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RESENHAS 163

Tempos de eleição: Acompanhar a construção da representação


no decorrer do livro não é tarefa fácil: a autora tece
a política interrompe um argumento em que se cruzam e entrecruzam
o cotidiano situações, locais, tipos de políticos, tempos, e no
qual a cada momento somos chamados a prestar
Irlys BARREIRA. Chuvas de papéis. Ritos e símbolos atenção em um número significativo de dimensões
de campanhas eleitorais no Brasil. São Paulo, que constroem o político e o simbólico, em meio ao
Relume Dumará, 1998. 234 páginas. cotidiano e às diferentes rupturas nesse espaço. A
riqueza da abordagem deste livro está nas muitas
Céli Regina Jardim Pinto leituras que ele permite: podemos lê-lo acompa-
nhando o refinado argumento sobre a construção
As eleições no Brasil pós-regime militar têm da representação, mas cada parte pode ser lida
merecido especial atenção dos cientistas sociais. também como uma unidade. Assim, por exemplo,
Importantes investigações têm sido desenvolvidas o capítulo sobre as candidatas ou o capítulo sobre
especialmente nas áreas do comportamento eleito- as candidaturas populares são estudos que, por si
ral e do acompanhamento de campanhas. O livro só, se justificam, isoladamente. De qualquer forma,
de Irlys Barreira vem não somente se somar a esses ainda estamos diante da análise de um material que
estudos, como se constitui num trabalho de grande trata de campanhas no Nordeste do país, mais
importância, pela forma criativa pela qual a autora especificamente no Ceará e na capital do Rio
intervém no tema, pelos resultados que apresenta e Grande do Norte. Tomando em conta isso, a forma
pelas perspectivas de pesquisa e reflexão que como o trabalho é organizado tem um aspecto
propicia. curioso: a autora não está preocupada em analisar
Ao longo de cinco partes e dez capítulos, a especificidades da região, mas sim tendências do
autora abarca um longo período de campanhas jogo político.
eleitorais, de 1985 a 1996, percorrendo: a campa- Decorrente dessa escolha, o livro revela o
nha de Maria Luiza Fontenelle para a Prefeitura de que é sua grande qualidade e, paralelamente, seu
Fortaleza (1985); as reuniões preparatórias para o maior problema. De fato, as conclusões a que o
lançamento de candidaturas a vereador num bairro trabalho chega não ficam prejudicadas pela regio-
popular em Fortaleza (eleições de 1988); a “Carava- nalidade dos dados; definitivamente, não é um
na da Cidadania” liderada por Lula (1994), quando trabalho sobre política nordestina. Mas, por outro
este passou pelo sertão do Ceará; e, finalmente, o lado — e talvez aí esteja uma fragilidade —, a
acompanhamento das candidaturas femininas para presença de tantos dados sobre uma região tão
as prefeituras de Fortaleza e Natal (eleições de específica mereceria algumas reflexões que trou-
1996). Utilizando um farto material, portanto, o xessem à luz questões regionais colocadas vis-à-vis
trabalho propõe-se a discutir a problemática da as questões mais gerais analisadas.
representação a partir da análise das campanhas Ainda uma outra questão é fundamental no
eleitorais como momentos dinâmicos de ruptura do arcabouço do trabalho: trata-se da noção de ritu-
espaço restrito da política e de encontro com o ais. Da mesma forma como é tratada a representa-
cidadão comum. É na ruptura do cotidiano de ção, também os rituais são vistos como constantes
ambas as partes, políticos e cidadãos comuns, que produções, que interagem com o eleitor e por sua
acontecem os encontros propiciadores da repre- vez constroem a própria representação: nos comí-
sentação. Ao mesmo tempo em que argumenta cios, nas “carreatas”, nas caminhadas, no bairro,
que a representação é uma relação construída ao nos movimentos sociais, os rituais são marcas do
longo da campanha, a autora constrói ao longo do momento eleitoral, marcas que reinauguram o
livro essa própria noção, ao descrever, principal- simbólico, que abrem espaço para a recriação
mente em três capitulos, como se faz política, quem dinâmica da representação. Em síntese, nas pala-
faz política, onde se faz política. vras da própria autora, e já nas primeira páginas,

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o fio condutor do livro fica claro ao leitor: “as marca o espaço da cidade, da praça, da periferia,
categorias de representação, apresentação e re- que se reconstrói em centro através do comício.
construção passaram a dar sentido ao conjunto Sobre a caravana e sobre Lula especificamente, a
das campanhas que inicialmente me suscitaram, autora escreve: “No percurso, o candidato vai
em demasiado, a percepção das eleições como adotando a mesma fisionomia de seus potenciais
espaço exclusivo de conflitos. Essas categorias me representados. Ornado de penas de índio na cabe-
permitiram ver que algo também se constituía no ça ou de um chapéu usado pelas castanheiras, a
interior das disputas acirradas. Esse algo era a expressão de identificação assume sua nitidez em-
própria política em seus dilemas e paradoxos na blemática. São dimensões que apontam, simultane-
busca de instituir o princípio de representação. amente, proximidade e distanciamento, na medida
Além de colocar em disputa candidatos e propos- em que destacam o uso de artefatos populares
tas, o ritual das campanhas instaurava os elemen- cotidianos por parte de um figura que busca perso-
tos de preservação e legitimação das atividades nificar o espaço máximo de representatividade.”
políticas.” (p. 28). (p. 73). No espaço urbano, as caminhadas e os
A primeira parte do livro compõe-se de dois comícios eleitorais são centrais porque relocalizam
cuidadosos capítulos teórico-metodológicos que, a política, criam um novo espaço para o político, de
com vários subtítulos, apresentam as diversas face- construção de representação: “A troca que se esta-
tas da pesquisa e da própria elaboração do livro. No belece entre os políticos e o público repõe os
primeiro capítulo, apresenta-se o material que será mecanismos de construção da representação e
analisado, a forma como foi coletado, suas potenci- apresentação.” (p. 99).
alidades e os avanços que significam. No capítulo A terceira parte do livro discute a presença
seguinte, contrói-se o arcabouço do conceito de das candidaturas femininas de um ponto de vista
representação, que será o fio condutor de toda a pouco usual nas análises correntes. Os trabalhos
análise; nele é detalhada a noção de representação sobre a presença da mulher na política estão muito
como construção. E é essa reflexão que permite à marcados pela ênfase na ausência de candidaturas
autora transitar com grande propriedade, nos me- femininas, pela quase denúncia de situações de
andros de seu material empírico, nas duas partes discriminação que as mulheres sofrem no mundo
seguintes do livro, propondo um estudo que foge da política, pela presença ou ausência da luta pelos
de qualquer tipo de viés prescritivo, muito fácil de direitos da mulher nos discursos das candidatas etc.
encontrar nesse tipo de abordagem. Vale lembrar Irlys Barreira, sem ignorar os traços de discrimina-
que a noção de representação tem sido vista em ção e sexismo relativos às campanhas das mulhe-
muitos estudos atuais do ponto de vista da crise da res, trabalha com uma dimensão especialmente
representação política. Sem entrar no mérito da importante, que é a incorporação do feminino e de
discussão, que não cabe neste espaço, é preciso, todos os significados a ele atribuídos como estraté-
entretanto, chamar a atenção para a potencialidade gia de campanha. A análise da vitoriosa campanha
explicativa das formas de se fazer política, abando- de Maria Luiza Fontenelle para a Prefeitura de
nando a idéia pura e simples de crise, e buscar, Fortaleza, em 1986, é um momento particular em
como é o caso do presente trabalho, as formas que a autora desenvolve com muito detalhamento
pelas quais se constrói a própria representação. tais estratégias, desde o uso do nome Maria até a
A segunda parte reserva ao leitor os mais idéia da mulher como o novo na política: “Identifi-
interessantes capítulos do livro, não só pela cuida- cada cada vez mais com a canção Maria, Maria, de
dosa análise que apresenta, como pelo prazer que Milton Nascimento e Fernando Brandt, Maria Luiza
a leitura propicia. Neles, a autora trata da caminha- adotou em sua campanha para prefeita o primeiro
da como símbolo, trabalhando com a “Caravana da nome. Trata-se de uma mudança que teve significa-
Cidadania” e com o comício — exatamente com o tivo papel na imagem da candidata, pela associação
local específico e especial da política. Enquanto entre o feminino e o popular que porta o nome de
aquela vai para o interior e para a zona rural, este Maria.” (p. 122).
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Além da campanha de Maria Luiza Fontenel- Na quinta e última parte do livro, retomam-se
le, são analisadas as candidaturas de mulheres para todos os temas tratados para fechar as questões
as prefeituras de Fortaleza e Natal em 1996 e abertas ao longo do trabalho, ou seja, para recolo-
discutidos detalhadamente os usos estratégicos, car as campanhas como espaços e tempos privile-
nessas campanhas, da polissêmica posição do fe- giados da política, onde o que se observa não é a
minino neste fim do século. Retomando seu tema repetição monótona de rituais sem sentido, mas o
condutor — a representação —, a autora conclui fazer político, em que os candidatos, os que estão
suas reflexões sobre as candidaturas femininas: “As dentro do campo da política, vão buscar nos de
candidaturas femininas explicitam a construção fora, no cidadão, no eleitor, as formas de construir
emblemática de uma forma de representação que a intrincada relação de representação.
se faz acompanhar da instituição de um lugar no Chuvas de Papéis é um rigoroso estudo sobre
espaço da política, lugar de referências complexas, as formas de fazer política no Brasil. A partir de
que induz tanto à reprodução como à ruptura de uma perspectiva criativa e bastante rara nos estu-
atributos positivos e negativos no âmbito da cul- dos brasileiros, faz com que o leitor se confronte,
tura”(p. 155). momento após momento, com as escolhas dos
A quarta parte do livro é composta de dois eleitores e com as estratégias dos candidatos. O
capítulos sobre as candidaturas populares. Aqui, da livro é, sem dúvida, um convite para novos estudos
mesma forma pela qual foi discutido o feminino nessa direção.
como estratégia de campanha, o argumento se
desenvolve mostrando não os limites de candidatu-
ras populares, ou suas filiações ideológicas, mas sim CÉLI REGINA JARDIM PINTO é professora do
a importância que o espaço popular tomou na Departamento de Ciência Política da
política após a redemocratização, e a luta que se Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
trava em torno dele ou, mais especificamente, para
construí-lo como estratégia de campanha. As candi-
daturas populares têm uma lógica própria no jogo
político e ocupam um espaço particular na constru-
ção da representação: o popular está sempre agrega-
do ao autêntico, ao verdadeiro. A legitimidade da
candidatura popular se dá pela pertença ao local.
Enquanto o candidato de fora faz comício na perife-
ria para marcar sua presença, para mostrar o conhe-
cimento que tem da situação do bairro, o candidato
de dentro é “um de nós”. Os dois capítulos exploram
com detalhes essa inclusão e a articulação de
características populares como estratégias. Exem-
plos disso são: a pouca escolaridade do candidato,
seu descuido com a imagem física, a liderança que
tem no bairro e o fato de ele ser um igual e ao mesmo
tempo um diferente, aquele que terá o poder de
representar os interesses do local: “Na percepção
dos moradores, o papel do líder é complexo,
constituindo uma condição referida a um dever-ser
ou a uma conjunção de atributos de identificação e
diferenciação. Um líder é simultaneamente alguém
‘como nós’ e alguém também possuidor de atributos
que o tornam diferente dos demais.” (p. 171).
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Novos tempos, velhas levantam conhecimentos sobre as espécies natu-


