "identidade" da nação
brasileira. Nos anos vinte e trinta, diferentes respostas foram
apresentadas. Aqueles intelectuais identificados com o modernismo
e associados ao regime político do Estado Novo concebiam a si
mesmos como uma elite cultural e política cuja missão era
"modernizar" ou "civilizar" o Brasil, elevando o país ao plano das
nações européias mais avançadas. No entanto, é importante frisar
que tal projeto estava associado ao reconhecimento da
necessidade de produzir uma imagem singularizada do Brasil
enquanto cultura e como parte da moderna civilização ocidental.
0 problema princ ipal era, assi m, não si mplesment e imitar a
Europa, mas identificar e afirmar uma cultura brasileira autêntica,
ainda que isto fosse feito através do vocabulário das vanguardas
modernistas européias2. Muitos propunham a valorização do
"tradicional" e do "regional" na construção de uma imagem

nacionalista singular do Brasil. Acreditavam que, para identificar


ou "red e s c o brir"3 o Brasi l, o país teria de ret ornar ao s seus mais
"autênticos" valores nacionais, os quais estavam supostamente

' No próximo capítulo, focalizo o papel dos arquitetos modernistas brasileir


os na
|K>lítica de patrimônio cultural e na invenção de um patri
mônio arquitetônico
brasileiro.
1A expressão "redescoberta do Brasil" foi cunhada por intelectuais modernistas nos
anos vinte. Ela implicava uma atitude de curiosidade, interessee intensa valoriza
ção

em relação à cultura brasileira, atéentão desconsiderada, em contr aste com a cultura


europeia. Nesse sentido, era uma espécie de cultural nacionalista para a
slogan
valorização de uma genuína ult c ura brasileira. A expressãotem também uma al usão
irônica à "descoberta do Brasil", tal como aparece na s narrativas históricas oficiais,
1 >ara se referirao evento histórico dachegada dosportugueses aoBrasil, em 1500.

4 1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
fundados no passado, assim com o em valores regionais. A arte e a
literatura eram instrumentos privilegiados para a definição de
brasilidade (O live ira 1987: 58-65).
Em textos produzidos por intelectuais associados ao
patrimônio lemos que o reconhecimento da necessidade de
proteger o "patrimônio histórico e artístico nacional" havia sido
apontado por intelectuais e políticos, ainda nos anos vinte
(Andr ade 1 952 ; M E C -S P H A N -P ró-Memória 1982). O bviamente, i sto
era parte de uma luta para definir e afirmar uma identidade
nacional brasileira. No entanto, não foi senão em 1937 que o
Estado brasileiro veio a criar uma instituição de alcance nacional
para a preserv ação daque le "patri mô nio ". E m 1936, M ário de
Andrade foi solicitado a preparar um projeto para a criação de
uma instituição nacional de proteção ao patrimônio cultural
brasil eiro (Andr ade 1981 ; M E C -S P H A N /P ró-Me mória 1985). Es se

documento foi usado em discussões preliminares sobre a estrutura


e objetivos dessa instituição (Andrade 1981). Em 1937, logo após
o golpe de Estado que veio a instaurar o regime político do
Estado Novo, o S P HA N — S erviço do P atrimônio H istórico e
A rtís tico N acional — foi cri ado por u m decr eto presidencial. A
insti tuiçã o es tava subo rdinada ao então M inistério da E ducação e
Saúde, tendo à frente Gustavo Capanema, que aí permaneceu até
1945, quando do fim daquele regime político. Em 1937,
C apane ma convidou R odrigo M elo F ranco de Andr ade, um
intelectual mineiro associado aos modernistas, para dirigir o
S P HA N. E ntre as princ ipais funções d este serviço estav a a de
"proteger" o "patrimônio histórico e artístico nacional brasileiro"
(Andr ade 1 952; 1987; M E C -S P H A N -P ró-Memória 1982; C apane ma
1969:41-44). De 1937 até o fim dos anos sessenta, quando
morreu, Rodrigo manteve seu cargo de diretor do SPHAN. Seu
nome está metonimicamente associado ao processo de formulação
e implementação de uma concepção de "patrimônio histórico e
artístico" por meio da qual a moderna identidade nacional
brasileira veio a ser visualmente representada ao longo das cinco

últimas décadas.
O disc urso e a po lítica de R odrigo par a o "patri m ôn io

4 2 A RE TÓRICA DA PER DA
histórico e artístico" brasileiro estão fundados num determinado
paradigma de história enquanto uma disciplina acadêmica. Ainda
que não fosse um historiador profissional, ele faz uso de um
discurso histórico para justificar suas teses e propostas em relação
ã cu ltura bras ileira. C omo muit os intelec tua is, nessa época , no

B rasil , R odrigo tem formação em D ireito. S eu nom e, no ent anto,


estava associado a atividades literárias e aos círculos artísticos e
literários modernistas dos anos vinte e trinta. Enquanto um
escritor, suas atividades incluíam crítica literária, crítica de arte e
pesquisas históricas sobre a arte e a arquitetura colonial brasileira.
Além disso, publicou um livro de contos, Velórios, que, embora
considerado um trabalho de excelente qualidade pelos críticos, foi
o único em sua carreira. A partir dos anos trinta, ele dedicou seus
esforços inteiramente à tarefa de organizar e dirigir o SPHAN.
Durante esse período, publicou muitos artigos sobre a história da
A lte e da arquit etura co lon ial bras ileira (R odrigo 1986 ).
A estratégia ass umida po r R odrigo ao narrar o que ele
clmma "uma obra de civilização" é, por um lado, a de um
observador objetivo e racional, cujo propósito é registrar, do modo
mais rigoroso, os acontecimentos, personagens e objetos associados
a«i "patrimônio histórico e artístico". Nesse contexto, o SPHAN é
concebido como uma instituição dedicada à pesquisa científica
Igbre "os valores de arte e de história de nosso país" ([1937]
1987:92). No primeiro número da Revis ta do Patrim ônio H istórico e
\ Hts lic o N acional , publicada pelo SPHAN, ele afirma que é
necessário desenvolver o estudo sistemático da arte brasileira e
acrescenta que, até então, esse tipo de estudo, no Brasil, não
irtllsfaz os requisitos de um estudo objetivo ([1937] 1987:92). Por
ciUlro lado , R odrigo conc ebe -s e a si mes mo, as sim co mo à elite
intelectual de que faz parte, como o responsável pela missão de
t!,ir continuidade à "obra de civilização" que vem sendo
desenvolvida no Brasil desde os tempos coloniais. Essa obra é
pensada como uma "tradição" que assegura a continuidade da
nação brasileira. Ele é um personagem da história que é narrada,
'Inscrevendo seu papel como o de um herdeiro de uma "tradição"
que deve ser resgatada, defendida e preservada contra os riscos de

43 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
esquecimento e perda definitiva. Essa "tradição" é vista como um
objeto de conhecimento científico, histórico; e, ao mesmo tempo,
como uma fonte de autenticidade pessoal e coletiva. Ela tem de
ser descrita e explicada em termos científicos, racionais, ao
mesmo tempo em que deve ser resgatada e defendida como a
fonte da identidade cultural brasileira. Em outras palavras, o
"patrimônio histórico e artístico" é visto como um objeto de
conhecimento profissional (como mostrarei nos próximos capítulos,
ele será, especialmente, o objeto de conhecimento profissional
enquanto parte integrante da história da arte e da arquitetura
brasil eira), mas, simul tane amen te, co mo o objeto d e uma " cau sa "
nacionalista que, como tal, transcende as fronteiras profissionais.
Essa "causa" é concebida com base em um conhecimento
racional, objetivo da história, excluindo toda atitude "romântica",
"simplista" e "sentimental" em relação ao passado.
Nos termos de um paradigma histórico, Rodrigo narra
o "patrimônio histórico e artístico" a partir de suas srcens. De
um modo universalista, ele situa essas srcens em um passado
distante e que ultrapassa o evento histórico da "descoberta" do
Brasil pelos port ugueses e m 1500. P odem ser as srcens da
"civi liz a çã o " — especif icament e a civi liz aç ão ocid ental — ou a s
origens da humanidade. D iz ele: "...noss a história não cabe no
espaço exíguo dos quatro séculos que vivemos, a contar do ano
de 1500, porque se alonga enormemente para trás, ligada à
história dos povos que nos constituíram. Ela não tem, por
conseguinte, limites medíocres no tempo e no espaço. Ao
contrário: dilata-se longamente pela extensão de três continentes,
através da vida e da fortuna variada das nações de que
procedemos e cujo espólio cultural se fundiu num só monte, para
formar o patrimônio histórico e artístico nacional" ([1939]
1987:49). Nesse sentido, o patrimônio cultural brasileiro é pensado
como parte de um patrimônio universal.
j A o mesmo tem po , ele situa as srcens da cu ltura
brasileira na "tradição" singular produzida pelas contribuições das
populações indígenas, africanas e européias no Brasil. Seu
propósito principal é afirmar e defender a existência de uma

4 4 A RE TÓRICA DA PERDA
genuína cultura na cional brasilei ra. E m sua narr ativa, R odrigo
combate aqueles que não acreditam que a nação tenha um
patrimônio cultural de valor suficiente para justificar um
empreendimento oficial de proteção e preservação, uma vez que,
segundo Rodrigo, pensam apenas em termos do patrimônio cultural

das "nações civilizadas" como França, Itália, Inglaterra. No


entanto, continua, o patrimônio cultural brasileiro existe.
I xpressando a auto-confiança e o otimismo próprios da visão de
muitos intelectuais "modernistas" sobre a cultura brasileira, ele se
opõe a uma perspectiva pessimista do Brasil, como uma nação
carente de uma cultura autônoma e condenada a reproduzir a
t ultura européia. Para ele, o Brasil é não apenas seu território e
gua popu lação , mas, també m e p rinc ipal mente, a "obra de
civilização" que nele vem sendo desenvolvida desde os começos

da co lon iza çã o portuguesa: " P ara que nação bras ileira seja
Identificada, terá de considerar-se a obra de civilização realizada
neste país" ([ 1961] 1987: 56). O "pa trimô nio históri co e art ís tico"
é concebido como um "documento de identidade" da nação
brasileira. Em suas próprias palavras, ele "autentica e afirma a
existência do Brasil" ([1961] 1987:56). Segundo Rodrigo, "...apesar
dos valores históricos e artísticos existentes no Brasil serem menos
consideráveis, de um ponto de vista universal, que os que
possuem a G récia, a Itália ou a Espanh a, es sa circun s tân cia não é
de molde a desaconselhar a sua preservação, qualquer que seja o
conceito formado sobre a importância do nosso patrimônio
comparado ao de tantas nações estrangeiras" ([1936] 1987:48). Ele
acrescenta que os valores de um patrimônio cultural não são
avaliados apenas em termos de um padrão clássico. Segundo
Rodrigo, "nas próprias nações de patrimônio artístico mais
opulento se atribui cada dia importância maior às manifestações
de arte primitiva ou exótica de outros povos" ([1936] 1987:48).
Assim, ainda que não possuam um patrimônio que seja
considerado no mesmo plano que o das "nações civilizadas", o
Brasil possui um patrimônio que é específico, singular, uma
síntese de valores "primitivos" e "exóticos" reconhecidos por essas
mesm as nações. O pon do o pa trimô nio bras ileiro à her ança clássica

4 5 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
das "naçõ es civili z a da s ", diz R odrigo: "A poesia d e uma igrej a
brasileira do período colonial é, para nós, mais comovente do que
a do P artenon. E qu alqu er das estátuas que o A leija din ho reco rtou
na pedra-sabão para o adro do santuário de Congonhas nos fala
mais à imaginação que o Moisés de Miguel Ângelo" ([1936]
1987:48).
No discurso de Rodrigo, a civilização é narrada como
o resultado de um processo universal de evolução, desde os
estágios mais "primitivos" até os mais "avançados". Esse esquema
evolucionista é usado em sua concepção do "patrimônio histórico
e artístico" brasileiro. Assim, parte desse patrimônio está associado
"às populações primitivas como as que nos constituíram" ([1939]
1987:49), especificamente, africanos e ameríndios. Suas culturas
são vistas como os remanescentes de um passado desaparecido (ou
em processo de desaparecimento), mais do que como formas

atuais de vida social e cultural. Em outras palavras, as populações


ameríndias e de srcem africana do Brasil são interpretadas como
situadas em estágios ultrapassados de evolução cultural e, desse
modo, ignoradas em termos de sua vida social e cultural presente.
Ao mesmo tempo, os valores "primitivos" e "exóticos" associados
a essas populações eram integrados à narrativa modernista de
R odrigo co mo e xemplos de valores cu lturais e est éticos
supostamente universais, do mesmo modo que a arte e as culturas
primitivas vieram a ser integradas ao quadro universalista da
vanguarda mo derni sta europé ia do s anos vi nte (C lifford 1988:189-
251). A singularidade do patrimônio cultural brasileiro é concebida
como o produto unificado da combinação de três diferentes
heranças: a africa na, a ame ríndia e a européia. S egundo R odrigo,
uma " trad ição " brasil eira veio a ser criada e est abelecida com
base nesse processo de combinação cultural. Em sua narrativa, as
diferenças entre essas heranças não são enfatizadas e um quadro
unificado e singular da identidade cultural brasileira ganha o
primeiro plano.
No contexto de um processo universal de civilização,

o Brasil é oposto a nações "mais maduras" ou "mais civilizadas".


N o entanto, iss o não traz co mo cons eqüência um a visão

4 6 A RE TÓR ICA DA PER DA


hngativa, pessimista da cultura brasileira, mas o sentido de que se
tom ará uma nação plenamente moderna, civilizada e madura, na
medida em que os brasileiros venham a reconhecer, assumir e
defender sua cultura ou "tradição", como parte da civilização
universal. Ao mesmo tempo, as "nações civilizadas" reconhecerão

m valores genuínos produzidos pela cultura brasileira. A


"civi liz a çã o " — isto é, a "civi liz a çã o européi a ociden tal" — é
concebida como uma referência universalista positiva, uma espécie
do meta-narrativa que engloba a narrativa de Rodrigo. Ele narra
sob a autoridade do que chama de "civilização", assim como sob
a autoridade da singularidade cultural da nação brasileira.
Rodrigo vê-se a si mesmo como um ator na sua
na rrativa his tórica sobre o pa trimô nio cu ltura l b ras ileiro. M uitas
vozes a palavra " P atrimô nio ", co m maiús cula, er a usada p ara

designar o S P H A N . N a verdade, exi ste uma for te as sociação ent re


o chama do "P atrimôn io" e o nome de R odri go M elo F ranco de
A ndrade. A lguns usam a expressã o "o P atrimônio de R odrigo"
(R odrigo 1987: 5) para destacar a intensa i de ntifica çã o entre o
homem e aquela instituição. A criação e sedimentação do SPHAN
é indiss oc iável da imagem pública de R odrigo. É possível dize r
que, em certo sentido, Rodrigo, durante determinado período,
modela o patrimônio cultural brasileiro, ao mesmo tempo em que
o patrimônio o modela, enquanto persona pública.

As narrativas sobre Rodrigo e o SPHAN focalizam


principalmente as idéias de "renúncia" e "exemplo". A autoridade
de Rodrigo para falar e agir em nome do "patrimônio histórico e
artístico" brasileiro é modelada através de sua atitude de renúncia
em relação a sua vida privada e em relação a outros caminhos
que poderia ter seguido em sua vida pública. Assim, sua vida
pessoal é narrada por companheiros de trabalho e por amigos
como totalmente dedicada ao SPHAN e à "causa" do patrimônio
bras ileiro. Desse modo, su a vida, a ssim co mo "sua" insti tuiçã o
são consideradas "exemplares".
Na narrativa de Rodrigo, ele formula seu objetivo
principal como aquele de persuadir a população da existência do
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro, assim como da

4 7 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
necessidade de preservá-lo. Em seus artigos, conferências e
entrevistas, ele se dirige a uma audiência concebida como
supostamente "ignorante" ou "indiferente" em relação à "causa"
do patrimônio. Essa audiência, segundo ele, pode incluir tanto o
"povo" quanto a "elite". A "causa" é apresentada como devendo
interessar a todos os cidadãos brasileiros e, como tal,

supostamente transcende as diferenças sociais.


Em um artigo de jornal publicado em 1936, ano em
que foi pr opost a a cr iação do S P HA N, R odrigo argument a contr a
aqueles que pensam que isto seria um gasto desnecessário de
dinheiro público, uma iniciativa que beneficiaria apenas um
pequeno grupo de intelectuais motivados por razões "românticas"
e "sentimentais" ([1936] 1987:48). Argumenta ainda contra a
crença segundo a qual o patrimônio histórico e artístico brasileiro
não seria tão valioso quanto o patrimônio europeu e que não
jus tificaria po rtanto a criação de uma agência federal en ca rregada
de protegê-lo. Segundo Rodrigo, a proteção do patrimônio não é
uma atividade "romântica" ou "sentimental", mas um dever
cum prido por todas as nações "civili z ad as " do mundo. Se a
nação brasileira falha no cumprimento desse dever, diz ele, ela
será condenada, não somente pelas futuras gerações de brasileiros,
mas, também, pela "opinião do mundo civilizado". Além disso,
acrescenta, um patrimônio cultural nacional deve ser protegido e
preservado qualquer que seja o seu valor estético.
O modo como a personali dade pú blica de R odrigo é
narrada desempenha um importante papel no processo de
modelação da "caus a"4 do pa trimôn io. A quela é, como já

4A palavra c" ausa" é frequentemente usada porfuncionários e técnicos daPHAN S -


especialmente so mais ant igos. Um de meus infor mantes, um antigo e altamente
qualificado técnico daquela instituição, disse-meque trabalharna SPHAN é como
trabalhar por uma causa."As pessoas gostam ou simplesment e não trabalham. É uma
causa. Aspessoas rabalham
t porque gostam . O trabalho é duro e nãoseganha bem".
Assim, serum arquiteto,um historiador ou um es pecialista em ar
te não é
necessariam ente concebido como umacausa. Mas trabalhar par a o Patrimônio
supostamente requer m ais que profissionalismo,umadedicação pessoal à "causa" da
cultura brasileira.

48 A RETÓ RICA DA PERDA


fjÍMomos, profundamente associada com esta última. Enfrentando a
'ignorância" e a "indiferença" da população e de suas elites, ele
ofnmce uma total dedicação à proteção e à preservação do
(Milrlmônio. Sua imagem pública é a de um silencioso e dedicado
funcionário público, uma espécie de humilde e silencioso herói,
tlc , pessoal mente, desaparece de mo do a dest aca r a imp ortân cia
da causa que defende. Sua vida privada é narrada como um
sacrifício em favor do patrimônio. Suas possibilidades como
escritor, como jornalista ou advogado são todas sacrificadas em
favor da "causa". Suas ambições, em termos de uma carreira
publica, são descartadas. Ele trabalha até a véspera do dia de sua
morte. Essa dedicação é usada para enfatizar a importância da
i iiusa". A própria existência do patrimônio e seu valor são
enfatizados pela auto-negação de Rodrigo. Seus artigos e
conferências omitem qualquer auto-referência. Ele parece esforçar-
se no sentido de ser tão objetivo e imparcial quanto possível. Seus
amigos o descrevem como um exemplo de equilíbrio e bom senso.
I m suas narrativas, a existência e o valor do patrimônio e a
necessidade de sua defesa e preservação absorvem-no a tal ponto
que ele se transforma em parte do patrimônio. Sua própria vida
lorna-se um monumento, numa espécie de auto-modelagem "patri
monial". Ele modela-se a si mesmo como um patrimônio, como
Um mo num en to, na med ida em que de dica tod a sua vida a essa
causa. Nesse sentido, ele também é um exemplo. Ele é descrito
por seus amigos e companheiros de trabalho como um "amigo
exemplar", um "funcionário público exemplar" e sua própria vida,
como uma "lição"5.
R od rigo na rra as suas atividad es e a de seus
colaboradores em relação à proteção e preservação do patrimônio
Como o resultado de uma devoção existencial à "causa". Ao
mesmo tempo, ele destaca que o SPHAN realiza pesquisas sobre
arte e arquitetura colonial brasileira e que muitos dos membros e
colaboradores dessa instituição são profissionais conhecidos nos

’•A ideia da vidade Rodrigo como uma "lição" é bem expressa por uma coletânea de
textos publicados em sua homenagem por um grupo de amigos e colegas após sua
morte em1969. O título mesmoda coletânea éA lição de Rodrigo (SPHAN 1 969).

4 9 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
campos da história da arte e da arquitetura. Nomes de conhecidos
escritores e arquitetos são usados para sustentar a afirmação.
Assim, o patrimônio é apresentado como um assunto de
profissionais. Ele, de fato, opõe o modelo de trabalho profissional
desenvolvido pelo SPHAN ao que é feito, supostamente sem
profi ss ionalismo, antes da criaçã o des sa insti tuição. O
profissionalismo das instituições européias de preservação histórica
é usado como um exemplo a ser seguido, sobretudo o das
instituições francesas e italianas. No entanto, a idéia de uma
"caus a" est á ac ima da s ident idades profi ss ionai s. O discurso de
Rodrigo é articulado em nome do patrimônio cultural brasileiro e
em nome de uma dedicação existencial a uma causa, tanto quanto
em nome de uma atividade realizada nos limites de um código
profissional. Em outras palavras, a devoção a uma causa é tão
valorizada quanto o profissionalismo. Assim, os arquitetos e outros
especialistas que trabalham no SPHAN são considerados uma
equipe de profissionais sérios e de excelente qualidade, mas,
sobretudo, um grupo de idealistas dedicados à causa do
patrimônio. A idéia de uma "causa" é produzida pela devoção
pessoal de Rodrigo e desses profissionais ao SPHAN.
Uma vez que o patrimônio cultural brasileiro é
narrado como uma "causa" e Rodrigo como o herói exemplar que
a ela dedicou integralmente sua vida, as primeiras décadas de
existência do SPHAN são classificadas pela historiografia oficial,
não por acaso, como um "período heróico". De uma situação em

que as pessoas tinham de ser persuadidas até mesmo da existência


de um patrimônio histórico e artístico brasileiro, chega-se a uma
outra, em que se discute a necessidade de preservar diferentes
espécies de patrimônio cultural. Essa trajetória, no entanto, não se
adequa tanto à imagem de um herói silencioso e humilde. Em
seus último s anos, diz R odrigo que t udo est á ainda para ser f eito
e assume, em grande parte, a responsabilidade por isso. Uma tal
ajjtude enfatiza a causa do patrimônio como uma causa
transcendente. No contexto da narrativa de Rodrigo, o "patrimônio
histórico e artístico" é situado acima, englobando as contingências
das vidas individuais.

5 0 A RE TÓRICA DA PERDA
■ Aloísio e os anos setenta :o Brasil com o uma naçã o j ovem ,
culturalmente diversa e em desenvolvimento

De acordo com a historiografia oficial do SPHAN, o


"período heróico" da instituição corresponde àquele que se
estende desde a sua criaçã o em 1937 até a morte de R odrigo, e m
I969. Um segundo período é identificado por essa historiografia,
de 1969 a 1979, tempo em que a direção esteve a cargo de
Renato Soeiro, próximo colaborador de Rodrigo, mas que não foi
marcada por quaisquer mudanças significativas em termos da
política oficial de patrimônio. Em 1979, Aloísio Magalhães assume
.i direção do SPHAN e dá início a uma nova política para o
patrimônio cultural brasileiro. Na historiografia oficial do SPHAN,
começa, então, o terceiro período da história daquela instituição
(ME C -S P H A N /P ró-M emór ia 19 80:11 -57).
O co ntexto his tórico e po lítico em que e ssa nov a
política veio a ser formulada e implementada é diferente daquele
dos anos trinta, quando o SPHAN foi criado e a política de
patrimônio, associada ao nome de Rodrigo, foi inaugurada. Aloísio
assumiu a direção do SPHAN nos anos finais do regime político
autoritário que vigorava no Brasil desde o golpe militar de 1964.
Os últimos anos da década de setenta caracterizaram-se como um
período de "abertura política" e de liberalização do regime
político em vigor. Alguns intelectuais vieram a ser convidados e
concordaram em participar em alguns níveis de governo,
noUidamente na área de política cultural. Assim como o nome de
Rodrigo está associado ao SPHAN e a uma determinada política
•It>patrimônio, o de Aloísio está intimamente associado com a
política de patrimônio cultural implementada pelo governo
brasileiro na segunda metade da década de setenta. Em 1980, uma
Ihitltuição modernizada de patrimônio foi criada com o propósito
?it| rea liza r as mudanças propostas po r A loí s io e seus
*olaboradores na política oficial de cultura em geral e,
pfttticularmente, na de patrimônio. As duas estruturas
IhNlitucionais, por determinado período, coexistiram na área de
fldtrimô nio cu ltura l no B rasil: o S P H A N , subs tituído , desde 1990,

M1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
pelo IBPC, cuja sigla voltou a ser novamente, desde 1994,
S P HA N; e a F undaçã o P ró-M emória, ext inta no a no de 1990
(M E C -S P H A N /P ró-Me móri a 1980: 11-57). Em termos de estrutura
burocrática, elas operavam conjuntamente, sendo conhecidas pela
sig la "S P H A N /P ró- M emóri a".
^ Q uan do contrastada co m a narrat iva histórica de

Rodrigo, em que o Brasil aparece como "civilização" e "tradição",


á de Aloísio parece mais próxima à de um moderno antropólogo
social ou cultural, cuja autoridade está baseada numa teoria
sistemát ica da cult ura e da sociedade (C lifford 1988:21-54). A inda
que não seja el e pró prio um a ntrop ólo go 6, sua polí tica cu ltura l
y está orientada por alguns valores presentes, de forma distinta, em
* teorias que informam a moderna antropologia. Assim, Aloísio
&
substitui o "patrimônio histórico e artístico" de Rodrigo pela noção
de "bens cu ltura is " (M agalhães [1979] 1984:40-44). Q ua nd o usa a
noção de "cultura brasileira", ele enfatiza mais o presente do que

o passado. Ele destaca que a noção de "bens culturais", tal como


a usa, existe no contexto da vida cotidiana da população. Além
disso, assinala a importância de um contato direto entre os
profissionais do patrimônio cultural e as populações locais.
Enfatiza, ainda, a diversidade cultural existente no contexto da
sociedade brasileira. No entanto, acredita que, além dessa
diversidade, existe uma cultura brasileira que é integrada, contínua
e regular.
Segundo a visão de Aloísio, os "bens culturais" são
concebidos como "indicadores" a serem usados no processo de
identificação de um "caráter" nacional brasileiro, definido não
apenas pelo passado ou pela tradição, mas por uma trajetória
his tórica norteada pe lo futuro. O passado é visto co mo u ma
referência que deve ser usada e reinterpretada no presente e com
propósitos futuros. Em oposição ao enredo da narrativa de
Rodrigo, articulado pelas idéias de "civilização" e "tradição", a
qstória narrada por Aloísio é articulada pelas noções de

6Aloísio era um bem sucedido des/


gnerquando veio a assum
ira direção do SPHAN
em 1979.

