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A RETÓRICA DA PERDA
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Ministro da Cultura
F ranci sco W effort
P resident e
G lauco C amp ei Io
Diretora
J urema K opke Eis A rna ut
C oordenad or de E ditoração
Sebastião Uchoa Leite
R eitor
P aulo A lcânt ara G omes
Vice-reitor
J osé H enrique V ilhena de P aiva
Editora UFRJ
Di retora
Heloisa Buarque de Holanda
E ditora A ss istente
Lucia Canedo
C oorden ador a de P rodu ção
A na C arreiro
José Reginaldo Santos Gonçalves
A RETÓRICA DA PERDA
E dição de t exto
J osé A ntônio N o nato/ IP H A N
A Identificação do Brasil 36
A R etórica da P erda 88
Bibliografia 140
Capítulo Um
Ludw ig W ittge ns te in
(In vest ig a ções Fil osófi cas, p . 148)
■ Narrativas nacionais
1A expressão "histó rica e politicamente situadas" é problemática. Ela pode sugerir que
exista substant ivamente algo chamado"política" ou "história". T anto a políticaquanto
a história sã$>construçõesculturais e, como tais, não são realidadespré-exist entes nas
quais estariam sit uadas asações human as. Em outras palavr as, tanto a políticaquanto
a história não sãoanteriores,mas partedas narrativas na cionalistas. Essas narrativas,
por sua vez, não são simplesmenteextos t nosentido estrito da palavra; elas sãoormas
f
de ação,"performances".
1 2 A RETÓRICA DA PER DA
(1984; 1988) sugere o uso da noção de "objetificação cultural"
para pensarmos os processos de invenção de "culturas" e
"tradições" em modernos contextos nacionais. Essa noção é usada
a pa rtir de B enjamin W horf, par a quem "a ob jetifica çã o refere-se
à tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não
materiais (como o tempo) como se fossem algo concreto, objetos
físicos existentes" (1978). Segundo Handler, os processos de
objetificação são particularmente evidentes "quando pensamos em
entidades sócio-científicas tais como nação, sociedade, grupo e
cultura, que abordamos como se fossem coisas no mundo natural.
F aço uso da noç ão de 'ob jetifica çã o c u ltura l' para me referir à
materialização imaginativa de realidades humanas em termos de
discurso teó rico baseado no co nc eito de c ultura" (1 984:55-56).
Com o propósito de sustentar e ilustrar seu argumento, ele toma
como base um brilhante insight de Roy Wagner, de cujo livro, Th e
invention of culture, cita: "...a antropologia nos ensina a objetificar
aquilo a que estamos tentando nos ajustar [durante o trabalho de
cam po] co mo 'cu ltura ', assi m co mo o psican alista ou o xamã
exorcisa as ansiedades do paciente objetificando suas fontes"
(H an dler 1984:56; [ W agn er 1975:8] ).
A interpretação dos processos de invenção de "culturas" e
"tradições" em modernos contextos nacionais recebe uma
contribuição srcinal a partir das sugestões de Handler sobre a
"objetificação cultural". Gostaria, no entanto, de sugerir algumas
questões que, espero, possam enriquecer nossa conversação sobre
essa noção e seu uso para a interpretação de narrativas nacionais
sobre patrimônio cultural.
A pa rtir de de W ho rf, H an dler entende a "ob jetifica çã o "
como "...uma tendência da lógica cultural ocidental a imaginar
fenômenos não-materiais (como o tempo) como se fossem
corporalizados, objetos físicos existentes" (1984:55). A
"objetificação" é determinada por uma "lógica" embutida nas
línguas e culturas ocidentais. Por esse viés, ela tendería a ser vista
co mo um process o que o correría independent e mente de açõe s
humanas contingentes e dotadas de propósito. Em outras palavras,
a própria objetificação seria objetificada como a atualização
Para uma reflexão sobre "o primado da narrativa" nas interpretações antropológicas,
ver Velho (1992).
16 A RETÓRICA DA PERD A
a desejável na medida em que sobre ela impõe a coerência for
mal, que somente as estórias possuem" (1980:19). Baseando-se na
teoria lacaniana do símbolo, afirma ele que a narrativa histórica
"transforma o real em um objeto de desejo", na medida em que
apresenta a realidade como um todo coerente e distante, inibindo
a dimensã o c a ótica e arbit rária do real. M ais que ist o, enqu anto
um "objeto de desejo", esse "real" é visto como um objeto
distante que, nas palavr as de W hite, "convo ca -no s de long e (este
'longe' que é a terra das formas) e evidencia para nós uma
coerência formal de que nós mesmos carecemos" "[summons us
from afar (this 'afar' is the land of forms), and displays to us a
formal coherence that we ourselves lack"] (1980:20).
A moderna crença segundo a qual os historiadores
des crevem ou devería m descrever os fa tos 'co m o eles real mente
ocorreram' é produzida por meio de uma estratégia onde o
historiador define a autoridade da narrativa como "a autoridade da
próp ria rea lida de " ["the au tho rity of rea lity its e lf"] (W hite
1980:19). O que im plic a em que o hist oriador, enqua nto narrador,
desapareça. O lugar de onde el e fala permanece invi s íve l, sendo
"a própria realidade" que se manifestaria através do seu texto
(A raújo 1988). O passad o que o histori ado r descreve e anali sa é
apresentado como uma "realidade" cuja existência independería do
narrador, sendo sua tarefa a de expor aquele passado tal como ele
real mente oc orreu. D o leitor esper a-se que assuma o pac to de ler
o texto histórico como o espelho de uma realidade que, à espera
do historiador, veio a ser por este refletida em seu texto.
Esse mesmo problema da "autoridade narrativa" vem
sendo discutido por autores que têm se dedicado a repensar o
mo do de produ çã o dos textos e tnográficos (C lifford 1988; G eertz
1988 , 1982; M arcus and C ushm an 1982; C lifford and M arcus
1986). Assim como no caso do discurso do historiador, as
abastado, quer se ni struir, e descobre, como seu mestre de filosofia, que tudoque não
é verso, é prosa. Assim, M. Jourdaindescobre, comsurpresa, quetudo que ele fala é
prosa.(Nota dos editores).
ob jeto de des ejo, a nação é parado xal mente e xpe rimentada por
tneio de sua ausência. No entanto, essa distância ou ausência
liada mais é que o efeito do desvio diferencial entre coerência e
Inc oe rência, desejo e objeto de desejo, ambos existindo co mo
parte integrante dos discursos nacionais. Nestes, no entanto, esses
desvios diferenciais são representados de maneira não relacionai,
na medida em que a nação é objetificada na forma de uma
entidade distante, integrada, unificada, idêntica a si mesma,
presente, ainda que ausente, próxima, ainda que distante. Há
22 A R E T Ó R IC A D A P E R D A
legitimam-se aquelas práticas de colecionamento, restauração e
preservação de "patrimônios culturais" representativos de
categorias e grupos sociais diversos.
No entanto, este discurso, que se opõe vigorosamente
àquele processo de destruição, é o mesmo que, paradoxalmente, o
produz. Os objetos que vêm a integrar as coleções ou os
patrimônios culturais, retirados do contexto histórico, social, cul-
lural e ecológico em que existem srcinalmente, são recodificados
i om o propósito de servirem como sinais diacríticos das categorias
e grupos sociais que venham a representar. Esses discursos operam
concomitantemente em um plano de fragmentação e em outro de
integração, cada um deles alimentado pelo outro, através de um
processo similar ao que Bateson chamou de "cismogênese" (1972).
Num mesmo movimento produzem-se, transformados em coleções
/
■ Redenção: o patrimônio como alegoria
autenticar
históricos eo exóticos,
real: fotografias,
turismo, reportagens,
especialmenteexibições de objetos
aquele voltado para
lugares e monumentos históricos, instituições que atualizam o
princípio do "ter-estado-presente" ou "estive-lá", por meio do qual o
'real' é pensado e experimentado como auto-suficiente (1988: 163).
E vident emen te esse é um outro mo do p elo qual é possível
descrever e interpretar o chamado processo de "objetificação": o
que Barthes vai chamar de "ilusão referencial" ou "efeito de real".
O que é imp ortante para os pr opó sitos de nossa análise é o fato
de que o "detalhe concreto" na narrativa realista, assim como nas
narrativas nacionais sobre patrimônios culturais, desempenha
es trutural ment e a funçã o de rea liza r uma m ediaç ão s imbó lica
entre linguagem e experiência, entre o passado ou a identidade
3 o A RE TÓR I CA DA PERDA
narrativas nacionais sobre o patrimônio cultural desencadeiam
práticas que são, simultaneamente, redentoras e contingentes,
nutenticadoras e não-autenticadoras. Isso quer dizer que a
autenticidade e a redenção buscadas não são qualidades que são
resgatadas ao final do empreendimento de resgate e preservação
rio patrimônio; na verdade, elas são o efeito da diferença entre a
busca do passado autêntico ou da cultura popular autêntica, ou
ainda da identidade nacional autêntica e essas entidades
objetificadas. Essas narrativas implicam, assim, não apenas o
passado ou a identidade nacional como entidades objetificadas em
él mesmas, mas a idéia mesma de uma busca dessas entidades.
I slas são pensadas como pré-existentes, ainda que em processo de
desaparecimento e como entidades cuja existência redimida deverá
M>r atua liza da pe lo res ultado da busca da a uten ticida de . A inda que
essa busca e o seu objetivo final possam ser ideologicamente
pensados como dois momentos externamente separados, eles
podem ser melhor entendidos como o efeito de seu desvio
diferencial.
3 4 A RE TÓRICA DA PER DA
Finalmente, no capítulo seis, discuto os usos da noção
i Im "objetificação cultural" e as possibilidades que oferece para
verdade autent
ica e afirma a existência doBrasil."
Rodrigo Melo Franco de Andrade
AloísioMagalhães
3 6 A RETÓRICA DA PERDA
isleniffl e oitenta, os debates sobre o "patrimônio cultural
hfiB ll©lro" as sumiram algum relevo e o tem a tornou- se cons tante
lios mtios de comunicação. Esses debates podem ser interpretados
t ume* dimensões de uma luta política pela autoridade cultural para
definir ostensivamente o que seja o patrimônio cultural brasileiro e
=<?m© deva ser pro tegido e pres ervado co ntra o des gaste, a
destruição e outras formas de ameaça. Em outras palavras, esses
debates constituem uma luta pela autoridade cultural e política
paro "identificar" e "representar" a cultura nacional, constituindo-
ie em parte de uma busca mais ampla pela identidade nacional
brasileira.
