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MANA 3(2):183-198, 1997

ENTREVISTA
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL

Noam Chomsky

Noam Chomsky, professor de lingüísti- Carlos Fausto


ca do Massachusetts Institute of Tech- Como você caracterizaria, para o gran-
nology (MIT), é conhecido tanto pelo de público, a primeira revolução cogni-
seu trabalho científico, quanto pelas tiva das décadas de 50 e 60, na qual a
suas posições políticas, expostas em vá- gramática gerativa desempenhou papel
rios livros e conferências. No final dos tão fundamental?
anos 50, Chomsky produziu o que al-
guns caracterizam como uma verdadei- Noam Chomsky
ra revolução na lingüística, advogando Eu preferiria chamá-la de segunda re-
uma posição radicalmente antibehavio- volução cognitiva, não de primeira. A
rista, para fundar uma nova ciência da primeira revolução cognitiva ocorreu no
linguagem. Desde seus primeiros livros, século XVII, e foi apenas uma parte da
como Syntactic Structures (1957) e As- revolução científica geral daquele pe-
pects of the Theory of Syntax (1965), até ríodo. Se retornarmos àquela época,
seus trabalhos mais recentes como perceberemos que as questões então
Knowledge of Language (1986), Lan- postas – e até mesmo algumas das res-
guage and Thought (1994) e The Mini- postas dadas – foram, de várias manei-
malist Program (1995), Chomsky dedi- ras, retomadas e modificadas, reformu-
ca-se à formulação de uma teoria que ladas e redescobertas (já que tinham si-
dê conta das propriedades universais do totalmente esquecidas) pela revolu-
da linguagem. Nessa entrevista, conce- ção cognitiva da década de 50. Tome-
dida a Carlos Fausto, Mike Dillinger e mos Descartes como exemplo: suas con-
Bruna Franchetto, realizada na Facul- tribuições científicas mais duradouras,
dade de Letras da Universidade Fede- fora do campo da matemática, foram
ral do Rio de Janeiro, em 18 de novem- provavelmente na teoria da visão e
bro de 1996, Chomsky fala de suas po- muitas das suas idéias foram redesco-
sições teóricas, de sua perspectiva polí- bertas e, obviamente, reformuladas a
tica e de sua história pessoal. partir da década de 50. O mesmo se
aplica à linguagem: alguns trabalhos
muito substantivos foram produzidos
naquela tradição, muitos dos quais fo-
ram redescobertos posteriormente. Isso
após um longo período no qual essa tra-
dição foi, em grande medida, esqueci-
da. Isso inclui os modelos computacio-
nais da mente, a idéia de que a mente
basicamente cria o esquema no qual es-
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tímulos dispersos recebem uma inter- va, na verdade, recuperando muito do