5 2 A RETÓRICA DA PER DA
"de sen volvimen to" e "diversidade cultural". P ife rente mente de
Kodrigo, seu propósito não é "civilizar" o Brasil preservando uma
"tradição", mas revelar a diversidade da cultura brasileira e
assegurar que ela seja levada em conta no processo de
desenvolvimento. Segundo ele, "nossas políticas econômicas e
tecnológicas devem levar em consideração os bens culturais da
nação, de modo que possamos realizar um desenvolvimento
autônomo" ([1979] 1984:40-44). Seu propósito é identificar e
preservar o caráter nacional brasileiro de forma que o processo de
desenvolvimento econômico e tecnológico possa prosseguir sem
que isto represente uma perda de autonomia cultural frente aos
países do prime iro mundo. O principa l pe rigo, pa ra ele, é o de
que a naçã o pe rca sua identi dad e cultura l e torne-s e depende nte

do outras nações. Em um discurso político de 1982, ele propõe a


seguinte questão: "... será que a nação brasileira pretende
desenvolver-se no sentido de se tornar uma nação rica, uma nação
furte, poderosa, porém uma nação sem caráter?" ([1982] 1985:39).
( )s "bens c u ltura is'^des empenha m o papel de prese rvar a
identidade cultural" ou "caráter" "autênticos" da nação brasileira
nesse processo de desenvolvimento econômico e tecnológico
(Magalhães 1984; 1985; Falcão 1984). No contexto de uma
política cultural nacional, os "bens culturais" são concebidos
turno "instrumentos" para a realização de um "desenvolvimento
autônomo" (Magalhães [1979] 1984:40-44).
U m dos pont os de part ida da n arrat iva de A loís io é a
diferença que ele reconhece entre "países ricos" e "países pobres";
ii n seguida, ent re "países ricos e velhos " e "paíse s velhos e
pobres"; e, finalmente, entre "países novos e ricos" e "países
flnvos e pobres". Aloísio explora as diversas relações existentes
entre cada um desses tipos de países e seus respectivos
patrimônios culturais. Segundo ele, nos países velhos e ricos "tudo
já está fe ito " ([1981] 1985: 81), uma vez que são
economicamente desenvolvidos e já possuem "uma consciência
bastante nítida dos seus valores culturais" ([1981] 1985:81).

A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
Os países velhos e pobres são conscientes dos seus valores
culturais, mas esses valores são localizados mais num passado
perdido e glorioso do que no presente. Sua situação é descrita
como "dramática", na medida em que, uma vez nações ricas e
poderosas, contemplam agora "... ao dilapidar, à morte, ao desuso
de grande parte [do seu] patrimônio" ([1981] 1985:82). No caso

dos países ricos e novos, afirma Aloísio, é "o dispêndio excessivo


de recursos, a fragilidade com que são tratados os seus bens, na
pressa, na velocidade com que se quer comprar, absorver,
enriquecer por processos pouco legítimos, no sentido de
autenticidade, o seu patrimônio" ([1981] 1985:82). Exemplos são
"as fáceis conquistas, as grandes compras de quadros e de outros
bens culturais de outras nações" ([1981] 1985:82). Para Aloísio,
trata-se de "...um processo curiosamente parecido com o que se
opera no caso dos países ricos e velhos, que roubam e retiram o
patrimônio dos outros" ([1981] 1985:82). Finalmente, distingue os
"países novos e pobres". Em sua visão, eles representam
alternativas criativas em um mundo ameaçado pelo que ele chama
de "achatamento cultural" ou "homogeneização". Desse modo,
acredita que a esperança de solução para muitos problemas
enfrentados pelos velhos e novos países ricos reside "...nesses
países que se encontram numa situação em que não são ainda
identidades formadas, não são ainda economias estabelecidas, não
têm ainda o seu perfil desenhado e completo..." ([1981] 1985:83).
Enquanto um país novo, o Brasil é concebido em
termos de um processo aberto, inconcluso de formação cultural,
econômica e política. A nação é pensada como uma "trajetória
histórica". Para Aloísio, o Brasil possui uma cultura que ainda não
adquiriu estabilidade e permanência e encontra-se, ainda, num
processo de formação. Nesse processo, a ênfase é colocada na
diversidade cultural existente no Brasil e na sua singularidade em
relação a outras nações. A heterogeneidade cultural é considerada
^om o o mais impo rtante recurso da nação brasileira.
Assim como Rodrigo, Aloísio vê a cultura brasileira
composta por múltiplas e distintas sub-culturas: africana, ameríndia

e européia. No entanto, em contraste com Rodrigo, ele vê essas


5 4 A RETÓRICA DA PERDA
culturas - especialmente a africana e a ameríndia - não como
estágios de uma evolução universal em direção à civilização, mas
como formas de vida social e cultural atuais, diversas e em
processo de transformação. Ele enfatiza que deveríam ser
Igualmente representadas por uma política de patrimônio cultural.
Nn narrativa de Aloísio, a noção mesma de tempo muda (se
( omparada à de Rodrigo) e a cultura é pensada como um
processo de transformação histórica e não em termos de uma
clássica exe mplari dad e do passad o. O passa do é cons ider ado
Importante na medida em que possa ser usado para sustentar a
realização de um futuro projetado. Aquele conjunto de objetos e
de atividades sociais e culturais classificado como "bens culturais"
são vistos como os meios através dos quais diferentes segmentos
que compõem a nação expressam-se a si mesmos no fluxo do
processo histórico. Eles são pensados não como objetos fixos,
exemplares, mas no processo mesmo de criação e recriação que
lhes dá realidade (Magalhães 1984; 1985).
Aloísio recontextualiza a política de patrimônio cul
tural do SPHAN com o propósito de formular e propor uma
alternativa. Na narrativa de Rodrigo, os principais problemas
enfrentados pelo SPHAN são a "ignorância" e a "indiferença" da
população em relação à existência mesma do patrimônio. Em

contraste, Aloísio critica a política tradicional do SPHAN, porque,


supostamente, ela deixa de lado certas dimensões do patrimônio
cult ural bras ileiro — notadament e sua diversidade — assi m como
-i importância e o papel desempenhado pelas diferentes formas de
cultura popular. Ele acusa essa política de não ter seguido o
projet o o riginal de cr iação do S P HA N, propost o por M á rio de
Andrade em 1936, onde aquelas dimensões eram contempladas.
Para Aloísio, esse documento expressa uma concepção de
patrimônio mais ampla do que aquela que veio a informar a
po lítica e fetivam ente implement ada p elo S P H AN , de 1937 at é os
anos sessent a. Dess e modo, ele u sa M á rio de A ndrade co mo um
precursor, afirmando que seu trabalho faz tão somente seguir as
propostas contidas naquele documento. Aloísio descreve a política
tradicional do SPHAN como parte do que ele chama de "velho

A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
tapete europeu", que "sufoca" a diversidade da cultura brasileira.
Esta última é pensada como tão heterogênea quanto oposta àquela
concepção homogeneizadora de cultura que teria informado a
política do SPHAN, desde sua criação.
Aloísio amplia a noção de "patrimônio cultural" de

modo a incluir elementos que não se restrinjam à categoria de


arte e arquitetura colonial brasileira. Para ele, monumentos e
obras de arte são considerados como um tipo especial de bens
cult urais — "bens pa trimo niais" — que sã o pri mo rdi almen te
associados à "alta cultura" e ao passado histórico e artístico. Eles
devem merecer, segundo Aloísio, tanta atenção quanto quaisquer
outros bens culturais, mas não deveríam ser privilegiados numa
política nacional de patrimônio cultural. Diferentes formas de
"cultura popular" são valorizadas e opostas à assim chamada alta
cu ltura : arte e arqu itetura po pular; di ferentes tipos de art esa nato;
religiõe s pop ulares; cu lturas étnicas ; esportes; festas pop ulares ;
etc. Esses bens culturais são valorizados não por uma suposta
exemplaridade, mas como parte da vida cotidiana e como formas
de expressão de diferentes segmentos da sociedade brasileira. As
diferentes formas de cultura popular são vistas como a fonte
mesma de uma "autêntica" identidade nacional (Magalhães 1985;
1986). Ele enfatiza, ainda, o papel desempenhado por diferentes
grupos e seus respectivos patrimônios culturais na sociedade
brasileira. Essa visão pluralista e, de certo modo, "antropológica"
do Brasil, é, então, concebida por Aloísio e seus colaboradores
como um instrumento fundamental no processo de democratização
política e sócio-cultural da sociedade brasileira (Magalhães 1984;
1985; F alcão 1984) .
Assim como na narrativa de Rodrigo, na de Aloísio o
patrimônio é pensado como uma "causa". Ele, na verdade, exibe o
mesmo sentido de dever que Rodrigo. Alguns dias após a morte
de A loí s io7, um dos seus amigos a firmava que p ou co antes de
ass umir a direç ão do S P H A N em 1979, el e "... se pergunt ava,

7Aloísio morreu natarde de 13de junho de 1982, aos 55anosde idade,na Itália, num
encontro internacional de ministros da cultura de países latinos.

5 6 A RE TÓRICA DA PER DA
com naturalidade, se toda sua vida, até aquele momento, não fora
uma preparação para o cumprimento da tarefa que lhe estava
reservada da li por di an te" (M elo [1982] 1985:25) . T anto quan to
R odrigo, ele sent e-se pr ofundamen té iden tificad o co m a "caus a"
do p atrimô nio . C ons tantemente express a seu senso de deve r diante
da causa, afirmando que muitos segmentos da sociedade brasileira,
e especialmente os intelectuais, deveríam reconhecer sua posição
privilegiada em oposição à precária situação da maioria da
população brasileira em termos sócio-econômicos e educacionais.
Enquanto tal, deveríam assumir a responsabilidade de oferecer algo
à nação como uma forma de compensação pelos seus privilégios
([1979] 1985:70). Essa dedicação existencial e política é usada
como um instrumento em sua busca de uma "autêntica"
identidade nacional.
A personalidade pública de Aloísio não é menos
exe mp lar que a de R odrigo, ainda que se ja diferen te mente
modelada. A causa é diferentemente modelada assim como seu
herói . A e xemp lari dad e de R odrigo é b aseada na r enúnc ia e na
auto-negação em favor de uma causa transcendente. Na biografia
de Aloísio, valores como renúncia, sacrifício e auto-negação não
são tão valorizadas quanto nas narrativas biográficas sobre
R odrigo. Este último é des crito co mo tendo renunciado à sua
carreira como escritor para devotar-se à causa do patrimônio.
Aloísio por sua vez, é descrito como um já bem sucedido
profissional na área de design quando vem a assumir a direção da
política cultural do país. Alguns dos seus amigos descrevem-no
como um homem público guiado por uma sensibilidade de artista.
Sua perfo rm an ce é marcada pelo sucesso e pela afirmação de uma
nova política cultural para o país. Sua morte ocorre,
Inesperadamente, no clímax de sua carreira, não ao fim de um
longo e contínuo processo. Sua morte não é um término, mas uma
Ines perada e lamentada interrupçã o. A morte d e R odrigo é
modelada como o fim de um longo e contínuo processo, que

completa e transcende sua vida, como um monumento. A morte


de A loís io oferece um se ntido de interrup çã o e fragmentação. Ele
era relativamente jovem (cinqüenta e cinco anos incompletos)

5 7 A i de nt i f i c aç ão d o br asi l
quando morreu. Sua personalidade é descrita como "múltipla", tão
múltipla quanto o patrimônio que imaginou.

■ Cultura nacional como estratégias de autenticação

As narrativas usadas por intelectuais nacionalistas são


concebidas com o propósito de exibir em si mesmas uma
continuidade e integridade que supostamente caracterizariam
ontologicamente a nação - ou o indivíduo - como seres
autônomos e livres. Elas podem ser interpretadas como perfor
mances, visando obsessivamente à superação de um sentimento
pessoal e coletivo de não-ser ("inautenticidade") e à conquista
simultânea de um "sentimento de ser" ("autenticidade") - na
expr ess ão de R oussea u usada por L ione l T rill ing e m seu livro
Sincerity and authentici ty (1 971:92).
Nos contextos culturais modernos, poucas noções
parecem tão pervasivas nas conversações cotidianas e nos debates
acadêmicos quanto a de "autenticidade". Podemos usá-la para
avaliarmos pessoas ou objetos. Podemos nos referir à autenticidade
de uma experiência pessoal, de um documento histórico, de uma
obra de arte, ou de toda uma cultura. Enquanto um artefato cul
tural usado em nossos encontros cotidianos, ela costuma ser
tomada como uma realidade ou um dado existencial ou histórico
— caso co ntrário, ela obvi ament e não f uncion aria. N o entanto,

autores co mo B enjamin ( 1969) 8, T rilling (1975)9 e outros surger em

8 Segundo Benjamin,a autenti cidade está associa da às modernas técnicas de


reproduçãomecânica(1969:217-254). O "autêntico" é assim equacionado ao
"original", enquanto que o não-aut êntico está associado à "cópia" ou à "reprodução".
Diz ele: "Precisely because authenticity is not er producible, theintensive penetration of
certain (mechanical) processes of reproduction was instrumental in differentiating and
gradind authenticity. (...) To be sur
e, atthe time of its origin a medievalpicture of the
Mádonna could not yetbe said to be 'authentic'. It became authentic'
' only during the
succeeding centuries and perhaps most strikingly so during the last one" (1969:243).

No entanto, essaoposição autêntico/não-autênti


co - em si m
esma um produto da

58 A RETÓR ICA DA PERD A


modernidade - veio a serdesafiada por algum as formas modernasde arte,
especificamente o cinema e a fot ografia. Assim, sea existência dosrcinalé a condição
necessária para o conceito de autenticidade, tal critério dificilmente seaplica, por
exemplo,à fotografia; nessecaso é possívelazerf um interminávelnúmerode cópias a
partir de um negativo e desse modo perde o sentido pergun tar-se pela fotoautêntica
(Benjamin1969:224). Omesmo pode serdito sobre outras formas de art e
mecanicamente reproduzíveis. De acordo comBenjamin, uma das consequên cias
desseprocesso é o declínio do que ele chama de "aura ". Segundo ele, "...that which
withers in the age of mechanical reproduction is the aura of the work of art"(1969:221).
A aura de um objeto - ou deum serhumano - est á associada à sua singularidade e
permanência, ou a uma genuína relação m coo passado. No casodos objetos cuja aura
desapareceu,seus atributos são,fundamentalmente, a "reprodutibilidade" e a
"transitoriedade" (1969:223). Precisamente por serreproduzível e transitório, eles não
guardam qualquer relação genuínacom um passado individual ou coletivo. De certo
modo, os objetos não-auráticos podem serpensados como "simulacros" - "the identical
copy for which no srcinal hasever exist
ed" (Jameson 1984:64) . Em outras palavras,
um simulacro éum objeto cuja aura ext inguiu-se completamente - se é que em algum
momento existiu. Na medida em que a int erpretação de Benjamin expõe ess e processo
de declínioe exaustão da aura, ela pode serusada para redescrever o conceito
modernista ou aurático de autenti
cidade como um simulacro.
0 De
acordo com Trilling, 'sinceridade' e 'autenti
cidade' são noções que emergem na
moderna história cultural do ocidente associadas às idéias de 'indiv
íduo' e 'sociedade'
(1975). Segundo ele, depois da moderna separação cultural entre as noções de
indivíduo e sociedade, aselações
r entre os indivíduos e seus papéis sociaisomaram-se
t
mais e mais problemáticas. No universo cultural holístico medieval, os indivíduosnão
eram percebidos à partede seus papéis sociais . No entanto, co m a desintegração desse
universo, desde oéculo
s XVII e XVIII, esses papéis vieram a ser pensados
separadamente daqueles que os desempenhavam. Desse modo, os papéisociais,s
assim comosuas insígnias ext eriores, não podiammais ser tomados como fontes
segurasde informação sobre o caráterdaquelesque asassumiam. Em tal contexto é
que o sentimento de 'sinceridade' veio a servalorizado. Para Trilling, 'sinceridade'

refere-se a umaatitude que enfatiza a "ausência de dissimulação" (1971:13) nas


interaçõessociais, de talmodo que as e pssoas poderíam confiar umas nas outras. Do
seuponto de vista, 'sinceridade' é ainda um esntimento socialmente det
erminado e
definido por oposição às concepções individualistas self(
do 1971:1-25).
'Autenticidade' no entanto, supõe, para, ele uma concepção dese/fplenamente

5 9 A IDENTIFIC AÇÃO DO BRA SI L


que pensem os essa ca tego ria não co mo um dado uni versa l, mas
como um artefato cultural produzido no contexto da moderna
história cultural do Ocidente. Antropólogos, por sua vez, têm
exp lorado a cons trução cult ural das n oções de aut enti cidad e e
como são usadas em modernos contextos nacionalistas (Herzfeld
1982 ; M ac D onald 1986 ; H and ler 1 988 ; G onçalv es 1988;
S ilverman 1989; e outros). Em termos gerais, e sses estudos
interpretam a noção de autenticidade como uma busca de
integridade pessoal e coletiva, em oposição a uma situação
dramaticamente marcada pela incoerência, pela fragmentação e
pela descontinuidade.
S egundo o que as i nterpr etaçõe s de T rilling , B enjam in
e outros sugerem, a autenticidade existe com base em sua própria
impossibilidade. Em outras palavras, a autenticidade,
paradoxa l mente, "é ", na exata me dida e m que "não é " .
Autenticidade e inautenticidade nada mais são que o efeito de sua
mútua difer ença . O desejo de autent icidade expresso p or
intelectuais nacionalistas é, ao mesmo tempo, a perda mesma
dessa autenticidade. Nesse sentido, a identidade nacional é sentida
como algo que "é" e, ao mesmo tempo, "não é". Quando alguma
coisa é "autenticada", congela-se ou objetifica-se esse jogo de
diferenças entre o que "é" e "não é". Tanto o discurso de
Rodrigo, em que o Brasil é narrado enquanto "civilização" e
"tradição", quanto o de Aloísio, no qual o Brasil aparece
enquanto "heterogeneidade cultural" e "desenvolvimento", podem

ser interpretados como estratégias de autenticação de uma

moderna. Nessesentido, 'autenticidade' -definida porTrilling, a partirde Rousseau,


como "um sentimentode ser"(1971:92) - est á relacionada a uma concepção de self

onde o outro não é levado em conta na interação. Essa concepção enfatiza oself não
como socialmente relacionado a um outr o, mas 'comoele realmente é', ou 'como
realment e somos', independent
emente de quaisquer pap éis sociais que venhamos a
desempenhar(1971:106-133). Oindivíduo é assim pensadocomo uma enti dade livre e
autônoma,separadode qualquertotalidadecósmica ousocial. Autenticidade é o
atributo fundame
ntal dessa mônada exis tencial. Para uma visão antropológica desse
processode emergência da moderna noção de Indivíduo,ver Dumont (1970; 1985;
1992); para uma visão histórico-sociológicado mesmo tema ver Elias (1990;1993).

6 o A RE TÓRICA DA PERDA
identidade nacional brasileira. Ambas são objetificações provisórias
o contingentes. Em suas narrativas, a identidade nacional "é", na
medida em que é alocada na "tradição" ou na "cultura popular",
devendo, por isso mesmo, ser descoberta ou redescoberta,
protegida e preservada contra a fragmentação e a destruição. Ao
mesmo tempo, essa identidade "não é", ou, pelo menos, tem sua
experiência ameaçada, na medida em que essas entidades
("tradição", "cultura popular") estão em processo de
desaparecimento. A identidade nacional não é anterior a essa
tensão, mas, precisamente o seu efeito.
Rodrigo autentica sua posição opondo-a a um discurso
não c ien tífico , nã o-profi ss ional sobr e a c ultura bras ileira. U m dos
seus objetivos expressos é apresentar os fatos históricos de um
modo tão objetivo quanto possível. Sua posição não é muito
diferente daquela assumida pela história narrativa do século XIX.
U ma das cons eqüênc ias de sua posição é a de que o B rasil —
narrado como uma "obra de civilização" e como uma "tradição"
- vem a s e con figura r em seu discurso co mo um processo
histórico factual, que supostamente fala por si mesmo, não
permitindo a ninguém a possibilidade de desafiar sua "realidade".
Essa "rea lida de " — ou sej a: tradi ção , c ivil iza ç ã o — é alg o que
sempre escapa de sua narrativa. É algo que está sempre situado
no passado longínquo, ou algo a ser plenamente realizado ainda,
no futuro.
Mas, ao mesmo tempo, Rodrigo é um ator em sua
narrativa, na medida em que ele se identifica com a "causa"
nacionalista da proteção ao patrimônio. Nesse contexto, sua
estratégia narrativa opõe-se à daqueles que negam a existência
mesma de um autêntico e valioso patrimônio cultural brasileiro,
digno de ser protegido e preservado. Ele opõe um discurso
profi ss ional s obre o "pa trimô nio h istórico e artís tico" bras ileiro —
princ ipa l mente a históri a da a rte e da a rquitetura b ras ileira —
àquel es que não creem em sua exist ênc ia. Seu o bje tivo é
demonstrar a existência desse patrimônio e justificar a sua
preservação.
Aloísio, por sua vez, autentica sua própria posição

6 1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
desafiando a de Rodrigo. Sua estratégia é a de narrar a cultura
nacional brasileira não necessariamente de um ponto de vista
distante e impessoal, mas, aproximadamente, valorizando o que,
no jargão antropológico, chamamos de "ponto de vista nativo".
Assim, a cultura brasileira é, para ele, não uma coleção de
monumentos e obras de arte que chegaram do passado até nós,
mas um conjunto de diversos "bens culturais",, que somente
exis tem de forma s ign ifica tiva nos co ntextos _atua is da vid a
co tidiana da populaçã o. Em opos ição à narr ativa de R odrigo, a de
Aloísio autentica a cujtura brasileira como uma "trajetória
histórica", que liga o passado, o presente e o futuro, embora
nenhuma ênfase seja colocada no passado, na forma de uma
"trad içã o ". A co ntinuidade e a integridade d a cu ltura brasileira
são asseguradas por essa trajetória e por um projeto de autonomia
cultural, desenvolvimento econômico e democratização política do

Brasil.
A despeito de suas diferenças, tanto na narrativa de
R odrigo quant o na de A loís io a ident idade naciona l bras ileira é
considerada como algo que está ainda por ser realizado. Em
ambas as narrativas a nação é objetificada como uma "busca"
pela identidade. Como toda busca, pressupõe um "centro": uma
entidade unificada, auto-idêntica e que autoriza ou legitima aquela
busca. A nação, enquant o uma ent idade ob jetificada — ou co mo
um "ce ntro" — existe na med ida mesmo em que é buscad a. Esse
centro, no entanto, é instável, uma vez que escapa continuamente
dessa busca obsessiva. Na narrativa de Rodrigo, esse centro é a
"tradição" e a "civilização"; na de Aloísio, é a "heterogeneidade
cultural" da nação e o seu "desenvolvimento". Em suas narrativas,
tanto Rodrigo quanto Aloísio aparecem plenamente identificados
com essa busca por uma identidade nacional. De diferentes
maneiras, suas personalidades públicas são modeladas por sua
profunda dedicação à causa do patrimônio. Nesse sentido, ambos
sãcvmodelados pelo modo como concebem e buscam aquela
identidade.

62 A RETÓRICA DA PERDA
Capítulo Três

■ A APROPRI AÇAO DA CULTUR A N ACI ON AL

"... m ui to al é
m da prop ried ad e pa rti cular exis te um a outra,

q u e éa pr op ri eda d e coleti va da N ação, constit uída p o r t odos

es ses elem ent os qu e constit uem a s ua cult ura .. ."

Rodrigo M elo Fran co de Andrad e

" O que a con t ec e éque o m elhor guardi ão d e um bem

cul tu ral ésem pr e s eu do n o (a s com un id ad es locais )" .

A l o ísio M a g a l h ães

Nada soa mais evidente do que a idéia de que as


modernas sociedades nacionais "possuam" uma cultura. No
contexto dos discursos nacionalistas, as chamadas culturas
nacionais são, usualmente, classificadas como "patrimônio".
C lassif icar uma cult ura c omo "patr imô nio" pressupõ e que alguém,
algum sujeito individual ou coletivo, esteja agindo em relação a
©Ia como se fosse uma propried ad e. De um p on to de vista
nacionalista, apropriar-se de uma cultura nacional significa um
empreendimento no sentido de restabelecer ou defender a
Integridade e a continuidade de valores supostamente ameaçados.
S ignif ica um es forço no sent ido de superar a inautenti cidad e e
tornar-se autêntico, restaurando ou defendendo um evanescente
sentimento de ser. Uma nação é concebida como a legítima
proprietária de sua cultura. Ao mesmo tempo, os atos de
apropriação de uma cultura nacional criam o seu proprietário:
Uma nação existe na medida em que se apropria de si mesma por

r> 3 A APROPRIAÇÃO DA CULTURA NACIONAL


meio de sua cultura. Em outras palavras, uma nação é sua auto-
apropriação..
No entanto, "apropriação", como qualquer outra
palavra na vida cotidiana, pode ser diferentemente usada e para
múltiplos propósitos: defender uma "tradição" para "civilizar"
(como na narrativa de Rodrigo); ou preservar a "heterogeneidade
cultural" para garantir o "desenvolvimento" (como no caso da
narrativa de Aloísio). Nesse processo, o que é apropriado, quem
se apropria e com quais propósitos são questões que trazem
diferentes respostas.

