ENTREVISTA
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL
Noam Chomsky
são os mecanismos internos através dos alguém que já conhece a língua ou, ao
quais a mente desempenha as ativida- menos, é dotado de uma faculdade da
des que culminam no comportamento e linguagem em funcionamento. O mes-
que, uma vez escritas, produzem tex- mo se aplica ao ensino de uma segunda
tos? No caso do estruturalismo, quais língua: você pode pensar que está ensi-
são os mecanismos que levam a essas nando, digamos, inglês para estudantes
estruturas e não a quaisquer outras? Lo- que falam português, mas o fato é que a
go se percebeu que os dados que esta- parte inglesa do processo pressupõe o
vam sendo estudados pelas ciências conhecimento da linguagem, o qual é
comportamentais, pelos estruturalistas transportado de uma língua para a ou-
e pela lingüística antropológica, qual- tra. Para ensinar, essa é uma boa idéia.
quer que fosse sua relevância específi- Seria um erro ensinar às pessoas gra-
ca, não podiam ser tomados como as mática universal, se o objetivo é fazê-
melhores evidências para esse outro ti- las aprender uma segunda língua. Seria
po de estudo, o qual conduzia a investi- como ensinar fisiologia a alguém cujo
gações sobre novos tipos de dados. De objetivo é aprender a nadar. Isso ape-
fato, os interesses do período anterior e nas confundiria as pessoas, porque tu-
da revolução cognitiva eram quase do isso já está em seus corpos; elas já
complementares; ou seja, os temas que sabem como fazer todas essas coisas.
não tinham sido privilegiados pelas Nós simplesmente supomos que todos
abordagens comportamental e estrutu- são como nós, e então não ensinamos
ral, viriam a ser exatamente os tópicos essas coisas. E isso é válido para o ensi-
de estudo a partir do ponto de vista cog- no. Mas se o objetivo é compreender
nitivo. Na lingüística, notou-se rapida- seres humanos, isso é exatamente o que
mente que o estruturalismo estava li- você deve estudar.
dando com um aspecto muito superfi-
cial da linguagem e que, embora tives- Carlos Fausto
se dado contribuições efetivas – parti- E essa foi uma mudança significativa…
cularmente no estudo de sistemas de
sons –, não avançava muito. Mesmo Noam Chomsky
nesses estudos era preciso repensar a Isso é o que integra o estudo da lingua-
matéria completamente se quiséssemos gem em particular, e as ciências huma-
dar uma descrição mais rica de como nas de modo geral, nas ciências natu-
essas estruturas deveriam ser conside- rais. Assim, se você está estudando, va-
radas. No que se refere ao estudo de mos supor, rãs, você não investiga ape-
um corpus ou de um texto, essa pers- nas aquilo no que as rãs estão interes-
pectiva revelou-se, logo, muito limita- sadas. Presumivelmente, as rãs estão
da: imediatamente se descobriu que o interessadas nas diferenças entre as rãs,
tipo de dado que era encontrado no es- e não no que há de comum entre elas.
tudo de um corpus obtido de modo pa- Isso elas tomam como dado. Mas se nós
dronizado, a partir de um informante, estamos estudando rãs, acontece o con-
de um texto, de um conjunto de contos trário. Nós não estamos muito interes-
populares, ou até de uma extensa gra- sados nas diferenças, mas no que torna
mática tradicional, era muito superfi- algo uma rã, não um pássaro, vamos su-
cial. Uma vasta gramática ou um vasto por. Se sua atitude em relação aos seres
dicionário apresentam muitos dados, humanos é a mesma, você quer é des-
mas estes só podem ser utilizados por cobrir o que é um ser humano. Trata-se,
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então, não apenas de constatar as dife- sendo diferente da outra. Para se ter
renças entre um campeão olímpico e quaisquer capacidades, é preciso ter
uma pessoa que caminha na rua, e sim uma determinada estrutura. Isso se ve-
de descobrir o que ambos têm em co- rifica em todo o mundo orgânico. Ago-
mum. O que eles compartilham são bra- ra, é claro que todo organismo é in-
ços e pernas, certos modos de agir, o fluenciado pelo seu meio; você é um ti-
corpo que trabalha de um certo modo, e po diferente de rã ou abelha se você ti-
assim por diante. Esses foram, justa- ver uma nutrição e interações diferen-
mente, os tópicos deixados de fora pela tes. Mas isso é marginal. Você é basica-
lingüística tradicional, pela antropolo- mente uma rã ou uma abelha.
gia e pelas ciências sociais, e que se tor-
naram os tópicos de estudo. Essa foi Carlos Fausto
realmente a grande mudança. Mas isso é verdadeiro, na mesma medi-
da, para os seres humanos?