rais, a geografia, a história, a arte, a religião, a
histórias * filosofia. A memória dos mais velhos é uma das
fontes mais procuradas. O saber concretizado nos
SEREBURÃ, HIPRU, RUPAWE, SEREZABDI e SE- objetos, nas práticas de exploração e transformação
REÑIMIRÃMI. Wamrêmé Za’ra, nossa palavra. de recursos naturais, assim como os conhecimentos
Mito e história do povo Xavante. São Paulo, Editora lingüísticos, estéticos e esotéricos de especialistas
do SENAC, 1998. 179 páginas. indígenas também são alvo freqüente dos pesqui-
sadores índios e seus assessores. Rituais, reuniões,
Aracy Lopes da Silva assembléias políticas, situações de conflito fundiá-
rio ou de outra natureza são igualmente objeto de
No quadro geral do Brasil indígena desta atenção privilegiada.
última década do milênio, uma novidade histórica Cada vez mais, dadas as condições das rela-
é a maciça constituição e consolidação de associa- ções econômicas e políticas no mundo atual, o
ções e organizações indígenas locais e regionais. Se cotidiano da maior parte dos povos indígenas no
a possibilidade legal foi dada pela Constituição de Brasil desenrola-se em meio a algum grau de
1988, cujos termos, no tocante aos direitos indíge- tensão entre os conhecimentos indígenas e os
nas, representaram o reconhecimento de processos ocidentais, entre políticas públicas e a política das
de organização política e participação indígena aldeias, entre tendências políticas internacionais
crescentes no cenário nacional desde o decênio (pela via de informações relativas a organismos
anterior, o ritmo e a amplitude do surgimento de como a ONU, a Unesco e o Conselho Mundial dos
novas associações indígenas nos anos 90 revelam Povos Indígenas, entre outros, por exemplo) e a
um valor que se afirma: a busca de autonomia. definição de estratégias e de opções de vida e de
Paralelamente ao enxugamento do Estado e à futuro por populações indígenas específicas.
diminuição da capacidade assistencial da Fundação As transformações em curso no plano mun-
Nacional do Índio (Funai), crescem projetos de dial e regional afetam diretamente as populações
autoria indígena em todo o país, formulados com indígenas. No plano local, registre-se a multiplica-
assessoria especializada, mediante parcerias com ção dos atores em interação, a complexificação das
grupos não-indígenas ou de composição mista e relações sociais, políticas e econômicas e a ampli-
financiados com recursos de organizações não- ação do universo social indígena, com novas infor-
governamentais, órgãos do governo, universidades mações, novas alianças, novos parceiros, novas e
e fundos de pesquisa. diversificadas formas de organização e estratégias
Os projetos cobrem um amplo campo: vão da de construção e reconstrução simbólicas e identi-
ecologia à economia, do manejo da fauna e da flora tárias.
nativas ao desenvolvimento sustentado; de progra- Dentre os projetos indígenas em curso, mui-
mas de assistência à saúde à divulgação de padrões tos podem ser corretamente definidos como cultu-
estéticos (plásticos, dramáticos, musicais) próprios; rais: compreendem o registro em vídeo, em áudio,
da construção de currículos escolares diferenciados em CDs ou em livros de saberes e manifestações
a projetos educacionais destinados à formação de próprias. São materiais destinados ao consumo
recursos humanos para a autogestão em diferentes interno, como recurso de uma política de vitaliza-
campos da vida social. ção da identidade e da memória com vistas aos
A pesquisa é, nesses casos, uma ferramenta jovens de hoje e às gerações futuras, a quem
indispensável. Equipes indígenas ou interétnicas igualmente se destinam os materiais didáticos ela-
borados por professores índios em línguas indíge-
nas; ou têm por alvo o consumidor externo, não-
* Uma versão abreviada desta resenha foi publicada no índio, brasileiro ou não. Muitos desses produtos
Jornal de Resenhas, nº 46, Folha de S. Paulo, 9/1/1999. têm um duplo público e não é pequeno o valor