■ Em busca do tempo perdido:


a política do SPHAN de 1937 a 1979

Na narrativa de Rodrigo, a apropriação do "patrimônio


histórico e artístico nacional" é, principalmente, uma apropriação
do passado. Após sua morte, um de seus amigos descreveu
R odrigo co mo "o homem que ajudou o Brasil a l emb rar de si
mes mo" (C almon 1969:170). Em sua narr ativa, o Brasil existe n a
med ida em que p ossui um passado ou uma tradiçã o. O passado é
valorizado pelo papel exemplar que desempenha no processo de
civilização. Ele deve ser resgatado para que possa assegurar o
des enrolar d esse processo. C omo vimos no cap ítulo doi s, essa
dimensão de exemp laridade projeta-se sobr e o S P H AN , ins tituiçã o
fortemente associada a seu nome durante certo período, assim
como sobre a sua imagem pública. Nesse sentido, a própria
narrat iva de R odrigo apresent a també m essa dimensão.
No discurso de Rodrigo, o empreendimento de
proteção e preservação do "patrimônio histórico e artístico" é
concebido como um instrumento para educar a população a
respeito da "unidade e permanência" da nação. Segundo ele, "não
há meio tão eficaz para incutir-nos a convicção da unidade e da
perenidade da pátria quanto um balanço, ainda que sumário, dos
monumentos herdados de nossos maiores, ao longo de toda a

su perfície do B ras il"([1961 ] 1987:57). E le comp ara a relação ideal


entre as pessoas e os monumentos nacionais àquela existente entre

6 4 A RETÓRICA DA PERDA
as pessoas e os objetos de família. Afirma Rodrigo: "só pelo
conhecimento direto e não apenas ligeiro dessas obras do passado
nacional, criadas com tamanho esforço e, às vezes, em condições
tão pouco favoráveis, é que se aprende a considerá-las no seu
verdadeiro sentido. Só do convívio com os monumentos e com a

sua história poderá nascer a estima sincera que eles devem


inspirar. Esse sentimento será como o de apego às pessoas e às
coisas familiares" (Andrade [1939] 1987:54). Na medida em que
as pessoas desenvolvam tal atitude em relação aos monumentos
nacionais, "...o impulso de preservá-los será quase instintivo"
([1939] 1987:54).
Os monumentos são considerados por Rodrigo como
signos visuais de uma condição civilizada, a materialização de
valores permanentes da civilização. Segundo ele, "...não há cidade
culta a cujo panorama faltem as características dos monumentos
do seu passado. Estes é que lhe compõem a fisionomia e
contribuem para o seu prestígio" ([1939] 1987:500). No entanto,
(He adverte que a preservação dos monumentos do passado não é
simplesmente uma atitude "romântica" e "conservadora" e que não
contradiz o desejo das pessoas em relação a uma vida moderna.
Diz ele: "Sem nenhum transe romanesco, pode verificar-se, com
toda a lucidez e toda a objetividade, que a conservação dos
mon ume ntos não vai fatal mente de e nco ntro às necess idades do
desenvolvimento urbano. Nem é, de forma alguma, incompatível
com o desejo saudável e legítimo que têm todos os homens
esclarecidos de viver a vida moderna e criar a cidade moderna"
([1939] 1987:54). Nesse sentido, o passado, para ele, deve ser
apropriado em prol do futuro.
O proce dimen to legal por meio do qual os bens
culturais são apropriados ou oficialmente reconhecidos como
"patrimônio" é o chamado "tombamento" (o correspondente ao
termo registration, em inglês, e ao termo cl a ssem en t , em
francês). Em uma conferência na Escola Nacional de
E nge nharia, em 1939, R odrigo afi rma: " a a ção do E stado, exercida
por int ermé dio do S erviço do P atrimônio H istórico e A rtís tico
Nacional, limita-se em geral, ao to m bam e nt o dos bens, isto é, à

6 5 A APROPRIAÇÃO DA CULTURA NACIONAL


sua inscrição com as respectivas características e as observações
técnicas de importância, nos Livros do Tombo, para isso instituídos
e a cargo do servi ço. O tom bam e nt o é, pois, o ato declaratório da
incorporação de um bem ao patrimônio histórico e artístico
nacional" ([1939] 1987:51). A categoria "tombamento"
desempenha um papel crucial nessa modalidade de política de
patrimônio cultural, sendo, ainda, o principal instrumento legal
usado para que o Estado aproprie-se dos bens culturais que
integram o chamado patrimônio nacional. Uma vez que um bem
venha a ser tombado, ele imediatamente torna-se uma
<
Z
"propriedade nacional", sendo, então, inscrito em um dos Livros
\!p do Tombo. Em número de quatro, os Livros do Tombo são
o classifi cados em: L ivro do T ombo A rqueológi co, E tnogr áfico e
&
n P aisagíst ico; L ivro do Tombo H istórico; L ivro do Tombo das Bela s
rí Artes; L ivro do T ombo das Art es A plicadas (P ró-M emóri a 1982).
'^ii O "tom ba me nto" de um bem cult ural e s ua inclusã o
^ em um dos Livros do Tombo é o estágio final de um longo
Q processo. Um determinado bem cultural tem que ser proposto por
l alguém como possuidor de um certo valor, que justifique seu
reconhecimento como parte do "patrimônio" nacional. Em seguida,
ele deve ser iden tificad o e a valiado por especiali stas — arquit etos,
historiadores, et c — do SP H A N, os quais preparam um relat ório
técnico com os resultados da avaliação do bem em questão. Com
base em seu conhecimento técnico, eles recomendam ou não o
tombamento. Suas conclusões e recomendações técnicas são,
então, submet idas ao C onselho C onsult ivo do S P HA N.
O cons elho co ns ultivo não é compo sto de especiali stas
no sentido estritamente técnico desse termo. Entre seus integrantes
incluem-se diretores de museus, escritores, artistas, historiadores,
colecionadores e, desde os anos setenta, antropólogos. Trata-se de
uma posição de bastante prestígio no mundo oficial da elite
intelectual e política. Seus ocupantes são indicados pelo Presidente
da R epúbli ca e exercem a função em t ermos vi talíc ios . N ão são
pagos — exce to o gast o com despesas específi cas de des locam ento
e estadia no caso de viagens — e seu traba lho é con sc ienteme nte
jus tificado com base na idéia da "ca us a" do patrimônio.

6 6 A RE TÓRICA DA PERDA
De acordo com Rodrigo, do tombamento de
determinado bem cultural "... decorrem conseqüências e
obrigações bilaterais, comuns e especiais, para o governo e para o
proprietário da coisa tombada. A ambos incumbe, em primeiro
lugar a obrigação de zelar pela conservação dos bens que ficam

sujeitos à vigilância do serviço e, em caso algum, podem ser


destruídos, demolidos ou mutilados, nem tampouco restaurados ou
reparados sem prévia autorização especial" ([1939] 1987:51). Em
outras palavras, entre as principais conseqüências do ato formal de
apropriação nacional de um bem cultural estão várias restrições
impostas sobre os direitos de propriedade privada. Assim, o
proprietário de um bem tombado não pode demolir, reparar ou
restaurar ou nele realizar qualquer alteração sem antes obter uma
autor izaçã o oficial con cedida pelo SP HA N. O desresp eito a essa

imposição legal é classificada como crime previsto no Código


P enal Brasilei ro (ME C -S P H A N /P ró-M emóri a 1980:120). Se o
proprietário decide vender sua propriedade tombada, ele é
legalme nte obrigad o a informa r o E stado sobre a venda. O bjetos
de arte e de valor histórico não podem deixar o país sem prévia
aut ori zaç ão (ME C -S P H AN /P ró-Memóri a 1980 :111- 119 ).
Na verdade, qualquer definição pode ser pensada
como um ato de apropriação, uma tentativa de unificar, cercar ou
controlar simbolicamente o que se apresenta como heterogêneo e

sem fronteiras delimitadas. Ironicamente, as definições são elas


próprias heterogêneas e sem fronteiras, variando de acordo com o
modo como são usadas. A apropriação da cultura brasileira é,
primeiramente, uma questão de usos de definições diversas e
elásticas do termo "patrimônio cultural". Uma definição de
"pa trimô nio c ultura l" foi apr esent ada por M á rio de A ndrade, em
1936, em um projeto propondo a criação do SPHAN. Muitos
discordam quant o à influê ncia e fetiva da definição de M ário na
po líti ca do S P H A N, desde 1937 até a morte de R odrigo.

C onc ordam, no ent anto, em qu e esse projet o foi usado com o


ponto de partida para o decreto presidencial que veio a ser
assinado em 30 de novembro de 1937 (conhecido como Decreto
nQ 25). P or me io desse decret o foi oficialme nte insti tuíd o o

67 A APROP RIAÇÃO DA CULTUR A NAC IONAL


SPHAN e um conjunto de leis organizando a defesa do patrimônio
cultural brasileiro. Nele o "patrimônio histórico e artístico
na cio na l" é de finido do seguint e modo: "C ons titui o pa trimô nio
histórico e artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis
existentes no país e cuja conservação seja de interesse público,
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico,
bibliográfico ou artístico" ([1937] 1985:111). Nesse texto são
também classificados como patrimônio "...monumentos naturais,
bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger
pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza
ou agenciados pela indústria humana". Essa definição formal de
patrimônio é bastante genérica para cobrir uma vasta gama de
bens culturais. No entanto, ela veio a ser usada de modo
restritivo. Assim, a política de patrimônio cultural implementada
pelo S P H AN , entre 19 37 e 197 9, conce ntrou-se em monume ntos

arquitetônicos, religiosos e históricos1.


Ao longo de várias décadas, o SPHAN tem sido
as soc iado aos discur sos mode rnistas em art e e arquit etura. C omo
disse no capítulo dois, o SPHAN caracterizou-se por ser não
apenas uma instituição de preservação histórica, mas também uma
instituição de pesquisa na área de história da arte e da arquitetura
brasileira. Desse modo, o SPHAN desempenhou um importante
papel na institucionalização dessas disciplinas, na medida em que
sustentou pesquisas e garantiu a publicação de seus resultados.
Até muito recentemente, a maioria dos seus profissionais era
composta por arquitetos. Vários profissionais dessa área, que mais 1

1Em um relatório da Pró-memória de maio de1982, os bens culturais que viera m a ser
oficialmente reconhecidos como "pa trimônio" são classificados em onze diferentes
entradas, a maioria delas referindo-se a monumentos arquitetônicos, históricos e
religiosos católicos. São elas: 1. "arquitetura religiosa"; 2. "arquitetura civil"; 3.
"arquitetura oficial"; 4. "arqui
tetura milita r"; 5. "conjuntos e acervos urbanísti cos,
arquitetônicos e paisagísticos"; 6. "grupos arquitetônicos"; 7. "paisagens naturais e
construídas"; 8. "ruínas"; 9. "elementos arquitetônicos"; 10. "monumentos funerários";

11. "bens móveis" (Pró-Memória 198


2).
6 8 A RETÓRIC A DA PERDA
tarde vi eram a se projet ar como arqu itetos famosos — O sc ar
N iemeyer, L úcio C osta2, C arlos L eão, Afonso R eidy — es tiveram
associados ao SPHAN desde a sua criação, nos anos trinta.
Classificavam-se, então, a si mesmos como "modernistas" ou
"racionalistas" e como seguidores da vanguarda arquitetônica

européia (especialmente do arquiteto francês Le Corbusier)3,


propondo a at ualizaç ão da arq uitetura brasil eira. O S P HAN, de
certo modo, serviu-lhes como um dos espaços por meio dos quais
vieram a adquirir reconhecimento público e oficial para suas
propostas arquitetônicas (Lissovsky e Sá 1986:28; C avalcanti 1993).
Durante o período que se estende de 1937 a 1979, a
maioria dos monumentos e obras de arte tombados como
"patrimônio cultural" era considerada como representativa do
chamado barroco brasileiro4. Desde os anos trinta, o barroco tem
sido oficialmente usado como um signo totêmico da expressão
estética da identidade nacional brasileira. Outros estilos, como o
neo-classicismo, foram colocados de lado. Nos anos vinte, o *1

•' Nos anoscinqüenta, ao lado de sOcar Niemeyer, Lucio Costafoi responsável pelo
| ilano urbanístico de Brasília.
1A luta entre m
" odernistas" (ou"racional istas", como sechamavam a si mesmos) e o

estilo "neo-colon
Para alguns ia l"ets,
intér
pret eveessum impor
a luta tant
avaeassociada
est papel naform
à ação da
disputa ideologia
polític do
a a respeitoSPdo
HAN.
estilo
arquitetônico que seria oficialmente usado para representar simbolicamente a nação.
Os modernistas vencerama batalha. Um dos sinais visíveis de suavitóriaestética e
(Krlítica foi a construção do prédio doentão Ministério da Educação e Saúde, de acordo
t om um projeto "mod ernista" assinado por Lucio Costa e outros arquitetos. O projeto
foi publicamente apoiado por Corbusier, que veioao Brasil especificamente com est e
propósito (ver Lissovskye Sá 1986:17-29). A construção teve início em 1936 eo
jirédio foi finalmente inaugurado em outubro de 1945. Desde então, a administração e
«m
arquivos e biblioteca do SPHAN funcionam no oitavo andardo prédio (Ribeiro,
1945: 75-98).Essemesmo prédio ve io a ser, posteriormente, tombado como
"i i Muimento nacional".
k

* O uso do "barroco" nas várias identificações do Brasiltem funcionado, desdeos anos


li íi*ta, como uma espécie de sinal ot têmico da identidade ucltural brasileira expressa,
st tbretudo, pela arquitetura. Muitos interpr
etavam o estilo colonial barroco em

r» 9 A A PROP RIAÇÃO DA CULTUR A NACIONAL


barroco foi "redescoberto" por intelectuais "modernistas" em busca
de uma arte e uma cultura brasileira autêntica. Historiadores do
"movimento modernista" no Brasil usualmente referem-se à viagem
cu ltural reali za da po r M á rio de Andrade e outros int elec tuais ao
E stado de M inas G erais par a vis itar o que ve io mais t arde a ser

co nhe cido co mo "as cidades histór icas d e M inas " (A maral 1970 ).
A viagem era parte do esforço de intelectuais modernistas no
sentido de "rede s co brir" o Brasil. A paisagem e a arquit etura
barroca das antigas cidades coloniais mineiras desempenharam um
importante papel na obra de poetas e artistas brasileiros. Elas
eram usadas como temas para a produção de uma autêntica arte
brasileira. Cidades, casas e igrejas coloniais barrocas eram
consideradas como signos de um Brasil srcinal e esquecido, um
exemplo de vitalidade e srcinalidade cultural. Após a famosa
viagem dos modernistas, em 1924, as cidades coloniais mineiras
tornaram-se, progressivamente, um foco de atenção nacionalista5.
Em 1932, a mais famosa de ssas cidades, O uro P reto, veio a ser
oficialmente reconhecida pelo governo federal como "monumento
nacional". De 1937 em diante, após a criação do SPHAN, as

arquitetura como uma espécie de pr edecessordo estilo "moderno". Em uma entrevista


de 1986, Lucio Costa compara o estilo do Aleijadinho ao de Oscar N iemeyer(verCosta
1986: 32-59). Há uma vasta bibliografia produzida sobre o barroco no Brasil (para um
levantamento da bibliografia do ponto de vistade um historiadorda arquitet
ura, ver
Telles 1984:125-137). Alguns intérpretes sugerem que a ênfase colocada na
preservaçãode um patri môn oi barroco pelo SPHAN está associada à existência de
valores"universais" naquele estilo (Lissovskye Sá 1986:28). Nesse sentido, essaênfase
na arte e arquitetura barroca combinava com os princípios universalistas proclamados
pelos arquitetos modernistas. O problemacom essa interpretação é que out ros estilos
poderíam ser gi ualmente suados como exemplos de atualiza ção de valores "universais"
- por exemplo,o estilo "neo-clássico", que foipraticamente descartado no discurso
oficial e na política de preservaçãodo SPHAN. Por outro lado, o barroco poderia muito
bem serusadocomo um exemplo de valores "singularistas".
/

5Segundo alguns histor iadores, durant


e aquela viagem,um dos membros do grupo
teria proposto a criação de uma associação civi I com opropósito de defender e
preservara arquitetura colonial deMinas (Amaral 1970: 75). A proposta foi aceita, mas
não implement ada. O SPHAN viria a sercriado rteze anos depois.

7 o A RETÓRICA DA PERDA
"cidade s históricas de M inas " tornar am-se um import ante ce ntro do
chamado "turismo cultural". Em seu conjunto, essa área é
considerada como a mais importante concentração de arte e
arquitetura barroca da América do Sul.
Na narrativa de Rodrigo, o "patrimônio histórico e
artístico" deveria representar a nação como um todo e suas
diferent es regiões. O patr imônio é conce bido com o "na cion al" e
nenhuma ênfase é colocada explicitamente sobre quaisquer das
regiões que compõem o país. No entanto, a vasta maioria dos
monumentos tombados como patrimônio nacional pelo SPHAN de
1937 a 1938 est á situada no Estado de M inas G erais. E m 1969,
afirma Rodrigo: "a maior concentração dos monumentos que
integram o patrimônio histórico e artístico nacional está localizada
em Minas Gerais" ([1969] 1987:73). De acordo com um relatório
do S P H A N /P ró-M emória d e 198 2, setenta por cen to do patr imônio
cultural brasileiro (monumentos e obras de arte) estava situado em
M inas G erais (P ró-M emória 198 2). R odrigo jus tificou essa
concentração argumentando que, no século XVIII, mais que em
qualquer outra região do país, um número superior de
monumentos e obras de arte "com feição mais expressiva" foi
pro du z ido em M inas G erais ([1969] 1987: 73). N o entanto, tal
concentração do patrimônio cultural brasileiro em Minas Gerais
pode ser também interpretada como o efeito de uma política de
preservação histórica na qual o regionalismo é considerado como
um importante valor6. *I

6O papel de Minas Gerais na narrativa de Rodrigo é bem import ante, apesardos


princípios universaiistas com que defende o patrimôniobrasileiro como parte do
"jjatrimônio da humanidade". Aparent emente, a ênfase colocada em Minas Gerais no
I >rocesso de civilização do Brasil e na definição de uma identidade nacional talvez
esteja associada ao que um anali sta recent emente chamou de "ideo logiada
mineiridade" (Bomeny 1987; 1994) . A "mineiridade " seria uma ideologia partilhada por
diversosintelectuais,que consider avam Minas e oconjunto de val ores morais e religiosos
a ela associados com o uma metáfora centr al para oBrasil.Uma de suas expressões
I IterúriaséA voz d e M inas, livro esc rito por Alceu de Amoroso ima,
L intelectual católico
que desempenhou um papel important e na orientação da política cultural do governo
brasileiro nosanos rtinta (Lima 1945; Schwartzman; Bomenye Costa1984).

7 1 A APROPRIAÇÃO DA CULTURA NACIONAL


Além disso, nas narrativas produzidas pela
historiografia oficial, Minas Gerais é usada como o cenário do que
veio a ser considerado como o mais importante acontecimento
histórico do Brasil colonial no século XVIII: a "inconfidência
min e ira". O mo vimen to, e mbo ra tenha fr acassado, result ando na
execução e exílio de seus principais líderes, veio a ser usado
como um símbolo oficial dos ideais nacionalistas de autonomia
po lítica . N esse se ntido, na narrati va de R odrigo, M inas é
considerada como uma espécie de lugar sagrado da identidade
nacional bras ileira. M uitos dos seus monument os a presentam uma
dimensão significativa não somente do ponto de vista estético
como também em virtude de suas associações de natureza cívica.
A religião, especificamente o catolicismo, desempenha
um papel crucial na narrativa de Rodrigo, para quem ela assegura
a integração da sociedade brasileira, desde os tempos coloniais.
D iz el e: "D o ideal e do fervo r religios o, que inspir aram no ssas
antigas populações, contribuindo notavelmente para firmar o
sentimento de solidariedade entre os habitantes deste imenso país,
as igrejas levantadas nos sítios mais diversos e distantes, em
número prodigioso, perduram como testemunhos sublimados"
([1961]) 1987:57). A ênfase colocada nos monumentos religiosos
(especificamente igrejas católicas) pela política do SPHAN foi
notável. De 1937 a 1982, o SPHAN tombou 936 monumentos e
objetos como "patrimônio nacional". Os monumentos classificados
como "arquitetura religiosa" ultrapassavam todos os outros. Até
1982, havia 384 monumentos religiosos; destes, 216 eram "igrejas"
(especificamente "igrejas católicas coloniais"). Além do seu valor
arquitetônico, esses monumentos eram considerados como signos
de uma identidade religiosa brasileira.
Eu havia dito, linhas atrás que, na narrativa de
Rodrigo, a apropriação da cultura nacional é, principalmente, a
apropriação de um passado exemplar. Esse passado se faz
viáualmente presente por meio de monumentos arquitetônicos,

históricos e religiosos, em sua maioria situados numa determinada


região do país. M ais que isso, e sse passado é con ce bido c om o
barroco e católico. No entanto, esse passado colonial brasileiro

72 A RE TÓR ICA DA PE RDA


não é celebrado em si mesmo, mas resgatado em prol do futuro.
P ara R odrigo, o passado ou a "tra diç ã o " dese mpenha um papel
central em qualquer processo de civilização. Assim, a fim de que
se leve adiante o "esforço de civilização" no Brasil, seu passado,
enquanto uma dimensão exemplar, deve ser protegido e

preservado.

■ Referência Cultural e Produção Cultural

A lguns dos me us inf ormant es — es pecialment e aquel es


ident ificados co m a narrat iva de Aloís io — afirmam que o
co nc eito de pa trimô nio propost o por M ário de A ndr ade em seu
projeto de 1936 não foi o que veio efetivamente a inspirar a
po lítica do S P H A N , de 1937 a 1979 . C omo most rei no ca pítul o

dois, A loís io opõe sua próp ria narrat iva à de R odrigo e desc reve
M á rio co mo um ant ecessor. P ara A loísio, a noção d e "patr imô nio
c ultura l" conc eb ida por M ário est ava muit o ma is próxima de uma
concepção democrática e pluralista do que a que veio a inspirar a
política implementada por Rodrigo.
Segundo a visão dos que se identificam com o
discurso de Aloísio, a política de patrimônio cultural no Brasil
sofre "profundas mudanças", a partir de 1979. Esse ano é
considerado um "marco" na história das políticas de patrimônio
cu ltural no Brasil . Em um li vro produz ido pela então S P H A N/P ró-
M em ória, e m 1980, onde s e elabo ra uma históri a su cinta dessas
políticas, publicando-se em anexo uma série de documentos
relativos a diversos momentos dessa história, lê-se o relato do que
foi a "fusão" dos principais órgãos de preservação então existentes
no âmb ito do g overno feder al: "O ano d e 1979 f oi de cisivo para
o IP H A N (Inst ituto do P atrimônio H istórico e A rtís tico N ac ional), o
P CH (P rograma d e C idades H istóricas ) e o C NR C (C entro Na cional
de R eferência C ultural) e, sem dúvida, c on stitui um marco na
trajetória da preservação e valorização do patrimônio cultural no
Brasi l. C om a cri aç ão do P CH , o IP H A N passou a cont ar, pel a
primeira vez, com recursos financeiros mais compatíveis com suas
finalidades. Em princípios de 1978 estabeleceu-se o consenso de

7 3 A APROPRIAÇÃO d a cultura naci on al


que, para bem gerir esses recursos, havia a necessidade de uma
reforma administrativa do órgão, e, para isso, foi assinado
convênio de assistência técnica com a então SEMOR (Secretaria
de M ode rniza çã o e Refor ma A dminist rativa da SE P LAN/ P R). O
diagnóstico que, em conseqüência, foi elaborado não apenas veio
confirmar tal consenso como, na realidade, apontou, de forma
dramática, a virtual situação de inviabilidade em que se
encontrava a instituição. Dessa forma, quando a 27 de março de
1979, ocorreu, pela segunda vez, num período de nada menos de
quar enta e três an os, mudança na direçã o do IP H A N — sendo o
arquiteto Renato Soeiro, que ingressara no órgão em 1938,
substituído pelo professor Aloísio Sérgio de Magalhães,
C oordenador G eral do CN R C — estavam dadas as pré-condições
para as profundas mudanças que iriam, então, se processar no
âmbito do IPHAN-PCH-CNRC" (MEC-SPHAN/Pró-Memória
1980:51). Esse mesmo texto relata, ainda, que, em 1979, foi
propost a a criaç ão da F undação P ró-memóri a, a qual veio a ser
agregada, no ano seguinte, à estrutura institucional do então
IP H A N (como uma espécie d e braço ope racional de sse órgão),
ambos existi ndo sob a est rutura buroc rática do ent ão M inis tério da
C ultura.
Na visão de Aloísio, após várias décadas, a SPHAN
não poderia mais ser considerada como o instrumento institucional
mais apto a desempenhar a função de proteger e preservar o
patrimônio cultural brasileiro. Em seu discurso, o Brasil é
apresentado como uma sociedade modernizada, industrializada e
altamente complexa, cujos problemas culturais não mais poderíam
ser enfrentados e resolvidos satisfatoriamente nos limites
inst ituciona is e no s qu adr os da políti ca tr adiciona l do S P H AN . Em
um tex to de 1979, afirma A loís io: "N es tes 42 anos de exis tên cia,
a ins tituiçã o (o S P H AN ) prestou g randes s erviços à pres ervação e
à restaur ação de monume ntos nacionais d e va lor hi stóri co e
arquitetônico. Reuniu também inestimável acervo de

conhecimentos e metodologias especializadas. Tornou-se credora


do reconhecimento nacional. A instituição permanece, entretanto,
voltada sobretudo para os bens culturais imóveis, de natureza

74 A RE TÓRICA DA PERDA
histórica, religiosos ou leigos, a que se juntou posteriormente o
conceito de sítios e conjuntos arquitetônicos relevantes"([1979]
1985:54). Ainda que reconheça o papel desempenhado por essa
instituição na preservação de monumentos históricos e
arquitetônicos, ele assinala o fato de que a política por ela

implementada não mais expressaria a complexidade e a


diversidade do patrimônio cultural brasileiro.
No discurso de Aloísio, a apropriação da cultura
nacional segue dois caminhos. Em um deles, o foco está no
passado. Nesse caso, não se trata do passado exemplar da
concepção de Rodrigo, mas de um passado concebido como um
instrumento, uma referência a ser usada no processo de
desenvolvimento econômico e cultural. Ele enfatiza a idéia de
uma "trajetória" histórica, na qual o passado é importante na
medida em que ele é uma garantia de "continuidade" de um
processo cu ltural. D iz ele: " R elembrar a import ân cia da
continuidade do processo cultural a partir de nossas raízes não
representa uma aceitação submissa e passiva dos valores do
passado, mas a certeza de que estão ali os elementos básicos com
que contamos para a conservação de nossa identidade cultural"
(Magalhães [1977] 1985:47). Segundo Aloísio, o passado
desempenha um papel especial em uma nação concebida como
em um "processo ininterrupto de transformação" e cujo futuro tem
de ser con struído . Em suas própri as palavr as: "A co ntinu idad e da
trajetória de uma cultura em processo ininterrupto de
transformação como a nossa não pode prescindir de constante
aferimento dos valores de anterioridade a fim de identificar os
caminhos do tempo projetivo" ([1982] 1985:129). Os bens
culturais associados ao passado são por ele classificados como
"bens patrimoniais" ([1981] 1985:133). No entanto, eles não
se riam es tritame nte 'coi sas do passado' . D iz ele: "O tem po c u l
tural não é cronológico. Coisas do passado podem, de repente,
tornar-se altamente significativas para o presente e estimulantes do
futuro" ([1981] 1985:67). Os "bens patrimoniais" são, assim,
concebidos como aquela espécie de bens culturais já estabelecidos
e amp lame nte r eco nhe cidos com o tais: livros, obr as de arte,

75 A APROP RIAÇÃO DA CULTUR A NACIONA L


coleções em bibliotecas, museus, etc. Aloísio enfatiza ó papel
desses bens enquanto uma necessária "referência cultural" no
desenvolvimento de uma "autêntica" cultura brasileira.
Os "bens patrimoniais", no discurso de Aloísio, fazem
parte de uma categoria mais ampla: os "bens culturais". A
concepção tradicional de um "patrimônio histórico e artístico"
usado pela SPHAN por várias décadas é substituída por uma
concepção de "bens culturais" que cobriría diversas espécies de
objetos e atividades. Em um texto no qual propõe uma nova
concepção de patrimônio, ele afirma que "... o conceito de bem
cultural no Brasil continua restrito aos bens móveis e imóveis,
contendo ou não valor criativo próprio, impregnados de valor
histórico (essencialmente voltados para o passado), ou aos bens de
criação individual espontânea, obras que constituem o nosso
acervo artístico (música, literatura, cinema, artes plásticas,
arquitetura, teatro), quase sempre de apreciação elitista. Aos
primeiros deve-se garantir a proteção que merecem e a
possibilidade de difusão que os torne amplamente conhecidos.
Deles podem provir as referências para a compreensão de nossa
trajetória como cultura e os indicadores para uma projeção no
futuro. Q ua nd o aos segundos, bast a ass egurar -lhes a libe rdad e de
expressão e os recursos necessários à sua melhor concretização.
P ermeando ess as duas cat egorias, existe vasta gama de bens —
procedentes sob retudo do faz er pop ular — que po r estarem
inseridos na dinâmica viva do cotidiano não são considerados
como bens culturais nem utilizados na formulação de políticas
econômica e tecnológica. No entanto, é a partir deles que se
afere o potencial, se reconhece a vocação e se descobrem os
valores mais autênticos de uma nacionalidade" ([1979] 1984:42).
Em seu discurso, a ênfase está naquela categoria de "bens
culturais" considerados como parte integrante da vida cotidiana de
distintos segmentos da sociedade brasileira. Essa categoria inclui
atividades pré-industriais, artesanato, rituais, costumes, esportes,

uma vast a gama d e objetos e at ividade s que são parte de


contextos sócio-culturais específicos. Esses bens desempenham um
papel cruc ial em su a narr ativa: eles são produz idos pe lo po vo e,

7 6 A RETÓR ICA DA PERDA


nessa condição, são considerados como uma fonte de
autenticidade. A categoria "povo" é entendida como o conjunto
dos diversos segmentos sociais e comunidades locais que
compõem a sociedade brasileira. Em sua narrativa, eles são os
personagens principais.