Carlos Fausto
Alguns cientistas sociais progressistas, Noam Chomsky
marxistas ou não, estão preocupados de É preciso que seja o mesmo com os se-
a abordagem naturalizante do fenôme- res humanos, a menos que sejamos an-
no social estar dando origem a uma no- jos e estejamos de algum modo fora do
va forma de darwinismo social. Você mundo natural. Mas se estamos no
acredita que essas preocupações são mundo natural, as mesmas proprieda-
válidas? des devem ser válidas para nós. Deve-
mos ter características geneticamente
Noam Chomsky programadas muito amplas. Nada disso
Bem, há um fato curioso a respeito da corresponde à chamada “teorização na-
ciência social marxista; ela presumiu turalista”. Como postulado mínimo, de-
durante muito tempo – algo que eu ve ser apenas verdadeiro. Como seres
acho teria horrorizado Marx – que os humanos, é importante que estudemos
seres humanos deveriam ser tomados como somos afetados pelo nosso meio,
exclusivamente como criaturas da his- mas isso deve estar baseado na nossa
tória, e não como parte da natureza. As- natureza. A idéia de que os seres huma-
sim, os seres humanos estão, de certo nos existem fora da natureza está pre-
modo, fora da natureza: diferentemente sente tanto na ortodoxia religiosa,
de qualquer outra coisa existente no quanto no marxismo contemporâneo.
mundo, eles não têm natureza. Pos- Na ortodoxia religiosa, é uma alma que
suem apenas uma história e são o pro- vem de Deus; no marxismo, é algo mís-
duto da sua organização social e da sua tico que vem da história e das condi-
experiência. Isso é completamente ab- ções sociais. Mas isso não faz nenhum
surdo. Se você não tem uma natureza sentido. O próprio Marx certamente
inata, você jamais se tornará algo. É co- acreditava que os seres humanos esta-
mo perguntar: se você toma um orga- vam no mundo material. Eu suspeito – é
nismo desprovido de informação gené- difícil projetar seus pensamentos em
tica e lhe fornece apenas alimentação, outra pessoa – que ele teria ficado mui-
o que ele se tornará? Bem, a resposta é to descontente se visse essa tendência
nada. Ele não terá nenhuma estrutura, na teorização posterior.
nenhuma propriedade, será apenas
uma massa de células, cada criatura
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alunos e que foi lecionar lá. Essas pes- conhecia porque cresceu em contato
soas começaram a lingüística em seus com ela, mas os lingüistas não conhe-
próprios países; na Itália, na Noruega, ciam. E, de fato, quando as pessoas es-
na Alemanha, em todos os lugares. E foi tudam utilizando seu próprio conheci-
basicamente o mesmo padrão de ex- mento, obtém-se uma enorme quanti-
pansão. A mesma coisa se verifica no dade de informações e idéias.
Japão. Lá, a gramática gerativa está se
infiltrando gradualmente, mas isso não Bruna Franchetto
começou na Universidade de Tokyo – a Ocorreu o mesmo com o estudo das lín-
universidade de elite –, mas distante, guas indígenas?
onde ninguém poderia vê-la.
Noam Chomsky
Bruna Franchetto O mesmo se aplica quando você come-
O que mudou com a expansão da gra- ça a trabalhar nas línguas aborígines.
mática generativa? Um dos projetos que Ken Hale desen-
volvia no MIT era trazer pessoas de co-
Noam Chomsky munidades nativas americanas com
O que mudou nos últimos anos – e isso muito pouca formação acadêmica, e co-
é importante – é que ao invés de ape- locá-las em nosso programa de pós-gra-
nas os ocidentais (pessoas provenientes duação de modo que pudessem traba-
da Europa e dos Estados Unidos) estu- lhar em suas próprias línguas. Esse é
darem todas essas línguas, as pessoas um programa muito árduo, e foi um tra-
passaram a estudar suas próprias lín- balho difícil porque as pessoas não ti-
guas. Assim, por exemplo, a lingüística nham nenhum treinamento escolar efe-
românica – um campo bem estudado – tivo. E subitamente elas começaram a
efetivamente deu um salto adiante descobrir coisas que os lingüistas antro-
quando o trabalho começou a ser feito pólogos jamais tinham notado. Isso tem
por lingüistas franceses, italianos e es- sido tremendamente rico para o anda-
panhóis e não por americanos. Quando mento das pesquisas baseadas em um
você trabalha na sua própria língua é vasto espectro de línguas; e, de fato,
completamente diferente. Há uma alu- creio que o grande progresso – espe-
na portuguesa que concluiu recente- cialmente na década de 80 – deveu-se a
mente o Ph.D. no MIT, que descobriu isso. Assim, perspectivas completamen-
toda uma série de coisas sobre a língua te novas surgiram na lingüística chine-
portuguesa que nunca tinham sido no- sa, aborígine, românica e germânica, as
tadas. E ocorre o mesmo em todos os lu- quais foram estudadas de modo muito
gares. Em japonês, muito do que tem si- mais profundo do que tinham sido an-
do descoberto é novo. Os lingüistas ja- tes. Descobertas ainda estão sendo fei-
poneses tradicionais desconheciam es- tas em todos os lugares. Assim como
ses fatos. Uma de nossas recém-douto- novas coisas estão sendo descobertas
ras, é uma japonesa que começou a es- sobre o inglês o tempo todo.