Ao longo dos últimos cinqüenta anos, é possível
Identificar duas importantes narrativas por meio das quais as
políticas oficiais de patrimônio cultural do Estado brasileiro são
*ulluralmente inventadas. A primeira, associada ao nome de
R odrigo M elo F ranco de Andr ade e ao antigo S P HA N (Secret aria
do P atrimôn io H is tórico e A rtís tico N aciona l), foi he gemônica
desde 1937, ano da criação do SPHAN, até, aproximadamente, a
segunda metade da década de setenta. A segunda está associada
ao nome Aloísio Magalhães e ao processo de renovação ideológica
e Institucional da política oficial de patrimônio cultural que, sob
iua liderança, se desenvolveu desde os anos setenta. Esse processo
desencadeou um debate, de certo modo ainda atual, entre
defensores de diferentes e opostas narrativas sobre o patrimônio
t ullura l bra s ileiro . A pa rtir da segunda me tade dos anos set enta, a
(curativa assumida por Rodrigo e pelo antigo SPHAN veio a ser
desafiada por Aloísio e seus seguidores, que faziam uso de uma
nova estratégia de narração da identidade nacional brasileira e,
consequentemente, assumiam uma concepção diversa do
patrimônio cultural. As posições assumidas nesse debate podem ser
interpretadas como efeitos de diferentes estratégias de autenticação
da identidade nacional. A autoridade cultural desses intelectuais é
adquirida na medida em que persuadem sua audiência, seu público,
d# que eles são capazes de "representar", através do seu discurso e
da sua prática à frente da po lítica o ficia l de patr imôn io, da
maneira mais "au têntica ", a identidade cult ural da nação.
.1 7 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
O ato mesmo de formu lar questões sobre a i den tidade
nacional é já um modo de assumir como auto-evidente e auto-
jus tificáve l a exis tência da naçã o, tomand o-a como uma entidade
preexistente que, supostamente, solicita ser pesquisada,
identificada, defendida e afirmada. No entanto, a identidade
nacional não é um produto final dos debates sobre o tema, algo
como um acordo fundado numa descoberta do que realmente seja
a nação, mas, antes, algo que "acontece", de modo controverso,
provisório, a proximado e i nc om pleto ao longo desses debates. Se
estes são meios para a consecução de um determinado fim, qual
seja, a construção da identidade nacional, poderiamos dizer que
ela já existe naqueles, de modo antecipado. Neste estudo, essa
identidade é concebida não como uma entidade unitária e
permanente a ser descoberta, descrita, explicada e preservada, mas
como os efeitos contingentes e provisórios de uma busca pela
identidade assumida como tal por indivíduos, grupos e categorias
sociais em contextos históricos e políticos específicos. Em outras
palavras, o que é usualmente classificado como identidade
brasileira é considerado neste estudo como o efeito, ao mesmo
tempo que sua pré-condição, das narrativas por meio das quais
intelectuais nacionalistas e outras categorias sociais concebem a
cultura brasileira enquanto um objeto permanente de desejo e de
busca.
3 8 A RETÓRICA DA P ERDA
Nos próximos parágrafos, faço um contraste entre duas
principais narrativas sobre o patrimônio cultural brasileiro e os
contextos histórico-políticos em que foram geradas. Ao fazê-lo,
não estou tomando o contexto como um conjunto de fatos
históricos existindo por si mesmos, mas como parte dessas
narrativas. Desse modo, não estarei preocupado em estabelecer
uma corresp ondê ncia ent re elas e o que "realme nte ac ontece u". O
que parece mais relevante para este estudo é o fato de que os
Intelectuais associados ao patrimônio, sejam eles arquitetos,
historiadores, escritores ou cientistas sociais, sempre pensam esse
lema nos termos de uma narrativa histórica, onde uma série de
©ventos e personagens são apresentados dentro de um enredo
estruturado numa ordem cronológica.
3 9 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
Ainda segundo essa narrativa histórica, o ano de 1937
foi marcado por um golpe de Estado e pela radicalização daquele
projeto modernizador com o estabelecimento do Estado Novo, um
regime político autoritário em que as liberdades democráticas
element ares f oram aboli das. O C ongresso N aciona l assim co mo os
4 o A RETÓRICA DA PERDA
Impunha-se aos intelectuais brasileiros desde a independência
po lítica do país em relaçã o a P ortugal, na prime ira met ade do
século XIX. Desde os últimos anos do império e desde a
Instauração do regime republicano, em 1889, as discussões sobre
esse tema cen traram-se na idéia de "raç a " (S kidmor e 1974;
Schwartz 1993). Ao longo da segunda e terceira década do século
XX, o problema veio a ser discutido, não mais em termos raciais,
mas culturais, como uma busca da "brasilidade", de uma
"essência", "alma" ou simplesmente "identidade" da nação
brasileira. Nos anos vinte e trinta, diferentes respostas foram
apresentadas. Aqueles intelectuais identificados com o modernismo
e associados ao regime político do Estado Novo concebiam a si
mesmos como uma elite cultural e política cuja missão era
"modernizar" ou "civilizar" o Brasil, elevando o país ao plano das
nações européias mais avançadas. No entanto, é importante frisar
que tal projeto estava associado ao reconhecimento da
necessidade de produzir uma imagem singularizada do Brasil
enquanto cultura e como parte da moderna civilização ocidental.
0 problema princ ipal era, assi m, não si mplesment e imitar a
Europa, mas identificar e afirmar uma cultura brasileira autêntica,
ainda que isto fosse feito através do vocabulário das vanguardas
modernistas européias2. Muitos propunham a valorização do
"tradicional" e do "regional" na construção de uma imagem
4 1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
fundados no passado, assim com o em valores regionais. A arte e a
literatura eram instrumentos privilegiados para a definição de
brasilidade (O live ira 1987: 58-65).
Em textos produzidos por intelectuais associados ao
patrimônio lemos que o reconhecimento da necessidade de
proteger o "patrimônio histórico e artístico nacional" havia sido
apontado por intelectuais e políticos, ainda nos anos vinte
(Andr ade 1 952 ; M E C -S P H A N -P ró-Memória 1982). O bviamente, i sto
era parte de uma luta para definir e afirmar uma identidade
nacional brasileira. No entanto, não foi senão em 1937 que o
Estado brasileiro veio a criar uma instituição de alcance nacional
para a preserv ação daque le "patri mô nio ". E m 1936, M ário de
Andrade foi solicitado a preparar um projeto para a criação de
uma instituição nacional de proteção ao patrimônio cultural
brasil eiro (Andr ade 1981 ; M E C -S P H A N /P ró-Me mória 1985). Es se
últimas décadas.
O disc urso e a po lítica de R odrigo par a o "patri m ôn io
4 2 A RE TÓRICA DA PER DA
histórico e artístico" brasileiro estão fundados num determinado
paradigma de história enquanto uma disciplina acadêmica. Ainda
que não fosse um historiador profissional, ele faz uso de um
discurso histórico para justificar suas teses e propostas em relação
ã cu ltura bras ileira. C omo muit os intelec tua is, nessa época , no
43 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
esquecimento e perda definitiva. Essa "tradição" é vista como um
objeto de conhecimento científico, histórico; e, ao mesmo tempo,
como uma fonte de autenticidade pessoal e coletiva. Ela tem de
ser descrita e explicada em termos científicos, racionais, ao
mesmo tempo em que deve ser resgatada e defendida como a
fonte da identidade cultural brasileira. Em outras palavras, o
"patrimônio histórico e artístico" é visto como um objeto de
conhecimento profissional (como mostrarei nos próximos capítulos,
ele será, especialmente, o objeto de conhecimento profissional
enquanto parte integrante da história da arte e da arquitetura
brasil eira), mas, simul tane amen te, co mo o objeto d e uma " cau sa "
nacionalista que, como tal, transcende as fronteiras profissionais.
Essa "causa" é concebida com base em um conhecimento
racional, objetivo da história, excluindo toda atitude "romântica",
"simplista" e "sentimental" em relação ao passado.
Nos termos de um paradigma histórico, Rodrigo narra
o "patrimônio histórico e artístico" a partir de suas srcens. De
um modo universalista, ele situa essas srcens em um passado
distante e que ultrapassa o evento histórico da "descoberta" do
Brasil pelos port ugueses e m 1500. P odem ser as srcens da
"civi liz a çã o " — especif icament e a civi liz aç ão ocid ental — ou a s
origens da humanidade. D iz ele: "...noss a história não cabe no
espaço exíguo dos quatro séculos que vivemos, a contar do ano
de 1500, porque se alonga enormemente para trás, ligada à
história dos povos que nos constituíram. Ela não tem, por
conseguinte, limites medíocres no tempo e no espaço. Ao
contrário: dilata-se longamente pela extensão de três continentes,
através da vida e da fortuna variada das nações de que
procedemos e cujo espólio cultural se fundiu num só monte, para
formar o patrimônio histórico e artístico nacional" ([1939]
1987:49). Nesse sentido, o patrimônio cultural brasileiro é pensado
como parte de um patrimônio universal.
j A o mesmo tem po , ele situa as srcens da cu ltura
brasileira na "tradição" singular produzida pelas contribuições das
populações indígenas, africanas e européias no Brasil. Seu
propósito principal é afirmar e defender a existência de uma
4 4 A RE TÓRICA DA PERDA
genuína cultura na cional brasilei ra. E m sua narr ativa, R odrigo
combate aqueles que não acreditam que a nação tenha um
patrimônio cultural de valor suficiente para justificar um
empreendimento oficial de proteção e preservação, uma vez que,
segundo Rodrigo, pensam apenas em termos do patrimônio cultural
da co lon iza çã o portuguesa: " P ara que nação bras ileira seja
Identificada, terá de considerar-se a obra de civilização realizada
neste país" ([ 1961] 1987: 56). O "pa trimô nio históri co e art ís tico"
é concebido como um "documento de identidade" da nação
brasileira. Em suas próprias palavras, ele "autentica e afirma a
existência do Brasil" ([1961] 1987:56). Segundo Rodrigo, "...apesar
dos valores históricos e artísticos existentes no Brasil serem menos
consideráveis, de um ponto de vista universal, que os que
possuem a G récia, a Itália ou a Espanh a, es sa circun s tân cia não é
de molde a desaconselhar a sua preservação, qualquer que seja o
conceito formado sobre a importância do nosso patrimônio
comparado ao de tantas nações estrangeiras" ([1936] 1987:48). Ele
acrescenta que os valores de um patrimônio cultural não são
avaliados apenas em termos de um padrão clássico. Segundo
Rodrigo, "nas próprias nações de patrimônio artístico mais
opulento se atribui cada dia importância maior às manifestações
de arte primitiva ou exótica de outros povos" ([1936] 1987:48).