No ano de 1975, uma instituição foi criada, no âmbito


do governo f ederal, por A loísio e s eu grupo: o C NR C — C entro
Nacional de Referência Cultural. Conforme já tivemos
oportunidade de indicar, essa instituição veio a ser posteriormente
integrada ao SPHAN. Sua criação, naquele ano, obedecia ao
propósito de estudar e propor uma política alternativa de
patrimônio cultural que o novo contexto histórico por que passava
a sociedade brasileira estava a exigir. Segundo Aloísio, o objetivo
do CNRC, programa interministerial de trabalho, era "...traçar um
sistema referencial básico para a descrição e análise da dinâmica
cultural brasileira, tal como é caracterizada na prática das diversas
artes, ciências e tecnologias" (Magalhães [1979] 1985:130). De
1975 a 1979, o CNRC desenvolveu diversos projetos culturais que
exemplificavam a nova concepção de "patrimônio cultural"
defendida po r A loís io. Q ua tro pri ncipa is áre as eram cobert as po r
esses projetos: 1. A rtes anato; 2 . L evantament os S óc io-C ulturais; 3.
H istóri a da T ec no logia e da C iência no Brasil ; 4. L evantament os
de Documentação sobre o Brasil (Magalhães 1985:57-62). Os
projetos sobre artesanato têm como propósito o "conhecimento dos
processos de produção, comercialização e consumo; das matérias
primas e técnicas artesanais." (1985:57). Os projetos de
levantamentos sócio-culturais visam ao seguinte objetivo:
"conhecimento dos processos de transformação sócio-cultural,
es pecial mente c om vistas ao es tudo de mo delos alterna tivos de
desenvolvimento" (1985:59). Já os projetos classificados como
"história da tecnologia e da ciência" têm os seguintes propósitos:
"conhecimento das técnicas e do saber tradicional artesanais;
compreensão das economias pré-mercado e estímulo à descoberta
de tecnologias alternativas nas atividades de transformação do
país" (1985:60). Finalmente, os projetos classificados como
"levantamentos de documentação sobre o Brasil" propõem

7 7 A APROPR IAÇÃO DA CULTURA NACIONAL


desenvolver as seguintes atividades: "levantamento, referenciação,
preservação e difusão de documentação sobre o Brasil.
E xperi ências de ad equaç ão, ao usuário, de sistemas de
arquivamento e informação" (1985:61). Os projetos realizados pelo
CNRC constituíram a base para a nova política de patrimônio
impl ementada pela S P H A N /P ró-Me móri a, a part ir de 19 79.
No discurso de Aloísio, a tarefa não era apenas a de
identificar, tombar, restaurar e preservar monumentos. Uma vez
que se ampliava o conjunto de objetos e atividades considerados
como "patrimônio cultural", mudava o modo como lidar com eles.
N a na rrativa de R odrigo, o instr ume nto leg al do tom ba me nto
desempenhava um papel central no processo de apropriação da
cultura nacional. Embora ele continue ainda hoje a ser usado
como um instrumento de proteção e preservação do patrimônio
cultural brasileiro, no discurso de Aloísio ele torna-se

crescentemente problemático. Afinal, esse instrumento funciona


razoável mente bem quando os objet os de a propri aç ão são
monumentos e obras de arte enquanto peças exemplares de
civilização e tradição. Mas o que se deveria fazer quando o bem
cultural a ser preservado não é um prédio nem uma ruína e nem
[um objeto de arte, mas atividades culturais tais como práticas
! artesanais, rituais, ce lebraçõ es religiosa s, etc?
Um bom exemplo para pensar os problemas gerados
pela apropriação dessa categoria de bens culturais é o caso de um
terreiro de candomblé, em Salvador, tombado como "monumento
nacional", em 1984. Aloísio já havia morrido e quem então dirigia
a S P H A N /P ró-M emór ia era M arcos V il laça. Mas o caso é um
exemplo dramático dos efeitos da concepção de patrimônio cul
tural que inf orma va a po lítica inaugurada por A loísio. C ons iderado
o primeiro terreiro de candomblé instalado no Brasil, veio a ser
reconhecido como um elemento crucial na preservação da
identidade religiosa de determinados segmentos sociais no Brasil,
es p^cialmente negros. Ide ntifica do à tradiçã o N agô, o T errei ro
Casa Branca é considerado por muitos como exemplo da "pureza"

dessa tradição (Dantas 1989). Antropólogos foram chamados a dar


pareceres sobre a importância histórica e sócio-cultural do Casa

7 8 A RETÓRICA DA PERDA
Branca e recomendaram enfaticamente o seu tombamento em
função de estar associado à memória cultural dos negros e dos
brasileiros em geral. Alguns arquitetos fizeram uma avaliação
estética do prédio e recomendaram também, por razões
arquitetônicas, o seu tombamento. No entanto, o prédio onde

funciona ainda hoje o Terreiro Casa Branca, longe de configurar-se


como um monumento arquitetônico no sentido estrito do termo,
não teve a mesma acolhida por parte de muitos outros arquitetos,
que não viam razão para justificar o seu tombamento como
mon umento nac ional. O T erreiro C asa Branc a func iona em um
velho e decadente prédio situado numa área de periferia da
cidade de Salvador que, então, valorizava-se em função de
investi mentos imo biliários . O terreno onde es tá o terre iro não er a
de propriedade daquela comunidade religiosa e o seu proprietário
legal desejava retomá-lo para vendê-lo a uma companhia
imo biliária. E videntement e, o terreno é cons iderado sagrado e a
mudança do terreiro para um outro local, depois de séculos ali
instalado, era vista como bastante problemática. Essa circunstância
mobilizou a comunidade religiosa do Casa Branca em seus
esforços no sentido de pressionar as autoridades locais e nacionais
para que reconhecessem o terreiro como "monumento nacional" e,
assim, protegê-lo do desaparecimento. Intelectuais associados ao
movimento negro sustentaram a causa da comunidade e deram ao
caso a dimensão de um embate político e cultural de alcance
nacional.
De pois de um a tensa reuni ão do C onse lho C ons ultivo
da S P H A N , em S alvador, n a tarde de 3 0 de ma io de 1984, o
T erreiro C asa B ranca ve io a ser oficialmente tom ba do como
monumento nacional. Nada similar havia ocorrido até então na
história do patrimônio cultural no Brasil e o caso tornou-se o foco
de um intenso debate entre defensores e adversários daquela

decisão. Estes últimos questionavam como seria possível o


"lombamento" de um espaço que abrigava algo vivo e em
permanente mudança, um culto religioso popular com seus
diversos rituais. O tom ba me nto de um pr édio, uma ruína, ou um
objeto pressupõe sua permanência e imutabilidade. Mas como,

7 9 A A PR OPRIAÇÃO DA CULTURA NACIONA L


perguntavam, poderia um terreiro de candomblé ser mantido de
forma inal terada? C omo po de riam as i nevit áve is alteraçõe s
impostas por seus integrantes sobre o meio ambiente, o prédio e
os objetos, em função dos usos cotidiano e ritual do espaço do
terreiro, ser em impedidas ou controladas? O s que apo iavam a
decisão argumentavam que, afinal de contas, as igrejas coloniais
barrocas sempre foram espaços de atividades religiosas e que isso
jamais se configuro u como um obstác ulo ao seu tom bamento
como "monumentos nacionais". Do seu ponto de vista, os que
atacavam a decisão manipulavam um argumento com o simples
propósito de impor sua visão "conservadora" e "elitista" do
patrimônio cultural brasileiro. Os adversários respondiam que o
ato de tombamento do terreiro havia sido a expressão de uma
visã o "po pu lis ta " da cu ltura e não pode ria ser toma da a sério.
Aceitavam que o Casa Branca deveria ser protegido e preservado,
mas nunca como um "monumento nacional". Os debates, além de
sua evidente dimensão política, configuravam algumas fronteiras
entre indivíduos e grupos identificados com diferentes concepções
de patrimônio cultural. De um lado, profissionais do patrimônio
identificados com o discurso de Rodrigo e a política tradicional da
SPHAN, com sua ênfase na "tradição" e na "civilização":
arquitetos, historiadores, críticos de arte. De outro, profissionais do
patrimônio identificados com o discurso de Aloísio e a nova
política de patrimônio, muitos deles historiadores e antropólogos.
O problema , no ent anto, cent rava-se na própria idéia
do "tombamento" e na relevância das noções de "pluralismo
cultural" e "democracia" no discurso de Aloísio sobre o
patrimônio cultural. Nesse discurso, um dos propósitos da política
de patrimônio cultural é não apenas a apropriação de bens
cult urais em nome da "na çã o" — com o era n o caso de R odrigo
— mas a devoluç ão desses b ens aos seu s autênt icos propriet ários :
as comunidades locais. A apropriação era concebida como
reapropriação de bens culturais por diversos segmentos populares
da sociedade brasileira. Assim, no tombamento do Terreiro Casa
Branca, o monumento foi preservado de modo a assegurar que
seus autênt icos donos — a comun idade religios a afro-bras ileira

oo A RE TÓR ICA DA PERDA


loca l — pudessem reapropriar-se do que estava sob ameaça de
perder-se.
Esse modo de interpretar a apropriação pressupunha
um paradigma diferente de relações entre preservacionistas e a
população. A ênfase era deslocada para uma relação e

comunicação direta entre preservacionistas e população local. A


forma centralizada e autoritária de controle exercida pela política
tradicional do SPHAN no processo de defesa e preservação do
patrimônio é criticada por Aloísio e a população passa a ser
pensada como um agente ativo nesse processo.
A estratégia de apropriação da cultura nacional
pressuposta no discurso de Aloísio trazia como conseqüência uma
representação da nação brasileira como uma totalidade cultural
diversificada e em permanente processo de transformação. Essa

totalidade é concebida em termos democráticos, composta por


diferentes segmentos locais. Em seu discurso, a ênfase é colocada
na "cultura popular" e no papel desempenhado pelo processo de
formação de um "caráter" nacional brasileiro. Aquela totalidade
existe em uma "trajetória" histórica de desenvolvimento. Segundo
ele, a preservação dos "bens patrimoniais" desempenhou o papel
de assegurar a continuidade dessa trajetória e a "autonomia" de
um desenvolvimento baseado em valores nacionais "autênticos".
Nesse sentido, a "referência cultural" e a "produção cultural" são

considerados como os dois lados de uma mesma moeda.

■ Ap rop riaçã o e' o papel das metáforas vi suais

E timologi came nte, "pa trimôn io" vem do lati m patrim onium
e está associado à idéia de uma propriedade herdada do pai ou
de outro ancestral. No contexto das narrativas nacionalistas de
preservação histórica do Brasil, a palavra é usada para significar
uma determinada espécie de "propriedade nacional". Na verdade,
esse não é um procedimento específico do Brasil. Em um estudo
sobre nacionalismo e política cultural em Québec, Handler (1988),
baseando-s e em M acP herson (1962 ), suger e uma relaçã o entre as
metáforas de propriedade e o "individualismo possessivo" do

81 A A PR OPR IAÇÃO DA CULTUR A NACIONAL


século XVII. De acordo com essa ideologia, a "propriedade" é o
que define a pessoa. Em outras palavras, sou um indivíduo, no
sentido moderno do termo, na medida em que sou proprietário de
algum bem. Assim, as nações modernas, que são "indivíduos
coletivos" ou "coleções de indivíduos" (Dumont 1970; 1985; 1992)
individualizam-se ao assumirem suas propriedades, particularmente,
suas propriedades culturais, seus "patrimônios". Em outro estudo
antropológico, Segai (1987) usa o termo "apropriação" para
interpretar o uso da "cultura popular" por intelectuais e políticos
em Trinidad-Tobago com propósitos de identificação nacionalista.
No presente estudo, "apropriação" é usada como uma
metáfora para descrever diferentes formas de objetificação
nacionalista. Em termos gerais, a apropriação implica em
transformar o outro no mesmo, o diferente no idêntico, o que está
disperso no que vem a ser concentrado, o que existe sem

fronteiras em uma entidade dotada de fronteiras bem delimitadas.


A apropriação de traços culturais por intelectuais e políticos
nacionalistas para "representar" a nação é uma estratégia narrativa
por meio da qual esta vem a se configurar simbolicamente como
uma entidade individualizada, integrada e dotada de limites bem
estabelecidos. Em termos histórico-sociológicos, essa estratégia é
coerente com o que Nobert Elias chamou de "processo
civilizador" (1990; 1993) e, particularmente, com o processo de
integração territorial, social e simbólica que caracteriza a
formação das modernas sociedades nacionais (1972).
Intelectuais e políticos nacionalistas acreditam que os
patrimônios culturais existem como uma "expressão" de algo mais
primordial, isto é, a própria nação, sua história e sua identidade.
Esse algo mais primordial, no entanto, somente é acessível por
meio de sua representação, isto é, seu patrimônio cultural. Nesse
sentido, a nação existe apenas por meio dos fragmentos que
compõem esse patrimônio. É a apropriação do patrimônio cultural
qde tem como efeito a representação da nação como uma
entidade individualizada.

A expressão "patrimônio cultural" é usada para


designar objetos no sentido mais geral desse termo: prédios, obras

a 2 A RETÓRICA DA PER DA
de arte, monumentos, lugares históricos, relíquias, documentos; e
diferentes modalidades de práticas sociais objetificadas enquanto
bens culturais: artesanato, rituais, festas populares, religiões
populares, esportes, etc. Enquanto objetos ou práticas sociais
o bjeti fica da s , são todos apropri ados co m o propó sito de serem
exibidos e contemplados. É nesse sentido que a metáfora da
apropriação implica o uso de metáforas visuais. Em termos gerais,
o efeito da apropriação é a cultura "como uma coisa" (Handler
1988) ou "co m o e xibiçã o " (M itch ell 1989), imp lica nd o o uso de
metáforas oculares. É por meio da exibição desses objetos e
práticas sociais objetificadas que é produzido o "efeito de
realidade" (Barthes 1988: 141-148) no contexto das narrativas do
patrimônio cultural. Esses objetos e práticas objetificadas

au ten ticiam o 'rea l" produ z ido por essas narrativas. O que dizem
é: 'N ós s omos reai s, tan to quan to a realidade que representamos'.
Seu propósito é persuadir os expectadores da realidade daquilo
que repres entam: a nação, em sua inegável co nc retude .
Enquanto uma forma de alegoria visual, o patrimônio
cultural tem uma dimensão epistemológica e histórica. Os objetos
e práticas objetificadas que o integram são usados não apenas
para autenticar o 'real' tal como aparece nas narrativas do
patrimônio; eles são também usados para autenticar uma certa
metáfora para o conhecimento. Conforme diversos autores têm
assinalado, a visão tem sido uma metáfora privilegiada para o
conhecimento na moderna cultura ocidental (Dewey 1929;
Heidegger 1977; Foucault 1972; 1977; Rorty 1979; Yates 1966;
Benjamin 1969; Fabian 1983; Tyler 1987). A ênfase na visualidade
está implícita nas modernas estratégias de objetificação cultural.
Nas palavras de Stephen Tyler: "...a hegemonia dos objetos
implica a hegemonia da visualidade como meio de conhecimento/

pensamento"("...the hegemony of things entails the hegemony of


lhe visu al as a means o f kn o w in g/thin kin g") (1 987:1 50 )7. O s
objetos que integram o patrimônio - como os objetos de qualquer

7No entanto, Tyler, assimcomo Handler(ver capítulo um)aceita a idéia de Whorf


segundo a qual hings,
"t both asfact and concept, are hegemonicin StandardAverage

a 3 A APROP RIAÇÃ O DA CULTURA NACIONAL


co leç ão - são resgatados, restaurados e preserv ados basicame nte
para serem exibidos. Sua exibição autentica não somente o quê
eles representam, mas, também, o como eles representam. E trata-
se de uma representação visual, um certo modo de conceber o
conhecimento como visão. A autenticação do 'real' histórico ou
antropológico é também uma autenticação epistemológica:
verdadeiro porque real, real porque concreto, porque visualmente
experiment ado. O patr imônio cu ltural pode ser entendido co mo uma
alegoria visual em dois sentidos: pelo uso de meios visuais; mas,
também porque, enquanto alegoria, ele ilustra e reproduz o princípio
epistemológico do conhecimento como um produto do olho.
Em ambas as narr ativas, de R odrigo e Alo ís io, a
apropriação do patrimônio cultural brasileiro é simbolicamente
viabilizado por meio de metáforas visuais. Os vários itens que o
compõem são classificados como "bens culturais". Podem ser
relíquias, casas, igrejas, cidades, lugares, monumentos,
documentos, práticas sociais objetificadas, etc. São todos, no
entanto, visualizados enquanto "coisas", enquanto "objetos" no
sentido mais geral do termo, enquanto entidades existindo por si
mesmas e pré-exist entes a qualqu er clas sificaç ão . O se ntido de
existirem por si mesmos, independentemente de qualquer
classificação, é produzido pelo uso de metáforas visuais ao serem
apropriados em nome da nação.

patrimônio é Olongo
processo
e se de apropriação
desdobra desdedos it ens
a sua q ue comp õe m o
identificação,
classificação e avaliação até o momento de seu tombamento e
posterior exibição enquanto "patrimônio". Ao longo desse
processo, metáforas visuais desempenham a função de transformar
esses itens em "bens culturais". Objetos antigos, prédios ou

European Language and h


t ought" (Tyler 1987:149). iM
nha sugestão é ade que essa
"hegemonia" seria melhor pensada como um problema de usos contextuais dessas
línguas, ao invés de uma inevitável consequência de uma lógica cultural e linguística.
Se levarmos mu ito a sério essa 'lógica' teremos de nos pergun
tar, afinal, como é
possível que, usando a língua inglesa, francesa ou portugueesa, nós possamos, ainda
assim, questionara objetificação cultural.

» 4 A RE TÓRICA DA PERDA
espaços usados com propósitos práticos cotidianos são
transformados em "relíquias", "monumentos" e "lugares históricos".
P ráticas s ociais div ersas são redescri tas co mo "costumes " e
"tradições". Esse conjunto de itens são objetificados como "bens
culturais" num processo simbólico, onde está pressuposta a
visual idade co mo forma privi legia da de pe rcepçã o8.
No caso da narrativa de Rodrigo, a apropriação do
"patrimônio histórico e artístico é realizada pela visualização dos
itens qu e o co mpõ em enquanto " mo num entos ". C onfor me mostr ei
na pr imeira part e dest e cap ítulo, a po lítica do S P H A N , de 1939
até 1979, enfatizou fortemente a proteção, preservação e a
restauração de monumentos arquitetônicos de natureza histórica e
religiosa. Eles eram concebidos por Rodrigo como os emblemas da
"tradição" e da "civilização" no Brasil. Sua função seria a de
ensinar à população valores tais como a unidade e a permanência
da nação. Nesse sentido, o Brasil era visualizado por meio de
seus monumentos arquitetônicos históricos e religiosos.
O "pa trim ô nio hist órico e art ís tico" de R odrigo pode
ser pensado como um conjunto de metáforas visuais por meio das
quais o Brasil é culturalmente individualizado. Uma metáfora
central nesse discurso é o "monumento". Nesse contexto, a
própria nação é vista como se fosse um monumento, como uma
entidad e un ifica da e transcendent e. O u me lhor: a nação é vista a
partir de uma perspectiva unificada e globalizante assumida por *1

0A distinção que estouelaborando entre esses itens enquanto objetos, atividades,


mlíquias, monumentos, rituais, tradições, etc. toma como pontode partida a elaborada
| x>r Heidegger entre ser
es que são "re ady-to-hand"Zuhandenseit
( ) e aqueles que são
"present-at-hand"V(orhandenheit) (1962:91 -148). Na terminologia heidegger iana,
"ready-to-hand" é uma palavra para objet os que existem emermos
t de uma relação
1xagmática com seus usuários - po r exemplo,um martelo. áJ a expressão "present-at -
hand" é o termo para objetos que são pensados como existindo por si mesmos,
hv lependentementede qualquer relação prag mática -por exemplo,um objeto
k'
qi brado,
objet
os, masouoobjetos de especulação
movimento entre diferenteteórica.
s usos ouEssas palavras
diferentes não
interpret designam
ações 'tipos' de
de seres.
No caso dos objetos clas
sificados como "present-at -hand", as metáforas visuais omam-
t
secruciais para seuentendimen to.

o 5 A APROP RIAÇÃO DA CULTURA NAC IONAL


determinada elite. A metáfora do monumento está obviamente
associada ao papel do passado no discurso de Rodrigo. Do seu
ponto de vista, o passado deve ser apropriado como uma fonte de
auto-conhe ciment o e ident ificaçã o para a nação — um paradi gma
próximo ao que inspirou as chamadas "tradições inventadas" do
século XIX, descritas por Hobsbawn e outros (Hobsbawn and
R anger 1983; K os elleck 1979; H utton 1981; 1987; O z o uf 1976;
Augulhon 1979)9. A apropriação do passado no discurso de
Rodrigo é realizada com o propósito de civilizar ou de realizar
uma "obra de civilização" no Brasil. Assim, de modo a tornar-se
civilizado, o Brasil teria de relembrar seu passado ou tradição e,
nesse processo, monumentos e obras de arte desempenham um
papel especial. Monumentos barrocos coloniais eram exemplos
privilegiados para inspirar a vida de homens e mulheres no
presente. Considerados monumentos no sentido clássico do termo,

isto é, pela sua exemplaridade cultural e estética, eles


materializavam a "tradição", fonte segura de uma "autêntica"
identidade nacional10.

9Obviamente a expressão "tradições inventadas" aqui utilizada não implica em


endossaro uso que delaaz f Hobsbawn em seu conhecido livro (1983). Penso que a
expressão, tal como ele a usa, é equívoca,pois supõe tradições 'autênticas' ou 'não-
inventadas'. Na verdade todas astradições são invent adas: não no sentido de quesejam
'artificiais' ou 'inautênticas', mas no sentido de que não exist
e qualquer significadosem

mediações, qualquer significado primordial que delas po


ssa serresgatado. A distinção
feita por Hobsbawn ecoa o velho dualismocidental
o ent
re "escrita" e "fala' (Derrida
1973; 1976; 1981 a).

10Seria possível argumentar que a narrativa de Rodrigo segue o paradigma "clássico"


da história, na qualesta é concebida como "mestra da vida" e o passado tomado como
um exemplo a i luminar o futuro. Esse paradigma é oposto ao "moderno conceito de
história", não mais conce bida como "MagisterVitac" e emque o passado não
desempenha mais qualquer papel pedagó gico na constr
ução do fut
uro, umavez que
não podeserprevisto (Koselleck 1985) . No entanto, ainda queRodrigofaça usodo
passado como exemplo, seu propósito evidentemente não é urna cíclica repetição da
história - como seria o caso num contexto pré-modemo - ma s a construção do futuro
de uma nação moderna cujo futuro não é visto co mo pré-determinado.

86 A RET ÓRICA DA PER DA


No discurso de Aloísio, categorias como "povo",
"segmentos sociais", "comunidades" e outras são usadas para
objetificar a sociedade brasileira enquanto uma entidade plural.
São elas os protagonistas de sua narrativa. A nação é visualizada
não de modo monumentalista, mas como uma pluralidade de

grupos sociais, segmentos, comunidades e suas respectivas


culturas, compondo um quadro marcado pela heterogeneidade. Seu
discurso ecoa uma visão antropológica ou etnográfica da cultura,
incluindo como "patrimônio" diversas espécies de objetos e
práticas que integram o cotidiano de diferentes segmentos sociais.
Mesmo os monumentos e relíquias, classificados como "bens
patrimoniais", são igualmente considerados como parte da vida
cotidiana da população. Nesse sentido, existiríam tantos 'passados'
quan to grupos sociai s. O passa do, em cont raste c om R odrigo, não

é considerado como uma fonte privilegiada de auto-conhecimento


e identificação. Antes, é concebido como um instrumento, uma
"referência" a ser pragmaticamente utilizada no processo de
produção cultural e na garantia da continuidade da trajetória
histórica da nação.

87 A A P R O PR I A Ç Ã O D A C U L T U R A N A C I O N A L
Capítulo Quatro

■ A RETÓRICA DA PERDA

" O que o proje to gove rnam ental te m em vis ta é

p o u p a r à N a ção o p r eju ízo ir repa rável d o p ereci m en t o

e da eva são d o qu e há d e m ais p r eci o so n o se u

pat rim ônio. Grand e part e das obras d e arte m ais

val ios as e dos b ens d e m ai or in teres se his tórico,

d e q u e a col eti vi d a d e bra sil eira era depos it ári a, t êm

des ap ar ec id o ou se arruin ado irrem ediav elm ent e, em

con sequ ên cia da in é


rcia d os p o d er es p úb l i cos e

da ig no râ ncia , da n egl ig ên cia e da cob iça d os

pa rt icul ar es . A sub sistência des sas m es m as

circun st ância s am eaça, poi s, gr av em ent e o qu e ainda

res ta da s noss as ri q u ezas ar tíst icas e hi st óricas" .

Rodrigo M elo Fran co de Andrade

" Um dos proble m as c om que se d efrontam os

p a íses no m un do m odern o éa perd a da i dent ida de

cul t u ra l , i st o é, a p r og ress i v a r ed u ção d o s va l or es

q u e lh es são pr ópri os, de p ec u li a ri d a des qu e lhes

dif ere nciam as c ulturas " .

A l o ísio M a g a l h ães

8 8 A RETÓ RICA DA PERDA


As práticas de preservação histórica nas modernas
sociedades nacionais estão associadas a narrativas que se
configuram como respostas a uma situação social e histórica na
qual valores culturais são apresentados sob um risco iminente de
desaparecimento. Os intelectuais que se dedicam a pensar esse
tema assumem tal situação como um dado, e vêem a perda do

chamado "patrimônio cultural" como um processo histórico


objetivo, desdobrando-se no tempo e no espaço. Em suas
narrativas, a perda pressupõe uma situação srcinal ou primordial
de integridade e continuidade, enquanto a história é concebida
como um processo contínuo de destruição daquela situação. Sua
missão é, consequentemente, definida como a de proteger aqueles
valor es ameaçados e redimi-l os em uma dimensã o de
permanência e transcendência.
No entanto, o processo de perda e desintegração desse
patrimônio é, de certo modo, propiciado pelas próprias narrativas
partilhadas por esses intelectuais. Na medida em que, em nome
da nação, de um grupo étnico ou de qualquer categoria coletiva,
esses intelectuais, por meio de políticas de Estado, reapropriam-se
de múltiplos e heterogêneos objetos e os recontextualizam sob os
rótulos de patrimônio cultural, civilização, tradição, identidade e
outros, eles produzem os valores que, supostamente, estão em
processo de declínio e desaparecimento. A despeito de sua
condição fragmentária, esses valores expressariam uma condição
de totalidad e, integridade e co ntinuidade — atributos que
caracterizariam uma "autêntica" identidade nacional.
Em outras palavras, a perda não é algo exterior, mas
parte das próprias estratégias discursivas de apropriação de uma
cultura nacional. É tão somente na medida em que existe um
patrimônio cultural objetificado e apropriado em nome da nação,
ou de qualquer outra categoria sócio-política, que se pode
experimentar o medo de que ele possa ser perdido para sempre. A
apropriação de uma cultura traz, assim, como conseqüência, ao
mesmo tempo que pressupõe, a possibilidade mesma de sua perda.
Nas narrativas de preservação histórica, a imagem da perda é

usada como uma estratégia discursiva por meio da qual a cultura

8 9 A RETÓRICA DA PERDA
nacional é apresentada como uma realidade objetiva, ainda que
em processo de desaparecimento.
No Brasil, os intelectuais que pensaram a questão do
patrimônio cultural situam o início de suas narrativas em uma
situação histórica presente, caracterizada pelo desaparecimento de

valores culturais nacionais. Em conseqüência, a nação é


apresentada sob o efeito de um perigoso processo de perda da
memória e, consequentemente, da identidade. Se perguntados
sobre o que representam suas ações preservacionistas, eles
responderão que a alternativa será tão somente a destruição dos
valores nacionais. Nesse contexto, a identidade nacional existe
enquanto uma resposta positiva à possibilidade de sua irreparável
perda.
Neste capítulo, descrevo os usos da "perda" nas
narrativas de patrimônio cultural de Rodrigo e Aloísio. Em cada
uma delas, a nação é apresentada sob a ameaça de perder sua
"tradição" ou sua "diversidade cultural". Mais que isto, essa
ameaça é concebida como um risco para o próprio processo de
"civilização" ou para o "desenvolvimento autônomo" do Brasil
como uma nação moderna.