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simbólico dessas produções culturais nos diferen- vista da facção dominante (e seu respectivo clã) na
tes contextos sociais onde se inserem. Trata-se de aldeia Pimentel Barbosa é predominante. Há, certa-
um movimento em franca expansão: a produção de mente, outras histórias, contadas, entre os Xavante,
material próprio com o recurso a tecnologias não- de outras perspectivas. Isso, porém, em nada des-
indígenas, para fins definidos autonomamente. merece o livro. Ao contrário: toda história xavante
É nesse contexto que os Xavante Sereburã, será sempre narrada a partir de uma posição
Hipru, Rupawe, Serezabdi e Sereñimirãmi e sua claramente definida por relações de poder, e a
equipe de apoio nos brindam com seu livro Wam- possibilidade de outras histórias está prevista no
rêmé Za’ra, nossa palavra. Mito e história do povo texto de abertura do livro.
Xavante. Trata-se de uma belíssima edição, ilustra- A versão publicada tem o mérito de ser,
da com desenhos originais de jovens Xavante e dentre as publicações sobre a história deste povo,
fotos históricas localizadas através de pesquisa em a primeira elaborada a partir de narrações destina-
arquivos realizada pela equipe assessora do projeto das a este fim específico e reconhecida como sua
(Núcleo de Cultura Indígena, São Paulo). O proces- pelos narradores xavante. É, portanto, a única
so de produção da obra durou cerca de três anos, publicação que traz uma visão xavante sobre o
incluindo gravações de narrativas orais na aldeia de processo do contato. As fotos das frentes de atra-
Pimentel Barbosa (MT), o trabalho dos tradutores ção, dos primeiros encontros e presentes trocados,
xavante e a pesquisa fotográfica e bibliográfica tiradas e arquivadas por não-índios, contrastam
O livro compõe-se de duas partes, já identifica- com a perspectiva indígena: os brancos foram
das no título. A primeira, “Antes de tudo”, reúne as atraídos por meio de recursos mágicos para que
narrativas relativas às origens: os clássicos mitos trouxessem os desejados instrumentos, os macha-
xavante1 em novas versões, assinadas, contando dos e facas. Atração e contato são vistos pelos
sobre o começo da humanidade, das plantas cultiva- Xavante como processos controlados por eles, por
das, dos animais, a obtenção do fogo pelos huma- seus sonhos, por seus poderes.
nos, a origem das mulheres indígenas e dos homens Nos relatórios do Serviço de Proteção ao
brancos. Há um evidente trabalho de edição da Índio, nas reportagens de época, na memória dos
tradução (embora os bastidores não sejam trazidos não-índios, os Xavante é que foram atraídos e
ao leitor), visando tornar os textos compreensíveis “pacificados”. Eram tempos de Getúlio. A “marcha
por um público não-Xavante. O esforço é bem- para o Oeste” e a Fundação Brasil Central atingiri-
sucedido, já que não há adulteração dos sentidos am em cheio o território habitado então (como
originais e que o resultado final é um texto conciso e hoje) pelos Xavante de Pimentel Barbosa: as mar-
de leitura agradável. É graficamente muito bem gens do rio das Mortes e a serra do Roncador.2
solucionada a apresentação bilíngüe das narrativas. Poriam fim a um período de isolamento voluntário
A segunda parte do livro é dedicada à “histó- dos Xavante, que já haviam experimentado o con-
ria” e trata do contato dos Xavante com outros vívio interétnico em séculos anteriores, notada-
povos indígenas e, principalmente, com os não- mente no século XIX, em aldeamentos pombalinos
índios. Como a vida xavante é marcada por intenso na então Província de Goiás.
facciosismo construído a partir da divisão da popu- A data oficial do primeiro contato pacífico
lação em clãs, o livro, inevitavelmente, traz uma neste século é 1946, após vários anos de tentativas
versão da história do contato em que o ponto de

2 Os Xavante habitam hoje seis áreas descontínuas no Les-


te matogrossense (Terra Indígena (TI) Rio das Mortes —
1 Já publicados em Giaccaria e Heide (1974), Lopes da onde se situa a aldeia conhecida como Pimentel Barbosa
Silva (1986), Maybury-Lewis (1984), Graham (1995) e —; TI Areões; TI Parabubure; TI Batovi; TI São Marcos e
Carrara (1997). Ao lado da primeira destas obras (cujas TI Sangradouro), nas regiões de Nova Xavantina, Cana-
narrativas foram republicadas em Wilbert e Simoneau, rana, Barra do Garças e Paranatinga. Somam aproxi-
1984), o livro aqui resenhado apresenta uma das mais madamente 9 mil pessoas, que vivem em cerca de 55
completas coletâneas de narrativas xavante. aldeias e falam a língua A’uwe, da família lingüística Jê.
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missionárias e governamentais, às quais os Xavante de Pimentel Barbosa já gravaram um CD com


sempre reagiram em defesa de seus territórios. É canções próprias (Eteñiritipa — Cantos da tradi-
sobre estes mais de 50 anos que os Xavante ção indígena xavante), um videoclipe (Wanorido-
discorrem detalhadamente na segunda parte do bê) para divulgação nacional e internacional do CD,
livro, permitindo um interessante contraponto com e foram parceiros da banda de rock Sepultura
a história documental até agora levantada (Ravag- (Roots) em faixas gravadas na aldeia. Estabelece-
nani, 1991; Chaim, 1983; Carneiro da Cunha, 1992). ram intercâmbios com estudantes estrangeiros,
Uma certa tensão se estabelece entre o tom montaram exposições, espetáculos de dança e
dos Xavante em suas narrativas, revelando os canto em centros urbanos e criaram um Centro
índios como condutores dos processos em tela, Cultural na sede do município mais importante da
senhores de seu destino, e a perspectiva presente região que habitam.
principalmente no texto da quarta capa e, muito Considerando a população Xavante de modo
mais sutilmente, no prefácio do livro (ambos escri- geral, é possível dizer que são muitas as suas
tos por autores não-índios), que enfatiza as amea- estratégias em face dos processos globais e regio-
ças do contato, as perdas culturais, a “tradição” que nais em curso e das novas situações que fazem,
pode acabar sob “o efeito descaracterizador do hoje, parte de suas vidas. Muitas referem-se a
contato agressivo entre culturas”. Do mesmo modo, processos de redefinição dos termos em que são
é difícil entender o porquê de a grafia escolhida vivenciadas as relações interétnicas em que estão
para as palavras em língua indígena não incorporar envolvidos; outras destinam-se à construção de
um som característico e freqüentemente presente alternativas econômicas; outras, ainda, reivindicam
na língua xavante. Refiro-me ao e nasalizado, inva- o acesso a implementos urbanos ou ao conheci-
riavelmente grafado no livro como ê (com acento mento científico e tecnológico. Dentre elas, e
circunflexo, o que o transforma em outro fonema, diversamente das escolhas feitas por outros povos
acarretando alteração de sentido). Dificuldades de indígenas no país, estão uma grande valorização da
ordem gráfica (os computadores habitualmente educação escolar e a formação, sob a orientação
não aceitam o til sobre a vogal e) em absoluto dos mais velhos, de jovens intelectualmente prepa-
justificam essa “acomodação”, em choque direto rados para a interlocução com os não-índios. A
com todo o espírito do livro, qual seja, o de autonomia política e econômica e o respeito geral
afirmação da voz, da sabedoria, da experiência e da à sua especificidade étnica e cultural são objetivos
perspectiva própria aos Xavante de Pimentel Bar- que se expressam claramente por meio da forma-
bosa. O livro destina-se ao público em geral, não- ção de associações indígenas locais e da produção
índio, mas destina-se também — e isso o dizem dos já citados bens culturais para consumo em
tanto as autoras do Prefácio quanto os narradores mercados urbanos nacionais e internacionais, in-
xavante — aos jovens Xavante do presente e do clusive o livro que examino aqui.
futuro. Por isso é também pena que o padrão de Uma breve menção a alguns dos projetos
apresentação bilíngüe das narrativas, obedecido na hoje em curso entre os Xavante de diferentes
primeira parte do livro, seja suprimido na segunda, localidades pode ilustrar as atuais frentes de
em favor do uso exclusivo do português. atuação indígena. Um deles, financiado pela World
Se esses são pontos passíveis de crítica, são Wildlife Foundation, propõe o manejo de animais
muitas as virtudes do livro. Além das já menciona- cinegéticos nativos do ambiente habitado pelos
das, quero ressaltar o fato fundamental de que uma Xavante, historicamente consumidos por essa po-
obra como essa permite uma interlocução desejada pulação mas que hoje estão ameaçados; outro,
pelos Xavante com um público amplo e também o financiado pelo Banco Mundial, combina igual-
acesso mais próximo e direto dos não-índios a uma mente a pesquisa epidemiológica e nutricional
perspectiva indígena de mundo. Além disso, sela com ações no campo da saúde; um terceiro, pro-
uma colaboração entre distintas gerações, consti- movido por uma organização pan-indígena, almeja
tui-se em um projeto coletivo. Os Xavante da aldeia o manejo de plantas frutíferas nativas, enquanto um
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outro, de autoria indígena e financiado por empre- ação indígena sobre o mundo como fator de cons-
sas sediadas no Brasil, busca na apicultura um trução da história. São os processos dessa constru-
caminho para a autonomia econômica da aldeia ção que o material narrativo reunido neste livro
que o idealizou. Projetos no campo da educação pelos Xavante permite apreender. Tem-se em
escolar (governamentais e não-governamentais) Wamrêmé Za’ra a oferta, tanto ao especialista
têm, invariavelmente, a adesão dos Xavante. Pro- como ao leitor em geral, de matéria viva para
fessores xavante têm forte atuação no Projeto conhecimento, pesquisa e reflexão.
TUCUM, de formação continuada, promovido pelo
governo do Estado do Mato Grosso. Na outra ponta,
uma pesquisa antropológica proposta individual-
Referências bibliográficas
mente por um pesquisador sobre a classificação
indígena de aves é autorizada pelos Xavante sob a CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (1992), História
condição da elaboração posterior de um livro dos índios no Brasil. São Paulo, Companhia
didático contendo seus resultados, para registro do das Letras/FAPESP/Secretaria Municipal de
Cultura de São Paulo.
conhecimento indígena e para uso nas escolas das
aldeias. CARRARA, Eduardo. (1997), Tsi Te Wara. Um vôo
Se a última década trouxe novidades no sobre o cerrado xavante. São Paulo, disserta-
ção de mestrado em Antropologia, FFLCH/
cenário do Brasil indígena, foi também marcada USP.
por ganhos teóricos importantes no campo da
etnologia. Um deles refere-se ao refinamento da CHAIM, Marivone. (1983), Aldeamentos indígenas:
Goiás 1749/1811. São Paulo, Nobel.
análise das situações de contato: a comprovação
etnológica e discursiva da historicidade dos povos GIACCARIA, Bartolomeo e HEIDE, Alberto. (1974),
nativos, revelada tanto em sua memória como em Jerônimo conta. Campo Grande, Editorial
Dom Bosco.
suas reflexões próprias sobre a história, o passado,
o tempo. Comprovada, também, na capacidade GRAHAM, Laura. (1995), Performing dreams. Austin,
criativa que se exercita nas concepções, nas University of Texas Press.
reelaborações e nas práticas simbólicas e sociais, LOPES DA SILVA, A. (1986), Nomes e amigos. São
nas formas de organização, nas inovações rituais. Paulo, FFLCH/USP, Coleção Antropologia.
A história xavante narrada em Wamrêmé MAYBURY-LEWIS, David. (1984), A sociedade xa-
Za’ra é também a história de um crescente envol- vante. Rio de Janeiro, Francisco Alves.
vimento desse povo indígena com setores cada vez RAVAGNANI, Oswaldo. (1991), A experiência xa-
mais numerosos e variados da população brasileira, vante com o mundo dos brancos. Araraquara,
com a economia e com a política do país. À medida Unesp.
que aumenta o conhecimento mútuo e se ampliam WILBERT, Johannes e SIMONEAU, Karin. (1984),
os campos da interação recíproca, é possível com- Folk literature of the Gê indians. vol. 2. Univer-
preender, sob novos ângulos, princípios e compo- sity of California Publications.
nentes de uma certa “filosofia do contato”, definida
pelos Xavante a partir do interior de seu universo
sociocultural e de sua memória histórica. ARACY LOPES DA SILVA é professora do
Partindo dessas concepções, uma compreen- Departamento de Antropologia da Unicamp
são mais acurada da experiência Xavante no mun- e do Programa de Pós-Graduação em
do atual exige a revisão de certas posturas analíti- Antropologia Social da USP.
cas: no lugar dos blocos “sociedade indígena”/
“sociedade envolvente”, cabe pensá-la como pro-
cesso em curso no âmbito de um complexo socio-
cosmológico mais amplo; no lugar da difundida (e
simplista) idéia da “aculturacão”, a consideração da
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Patrimônio da nação: (raras vezes, ela ou elas), produziram suas pesqui-