Assim, ainda que não possuam um patrimônio que seja
considerado no mesmo plano que o das "nações civilizadas", o
Brasil possui um patrimônio que é específico, singular, uma
síntese de valores "primitivos" e "exóticos" reconhecidos por essas
mesm as nações. O pon do o pa trimô nio bras ileiro à her ança clássica
4 5 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
das "naçõ es civili z a da s ", diz R odrigo: "A poesia d e uma igrej a
brasileira do período colonial é, para nós, mais comovente do que
a do P artenon. E qu alqu er das estátuas que o A leija din ho reco rtou
na pedra-sabão para o adro do santuário de Congonhas nos fala
mais à imaginação que o Moisés de Miguel Ângelo" ([1936]
1987:48).
No discurso de Rodrigo, a civilização é narrada como
o resultado de um processo universal de evolução, desde os
estágios mais "primitivos" até os mais "avançados". Esse esquema
evolucionista é usado em sua concepção do "patrimônio histórico
e artístico" brasileiro. Assim, parte desse patrimônio está associado
"às populações primitivas como as que nos constituíram" ([1939]
1987:49), especificamente, africanos e ameríndios. Suas culturas
são vistas como os remanescentes de um passado desaparecido (ou
em processo de desaparecimento), mais do que como formas
4 7 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
necessidade de preservá-lo. Em seus artigos, conferências e
entrevistas, ele se dirige a uma audiência concebida como
supostamente "ignorante" ou "indiferente" em relação à "causa"
do patrimônio. Essa audiência, segundo ele, pode incluir tanto o
"povo" quanto a "elite". A "causa" é apresentada como devendo
interessar a todos os cidadãos brasileiros e, como tal,
’•A ideia da vidade Rodrigo como uma "lição" é bem expressa por uma coletânea de
textos publicados em sua homenagem por um grupo de amigos e colegas após sua
morte em1969. O título mesmoda coletânea éA lição de Rodrigo (SPHAN 1 969).
4 9 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
campos da história da arte e da arquitetura. Nomes de conhecidos
escritores e arquitetos são usados para sustentar a afirmação.
Assim, o patrimônio é apresentado como um assunto de
profissionais. Ele, de fato, opõe o modelo de trabalho profissional
desenvolvido pelo SPHAN ao que é feito, supostamente sem
profi ss ionalismo, antes da criaçã o des sa insti tuição. O
profissionalismo das instituições européias de preservação histórica
é usado como um exemplo a ser seguido, sobretudo o das
instituições francesas e italianas. No entanto, a idéia de uma
"caus a" est á ac ima da s ident idades profi ss ionai s. O discurso de
Rodrigo é articulado em nome do patrimônio cultural brasileiro e
em nome de uma dedicação existencial a uma causa, tanto quanto
em nome de uma atividade realizada nos limites de um código
profissional. Em outras palavras, a devoção a uma causa é tão
valorizada quanto o profissionalismo. Assim, os arquitetos e outros
especialistas que trabalham no SPHAN são considerados uma
equipe de profissionais sérios e de excelente qualidade, mas,
sobretudo, um grupo de idealistas dedicados à causa do
patrimônio. A idéia de uma "causa" é produzida pela devoção
pessoal de Rodrigo e desses profissionais ao SPHAN.
Uma vez que o patrimônio cultural brasileiro é
narrado como uma "causa" e Rodrigo como o herói exemplar que
a ela dedicou integralmente sua vida, as primeiras décadas de
existência do SPHAN são classificadas pela historiografia oficial,
não por acaso, como um "período heróico". De uma situação em
5 0 A RE TÓRICA DA PERDA
■ Aloísio e os anos setenta :o Brasil com o uma naçã o j ovem ,
culturalmente diversa e em desenvolvimento
M1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
pelo IBPC, cuja sigla voltou a ser novamente, desde 1994,
S P HA N; e a F undaçã o P ró-M emória, ext inta no a no de 1990
(M E C -S P H A N /P ró-Me móri a 1980: 11-57). Em termos de estrutura
burocrática, elas operavam conjuntamente, sendo conhecidas pela
sig la "S P H A N /P ró- M emóri a".
^ Q uan do contrastada co m a narrat iva histórica de
5 2 A RETÓRICA DA PER DA
"de sen volvimen to" e "diversidade cultural". P ife rente mente de
Kodrigo, seu propósito não é "civilizar" o Brasil preservando uma
"tradição", mas revelar a diversidade da cultura brasileira e
assegurar que ela seja levada em conta no processo de
desenvolvimento. Segundo ele, "nossas políticas econômicas e
tecnológicas devem levar em consideração os bens culturais da
nação, de modo que possamos realizar um desenvolvimento
autônomo" ([1979] 1984:40-44). Seu propósito é identificar e
preservar o caráter nacional brasileiro de forma que o processo de
desenvolvimento econômico e tecnológico possa prosseguir sem
que isto represente uma perda de autonomia cultural frente aos
países do prime iro mundo. O principa l pe rigo, pa ra ele, é o de
que a naçã o pe rca sua identi dad e cultura l e torne-s e depende nte
A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
Os países velhos e pobres são conscientes dos seus valores
culturais, mas esses valores são localizados mais num passado
perdido e glorioso do que no presente. Sua situação é descrita
como "dramática", na medida em que, uma vez nações ricas e
poderosas, contemplam agora "... ao dilapidar, à morte, ao desuso
de grande parte [do seu] patrimônio" ([1981] 1985:82). No caso
A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
tapete europeu", que "sufoca" a diversidade da cultura brasileira.
Esta última é pensada como tão heterogênea quanto oposta àquela
concepção homogeneizadora de cultura que teria informado a
política do SPHAN, desde sua criação.
Aloísio amplia a noção de "patrimônio cultural" de
7Aloísio morreu natarde de 13de junho de 1982, aos 55anosde idade,na Itália, num
encontro internacional de ministros da cultura de países latinos.
5 6 A RE TÓRICA DA PER DA
com naturalidade, se toda sua vida, até aquele momento, não fora
uma preparação para o cumprimento da tarefa que lhe estava
reservada da li por di an te" (M elo [1982] 1985:25) . T anto quan to
R odrigo, ele sent e-se pr ofundamen té iden tificad o co m a "caus a"
do p atrimô nio . C ons tantemente express a seu senso de deve r diante
da causa, afirmando que muitos segmentos da sociedade brasileira,
e especialmente os intelectuais, deveríam reconhecer sua posição
privilegiada em oposição à precária situação da maioria da
população brasileira em termos sócio-econômicos e educacionais.
Enquanto tal, deveríam assumir a responsabilidade de oferecer algo
à nação como uma forma de compensação pelos seus privilégios
([1979] 1985:70). Essa dedicação existencial e política é usada
como um instrumento em sua busca de uma "autêntica"
identidade nacional.
A personalidade pública de Aloísio não é menos
exe mp lar que a de R odrigo, ainda que se ja diferen te mente
modelada. A causa é diferentemente modelada assim como seu
herói . A e xemp lari dad e de R odrigo é b aseada na r enúnc ia e na
auto-negação em favor de uma causa transcendente. Na biografia
de Aloísio, valores como renúncia, sacrifício e auto-negação não
são tão valorizadas quanto nas narrativas biográficas sobre
R odrigo. Este último é des crito co mo tendo renunciado à sua
carreira como escritor para devotar-se à causa do patrimônio.
Aloísio por sua vez, é descrito como um já bem sucedido
profissional na área de design quando vem a assumir a direção da
política cultural do país. Alguns dos seus amigos descrevem-no
como um homem público guiado por uma sensibilidade de artista.
Sua perfo rm an ce é marcada pelo sucesso e pela afirmação de uma
nova política cultural para o país. Sua morte ocorre,
Inesperadamente, no clímax de sua carreira, não ao fim de um
longo e contínuo processo. Sua morte não é um término, mas uma
Ines perada e lamentada interrupçã o. A morte d e R odrigo é
modelada como o fim de um longo e contínuo processo, que
5 7 A i de nt i f i c aç ão d o br asi l
quando morreu. Sua personalidade é descrita como "múltipla", tão
múltipla quanto o patrimônio que imaginou.
onde o outro não é levado em conta na interação. Essa concepção enfatiza oself não
como socialmente relacionado a um outr o, mas 'comoele realmente é', ou 'como
realment e somos', independent
emente de quaisquer pap éis sociais que venhamos a
desempenhar(1971:106-133). Oindivíduo é assim pensadocomo uma enti dade livre e
autônoma,separadode qualquertotalidadecósmica ousocial. Autenticidade é o
atributo fundame
ntal dessa mônada exis tencial. Para uma visão antropológica desse
processode emergência da moderna noção de Indivíduo,ver Dumont (1970; 1985;
1992); para uma visão histórico-sociológicado mesmo tema ver Elias (1990;1993).
6 o A RE TÓRICA DA PERDA
identidade nacional brasileira. Ambas são objetificações provisórias
o contingentes. Em suas narrativas, a identidade nacional "é", na
medida em que é alocada na "tradição" ou na "cultura popular",
devendo, por isso mesmo, ser descoberta ou redescoberta,
protegida e preservada contra a fragmentação e a destruição. Ao
mesmo tempo, essa identidade "não é", ou, pelo menos, tem sua
experiência ameaçada, na medida em que essas entidades
("tradição", "cultura popular") estão em processo de
desaparecimento. A identidade nacional não é anterior a essa
tensão, mas, precisamente o seu efeito.
