Letras – 1º período
Professor: Bruno Duarte
Aluna: Nathália Cristina de Freitas Campos
Cultura Brasileira
Resenha: Ex-pajé
O documentário Ex-Pajé, dirigido pelo também roteirista e produtor Luiz Bolognesi, foi
lançado no Brasil em 26 de abril de 2018. A filmagem ocorreu na tribo dos Paiter Suruí,
situada em Rondônia, no norte do país.
O projeto conta com quase 100% de atores indígenas, o que pode parecer estranho para
um documentário, mas Bolognesi explicou, em uma entrevista para O Globo (2018) que
quis mostrar algumas situações que os índios contaram pra ele quando ainda não
estavam gravando, então propôs que eles reencenassem o que aconteceu, interpretando
a si mesmos. Foi o que fizeram com a história de Kabena Cinta Larga, integrante da tribo
picada por uma cobra, que perpassa o documentário inteiro e aconteceu de verdade
poucos dias antes da chegada do diretor com sua equipe.
O filme tem um ritmo lento, algo proposital. Em entrevista para o Estado de Minas,
Bolognesi afirma que tentou reproduzir o tempo indígena: “os índios são escultores do
tempo, não são escravos dele.” (BOLOGNESI, 2018). A mensagem também parece ser
de que a destruição, mesmo quando é lenta e imperceptível aos olhos estrangeiros,
realmente acontece. Isso parece se confirmar em dois momentos iniciais: com a epígrafe,
uma frase do antropólogo francês Pierre Clastres: “O etnocídio não é a destruição física
dos homens, mas a destruição sistemática de seus modos de vida e pensamento.
Enquanto o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu
espírito” e com a comparação de dois cenários: uma filmagem do território dos Paiter
Suruí em 1969, ano do primeiro contato da tribo com os brancos, e uma filmagem do
mesmo território em 2017, momento em que conhecemos Perpera, o ex-pajé.
Perpera foi forçado a abrir mão da função de pajé depois de ter seus conhecimentos
sobre ritos e espíritos tachados como “coisas do diabo” por um pastor que atua na região.
Ele passa então a ter que cuidar do seu próprio sustento, já que como Bolognesi explica
em sua entrevista para O Globo, o pajé não caça, não pesca e não planta e são os
homens da tribo os responsáveis por prover o pajé. O filme mostra problemas dos
avanços das madeireiras e do agronegócio, tão debatidos na mídia, mas também
apresenta o avanço das igrejas neopetencostais como uma ameaça, silenciosa, uma
repetição moderna do que os jesuítas fizeram há tantos anos, quando o Brasil ainda era
uma colônia. Bolognesi explica que “a igreja retira o poder simbólico, religioso e científico
do pajé.” (BOLOGNESI, 2018). Como não existe, para os indígenas, separação entre
religião e ciência, o poder simbólico do pajé passa a ser inexistente.
Durante o filme Perpera é visto pegando carona em uma caminhonete, pagando contas
em uma loteria, fazendo compras em um supermercado, utilizando-se de um botijão de
gás para cozinhar e indo ao culto – feito em português – com um terno que não lhe cabe.
Parece a metáfora perfeita para o que sua vida se tornou: ele não consegue se encaixar
no que transformaram sua tribo e aos novos costumes com o que ele aprendeu quando
era jovem. Perpera resiste como pode: ele ignora o culto, contempla a natureza enquanto
o pastor fala, uma conexão ainda clara com as “coisas do diabo”, mas ele é vencido pelo
mais forte: ou se adapta ou é completamente isolado.
É nessa chefia que Perpera se encaixava, antes da chegada do homem branco. Ele era
uma autoridade, mas não tinha poderes de verdade. Quando é obrigado a aceitar as
imposições da igreja, suas “benfeitorias” e “ajudas”, ele perde a importância na tribo,
ficando até mesmo isolado e sem conversar com os outros membros, que antes o viam
como uma figura a ser respeitada. Como afirma Bolognesi, “Perpera é mais uma vítima de
uma estratégia etnocida, que visa destruir os valores culturais e espirituais de todo um
povo.” (BOLOGNESI, 2018).
O documentário mostra tudo isso de uma forma muito bem elaborada, sem entrevistas ou
grandes cortes nas cenas, o que permite ao espectador contemplar a obra no tempo que
ela transcorre na tribo. Em tempos que os índios experienciam não apenas o etnocídio,
mas o genocídio contínuo, Ex-pajé é uma importante reflexão sobre o silenciamento
desses povos e sobre a imposição de culturas que acontece nessas regiões. Infelizmente,
não é um fenômeno novo e ao que parece, também não é um fenômeno do passado, mas
espera-se que seja combatido. Filmes como o de Bolognesi são um importante lembrete
para a nossa população.
Referências:
ARANHA, Aline & FREIRE, Gabriela. Sociedade contra o Estado - Pierre Clastres.
In: Enciclopédia de Antropologia. 2016. São Paulo: Universidade de São Paulo,
Departamento de Antropologia. Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/conceito/sociedade-
contra-o-estado-pierre-clastres>. Acesso em: 16/11/2019