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Tempo, tempo, tempo

Sergio Paulo Rouanet

O tema do tempo é tão complexo que nos sentimos tentados a ter-


minar a palestra antes de começá-la, invocando para isso a autoridade de
Santo Agostinho, que, apesar de Doutor da Igreja e portanto sapientíssi-
mo, admitia ser mais fácil compreender o tempo que dissertar sobre ele.
Com efeito, é assim que o bispo de Hipona começa a seção xIv do livro xI
de As confissões: "O que é o tempo? Se ninguém rneflzer essa pergunta, eu
sei; mas se eu quisesse esclarecer o que ele é para alguém que desejasse
uma explicação, não sei".
Minha atitude é nesse ponto puramente agostiniana, mas um primei-
ro passo para sairmos desse terreno perigoso é distinguir entre o tempo
danatureza e o humano, tanto o psicológico como o social.
O tempo danatureza é o que se enraiza na realidade objetiva, inde-
pendentemente do psiquismo ou da vida social dos homens. Para os anti-
gos, a própria noção de tempo tinha sua origem no movimento dos astros.
As unidades básicas para medir o tempo - dia, ano, estações - tinham
caráter astronômico, quer o tempo fosse visto como linear, quer como
cíclico, segundo a concepção grega do "grande ano". Esse tempo cósmico
proporcionava as unidades de medida para determinar a cronologia das
coisas e a historicidade dos acontecimentos sublunarer. É o que continua
acontecendo até hoje. À luz da ciência moderna, como da aristotélica,
aÍrat:uÍeza pode ser medida de modo não arbitrário, segundo critérios
intersubjetivos, através de cálculos e experimentos que podem ser confir-
mados ou refutados por observadores independentes. Os biologos sabem

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Irir c1ua.t.s bilhões de anos enrcrgirarn
da "sopa prirnor<iiar,' os pr.ir.t.i r'Íi'ito, como afirmar que o tempo tem uma existência real fora de nós,
r'()s scrcsvivos. os paleontólogos descobrem hominídeos
cada vez rrrrris t;r.rando ele é constituído por um passado que não existe mais, por um
a'rtigos, perto dos quais Lucy, com seus modestos
três milhões dc ar«rs, lLrturo que não existe ainda, e por um presente que nada mais é que um
parece uma trêfega adorescente. Todos sabem
hoje que os dinossauros sc intcrvalo evanescente entre duas formas de não ser? Mas há em Agostinho
cxtinguiram há cerca de sessenta mirhões de anos.
os geólogos conhecenr clcmentos para uma fascinante teoria psicológica da percepção tempo-
a idade da Têrra: ela surgiu poucos bilhões
d. anos a"pái, da criaçã<r lal, sem vestígios de relativismo. Entre eles está a concepção do tríplice
clo universo' Depois que Hubbre descobriu
que as garáxias estavam se presente - o presente em que se dá a rememoração, o presente em que
afastando rapidamente de nós, foi possível não
somente deduzir que o se formulam projetos para o futuro, e o presente em que se dá a tomada
r''rrverso estava se expandindo, como recuar
no passado até o momento de consciência do próprio tempo presente.
rl' llig Bang. um trilionésimo de segundo depois da
explosão, ocorrida A interpretação psicológica mais conüncente do fenômeno tempoÍal
lrír cerca de 4,7 bilhões de anos, surgia
o bóson de Higgs, gerando um está em Freud. O tempo aparece na psicanálise no processo de maturação
(-anlpo eletromagnético que deu
massa às outras partículas e engendrou ontogenética, pela qual o indivíduo vai atravessando os estágios corres-
ountverso_eotempo.
pondentes à sua faixa etária, da fase oral e anal à fálica e genital, mas não
O tempo psicológico rem a ver com a percepção individual.
Recor_ é facilmente perceptível nos processos psíquicos que constituem a esfera
ramos mais uma vez a Santo Agostinho. Depois
de dizerque não sabia própria da psicanálise, o inconsciente. Pois o inconsciente não conhece o
explicar o tempo, ele acrescenta:
tempo, ê Zeitlos. Daí, nos sonhos, a inversão das sequências cronológicas,
em que cenas logicamente posteriores aparecem em primeiro lugar. Daí,
Apesar disso, atrevo_rne a dizer que sei pelo
menos isto, que se nada também, a importância nos sonhos do mecanismo da regressão, em sua
passasse, não haveria passado, que
se nada estivesse por vir, não haveria tríplice manifestação: regressão tópica (em vez de mover-se do polo da
futuro, e que se nada
existisse, não havena presente. Esses dois
tempos, percepção para o da motilidade, como acontece nos processos psíquicos
o passado e o porvir, o que são eles, quando o
pretérito jâ não é, e o diurnos, a excitação se move em direção ao polo da percepção, o que
futuro ainda não é? euanto ao presente, se fosse
sempre presente e não dá aos sonhos seu caráter alucinatório); regressão temporal (retorno a
transitasse para o passado, não seria tempo,
mas eternidade. Se então o fases psíquicas ultrapassadas, como os estágios pré-genitais); e regressão
presente, para ser tempo, só existe para que
venha a ser passado, como formal (uso de modos primitivos de expressão, como as imagens, em
podemos dizer que aquilo que só é para que
não seja mais tem exis_ vez de pensamentos). Todas essas variedades de regressão se reduzem
tência, afirmando, portanto, que o tempo só
é porque tende a não ser? em última análise à regressão temporal, porque o que é mais antigo no l

