Bom nos tempos livres, de João Rebocho: a poesia da imprevisibilidade
do antigo medo da infância regressas
por onde as pedras raízes e bichos se tocam amam e dormem juntos na euforia dos sonhos
(O Livro dos Regressos (1989), Al Berto – primeiro estrofe do primeiro poema do livro)
Há algum tempo que olho para esta espécie de incumbência
que o João Rebocho tem de por altura destas festas de Gouveia apresentar um novo livro, que, desde que por aqui vagueio, tem sido sempre de poesia: Fama de Bom (2012); Fama de Mau (2013); Eu também conheço o Fernando Pessoa (2014); Rapazas e Raparigos (2015); Ruas Lavadas (2016); e este novíssimo Bom nos Tempos Livres (2017). A atenção que prestei a este facto não se enovela nas raízes ficcionais ou artísticas de que os livros, porventura, pudessem conter, pois estranharia sempre que um poeta se amarrasse às festas religiosas (principais ou secundárias) de um qualquer espaço para mostrar o seu pensamento, o qual por regra é liberto de dogmas ou de crenças. Porém, com a leitura deste e dos outros livros, apercebi-me que a razão principal para estas apresentações é, de facto, o ser Gouveia um espaço de vida total para o autor João Rebocho e para o sujeito poético que habita os seus textos. De facto, Gouveia e algumas das suas freguesias/ espaços são presenças constantes nos seus poemas. Será este facto devido ao Amor à terra ou ao estar Amarrado à terra? Na opinião deste leitor, ambas as possibilidades são abordadas ao longo dos seus poemas, desde o livro Fama de Bom até a este que hoje aqui folheamos. Leia-se, a propósito, o poema “tantos dias” (página 20) em que o sujeito poético, como “Tântalo” após a desobediência aos deuses, se encontra com “correntes nos pulsos/ nas praças de Gouveia”. Sinal, parece-me claro, de algum desamor à cidade que o obriga, de forma rude e violenta, a ficar. Porém, e peço que olhem o poema “à beira de nada ou” (p. 72), é o mesmo sujeito poético que regressa, que “a pé” revela “subir para Gouveia”, sob a influência, diz-nos, de uma “lucidez previsível”. “Odi et amo. Quare id faciam, fortasse requiris. Nescio, sed fieri sentio et excrucior.” “Eu odeio e amo. Talvez queiram saber o porquê de ser assim. Não sei, é assim que me sinto e isso dilacera-me.” Diz-nos Caio Valério Catulo, num dos seus textos dedicados a Lesbia, e, na minha opinião, diz a obra de João Rebocho na sua totalidade. Quererei dizer que nesta obra Gouveia é o centro de tudo? O “tmg/ Tempo Médio de Gouveia” (em comunhão com o Tempo Médio de Greenwich), como o poema situado na página 29? Esta alusão irónica (?) q.b. ao centralismo de Gouveia é provocado pelo centro da existência do autor, da sua vivência quotidiana. No entanto, essa leitura é desmontada pelo conjunto de fugas do autor a este seu centro, e vemos então o desejo de evasão consubstanciado nas referências a Ícaro, a Lindbergh, a Santa Apolónia, ao aeroporto, ao comboio, a Torremolinos, a Ciudad Rodrigo, etc.. O principal objecto de evasão parece ser, no entanto, o livro, a escrita, a poesia, como nos mostra o poema “alguém vem aqui” (p. 17). Numa espécie de troca de lugar, um aparente desejo de fuga ao real, o sujeito poético entrega a “alguém” o papel de autor dos seus livros e de tudo o resto. A questão que se coloca é: Quem é esse “alguém”? Na minha opinião será o próprio autor, mas deixo-vos espaço para também o interpretarem. Desde o início do livro há, penso-o, uma constante de procura, seja de entendimento, de compreensão da vida presente, do tempo que lá vai, da adolescência, mas também daquilo que se entende como “condição humana”. E esta condição humana, que tem para mim uma impossível definição, surge num dos poemas mais interessantes de toda a obra “equívocos de vida” (p. 36), onde o sujeito poético, de uma forma excessivamente (?) negativa, nos leva, na lição do poema, ao encontro de Camões e do seu “Erros meus, má fortuna, amor ardente”. Ou seja, a vida e os seus equívocos deram em nada, no “tempo perdido”, na existência nula, na constatação de que a realidade (“as portas da verdades”) contrariou tudo o que esperávamos dela e dos nossos passos em direcção a ela. No meio desta procura que o livro de João Rebocho encerra, parece-me ver o seu sujeito poético a ser personagem de um poema de Al Berto (também em O Livro dos Regressos) que gostaria de ler:
caminhou uma vez mais no abismo da cidade
reconstruiu o corpo em andaimes de néon abraçou-o desde os alicerces à veia da noite telúrica subiu para não se sentir sozinho
era um corpo cuja amargura cegava quem o tocasse
ou nele pressentisse outro corpo prisioneiro numa moldura enferrujada – juntos o corpo e a sua imagem dormiam no lixo como dois ossos abandonados sonhavam devagar com a paixão que não tinham
E quase como resposta a Al Berto, ou como leitor de Al Berto, o
sujeito poético de Bom nos Tempos Livres, no poema “Civilizado Afável” (p. 78), parece resumir tudo a um “nada senão errar”. Há neste livro, e em todos os do João Rebocho, uma necessária conversa à mesa do café com diversos autores da sua predilecção e com os temas que eles trazem: com Eça de Queirós, com Whalt Whitman, com Dickens, com Hemingway, com Adélia Prado, etc.. Mas também com a música de Chet Bakker, de Léo Ferré ou de Chico Buarque. E tudo isso traz para o texto uma poética imprevisível ao nível dos sentidos e das possibilidades interpretativas, havendo um imenso leque de chegadas interpretativas que possibilita ao viajante leitor uma leitura rica e enriquecida pelo diálogo constante com outros universos de sentido. Estando já a abusar dos limites que me foram concedidos pelo autor para apresentar esta obra, permito-me, apenas, trazer a este espaço, como nota final, quatro versos de Daniel Jonas, poeta do agrado do João Rebocho, que podem servir como conclusão bem disposta para o acto de escrever poesia e de a publicar: Devem ser as hormonas/ e não a filosofia, o fazer sentido,/ o achar significados, o escavar pelo verme/ da lógica.