sas. 1
os índios & a história da Parece particularmente importante a pletora
Antropologia de conselhos, institutos e comissões criados na
década de 30 — quando também é criado o Conse-
lho de Fiscalização —, justamente no período em
Luís Donisete Benzi GRUPIONI. Coleções e expedi- que as ciências sociais também começam a se
ções vigiadas: os etnólogos no Conselho de Fiscali- institucionalizar no país.2 Como tantos outros desses
zação das Expedições Artísticas e Científicas no órgãos, o Conselho de Fiscalização estava na “inter-
Brasil. São Paulo, Hucitec/Anpocs, 1998. 341 pági- face de dois campos: o político e o intelectual” (p.
nas. 44), e é justamente ao alargar a dimensão do campo
indigenista, “de modo a incorporar a produção de
Mariza Corrêa conhecimento sobre esses grupos, [as populações
indígenas], buscando esclarecer as relações entre os
José Albertino Rodrigues certamente teria se antropólogos e o Estado neste período” (p. 43), que
orgulhado se visse seu nome associado a este livro a pesquisa de Luís Donisete oferece um panorama
— que mereceu o prêmio, que leva seu nome, de do período cujo interesse é bem mais amplo do que
melhor dissertação de mestrado, concedido pela a já em si interessantíssima história do Conselho de
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa Fiscalização. Na mesma época em que começam a
em Ciências Sociais (Anpocs) em 1997. Estudioso se constituir as Faculdades de Filosofia de onde sairia
do sindicato como organização burocrática, penso a geração que criou os cursos de pós-graduação no
que gostaria dessa análise de uma outra instituição, país, a pesquisa antropológica estava quase toda ela
nascida à mesma época, e que guarda na sua sendo feita por estrangeiros — que foram o objeto
história algumas semelhanças com a instituição principal da fiscalização do Conselho — e ainda
sindical. estava concentrada nos museus.
Muitas foram as circunstâncias que levaram
Luís Donisete a passar da pesquisa de campo
1 Se corro o risco de esquecer alguém, é porque as
propriamente dita para esta pesquisa de “etnografia poucas análises institucionais disponíveis estão ainda,
histórica” e abandonar momentaneamente os nati- em sua maioria, na forma de teses e são acessíveis
vos da terra para dedicar-se aos nativos da Antropo- apenas aos iniciados. Lembro, por exemplo, os excelen-
tes trabalhos de Carlos Augusto da Rocha Freire (1990),
logia. Benditas circunstâncias, por duas excelentes Silvana Rubino (1991) e Marcos Chor Maio (1997). Além
razões. A primeira é que, ao focalizar uma institui- deles, há alguns bons artigos, que mostram a importân-
ção tão pouco conhecida como o Conselho, Luís cia de se aprofundar essa perspectiva de análise, nos
dois volumes organizados por Sergio Miceli (1989 e
Donisete abriu também espaço para analisar a 1995) sobre a história das ciências sociais, o trabalho de
atuação de um grupo de etnólogos em sua relação Lima (1985) sobre o SPI, e o inovador trabalho recen-
com ele — seu querido Curt Nimuendaju está temente publicado de Luís Rodolfo Vilhena (1997).
presente, mas aqui estão também Charles Wagley, 2 A maioria dessas instituições foi criada por iniciativa de
William Lipkind e Buell Quain, David Maybury- agentes do Estado, e seria interessante comparar a longa
vida de algumas delas, por exemplo, a CAPES ou o
Lewis e Claude Lévi-Strauss. O que já seria uma SPHAN, com a vida brevísssima de associações profissi-
razão de júbilo para os interessados na história, tão onais do mesmo período, como a Sociedade Brasileira
magrinha nas prateleiras, de nossa disciplina. A de Antropologia e Etnologia (ver Azeredo, 1986 ). Ver a
página 23 do livro para um rol dessas instituições
segunda razão é que, no âmbito de uma bibliogra- oficiais; quanto às sociedades e associações, lembro
fia escassa sobre nossa história, são ainda mais apenas que o professor Castro Faria há tempos reclama
escassas as análises de instituições: boa parte da uma análise do papel importante que a Sociedade de
Geografia, por exemplo, teve no início da instituciona-
história de nossa disciplina é escrita da perspectiva
lização da Antropologia no Brasil, ao oferecer espaços
de um personagem, ou de um grupo, deixando na para discutir a Etnografia nas sessões de seus congres-
sombra o contexto institucional no qual ele, ou eles sos.