Rodrigo autentica sua posição opondo-a a um discurso
não c ien tífico , nã o-profi ss ional sobr e a c ultura bras ileira. U m dos
seus objetivos expressos é apresentar os fatos históricos de um
modo tão objetivo quanto possível. Sua posição não é muito
diferente daquela assumida pela história narrativa do século XIX.
U ma das cons eqüênc ias de sua posição é a de que o B rasil —
narrado como uma "obra de civilização" e como uma "tradição"
- vem a s e con figura r em seu discurso co mo um processo
histórico factual, que supostamente fala por si mesmo, não
permitindo a ninguém a possibilidade de desafiar sua "realidade".
Essa "rea lida de " — ou sej a: tradi ção , c ivil iza ç ã o — é alg o que
sempre escapa de sua narrativa. É algo que está sempre situado
no passado longínquo, ou algo a ser plenamente realizado ainda,
no futuro.
Mas, ao mesmo tempo, Rodrigo é um ator em sua
narrativa, na medida em que ele se identifica com a "causa"
nacionalista da proteção ao patrimônio. Nesse contexto, sua
estratégia narrativa opõe-se à daqueles que negam a existência
mesma de um autêntico e valioso patrimônio cultural brasileiro,
digno de ser protegido e preservado. Ele opõe um discurso
profi ss ional s obre o "pa trimô nio h istórico e artís tico" bras ileiro —
princ ipa l mente a históri a da a rte e da a rquitetura b ras ileira —
àquel es que não creem em sua exist ênc ia. Seu o bje tivo é
demonstrar a existência desse patrimônio e justificar a sua
preservação.
Aloísio, por sua vez, autentica sua própria posição
6 1 A IDENTIFICAÇÃO DO BRASIL
desafiando a de Rodrigo. Sua estratégia é a de narrar a cultura
nacional brasileira não necessariamente de um ponto de vista
distante e impessoal, mas, aproximadamente, valorizando o que,
no jargão antropológico, chamamos de "ponto de vista nativo".
Assim, a cultura brasileira é, para ele, não uma coleção de
monumentos e obras de arte que chegaram do passado até nós,
mas um conjunto de diversos "bens culturais",, que somente
exis tem de forma s ign ifica tiva nos co ntextos _atua is da vid a
co tidiana da populaçã o. Em opos ição à narr ativa de R odrigo, a de
Aloísio autentica a cujtura brasileira como uma "trajetória
histórica", que liga o passado, o presente e o futuro, embora
nenhuma ênfase seja colocada no passado, na forma de uma
"trad içã o ". A co ntinuidade e a integridade d a cu ltura brasileira
são asseguradas por essa trajetória e por um projeto de autonomia
cultural, desenvolvimento econômico e democratização política do
Brasil.
A despeito de suas diferenças, tanto na narrativa de
R odrigo quant o na de A loís io a ident idade naciona l bras ileira é
considerada como algo que está ainda por ser realizado. Em
ambas as narrativas a nação é objetificada como uma "busca"
pela identidade. Como toda busca, pressupõe um "centro": uma
entidade unificada, auto-idêntica e que autoriza ou legitima aquela
busca. A nação, enquant o uma ent idade ob jetificada — ou co mo
um "ce ntro" — existe na med ida mesmo em que é buscad a. Esse
centro, no entanto, é instável, uma vez que escapa continuamente
dessa busca obsessiva. Na narrativa de Rodrigo, esse centro é a
"tradição" e a "civilização"; na de Aloísio, é a "heterogeneidade
cultural" da nação e o seu "desenvolvimento". Em suas narrativas,
tanto Rodrigo quanto Aloísio aparecem plenamente identificados
com essa busca por uma identidade nacional. De diferentes
maneiras, suas personalidades públicas são modeladas por sua
profunda dedicação à causa do patrimônio. Nesse sentido, ambos
sãcvmodelados pelo modo como concebem e buscam aquela
identidade.
62 A RETÓRICA DA PERDA
Capítulo Três
"... m ui to al é
m da prop ried ad e pa rti cular exis te um a outra,
A l o ísio M a g a l h ães
6 4 A RETÓRICA DA PERDA
as pessoas e os objetos de família. Afirma Rodrigo: "só pelo
conhecimento direto e não apenas ligeiro dessas obras do passado
nacional, criadas com tamanho esforço e, às vezes, em condições
tão pouco favoráveis, é que se aprende a considerá-las no seu
verdadeiro sentido. Só do convívio com os monumentos e com a
6 6 A RE TÓRICA DA PERDA
De acordo com Rodrigo, do tombamento de
determinado bem cultural "... decorrem conseqüências e
obrigações bilaterais, comuns e especiais, para o governo e para o
proprietário da coisa tombada. A ambos incumbe, em primeiro
lugar a obrigação de zelar pela conservação dos bens que ficam
1Em um relatório da Pró-memória de maio de1982, os bens culturais que viera m a ser
oficialmente reconhecidos como "pa trimônio" são classificados em onze diferentes
entradas, a maioria delas referindo-se a monumentos arquitetônicos, históricos e
religiosos católicos. São elas: 1. "arquitetura religiosa"; 2. "arquitetura civil"; 3.
"arquitetura oficial"; 4. "arqui
tetura milita r"; 5. "conjuntos e acervos urbanísti cos,
arquitetônicos e paisagísticos"; 6. "grupos arquitetônicos"; 7. "paisagens naturais e
construídas"; 8. "ruínas"; 9. "elementos arquitetônicos"; 10. "monumentos funerários";
•' Nos anoscinqüenta, ao lado de sOcar Niemeyer, Lucio Costafoi responsável pelo
| ilano urbanístico de Brasília.
1A luta entre m
" odernistas" (ou"racional istas", como sechamavam a si mesmos) e o
estilo "neo-colon
Para alguns ia l"ets,
intér
pret eveessum impor
a luta tant
avaeassociada
est papel naform
à ação da
disputa ideologia
polític do
a a respeitoSPdo
HAN.
estilo
arquitetônico que seria oficialmente usado para representar simbolicamente a nação.
Os modernistas vencerama batalha. Um dos sinais visíveis de suavitóriaestética e
(Krlítica foi a construção do prédio doentão Ministério da Educação e Saúde, de acordo
t om um projeto "mod ernista" assinado por Lucio Costa e outros arquitetos. O projeto
foi publicamente apoiado por Corbusier, que veioao Brasil especificamente com est e
propósito (ver Lissovskye Sá 1986:17-29). A construção teve início em 1936 eo
jirédio foi finalmente inaugurado em outubro de 1945. Desde então, a administração e
«m
arquivos e biblioteca do SPHAN funcionam no oitavo andardo prédio (Ribeiro,
1945: 75-98).Essemesmo prédio ve io a ser, posteriormente, tombado como
"i i Muimento nacional".
k
co nhe cido co mo "as cidades histór icas d e M inas " (A maral 1970 ).
A viagem era parte do esforço de intelectuais modernistas no
sentido de "rede s co brir" o Brasil. A paisagem e a arquit etura
barroca das antigas cidades coloniais mineiras desempenharam um
importante papel na obra de poetas e artistas brasileiros. Elas
eram usadas como temas para a produção de uma autêntica arte
brasileira. Cidades, casas e igrejas coloniais barrocas eram
consideradas como signos de um Brasil srcinal e esquecido, um
exemplo de vitalidade e srcinalidade cultural. Após a famosa
viagem dos modernistas, em 1924, as cidades coloniais mineiras
tornaram-se, progressivamente, um foco de atenção nacionalista5.
Em 1932, a mais famosa de ssas cidades, O uro P reto, veio a ser
oficialmente reconhecida pelo governo federal como "monumento
nacional". De 1937 em diante, após a criação do SPHAN, as
7 o A RETÓRICA DA PERDA
"cidade s históricas de M inas " tornar am-se um import ante ce ntro do
chamado "turismo cultural". Em seu conjunto, essa área é
considerada como a mais importante concentração de arte e
arquitetura barroca da América do Sul.
Na narrativa de Rodrigo, o "patrimônio histórico e
artístico" deveria representar a nação como um todo e suas
diferent es regiões. O patr imônio é conce bido com o "na cion al" e
nenhuma ênfase é colocada explicitamente sobre quaisquer das
regiões que compõem o país. No entanto, a vasta maioria dos
monumentos tombados como patrimônio nacional pelo SPHAN de
1937 a 1938 est á situada no Estado de M inas G erais. E m 1969,
afirma Rodrigo: "a maior concentração dos monumentos que
integram o patrimônio histórico e artístico nacional está localizada
em Minas Gerais" ([1969] 1987:73). De acordo com um relatório
do S P H A N /P ró-M emória d e 198 2, setenta por cen to do patr imônio
cultural brasileiro (monumentos e obras de arte) estava situado em
M inas G erais (P ró-M emória 198 2). R odrigo jus tificou essa
concentração argumentando que, no século XVIII, mais que em
qualquer outra região do país, um número superior de
monumentos e obras de arte "com feição mais expressiva" foi
pro du z ido em M inas G erais ([1969] 1987: 73). N o entanto, tal
concentração do patrimônio cultural brasileiro em Minas Gerais
pode ser também interpretada como o efeito de uma política de
preservação histórica na qual o regionalismo é considerado como
um importante valor6. *I
preservado.
dois, A loís io opõe sua próp ria narrat iva à de R odrigo e desc reve
M á rio co mo um ant ecessor. P ara A loísio, a noção d e "patr imô nio
c ultura l" conc eb ida por M ário est ava muit o ma is próxima de uma
concepção democrática e pluralista do que a que veio a inspirar a
política implementada por Rodrigo.