■ O desaparecimento, a dispersão e a destruição do "patrimônio


histórico e artístico" brasileiro

Desde os começos da preservação histórica, na primeira


metade deste século no Brasil, a proteção do patrimônio histórico
e artís tico nac ional t em si do jus tificad a pela i de ntifica çã o de uma
situação de desaparecimento e destruição de monumentos
históricos e obras de arte em território brasileiro. Nos anos vinte,
antes da criação do SPHAN, algumas iniciativas foram tomadas,
aos níveis federal e estaduais de governo, no sentido de preservar
o patrimônio histórico e artístico nacional. A maioria dessas
iniciatiyãs, assumida por membros da elite intelectual brasileira,
foi jus tifica da p or uma ret órica da p erda. O pa trimô nio da nação
era apresentado sob os efeitos de um processo de
desaparecimento, dispersão e destruição (Rodrigo 1952:11-60).

9 O A RETÓRICA DA P ERDA
O mesmo sent ido d e per da, assim co mo a urgência do
resgate do patrimônio de arte e história do país estão entre os
mais fortes motivos que justificaram a criação do SPHAN em
1936. Na primeir a pági na do jornal O Globo, de 22 de outubro de
1936, lê- se: "E stav am rouba ndo o pa trimô nio a rtís tico do B rasil !
V ai ser organiza da a defesa à no ssas relíquias históri ca s " (R odrigo
[1936] 1987:25). A matéria do jornal consiste numa entrevista com
R odri go sobr e o projet o de cri aç ão do S P HA N e seu título nos
sugere o clima nacionalista em que se inseria o sentido de
urgência de defesa do patrimônio brasileiro de história e arte. Em
uma exposição de motivos submetida por Gustavo Capanema ao
então P residen te G etúli o V argas, em novembro de 1937, diz ele:
"A prot eçã o do patri m ô nio históri co e artís tico na ciona l é assunt o
que de longa data vem preocupando os homens de cultura de
nosso país. Nada, pelo menos nada de orgânico e sistemático se
havia feit o, porém, at é 1936, quando f oi po r Vos sa E xcelência
criad o o S erviço do P atrimônio H istórico A rtís tico e N ac ional.
T raba lha va-s e aqui e a li, com pequenos recursos pa ra evita r um
ou o utro desast re irreparável. O grande a cervo de preciosidade s de
valor histórico ou artístico ia-se perdendo, dispersando, arruinando,
alterando . P ropr ietários sem escrúpulos ou ignorant es de ixavam
que bens os mais preciosos se acabassem ou se evadissem, ante o
descaso ou a inércia dos poderes públicos (MEC/SPHAN/Pró-
M e m ó ria [ 1936] 1980:109) . Algumas décadas mai s tarde, num
texto em que relembra Rodrigo e a criação do SPHAN, Capanema
refere-se à necessidade, então reconhecida por muitos intelectuais,
de um serviço nacional para organizar "... a defesa de nosso
extenso e valioso patrimônio artístico, então em perigo não só de
danificação ou arruinamento mas ainda, em grande número de
casos, de dispersão para fora do país"(Capanema 1969:41).
Um sentido de perda progressiva do patrimônio
nacional move a narrativa de Rodrigo. Apesar de, ou mesmo por
sua importância para a vida da nação brasileira, objetos e
monumentos concebidos como "patrimônio" são apresentados
como num processo de desaparecimento, dispersão e sujeitos à
destruição. Os esforços no sentido de defender e preservar o

9 1 A RETÓRICA DA PERDA
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro são justificados por
R odrigo por e sta situaçã o de perda. O o bje tivo principa l do
governo federal ao criar o SPHAN foi, segundo ele: "...poupar à
Nação o prejuízo irreparável do perecimento e da evasão do que
há de mais precioso no seu patrimônio" ([1936] 1987:48). A
principal missão do SPHAN é identificada por Rodrigo como a de
proteger "o que ainda resta" do patrimônio artístico e dos
monumentos históricos da nação brasileira.
As palavras "destruição", "evasão", "ruína","dispersão",
"desaparecimento", "deformação" e "substituição" são usadas em
seu discurso para des crever a perda dos monume ntos e objetos
históricos e artísticos. As palavras "evasão", "dispersão",
"desaparecimento" e "substituição" são usadas para referir-se a
relíquias históricas e obras de arte. Por outro lado, "destruição",
"ruína" e "deformação" são usadas, no mais das vezes, para
referir-se a cidades e sítios históricos, casas, igrejas, prédios
públicos e monumentos.
Valiosos objetos históricos e artísticos são descritos, na
narrativa de Rodrigo, em processo de deslocamento de seus
contextos srcinais e mesmo do território nacional e de
trans ferênc ia para paíse s estrangeir os . O papel n ega tivo
desempenhado pelo comércio clandestino de relíquias históricas e
objetos de arte no Brasil é denunciado por Rodrigo de modo
constante. Esta é, na realidade, uma denúncia recorrente,
formulada por diversos intelectuais e políticos, desde o começo
deste século (Rodrigo 1952:11-60). Os comerciantes de
antiguidades são apontados como os principais responsáveis pela
remoção dessas relíquias e objetos de seus contextos srcinais e
pela sua venda a colecionadores brasileiros e estrangeiros. Em
1936, numa entrevista concedida a um jornal, ele denuncia e
lamenta a perda de relíquias históricas e obras de arte dos
períodos colonial e imperial brasileiros. "Têm saído assim do
Brasil/relíquias históricas da maior preciosidade. Objetos que nos

recordariam passagens magníficas da vida brasileira na colônia e


no império já agora não os possuímos mais. E foram adquiridos a
troco de alguns mil réis. Quanto também não já perdemos no que

9 2 A RE TÓR ICA DA PERDA


se refere a escultura, pintura e outras artes?" ([1936] 1987:26-27).
Vinte anos mais tarde, em artigo publicado n' O Jornal, em 16 de
ju nho de 1956, R odrigo vê-se obriga do , ainda, a comentar o
mesmo processo de "dispersão" e "evasão" de relíquias históricas
e obras de arte. Ele descreve, como exemplo, a situação do
patrimônio histórico e artístico em Minas Gerais: "De fato, a
evasão de obras de valor artístico do território do estado,
facilitada durante tão longos anos, pelo desinteresse local, foi
impres sionante e funesta. O m o biliário ant igo, exce pcion alme nte
característico, que enriquecia as habitações civis das cidades e
povoações de Minas, de srcem colonial, desapareceu quase
totalmente, subtraído pelos comerciantes de antiguidades. As
próprias igrejas e capelas foram também despojadas muitas vezes
de grande parte de suas velhas e preciosas alfaias, de suas
pinturas e esculturas de sabor regional"([1956] 1987:154). Ele
aponta que "...esses bens passaram aos colecionadores do Rio e
de São P aulo, mas sobretudo ao s negoc iantes de a ntiguidades , que
as venderam muitas vezes a interessados estrangeiros, fazendo com
que saíssem do Brasil" ([1956] 1987:155).
Esse processo é classificado como "fatal" e "funesto"
porque leva, necessariamente, à morte da nação. Essas relíquias
históricas e obras de arte são fundamentalmente definidas, para
Rodrigo, pela sua "singularidade", a qual, uma vez perdida, jamais
pode rá ser sub stituída . O dano que esse s bens ven ham a sofrer é
pensado como irreparável: "...[o que é] próprio de cada autêntica
obra de arte e de cada monumento histórico verdadeiro é sua
singularidade. Daí o caráter irreparável dos atentados que venham
a sofrer. Reproduzí-los, por mais minuciosamente perfeito que seja
o trabalho executado nesse sentido, equivalerá sempre a substituir
a jóia verdadeira pela falsa. Restaurá-los, quando os danos que
lhes causarem tiverem sido apenas parciais, só será possível em
circunstâncias particularmente favoráveis. Ainda assim, os
monumentos estarão desvalorizados na medida em que forem
recompostos com artifício. Por conseguinte, há necessidade
imperiosa de evitar-lhes a destruição total ou parcial e de impedir
que se jam des figurados. F oi essa neces sidade que no B rasil, co mo

9 3 A RETÓRICA DA PERDA
anteriormente em quase todos os países civilizados, impôs a
criação de um serviço público com a finalidade de assegurar a
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional" ([1939]
1987:50).’

1Em sua narrativa, Rodrigo busca a singularidade, ou a "aura" (Benjanin 1969:217-


252)dos objetos e monument os patrimoniais. O mesmo pode serdito em relação a
Aloísio, apesardas diferenças entre as duas narrat
ivas.

VYãlter Benjamin associ a o declínio da "aura" ao desenvolvimento de écnicas


t
de reprodução me cânica de objetos cult
urais. Assim, a "aura" de um objeto - ou de um
serhumano - está associada a su a "singularidade" e sua "permanência". No caso dos
objetos cuja auradesapareceeu, "rep rodutibilidade" e "transitoriedade" tomaram-se
seus principais atributos (1969:223).
Por certo, Benjamin não est
á se referindo a "t
ipos" de objetos, masa diferentes

formasde percepção: uma associadaa singularidade e permanência; a ra outassociada


a reprodutibilidade mecânicae transitoriedade(1969:187-188). A partirde uma certa
leitura, é possível dize r que, para Benjamin, umaorma
f de percepção tende a ser
historicamente substituída pela outra. No entanto, a sugestão mais precisa apo nta para
a necessária inter-relação entre as duas of rmas. Nesse senti
do, os objetos"aurúticos"
somente existem por contraste àqueles mecanicamente reproduzidos ; formas auráticas
de percepção, apenas em contraste com formas não-aurát icas.

Podemos fazer usodessa distinção para identificarmos distintos usos da


autenticidade.Por um lado,existem objetos cuja autenticidade é percebida e avaliada
na base de sua singularidade e permanência;por outro lado, há objet os cuja
autenticidade é percebida e avaliada em erm
t os de suanatureza reproduzida e
transitória.

E provável que essadistinção fique mais clara ao fazermos uso de um exe mplo
retirado da história dos paradigmas de preservação histórica da Europa do século XIX.
Os nomesdo arquiteto francês Eugène Viollet-Le-Duc na França, e o do escritor e
preservacionista britânico john Ruskin estão associados a doisdistintos paradigmas de
preservação hist órica. O último propunha que nenhum pr édio ou objeto histórico
deveria:serrestaurado ou reco nstruído segundo sua forma supostament e original. Do
seu ponto de vista, isto seri
a impossível. Um prédio ou umobjeto deveria ser
simplesmente preservado, dealt modo que pudessemguardar as marcas de sua idade.
O conceito de tempo era valorizado em detrimento do conceito de espaço.Em outras
palavras, a "aura" do objeto ou doprédio deveria serpreservada.

9 4 A RE TÓR ICA DA PER DA


Em contraste com Ruskin, o ideal de Viollet-Le-Duc era ode que umprédio
histórico deveria serplenamente reconstruídode acordo comsua forma "srcinal",
el iminando todos oselementos que vieram a seracrescent ados ao longo dos anos de
sua existência. O objetivo principal era o defazer uma apresentação objetiva e precisa
de um prédio tal como ele supostamente teria sido aotempo de sua constr ução. Nesse
caso, o "espaço" era enfatizado em detrimento do "tempo", e a "aura" era considerada
como um valor menos important e do que afidel idade da reconstr
ução.

O paradigma seguido por muit os preservacionist


as nos Estados Unidos, e
particularmente aquelesassociados a uma das mais amo
f sas experiênciasnorte-
americanas depreservação histórica - Colonial Williamsburg - deve muito às propostas
clássicas doarquiteto francês (Hosmer 1981).

Por outro lado, os paradigmas de preservação histórica usados no Brasil -


pressupostos nas narrativas de Rodrigo e Aloísio - definem-se po
r uma radical oposição
a experiências semelhantes a Colonial Williamsburg. Numa entrevista radiofônica,em
1987, no contexto das comemorações pelos cinquenta an os do SPHAN, o seuentão
secretário comparava os patri
mônios brasileiro e americano destacando que oBrasil,
em contraste com os EUA, possuía um patrimônio "autêntico", isto é, um patrimônio
oposto ao paradigma da reconstrução tal como aquele realizado em Colonial
Williamsburg.

A partirdas noções de autent icidades "aurática" e "não-aurática", apontei, num


artigo já publicado, alguns contrastes estruturais entre as ideologias depreservação
histórica no Brasil e nos Estados Unidos (Gonçalves1989). Esse s contrastes, no entanto,
não são usados com quaisquerfinalidadestipológicas, como a que implicaria em
afirmar que a "autenticidade aurática" seria peculiarmente rbasileira, enquanto a "não-
aurática" seria peculiarmente nort e-americana.Na verdade,ambas estão presentes em
cada um dos dois contextos nacionais. Elas sãoformas de percepção encontradas em
quaisquercontextos sócio-culturais modern os. No entanto, os atributos "não-auráticos"
l>arecemserdesenvolvidos ao extr emo no caso de C olonial Williamsburg. Experiências
como essa podem ser descritas como próximas ao que alguns aut ores chamam de
"simulacrum"- "the identical copy forwhich no original haseverexisted" (J ameson
1984:64). Minha sugestão é a de que em Colonial Williamsburg, pela ênfase colocada
i ia reconstrução,os aspectos auráticos tendem a ser substituídos pelos não-auráticos,
de tal modo que a cópia tende a se r considerada melho r que o original.

Uma questão similar é apresentada porHandlerand Saxton (1988:242-260)


para o contexto da 'Living History'nos Estados Unidos. A distinção que fazem entr
e
"moderno" e "pós-modemo" é paralela à quefaço entre os usos aurático e não-

9 5 A RETÓRICA DA PERDA
Além do comércio clandestino realizado por
co me rciantes d e antiguidades , R odrigo ide ntifica ainda a
"indiferença da população local" como fator responsável pela
situação que descreve. Refere-se especificamente à "indiferença"
da população local das cidades históricas de Minas em relação a
suas relíqu ias e obras d e arte. Isto é o que, para ele, fac ilita o
comércio clandestino. No entanto, não considera que este seja
apenas um problema local, mas nacional, e resultante da
"ignorância" da população brasileira quanto ao valor desses
objetos como parte do patrimônio nacional.
Em seu discurso Rodrigo denuncia também o processo
de destruição de monumentos e "aspectos característicos" das
cidades brasileiras. Um processo, segundo ele, que não é recente,
mas antigo e persistente, além de desnecessário e sem propósito,
apesar da tentativa de alguns no sentido de justificá-lo, em nome
do progresso e do desenvolvimento urbano. Numa conferência na
E scola N ac ional d e E ngenh aria, em 1939, R odrigo afirma : "N o
passado, infelizmente, muitas vezes os monumentos e aspectos
característicos das nossas cidades foram sacrificados sem que daí
resultasse nenhum benefício urbano. Foram sacrificados apenas por
não ter havido, por parte dos técnicos diretamente responsáveis
pelas iniciativas, nenhum movimento de respeito pelos
monumentos, nenhum interesse real em preservá-los"([1939]
1987:54). Ao longo do tempo em que esteve à frente da agência
federal de preservação, a denúncia de urbanização descontrolada
foi um tópico recorrente em seu discurso. Segundo Rodrigo, a
intensificação da urbanização e da industrialização do Brasil nos
anos cinquenta agrava, na década seguinte, os problemas do
patrimônio. Em 1961, numa conferência proferida em São Paulo,
ele menciona uma série dê~óasos de destruição de monumentos
histór icos e arquit etônicos — casa s, igr ejas, prédios públicos — e

auráticoyda autenticidade
. Para uma discussão semióticainteressante sobre srcinaise
cópias na cultura popular norte-americana, ver Eco (1986). Para umadiscussão sobr e
"autenticidade" no contexto dos discursos dos "estudos de folclore" no Brasil, ver
(Vilhena 1992); e, par
a umadiscussão semelhant e no âmbito damemória
" coletiva",
ver (Abreu 1994).

9 6 A RE TÓR ICA DA PERDA


a descaracterização de áreas urbanas supostamente justificadas
pela renovaçã o urbana. O quadro apresent ado s e carac teriza por
uma verdadeira devastação do patrimônio histórico e arquitetônico,
pela qual ele responsabiliza diretamente a administração pública e
a indústr ia imo biliária.
N a ú ltima década de su a gestão à frente do S P HA N, o
disc urso de R odrigo t orna-se bastante pess imista. Em 1969, ano de
sua morte, ele resume, num tom sombrio, as principais razões da
situação de decadência em que se encontrava o patrimônio
nacional: "Assim, cada dia mais - no sentido literal da expressão -
o espólio cultural recebido de nossos antepassados fica sob
ame aça m aio r. C ontra ele se conjugam -se diversos fatores: a
carência de meios financeiros bastantes para conservá-lo,
empreendimentos da administração pública com objetivo
progress ista errône o ou mal ent end ido, a pressão ge ne raliza da da
especulação imobiliária, a multiplicação do comércio de
antiguidad es — estendendo-s e das grandes cidades até os mai s
remot os lugarej os de f ormaç ão co lonial — a indif erenç a, quando
não a ação adversa, das autoridades eclesiásticas, responsáveis
pela parcela mais valiosa do acervo da arte antiga brasileira..."
([1969] 1987:182).
Ele crê, no entanto, que o fator principal no processo
de desaparecimento do patrimônio histórico e artístico nacional é
a "indiferença da população" em relação à importância da defesa

e preservação desse patrimônio. Indiferença, segundo ele,


partilhada não apenas "...pelas massas pouco esclarecidas da
população brasileira...", mas, igualmente, pelas "...classes mais
favore cida s e que se presumem cultas "([1 969] 1987:182).
Associada a esse diagnóstico está, evidentemente, a ênfase
presente no discurso de Rodrigo na tarefa de "educar" a
população a respeito dos valores representados pelo patrimônio
nacional.
Nesse mesmo período, Rodrigo avalia que as
realizações do SPHAN ficaram certamente aquém das necessidades
do país ([ 1968] 1987:70-73). O enredo trág ico p or me io do qu al
ele narra o processo de desaparecimento e destruição do

9 7 A RETÓRICA DA PERDA
pa trimô nio bras ileiro imp lica e pressupõe que v eja a si mesmo e
ao SPHAN como desprovidos do poder necessário para sustar ou,
ao menos, controlar o processo de destruição.
Esse processo, segundo Rodrigo, ameaça a própria
sobrevivência da nação brasileira enquanto portadora de uma
"tradição" e partícipe de uma "civilização". Uma vez que o país
venha a perder essa "tradição", ou o patrimônio que a corporifica,
o processo mesmo de "civilização" estará em perigo. Assim, ele
alerta para o fato de que, caso sejam os brasileiros incapazes de
defender e preservar o seu patrimônio de arte e de história, eles
serão condenados não somente pelas futuras gerações, mas
também pela "...opinião do mundo civilizado..." em razão dessa
"...dissídia criminosa..." ([1939] 1987:48). Pois Rodrigo concebe o
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro como parte do
patrimônio cultural da humanidade. Em suas própria palavras,

"...os patrimônios históricos e artísticos transcendem e são de


interesse da comunidade universal" ([1936] 1987:25). É assim que
a perda do patrimônio brasileiro de história e arte afeta não
somente a sobrevivência do Brasil enquanto um projeto de "nação
civilizada", mas a própria "civilização", no sentido universalista
do termo.
O discurso de R odrigo pressupõe uma sit uação o rigi na l
ou primordial, quando esses bens que integram o patrimônio eram
parte de uma totalidade supostamente integrada, coerente e
contínua. Essa totalidade aparece implicitamente no modo como é
apresentada a situação presente, fortemente marcada pela
desintegração, fragmentação e descontinuidade. Esse processo,
segundo Rodrigo, é, por um lado, o resultado inevitável da
his tória; po r outro, R odrigo ac redit a que ele pode e deve ser
controlado racionalmente em seus aspectos mais negativos, por
meio de políticas de preservação. No entanto, ambos os aspectos
são segmentos necessariamente interrelacionados do mesmo padrão
discursivo, cada um deles pressupondo o outro.

9 8 A RETÓR ICA DA PERDA


■ Ho m og ene ização cultural e a perda da identi dade nacion al
brasileira

No discurso de Aloísio, o principal problema enfrentado


pelas modernas nações em geral e, particularmente, pelas do
"terceiro mundo", é a "perda" dos seus "componentes
fundamentais", a perda de tudo aquilo que permanece e é estável
numa cultura, daqueles elementos por meio dos quais as nações
distinguem-se e afirmam sua "personalidade". Esses componentes
fundamentais, para Aloísio, tendem a se perder, a serem
esquecidos no "...processo de desenvolvimento, na dinâmica da
trajetória natural de qualquer nação, sobretudo no mundo
contemporâneo..." ([1979] 1984:39). E, uma vez que assume que
são tais componentes os responsáveis por uma autêntica
"integração" e "continuidade" das culturas nacionais, sua perda
traria, irreve rsíve l mente, de so rdem e ina utenti cida de .
A perda desses "componentes fundamentais" constitui a
"...face negativa do acelerado processo universal de integração
determinado pelo avanço tecnológico..." ([1979] 1984:47). Esse
processo de integração propaga-se "...através de duas vertentes
principais: a tecnologia do produto industrial e a tecnologia da
comunicação audiovisual. A primeira, por sua escala de produção
massificada, atua por intermédio dos grandes complexos

industriais, hoje eminentemente multinacionais, induzindo ao


consumo de produtos padronizados, nem sempre assimiláveis pelas
diversas culturas que os recebem. A segunda, que em seu modo
de operar está intimamente associada à primeira, permite
acompanhar, vendo-se e ouvindo-se, às vezes até
instantaneamente, o que ocorre em qualquer ponto do mosaico
interna cí on al"([1 979] 1984: 40). É precisamen te o pe rigo da
homogeneização cultural que é trazido por esse processo de
integração universal.

Essa homogeneização afeta tanto as nações de


"pri m e iro mundo " quant o as do chamado "t erc eiro mundo": "O
fenômeno da perda de identidade pode variar de intensidade com
que se manifesta, mas sua disseminação é universal. Faz-se sentir

9 9 A RE TÓRICA DA PERDA
nos países importadores de tecnologia e também em países
geradores dessa tecnologia. Assinala-se para os primeiros o risco
sup|ernentar dessa absorção se converter em dependência
econômica" ([1979] 1984:48). No contexto dos países do "terceiro
mundo" esse processo assume, evidentemente, consequências mais

graves: "na maioria das vezes, o binômio comunicação


ma s^ificad a/pro duto ma ss ificado gera apenas uma falsa integração ,
observável geralmente nas mudanças de comportamento refletidas
no aparecimento de necessidades injustificadas e expectativas
inatingíveis" ([1979] 1984:48). Importar esses elementos de modo
indiscriminado seria desastroso ao processo de defesa e
preservação daqueles "componentes fundamentais" que definem o
"caráter" de uma nação. Numa entrevista, ele adverte: "...eu acho
que no momento nós devemos estar mais alertas para as
alterações que nos são impostas de fora, devido ao um período de
desenvolvimento totalmente novo" (1985:68). Do seu ponto de
vista/ a tecnologia importada e os produtos industrializados que
nos chegam dos países mais desenvolvidos não constituem em si,
necessariamente, um problema; no entanto, insiste em que eles
devam ser rigorosamente controlados e selecionados, de modo que
não venham a afetar negativamente a identidade cultural da nação.
O processo de homo geneizaçã o cu ltural e de perda d a
identidade afetam igualmente tanto a "cultura popular" quanto a
"cultura acadêmica" no Brasil. Acredita Aloísio que ambas vêem-

se ameaçadas pela perda do sentido de "processo" e de


"continuidade". Numa comunicação ao Conselho Federal de
C ultura, no R io de J anei ro, em 8 d e no vembro de 1977, ele
afirma que se observa um "...alto índice de absorção de valores
estranhos á nossa identidade cultural, atingindo de maneira
avassaladora os meios de comunicação de massa e até mesmo, o
que me parece mais grave, segmentos de nosso pensamento
v
intelectual. As grandes interpretações da evolução do pensamento
bras ij^iro procura-s e po r noções de des co ntinuidade, a bando nando -
se o sentido de processo e de continuidade cultural"
([197/]1 985^45). Ess e "se ntido de process o e co ntinuida de c u l
tural" é, para Aloísio, um sintoma fundamental de maturidade em

1 00 A RE TÓR ICA d a pe r da
qualquer cultura nacional. Em países como o Brasil, onde uma
cultura nacional não é ainda fortemente estabelecida, a
importação descontrolada de valores estrangeiros é, para Aloísio,
extremamente perigosa para a sobrevivência e o desenvolvimento
de uma identidade cultural autônoma.
A tecnologia importada e os produtos massificados, no
entanto, não são identificados por Aloísio como os únicos
elementos responsáveis pela perda de identidade. Ele atribui essa
responsabilidade também a uma certa modalidade de política
cultural que enfatiza a "herança cultural européia" no Brasil, em
contraste com uma "autêntica" cultura brasileira. Ele compara essa
herança a um "velho tapete", que inibe a expressão de uma
"au tên tica " ident idade cult ural bras ileira. Em uma intervençã o,

num debate durante a Semana de Arte e Ensino, em São Paulo,


em 17 de novembro de 1980, ele afirma: "É como se o Brasil
fosse um espaço imenso, muito rico, e um tapete velho, roçado,
um tapete europeu cheio de bolor e poeira tentasse cobrir e
abafar esse espaço. É preciso levantar esse tapete, tentar entender
0 que se passa por baixo. É dessa realidade que nós devemos nos
aproximar, entendendo, tendo sobre ela uma certa noção" ([1980]
1985:42). Ao nível internacional, ele critica a mesma modalidade
de política cultural sustentada por instituições culturais

internaciona is — es pecif icament e aquel as que assume m com o seu


principal objetivo manter a "continuidade" da "herança latina". E
questiona as consequências dessas políticas para os países do
ch am ad o terc eiro mun do . E m 11 de jun ho de 1982 ( data de sua
morte), na R eunião de M inist ros da C ultura de P aíses de Língua
1atina, em Veneza, ele dizia: "Não creio que a permanência do
es pírito humanist a que herdamos — nós das Amé ricas , sobret udo,
e vós da E uropa — possa manter-se de ma neir a c on digna e
onriquecedora, quando nós, a maioria dos países das Américas,
lutamos pela sobrevivência de parte dos habitantes. Esse caráter
humanista, enriquecedor e profundamente caro a todos nós, não
sobreviverá debaixo de fome e ignorância" ([1982] 1985:93). Sua
proposta é no sentido de que as políticas culturais, em geral, e as
políticas de preservação histórica, em particular, sobretudo nos