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RESENHAS 171

O que é interessante é que, das duas verten- (aliás, nem ela nem seu marido, Robert Murphy,
tes mais bem explicitadas da disciplina na época — aparecem na lista de pesquisadores que teriam
os estudos sobre relações raciais e os estudos sobre pedido licença ao Conselho), mas todas elas subsu-
grupos indígenas —, só a segunda tenha sido midas na condição de “esposas”: é sempre com o
objeto de acompanhamento cuidadoso por parte marido que as negociações são feitas.
do Conselho. Essa ênfase pode ser lida não apenas Outra questão interessante que aparece aí — e
nos nomes dos pesquisadores cujos dossiês Doni- é reforçada pela ausência, na lista dos pesquisadores
sete analisa, mas também na ausência de nomes de que tiveram relação com o Conselho, de todo o
pesquisadores estrangeiros vinculados à primeira grupo de antropólogos que veio da Universidade de
vertente nas discussões da Diretoria nas quais se Columbia para a Bahia, nos anos 50, para fazer
expressavam os conflitos institucionais do campo pesquisa de campo, no âmbito de um convênio
antropológico.3 Ainda que os nomes de Ruth Lan- coordenado por Thales de Azevedo e Charles Wa-
des, Melville Herskovits ou Donald Pierson apare- gley — é a preocupação do Conselho com artefatos
çam na relação de nomes anexada ao final, escassa indígenas: não parece ter havido qualquer preocu-
menção é feita a eles nessas discussões. Sobre Ruth pação com a saída de material de culto dos candom-
Landes, protagonista de uma série de equívocos a blés (veja-se a descrição de Ruth Landes de sua saída
respeito de sua vinda ao Brasil para estudar rela- da Bahia), de imagens ou gravuras religiosas ou de
ções raciais na Bahia — e apresentada pelos jornais documentação histórica, ainda que tais materiais e
como tendo vindo à procura de “índios nas tabas” documentos fossem explicitamente mencionados
—, Donisete observa que no documento impresso no seu regulamento. Já as discussões sobre o direito
do Conselho “estão riscados os campos ‘para explo- à posse dos artefatos indígenas coletados pelos
ração da região’ e ‘fazer pesquisas’, que foram pesquisadores são o ensejo para explicitar vários
substituídos, respectivamente, por ‘visitar’ e ‘fazer conflitos no campo ainda incipiente da Antropologia
exclusivamente estudos sociológicos’” (p. 79). Há — entre o Museu Nacional e a Universidade de São
nessa vinheta toda uma série de questões que Paulo, no caso da segunda viagem de pesquisa de
mereceriam ser exploradas — e uma delas poderia Lévi-Strauss, e entre o Museu Nacional e o Museu
ser a de que “estudos sociológicos” não implicavam Emilio Goeldi, no caso das viagens de Curt Nimuen-
pesquisas. A estranheza causada por uma pesquisa- daju. Conflitos que parecem uma refração de um
dora que vinha por conta própria ao país — creio conflito maior, entre os museus do país e o Museu do
que, além de Emilia Snethlage, ornitóloga alemã já Homem, num caso, e os museus alemães, no outro.
falecida à época da criação do Conselho, e de As coleções vigiadas a que alude o título do livro são,
Vanda Hanke, sobre quem pouco se sabe, ela foi a de fato, as coleções de artefatos indígenas, o que
única estrangeira a fazer pesquisa sozinha nesse sugere que pesquisadores que estavam vinculados a
período de presença intensa de pesquisadores departamentos universitários — como Ruth Landes
estrangeiros — aparece nas entrelinhas e será e, mais tarde, toda a equipe do convênio Bahia-
explicitada mais tarde, nas suas tensas relações Columbia —, e não a museus, e cujo objeto de estudo
com Arthur Ramos e Melville Herskovits.4 Havia não fossem os naturais do país, assim quase
várias outras pesquisadoras em cena, como Frances naturalizados como objetos museológicos, pouco ou
Herskovits, Dina Lévi-Strauss e Yolanda Murphy nada interessavam ao Conselho. “O que interessava,
portanto, aos olhos do Conselho, não eram os índios
em si, mas o que eles simbolizavam numa época em
3 Sobre a grande presença de pesquisadores estrangeiros que se tratou de afirmar o caráter nacional mediante
no país na época, ver Fernanda Peixoto (Massi) (1989). a integração do território e da unificação da gestão
4 Ruth Landes publicou o resultado de suas pesquisas em do Estado. Os índios, juntamente com a fauna e a
1949; o livro foi traduzido para o português e publicado
flora, representavam o que de genuinamente havia
no Brasil em 1967. Sobre suas desavenças com outros
pesquisadores do campo das relações raciais, ver suas de origem nacional e é nesse sentido que deveriam
lembranças do Brasil em P. Golde (1986 [1970]). ser preservados. Mais do que índios reais, o que
172 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 40

estava em pauta era sua contribuição simbólica à FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. (1990), Indigenis-
nacionalidade brasileira, e uma contribuição que era mo e Antropologia: o Conselho Nacional de
vista como parte do passado. Daí o empenho em Proteção aos Índios na gestão Rondon (1939-
1945). Rio de Janeiro, dissertação de mestrado
promover a coleta de artefatos desses representantes em Antropologia Social, Museu Nacional/UFRJ.
primeiros da nação, coletar e depositar em museus
GOLDE, Peggy (ed.). (1986 [1970]), Women in the
para ficarem disponíveis às futuras gerações. É field: anthropological experiences. Berkeley/
assim, como herança, que eles importavam ao Los Angeles, University of California Press.
Conselho, cujas ações visavam à proteção de seus LANDES, Ruth. (1967), A cidade das mulheres. Rio de
testemunhos.” (pp. 268-269). Janeiro, Civilização Brasileira.
O que explica bem o pouco interesse que o __________. (1970), “A woman anthropologist in Bra-
Conselho demonstrou pela outra herança demográ- zil”, in P. Golde, Women in the field, Chicago,
fica do país, a população de origem africana. Ainda Aldine.
que Luís Donisete seja cuidadoso em afirmar que LIMA, Antonio Carlos de Souza. (1985), Aos fetichis-
seu interesse neste trabalho se concentra na relação tas, ordem e progresso: um estudo do campo
indigenista no seu estado de formação. Rio de
dos etnólogos com o Conselho, uma rápida olhada
Janeiro, dissertação de mestrado, PPGAS/Mu-
no inventário analítico do seu arquivo (MAST, seu Nacional/UFRJ.
1988) permite generalizar suas observações para MAIO, Marcos Chor. (1997), A história do Projeto
toda a atuação deste órgão, enquanto ele existiu. Unesco: estudos raciais e ciências sociais no
É, assim, extremamente irônico que a princi- Brasil. Rio de Janeiro, tese de doutorado em
pal agente dessa história — que aparece como uma Sociologia, Iuperj.
linha de fuga que atravessa todo o campo indige- (MASSI), Fernanda Peixoto. (1989), “Franceses e nor-
nista na época, e que teve enorme influência no te-americanos nas ciências sociais brasileiras
(1930-1960)”, in S. Miceli (org.), História das
Conselho e em outras agências do campo —,
ciências sociais no Brasil, vol. 1, São Paulo,
Heloisa Alberto Torres, tenha sido a encarregada de Vértice/Idesp.
montar uma Coleção Etnográfica para representar o MAST — Museu de Astronomia e Ciências Afins.
país na Exposição Histórica do Mundo Português (1988), Arquivo do Conselho de Fiscalização
(1940), em Lisboa, e tenha escolhido para isso, ao das Expedições Artísticas e Científicas no Bra-
lado de alguns artefatos indígenas, bonecas baianas sil. Inventário analítico. Rio de Janeiro, MAST.
e orixás africanos. Aparentemente expostos no dia MICELI, Sergio (org.). (1989), História das ciências
da abertura da Exposição, tais artefatos foram sociais no Brasil, vol. 1. São Paulo, Vértice/
retirados em seguida porque, como disse uma Idesp.
testemunha contemporânea, a comissão organiza- __________. (1995), História das ciências sociais no
Brasil, vol. 2. São Paulo, Sumaré/Idesp.
dora do evento “julgou deprimente apresentar o
Brasil como um país de negros e macumbas”.5 RUBINO, Silvana. (1991), As fachadas da história: os
antecedentes, a criação e os trabalhos do Servi-
ço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal, 1937-1945. Campinas, dissertação de
mestrado, IFCH/Unicamp.
Referências bibliográficas
VILHENA, Luís Rodolfo. (1997), Projeto e missão. O
AZEREDO, Paulo Roberto. (1986), Antropólogos e movimento folclórico brasileiro, 1947-1964.
pioneiros. A história da Sociedade Brasileira Rio de Janeiro, Funarte/Fundação Getúlio Var-
de Antropologia e Etnologia. São Paulo, gas.
FFLCH/USP.