tempo é mais primitivo na forma e, em sua Tocalização tópica, está mais


Essas observações são parciarmente relevantes
para nosso tema. par- próximo do polo da percepção. I

cialmente, porque a intenção do autor era teológica,


e não psicológica. A capacidade de mobilizar reminiscências é indispensável à vida psi
Agostinho estava mais interessado em contrapor I

a temporalidade pura- quica normal. O esquecimento pode ser um mero ato falho que se passa
mente humana ao tempo divino, ao tempo da
eternidade, e a defender a no consciente e no pré-consciente. Mas há uma amnésia mais profunda,
rrecessidade para o espírito humano de optar
pela eternidade, sem sacri- que resulta do recalque, como reação a uma experiência traumática. A
íicar com isso seu livre-arbítrio. Além disso, por
seu caráter paradoxar, a tarefa do analista é facilitar a rememoração do material esquecido, para
tcoria agostiniana podia prestar-se a uma rnterpretação I

cética, negando a que o paciente possa libertar-se dos seus demônios. Foi assim desde a pré-
própria existência do tempo, a exemplo das "refutações
do tempo'r.f"to"- -história da psicanálise, quando Freud e Breuer recorreram ao hipnotismo I

das por Sextus Empiricus no século rr a.C., parodiadas


por Borçs. Com para curar Anna O. dos seus sintomas. Com o advento da psicanálise,
I

