Por 21 anos o país viveu sob os desígnios do poder dos generais. Quando finalmente veio a
redemocratização, na segunda metade da década de 1980, pouco depois o cinema brasileiro
sofreria outro duro golpe: o encerramento das atividades da EMBRAFILME, estatal
responsável pela maior parte da produção cinematográfica do país, por parte do governo do
presidente Fernando Collor de Melo. Em meados da década de 1990, entretanto, com o
retorno dos investimentos e incentivos, o cinema brasileiro começaria a caminhar
novamente. A produção era retomada. E os tempos da ditadura civil-militar logo seriam
também retomados como tema. Em 1994, num período ainda muito difícil economicamente
para a realização de cinema no país, Sergio Rezende lançaria Lamarca, com Paulo Betti no
papel principal. Filme bastante sóbrio sobre a vida do militar e guerrilheiro, que assumia,
entretanto, uma postura claramente exaltativa de seu protagonista – Carlos Lamarca é visto
como um homem extremamente justo, fiel aos seus ideais, bom pai e bom marido, mesmo
quando inicia um relacionamento extra-conjugal com outra guerrilheira (na realidade, Iara
Iavelberg, que no filme teve seu nome trocado). É verdade que, graças ao grande
desempenho de Betti, seu Carlos Lamarca acaba parecendo verossímil. Três anos depois,
Bruno Barreto faria O que é isso, companheiro?, inspirado no livro homônimo de Fernando
Gabeira, e alcançaria grande sucesso. Seu filme seria indicado ao Oscar de melhor filme
estrangeiro e mostraria aos produtores de cinema do Brasil que talvez estivesse ali um
verdadeiro filão: o filme sobre a ditadura. Por mais que mostrasse cenas das torturas
cometidas pelos agentes do regime, O que é isso, companheiro? era um filme um tanto
covarde politicamente, especialmente em sua composição quase hagiográfica do
embaixador norte-americano Charles Elbrick (interpretado por Alan Arkin), e no retrato do
guerrilheiro “Jonas”, comandante da ação do sequestro de tal embaixador, como um sujeito
cruel, obcecado, e, por isso, extremamente nocivo. A partir do filme de Barreto, o “gênero”
deslanchou: a ditadura civil-militar apareceria de alguma forma em obras de ficção como
Ação entre amigos (1998), de Beto Brant, Dois córregos (1999), de Carlos Reichenbach,
Araguaya – Conspiração do silêncio (2004), de Ronaldo Duque, Quase dois irmãos (2005),
de Lúcia Murat, Cabra-cega (2005), de Toni Venturi, O ano em que meus pais saíram de
férias (2006), de Cao Hamburguer, Zuzu Angel (2006), de Sergio Rezende, e Batismo de
sangue (2007), de Helvécio Ratton; e em documentários como Hércules 56 (2007), de
Silvio Da-Rin, Caparaó (2007), de Flávio Frederico, Condor (2007), de Roberto Mader e
Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski. Em todos esses filmes o governo militar é
mostrado, em maior ou menor intensidade, sob um ponto de vista negativo.
Lúcio Flávio não é um filme sobre a ditadura: conta a história do célebre bandido, líder de
uma quadrilha que assaltava bancos, que envolveu-se com o “esquadrão da morte” no Rio
de Janeiro, e acabou denunciando todos os seus crimes publicamente, em meados dos anos
70 – pouco depois, seria assassinado na prisão. Entretanto, o filme de Babenco ousou ao
retratar, com vigor, a brutalidade policial, a crueldade de agentes do Estado que deveriam
proteger a população, e não agredi-la, e sofreu, obviamente, alguns problemas com a
censura. Para a liberação, o filme acabou fazendo algumas concessões: nas cenas
envolvendo o “esquadrão da morte”, não aparecem policiais fardados e nem viaturas
oficiais, conforme exigido previamente pela Censura; os policiais tiveram seus nomes
trocados, enquanto os “bandidos” não; e no final do filme ainda aparece um letreiro
informando que todos os envolvidos no “caso Lúcio Flávio” foram devidamente punidos, o
que não ocorreu de fato. Entretanto, mesmo com essas concessões, Lúcio Flávio,
passageiro da agonia, é um filme que se impõe pela força de sua história. Com um
Reginaldo Faria altamente inspirado, Babenco construiu uma narrativa policial tensa,
envolvente, mas ao mesmo tempo dramaticamente profunda. É um grande trabalho, que
dialoga com alguns exemplares da filmografia posterior do diretor, como Pixote (1980),
Ironweed (1987) e Carandiru (2003).
Ou seja: nem as alegorias do Cinema Novo pós-AI-5, nem a liberdade total do cinema da
“Retomada” da década de 1990 e da “pós-Retomada” dos anos 2000. Na época da
“distensão lenta, gradual e segura” de Geisel e da “abertura” de Figueiredo, foi assim que o
cinema brasileiro conseguiu tematizar a ditadura civil-militar que governava o país: com
negociações e concessões.