1oi A RETÓRICA DA PERDA


países do terceiro mundo, levem em consideração as condições
econômicas da população de modo que não venham a se
constituir em meros instrumentos de reprodução de desigualdade
sócio-econômica e colonialismo cultural. Segundo ele, "...a
permanência que queremos, que exigimos, que lutaremos por
manter, do espírito humanista herdado do ocidente europeu, e
sobretudo dos países de srcem latina, requer que essa
sobrevivência seja objetiva, seja mantida, seja enriquecida sem
que o espí rito e litista de um grupo de privi legiad os — que nós
todos som os pri vileg iado s — prevaleça sobre a ma ioria dos
habitantes de nossos países" ([1982] 1985:93). E conclui em tom
de apelo aos países de srcem latina da Europa: "...vejam bem
que o problema do mundo novo de srcem latina é bem diverso
do problema da manutenção simples da herança latina que vivem
os países da E uropa. E há nisso até um perigo. P orque, na me dida
em que a Europa Latina não entenda, não perceba essa
peculiaridade da nossa herança do outro lado do mundo, haverá
sempre o risco terrível de uma suspeita de que a ênfase européia
dos nossos irmãos latinos seja, ainda, uma ênfase colonialista,
dado que procuram ver em nós o que eles já são. E nem sempre
isso é verdade" ([1982] 1985:94). Em outras palavras, as
identidades culturais dos países desse "novo mundo de srcem
latina" têm de ser defendidas contra a possibilidade de uma
"ênfase colonialista", descrita como uma das fontes de ameaça à
busca, descoberta, preservação e desenvolvimento de um autêntico

"caráter nacional".
Essa ênfase numa "herança cultural europeia" é
partilhada, segundo Aloísio, pela até então hegemônica política de
preservação histórica implementada no Brasil, a partir dos anos
trinta. Essa política segue lado a lado com uma exclusiva
valorização dos bens culturais das elites. Como alternativa, Aloísio
sugere uma concepção pluralista de patrimônio cultural, que fosse
cájbaz de levar em consideração a diversidade cultural, religiosa e
étnica da sociedade brasileira. Ele não partilha, desse modo, da
visão de Rodrigo, para quem a principal causa do
desaparecimento e da destruição do "patrimônio cultural" consiste

10 2 A RETÓRICA DA PERDA


na "indiferença" da população. Essa suposta indiferença, para
Aloísio, é nada mais que o efeito de políticas culturais que
ignoram a complexidade e a diversidade da sociedade e da
cultura brasileira. Elas seriam mais uma fonte de perda do que um
esforço conseqüente no sentido de defender e preservar uma
autêntica identidade cultural brasileira.
O princ ipal o bjeti vo de um a po lítica c ultural de veri a
ser, segundo Aloísio, a identificação e a defesa do que ele chama
de "componentes fundamentais" da cultura brasileira, os elementos
permanentes por meio dos quais a singularidade do "caráter"
nacional brasileiro vem a ser definida. Aqueles que pensam o
desenvol vi mento bras ileiro em termos exclusivamente eco nômico s
e tecnológicos negligenciam, segundo Aloísio, o uso da "cultura"
como um dos "indicadores" das políticas de desenvolvimento. Essa
atitude também contribuiría perigosamente para a intensificação do
process o de "perd a" da "ide ntida de cu ltura l". As sim, diz ele,
"...não haverá desenvolvimento harmonioso se na elaboração de
políticas econômicas não forem levadas em consideração as
pec uliaridades de cada c ultura" (Magalhães 1985:4 9). O u ainda:
"N ã o e xiste des envo lvimento ec on ôm ico que não sej a aut êntico.
Não existe verdadeiramente uma nação que se forme, que
progrida, que se enriqueça, a não ser à base dos componentes de
sua verdade, de sua identidade autêntica, dentro de sua trajetória
enquanto nação" ([1981] 1985:83). Essa afirmativa seria
especialmente válida para as nações do chamado terceiro mundo,
nas quais o desenvolvimento econômico e tecnológico por si
mesmo, embora possível, traria, no entanto, resultados negativos:
"...a nação torna-se rica, mas sem caráter, para não dizer rica e
comp letam en te dep ende nte de outras naçõ es "([1 981 ] 1985:83).
Embora enfatize a existência de um "caráter nacional
brasileiro", o tema da autonomia cultural do Brasil em relação aos
países do "primeiro mundo" está intimamente associado, no
discurso de Aloísio, ao tema da diversidade cultural da sociedade
brasileira. De certo modo, é a diversidade cultural brasileira que
define a sua s ingular idade no plano int erna ciona l. O processo
global de homogeneização cultural também afeta essa diversidade

103 A RETÓRICA DA PERDA


cultural interna da sociedade brasileira. Essa é a razão pela qual
ele valoriza as diferentes formas de "cultura popular", e que
estariam sob a constante ameaça de serem destruídas e
substituídas por uma civilização moderna, urbana e tecnológica.
Essas formas de "cultura popular" são concebidas por
Aloísio como ilhas de coerência e harmonia, resistindo a um vasto
processo de destruição e homogeneização cultural. Em uma
intervenção num debate ocorrido na Semana de Arte e Ensino, em
São Paulo, em 1980, Aloísio narra uma visita que fez a uma
pequena e distante cidade no interior do nordeste: "...uma
pequena cidade, no topo da Serra do Araripe [no sertão de
P ernamb uco], harmoniosa , uma cidad e antiga, com as ruas,
praças, os prédios de dois andares. Uma escala humana
perfeitamente mantida, uma densidade correta. E eu entrei na
cidade, parei numa praça, saltei do carro e, como todos nós,

tentei fotografar Triunfo, absorver Triunfo, chupar Triunfo pela


tecnologia da máquina. E, quando estava fotografando a cidade,
eu ouvi, vi um sinal, que era uma voz que fazia 'psiu, psiu'.
O lhe i, vinha de um sobrado que tinha na praça. T inha un s
galpões, uma varanda no sobrado e tinha uma moça sentada no
chã o, lendo um li vro, e ela virou-s e para mim e disse: 'A vista
aqui em cima é mais bonita'. E me convidou para subir e eu subi
para fotografar Triunfo. E dali eu saí com essa moça para ver
T riunfo , o co lé gio das freiras belgas, o conve nto dos fran cis ca no s,
o lugar onde as mulheres lavam roupas, que tem uma fonte para
lavar a roupa. Enfim, todo um processo de harmonia entre
ecologia e necessidades técnicas, toda uma forma de vida que, a
meu ver, tem uma representatividade imensa e que nada tinha a
ver com a escala da discussão em que nós estavámos" ([1980]
1985:43). "E quantos Triunfos existem por aí?", continua ele, "E
que é que nós estamos fazendo senão justamente (...) destruindo,
criando situações que nada têm a ver com aquela harmonia?
C ri^-ndo situaç õe s de dese spe ro e angú stia nos grandes ce ntros
urbanos e que vão afetar Triunfo se nós não nos apercebermos de

que é preciso proteger, é preciso estimular situações como a de


T riun fo? " (198 5:4 3-44 ).

10 4 A RETÓRICA DA PERDA

Ã.
Até certo ponto, é possível aproximar o discurso de
Aloísio, com sua valorização de situações "autênticas" como as de
T riunfo, de uma tendênc ia ideológica manifesta em parte da
literatura etnográfica do século vinte, onde ganha destaque uma
visão das chamadas "culturas primitivas", ou das "culturas
populares", que aparecem sob o impacto irreversível de um
processo global de homogeneização, descaracterização e perda2.
Vale assinalar, no entanto, que, no discurso de Aloísio, essa
estrutura narrativa é usada não com propósitos científicos de
descrição e análise de culturas, mas com objetivos políticos e
ideológicos, visando a mobilizar a população para a dimensão
"cultural" do processo de construção da nação.

■ Tradição e modernidade sob a égide da perda

Alguns autores já têm assinalado a relevância do tema


"perda" no discurso da preservação histórica, em diferentes
contextos nacionais. Num ensaio comparativo sobre as ideologias
que norteiam as políticas de preservação histórica na Inglaterra, na
F rança e nos Estados Unidos, M aria A lice G ouveia af irma: "N o
Brasil, assim como em vários outros países da América Latina, um
argumento muito difundido é o de que a 'identidade cultural da
nação' se encontra ameaçada. Vive-se este conceito no registro de
uma perda. O nosso mundo subde se nvolv ido est aria send o
ameaçado pela alienação cultural que consiste na homogeneização
de todos os países por via dos meios de comunicação de massa,
articulados através de uma indústria cultural operando em escala
mundial, pelos padrões importados dos Estados Unidos, os grandes
produtores da sociedade de consumo.
"Diante desse presente 'contaminado' ou 'poluído', o
passado seria o autêntico, porque seria o produto de um
sincretismo cultural definitivamente incorporado ao quadro social,
enquanto o moderno seria o empréstimo, o modismo alienígena,

2 O temado "vanishing primitive" e sua manifestaçaona literatura etnográfica é


analisado por J ames Clifford (Clifford and Marcus 1986:98-121).

1 05 A RETÓRICA DA PERDA
derivado do coma ndo da s mult inacion ais sobr e nos sa eco nomia. O
próprio termo "preservar" tem, na língua portuguesa, o significado
registrado por A urélio Buarque de H olanda de 'man ter livr e da
co rrupç ão e do m a l' ". (G ouveia 1985:39).
Essa preocupação com a possibilidade de uma perda
da ident idade c ultural aparece, segundo G ouveia, t ambé m nos
países-metrópole: "nos Estados Unidos, por exemplo, documentos
recentes consignam essa mesma preocupação. Apenas, nesse caso,
a ameaça não vem de fora, mas reside no desenvolvimento de
grupos com interesses especiais ou de minorias étnicas que, no afã
de descobrirem suas raízes, começam a rejeitar a noção de uma
herança comum a todos os americanos, substituindo-a pelo cultivo
das diferença s e pelo reexam e dos con flitos so ciais" (G ouveia
1985:39).
Um aspecto importante do discurso preservacionista
presente nas sociedades do primeiro assim como do terceiro
mund o é assinal ado por G ouveia. N o entanto, mais que ape nas
uma "justificativa" ou que um "argumento" de natureza ideológica
a caracterizar as diferenças entre os discursos da preservação
histórica em diferentes sociedades, é provável que a imagem da
"perda" desempenhe um papel mais importante, enquanto um
princípio articulador desses discursos. Enquanto uma justificativa
ideológica para o projeto preservacionista, a perda é pensada
como um fato histórico exterior aos discursos preservacionistas,

embora por estes representada de modos diversos e com maior ou


menor ênfase. Essa linha de análise partilha com o discurso
preservacionista o reconhecimento da perda como um fato
histórico que lhe seria exterior, ao mesmo tempo que o não-
reconhecimento de sua função enquanto um princípio estruturador
interno ao próprio discurso preservacionista. E é precisamente esse
não-reconhecimento que garante a eficácia simbólica e social
desse discurso.
A questão mais importante não é, obviamente, se os
patrimônios culturais estão realmente se perdendo ou não nas
sociedades nacionais. Se aceitamos responder a essa questão,
negativa ou afirmativamente, estamos dando nosso aval ao

1 06 A RETÓ RICA DA PERDA


pressuposto da existência de um patrimônio substantivo, integrado
e dotado de fronteiras bem delimitadas e, assim, legitimando as
estratégias de objetificação assumidas pelos ideológos dos
patrimônios culturais. Uma questão mais útil talvez fosse nos
perguntar pelas consequências dessas estratégias, interpretando a

perda não como anterior, mas sim como posterior a elas, como
um dos seus efeitos mais notáveis.
A análise desenvolvida por Susan Stewart (1984) sobre
o significado das coleções nas modernas culturas ocidentais pode
nos sugerir um caminho alternativo, embora não necessariamente
excludente, em relação à anál ise de G ouveia. O foco da análi se
de S tew art está na exp eriê nc ia expressa pela palavra ingles a
longing, que pode ser traduzida aproximadamente como "um forte
e persistente desejo que não pode ser satisfeito" (1984). Essa
experiência está presente, segundo Stewart, no ato de colecionar
relíquias, souvenirs, miniaturas, objetos etnográficos, objetos
históricos, obras de arte, etc. Baseando-se na teoria lacaniana do
símbolo, ela descreve uma "estrutura do desejo" cuja função seria
a de desempenhar a impossível tarefa de transcender a distância
entre linguagem e experiência. Objetos de coleção são "objetos de
desejo" na medida em que eles desempenham a função de
superar, em termos imaginários, a distância entre uma certa
realidade ou expe riên cia — por exemplo, o passad o hist órico, o
mundo primiti vo , o exó tico, et c. — e a "representação " dessa
"realidade" ou "experiência". No entanto, para que essa
"realidade" seja despertada, ela tem que, primeiro, ser destruída.
Uma identificação ilusória entre significado e significante é
produzida. Assim, um objeto etnográfico disposto na vitrine de um
museu passa a representar uma inalcançável totalidade: a
realidade etnográfica de onde ele foi retirado. Uma igreja barroca
do século XVIII passa a representar a totalidade imaginária
constituída por aquele período histórico.
As narrativas sobre patrimônio cultural implicam o
impulso de preservar e colecionar os diversos bens culturais que
estariam sob ameaça de destruição. Esses bens, no entanto, têm de
ser destruídos para que possam ser desejados, preservados e

1 07 A RETÓRICA DA PERDA
colecionados. Nos discursos de Rodrigo e de Aloísio, a nação
brasileira é representada ante diferentes situações de perda. No
primeiro, objetos artísticos e históricos, relíquias, prédios, cidades
e monumentos são descritos sob o impacto de um vasto processo
de dispersão e destruição. Esse conjunto de bens culturais é
concebido como a herança de um passado histórico, de gerações
passadas. Enquanto fragmentos ou ruínas de um processo histórico
destrutivo, eles representam a totalidade imaginária constituída
pe lo passado his tórico b ras ileiro: esses bens são fragme ntos de
uma distante e, de certo modo, irrecuperável "tradição". Uma vez
que a nação brasileira, em seu discurso, é concebida a partir
dessa "tradição", é fundamental que sejam mantidos vivos os
vínculos com esta dimensão essencial3.
No discurso de Aloísio, a "identidade cultural" da
nação deve ser representada sob a ameaça de homogeneização
para que possa ser recuperada e desenvolvida em sua
singularidade. Os diversos "bens culturais" que compõem o
patrimônio cultural brasileiro são também concebidos como os
fragmentos de um processo histórico destrutivo. Em sua
individualidade e concretude eles representam uma outra
totalidade imaginária: a identidade cultural brasileira fundada na
heterogeneidade. Segundo Aloísio, a situação histórica de perda,
diante da qual se encontra a nação brasileira, consiste na perda
dos "seus componentes fundamentais" por meio dos quais é

definida a sua singularidade. Esses componentes é que possibilitam


à na ção d es envo lver uma ident idade autênt ica. D iferente mente de
Rodrigo, Aloísio vê a fonte dessa autenticidade não numa
"tradição" concebida de maneira globalizante, mas na
"hete roge ne idade c ultural", o que equ ival e a uma con ce pçã o

3A valorização da "tradição" no discurso de Rodrigo não excluio seu compromisso


com umavisão racionalsta i e moderna da nação, aqual é concebidacomo parte da
"civilização" no sentido universalista do termo.Esse compromisso entre "tradição" e
"modernidade", entre "universalismo" e "relativismo", entre "iluminismo nacionalista"
e "romantismo" é umtraço fundamental dopensament o do grupo modernist
a mineiro,
do qual Rodrigo é umdos representant es. Esse traço é analisado de modoprecisopor
Bomeny (1994 ).

108 A RETÓRICA DA PERD A


plura lis ta da tradição . O que é fundament al na co nce pçã o de
A loís io é aquele c on junt o de ben s cu lturais que é part e integrante
do cotidiano de diversos segmentos da sociedade brasileira e por
meio dos quais expressam suas memórias e identidades. Se tais
componentes se perdem, diz ele, a nação pode até desenvolver-se
em termos tecnológicos e econômicos, mas será, por certo, uma
nação "sem caráter"4.
Uma vez que não estamos considerando a perda como
um fato histórico, preexistindo a toda e qualquer classificação,
cab e pergunt ar: perda para quem? o pa trimô nio est aria

4 É possível afirmar que, no discurso deAloísio, verifica-se o mesmocompromisso


entre "tradição" e '"modernidade" já assinalado nodiscurso de Rodrigo e do grupo
modernista mineiro. Embora valorize a singularidade da identidade bras ileira frente a
outras culturas nacionais, isso não significa abs
olutamenteuma desvalorização da
modernidade e do un iversalismo. O que distingue o discurso de Aloísio em relação ao
de Rodrigo é a ênfase numa representação pluralista do patrimônio cultural, é uma
concepção de cultura nacionalonde sãovalorizadas as diferenças, em detrimento de
uma representação globalizante expressa pela noção de"civilização".

Esse perfil do discurso de Aloísio repercute, até certo ponto, correntes


ideológicasna área de política cultural no contexto internacional, particularment e
aquelas articuladas por organismos internacionais de cultura, comoa UNESCOesuas
diversas agências.É possível dizer que, a partirdos anos sessen ta, verifica-se uma forte
tendência no sentido de uma representação pluralista da cultura, valorizando-se os
chamados p " atrimônios étnicos", "patrimônioslocais", "regionais". Dessa valorização
das diferenças decorre uma ori entaçãopolítica de cunho democratizante, enfatizando-
se a necessidade de que os versos
di grupos e categoriassociais que compõem as
sociedades nacionais sejam representados nas políticas oficiais de cultura.

No campo específico da museo logia, essas mudanças sefazem sentir no


movimento da chamada"nova museologia", a partirdos anos set enta, assim comona
orientação política do ICOM (International Council of Museums), no mesmo período.

Não por acaso é apartir dos anos setenta que ganha espaço apolítica de
cultura articulada e implementada porAloísio com a criação do CNRC (Centro
Nacional de Referência Cultural) e, post
eriormente, da Pró-Memória. São desse mesmo
período mudanças significativas na área da museologia noBrasil, destacando-ses a
preocupações dos profissionais dessa área com as funções sociais dos mu
seus.

109 A RETÓRICA DA PERDA


su pos tame nte s ob o risco de perd a? C ertame nte essas questões
admitem diferentes respostas. Seguramente, muitos segmentos da
soc iedade brasil eira — aquel es acusado s po r R odrigo de ignorarem
ou serem indiferentes ao patrimônio histórico e artístico nacional
— não conc ordariam co m a tese d e que a "dispersã o" e a
"destruição" do patrimônio constituem realmente um problema.

O u, se conc ordam, por cert o o fazem por ra zões di versas daquelas


enunciadas pelos ideólogos do patrimônio. Assim, a população
católica de uma paróquia numa pequena cidade ou num bairro de
um grande centro metropolitano não tomará necessariamente como
uma "perda" a alteração ou a substituição de um detalhe ou
mesmo de todo o conjunto arquitetônico de uma igreja que
freqüentam com propósitos religiosos. Do ponto de vista dessa
população é provável que o estilo arquitetônico ou as associações
históricas nacionais desse prédio não sejam tão importantes quanto
o são efetivamente para os agentes sociais engajados numa
política oficial de preservação histórica (Arantes 1984:149-174).
Sua atitude não precisa ser necessariamente classificada como
"ignorante" ou "indiferente", a menos que as situemos no quadro
das modernas ideologias culturais expressas pelas políticas oficiais
de patrimônio cultural. Antiquários e colecionadores particulares
não partilham, na maioria das vezes, os propósitos e os interesses
expressos pelas políticas oficiais de patrimônio. Do seu ponto de
vista o comércio de relíquias históricas e de obras de arte não
representa necessariamente uma "perda", com o mesmo significado
que essa categoria assume nas ideologias oficiais de patrimônio
cu ltural. O propriet ário de uma casa const ruída no século X VIII
certamente a considera mais um patrimônio pessoal ou familiar do
que um patrimônio "nacional" e sua venda para uma empresa
imobiliária visando à construção de um conjunto de modernos
edifícios não será, necessariamente, sentida como uma "perda". A
criminalização dessas práticas é um dos efeitos de um contexto
discursiyo no qual esses bens são classificados como portadores de
importantes significados "históricos" e "artísticos" nacionais.

Diferentes modalidades de "cultura popular"


representadas no discu rso de A loí s io pode m não ser iden tifica da s

11 0 A RETÓRICA DA PERD A
do mesmo modo por aqueles que a experimentam efetivamente,
no cotidiano. A integridade e a continuidade que caracterizam,
segundo Aloísio, as diversas formas do "fazer popular" não são
necessariamente os atributos por meio dos quais os diversos
segmentos da população identificam suas práticas cotidianas.
Assim, um centro religioso - uma igreja católica ou um terreiro de
Umbanda - que venha a ser "tombado" pelo Estado como um
"monumento nacional" em razão de seu significado "histórico" e
"cultural" é reapropriado por grupos e categorias sociais com
finalidades práticas, cotidianas, religiosas ou sociais, muitas vezes
em contradição com os propósitos expressos pelas ideologias
oficiais de patrimônio cultural (Arantes 1984:149-174).
Seria fácil argumentar, com um relativismo de bolso,
que o chamado patrimônio cultural de uma sociedade nacional
pode ser representado a partir de vários "pontos de vista". Afinal,
essa tese já é largamente assumida pelas modernas ideologias
culturais e informam diversas políticas oficiais de cultura no plano
nacional e internacional, desde os anos sessenta e setenta.
E videntement e, não exi ste p atrimô nio cu ltural independe nte de
alguma classificação linguística. Assim, os ideólogos do patrimônio
cultural, ao denunciarem o risco da "perda", não estão apenas
registrando um fato histórico, mas discursivamente constituindo
esse fato com o propósito de implementar um determinado projeto

de construção nacional.
É o distanciamento mesmo desses bens culturais no
tempo e no espaço, através da retórica da perda, que os
transforma em "objetos de desejo", objetos "autênticos" a
mobilizar empreendimentos no sentido de buscá-los ou recuperá-
los com o part e de um patr imônio nacional. O "patri mô nio
his tórico e a rtís tico " na cional no discurso de R odrigo, ou o s "bens
culturais" no discurso de Aloísio, jamais poderiam ser concebidos
como fragmentos se não fossem classificados previamente como

parte de uma totalidade distante no espaço ou no tempo. Essa


totalidade, no entanto, somente existe enquanto uma promessa
sempre adiada e jamais cumprida. Enquanto fragmentos ou ruínas,
eles sempre convidam a um incessante processo de reconstrução,

111 A RETÓRICA DA PERDA


uma interminável atividade de colecionamento, restauração e
preservação, constituindo-se nos objetos de um desejo jamais
satisfeito. Imaginariamente, os discursos de patrimônio cultural
buscam superar a intransponível distância entre linguagem e
experiência, entre a representação simbólica da nação e a sua
realidade cotidiana.

Desse modo, o chamado patrimônio cultural jamais é


resgatado em sua totalidade e integridade, mas sempre por
intermédio dos seus fragmentos, que exigem ser cuidadosamente
resgatados, restaurados e preservados. Nesse sentido, o patrimônio
é uma vasta coleção de fragmentos, na medida em que seus
componentes são descontextualizados, retirados dos seus contextos
srcinais, no passado ou no presente, e reclassificados nas
categoria das ideologias culturais que informam as políticas
oficiais de patrimônio. Sua integridade não é presente e positiva,
mas uma integridade necessariamente perdida, situada numa
dimensão distante no tempo ou no espaço. Os fragmentos que o
compõem são metonímias de uma totalidade temporal ou
espacialmente longínqua: o passado, o futuro, a cultura brasileira,
a identidade brasileira, a civilização, a tradição, a diversidade
cultural, etc. Eles representam, ao mesmo tempo, continuidade e
descontinuidade. Os ideólogos do patrimônio buscam resgatar essa
continuidade por meio dos seus empreendimentos de identificação,
colecionamento, restauração e preservação do patrimônio. Mas não
obtêm senão fragmentos. Sua tarefa é interminável, pois o
patrimônio, como toda coleção, jamais se completará.
É possível dizer que o discurso de Rodrigo, assim
como o de Aloísio, tem como matriz intelectual um compromisso
entre o "ilum inis m o racional ista" e o "pensa ment o rom ân tico ",
entre o "universalismo" e o "relativismo", entre a "civilização" e
a "cultura" (Elias 1990). Esse compromisso traz como
consequência o fato de que, em ambos os discursos, a perda
jarfí ais aparece sob o registro exc lus ivo de uma nostalgia
romântica pela "tradição" ou pelas "culturas populares". Assim, ao
lado da valorização da "tradição" ou da "cultura popular",
concomitantemente à denúncia da "perda" dessas dimensões, seja

1 1 2 A RETÓR ICA DA PERDA


pela "ignorância" e "indiferença" da população, seja pelo processo
de "homogeneização" desencadeado pela indústria cultural, é
possível verificar a instrumentalização dessas dimensões essenciais
a serviço de projetos políticos de construção da nação.
A concepção de nação que inspira o discurso de
Rodrigo está evidentemente articulada àquela expressa pelo
pensamento do grupo modernista mineiro e ao projeto autoritário
do Estado Novo e, particularmente, ao projeto educacional e
cultural articulado por aquele grupo nesse contexto histórico
(S chw artzm an; B omeny; Cost a 1984; B omeny 1994) . N essa
concepção incide o compromisso entre aquelas matrizes de
pensamento já assinaladas, onde a nação será representada
s imultane ame nte por uma dimensão universal ista e raciona l-
burocrática e por sua dimensão singular e tradicional. A ênfase, no
entanto, estará numa concepção globalizante da cultura brasileira, a
qual é pensada a p artir de sua articu laç ão uni versai ista c om a
civilização ocidental. A nação é pensada como uma totalidade onde
carecem de valorização as suas vastas diferenças.
já o dis curso de A loísio express a um a concepç ão de
nação que evidencia esse mesmo compromisso entre matrizes
intelectuais diversas. A ênfase, no entanto, estará numa
representação da cultura nacional onde se valorizam as diferenças.
Não por acaso, Aloísio, com frequência, faz uso das teses de
M á rio de A ndrade para legit imar a sua própri a co ncep ção de
patrimônio, uma concepção onde está presente uma leitura
etnográfica e pluralista da cultura brasileira (Moraes 1983). Em
consequência, a nação será representada a partir de um quadro na
qual é desenhada não de forma globalizante e homogeneizadora,
mas destacando-se a heterogenei dade que a carac teriza. O
discurso de Aloísio floresce, articula-se e inspira a implementação
de uma política cultural para o país, a partir de meados dos anos
setenta, em pleno processo de abertura democrática, após mais de
uma década do regime político autoritário, em um contexto
histórico, portanto, em que discurso democrático e uma
representação pluralista da nação começam a ganhar espaço na
sociedade e nas políticas governamentais.