l{)Dlpo, tempo, tempo


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mudou o método, que deixou de ser "catártico", para se tornar verda- discr.etos, compreer-rsíveis dentro dos seus próprios limites temporais, pois
deiramente a talking cure descríta por Anna O., mas não mudou o fim só receberiam sua plena inteligibilidade a1fis-coup, depois de ressignifi-
terapêutico: eliminar todo o inconsciente patogênico, preencher todas as cados, entrando em conjunção com acontecimentos do nosso presente,
lacunas da memória. É Obvlo que a amnésia neurótica não é total. O ma- como a revolução bolchevista e Auschwitz, fespectivamente. É em parte
"índice de legibi-
terial recalcado retorna nos sintomas e nos lapsos, formações de compro- o que diz walter Benjamin, quando criou o conceito de
misso entre os conteúdos esquecidos e a instância recalcante. o recalcado lidade," designando fatos históricos que só se tornam legíveis no futuro
retorna, também, em certos comportamentos típicos do paciente durante do qual são contemporâneos. É esse futuro específico - no caso, o nosso
o tratamento, como no tipo de resistência em que ele substitui a reme- presente - que dá seu sentido ao passado, e não o contrário'
moração, de que ele não é capaz,pela repetição dos materiais esquecidos. O que tem a psicanálise a drzet, ernresumo, sobre o tempo psicoló-
Não podendo se lembrar, o paciente age. Assim, ele dtznão se lembrar de gico, em suas três articulações? A resposta está no final de AinteÍpretação
ter sido insubmisso à autoridade paterna, mas comporta-se dessa forma dos sonhos.
com relação ao analista. Do mesmo modo, não se lembra de ter sentido
sobre o futuro?
medo de ser surpreendido praticando atos sexuais autoeróticos, mas tem Qual o valor dos sonhos para dar-nos conhecimento
vergonha de estar fazendo análise e mantém esse fato em segredo. Nenhum, é claro. seria mais correto dizer que eles nos dão conheci-
Normalmente a psicanálise é determinista, procedendo do passado mento sobre nosso passado. Porque os sonhos derivam do passado, de
para o presente: ela quer compreender uma situação presente àluz de todos os pontos de vista. Entretanto, a velha crença de que os sonhos
uma causa que 'rem do passado - por exemplo, um trauma infantil resul- predizem o futuro não é de todo falsa. Ao descrever nossos desejos
tante de uma tentativa de sedução por parte de um adulto. Mas às vezes como realizados, os sonhos estão, afinal de contas, levando-nos para o
ele inverte a flecha do tempo, e procede do presente para o passado. futuro. Mas esse futuro, que para o sonhador são presentes, foi molda-
Em certas ocasiões, um acontecimento ocorrido no passado não tem, do por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do seu passado'
na época em que ocorreu, nenhum efeito traumático. Mas adquire uma
eficácia traumática retroativa quando entra numa relação associativa com O tempo social tem a ver com a forma de temporalidade própria a
uma cena adulta. É o fenômeno do Nachtrtigliche, do apràs-coup, ou do a uma sociedade, num momento específico de sua história. vejamos uma
posteríori. Diagnósticos desse tipo eram mais comuns antes da descoberta vez mais como se dão as três articulações temporais, agora em escala
da sexualidade infantil, na época em que Freud acreditava na realidade coletiva: o passado, esfera da vidajá vivida, em que se depositam as expe-
i
das cenas de sedução relatadas por seus pacientes. Como as crianças eram riências históricas signiflcativas; o futuro, esfera da vida ainda não vivida,
para ele biologicamenre imaturas, incapazes de sentir qualquer desejo se- terra prometida em que moram as utopias; e o presente, o que sobrou
xual, a sedução não podia ter exercido efeitos traumáticos na ocasião em daqueles dois territórios temporais, o de ontem, em que o tempo é me-
qLre ocorreu, deixando, entretanto, traços mnêmicos inconscientes que mória, e o de amanhã, em que o tempo é esperança'
início, o que Walter
se tornariam ativos na vida adulta. Mas mesmo depois da descoberta da Quanto ao passado, vale a pena recapitular, de
sexualidade infantil, o conceiro de apràs-coup permanece útil, adquirindo Benjamin diz sobre o tempo da modernidade, que segundo ele se carac-
maior generalidade. Passa a designar a relação entre qualquer aconteci- teriza pela perda da experiência - a Erfahrung -, substituída pela mera
mento passado e sua ressignificação ou ressemantização ulterior, que lhe vivência o Eilebnis. pertencem à esfera da experiência as impressões que
-
confere uma nova eficácia. Pensem na importância desse conceito, se o o psiquismo acumula na memória, e que transmitidas ao inconsciente
dei-
trarlspusermos para a história, caminhando do presente para o passado. xam nele traços mnêmicos duráveis. Pertencem à esfera da vivência aque-
A Revolução Francesa e o Caso Dreyfus não seriam mais acontecimentos las impressóes que se esgotam no momento em que são percebidas e que

[;í) lDrDo, lolt)po, tempo Sergio Paulo Bouanet 361


!