Segundo a visão dos que se identificam com o
discurso de Aloísio, a política de patrimônio cultural no Brasil
sofre "profundas mudanças", a partir de 1979. Esse ano é
considerado um "marco" na história das políticas de patrimônio
cu ltural no Brasil . Em um li vro produz ido pela então S P H A N/P ró-
M em ória, e m 1980, onde s e elabo ra uma históri a su cinta dessas
políticas, publicando-se em anexo uma série de documentos
relativos a diversos momentos dessa história, lê-se o relato do que
foi a "fusão" dos principais órgãos de preservação então existentes
no âmb ito do g overno feder al: "O ano d e 1979 f oi de cisivo para
o IP H A N (Inst ituto do P atrimônio H istórico e A rtís tico N ac ional), o
P CH (P rograma d e C idades H istóricas ) e o C NR C (C entro Na cional
de R eferência C ultural) e, sem dúvida, c on stitui um marco na
trajetória da preservação e valorização do patrimônio cultural no
Brasi l. C om a cri aç ão do P CH , o IP H A N passou a cont ar, pel a
primeira vez, com recursos financeiros mais compatíveis com suas
finalidades. Em princípios de 1978 estabeleceu-se o consenso de
74 A RE TÓRICA DA PERDA
histórica, religiosos ou leigos, a que se juntou posteriormente o
conceito de sítios e conjuntos arquitetônicos relevantes"([1979]
1985:54). Ainda que reconheça o papel desempenhado por essa
instituição na preservação de monumentos históricos e
arquitetônicos, ele assinala o fato de que a política por ela
7 8 A RETÓRICA DA PERDA
Branca e recomendaram enfaticamente o seu tombamento em
função de estar associado à memória cultural dos negros e dos
brasileiros em geral. Alguns arquitetos fizeram uma avaliação
estética do prédio e recomendaram também, por razões
arquitetônicas, o seu tombamento. No entanto, o prédio onde
E timologi came nte, "pa trimôn io" vem do lati m patrim onium
e está associado à idéia de uma propriedade herdada do pai ou
de outro ancestral. No contexto das narrativas nacionalistas de
preservação histórica do Brasil, a palavra é usada para significar
uma determinada espécie de "propriedade nacional". Na verdade,
esse não é um procedimento específico do Brasil. Em um estudo
sobre nacionalismo e política cultural em Québec, Handler (1988),
baseando-s e em M acP herson (1962 ), suger e uma relaçã o entre as
metáforas de propriedade e o "individualismo possessivo" do
a 2 A RETÓRICA DA PER DA
de arte, monumentos, lugares históricos, relíquias, documentos; e
diferentes modalidades de práticas sociais objetificadas enquanto
bens culturais: artesanato, rituais, festas populares, religiões
populares, esportes, etc. Enquanto objetos ou práticas sociais
o bjeti fica da s , são todos apropri ados co m o propó sito de serem
exibidos e contemplados. É nesse sentido que a metáfora da
apropriação implica o uso de metáforas visuais. Em termos gerais,
o efeito da apropriação é a cultura "como uma coisa" (Handler
1988) ou "co m o e xibiçã o " (M itch ell 1989), imp lica nd o o uso de
metáforas oculares. É por meio da exibição desses objetos e
práticas sociais objetificadas que é produzido o "efeito de
realidade" (Barthes 1988: 141-148) no contexto das narrativas do
patrimônio cultural. Esses objetos e práticas objetificadas
au ten ticiam o 'rea l" produ z ido por essas narrativas. O que dizem
é: 'N ós s omos reai s, tan to quan to a realidade que representamos'.
Seu propósito é persuadir os expectadores da realidade daquilo
que repres entam: a nação, em sua inegável co nc retude .
Enquanto uma forma de alegoria visual, o patrimônio
cultural tem uma dimensão epistemológica e histórica. Os objetos
e práticas objetificadas que o integram são usados não apenas
para autenticar o 'real' tal como aparece nas narrativas do
patrimônio; eles são também usados para autenticar uma certa
metáfora para o conhecimento. Conforme diversos autores têm
assinalado, a visão tem sido uma metáfora privilegiada para o
conhecimento na moderna cultura ocidental (Dewey 1929;
Heidegger 1977; Foucault 1972; 1977; Rorty 1979; Yates 1966;
Benjamin 1969; Fabian 1983; Tyler 1987). A ênfase na visualidade
está implícita nas modernas estratégias de objetificação cultural.
Nas palavras de Stephen Tyler: "...a hegemonia dos objetos
implica a hegemonia da visualidade como meio de conhecimento/
patrimônio é Olongo
processo
e se de apropriação
desdobra desdedos it ens
a sua q ue comp õe m o
identificação,
classificação e avaliação até o momento de seu tombamento e
posterior exibição enquanto "patrimônio". Ao longo desse
processo, metáforas visuais desempenham a função de transformar
esses itens em "bens culturais". Objetos antigos, prédios ou
» 4 A RE TÓRICA DA PERDA
espaços usados com propósitos práticos cotidianos são
transformados em "relíquias", "monumentos" e "lugares históricos".
P ráticas s ociais div ersas são redescri tas co mo "costumes " e
"tradições". Esse conjunto de itens são objetificados como "bens
culturais" num processo simbólico, onde está pressuposta a
visual idade co mo forma privi legia da de pe rcepçã o8.
No caso da narrativa de Rodrigo, a apropriação do
"patrimônio histórico e artístico é realizada pela visualização dos
itens qu e o co mpõ em enquanto " mo num entos ". C onfor me mostr ei
na pr imeira part e dest e cap ítulo, a po lítica do S P H A N , de 1939
até 1979, enfatizou fortemente a proteção, preservação e a
restauração de monumentos arquitetônicos de natureza histórica e
religiosa. Eles eram concebidos por Rodrigo como os emblemas da
"tradição" e da "civilização" no Brasil. Sua função seria a de
ensinar à população valores tais como a unidade e a permanência
da nação. Nesse sentido, o Brasil era visualizado por meio de
seus monumentos arquitetônicos históricos e religiosos.
O "pa trim ô nio hist órico e art ís tico" de R odrigo pode
ser pensado como um conjunto de metáforas visuais por meio das
quais o Brasil é culturalmente individualizado. Uma metáfora
central nesse discurso é o "monumento". Nesse contexto, a
própria nação é vista como se fosse um monumento, como uma
entidad e un ifica da e transcendent e. O u me lhor: a nação é vista a
partir de uma perspectiva unificada e globalizante assumida por *1
87 A A P R O PR I A Ç Ã O D A C U L T U R A N A C I O N A L
Capítulo Quatro
■ A RETÓRICA DA PERDA
A l o ísio M a g a l h ães
8 9 A RETÓRICA DA PERDA
nacional é apresentada como uma realidade objetiva, ainda que
em processo de desaparecimento.
No Brasil, os intelectuais que pensaram a questão do
patrimônio cultural situam o início de suas narrativas em uma
situação histórica presente, caracterizada pelo desaparecimento de
9 O A RETÓRICA DA P ERDA
O mesmo sent ido d e per da, assim co mo a urgência do
resgate do patrimônio de arte e história do país estão entre os
mais fortes motivos que justificaram a criação do SPHAN em
1936. Na primeir a pági na do jornal O Globo, de 22 de outubro de
1936, lê- se: "E stav am rouba ndo o pa trimô nio a rtís tico do B rasil !
V ai ser organiza da a defesa à no ssas relíquias históri ca s " (R odrigo
[1936] 1987:25). A matéria do jornal consiste numa entrevista com
R odri go sobr e o projet o de cri aç ão do S P HA N e seu título nos
sugere o clima nacionalista em que se inseria o sentido de
urgência de defesa do patrimônio brasileiro de história e arte. Em
uma exposição de motivos submetida por Gustavo Capanema ao
então P residen te G etúli o V argas, em novembro de 1937, diz ele:
"A prot eçã o do patri m ô nio históri co e artís tico na ciona l é assunt o
que de longa data vem preocupando os homens de cultura de
nosso país. Nada, pelo menos nada de orgânico e sistemático se
havia feit o, porém, at é 1936, quando f oi po r Vos sa E xcelência
criad o o S erviço do P atrimônio H istórico A rtís tico e N ac ional.
T raba lha va-s e aqui e a li, com pequenos recursos pa ra evita r um
ou o utro desast re irreparável. O grande a cervo de preciosidade s de
valor histórico ou artístico ia-se perdendo, dispersando, arruinando,
alterando . P ropr ietários sem escrúpulos ou ignorant es de ixavam
que bens os mais preciosos se acabassem ou se evadissem, ante o
descaso ou a inércia dos poderes públicos (MEC/SPHAN/Pró-
M e m ó ria [ 1936] 1980:109) . Algumas décadas mai s tarde, num
texto em que relembra Rodrigo e a criação do SPHAN, Capanema
refere-se à necessidade, então reconhecida por muitos intelectuais,
de um serviço nacional para organizar "... a defesa de nosso
extenso e valioso patrimônio artístico, então em perigo não só de
danificação ou arruinamento mas ainda, em grande número de
casos, de dispersão para fora do país"(Capanema 1969:41).
Um sentido de perda progressiva do patrimônio
nacional move a narrativa de Rodrigo. Apesar de, ou mesmo por
sua importância para a vida da nação brasileira, objetos e
monumentos concebidos como "patrimônio" são apresentados
como num processo de desaparecimento, dispersão e sujeitos à
destruição. Os esforços no sentido de defender e preservar o
9 1 A RETÓRICA DA PERDA
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro são justificados por
R odrigo por e sta situaçã o de perda. O o bje tivo principa l do
governo federal ao criar o SPHAN foi, segundo ele: "...poupar à
Nação o prejuízo irreparável do perecimento e da evasão do que
há de mais precioso no seu patrimônio" ([1936] 1987:48). A
principal missão do SPHAN é identificada por Rodrigo como a de
proteger "o que ainda resta" do patrimônio artístico e dos
monumentos históricos da nação brasileira.
As palavras "destruição", "evasão", "ruína","dispersão",
"desaparecimento", "deformação" e "substituição" são usadas em
seu discurso para des crever a perda dos monume ntos e objetos
históricos e artísticos. As palavras "evasão", "dispersão",
"desaparecimento" e "substituição" são usadas para referir-se a
relíquias históricas e obras de arte. Por outro lado, "destruição",
"ruína" e "deformação" são usadas, no mais das vezes, para
referir-se a cidades e sítios históricos, casas, igrejas, prédios
públicos e monumentos.