113 A RETÓRICA DA PERDA


Cada um dos contextos histórico-políticos em que se
inserem os discursos de Rodrigo e de Aloísio sobre o patrimônio
cultural, em função mesmo daquele compromisso entre diferentes
matrizes intelectuais, faz com que a retórica da perda seja
instrumentalizada em função de distintos projetos políticos de
construção nacional, o que torna possível transformar a
fragmentação em reconstrução, e o sentimento de nostalgia em
esperança.
No capítulo cinco, eu descrevo como a nação
brasileira é redimida da história e da contingência e objetificada
co mo uma permanent e busca pela identidade cultural. E m termos
mais específicos, analiso de que modo o "patrimônio histórico e
artístico" de Rodrigo, assim como os "bens culturais" de Aloísio
são discursivamente usados não apenas como entidades
evanescentes, mas como entidades culturais emergentes, partes
integrantes de projetos de construção nacional. Em ambos, os
objetos e monumentos que compõem o patrimônio representam
não apenas uma "tradição" evanescente ou uma "diversidade
cultural" ameaçada pela homogeneização promovida pela indústria
cu ltura l, mas, fundamen tal mente, recursos s imbó licos a sus tentar as
possibilidades e a esperança de afirmação histórica do Brasil
enquanto nação "civilizada" e "desenvolvida".

1 1 4 A RETÓRICA DA PERDA
Capítulo Cinco

■ REDIM I N DO A NAÇÃO :
O BRASI L E M BUSCA DE SUA I D EN TI DA D E

"A ver da de éq u e não s om os ai n da .. ."

Rodrigo M elo Franco de Andrade

" .. .um a n a ção q u e ai nd a n ão se

est ab il izo u em sua for m ação" .

A l oísio M a g a l h ães

■ O patri mônio cu ltural como alegori a

Iniciei este estudo sugerindo que os discursos sobre o


patrimônio cultural podem ser interpretados como narrativas de
perda, apropriação e redenção. É possível traçar um paralelo entre

os discursos do patrimônio cultural e as coleções no sentido de


que ambos têm como propósito escapar simbolicamente da
contingência cotidiana ingressando em um domínio transcendente.
Se, por um lado, a história é vista como um incontrolável
processo de destruição, por outro, acredita-se que exista uma
dimensão acima da contingência e que é feita de coerência e
continuidade.
Esse mesmo dualismo está presente nas narrativas
alegóricas, onde objetos, situações e personagens são apresentados
enquanto portadores de dois significados simultâneos: um
significado contingente e outro transcendente, ou um significado
literal e outro metafórico ou simbólico. Assim, a alegoria é
concebida como um mecanismo simbólico através do qual é

1 1 5 RE DIMINDO A NAÇÃ O
possível dizer algo por meio indireto. De modo que, nas
narr ativas alegóri cas , o que se vê — objetos, situações e
personagens con tingent es — está as sociado com o que se entende
— verdades não li terais, metaf óricas, tr anscendent es e enca rnadas
por aqueles elementos contingentes. No caso das narrativas de

patrimônio cultural, essas verdades transcendentes são entidades


como nação, cultura, civilização, etc. No entanto, menos que um
traço cognitivo intrínseco às alegorias como um gênero literário
específico, 'ver alguma coisa em termos de uma outra' é, antes,
nossa resposta usual às narrativas identificadas como alegorias.
Assumir uma estória como alegórica significa agir como se algo
estivesse sendo dito de modo indireto. Em outras palavras,
alegorias, enquanto metáforas extensas, são usadas para dirigir nossa
atenção para traços não suspeitados de um determinado tema,

fazendo com que o percebamos através de uma lente diversa1.


Ness e se ntido, tan to qua nto afirmar, negar, de finir, pos tular, me ntir,
criticar ou prometer, as alegorias são formas de ação.
Assim como as coleções, as narrativas de patrimônio
cultural são feitas de fragmentos. Enquanto uma forma de narrativa
alegórica, elas representam sempre uma promessa jamais realizada
de totalização. Seu movimento é uma interminável busca por uma
sempre adiada totalidade. Os patrimônios culturais, como as

1Alguns intérpretes da metáfora aconcebem como um mecanismo linguístico por


meio do qual um significado novo e oculto se revela. Esse processo é entendido como
o resultado de uma interação entre um significado literal e outro não-literal. Segundo
essaperspectiva, uma laegoria, enquanto uma met áfora ext
ensa, expressaria um
significado literal e ummetafórico. Essa interpretação implica que algum m ecanismo
intrínseco às met áforas ou àsalegoriasfaçam-nas func ionar do modo como o fazem.
Seguindoas sugestõesde Donald Davidson,crítico dasinterpretações que define ma
metáfora como tendo um significado literal e outro não-literal, penso que seria mais
produtivo pensar mos as metáforas enquanto efeit os produzidossobre nós, enquanto
formas,de ação. Na concepção de Davidson, "Metaphors mean what h t e words, in their
most literal interpretation, mean, and nothing more (1984:
245). Para ele, "What
distinguishes metaphor is not meaning but use - in this it is like assertion, hinting, lying,
promising, or criticizing"(1984:259).Em outras palavr
as, metáforas - e, para n
ossos
propósitos, alegorias - sãoormf as de ação.

1 1 6 A RETÓRICA DA P ERDA
coleções, sempre fogem, seja em relação ao passado ou em
relação ao futuro. Estão sempre sob a ameaça de desaparecimento.
Estão sempre em expansão, jamais se completam; suas fronteiras
jamais se fecha m. N ão po r acaso, a me táfora da ruína é tão
relevante nessas narrativas. Uma ruína é o que desaparece.
P aradoxa l mente, é algo que já não é mais. F oi, certa vez , pa rte
de uma totalidade. Ao mesmo tempo, convida a uma permanente
reconstrução. Um patrimônio cultural é feito de ruínas no sentido
literal e no sentido metafórico do termo. Como uma forma
moderna de alegoria, as narrativas de patrimônio cultural
transformam objetos em ruínas, no sentido em que os resgatam de
um supo stament e inevit ável processo de destr uição. C omo disse
W a lte r Be njamin, "Allego ries are in the realm o f thought, wha t
ruins are in the realm of things" (1977:178). As narrativas de
patrimônio cultural podem ser pensadas como conjuntos de ruínas

ou fragmentos que jamais chegam a compor uma totalidade


plenamente coerente. Constituem um processo interminável de
apropriação e reconstrução de objetos, sempre em
des apa reciment o. O interminável jog o entre fragment os e
totalidade, destruição e reconstrução, coerência e desintegração é
simbolicamente usado para fazer com que as pessoas vejam e
identifiquem-se com a nação enquanto uma entidade a ser
protegida e preservada.
As narrativas de patrimônio cultural são alegorias da

formação nacional. A expressão "formação nacional", tal como é


usada por cientistas sociais e historiadores, designa os processos
sociais e históricos de construção das modernas sociedades
nacionais2. A partir dessa perspectiva, focalizam-se os aspectos
sociais, econômicos e políticos desse processo. Neste estudo, estou
interessado nos aspectos simbólicos desse processo, em como sua
dimensão de relações objetivas é narrativamente transformada em
formas de subjetividade individual e coletiva. Essas formas de

2Para um bom exemplo de


nation-building como um processo histórico e so
cial, ver
Elias (1978). Para uma interpretação antropológica sobre o papelda antropologia no
processo de for mação nacional do Brasil - inter
pretação baseada nas idéias de Norbert
Elias e Louis Dumont - ver Peirano (1980).

1 17 REDIMINDO A NAÇÃO
subjetividade, no entanto, são parte constitutiva daquelas relações
objetivas, uma vez que estas últimas jamais são percebidas, senão
por intermédio daquelas formas. A nação, seu passado, sua
identidade são as verdades transcendentes expressas
simbolicamente pelos fragmentos que compõem as narrativas de
patrimônio cultural.
As narrativas nacionais, em geral, são usadas como
instrumentos simbólicos nos processos históricos da formação
nacional3. No plano dessas narrativas, a redenção nacional é
pensada por oposição à sua contingência: esta última é vista como
a próp ria hist ória co nce bida como um processo des trutivo: a
redenção é a "cultura" ou a "civilização", pensadas como uma
totalidade coerente e contínua, capazes de assegurar a vitalidade e
a permanência de uma auto-consciência nacional. A contingência,

no entanto, assim como a redenção, são parte do mesmo processo


na rrativo. Q ua nto mais se tenta resgat ar o passado e a cu ltura
nacional, mais eles se perdem.

3 No entanto, gostari
a de chamar aatenção, uma vez mais, para ato o f de que, quando
afirmo que narrativas são "i
nstrumentos",não pretendo com isso afirmar que elas
sejam uma espécie de eleme nto intermediário entre sujeito e objeto,entre intelectuais
nacionalistas, deum lado, e um pr ocesso histórico e social de formação nacional, de
outro.Minha sugestão é de que pensem os as narrativas como parte do comportamento

desses intelectuais, como formas de ação.Aqui, sigo a perspect iva wittgensteiniana de


Richard Rorty, para quem a linguagem é p ensada como "jogos", como "formas de
vida". De acordo com essaperspectiva, a concepção delinguagem comoum
instrumento não deco rrede uma visãoutilitarista ingênua. Assim, para Rorty, a
linguagem éconcebida "...notasa te itium q u id between Subjectand Object, norasa
médium in which we try to o f rm pictur es of reality, butas partof the behavior of human
beings. On this view, the activity of uttering sentences is one ofhe t things that people
do in órderto cope with theirenvironment. The Deweyan notion of languageas ool t is
right as far as it goes. But we must be careful n o t to phrase thisanalogy so as to suggest
that one can^eparate ht e tool, language, fromits users and inquire as to its 'adequacy'
to achieve our purposes. The latter suggestion presupposes that there is some way of
breaking out to language in orderto compare ti whit something else. Butthere is no
way to think about either the world or our purposes except by usin g our language"
(1982:XVIII-XIX).

1 18 A RETÓRICA DA PERDA


As alegorias de Rodrigo e Aloísio: visões da autenticidade

A palavra redenção é usada neste estudo para expressar o


empreendimento de produção simbólica da nação enquanto uma
entidade existindo por si mesma, numa dimensão transcendente de
perman ência, a sa lvo das co ntingênc ias hist óricas. O pa trimô nio
cultural, por meio do qual a nação é simbolicamente atualizada,
existe supostamente nessa dimensão incondicional. Ao mesmo
tempo, ele é composto por elementos contingentes, fragmentários
e evanescentes. Uma vez que ele é usado como uma metáfora
extensa da n ação, est a é tam bé m co nc eb ida em con traste com
sua própria contingência e precariedade. Nesse sentido, a
autenticidade da nação é um efeito de sua própria
descontinuidade e desintegração cultural.
No entanto, a redenção não é um resultado final desse

empreendimento de apropriação dos itens culturais que estariam


supostamente sendo destruídos, perdidos, homogeneizados, etc;
trata-se de uma experiência antecipada, presente já no momento
mesmo das práticas de apropriação, que se opõem à destruição e
à perda. Essas práticas visam à defesa de um patrimônio que é
concebido, em parte, como uma dimensão de integridade,
continuidade e autenticidade, ao abrigo das contingências da
história. Ao mesmo tempo, ele deve ser defendido das ameaças de
destruição. Assim, no momento mesmo em que se tomba uma
igreja colonial barroca como monumento nacional, a cultura
brasileira está sendo redimida e a nação, simbolicamente
reconstruída, em oposição à possibilidade de sua desintegração.
Desse modo, a redenção é, simultaneamente, o efeito e a pré-
condição das narrativas de patrimônio cultural.
Usadas com o propósito de redimir o Brasil da história
e da contingência, essas narrativas transformam simbolicamente
um conjunto heterogêneo e fragmentário de itens culturais em
uma entidade total e coerente, classificada como "cultura
brasileira". Por intermédio de monumentos, cidades históricas,
relíquias, práticas culturais objetificadas, etc., elas exibem visões
do Brasil fundadas na imediaticidade. Meu objetivo é mostrar

1 1 9 RE DIMINDO A N AÇÃO
algumas mediações que estruturam essas visões.
Redimida enquanto "civilização" e "tradição", a nação,
na narrativa de Rodrigo, individualiza-se, na medida mesmo em
que consegue resgatar e preservar essas entidades que sustentam
sua memória e identidade. Em outras palavras, a nação é redimida

na medida em que mantém os vínculos com sua "tradição",


tornando-s e, assi m, "c ivili z a d a ". O Brasil é s imbolicame nte
visualizado por meio de elementos concretos e contingentes, tais
como objetos, monumentos, cidades históricas, que são usados
para representar verdades transcendentes como a "tradição" e a
"civilização". Esses elementos são usados para desencadear em
cada um de nós a experiência de uma visão sensível e imediata
do Brasil. Essas visões são obtidas por meio da coerência
narrativa. Uma coerência ficcional é projetada no mundo que, de
outro modo, permanecería como uma realidade distante e
evanescente.
A noção de "cron otopo ", el aborada por M ikha il
Bakhtin no contexto de análise de textos literários, pode nos ser
útil para entendermos a função simbólica desempenhada por esses
elementos concretos e contingentes que compõem o chamado
patrimônio cultural. De acordo com Bakhtin, "cronotopos"
(literalmente "tempo/espaço") são unidades narrativas nas quais
"...spatial and temporal indicators are fused into one carefully

thought out, concret whole. Time as it were, thickens, takes on


flesh, becomes artistically visible; likewise, space becomes charged
and responsive to the movements of time, plot and history. This
interconnection and fusion of indicators characterizes the artistic
chronotope" (1985:84). Segundo esse autor, os cronotopos "...are
the organizing centers for the fundamental events of the novel.
T he chro no tope is the pla ce whe re the knots o f the na rrative are
tied and untied" (1985:250). Em outras palavras, é por intermédio
dos cronotopos que as narrativas ganham coerência. Nesse sentido,

os elementos concretos e contingentes que compõem um


patrimônio cultural são usados como "nós" (knots) em torno dos
qua is as narr ativas de p atrimô nio s ão atadas e desatadas. O uso
desta noção, entretanto, não nos leva necessariamente a pensar os

12 0 A RETÓRICA DA PERDA
cronotopos como unidades absolutas, intrínsecas à narrativa. Mas,
antes, como o efeito de atos interpretativos, atos de leitura
visando a construir a coerência de uma narrativa. Desse modo, os
cronotopos jamais se configuram como elementos plenamente
presentes e coerentes. Fazendo uso do jargão de Derrida, é
possível dizer que os cronotopos estão divididos contra si mesmos,
sendo menos uma presença substantiva do que o efeito de uma
distância, um objeto de desejo4.
Na narrativa dê Rodrigo, conforme assinalamos no
capítulo quatro, os monumentos arquitetônicos históricos e
religiosos são usados como uma metáfora central. De certo modo,
eles podem ser pensados como os "cronotopos", usados para atar
e desatar , para dar co erên cia à quela narrati va. M uitos
monumentos, lugares, cidades ou relíquias poderíam ser usados
como exemplos. Vale destacar, no entanto, o papel proeminente
desempenhado por um deles.
É o caso da mais famosa "cidade histórica" mineira:
O uro P reto. A té os anos vi nte, quando ve io a ser "rede sc obe rta"
pelos intele ctuais m od ernis tas 5, O uro P reto era mais uma de ntre as
"cidade s mortas " de que no s falava M on te iro L obato (1956). A pós
a exploração do ouro, no século XVIII, Ouro Preto entrou em

4Assumindo, ao que parece, uma perspec tiva kantiana, Bakhtin acredita que os
cronotopos sejamelementos universais, intrínsecos a qualquer narrativa. Diz ele: 'The
image of man is alwaysintrinsically chronotopic" (1981:85). É possível que seja m ais
produtivo pensarmos os cronotoposem termos dos seus uso s e efeitos,e estes são
sempre contextuais, dependentes de ações e depropósitos humanos espec íficos.

s Sobre as "redescobertas" de Ouro Preto, vale a pena citar aqui um texto de Otto
M aria Carpeaux: "Ouro Preto foi três vezes descober ta: em 1698, pelosbandeirantes;
em 1893, pelosintelectuais boêmios do Rio de J aneiro; e porvolta de 1925, de 19 29,
pelos moderni stas de São Paulo. (...)A redescoberta de Ouro Preto é um dos grandes
feitos do modernismo. M ário de Andrade esteve lâ. Oswald de Andrade escreveu os
famosos versos sobre os profetas do Aleijadinho. De Manuel Bandeira é a subst anciosa

crônica "De V illa Rica de Albuquerquea Ouro Preto dos Estudantes", primeiro núcleo
daquilo que será mais a t rde o indispensável
Cu ia de Ouro Pr et o.Vieram as p
áginas de
Carlos Drummond de Andrade. Vieram so serviços de Rodrigo Melo Francode

1 21 RE DIMI NDO A NAÇÃO


decadência. No entanto, durante a maior parte do século XIX, ela
foi a capital da então província e, posteriormente, Estado de
Minas Gerais. Ao fim do século, em 1897, ela veio a ser
substituída pela cidade de Belo Horizonte, cidade planejada
segundo concepções urbanísticas modernas e que veio a realizar
antigo projeto de mudança da capital (Bomeny 1994). Uma das
cons eqüên cias d a "redes co bert a" de O uro P reto pelos intelectuais
modernistas foi o seu reconhecimento oficial como "monumento
nacional", no início dos anos trinta, por decreto presidencial de
12 de julho de 1933, antes mesmo, portanto, da criação da
S P H A N , em 1937. M ais tarde, nos a nos sessen ta, a cidade veio a
ser reconhecida pela UNESCO como "cidade-monumento mundial"
e, assim, integrada ao "patrimônio cultural da humanidade".
Nas n arrativas do patr imô nio cu ltural do B rasil, O uro
P reto e as "cidad es históricas de M inas " desempenham a funçã o

de cronotopos por meio dos quais uma narrativa histórico-política


e cultural ou artística ganha coerência e autenticidade. Manuel
Bandeira, autor de um Guia de Ouro Preto, encomendado e
pub lica do pela pr ópria S P HA N, afirma: "A s duas grand es som bras
de O uro P reto, aquel as em que pen samos inven civelmen te a cada
volta d e rua, são o T iradent es e o A leijad inh o " (1938: 49). N o
contexto das narrativas de patrimônio cultural, eles são heróis
alegóricos das histórias política e artística que se desenrolam no
cenário das cidades históricas e nas quais estas desempenham a
função dos cronotopos.
N o caso das hist órias polít icas , O uro P reto e outras
"cidades históricas" de Minas são usadas como espaços simbólicos
que dão concretude e autenticam os celebrados eventos e
personag ens d a Inc onfidência M ineira. A cidade de O uro P reto é
descrita na literatura turística pelas suas associações simbólicas
com os eventos e personagens daquele movimento político pela
independência nacional, no século XVIII. No texto do decreto

Andrade e bastaestecaro nome para reve lar o sentido profundo de


ssa terceira
descoberta: em Ouro Preto conquistou o Brasil modernosuaconsciência histórica"
(C orreioda M anhã, 8/7/1961).

12 2 A RETÓRICA DA P ERD A
presidencial pelo qual Ouro Preto veio a ser conhecido como
"monumento nacional", em 1933, a decisão é justificada pelos
argumentos de que "...fazem parte das tradições de um povo os
lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história;..."
(ME C /S P H A N -P ró-M emóri a 198 5:89). E que "... a cid ade de O uro
P reto, a ntiga cap ital do Estado de M inas G erais, foi t ea tro de
acontecimentos de alto relevo histórico na formação de nossa
nacionalidade e que possui velhos monumentos, edifícios e
templos de arquitetura colonial, verdadeiras obras de arte, que
merecem defesa e conservação;..." (1985:89). Os acontecimentos e
os personagens históricos ganham coerência por meio desses
objetos, lugares e casas, elementos concretos e contingentes.
A pa rtir dos anos t rinta e quar enta, a cidade de O uro
Preto veio a se tornar, progressivamente, um importante foco do

chamado "turismo cultural". Em seu conjunto, aquela área passou


a ser descrita como a mais importante concentração de arte e
arquitetura barroca do continente sul-americano. E também como
uma fonte de autenticidade para valores artísticos e arquitetônicos
brasileiros. Em termos mais específicos, a arquitetura religiosa
barroca produzida na região tem sido fortemente enfatizada nas
narrativas de preservação histórica, particularmente na de Rodrigo,
com a sua valorização da "tradição" e da "civilização". Ao longo
das últimas seis décadas, a cidade de O uro P reto, as demais

"cidades históricas" de Minas, a arte e a arquitetura barroca, as


obras de Aleijadinho têm sido cultuadas por meio das práticas de
preservação e restauração realizadas pelo SPHAN, por meio de
livros e artigos em jornal e revistas, e, principalmente, pelo fluxo
de vis itaç ão turís tica naciona l e internacion al. O co njun to a rtís tico
e arquitetônico representado por Ouro Preto e outras "cidades
históri cas " de M inas é usado par a a uten ticar uma narrat iva na
qual a região é descrita como o "berço" dos mais autênticos e
srcinais valores da cultura brasileira. Em seu Guia de Ouro Preto,

o poe ta M anu el B andeir a afir ma: "P ara nó s bras ileiros, o que tem
força de nos comover são justamente esses sobradões pesados,
essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso começou a
se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse

123 RE DIMINDO A N AÇÃO


partido" (1938:42)6. Nas narrativas histórico-políticas, assim como
nas n arrativas c ulturais do pa trimô nio, O uro P reto é desc rita c om o
o "berço" de valores políticos e culturais brasileiros. Nesse
sentido, a cidade é, por um lado, um conjunto urbano concreto e
contingente, com suas ruas, casas, monumentos, população, etc;
por outro, é a cidade metafórica ou "lendária", associada a
valores nacionais transcendentes.
No discurso de Aloísio, é possível encontrar um outro
exemplo de bem cultural a desempenhar um papel similar ao
exe rcido po r O uro P reto e pelas cidades histór icas de M inas no
discurso de Rodrigo.
Vimos que, em Aloísio, a nação é redimida como
diversidade cultural e como "desenvolvimento". Ela é salva do
desaparecimento ou da "homogeneização" cultural, na medida em
que se possa assegur ar um "des en volvimento autônom o", funda do
em valores nacionais autênticos. A ênfase, como assinalamos no
último capítulo, é colocada não em monumentos históricos e
arquitetônicos, mas numa ampla categoria de bens culturais, que
inclui atividades pré-industriais, artesanato, festas populares,
esportes, etc., enfim uma vasta categoria de atividades culturais e
objetos considerados como parte integrante da vida cotidiana de
diversos segmentos da população brasileira. Esses bens concretos e
contingentes são usados para representar verdades transcendentes
como a "diversidade cultural", a "cultura popular", o
"desenvolvimento", o "caráter nacional".
J á tivemos també m a opo rtunida de de mencionar o
caso de um centro religioso afro-brasileiro tombado pelo governo
federal co mo um "monu me nto na cion al", em 19 84. C onfor me
assinalamos, o Terreiro Casa Branca, em Salvador, está longe da

6No texto de Bandeira, assimcomo na narrativa de Rodrigo, o patrimônio cultural em


geral, e Ouro Preto em particular, é visto co
mo um caminho concreto para restabelecer
os laçbs comuma tradiçãoperdida. Nesse sentido, o patrimônio é visualisado em
termos auráticos, enfatizando-sea "singularidade" e a "permanência", em oposição à
"reprodutibilidade" e à "transitoriedade" (Benjamin 1969:221).obr
S e essetema ver pé
de página 1no capítulo quatro.

124 A RETÓRICA DA PERDA


imagem convencional de um monumento histórico e arquitetônico
nacional. Trata-se de um pobre e decadente prédio, situado numa
área próxim a à p eriferia de S alvador e que ve io a ser obje to de
valorização imobiliária. Um dos pontos enfatizados pelos
intelectuais que vieram a propor o tombamento do terreiro como

"monumento nacional" era o de que o Casa Branca é, na Bahia, o


mais antigo terreiro de candomblé. Além disso, é considerado
como o herdeiro de uma determinada tradição cultural, linguística
e religiosa: a "tradição nagô" (Dantas 1989). Em um documento
produzido por intelectuais onde se propunha o tombamento do
Casa Branca como monumento nacional, ele é descrito como a
"matriz da nação nagô" no Brasil.
Do ponto de vista da agência federal de preservação
histórica, o tombamento do Casa Branca foi justificado pela
crença segundo a qual esse terreiro é um importante marco não
apenas da história social e cultural dos negros, mas da vida social
e cultural da nação brasileira como um todo. Uma matéria
publicada num jornal de Salvador relata que, após a decisão
oficial quanto ao tombamento do Casa Branca, o então Secretário
de C ultura, M arcos V il laça ter ia dec larado: "...f o i quebrado o tabu
de que cultura é apenas o barroco" (Correi o da Bah ia 1984).
Alguns celebraram essa decisão como "revolucionária", já que,
pela primeira vez, um bem cultural associado à cultura religiosa
afro-brasileira foi oficialmente reconhecida como parte da cultura
nacional brasileira. Quando do tombamento do Casa Branca, em
1984, Aloísio havia morrido, dois anos antes. No entanto, a
dec isão ve io a ser jus tificad a pelo S ecret ário de C ultura nos
termos do discurso de Aloísio sobre o patrimônio. Marcos Villaça,
citado por aquele mesmo jornal, teria afirmado: "a cultura, como
a entendo, tem um sentido mais amplo e que inclui o fazer
cotidiano [de diversos segmentos da população]" (Corr eio d a Bahia
1984). Ele menciona, ainda, outros exemplos de bens culturais
tombados pela ent ão S P H A N -P ró-M emóri a e q ue não se
enquadram na categoria de "monumentos" segundo o
entendimento convencional desses termos.
O "cas o do terrei ro Casa B ranca", co mo veio a se r

125 REDIMINDO A NAÇÃO


conhecido entre os especialistas de patrimônio cultural no Brasil,
tornou-se um cronotopo por meio do qual a ênfase de Aloísio na
"diversidade cultural" ganhava coerência e autenticidade. De certo
modo, o Terreiro Casa Branca foi usado como um elo importante
por meio do qual a narrativa de Aloísio sobre o patrimônio era
tecida. Na realidade, não apenas a narrativa de Aloísio, mas
outras, como a dos intelectuais negros, ou, ainda, aquela
produzida pelos integrantes do terreiro. Essa interpretação, no
entanto, merece algumas qualificações.
N o processo de int erpret aç ão dos di scursos de R odrigo
e Aloísio sobre o patrimônio, poder-se-ia sugerir que metáforas
visuais, co mo O uro P reto e o terreiro C asa Bran ca, 'carrega m' em
si mesmas significados específicos, traduzíveis em uma formulação
litera l. Em termos gr osseir os, O uro P reto s ignifi ca ria "trad içã o " no
discurso de Rodrigo, e o Terreiro Casa Branca seria uma expressão
simbólica da ênfase de Aloísio na "diversidade cultural" e na
"cultura popular". Um procedimento similar poderia ser empregado
em outros casos de bens culturais classificados como "patrimônio
nacional". Esse procedimento, no entanto, nos faz perguntar por
que, afinal, as metáforas são necessárias. Em outras palavras, se
podemos traduzir em sentenças literais o que é metaforicamente
dito por meio de imagens, estas seriam, por certo, desnecessárias.
Ainda que possamos interpretar as metáforas de modos diversos,
elas não 'carregam' consigo quaisquer significados intrínsecos além
daqueles que elas apresentam de forma literal. Nesse sentido, o
papel das metáforas parece ser diferente. Fazendo uso das
estimulantes sugestões do filósofo Donald Davidson sobre
metáforas, sugiro que elas desencadeiam ou inspiram determinados
insights, embora jamais possam ser traduzidas em sentenças literais
ou proposicionais (1986:263). Enquanto metáforas extensas, os
bens culturais que compõem um patrimônio não desempenham
uma função proposicional. Eles não nos fazem ver um "quê" mas
um "cora6". Nos casos específicos de Ouro Preto e do terreiro
Casa Branca, o que eles fazem não é comunicar-nos um
significado específico sobre o Brasil: os significados que deles
podem ser extraídos são inumeráveis. Enquanto metáforas, eles