ja,ais atingem o inco,sciente, não deixando, porisso,


traços mnêmic«rs.
ora, a modernidade inaugura um tipo de vida sociar caracrerizada ouvintes histórias baseadas na tradição oral, que se repetiam de geração
pcra
e rn geração e constituíam uma ponte entre o passado e o presente, e entre
atrofia da experiência, substituída, como forma de sensibilidade
coletiva,
pcla vivê,cia. Isso ocorre porque o mundo moderno indivíduo e comunidade. O narrador contava a partir de sua experiência,
está exposto a múl-
tiplas situações de choque, em todos os domínios e dirigia-se à experiência dos seus ouvintes.
- na esfera econômica
(o operário reage aos estímulos da máquina como A importância da obra de Proust vem da sua tentativa de refazer,
um autômato, que lhe
i,rpõe uma resposta semelhante a um choque elétrico); por meios individuais, o que a coletividade não podia mais oferecer. Ele
na esfera política,
cu-ia forma de atuação típica é o golpe de Estado, reproduz, de certo modo, a categoria da festa, em que o tempo perdido
tentariva voruntarisra
rlc i,tervir no processo histórico, em contraste com a revolução, é salvo no momento em que está sendo evocado. E assume o papel do
que
irrrplica o lento amadurecimento das condições objetivas; narrador, extraindo, do fundo de sua experiência, uma narrativa que tem
e na esfera da
vich cotidiana, em que o passante está exposto diariamente como destinatários leitores experientes.
aos choques
tlr rnultidão' A onipresença das situações de choque implica que Mas essas tentativas individuais são insuficientes. Na sociedade con-
as ins-
tâncias psíquicas encarregadas de captar e absorver temporânea, o homem parece estar condenado à amnésia, ao esqueci-
o .hoqrr.-prssam a
predominar sobre as instâncias encarregadas de armazenar mento do passado. Esse esquecimento pode assumir a forma de uma
reminiscên-
cias significativas na memória. o homem moderno, hipomnese, olvido total ou parcial de fatos e relações entre fatos. Ou
inteiramente voltado
para a interceptação do choque, é portanto um amnésico, pode, pelo contrário, assumir o aspecto de uma hipermnese, que os neu-
porque o que
clc recorda é um simples agregado descontínuo de rologistas e psiquiatras definem como capacidade anormal de lembrar-se.
vivências superficiais,
(',LrLranto os conteúdos psíquicos Era o caso de Funes, o Memorioso, personagem de Borges cujo triste
capazes de incorporar-se à sua expe-
rii'rrcia não deixaram rastros mnêmicos. destino era não poder se esquecer de nada. "Eu sozinho," üzia ele, "tenho
Ilssa dicotomia corresponde de modo geral à distinção mais lembranças que terão tido todos os homens desde que o mundo é
proustiana en-
trc rnemórias voluntária mundo." Mas Funes eraincapaz de ideias gerais. Não conseguia entender
e involuntária. A primeira, acionada pera inteli
gência, não consegue captar as dimensões essenciais que o mesmo símbolo genérico para cachorro abrangesse cachorros de
do passado. Somente
a rremória involuntária consegue extrair do reservatório do inconsciente forma e tamanho diferentes, nem que o cachorro de 3hr4 (visto de perfil)
as impressões realmente significativas. só ela tem fosse o mesmo de 3hr5 (visto de fiente). Ora, pensar é esquecer diferenças,
o poder de retrouyer re
temps, pois só ela mergulha suas raízes na experiência. generalizar, abstrair. Portanto, ele não podia pensar. Nem se lembrar,
Nas sociedades tradicionais, os dois tipos de memória porque quem só pode se lembrar de detalhes desconexos, sem perceber
se fundiam.
Elas se fundiam, em primeira instância, através da festa, o vínculo que os une, é itcapaz de verdadeiras recordações.
em que epi_
sódios marcantes do passado coletivo eram rememorados, O mundo contemporâneo está cheio de amnésicos assim: os des-
permitindo
ir cada indivíduo incorporar memoriados, que não se lembram de nada, e os memoriosos, que se
essas memórias à sua própria experiência e
delas, recordando ao mesmo tempo seu próprio passado.
lembram de tudo, exceto do essencial. O que Engels chamava de "falsa
'ecordar-se os consciência" tem como ingrediente principal o esquecimento. Há várias
clias festivos se destinavam a provocar tais rememorações.
Tanto os dias
rcmcmorados como os dias rememoradores eram dias formas de esquecimento. O esquecimento originário, o fetichismo da
de festa, que se
clcstacavam do calendário por serem dias extraordinários. mercadoria, que nos faz esquecer que o valor não é uma relação entre
A memória
v,lr-rrtária coisas, e sim entre classes. O esquecimento histórico , que faz os alemães
involuntária deixavam de ser mutuamente excludentes.
ea
 me sma fusão entre o passado individuar e o coletivo se esquecerem da ignomínia do nazismo, e os brasileiros se esquecerem
ocorria no tipo
clc c«>municação fundado na narrativa. o narrador de quatro séculos de escravidão. O esquecimento político, que nos faz
comunicava a seus l