Valiosos objetos históricos e artísticos são descritos, na
narrativa de Rodrigo, em processo de deslocamento de seus
contextos srcinais e mesmo do território nacional e de
trans ferênc ia para paíse s estrangeir os . O papel n ega tivo
desempenhado pelo comércio clandestino de relíquias históricas e
objetos de arte no Brasil é denunciado por Rodrigo de modo
constante. Esta é, na realidade, uma denúncia recorrente,
formulada por diversos intelectuais e políticos, desde o começo
deste século (Rodrigo 1952:11-60). Os comerciantes de
antiguidades são apontados como os principais responsáveis pela
remoção dessas relíquias e objetos de seus contextos srcinais e
pela sua venda a colecionadores brasileiros e estrangeiros. Em
1936, numa entrevista concedida a um jornal, ele denuncia e
lamenta a perda de relíquias históricas e obras de arte dos
períodos colonial e imperial brasileiros. "Têm saído assim do
Brasil/relíquias históricas da maior preciosidade. Objetos que nos
9 3 A RETÓRICA DA PERDA
anteriormente em quase todos os países civilizados, impôs a
criação de um serviço público com a finalidade de assegurar a
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional" ([1939]
1987:50).’
E provável que essadistinção fique mais clara ao fazermos uso de um exe mplo
retirado da história dos paradigmas de preservação histórica da Europa do século XIX.
Os nomesdo arquiteto francês Eugène Viollet-Le-Duc na França, e o do escritor e
preservacionista britânico john Ruskin estão associados a doisdistintos paradigmas de
preservação hist órica. O último propunha que nenhum pr édio ou objeto histórico
deveria:serrestaurado ou reco nstruído segundo sua forma supostament e original. Do
seu ponto de vista, isto seri
a impossível. Um prédio ou umobjeto deveria ser
simplesmente preservado, dealt modo que pudessemguardar as marcas de sua idade.
O conceito de tempo era valorizado em detrimento do conceito de espaço.Em outras
palavras, a "aura" do objeto ou doprédio deveria serpreservada.
9 5 A RETÓRICA DA PERDA
Além do comércio clandestino realizado por
co me rciantes d e antiguidades , R odrigo ide ntifica ainda a
"indiferença da população local" como fator responsável pela
situação que descreve. Refere-se especificamente à "indiferença"
da população local das cidades históricas de Minas em relação a
suas relíqu ias e obras d e arte. Isto é o que, para ele, fac ilita o
comércio clandestino. No entanto, não considera que este seja
apenas um problema local, mas nacional, e resultante da
"ignorância" da população brasileira quanto ao valor desses
objetos como parte do patrimônio nacional.
Em seu discurso Rodrigo denuncia também o processo
de destruição de monumentos e "aspectos característicos" das
cidades brasileiras. Um processo, segundo ele, que não é recente,
mas antigo e persistente, além de desnecessário e sem propósito,
apesar da tentativa de alguns no sentido de justificá-lo, em nome
do progresso e do desenvolvimento urbano. Numa conferência na
E scola N ac ional d e E ngenh aria, em 1939, R odrigo afirma : "N o
passado, infelizmente, muitas vezes os monumentos e aspectos
característicos das nossas cidades foram sacrificados sem que daí
resultasse nenhum benefício urbano. Foram sacrificados apenas por
não ter havido, por parte dos técnicos diretamente responsáveis
pelas iniciativas, nenhum movimento de respeito pelos
monumentos, nenhum interesse real em preservá-los"([1939]
1987:54). Ao longo do tempo em que esteve à frente da agência
federal de preservação, a denúncia de urbanização descontrolada
foi um tópico recorrente em seu discurso. Segundo Rodrigo, a
intensificação da urbanização e da industrialização do Brasil nos
anos cinquenta agrava, na década seguinte, os problemas do
patrimônio. Em 1961, numa conferência proferida em São Paulo,
ele menciona uma série dê~óasos de destruição de monumentos
histór icos e arquit etônicos — casa s, igr ejas, prédios públicos — e
auráticoyda autenticidade
. Para uma discussão semióticainteressante sobre srcinaise
cópias na cultura popular norte-americana, ver Eco (1986). Para umadiscussão sobr e
"autenticidade" no contexto dos discursos dos "estudos de folclore" no Brasil, ver
(Vilhena 1992); e, par
a umadiscussão semelhant e no âmbito damemória
" coletiva",
ver (Abreu 1994).
9 7 A RETÓRICA DA PERDA
pa trimô nio bras ileiro imp lica e pressupõe que v eja a si mesmo e
ao SPHAN como desprovidos do poder necessário para sustar ou,
ao menos, controlar o processo de destruição.
Esse processo, segundo Rodrigo, ameaça a própria
sobrevivência da nação brasileira enquanto portadora de uma
"tradição" e partícipe de uma "civilização". Uma vez que o país
venha a perder essa "tradição", ou o patrimônio que a corporifica,
o processo mesmo de "civilização" estará em perigo. Assim, ele
alerta para o fato de que, caso sejam os brasileiros incapazes de
defender e preservar o seu patrimônio de arte e de história, eles
serão condenados não somente pelas futuras gerações, mas
também pela "...opinião do mundo civilizado..." em razão dessa
"...dissídia criminosa..." ([1939] 1987:48). Pois Rodrigo concebe o
"patrimônio histórico e artístico" brasileiro como parte do
patrimônio cultural da humanidade. Em suas própria palavras,
9 9 A RE TÓRICA DA PERDA
nos países importadores de tecnologia e também em países
geradores dessa tecnologia. Assinala-se para os primeiros o risco
sup|ernentar dessa absorção se converter em dependência
econômica" ([1979] 1984:48). No contexto dos países do "terceiro
mundo" esse processo assume, evidentemente, consequências mais
1 00 A RE TÓR ICA d a pe r da
qualquer cultura nacional. Em países como o Brasil, onde uma
cultura nacional não é ainda fortemente estabelecida, a
importação descontrolada de valores estrangeiros é, para Aloísio,
extremamente perigosa para a sobrevivência e o desenvolvimento
de uma identidade cultural autônoma.
A tecnologia importada e os produtos massificados, no
entanto, não são identificados por Aloísio como os únicos
elementos responsáveis pela perda de identidade. Ele atribui essa
responsabilidade também a uma certa modalidade de política
cultural que enfatiza a "herança cultural européia" no Brasil, em
contraste com uma "autêntica" cultura brasileira. Ele compara essa
herança a um "velho tapete", que inibe a expressão de uma
"au tên tica " ident idade cult ural bras ileira. Em uma intervençã o,
"caráter nacional".
Essa ênfase numa "herança cultural europeia" é
partilhada, segundo Aloísio, pela até então hegemônica política de
preservação histórica implementada no Brasil, a partir dos anos
trinta. Essa política segue lado a lado com uma exclusiva
valorização dos bens culturais das elites. Como alternativa, Aloísio
sugere uma concepção pluralista de patrimônio cultural, que fosse
cájbaz de levar em consideração a diversidade cultural, religiosa e
étnica da sociedade brasileira. Ele não partilha, desse modo, da
visão de Rodrigo, para quem a principal causa do
desaparecimento e da destruição do "patrimônio cultural" consiste
10 2 A RETÓRICA DA PERDA
■
na "indiferença" da população. Essa suposta indiferença, para
Aloísio, é nada mais que o efeito de políticas culturais que
ignoram a complexidade e a diversidade da sociedade e da
cultura brasileira. Elas seriam mais uma fonte de perda do que um
esforço conseqüente no sentido de defender e preservar uma
autêntica identidade cultural brasileira.
O princ ipal o bjeti vo de um a po lítica c ultural de veri a
ser, segundo Aloísio, a identificação e a defesa do que ele chama
de "componentes fundamentais" da cultura brasileira, os elementos
permanentes por meio dos quais a singularidade do "caráter"
nacional brasileiro vem a ser definida. Aqueles que pensam o
desenvol vi mento bras ileiro em termos exclusivamente eco nômico s
e tecnológicos negligenciam, segundo Aloísio, o uso da "cultura"
como um dos "indicadores" das políticas de desenvolvimento. Essa
atitude também contribuiría perigosamente para a intensificação do
process o de "perd a" da "ide ntida de cu ltura l". As sim, diz ele,
"...não haverá desenvolvimento harmonioso se na elaboração de
políticas econômicas não forem levadas em consideração as
pec uliaridades de cada c ultura" (Magalhães 1985:4 9). O u ainda:
"N ã o e xiste des envo lvimento ec on ôm ico que não sej a aut êntico.
Não existe verdadeiramente uma nação que se forme, que
progrida, que se enriqueça, a não ser à base dos componentes de
sua verdade, de sua identidade autêntica, dentro de sua trajetória
enquanto nação" ([1981] 1985:83). Essa afirmativa seria
especialmente válida para as nações do chamado terceiro mundo,
nas quais o desenvolvimento econômico e tecnológico por si
mesmo, embora possível, traria, no entanto, resultados negativos:
"...a nação torna-se rica, mas sem caráter, para não dizer rica e
comp letam en te dep ende nte de outras naçõ es "([1 981 ] 1985:83).
Embora enfatize a existência de um "caráter nacional
brasileiro", o tema da autonomia cultural do Brasil em relação aos
países do "primeiro mundo" está intimamente associado, no
discurso de Aloísio, ao tema da diversidade cultural da sociedade
brasileira. De certo modo, é a diversidade cultural brasileira que
define a sua s ingular idade no plano int erna ciona l. O processo
global de homogeneização cultural também afeta essa diversidade
10 4 A RETÓRICA DA PERDA
Ã.
Até certo ponto, é possível aproximar o discurso de
Aloísio, com sua valorização de situações "autênticas" como as de
T riunfo, de uma tendênc ia ideológica manifesta em parte da
literatura etnográfica do século vinte, onde ganha destaque uma
visão das chamadas "culturas primitivas", ou das "culturas
populares", que aparecem sob o impacto irreversível de um
processo global de homogeneização, descaracterização e perda2.
Vale assinalar, no entanto, que, no discurso de Aloísio, essa
estrutura narrativa é usada não com propósitos científicos de
descrição e análise de culturas, mas com objetivos políticos e
ideológicos, visando a mobilizar a população para a dimensão
"cultural" do processo de construção da nação.
1 05 A RETÓRICA DA PERDA
derivado do coma ndo da s mult inacion ais sobr e nos sa eco nomia. O
próprio termo "preservar" tem, na língua portuguesa, o significado
registrado por A urélio Buarque de H olanda de 'man ter livr e da
co rrupç ão e do m a l' ". (G ouveia 1985:39).