MARIZA CORRÊA é professora do


Departamento de Antropologia da Unicamp.
5 Othon Leonardos, em carta no acervo de Heloisa
Alberto Torres, no Departamento de Antropologia do
Museu Nacional.
RESENHAS 173

A atualidade de André espécie de caminho insubstituível para as “refor-


mas liberais”. A República, na concepção desse
Rebouças grupo e de outros intelectuais monárquicos, nada
mais era do que o resultado do conluio dos escra-
Maria Alice Rezende de CARVALHO. O quinto vocratas descontentes com a Abolição com o mili-
século, André Rebouças e a construção do Brasil. tarismo de inspiração platina. Ela nos afastava da
Rio de Janeiro, Revan/Iuperj, 1998. 254 páginas. Europa e da Civilização e nos lançava na vala
comum do caudilhismo latino-americano.
Wilma Peres Costa A influência dessa visão foi profunda na
historiografia brasileira e aparece reciclada em
No ano de 1891, o engenheiro e intelectual muitas interpretações vigentes. André Rebouças é o
liberal André Rebouças desenhou em seu Registro menos lido da tríade e, de certa forma, o menos
de Correspondência um triângulo equilátero, no- influente nas correntes do pensamento brasileiro
meando cada um dos lados: Joaquim Nabuco subseqüentes. A obra literária de Taunay, em par-
(Liberal), Taunay (Conservador) e André Rebouças ticular os clássicos A retirada da Laguna e Inocên-
(sem partido). Por meio de uma tênue linha ponti- cia, é das mais lidas e comentadas da literatura
lhada, os ângulos da figura uniam-se em uma brasileira, ao passo que O abolicionismo e Um
pirâmide, em cujo vértice encontrava-se o nome de estadista do Império, representando diferentes
d. Pedro II. Assim ilustrava Rebouças suas relações momentos da trajetória política de Joaquim Nabu-
com seus companheiros de campanha abolicionista co, desfrutam a curiosa peculiaridade de serem
e militância reformadora, reunidos pelo exílio eu- obras fundantes, respectivamente, da historiografia
ropeu: divergentes em suas escolhas partidárias, crítica e da historiografia conservadora no Brasil. A
mas unidos em sua lealdade a d. Pedro II. maior parte da obra de Rebouças permanece não
A ilustração é fecunda em sugestões e serve publicada, estando confiada aos seus Diários ínti-
como ponto de partida para o instigante estudo de mos e à sua extensa correspondência, ou foi divul-
Maria Alice Rezende de Carvalho que, centrado na gada em revistas dedicadas a temas técnicos de
trajetória de André Rebouças, nos convida a refletir engenharia e agricultura, hoje de difícil acesso. O
sobre o pensamento brasileiro nas últimas décadas esforço em legitimar seus argumentos na lingua-
do século XIX. gem da ciência e da técnica não ajuda, também, sua
São múltiplas as razões que fazem oportuna aproximação com o leitor de hoje. Tudo isso torna
a reflexão sobre a trajetória desse pensador e o seu ainda muito mais meritória a cuidadosa garimpa-
legado, não sendo a menos importante a atual gem de uma parcela significativa de seu pensamen-
entressafra de intelectuais com espírito público, em to realizada pela autora e sua habilidade em re-
vívido contraste com o final do século XIX, tão construí-la numa “trajetória” com sentido. O resul-
profícuo no esforço de “pensar” e “reformar” o tado faz ressaltar, por um lado, a profunda imersão
Brasil, quanto trágico no destino reservado a mui- de Rebouças na problemática de seu tempo e, por
tos dos “intelectuais militantes” de vários matizes: a outro, a impressionante atualidade de seu pensa-
loucura (Aristides Lobo), o crime passional (Eucli- mento. Seu cerne — o obstáculo representado pelo
des da Cunha), o suicídio (Silva Jardim (?), Raul monopólio da terra à construção de um capitalismo
Pompéia e o próprio Rebouças). Ao escolher como dinâmico e de uma democracia genuína — ainda
caminho para estruturar a biografia intelectual e desafia pensadores e militantes nesse triste final de
política de Rebouças a referência a Joaquim Nabu- século XX.
co e Alfredo Taunay, o livro de Maria Alice Rezende Para desenhar a primeira vertente interpreta-
de Carvalho aborda uma faceta das agitadas corren- tiva, Maria Alice Rezende de Carvalho conduz o
tes de idéias que animaram o Brasil naquele perío- leitor, através de refinada erudição, para as leituras
do — os liberais reformadores que se mantiveram que esse intelectual “periférico” e seus companhei-
fiéis à monarquia e que viram nessa instituição uma ros faziam da efervescência intelectual que acom-

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174 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 40

panhava as Grandes Transformações nos centros como, nos imaginados debates da Sociedade de
do pensamento europeu e norte-americano. O Imigração da qual faziam parte Rebouças e Taunay,
leitor ganha, assim, uma rica reconstituição das nosso engenheiro encarava a questão do “branque-
principais linhas do pensamento europeu do sécu- amento”, tão notória nas propostas daquela entida-
lo XIX (e mesmo anterior, no caso das leituras de. Da mesma forma, nos textos trabalhados por
privilegiadas pela autora para o entendimento da Maria Alice Rezende de Carvalho, podemos adivi-
formação de Rebouças), forjando as saborosas tipo- nhar divergências entre Rebouças, Taunay e Nabu-
logias do “inglês” (Nabuco), do “francês” (Taunay) co no calor da campanha abolicionista e no trata-
e do yankee (Rebouças). mento da questão agrária e do problema social nos
Em uma segunda vertente interpretativa, a anos subseqüentes. Ou, em outra direção, ficamos
autora privilegia a escolha e a trajetória profissio- a nos perguntar o que teria impedido esse apaixo-
nais de Rebouças, com um panorama do ensino e nado cultor da livre empresa de aproximar-se das
do exercício da Engenharia, nas suas vertentes iniciativas que, poucas, mas expressivas, desenvol-
militar e civil, como uma maneira estratégica de viam-se na Província de São Paulo, como a expan-
encarar a formação de Rebouças e sua inserção são ferroviária com capital nacional?
social. O leitor atento pode apreciar, aqui, uma A verdade é que, dentre os muitos méritos
tensão, embora não seja essa a ênfase preferencial desse fascinante trabalho, conta-se o de transmitir
da autora, entre duas linhas de força na vida de ao leitor de hoje o interesse pelas profundas ambi-
nossa personagem. De um lado, a opção pela güidades de sua personagem: um homem de for-
Escola Militar e pela carreira “científica” indica mação militar que tenta até o limite a carreira de self
direção alternativa ao bacharelismo típico da elite made man; um intelectual negro apaixonado pela
imperial, o que aproximaria a história pessoal de cultura yankee; um filho-família que rejeita a carrei-
Rebouças da de vários membros da contra-elite ra política; uma biografia de positivista que floresce
crítica, cientificista, antibacharelesca que se forja na como expoente liberal; um cultor do livre-cambis-
Escola Militar a partir da Guerra do Paraguai (e da mo e admirador das duas mais importantes vias de
qual Benjamim Constant e seus discípulos são uma desenvolvimento através do protecionismo no sé-
espécie de paradigma). De outro, os profundos culo XIX (os EUA e a Alemanha); um dandy,
laços de Rebouças com o Imperador e sua família apaixonado pela ópera, que vive como celibatário
e com alguns proeminentes estadistas do período, e termina trágica e solitariamente seus dias no
como o Visconde de Itaboraí, para não falar de seu fundo de um penhasco na Ilha da Madeira.
convívio referencial com os melhores filhos-família O Brasil pelo qual ele lutou é uma quimera,
da Corte da Belle Époque. Isso não obstante uma como afirmou nossa autora encerrando seu traba-
profunda aversão à política partidária, que acom- lho: “Afinal, no século que se seguiu ao seu
panha nosso engenheiro durante toda a vida, e uma suicídio, atirando-se de um penhasco em Funchal,
busca quase quixotesca do “espírito empresarial” e os três amigos permaneceriam amalgamados na
da “livre iniciativa”, que marca sua vida pública trajetória empreendida pelo Brasil: o rinnovamen-
durante a década de 1870. to de Nabuco tornar-se-ia o método pelo qual os
Parece quase impossível pensar essa tensão brasileiros reconheceriam o seu longo e lento
sem tematizar a questão racial e a posição excêntri- movimento em direção às reformas; o império de
ca de Rebouças como refinado intelectual negro em Taunay, metáfora de sua aspiração por uma ‘razão
uma sociedade escravista. Nossa autora escolheu de Estado’ ilustrada e complacente, seria reeditado
não fazê-lo, embora a questão não esteja ausente em muitas versões ao longo do século XX, das
de seu trabalho. Acompanha nisso, solidariamente, quais a emergência de um novo Estado — o Estado
sua personagem, extremamente reticente em abor- Novo — seria a sua mais acabada expressão; por
dar a problemática da cor no plano de sua experi- fim, a democracia expansiva de Rebouças, refletin-
ência existencial, embora inflamado abolicionista. do sua crença na potencialidade libertária dos
Desperta-nos, entretanto, a curiosidade em saber interesses, seria a forma assumida pela esperança,
RESENHAS 175