esquecer os mortos e os torfurados pelo regime militar. O esquecimento


I

IiltIlx), l0lllllÍ1, 1Ílillpo

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I'
nl()ral, que levou os que arriscaram a vida num combate heroico c()lrlrir
llrnst Bloch, Theodor Adorno, Herbert Marcuse eJürgen Habermas, toda
a ditadura a desonrarem sua biografia, praticando a corrupção com<l
sociedade e todo pensamento que não se deixem guiar pela perspectiva
rcccita de governabilidade.
do futuro utópico estão condenados à irrelevância.
E há o esquecimento sectário dos que querem obliterar o caminho
Para Bloch, todas as fi1oso6.as do passado foram incapazes de apreen-
percorrido pela humanidade, destruindo todas as ideologias e substituin-
der o real, pois ele foi sempre visto como sob a espécie da anamnese,
do a treva da ignorância pelo fulgor da verdade. como diz a lnternacíonal,
isto é, o Ser é correlato de uma consciência retrospectiva, voltada paÍa a
cles querem " dupasséfaire table rase" . É preciso, nisso, dar razáo a Adorno
origem, e não de uma consciência antecipante, yoltada para o ainda não
e Ilorkheimer: o que é falso na ideologia não é seu conteúdo, e sim a
existente. O pensamento verdadeiramente dialético é vinculado ao dese-
pretensão de que ele já seja real. Não é a trindade revolucionária france- jo, à esperança, ao sonho para a frente. Seu protótipo intrapsíquico é a
sa que é fraudulenta, e sim a tentativa retórica de persuadir os cidadãos
fantasia - o sonho diurno - que edifica castelos no ar, mas com materiais
de que a liberdade, a igualdade e a fraternidade já se rearizararn. como
extraídos do futuro, que se limita a reproduzir infinitamente conteúdos
cscreveu Horkheimer,
arcaicos. O inconsciente da fantasia é distinto do inconsciente do sonho.
Enquanto este se enraizano passado, aquele estávoltado para o futuro. O
As ideologias do passado não serão simplesmente identificadas com a
conteúdo do inconsciente onírico é o material recalcado, o já vivido que
estupidez e a impostura, como fazia o llurninismo francês com relação
se perpetuâ subterraneamente. O conteúdo do inconsciente da fantasia
ao pensamento medieval... Embora privadas, no contexto contempo-
é o ainda não vivido. A consciência tem assim dois limites: um limite in-
râneo, do poder que originalmente tinham, servirão para iluminar o
ferior, que ê o não mdis conscienre, e um limite superior, que ê o aindanão
caminho da humanidade. Nessa função, a filosofia se tornará a memó_
consciente. O inconsciente é uma amnésia com relação ao velho, e um não
ria e a consciência humana, e contribuirá para impedir que o caminho
saber com relação ao novo. A consciência voltada para o aindanão cons-
do homem se assemelhe âos cegos rodopios de um louco na hora da
ciente ê a consciência antecipante, que constitui o organon da esperança
recreação.
utópica. Mas essa consciência antecipante pode decifrar o passado, vendo
nele futuros não realizados, esperanças truncadas. Nessa perspectiva, a
Quanto ao futuro, ele era um tema fundamental durante a vigência cultura é a sedimentação histórica da esperança. Uma historiografia do
da doutrina do progresso linear da humanidade. o futuro era o horizonte projeto utópico teria condições, assim, de percorrer todas as produções
para o qual tendia o gênero humano. Era a fase das grandes narrativas,
da cultura, a fim de desprender, nela, o "excedente utópico", tudo o que
na terminologia de Lyotard, como a narrativa da revolução mundial,
ultrapasse conteúdos imediatos. O "princípio Esperança" é um colossal
ou a do saber enciclopédico. como todas as narrativas, elas tinham um
afresco da história da cultura, em seus momentos grandiosos e medíocres,
começo, um meio e um fim, e o fim (não necessariamente no sentido de
na grande arte e no kitsch, no romance popular e na epopeia, na Flauta
final) era o futuro. Mas o fururo está bloqueado por um sistema social
md§caeno jazz, na arquiteturabarroca e no Bauhaus, na pantornima e no
cm que o novo aparece sob a forma do sempre igual, e o sempre igual r

cinema, na utopia geográfica do Eldorado e na utopia política da Cidade


sob a forma do novo. É o tempo do inferno, para citar Benjamin. Tudo
do Sol, em todos os ideais com que o homem sonhou transcender-se, e
muda: os smartphones de zorz são diferentes dos de 2orÍ, eisso é essencial
em todos os paradigmas em que projetou seu desejo de perfeição: Ulisses
para que nada mude. No fundo, o futuro tornou-se um termo técnico
e Fausto,DonJuan e Dom Quixote. I

da Bolsa. As pessoas não especulam mais sobre o futuro, e sim no futuro


Para Adorno, o capitalismo de hoje eliminou completamente a di-
no mercado de funrros. A consequência mais grave da crise do futuro
mensão da transcendência, reduzindo o ideal ao real, e expulsou a utopia,
ó qr-Le ela resultou no assassinato da utopia. E para autores sérios como
na medida em que se apresenta como a utopíarealizada. Por isso Adorno