Essa preocupação com a possibilidade de uma perda
da ident idade c ultural aparece, segundo G ouveia, t ambé m nos
países-metrópole: "nos Estados Unidos, por exemplo, documentos
recentes consignam essa mesma preocupação. Apenas, nesse caso,
a ameaça não vem de fora, mas reside no desenvolvimento de
grupos com interesses especiais ou de minorias étnicas que, no afã
de descobrirem suas raízes, começam a rejeitar a noção de uma
herança comum a todos os americanos, substituindo-a pelo cultivo
das diferença s e pelo reexam e dos con flitos so ciais" (G ouveia
1985:39).
Um aspecto importante do discurso preservacionista
presente nas sociedades do primeiro assim como do terceiro
mund o é assinal ado por G ouveia. N o entanto, mais que ape nas
uma "justificativa" ou que um "argumento" de natureza ideológica
a caracterizar as diferenças entre os discursos da preservação
histórica em diferentes sociedades, é provável que a imagem da
"perda" desempenhe um papel mais importante, enquanto um
princípio articulador desses discursos. Enquanto uma justificativa
ideológica para o projeto preservacionista, a perda é pensada
como um fato histórico exterior aos discursos preservacionistas,
perda não como anterior, mas sim como posterior a elas, como
um dos seus efeitos mais notáveis.
A análise desenvolvida por Susan Stewart (1984) sobre
o significado das coleções nas modernas culturas ocidentais pode
nos sugerir um caminho alternativo, embora não necessariamente
excludente, em relação à anál ise de G ouveia. O foco da análi se
de S tew art está na exp eriê nc ia expressa pela palavra ingles a
longing, que pode ser traduzida aproximadamente como "um forte
e persistente desejo que não pode ser satisfeito" (1984). Essa
experiência está presente, segundo Stewart, no ato de colecionar
relíquias, souvenirs, miniaturas, objetos etnográficos, objetos
históricos, obras de arte, etc. Baseando-se na teoria lacaniana do
símbolo, ela descreve uma "estrutura do desejo" cuja função seria
a de desempenhar a impossível tarefa de transcender a distância
entre linguagem e experiência. Objetos de coleção são "objetos de
desejo" na medida em que eles desempenham a função de
superar, em termos imaginários, a distância entre uma certa
realidade ou expe riên cia — por exemplo, o passad o hist órico, o
mundo primiti vo , o exó tico, et c. — e a "representação " dessa
"realidade" ou "experiência". No entanto, para que essa
"realidade" seja despertada, ela tem que, primeiro, ser destruída.
Uma identificação ilusória entre significado e significante é
produzida. Assim, um objeto etnográfico disposto na vitrine de um
museu passa a representar uma inalcançável totalidade: a
realidade etnográfica de onde ele foi retirado. Uma igreja barroca
do século XVIII passa a representar a totalidade imaginária
constituída por aquele período histórico.
As narrativas sobre patrimônio cultural implicam o
impulso de preservar e colecionar os diversos bens culturais que
estariam sob ameaça de destruição. Esses bens, no entanto, têm de
ser destruídos para que possam ser desejados, preservados e
1 07 A RETÓRICA DA PERDA
colecionados. Nos discursos de Rodrigo e de Aloísio, a nação
brasileira é representada ante diferentes situações de perda. No
primeiro, objetos artísticos e históricos, relíquias, prédios, cidades
e monumentos são descritos sob o impacto de um vasto processo
de dispersão e destruição. Esse conjunto de bens culturais é
concebido como a herança de um passado histórico, de gerações
passadas. Enquanto fragmentos ou ruínas de um processo histórico
destrutivo, eles representam a totalidade imaginária constituída
pe lo passado his tórico b ras ileiro: esses bens são fragme ntos de
uma distante e, de certo modo, irrecuperável "tradição". Uma vez
que a nação brasileira, em seu discurso, é concebida a partir
dessa "tradição", é fundamental que sejam mantidos vivos os
vínculos com esta dimensão essencial3.
No discurso de Aloísio, a "identidade cultural" da
nação deve ser representada sob a ameaça de homogeneização
para que possa ser recuperada e desenvolvida em sua
singularidade. Os diversos "bens culturais" que compõem o
patrimônio cultural brasileiro são também concebidos como os
fragmentos de um processo histórico destrutivo. Em sua
individualidade e concretude eles representam uma outra
totalidade imaginária: a identidade cultural brasileira fundada na
heterogeneidade. Segundo Aloísio, a situação histórica de perda,
diante da qual se encontra a nação brasileira, consiste na perda
dos "seus componentes fundamentais" por meio dos quais é
Não por acaso é apartir dos anos setenta que ganha espaço apolítica de
cultura articulada e implementada porAloísio com a criação do CNRC (Centro
Nacional de Referência Cultural) e, post
eriormente, da Pró-Memória. São desse mesmo
período mudanças significativas na área da museologia noBrasil, destacando-ses a
preocupações dos profissionais dessa área com as funções sociais dos mu
seus.
11 0 A RETÓRICA DA PERD A
do mesmo modo por aqueles que a experimentam efetivamente,
no cotidiano. A integridade e a continuidade que caracterizam,
segundo Aloísio, as diversas formas do "fazer popular" não são
necessariamente os atributos por meio dos quais os diversos
segmentos da população identificam suas práticas cotidianas.
Assim, um centro religioso - uma igreja católica ou um terreiro de
Umbanda - que venha a ser "tombado" pelo Estado como um
"monumento nacional" em razão de seu significado "histórico" e
"cultural" é reapropriado por grupos e categorias sociais com
finalidades práticas, cotidianas, religiosas ou sociais, muitas vezes
em contradição com os propósitos expressos pelas ideologias
oficiais de patrimônio cultural (Arantes 1984:149-174).
Seria fácil argumentar, com um relativismo de bolso,
que o chamado patrimônio cultural de uma sociedade nacional
pode ser representado a partir de vários "pontos de vista". Afinal,
essa tese já é largamente assumida pelas modernas ideologias
culturais e informam diversas políticas oficiais de cultura no plano
nacional e internacional, desde os anos sessenta e setenta.
E videntement e, não exi ste p atrimô nio cu ltural independe nte de
alguma classificação linguística. Assim, os ideólogos do patrimônio
cultural, ao denunciarem o risco da "perda", não estão apenas
registrando um fato histórico, mas discursivamente constituindo
esse fato com o propósito de implementar um determinado projeto
de construção nacional.
É o distanciamento mesmo desses bens culturais no
tempo e no espaço, através da retórica da perda, que os
transforma em "objetos de desejo", objetos "autênticos" a
mobilizar empreendimentos no sentido de buscá-los ou recuperá-
los com o part e de um patr imônio nacional. O "patri mô nio
his tórico e a rtís tico " na cional no discurso de R odrigo, ou o s "bens
culturais" no discurso de Aloísio, jamais poderiam ser concebidos
como fragmentos se não fossem classificados previamente como
1 1 4 A RETÓRICA DA PERDA
Capítulo Cinco
■ REDIM I N DO A NAÇÃO :
O BRASI L E M BUSCA DE SUA I D EN TI DA D E
A l oísio M a g a l h ães
1 1 5 RE DIMINDO A NAÇÃ O
possível dizer algo por meio indireto. De modo que, nas
narr ativas alegóri cas , o que se vê — objetos, situações e
personagens con tingent es — está as sociado com o que se entende
— verdades não li terais, metaf óricas, tr anscendent es e enca rnadas
por aqueles elementos contingentes. No caso das narrativas de
1 1 6 A RETÓRICA DA P ERDA
coleções, sempre fogem, seja em relação ao passado ou em
relação ao futuro. Estão sempre sob a ameaça de desaparecimento.
Estão sempre em expansão, jamais se completam; suas fronteiras
jamais se fecha m. N ão po r acaso, a me táfora da ruína é tão
relevante nessas narrativas. Uma ruína é o que desaparece.
P aradoxa l mente, é algo que já não é mais. F oi, certa vez , pa rte
de uma totalidade. Ao mesmo tempo, convida a uma permanente
reconstrução. Um patrimônio cultural é feito de ruínas no sentido
literal e no sentido metafórico do termo. Como uma forma
moderna de alegoria, as narrativas de patrimônio cultural
transformam objetos em ruínas, no sentido em que os resgatam de
um supo stament e inevit ável processo de destr uição. C omo disse
W a lte r Be njamin, "Allego ries are in the realm o f thought, wha t
ruins are in the realm of things" (1977:178). As narrativas de
patrimônio cultural podem ser pensadas como conjuntos de ruínas
1 17 REDIMINDO A NAÇÃO
subjetividade, no entanto, são parte constitutiva daquelas relações
objetivas, uma vez que estas últimas jamais são percebidas, senão
por intermédio daquelas formas. A nação, seu passado, sua
identidade são as verdades transcendentes expressas
simbolicamente pelos fragmentos que compõem as narrativas de
patrimônio cultural.
As narrativas nacionais, em geral, são usadas como
instrumentos simbólicos nos processos históricos da formação
nacional3. No plano dessas narrativas, a redenção nacional é
pensada por oposição à sua contingência: esta última é vista como
a próp ria hist ória co nce bida como um processo des trutivo: a
redenção é a "cultura" ou a "civilização", pensadas como uma
totalidade coerente e contínua, capazes de assegurar a vitalidade e
a permanência de uma auto-consciência nacional. A contingência,
3 No entanto, gostari
a de chamar aatenção, uma vez mais, para ato o f de que, quando
afirmo que narrativas são "i
nstrumentos",não pretendo com isso afirmar que elas
sejam uma espécie de eleme nto intermediário entre sujeito e objeto,entre intelectuais
nacionalistas, deum lado, e um pr ocesso histórico e social de formação nacional, de
outro.Minha sugestão é de que pensem os as narrativas como parte do comportamento
1 18 A RETÓRICA DA PERDA
■
As alegorias de Rodrigo e Aloísio: visões da autenticidade
1 1 9 RE DIMINDO A N AÇÃO
algumas mediações que estruturam essas visões.