tudar a língua das mulheres japonesas,
a qual se revelou completamente dife- Bruna Franchetto
rente do que todo mundo pensava. Isso Você diria, então, que Syntactic Struc-
não era estudado; estudava-se a língua tures (1957) e Aspects of the Theory of
dos homens. Mas aquela tem proprie- Syntax (1965) tinham uma perspectiva
dades gramaticais diferentes, que ela anglocêntrica?
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indiretos, você não pode fazer experi- que esta alcança. O parser – se é que
mentação direta. Em qualquer outro ca- existe, o que não é tão óbvio – é um dis-
so, exceto a linguagem, existe experi- positivo que dá acesso à gramática. Por
mentação direta, senão em seres huma- exemplo, ao analisar o português, o
nos, ao menos em organismos similares. parser acessa um conhecimento dife-
Mas com a linguagem é diferente, e is- rente daquele que é acessado quando
so a torna mais difícil e de certo modo analisa o inglês. Assim, de algum mo-
mais interessante. Excetuando-se essa do, ele está acessando a gramática que
diferença, não considero a lingüística contém todo o conhecimento, o sistema
muito diferente da química. De fato, se cognitivo, e está usando outras proprie-
olharmos para a história da lingüística e dades. Quando você acessa um sistema
para a história da química, percebere- de conhecimento para atribuir estrutu-
mos que elas caminham quase parale- ras a sentenças, você está usando a me-
las. A química moderna começa aproxi- mória e estratégias de vários tipos, e as-
madamente em 1650, quando tem iní- sim o parser é algo que tem a gramática
cio o estudo de estruturas complexas a no seu cerne e várias coisas mais. Pode-
partir do que, hoje, é considerado um se dizer o mesmo a respeito de alguém
ponto de vista moderno; a lingüística que esteja estudando o braço, alguém
moderna começa mais ou menos na que esteja estudando, vamos dizer, co-
mesma época com a Gramática de Port mo eu alcanço algo. Nesse caso, está-se
Royal. Tanto a química quanto a lin- usando a biologia humana, mas a partir
güística estão estudando como se ob- de alguns dos seus aspectos específicos,
têm estruturas complexas a partir de e o parser está estudando alguns aspec-
coisas simples; elas estão voltadas para tos particulares da maneira como a lin-
estruturas complexas distintas, mas as guagem é usada. O dispositivo de aqui-
questões são paralelas. sição de linguagem é justamente o tópi-
co central da linguagem. Qual é a natu-
Mike Dillinger reza da faculdade da linguagem? Esse
Nas outras ciências naturais existe uma é o tópico da gramática universal.
distinção padrão entre teorias estáticas
e cinemáticas como, por exemplo, entre Mike Dillinger
anatomia e fisiologia no caso das ciên- Gostaria de desenvolver uma parte des-
cias biológicas. Onde a física postula di- sa argumentação: você propôs recente-
ferentes teorias do mesmo objeto, a lin- mente que a linguagem está “embutida
güística parece postular diferentes ob- em” e “fornece instruções” para siste-
jetos de estudo; como a gramática, o mas de performance. Como a natureza
parser e o dispositivo de aquisição de da distinção competência/performance
linguagem (LAD). Você acha que essa é mudou sob as hipóteses minimalistas?
uma diferença necessária?
Noam Chomsky
Noam Chomsky De modo algum. Isso é apenas uma me-
Bem, efetivamente não concordo que táfora; é exatamente o mesmo de antes.
essa seja uma diferença. A gramática é A dicotomia entre competência e per-
apenas o output do dispositivo de aqui- formance é uma diferença conceitual
sição de linguagem. Este último corres- que não se pode questionar. Há vários
ponde ao estado inicial da faculdade da debates a respeito disso, mas não fazem
linguagem, e a gramática é um estado o menor sentido. Existe uma diferença
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