no crepúsculo desse nosso quinto século”. Muitos Religião e comportamento


de nós não acalentamos essa esperança — a de que
a livre iniciativa e as forças liberadoras do mercado
sejam capazes de construir e consolidar a democra- Rubem C. FERNANDES, Pierre SANCHIS, Otávio G.
cia nesse sombrio final de século XX. Sentimo-nos VELHO, Leandro PIQUET, Cecília MARIZ e Clara
convidados, entretanto, por esse belo livro, a nos MAFRA. Novo nascimento: os evangélicos em casa,
aproximarmos do pensamento e do legado de na política e na igreja. Rio de Janeiro, Mauad,
André Rebouças, no seu profundo inconformismo 1998. 264 páginas.
com a desigualdade e no seu incansável combate às
oligarquias, à miséria e à exclusão social. Ronaldo de Almeida

Em 1992, o Instituto de Estudos da Religião


WILMA PERES COSTA é professora (Iser) realizou o Censo Institucional Evangélico
do Departamento de Política e História (CNI) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e
Econômica do Instituto de Economia colocou em números a abrangência do campo
da Unicamp e coordenadora associada do evangélico, que há algumas décadas vinha apre-
Centro de Estudos Brasileiros do Instituto sentando transformações em sua relação com a
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) sociedade (como na esfera política e nos meios de
da mesma universidade. comunicação) e em sua prática religiosa (como o
culto e algumas crenças). Embora a pesquisa se
tenha restringido ao Grande Rio, o cenário flumi-
nense ancorou muitas interpretações de caráter
propriamente qualitativo sobre a configuração reli-
giosa no Brasil, além de despertar novas indaga-
ções. Como desdobramento desse trabalho, o Iser
iniciou, dois anos depois, outra grande investiga-
ção quantitativa sobre os evangélicos, em três
dimensões da vida social: na família, na comunida-
de religiosa e na atividade política. O resultado está
em Novo nascimento: os evangélicos em casa, na
política e na igreja, composto do relatório da
pesquisa (Fernandes), dois comentários (Sanchis e
Velho) e três artigos (Piquet, Mariz e Mafra).
Diferentemente da análise institucional do
CNI, Novo nascimento procurou descrever o pa-
drão comportamental desse segmento religioso
que se encontra em plena expansão. O ponto de
partida foi o diagnóstico de que 70% dos evangéli-
cos são “convertidos”. Logo, se o campo religioso
brasileiro caracteriza-se por um trânsito generaliza-
do de fiéis pelos diversos credos, como constatou
Prandi (1996), a fé evangélica foi uma das que mais
atraiu adeptos de outras instituições. Diga-se, ain-
da, que parte do trânsito ocorreu entre as próprias
denominações, cuja rotatividade de fiéis é da or-
dem de 25%. Fernandes destaca o ethos “evangéli-
co” que, por ser base de fé comum, perpassa as

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176 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 40

denominações, facilitando a mudança de filiação tos, como nos cultos de exorcismo, muito distante
religiosa (p. 72). Acrescente-se, contudo, que nesse do protestantismo histórico e mais parecida com a
trânsito interdenominacional há fluxos preferen- religiosidade a que se propunha combater (Almei-
ciais direcionados para o protestantismo carismáti- da, 1995). Não por acaso, a maior incidência de
co e o pentecostalismo, em particular o neopente- conversões de religiosos afro-brasileiros ocorre
costalismo, o que resulta em uma religiosidade para a Igreja Universal. Esses exemplos mostram
mais mística e menos ascética. um espraiamento dessa religiosidade simultanea-
Uma das novidades da pesquisa foi a tipolo- mente à absorção de outras práticas e crenças, o
gia que reduziu as denominações do campo evan- que torna o campo simbólico evangélico mais
gélico do Grande Rio a seis categorias (Históricas, amplo do que o conjunto de suas instituições.
Históricas Renovadas, Batista, Assembléia de Deus, Como adverte Sanchis em seu comentário sobre a
Igreja Universal e Outras Pentecostais). Além de pesquisa, os evangélicos devem ser analisados
diferenciar a Assembléia de Deus e a Igreja Univer- segundo uma “matriz católica e uma funda marca
sal da massa dos pentecostais, a tipologia circuns- afro-brasileira” (p. 150).
creveu os pouco estudados batistas e históricos No plano demográfico, Novo nascimento de-
renovados (também chamados de protestantes ca- monstra como o fenômeno de conversão ocorreu
rismáticos). A importância dos batistas deve-se ao na classe média e, predominantemente, na classe
fato de constituírem o único grupo não pentecosta- pobre. As igrejas renovadas e pentecostais encon-
lizado que realiza, como as igrejas pentecostais e tram-se em maior número nas camadas populares.
renovadas, um eficiente proselitismo, além de ser Entre os pentecostais predominam os menos esco-
também um difusor do pensamento evangélico- larizados, ao passo que nas históricas renovadas o
fundamentalista norte-americano, que marcou boa nível de escolaridade é equivalente ao dos batistas
parte do meio evangélico no Brasil (Fernandes, e históricos. Quanto ao gênero, os evangélicos
1979). compõem-se, na sua maioria, de mulheres. A rela-
A categoria Históricas Renovadas, por sua ção é de 31% de homens para 69% de mulheres. Os
vez, define um grupo à parte dos históricos e batistas são os que melhor mantêm o equilíbrio
pentecostais, procedimento pouco adotado por entre os sexos, com 64% de mulheres. Mas o
outras pesquisas quantitativas. Por se tratar de número que impressiona é o da Universal: 81% de
segmento intermediário entre esses dois grupos, a mulheres para 19% de homens.
compreensão dos renovados pode contribuir em Esse contingente feminino foi abordado
muito para a atual discussão sobre a versão caris- pelo survey de Novo nascimento a partir da aná-
mática do catolicismo. É evidente que as ações da lise das relações familiares e do comportamento
figura mais expoente da Renovação Carismática no reprodutivo. Conforme Fernandes, os evangélicos
momento, o padre Marcelo, assemelham-se em representam um avanço na modernização da soci-
muito às das igrejas neopentecostais, como a Igreja edade brasileira. Primeiro, porque, de acordo
Universal e a Renascer em Cristo, no que diz com a pesquisa, a taxa de fecundidade entre as
respeito ao uso da mídia, à criação de um espetá- evangélicas é de 2,74, muito próxima da taxa de
culo de culto e à exploração do setor fonográfico; 2,58 da população brasileira; a “[a pesquisa] indi-
entretanto, tais católicos, assim como os renovados ca que as igrejas evangélicas tendem a influenciar
protestantes, interessam também por seu hibridis- os seus membros a baixar a taxa de natalidade”
mo, que cria conexões intra-evangélicos e, no caso (p. 103). As famílias evangélicas acompanharam a
católico, intracristãos. queda na taxa de fecundidade apresentada pelo
Se ampliarmos ainda os exemplos, veremos país nas últimas décadas. Além disso, exige-se de
que essas conexões extrapolam o espectro cris- um homem convertido a mudança de comporta-
tão. Refiro-me à Igreja Universal, que criou um mento no que diz respeito à economia doméstica,
“sincretismo invertido” no conflito com as religi- ao adultério e aos vícios de jogo, álcool e tabaco,
ões afro-brasileiras, ficando, em alguns momen- entre outras coisas. Logo, conclui Fernandes, “so-
RESENHAS 177

