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Irir c1ua.t.s bilhões de anos enrcrgirarn
da "sopa prirnor<iiar,' os pr.ir.t.i r'Íi'ito, como afirmar que o tempo tem uma existência real fora de nós,
r'()s scrcsvivos. os paleontólogos descobrem hominídeos
cada vez rrrrris t;r.rando ele é constituído por um passado que não existe mais, por um
a'rtigos, perto dos quais Lucy, com seus modestos
três milhões dc ar«rs, lLrturo que não existe ainda, e por um presente que nada mais é que um
parece uma trêfega adorescente. Todos sabem
hoje que os dinossauros sc intcrvalo evanescente entre duas formas de não ser? Mas há em Agostinho
cxtinguiram há cerca de sessenta mirhões de anos.
os geólogos conhecenr clcmentos para uma fascinante teoria psicológica da percepção tempo-
a idade da Têrra: ela surgiu poucos bilhões
d. anos a"pái, da criaçã<r lal, sem vestígios de relativismo. Entre eles está a concepção do tríplice
clo universo' Depois que Hubbre descobriu
que as garáxias estavam se presente - o presente em que se dá a rememoração, o presente em que
afastando rapidamente de nós, foi possível não
somente deduzir que o se formulam projetos para o futuro, e o presente em que se dá a tomada
r''rrverso estava se expandindo, como recuar
no passado até o momento de consciência do próprio tempo presente.
rl' llig Bang. um trilionésimo de segundo depois da
explosão, ocorrida A interpretação psicológica mais conüncente do fenômeno tempoÍal
lrír cerca de 4,7 bilhões de anos, surgia
o bóson de Higgs, gerando um está em Freud. O tempo aparece na psicanálise no processo de maturação
(-anlpo eletromagnético que deu
massa às outras partículas e engendrou ontogenética, pela qual o indivíduo vai atravessando os estágios corres-
ountverso_eotempo.
pondentes à sua faixa etária, da fase oral e anal à fálica e genital, mas não
O tempo psicológico rem a ver com a percepção individual.
Recor_ é facilmente perceptível nos processos psíquicos que constituem a esfera
ramos mais uma vez a Santo Agostinho. Depois
de dizerque não sabia própria da psicanálise, o inconsciente. Pois o inconsciente não conhece o
explicar o tempo, ele acrescenta:
tempo, ê Zeitlos. Daí, nos sonhos, a inversão das sequências cronológicas,
em que cenas logicamente posteriores aparecem em primeiro lugar. Daí,
Apesar disso, atrevo_rne a dizer que sei pelo
menos isto, que se nada também, a importância nos sonhos do mecanismo da regressão, em sua
passasse, não haveria passado, que
se nada estivesse por vir, não haveria tríplice manifestação: regressão tópica (em vez de mover-se do polo da
futuro, e que se nada
existisse, não havena presente. Esses dois
tempos, percepção para o da motilidade, como acontece nos processos psíquicos
o passado e o porvir, o que são eles, quando o
pretérito jâ não é, e o diurnos, a excitação se move em direção ao polo da percepção, o que
futuro ainda não é? euanto ao presente, se fosse
sempre presente e não dá aos sonhos seu caráter alucinatório); regressão temporal (retorno a
transitasse para o passado, não seria tempo,
mas eternidade. Se então o fases psíquicas ultrapassadas, como os estágios pré-genitais); e regressão
presente, para ser tempo, só existe para que
venha a ser passado, como formal (uso de modos primitivos de expressão, como as imagens, em
podemos dizer que aquilo que só é para que
não seja mais tem exis_ vez de pensamentos). Todas essas variedades de regressão se reduzem
tência, afirmando, portanto, que o tempo só
é porque tende a não ser? em última análise à regressão temporal, porque o que é mais antigo no l
a temporalidade pura- quica normal. O esquecimento pode ser um mero ato falho que se passa
mente humana ao tempo divino, ao tempo da
eternidade, e a defender a no consciente e no pré-consciente. Mas há uma amnésia mais profunda,
rrecessidade para o espírito humano de optar
pela eternidade, sem sacri- que resulta do recalque, como reação a uma experiência traumática. A
íicar com isso seu livre-arbítrio. Além disso, por
seu caráter paradoxar, a tarefa do analista é facilitar a rememoração do material esquecido, para
tcoria agostiniana podia prestar-se a uma rnterpretação I
cética, negando a que o paciente possa libertar-se dos seus demônios. Foi assim desde a pré-
própria existência do tempo, a exemplo das "refutações
do tempo'r.f"to"- -história da psicanálise, quando Freud e Breuer recorreram ao hipnotismo I
tetnps, suspends tonyol, ou Goethe, emVeruveile doch, du Augenblick, dubkt políticas seria tão monstruoso, do ponto de vista ético e afetivo, e tão
so schõn. Nessa época, o tempo era uma simples alegoria, representando catastrófico, do ponto do interesse coletivo, quanto impedir os homens
um velho com asas negras, segurando uma foice, com uma ampulheta ao de se dedicarem à família ou ao convívio com os filhos.