luntl[), lÍ)tnpo, lempo


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vô, r.ra tentativa, mesmo desesperada, de manter a estrutura contradit(lr-ia comunicativo, ou de origem externa (relaçóes de poder que impedem
ckr rcal, a tarefa e a dignidade do pensamento crítico. Daí a concepçã<> os interessados de participarem de forma livre e igualitária) ou interna
c1c uma utopia negativa, que não pode nem deixar de ser visada, nem se (Íàlsa consciência), que impedem o sujeito de distinguir entre verdade e
rcalizar sem trair a radicalidade de seu projeto. O homem está conde- aparência, entre motivação autêntica eÍacionalização. Entre veracidade e
nado ao mal-estar, ao lJnbehagen, e nesse sentido a utopia é impossível; mentira. A utopia é concebida como o reverso da comunicação deforma-
mas também está condenado à liberdade, ao incessante caminhar em da: a situação comunicativa ideal, em que cessaram todos os bloqueios,
direção ao ponto de fuga em que se anulam todos os determinismos - e, internos ou externos, ao processo comunicativo.
nesse sentido, a utopia é necessária. É nessa tensão, nessa impossibilidade, Todas essas utopias estão fora de moda. Os autores bem-pensantes
ncssa necessidade, que se aninha a utopia. Qualquer tentativa de pensar,
acham que a humanidade deixou para trás suas fantasias pubertárias e se
nas condições atuais, o reino da liberdade redunda em eliminar, no pen- reconciliou com o princípio da realidade, provando sua condição adulta
saDlento crítico, aquela mesma contradição que o capitalismo tardio já ao reconhecer a inevitabilidade do capitalismo globalizado. O homem
climinou na realidade. compreendeu enfim que a utopia era um passatempo perigoso, porque
A crítica cultural de Marcuse é semelhante à de Adorno. Também toda utopia é potencialmente totalitária, e inútil, porque a economia glo-
para ele a sociedade atual desemboca no fim da transcendência, pro- bal jâ é a utopia realizada.
cesso que ele chama de unidimensionalização, absorção da esfera do Chegamos, enfim, ao presente. Ele é intransponível nas duas direções,
virtual pela esfera do existente. E também ele tem uma reflexão sobre a pois o acesso está barrado tanto para o passado como para o futuro. Es-
utopia. Mas aqui cessam as semelhanças. Enquanto a utopia de Adorno tamos enclausurados num único tempo, o do eterno presente. Aunitem-
é negativa, quase o reverso de sua própria impossibilidade, Marcuse a poralidade é a expressão temporal da unidimensionalidade, no sentido
pensa como figura positiva. Ele distingue no princípio da realidade um de Marcuse. Assim como não podemos transcender-nos em direção ao
componente invariante, que impõe à esrrutura pulsional limites justi- virtual, estamos proibidos de ultrapassar nosso presente em direção às
ficáveis do ponto de vista da sobrevivência do indivíduo e da espécie, e duas transcendências temporais, a do passado e a do futuro. Marc Augé
um componente histórico - a sobrerrepressão - que impõe restrições chamou de "presentismo" a ideologia que consagra a hegemonia abso-
biologicamente supérfluas, em função das exigências do sistema de po- luta do presente. Nosso presente não se origina mais da lenta maturação
der. A sobrerrepressão assumiu formas varáveis em diferentes períodos do passado, nem deixa transparecer os lineamentos de possíveis futuros,
históricos, sendo o princípio do rendimento sua forma contemporânea. mas se impõe como fato universal, esmagador, cuja onipotência expulsa
Em vista do desenvolvimento atingido pelas forças produtivas, o fim da o nao mais e o aínda não.
sobrerrepressão, com a instauração de um princípio da realidade quali O presentismo não exclui de todo as "viagens no tempo", mas as tor-
tativamente novo, permitiria o ingresso numa ordem pacificada, além na inofensivas. O passado aparece na indústria cultural, mas sob a forma
da escassez e além da dominação, num mundo órfico-narcisista em que de revistas de história destinadas ao grande público, e num canal de rv, o
a liberação da libido permitiria ressexualizar os seres e as coisas, sem canal History que ultimamente tem se especializado em caçar extraterres-
consequências negativas paÍa a vida social, e em que a pulsão da morte tres e em provar a existência do Abominável Homem das Neves. O futuro
não mais se oporia à pulsão do amoq mas significaria repouso, ausência se mantém vivo, mas limitado ao curto intervalo de tempo entre duas
de tensão numa ordem não antagonística. linhagens de tablets. Essa expectativa pressupõe certa crença no progresso,
Enfim Habermas, o último representante da Escola de Frankfurt, des- e portanto no futuro, mas é um progresso relativo, que aponta não para a
creve as condições normais sob as quais se dá a comunicação. A comuni- comunicação universal de Habermas, mas para a sociabilidade eletrônica
cação deixa de ser normal quando há bloqueios sistemáticos no processo do Facebook. É um mundo que substitui a conversa pela rede social, a fala