mos inclinados a sugerir que, sim, a pregação mística, como o pentecostalismo, por exemplo.
evangélica tem propiciado transformações moder- Esta mesma interpretação encontra-se no trabalho
nizantes das relações entre os gêneros” (p. 94). de Prandi (1992), cujo título, “Perto da magia, longe
Os dados apresentados em Novo nascimento da política”, define sua conclusão. Para sustentar
mostram que a pregação evangélica é bem eficaz seu argumento, este autor contrapõe o modelo
em normatizar o comportamento do fiel. O discurso comunitário das CEBs, que envolveriam os fiéis em
oficial católico sobre reprodução, virgindade e ações racionais e coletivas, ao individualismo das
aborto pode até ser mais conservador do que o religiões mágicas, como as afro-brasileiras e pente-
evangélico, mas qual o nível de obediência à Igreja costais.
de um grupo que costuma se diferenciar entre Segundo os dados de Novo nascimento, no
“praticantes” e “não-praticantes”? Ou, ainda, qual o entanto, aqueles que mais participam da comuni-
comportamento do fiel das afro-brasileiras, já que dade religiosa, ocupando cargos, exercendo lide-
não professam um discurso moral e normativo. Isto rança ou “manifestando os dons do Espírito Santo”,
é, se vários fatores contribuíram para a queda da são os mais ativos na participação social, seja em
fecundidade no Brasil, que participações tiveram eleições, partidos, sindicatos, associações de mora-
os diferentes credos? Esta não foi a preocupação da dores, obras assistenciais etc. Além dessas partici-
pesquisa, até porque o recorte empírico limitou-se pações, os fiéis são ainda envolvidos em fortes
ao meio evangélico. No entanto, ao estabelecer o redes de solidariedade entre os “domésticos da fé”.
universo feminino e familiar como um dos eixos de Assim, a contraposição com as CEBs deve-se antes
investigação, a pesquisa enfocou uma das dimen- às diferenças ideológicas do que, propriamente, a
sões da vida social mais atingida pela conversão à uma debilidade das relações comunitárias dos
fé evangélica. evangélicos. Organizados no modelo “congregaci-
Como dito, as mudanças de comportamento onal protestante”, esses religiosos agem em favor
tendem à modernização. Entretanto, convém des- dos “irmãos” e possuem, assim como as CEBs, um
tacar que elas ocorrem sob um discurso tradicio- projeto de sociedade; mas, diferentemente delas,
nal e não igualitário, como observa Mafra. É fato pregam a regeneração moral a partir da qual
que o homem, quando convertido, começa a va- decorreriam as transformações sociais.
lorizar a família, mas a relação marido/esposa Herança do protestantismo histórico, esse
ocorre numa situação de hierarquia em que a caráter associativo da “congregação” foi bastante
submissão feminina e a providência masculina destacado pela pesquisa para mostrar a participa-
são doutrinariamente defendidas. Por mais que ção cívica dos evangélicos. Contudo, pergunto-me
haja exceções, como algumas denominações que qual é a referência de “congregação” quando exis-
aceitam o pastorado feminino, o espaço da igreja tem, de um lado, as igrejas históricas e pentecostais
é de predomínio absoluto dos homens, mesmo clássicas, em que predomina um tipo de organiza-
em face da maioria de mulheres. Se a conversão ção comunitária estruturada em redes familiares, e,
implica mudanças nas relações de gênero, estas de outro, as neopentecostais, como a Igreja Univer-
não são equivalentes aos avanços alcançados no sal, que realiza até cinco cultos por dia, reveza
comportamento reprodutivo. constantemente seus pastores entre os templos,
Essa dualidade (conservador/moderno), por realiza com freqüência grandes concentrações, uti-
sinal, marcou boa parte da bibliografia sobre os liza o rádio e a televisão como propagadores do
evangélicos, que se divide entre o elogio às mudan- Evangelho ou faz celebrações em grandes salas de
ças — sobre o qual Velho adverte quanto aos cinema e de teatro.
possíveis excessos — e a condenação do atraso. Em que medida essa pregação “no atacado”
Isto fica mais claro nos estudos sobre a esfera — que é extensível à Renovação Carismática —
política. Alguns trabalhos da década de 70 afirma- afeta a própria prática da religião? Entre inúmeros
vam ou tinham como a priori que a participação exemplos, penso nos meios de comunicação, que
social era incompatível com uma religiosidade mais permitem, no âmbito doméstico, a audiência si-
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multânea de diferentes pregações, que o fiel per- Referências bibliográficas


corre ecumênica e curiosamente sem que isso
resulte em mudança de credo. Não se trata propri- ALMEIDA, Ronaldo de. (1995), A universalização do
amente de um culto doméstico, mas da reformula- Reino de Deus. Campinas, dissertação de mes-
ção do cotidiano com atividades de conteúdo trado, IFCH/Unicamp.
religioso sem a pretensão de gerar uma epifania FERNANDES, Rubem C. (1979), “As missões protes-
ou algo equivalente. Os programas de auditório, tantes em números”. Cadernos do ISER, 10.
videoclipes, talk-shows, festivais de música, nove- PIERUCCI, Antônio F. (1996), “Em defesa do consumi-
las, todos evangélicos e adequados à linguagem dor religioso”. Novos Estudos, São Paulo, Ce-
televisiva, desempenham uma função mais de brap, 44.
entretenimento do que religiosa. Um estudo de PRANDI, Reginaldo. (1992), “Perto da magia, longe da
recepção dessa programação pode contribuir mui- política”. Novos Estudos, São Paulo, Cebrap,
to para o entendimento de como a fé evangélica é 34.
vivida no cotidiano da casa, principalmente pelo __________. (1996), “Religião paga, conversão e servi-
contingente feminino. ço”. Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 45.
Da mesma forma, o consumo religioso é
uma dimensão do cotidiano que precisa ser mais
bem investigada, em particular a hipótese de Pie- RONALDO DE ALMEIDA é pesquisador
rucci (1996) sobre a formação do “consumidor do Cebrap e doutorando em Antropologia
religioso”. Não penso propriamente na idéia de Social na USP.
um sujeito com direitos de reclamação sobre a
eficácia da mensagem religiosa, nem na de um
indivíduo que tenha à sua disposição inúmeras
possibilidades de escolha de credo, ou de vários
simultaneamente. A preocupação é com o consu-
mo de uma série de produtos que atendem às
várias demandas da fé na vida cotidiana, como
discos, literatura, programação televisiva, educa-
ção, saúde etc. Em resumo, mercadorias, ativida-
des sociais e serviços definidos segundo padrões
de consumo e estilos de vida, com circuitos parti-
culares e cujo elemento estruturante é a opção
religiosa. Essa interface entre hábitos religiosos,
audiência televisiva e consumo não foi tema de
investigação de Novo nascimento, muito embora
o CNI, já em 1992, tenha cadastrado diversos
estabelecimentos comerciais com produtos rela-
cionados à fé.
Mas esses são alguns dos possíveis desdobra-
mentos das pesquisas que o Iser vem realizando
sobre o meio evangélico contemporâneo, que, se
por um lado tornam cada vez mais inteligível este
segmento, por outro suscitam novas hipóteses so-
bre o impacto causado pela conversão no compor-
tamento de uma parcela significativa da população
brasileira.

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