lado. Hoje o velho deixou de ser uma abstração solitária, e multiplicou- Gostaria ainda de fazer aindaalgumas reflexões finais sobre o vínculo
-se em classes e sindicatos com os quais podemos negociar, em torno do entre o tempo da natureza e o tempo humano em geral. O tempo da na-
controle da ampulheta. Tiata-se, em outras palavras, de engajar-nos numa turezapatece preeminente com relação ao tempo humano, pois é naquele
política do tempo, com vistas a uma nova distribuição entre o tempo de que se funda a consciência do envelhecimento biológico e da passagem
trabalho e o tempo livre, e a uma redefinição do conteúdo do tempo livre, objetiva do tempo, originariamente definida pelo movimento dos astros.
para homens e mulheres. Mas, por outro lado, esses dados permaneceriam mudos sem a mente
O tempo de trabalho continua excessivo, apesar dos teóricos do ócio, humana. O homem é o único seÍ capaz de medir um passado incomen-
que confundem a possibilidade técnica de produzir mais bens em menos suravelmente distante, um passado em que a humanidade não existia,
tempo com a redução efetiva das horas de trabalho, esquecendo-se de em que nenhum ser vivo existia, em que o sistema solar não existia, em
que nem sempre o que é tecnologicamente possível é socialmente posto que nenhuma galâna existia, em que o próprio universo não existia, um
em prática. passado ao qual podemos recuar até o primeiro minuto após o Big Bang,
E o ócio, além de decrescente em nossa " overworked society" , transfor- antes do qual não existia o temPo, coerentemente aliás com a teologia
ma-se numa simples extensão da esfera do trabalho. O sistema capitalista cristã, segundo a qual Deus criou o tempo ao criar o mundo. O Homem
confisca o tempo livre. Trata-se de um território só formalmente autô- é aquele ser que mede tudo aquilo que veio antes que houvesse alguém
nomo, pois está cadavez mais colonizado pela indústria do turismo, pela para medir o que quer que fosse. Essa mente que dá coordenadas tempo-
indústria cultural e pelo fetichismo da mercadoria. Não é uma invenção rais ao universo recebeu também de Deus, segundo o pensamento judeo-
recente: a Alemanha nazista tinha um programa chamado Krafi durch -cristão, o dom não somente de nomear as coisas e os seres com os nomes
Freude, "Força atril)es da alegia" , destinado a
proporcionar aos operários que eles verdadeiramente têm - os da língua edênica, anterior a Babel -,
férias e excursões ruteladas pelo Partido, para que nem sequer esses úl- mas de datar esses seres com sua verdadeira idade, o que tiraria dessa
r Este texto coroerya as marcas de uma exposição oral e de sua desrinação a um amplo público, estando
assim desproüdo do aparato usual de notas e de certas preocupações técnicas. Tem a marca dos maco-
lutos, que, na presença da fala, o interlocutor cúmplice ajuda a costuan CumPre registrar, entretmto,
que as ideias aqü apresentadas em Iinhas gerais foram desenvolvidm de modo mais preciso em nosso
recente liuo O cético e o ffidÍ*ta: Sigruifuaçd.o e expríêtÇíd em Wittgffitein (pubücado em zorz, pela
Editora Quarteto), no qual tentamos desenhar com mais detalhes o movimento da obra de Wirtgero-
tein, conÍiontândo a posição do cético (que, paradoxalmente, talvez só possa salisfazer-se com o olhar
divino) e a do euadrista, entregue à perspecriva dos jogos de linguagem.