lcmlxr, lempo, tempo 367


Sergio Paulo Botranet
pelo Twitter. Ora, em ínglêstwitter quer dizer "chilrear", "gorjear", forma timos redutos de liberdade escapassem às malhas do sistema totalitário.
de expressão ideal para os sabiás de Gonçalves Dias, mas imprópria para Felizmente, não chegamos a esse ponto nas democracias capitalistas.
transmitir emoções e experiências humanas. É preciso, também, renegociar o papel de homens e mulheres na
Por tudo isso não vejo, no momento, condições sociais para que um esfera pública e na esfera privada, recorrendo ao que Rosiska Darcy
novo Proust possa salvar do esquecimento, graças à memória involuntá- de Oliveira chama "reengenharia do tempo". É i-portante reivindicar
ria, fragmentos perdidos de uma biografia individual ou coletiva. Nem tempo para que homens e mulheres possam se dedicar em igualdade
para que uma nova geração de videntes possa apontar um dedo proÍético de condições tanto ao espaço público como ao privado, e não apenas
para coisas vindouras, como a sibila do Morro do Castelo, en Esaú eJacó, flexibilizar o horário das mulheres na fábrica ou no escritório, pois com
de Machado de Assis. isso elas teriam simplesmente mais tempo paÍa fazereÍn o que sempre
Mas nem tudo está perdido. O tempo não é apenas algo que deve- frzerarn. Muitas empresas já aceitam hoje que a mulher trabalhe em
mos sofrer passivamente, como quando dizemos que o tempo passa, ou tempo parcial para poder dedicar-se aos filhos, mas não compreenderiam
quando Ovídio dizia q.u'e o rempo era devorador de todas as coisas, terlpus que o homem fizesse igual reivindicação. É preciso entender que as duas
edax rerum, ou quando nos limitávamos a suplicar, impotentes, que os esferas, a pública e a privada, são interdependentes e igualmente valiosas,
momentos felizes se eternizassem, como Lamartine, em versos como ó e que impedir que as mulheres se dediquem a atividades profissionais ou

tetnps, suspends tonyol, ou Goethe, emVeruveile doch, du Augenblick, dubkt políticas seria tão monstruoso, do ponto de vista ético e afetivo, e tão
so schõn. Nessa época, o tempo era uma simples alegoria, representando catastrófico, do ponto do interesse coletivo, quanto impedir os homens
um velho com asas negras, segurando uma foice, com uma ampulheta ao de se dedicarem à família ou ao convívio com os filhos.
lado. Hoje o velho deixou de ser uma abstração solitária, e multiplicou- Gostaria ainda de fazer aindaalgumas reflexões finais sobre o vínculo
-se em classes e sindicatos com os quais podemos negociar, em torno do entre o tempo da natureza e o tempo humano em geral. O tempo da na-
controle da ampulheta. Tiata-se, em outras palavras, de engajar-nos numa turezapatece preeminente com relação ao tempo humano, pois é naquele
política do tempo, com vistas a uma nova distribuição entre o tempo de que se funda a consciência do envelhecimento biológico e da passagem
trabalho e o tempo livre, e a uma redefinição do conteúdo do tempo livre, objetiva do tempo, originariamente definida pelo movimento dos astros.
para homens e mulheres. Mas, por outro lado, esses dados permaneceriam mudos sem a mente
O tempo de trabalho continua excessivo, apesar dos teóricos do ócio, humana. O homem é o único seÍ capaz de medir um passado incomen-
que confundem a possibilidade técnica de produzir mais bens em menos suravelmente distante, um passado em que a humanidade não existia,
tempo com a redução efetiva das horas de trabalho, esquecendo-se de em que nenhum ser vivo existia, em que o sistema solar não existia, em
que nem sempre o que é tecnologicamente possível é socialmente posto que nenhuma galâna existia, em que o próprio universo não existia, um
em prática. passado ao qual podemos recuar até o primeiro minuto após o Big Bang,
E o ócio, além de decrescente em nossa " overworked society" , transfor- antes do qual não existia o temPo, coerentemente aliás com a teologia
ma-se numa simples extensão da esfera do trabalho. O sistema capitalista cristã, segundo a qual Deus criou o tempo ao criar o mundo. O Homem
confisca o tempo livre. Trata-se de um território só formalmente autô- é aquele ser que mede tudo aquilo que veio antes que houvesse alguém
nomo, pois está cadavez mais colonizado pela indústria do turismo, pela para medir o que quer que fosse. Essa mente que dá coordenadas tempo-
indústria cultural e pelo fetichismo da mercadoria. Não é uma invenção rais ao universo recebeu também de Deus, segundo o pensamento judeo-
recente: a Alemanha nazista tinha um programa chamado Krafi durch -cristão, o dom não somente de nomear as coisas e os seres com os nomes
Freude, "Força atril)es da alegia" , destinado a
proporcionar aos operários que eles verdadeiramente têm - os da língua edênica, anterior a Babel -,
férias e excursões ruteladas pelo Partido, para que nem sequer esses úl- mas de datar esses seres com sua verdadeira idade, o que tiraria dessa