12 6 A RET ÓRICA DA P ERDA


são, antes, usados para nos fazer ver o Brasil por meio de uma
lente diversa ou para desencadear em nós certos insights. Mais que
isso, eles são usados para nos fazer ver uma entidade chamada
'Brasil' enquanto uma realidade irrecusável. Em outras palavras,
eles são usados para produzir um "efeito de realidade" ou para
exibir o que chamaríamos "visões imediatas do Brasil".
Nas narrativas de Rodrigo e Aloísio, a redenção do
Brasil enquanto "tradição", "civilização", "diversidade cultural" e
"desenvolvimento" é antecipada por meio dessas visões imediatas,
que são produzidas como o efeito de uma coerência ficcional ou
narrativa projetada sobre o mundo, como se fosse a própria
realidade. Tal realidade, no entanto, é uma promessa, uma
realização sempre adiada, o objeto de um desejo
permanentemente insatisfeito. Ela é produzida por meio de

elementos que compõem o patrimônio cultural e que são, ao


mesmo tempo, fragmentárias e parte de uma totalidade perdida ou
prometida; literais e metafóricos; contingentes e transcendentes.
Em outras palavras, aquelas visões imediatas do Brasil são sempre
mediadas por fragmentos contingentes e concretos, que compõem
o "patrimônio nacional". No discurso sobre o patrimônio, esses
elementos são usados para superar imaginariamente o fosso entre
linguagem e experiência, entre representação e o que é
representado, entre a nação, tal qual é representada pelo seu

patrimônio e a nação enquanto uma totalidade distante, coerente e


contínua.
Os elementos que compõem um patrimônio cultural
podem ser interpretados como exercendo um papel equivalente ao
que é desempenhado por detalhes concretos e aparentemente
insignificantes que aparecem em narrativas realistas, de acordo
com a interpretação de Barthes para o que chamou de ef f et d e r é
el
(1986). As narrativas de preservação histórica poderíam ser
apresentadas sem aqueles elementos classificados como "objetos

culturais" e preservados enquanto monumentos, relíquias, etc. No


entanto, o papel desses objetos culturais é, precisamente, tornar
possível a produção da realidade enquanto uma entidade coerente
e auto-idêntica. Em outras palavras, seu papel enquanto elementos

127 RE DIMINDO A NAÇÃO


aparentemente irrelevantes ou supérfluos nas narrativas realistas da
preservação histórica é produzir o chamado el . Esse
eff et d e r é
ponto está articulado ao que se refere ao fato narrativo de estarem
esses elementos sempre sob o impacto de um processo de
desaparecimento e destruição, enquanto fragmentos evanescentes.
O que est ou sugerindo é qu e, em dec orrênc ia de su a
condição de fragmentos evanescentes de uma totalidade distante e
coerente, esses elementos podem ser descritos como aparentemente
irrelevantes no processo de narração das estórias da preservação
histórica sobre a história nacional e sobre a cultura brasileira. De
certo modo, é possível afirmar que a história política e cultural do
Brasil po deria ser nar rada sem a cidad e de O uro P reto ou sem o
T e rre iro C asa Branca. E nquanto um conjunto de es paços , pré dio s e
objetos concretos, fragmentários e contingentes, eles podem ser
considerados, em grande medida, como "supérfluos", "fúteis", ou
como um "luxo" no processo narrativo. Este processo poderia
seguir sem eles. Mas está precisamente nessa natureza
fragmentária, nessa aparente irrelevância a sua eficácia para a
produção do chamado el , que é produzido ao se
ef f et d e r é
transformar simbolicamente cidades, prédios e objetos em
monumentos e relíquias, rotulando-os como "patrimônio cultural".
Enquanto tal, eles se configuram em signos visíveis de uma
totalidade distante e significativa, representada pela "cultura
nacional" ou, simplesmente, pela "nação". Assim, o papel desses
elementos é não somente o de autenticar historicamente, mas,
tam bé m, epis tem ologica me nte o Brasi l enqu anto "his tó ria" e
enquanto "cultura". Eles não somente dizem o quê o Brasil é,
mas, sobretudo, que o Brasil é. Eles são usados para produzir ou
inventar o Brasil com uma história e uma cultura singular e
enquanto realidade. Ou, ainda, com uma história e uma cultura
"autênticas".
No contexto das narrativas de preservação histórica e
de patrintonio cultural, a coerência da história e da cultura é
apresent ada po r meios visuais. O "efe ito de real", de que nos f ala
Barthes, pode ser redescrito como o processo por meio do qual se
configura uma visão da realidade, manifesta, supostamente, sem

1 28 A RETÓRICA DA PERDA
mediações. M as essa redes crição tem de ser qua lifica da . Trata-se
de uma visão cujo objeto é concreto e próximo, ao mesmo tempo
que abs trato e distante. A ss im, tanto O uro P reto quan to o terre iro
Casa Branca são, por um lado, espaços, prédios, objetos e
atividades concretos e cotidianos; por outro lado, eles apontam
para uma totalidade singular que se apresenta sempre além do
alcance de uma visão imediata. Essa visão, supostamente sem
mediações, dá acesso a algo que é, ao mesmo tempo, próximo e
distante, presente e ausente. Por um lado, ela é a visão cotidiana
de algo concreto, fragmentário, transitório e reproduzível: uma
cidade, uma casa, um objeto, um conjunto de atividades humanas.
Por outro, ela é a visão aurática de um objeto único, permanente
e não-reproduzível: um monumento, uma relíquia, uma cidade
histórica, que configuram a promessa de uma distante e fugidia
coerência.
É por meio da exibição dessas visões, supostamente
sem mediações, que a redenção nacional é prometida ou
antecipada nas narr ativas alegóri cas de R odrigo e A loís io sobr e o
pa trimô nio cult ural. O Brasi l é metafori ca mente redimido quando
os elementos que compõem o patrimônio nacional são resgatados
e preservados de um processo de desaparecimento e destruição.
Eles são metáforas visuais usadas para autenticar as estratégias de
redenção acionadas nas narrativas de Rodrigo e Aloísio. Eles
autenticam não apenas conteúdos históricos específicos, mas a
própria realidade, representada por essas narrativas. Trata-se de
uma autenticação histórica e epistemológica. Além disso, eles
autenticam não apenas o 'real' tal qual é representado naquelas
narrativas, mas a própria 'visualidade' enquanto uma metáfora
para o conhecimento7.
O pa trimô nio cult ural de uma nação pode ser
interpretado como um interminável conjunto de traços ou
fragmentos que sempre escapam de uma classificação fechada.
C omo foi s ugerido no cap ítul o um, el es podem ser pensados co mo

7A autenticação deve serentendida aquinão comoum processo concluído a partirde


uma realidadesupostamente pré-existente, mas como a articulação significativa dessa
realidade.

129 RE DIMINDO A NA ÇÃO


"indecidíveis", para usar uma das palavras do jargão de Derrida.
Enquanto tais, eles sempre escapam na direção do passado, ou na
direção do futuro, ou, ainda, na direção de um espaço distante.
Eles podem ser usados como pontes móveis a prometer o acesso a
qualquer ponto distante e inaproximável no tempo e no espaço.
N o co ntexto das narrat ivas brasil eiras de pa trimô nio cu ltural, esses
elementos são usados como pontes não somente para um distante
e e vanes cente passado, mas, princ ipa l mente, para um igualmente
distante e emergente fut uro. N esse se ntido, tan to O uro P reto
quanto o Terreiro Casa Branca, enquanto monumentos nacionais,
são preservados não somente a partir de um desejo permanente e
insaciável por um passado distante, mas, sobretudo, a partir da
esperança na construção de um futuro.

■ A nação enquanto uma permanente busca:


a história como nostalgia e como esperança

A "identidade nacional" tem sido uma questão endêmica


no Brasil® e "redes co bertas " da naçã o são consideradas co mo um

®A identidade nacional brasileiratem sido, por longo empo,


t um importantetema de
debate em algumas disciplinasacadêmicas, ass im como em diversas áreasde política
cultural. Nessesdebates a questão básica éo' que é o Brasil?' ou 'quem somos nós,
brasileiros?'. No contexto da antropologia, por exemplo, essa questão tem sido
enfrentada por diversos autores (porexemplo, DaMatta 1990). Amaioria dos
antropólogosbrasileir os, em contraste com seus colegas americanos, ingleses ou
franceses, têm, há muito, tomado sua própria sociedade e cultura como um legítimo e
privilegiado objeto de estudo antropológico.Essa tendência já foi objeto de uma
brilhante reflexão antropológica,onde sediscute a relaçãoentre "ideologias nacionais"
e a produção antropológica no Brasil P( eirano 1980). Acredito, no entant o, que essa
tendência não seja necessariamente a e ' xpressão' de um proce sso histórico social,
como sugere Peirano 1( 980). Uma outra perspectiva apontari a paraa possibilidade de
interpretarmos os debat es sobre identidade nacional brasileira o
c mo formas de açãoe,
desse modô, não uma expressão, mas parte integrante e constitutiva de uma realidade

culturalmente significativa. Em um primeiro movimento,eir


Panodesloca, enquanto um
problema teó rico, a necessidade de seencontrarqualquer ident
idade cultural
intrínseca; num segundo movimento, no entanto, fundamenta os debates sobre

13 0 A RETÓRICA DA PERDA
evento constante na moderna história cultural do país. Nos anos
vinte e trinta, a palavra "redescoberta" era usada para designar a
criação de uma visão modernista da cultura brasileira. A palavra é
parte integrante do vocabulário dos intelectuais modernistas e seu
uso, naquele contexto histórico, é, em si mesmo, o produto de

uma "redescoberta" cultural do Brasil.


Desde então, tem havido várias "redescobertas" do
B rasil. C omo sug ere G ilbe rto V elho: "periodica me nte o Br asil se
'rede sco bre'. O u, p elo menos, set ores das elites se dão c on ta de
ca racterísti ca s marcantes po uc o co nhe cidas e, eventual mente,
obscurecidas em função de razões variadas, mais ou menos
preconceituosas" (Velho 1986:49)* 9. M inh a sugestão é que essa s
redescobertas fazem sentido no contexto de uma busca. Em outras
palavras, fala-se em termos de "redescobertas" do Brasil porque

parte-se de uma narrativa de permanente busca pela identidade


nacional. Nesse sentido, as "redescobertas" podem ser descritas
como efeitos provisórios e contingentes dessa interminável busca.
No caso específico das narrativas brasileiras de
patrimônio cultural, a cultura brasileira é objetificada não apenas

identidade nacional brasileira em um processo social e histórico de formação nacional.


O problema aqui consiste em queesse procedimento, na verdade, vem aserum outro
modo de objetificar a nação - o Brasil enquanto um processo concreto e presente,
ainda que inconcluso, de formação nacional - e que, assim sendo, a interpretação
proposta é partedo problemaque pretende discutir.
9Ainda que um excelent e insight sobre a cena intelectual brasileira,penso que seria
útil evitar adistinção entre as 'redescobertas' e o que é redescoberto, contornand o
assim um possível dua lismo entre esquema e conteúdo (Davidson 1984). Sugiro que as
"características" não existem anteriormente a suas "redescobertas" por parte das elites.
Elas são, antes, partes das, ou engendradas pelas narrativas nacionalistas, nas quais e
pelas quais oBrasil é periodicamente redescober to. Nesse sentido, elas nãosãoapenas
redescobert as históricas e culturais, mas, sobret udo, epistemológicas. A cada vezque o
Brasilé "redescoberto" por seus intelectuais, não é apenasum novo conteúdo que é
acrescentado à definição de um "autêntico" Brasil; é a própria'realidade' do Brasil
que muda com essas redescober tas, uma vez que tal'realidade' não é uma ent idade
sem mediações, existindo anteriormente à sua interpretação.

1 31 RE DIMIND O A NA ÇÃO
enquanto uma entidade a pairar acima da história concebida como
um processo de destruição, mas como uma entidade em constante
processo de transformação. Nesse sentido, a história é não apenas
um processo de "irresistible decay", mas, sobretudo, de "inventive
life", para usarmos as expressões de Benjamin (ver capítulo dois).
A redenção nacional é, assim, realizada não apenas "para a

eternida de ", mas para o futuro. E m outras pal avras, a naçã o é


objetificada como uma permanente e não-contingente
transformação. Cada uma das "redescobertas" do Brasil apontam
para o futuro. Elas são usadas como um refúgio contra a história
concebida como destruição e como afirmação da história enquanto
processo criativo. A redenção nacional em relação à história e à
contingência, ou em relação a uma condição "não-civilizada" ou
"sub-desenvolvida", é antecipada ou prometida pelas
"rede sc obe rtas " do Brasil .

Nos discursos de Rodrigo e Aloísio, as redescobertas


do Brasil enquanto "tradição", "civilização", "diversidade cultural",
"cultura popular", "desenvolvimento" e outras, podem ser lidas
como eventos em uma narrativa de busca. Nesses discursos, o
Brasil é representado como uma nação ainda não plenamente
"c ivili z a d a " (Rodri go) ou "de s en volvi da " (Aloísio) . A mbos
assumem como ponto de partida um Brasil que, supostamente,
"ainda não é" ou que se apresenta como uma "nação emergente".
Ao mesmo tempo em que assumem a nação como uma entidade
preexi stent e, eles vêem a sua existência c om o prec ária —
precária, porque não é mais, mas, sobretudo, porque não é ainda.
Diante dessa precariedade, são os elementos que compõem o
patrimônio cultural que prometem acesso simbólico tanto a um
distante e evanescente passado quanto a um desejado futuro. É
nesse contexto que afirmam a imediaticidade da visão que
sugerem do Brasil como "tradição" e como um incluso processo
de "civilização"; como "diversidade cultural" ameaçada pela
"homogeneização" e como uma "jovem nação em
dese nvo Iv i me n to ".
Nos discursos de Rodrigo e Aloísio, o Brasil é
ob jeti fica do enquant o um pr ocesso de t ransf ormação. O passa do é

1 32 A RETÓRICA DA PERDA
resgatado em favor do futuro. Mesmo quando o passado é
fortemente enfatizado, como no discurso de Rodrigo, ele o é em
prol do processo de civilização, que não se afirma sem uma
"trad içã o ". Nesse sent ido, a t ransit oriedad e das coi sas — um tema
cru cial nas moder nas narr ativas alegóricas — é vista não co mo
uma condição negativa, mas como a possibilidade mesma da

realização futura da nação. A redenção é antecipada pela


objetificação da história e da contingência como um processo de
transformação, sob o nome de "civilização" ou de
"dese n vol v i me n to".
Essa interpretação pode ser apresentada em um outro
vocabulário. Assumindo uma perspectiva histórico-sociológica, seria
possível dizer que, no Brasil, o processo de construção nacional
(nation building) não foi ainda concluído (Peirano, 1984; 1991:85-
104). Em termos mais específicos, o processo de integração "terri

torial", "social" e "ideológica" que, de acordo com Peirano,


baseando-se em Elias (1972; 1990), caracteriza a construção dos
modernos estados-nação não teria se realizado de modo
conclusivo no caso brasileiro. Nesse sentido, o Brasil é visto como
um moderno estado-nação " e m pr oce sso de integração" (1991:
103). Uma das consequências desse fato, para a autora, é que,
para os intelectuais brasileiros em geral, e para os cientistas
sociais em particular, o Brasil é representado como um projeto e
não exatamente co mo uma entidade pl ename nte reali za da. Em

suas próprias palavras: "...no caso brasileiro, este todo maior


representado pelo modelo do estado-nação não está integrado, mas
em p ro ce sso de integração. Deste traço característico de nossa
ideologia nacional decorre que a idéia de nação se configura para
o cientista social como projeto e não propriamente como imagem
acabada..." (1991:103).
C onforme sugeri no i ní cio dest e ca pítulo, faço uso d a
expressão "formação nacional" não exatamente para designar um
processo histórico e social, mas como uma alegoria, uma estrutura

narrativa pela qual a nação é uma realidade sempre prometida,


mas jamais plenamente presente. Sugiro que poderia ser mais
interessant e — no se ntido de que po deria nos traz er nova s

133 REDIMINDO A NAÇÃO


quest ões — se, as sumindo uma ce rta liberdade diant e do text o,
léssemos a interpretação formulada por Peirano não exatamente
como referindo-se a um processo social e histórico preexistente a
suas interpretações, mas referindo-se a uma série de narrativas
histórico-sociológicas onde o Brasil é representado enquanto um
processo de busca pela identidade nacional. A coerência dessas
narrativas residiría não em um processo objetificado de formação
nacional, mas nas várias estratégias por meio das quais se
articulam.
As "redescobertas do Brasil" são, simultaneamente,
efeitos e pré-condições para as narrativas sobre o Brasil enquanto
uma busca pela identidade cultural. Essa busca por uma
identidade cultural nacional e as suas eventuais redescobertas são
autenticadas, no âmbito das narrativas de patrimônio cultural, por

meio da visualização, apropriação e perda desse patrimônio.


Enquanto uma metáfora extensa para a nação, o patrimônio cul
tural é usado para produzir o chamado "efeito de real", no
contexto das "redescobertas do Brasil". É por intermédio de sua
exibição que a chamada identidade cultural é tornada real,
concreta e autêntica. Uma vez que a nação existe
metaforicamente por meio de seu patrimônio e uma vez que esse
patrimônio é concebido como uma espécie de ponte entre o
passado, o presente e o futuro, a nação mesma pode ser

o bje tifica da co mo essa ponte. O pa trimôn io está semp re em


processo de desaparecimento, seu resgate jamais será completo, na
medida em que aquilo que ele representa somente existe na
medida em que se perde. Metaforicamente, a nação sempre
escapa na direção do passado (como "tradição"), na direção de
um presente distante e evanescente (a "diversidade cultural"
ameaçada pela "homogeneização"), mas, sobretudo, na direção do
futuro (como "civilização" e como "desenvolvimento"). Nesse
sentido, os discursos brasileiros sobre o patrimônio cultural
articulam rrão apenas um sentimento de nostalgia por um passado
que se perde, mas, também, um sentimento de esperança por um
futuro emergente, ainda que inaproximável.
Uma vez que os discursos de Rodrigo e Aloísio são

13 4 A RETÓRICA DA P ERDA
interpretados como narrativas de busca por uma identidade
nacional, suas respectivas "redescobertas" do Brasil são,
implicitamente, eventos transitórios. Por um lado, eles redescobrem
uma cultura brasileira como uma entidade preexistente, coerente e
contínua; mas, por outro, desde que objetificam a nação como
uma interminável busca, suas redescobertas do Brasil,
simultaneamente, são e não são. Seu objeto é sempre adiado para
um futuro ao mesmo tempo presente e ausente. Dizer, assim, que
a nação é redimida como uma busca pela identidade implica em
que essa redenção seja nada mais que uma promessa não
cumprida.

135 RE DIMI NDO A NAÇÃO


Capítulo Seis

■ OS USOS DA O BJETI FI CAÇÃ O CULTU RA L

" N ão t enha, p elo a m or de D eus,


m edo d e di zer c ois as s em sentido.
M a s p r est e a t en ção às co i sas
sem sentid o q ue v ocê d i z."
Ludw ig Wi ttge ns te in
(C ult ure a n d value, p.56)

M eu propós ito, ao longo dest as págin as, foi o de


contribuir para os debates sobre identidade nacional e patrimônio
cultural brasileiro, sugerindo uma interpretação sobre o tema que
suscitasse novas questões. Ao interpretar os discursos sobre o
patrimônio cultural brasileiro como "estratégias de objetificação
cultural" usadas por intelectuais com o propósito de construção da
nação, minha expectativa foi a de deslocar o foco dos debates,
muitas vezes centrados em categorias objetificadas, como as de
"cultura", "sociedade", "nação" e "história", para as estruturas
narrativas, ou para as "telas terminológicas" (Kenneth Burke) por
me io das quais es sas noções se trans formam e m fatos s ocia is 1.
Ao assumir essa perspectiva, não está em jogo
qualquer censura aos usos objetificados daquelas categorias. Os
discursos analisados neste estudo, assim como os personagens que
os encarnaram por meio de políticas específicas de patrimônio
cultural no Brasil, desempenharam um papel de notável
importância histórica no processo de construção cultural de uma
identidade nacional brasileira. Esses discursos, no entanto, como
--------------------
1Vale aqui lembrar a sugestão de Michael P ollak, para qu em "...não setrata mais de
lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os fatos sociais se omam
t
coisas, como e por quem eles são solidificados edotados de dur ação e estabilidade"
(1989:4).

1 36 A RETÓRICA DA PERD A
qualquer obra humana, trazem, inevitavelmente, as marcas do
contexto histórico, intelectual e político em que foram produzidos
e usad os. J á distanc iados do mom ento em que fl oresc eram,
estamos numa posição confortável para perceber os seus limites.
Não seria nem ética nem epistemologicamente produtivo usarmos
essa posição para adotar uma atitude de censura e condenação
aos que assumiram corajosa e dedicadamente a tarefa de trazer
para o espaço público os meios simbólicos pelos quais nos temos
representado enquanto nação.
Esse distanciamento, no entanto, ao nos facilitar a
percepção daqueles limites, sugere que é tempo de não mais nos
satisfazermos com a simples repetição celebratória dos discursos e
das políticas daqueles personagens. Se mudamos apenas a partir
do momento em que nos conhecemos, em que tomamos
consciência dos discursos pelos quais nos expressamos e que, em
grande medida, nos produzem, estas páginas tiveram como
objetivo, prioritariamente, a construção dessa auto-consciência.
Q uando uso a noção d e "objeti fica çã o c ult ura l" par a
ana lisa r os discur sos do pa trimôn io cult ural brasileir o, não o f aço co m
um se ntido de denún cia nem de qua lquer advert ência, no senti do de
que as pessoa s "não de vam " ob jeti ficar a nação enquanto "t rad içã o ",
"civiliza ç ã o ", "di versidade c ultural", "desenvo lviment o" ou por meio
de quaisquer outras metáforas. Em outras palavras, não estou interessado
em d ize r seja lá para quem for: "não o bje tifiqu e !"; mas, ant es:
"C onsidere que o q ue você t oma c omo uma ' co isa ' ou com o um 'fat o '
pode muito bem ser percebido como um empreendimento lingüístico,
como um conjunto de metáforas produzido coletivamente e usado
segundo determinados propósitos". É inevitável que se objetifique a
nação mo derna po r me io de alguma met áfora, co mo é o caso dos
"patri mô nio s c ultura is". M as é també m poss ível, e bastante ilumina do r,
toma rmos c ons ciênc ia de no ssas objet ificaçõ es enqua nto atos
conti ngent es e provi só rios de invenção c ultural, via bili za do s pelos
códigos culturais a partir dos quais nos representamos coletivamente.

Em resumo, não podemo s escapar da obje tificaç ão , mas podemos


ma nter a co ns ciên cia alert a para o fat o de que estamos ob jeti fica ndo .

1 37 OS USOS DA OBIETIFICAÇÃ O CULTURAL


É por essa razão que considero a interpretação que
construí sobre os discursos de Rodrigo e Aloísio como uma
contingente e provisória objetificação das narrativas que têm
informado as políticas oficiais de patrimônio cultural no Brasil nas
últimas cinco ou seis décadas. Desse modo, não acredito que essa

interpretação "revele" qualquer verdade ou significado oculto e


intrínseco a essas narrativas. Ela seria melhor definida como o
efeito provisório e problemático de uma "conversação" com
aqueles que assumem os discursos de patrimônio cultural como
instrumentos para sua ação político-cultural, dentro ou fora das
agências do Estado2. Vejo essa interpretação mais como o produto
diferenciado dessa conversação do que uma análise determinada
pela existência de um objeto, empiricamente dado ou
teoricamente construído, chamado "discursos do patrimônio cul

tural". Nesse sentido, ao tratar os discursos de Rodrigo e Aloísio


como "narrativas de perda e redenção", meu propósito foi
desalojar qualquer expectativa de uma coerência intrínseca a esses
discursos e supostamente garantida pela "história", pela
"so c ied a de " ou pela " cultura ". M inha sugest ão foi, antes, no
sentido de que essa coerência fosse considerada como o efeito de
"atos específicos de leitura", para usarmos uma expressão de
J ames C liffo rd (1988:52-53).
A leitura que faço das narrat ivas de R odrigo e A loís io é a
de que ambas dramatizam uma interminável busca por uma
"autêntica" identidade nacional brasileira. A noção de uma
"busca" é por mim usada como uma "invenção" (Wagner 1975)

2 Faço usodas sugestõesde Michael Oakeshotta respeito das possibilidades da noçã o


de "conversação" como uma metáfora para pensaras relações humanas: "Ina
conversation, the participants arenot engaged in an inq uiry or adebate: here
t is no
'truth' to be discovered, no propo
sition to be proved, no conclusion sought.They are
not concemed to inform, to persuade, or to refute one another, and therefore he
t
cogency ofdheir utterances does not depend upon their alI speaking the same idiom;
they may differ without
disagreeing.O f course, a conversasion may hav e passages of
argument and a speakersinot forbidden to be demonstrative; but er asoningis neither
sovereign nor alone,and the conversation itself does not compose an
argument"(1959:10). Para um uso recente dessa metáfora em filosofia, ver Rorty ( 1979),

138 A RETÓRI CA DA PERD A


por meio da qual interpreto o que dizem Rodrigo e Aloísio sobre
o patrimônio cultural brasileiro. Não sendo necessariamente um
atributo intrínseco de suas narrativas, a noção de "busca" é aqui
usada com o propósito de iluminar uma determinada visão pela
qual as "rede sc ob ertas " do B rasil, nas nar rativas de R odrigo e
Aloísio, são simultaneamente afirmadas e negadas, sendo o
patrimônio cultural brasileiro representado como o efeito de uma
tensão entre o que não é mais e o que não é ainda, e a formação
da nação como um processo aberto e inconcluso.
M inh a e xpe ctativa é a de que es sa leitura possa, d e
algum modo, contribuir para manter viva nossa conversação
coletiva sobre o patrimônio cultural brasileiro.

1 39 OS USOS DA OBJ ETIFI CAÇ ÃO CULTURAL


representação do patrimônio cultural
como efeito da tensão entre o que não é
mais (perda) e o que não é ainda (busca) e
a formação da nação como um processo
aberto e inconcluso.
£ particulaimente cheia de implicações para
um esforço reflexivo a maneira pela qual
o autor trata as estratégias de objetificação
cultural atualizadas por
grupos dente
i lectu
ais
em contextos sócioculturais específicos.
Propõe, a partir daí, a possibilidade de pensar
os debates sobre identidade nacional bra-
sileira não como um processo fundado em

uma base ou como expressão de um desen-


volviment
o históricosocial, mas como for-
e, portanto, parteintegrante
mas de ação
do processo de formação nacional enquanto
realidade culturalmente significativa.
O livro, assim, prestase a diversas leitu-
ras, todas de extremo interesse e impor-
tância. Para os antropólogos certamente
não passarão desapercebidas as implica-
ções do seu estimulante chamamento a
um esforço reflexivo sobre a disciplina e o
uso altamente produtivo da combinação
da literatura antropológica com aedou-
tras tradições, entre as quais a critica lite-
rária e o neopragmatismo.
CertamenteA Retórica da perda virá a
ocupar lugar de destaque nas discussões
sobre o patrimônio cultural e a formação
nacional brasileira que o autor
propõe que
sejam encaradas como conversação coleti-
va. Não só deverá ajudar a mante
r esta
conversação, como tem tudo para contri-
buir de modo decisivo nauas renovação.

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