Redimida enquanto "civilização" e "tradição", a nação,
na narrativa de Rodrigo, individualiza-se, na medida mesmo em
que consegue resgatar e preservar essas entidades que sustentam
sua memória e identidade. Em outras palavras, a nação é redimida
12 0 A RETÓRICA DA PERDA
cronotopos como unidades absolutas, intrínsecas à narrativa. Mas,
antes, como o efeito de atos interpretativos, atos de leitura
visando a construir a coerência de uma narrativa. Desse modo, os
cronotopos jamais se configuram como elementos plenamente
presentes e coerentes. Fazendo uso do jargão de Derrida, é
possível dizer que os cronotopos estão divididos contra si mesmos,
sendo menos uma presença substantiva do que o efeito de uma
distância, um objeto de desejo4.
Na narrativa dê Rodrigo, conforme assinalamos no
capítulo quatro, os monumentos arquitetônicos históricos e
religiosos são usados como uma metáfora central. De certo modo,
eles podem ser pensados como os "cronotopos", usados para atar
e desatar , para dar co erên cia à quela narrati va. M uitos
monumentos, lugares, cidades ou relíquias poderíam ser usados
como exemplos. Vale destacar, no entanto, o papel proeminente
desempenhado por um deles.
É o caso da mais famosa "cidade histórica" mineira:
O uro P reto. A té os anos vi nte, quando ve io a ser "rede sc obe rta"
pelos intele ctuais m od ernis tas 5, O uro P reto era mais uma de ntre as
"cidade s mortas " de que no s falava M on te iro L obato (1956). A pós
a exploração do ouro, no século XVIII, Ouro Preto entrou em
4Assumindo, ao que parece, uma perspec tiva kantiana, Bakhtin acredita que os
cronotopos sejamelementos universais, intrínsecos a qualquer narrativa. Diz ele: 'The
image of man is alwaysintrinsically chronotopic" (1981:85). É possível que seja m ais
produtivo pensarmos os cronotoposem termos dos seus uso s e efeitos,e estes são
sempre contextuais, dependentes de ações e depropósitos humanos espec íficos.
s Sobre as "redescobertas" de Ouro Preto, vale a pena citar aqui um texto de Otto
M aria Carpeaux: "Ouro Preto foi três vezes descober ta: em 1698, pelosbandeirantes;
em 1893, pelosintelectuais boêmios do Rio de J aneiro; e porvolta de 1925, de 19 29,
pelos moderni stas de São Paulo. (...)A redescoberta de Ouro Preto é um dos grandes
feitos do modernismo. M ário de Andrade esteve lâ. Oswald de Andrade escreveu os
famosos versos sobre os profetas do Aleijadinho. De Manuel Bandeira é a subst anciosa
crônica "De V illa Rica de Albuquerquea Ouro Preto dos Estudantes", primeiro núcleo
daquilo que será mais a t rde o indispensável
Cu ia de Ouro Pr et o.Vieram as p
áginas de
Carlos Drummond de Andrade. Vieram so serviços de Rodrigo Melo Francode
12 2 A RETÓRICA DA P ERD A
presidencial pelo qual Ouro Preto veio a ser conhecido como
"monumento nacional", em 1933, a decisão é justificada pelos
argumentos de que "...fazem parte das tradições de um povo os
lugares em que se realizaram os grandes feitos de sua história;..."
(ME C /S P H A N -P ró-M emóri a 198 5:89). E que "... a cid ade de O uro
P reto, a ntiga cap ital do Estado de M inas G erais, foi t ea tro de
acontecimentos de alto relevo histórico na formação de nossa
nacionalidade e que possui velhos monumentos, edifícios e
templos de arquitetura colonial, verdadeiras obras de arte, que
merecem defesa e conservação;..." (1985:89). Os acontecimentos e
os personagens históricos ganham coerência por meio desses
objetos, lugares e casas, elementos concretos e contingentes.
A pa rtir dos anos t rinta e quar enta, a cidade de O uro
Preto veio a se tornar, progressivamente, um importante foco do
o poe ta M anu el B andeir a afir ma: "P ara nó s bras ileiros, o que tem
força de nos comover são justamente esses sobradões pesados,
essas frontarias barrocas, onde alguma coisa de nosso começou a
se fixar. A desgraça foi que esse fio de tradição se tivesse
1 28 A RETÓRICA DA PERDA
mediações. M as essa redes crição tem de ser qua lifica da . Trata-se
de uma visão cujo objeto é concreto e próximo, ao mesmo tempo
que abs trato e distante. A ss im, tanto O uro P reto quan to o terre iro
Casa Branca são, por um lado, espaços, prédios, objetos e
atividades concretos e cotidianos; por outro lado, eles apontam
para uma totalidade singular que se apresenta sempre além do
alcance de uma visão imediata. Essa visão, supostamente sem
mediações, dá acesso a algo que é, ao mesmo tempo, próximo e
distante, presente e ausente. Por um lado, ela é a visão cotidiana
de algo concreto, fragmentário, transitório e reproduzível: uma
cidade, uma casa, um objeto, um conjunto de atividades humanas.
Por outro, ela é a visão aurática de um objeto único, permanente
e não-reproduzível: um monumento, uma relíquia, uma cidade
histórica, que configuram a promessa de uma distante e fugidia
coerência.
É por meio da exibição dessas visões, supostamente
sem mediações, que a redenção nacional é prometida ou
antecipada nas narr ativas alegóri cas de R odrigo e A loís io sobr e o
pa trimô nio cult ural. O Brasi l é metafori ca mente redimido quando
os elementos que compõem o patrimônio nacional são resgatados
e preservados de um processo de desaparecimento e destruição.
Eles são metáforas visuais usadas para autenticar as estratégias de
redenção acionadas nas narrativas de Rodrigo e Aloísio. Eles
autenticam não apenas conteúdos históricos específicos, mas a
própria realidade, representada por essas narrativas. Trata-se de
uma autenticação histórica e epistemológica. Além disso, eles
autenticam não apenas o 'real' tal qual é representado naquelas
narrativas, mas a própria 'visualidade' enquanto uma metáfora
para o conhecimento7.
O pa trimô nio cult ural de uma nação pode ser
interpretado como um interminável conjunto de traços ou
fragmentos que sempre escapam de uma classificação fechada.
C omo foi s ugerido no cap ítul o um, el es podem ser pensados co mo
13 0 A RETÓRICA DA PERDA
evento constante na moderna história cultural do país. Nos anos
vinte e trinta, a palavra "redescoberta" era usada para designar a
criação de uma visão modernista da cultura brasileira. A palavra é
parte integrante do vocabulário dos intelectuais modernistas e seu
uso, naquele contexto histórico, é, em si mesmo, o produto de
1 31 RE DIMIND O A NA ÇÃO
enquanto uma entidade a pairar acima da história concebida como
um processo de destruição, mas como uma entidade em constante
processo de transformação. Nesse sentido, a história é não apenas
um processo de "irresistible decay", mas, sobretudo, de "inventive
life", para usarmos as expressões de Benjamin (ver capítulo dois).
A redenção nacional é, assim, realizada não apenas "para a
1 32 A RETÓRICA DA PERDA
resgatado em favor do futuro. Mesmo quando o passado é
fortemente enfatizado, como no discurso de Rodrigo, ele o é em
prol do processo de civilização, que não se afirma sem uma
"trad içã o ". Nesse sent ido, a t ransit oriedad e das coi sas — um tema
cru cial nas moder nas narr ativas alegóricas — é vista não co mo
uma condição negativa, mas como a possibilidade mesma da
13 4 A RETÓRICA DA P ERDA
interpretados como narrativas de busca por uma identidade
nacional, suas respectivas "redescobertas" do Brasil são,
implicitamente, eventos transitórios. Por um lado, eles redescobrem
uma cultura brasileira como uma entidade preexistente, coerente e
contínua; mas, por outro, desde que objetificam a nação como
uma interminável busca, suas redescobertas do Brasil,
simultaneamente, são e não são. Seu objeto é sempre adiado para
um futuro ao mesmo tempo presente e ausente. Dizer, assim, que
a nação é redimida como uma busca pela identidade implica em
que essa redenção seja nada mais que uma promessa não
cumprida.
1 36 A RETÓRICA DA PERD A
qualquer obra humana, trazem, inevitavelmente, as marcas do
contexto histórico, intelectual e político em que foram produzidos
e usad os. J á distanc iados do mom ento em que fl oresc eram,
estamos numa posição confortável para perceber os seus limites.
Não seria nem ética nem epistemologicamente produtivo usarmos
essa posição para adotar uma atitude de censura e condenação
aos que assumiram corajosa e dedicadamente a tarefa de trazer
para o espaço público os meios simbólicos pelos quais nos temos
representado enquanto nação.
Esse distanciamento, no entanto, ao nos facilitar a
percepção daqueles limites, sugere que é tempo de não mais nos
satisfazermos com a simples repetição celebratória dos discursos e
das políticas daqueles personagens. Se mudamos apenas a partir
do momento em que nos conhecemos, em que tomamos
consciência dos discursos pelos quais nos expressamos e que, em
grande medida, nos produzem, estas páginas tiveram como
objetivo, prioritariamente, a construção dessa auto-consciência.
Q uando uso a noção d e "objeti fica çã o c ult ura l" par a
ana lisa r os discur sos do pa trimôn io cult ural brasileir o, não o f aço co m
um se ntido de denún cia nem de qua lquer advert ência, no senti do de
que as pessoa s "não de vam " ob jeti ficar a nação enquanto "t rad içã o ",
"civiliza ç ã o ", "di versidade c ultural", "desenvo lviment o" ou por meio
de quaisquer outras metáforas. Em outras palavras, não estou interessado
em d ize r seja lá para quem for: "não o bje tifiqu e !"; mas, ant es:
"C onsidere que o q ue você t oma c omo uma ' co isa ' ou com o um 'fat o '
pode muito bem ser percebido como um empreendimento lingüístico,
como um conjunto de metáforas produzido coletivamente e usado
segundo determinados propósitos". É inevitável que se objetifique a
nação mo derna po r me io de alguma met áfora, co mo é o caso dos
"patri mô nio s c ultura is". M as é també m poss ível, e bastante ilumina do r,
toma rmos c ons ciênc ia de no ssas objet ificaçõ es enqua nto atos
conti ngent es e provi só rios de invenção c ultural, via bili za do s pelos
códigos culturais a partir dos quais nos representamos coletivamente.