Sergio Paulo Rouanet 369


368 l(jrnln, tctnpo, tempo
(l:rtxçi() (lLralclLrc'sLrspcita de a,trop.ccntris'r-r«r. por.
e xcnrpl., apcsrrr.cllr
rrrt't-iricir c1uârtica c da utilização de aparelhos cada vez rnais
soÍisticacftls,
:r t-ii'rcia ,'r<lclerna não refutou ainda a
assertiva de que a Ílccha do tcnrp()
s(' ,)()vc d. passado ao futuro, num trajeto que não depende
do noss.
t rrP'it'lrr. lissa direção é confirmada tanto pela Uma filosoÍia sem destino'
segunda lei da termodinâ_
rrricrr, pcla qr-r:rl tudo caminha de um estado mais ordenado em direção a
João Carlos Salles
g.irrs c.csccntcs de desorganização e de entropia, como pela
cosmologia,
.1.t' tlt'sr',britr que o universo está se expandindo, e não
se contraindo.
(.)rr.r'. c,rcluil como comecei, com santo Agostinho. para ele, cada
rrrrrtlrs tr'ôs momenros temporais exige uma atitude mental correspon-
tlt rrtt' A c.rrcsp.ndente ao passado é a reminiscência, a
correspondente
'rr Í'trrtrr.é a espera, e a correspondente ao presente é a
atenção. veiamos
('()nr() cssa divisão se aplica aos três
tempos.
O«lrlrcçando com o tempo natural, há margem para
um modesto r. Temos dificuldade com a contradição. Queremos sempre elçulsáJa,
'ti,is'r-r.. o passado, o presente e o futuro do planeta estão sendo in- mandá-la parafora. Esse, aliás, um dos motivos do incômodo da célebre
vt sl igacl.s crm relativa ser:iedade, na perspectiva
da sustentabilidade. os e um tanto artiÍcial divisão entre o primeiro e o segundo Wittgenstein.
( r('rtrsl,rs t' u «rpinião pública "lembram-se" de uma
época relativamen_
rt rrrr,t',ltl. Como é difícil imaginar uma obra que se desdobra sobre si mesma, ten-
pcla poluição, "esperam" um futuro em que o praneta
seja demos a acomodar diferenças em compartimentos distintos. Com efeito,
,r( r()s ('xl)()st() ao aquecimento global e ficam "atentos,, aos
riscos do a obra de Wittgenstein divide-se, sim, em dois grandes momentos, mas
l)r('s('.r(" prcconizando, para esse fim, metas para rcduzir as emissões de
( r( ) (' rl irr troclução
a distinção costuma esmaecer uma forte continuidade, o traço marcante
, de fontes alternativas de energia.
de um pensador que se volta a seu próprio trabalho, realizando um mo-
QLrarrro ao tempo humano _ o psicológico e o social _, é evidente
(lr-r. ,Lrm indivíduo e numa sociedade "normais" vimento de terapia, mais que uma simples negação.Julgamos assim que
as três funções são in-
a principal diferença entre os momentos não consiste na oposição entre
rlisPcrsáveis. Nem indivíduos nem sociedades podem
viverplenamente o teses, mas antes no modo distinto de articular respostas sobre seu tema
[)r'('scnte sem a capacidade de rememorar ou de fantasiar. Mas é de temer
(lLr(' de fundo, a saber, os limites da significação, a unidade da experiência.
cnr mundo pós-moderno, em que a amnésia se generaliza, em
^osso
rlrrc o Íuturo não oferece mais nenhuma esperança utópica Queremos mostrar como a tensão na obra de Wittgenstein, um dos
nem justifica
maiores pensadores de todos os tempos, tem comPonentes trágicos e
espera messiânica, e em que toda vinculação rear com
'.r'rrhuma o pre- espetaculares. Está longe de constituir-se em uma simples mudança de
sc,te se degrada na ideologia do presentismo, estejamos
na véspcra de
posição, sendo esse o fio tenso do que chamamos de terapia. Em seu caso,
pcrder para sempre uma relação autêntrca com o tempo.

r Este texto coroerya as marcas de uma exposição oral e de sua desrinação a um amplo público, estando
assim desproüdo do aparato usual de notas e de certas preocupações técnicas. Tem a marca dos maco-
lutos, que, na presença da fala, o interlocutor cúmplice ajuda a costuan CumPre registrar, entretmto,
que as ideias aqü apresentadas em Iinhas gerais foram desenvolvidm de modo mais preciso em nosso
recente liuo O cético e o ffidÍ*ta: Sigruifuaçd.o e expríêtÇíd em Wittgffitein (pubücado em zorz, pela
Editora Quarteto), no qual tentamos desenhar com mais detalhes o movimento da obra de Wirtgero-
tein, conÍiontândo a posição do cético (que, paradoxalmente, talvez só possa salisfazer-se com o olhar
divino) e a do euadrista, entregue à perspecriva dos jogos de linguagem.

t70 Tenrpo, tempo, tempo


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