pretação rica, o interesse nos autômatos que já tinha sido explorado séculos an-
que era comum aos séculos XVII e XX; tes.
de fato, muitas dessas idéias retorna-
ram e foram redescobertas pela revolu- Carlos Fausto
ção cognitiva da década de 50. Qual foi a principal característica dessa
segunda revolução cognitiva?
Carlos Fausto
Por que a gramática gerativa desempe- Noam Chomsky
nhou um papel tão fundamental na se- A principal característica foi uma mu-
gunda revolução cognitiva, como você dança de ponto de vista: naquele tem-
prefere designá-la? po, o objeto de pesquisa nas ciências
humanas era o comportamento, ou o
Noam Chomsky que era produzido pelo comportamen-
Isso não é tão surpreendente, já que a to, como um texto, por exemplo. De fa-
linguagem é um aspecto absolutamen- to, as ciências sociais da época eram
te central da existência humana. Não chamadas de ciências comportamentais
existe praticamente nenhuma dimen- – aquela era a época das ciências com-
são da atividade intelectual humana, ou portamentais, particularmente nos Es-
da história humana, ou da organização tados Unidos e no mundo anglo-ameri-
social, em que a linguagem não desem- cano. Havia duas fontes principais na
penhe um papel distintivo. Assim, na- tradição lingüística daquele tempo.
turalmente, o estudo da linguagem ocu- Uma era a lingüística antropológica,
pou um lugar central. Se olharmos para que se dedicava principalmente a estu-
a revolução cognitiva do século XVII, os dar textos – coletava-se um corpus de
dois tópicos principais foram, provavel- dados e fazia-se a análise desse corpus;
mente, a visão e a linguagem. Estes são a outra tradição, o estruturalismo, inte-
também os dois temas de investigação ressava-se por alguns padrões e arran-
mais produtivos na revolução cognitiva jos, principalmente de sons – ocasional-
que começou na década de 50. E exis- mente arriscando-se um pouco além,
tem razões para isso: eles são acessíveis mas ainda estudando manifestações de
para o estudo, de uma maneira que comportamento. À medida que isso
muitas outras coisas não o são. Assim, evoluiu, a revolução cognitiva adquiriu
devido tanto ao interesse especial que um ponto de vista radicalmente distin-
os humanos têm pela linguagem – a lin- to. Passou a encarar o comportamento,
guagem é um tipo de propriedade da os textos e as estruturas simplesmente
espécie, a mais dramática e talvez úni- como dados. Eles não eram mais toma-
ca propriedade básica que distingue a dos como objetos de pesquisa, mas co-
humanidade do resto do mundo orgâni- mo dados passíveis de serem utilizados
co – quanto ao fato de ela ser mais aces- para algum outro propósito.
sível ao estudo, a pesquisa sobre a lin-
guagem desempenhou um papel cen- Carlos Fausto
tral e ajudou a reformular o ponto de Que propósito era esse?
vista desenvolvido na revolução cogni-
tiva, o qual – como foi descoberto pos- Noam Chomsky
teriormente, mas ainda não era efetiva- O outro propósito era descobrir o que a
mente conhecido naquela época – esta- mente está realmente fazendo. Quais
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são os mecanismos internos através dos alguém que já conhece a língua ou, ao
quais a mente desempenha as ativida- menos, é dotado de uma faculdade da
des que culminam no comportamento e linguagem em funcionamento. O mes-
que, uma vez escritas, produzem tex- mo se aplica ao ensino de uma segunda
tos? No caso do estruturalismo, quais língua: você pode pensar que está ensi-
são os mecanismos que levam a essas nando, digamos, inglês para estudantes
estruturas e não a quaisquer outras? Lo- que falam português, mas o fato é que a
go se percebeu que os dados que esta- parte inglesa do processo pressupõe o
vam sendo estudados pelas ciências conhecimento da linguagem, o qual é
comportamentais, pelos estruturalistas transportado de uma língua para a ou-
e pela lingüística antropológica, qual- tra. Para ensinar, essa é uma boa idéia.
quer que fosse sua relevância específi- Seria um erro ensinar às pessoas gra-
ca, não podiam ser tomados como as mática universal, se o objetivo é fazê-
melhores evidências para esse outro ti- las aprender uma segunda língua. Seria
po de estudo, o qual conduzia a investi- como ensinar fisiologia a alguém cujo
gações sobre novos tipos de dados. De objetivo é aprender a nadar. Isso ape-
fato, os interesses do período anterior e nas confundiria as pessoas, porque tu-
da revolução cognitiva eram quase do isso já está em seus corpos; elas já
complementares; ou seja, os temas que sabem como fazer todas essas coisas.
não tinham sido privilegiados pelas Nós simplesmente supomos que todos
abordagens comportamental e estrutu- são como nós, e então não ensinamos
ral, viriam a ser exatamente os tópicos essas coisas. E isso é válido para o ensi-
de estudo a partir do ponto de vista cog- no. Mas se o objetivo é compreender
nitivo. Na lingüística, notou-se rapida- seres humanos, isso é exatamente o que
mente que o estruturalismo estava li- você deve estudar.
dando com um aspecto muito superfi-
cial da linguagem e que, embora tives- Carlos Fausto
se dado contribuições efetivas – parti- E essa foi uma mudança significativa…
cularmente no estudo de sistemas de
sons –, não avançava muito. Mesmo Noam Chomsky
nesses estudos era preciso repensar a Isso é o que integra o estudo da lingua-
matéria completamente se quiséssemos gem em particular, e as ciências huma-
dar uma descrição mais rica de como nas de modo geral, nas ciências natu-
essas estruturas deveriam ser conside- rais. Assim, se você está estudando, va-
radas. No que se refere ao estudo de mos supor, rãs, você não investiga ape-
um corpus ou de um texto, essa pers- nas aquilo no que as rãs estão interes-
pectiva revelou-se, logo, muito limita- sadas. Presumivelmente, as rãs estão
da: imediatamente se descobriu que o interessadas nas diferenças entre as rãs,
tipo de dado que era encontrado no es- e não no que há de comum entre elas.
tudo de um corpus obtido de modo pa- Isso elas tomam como dado. Mas se nós
dronizado, a partir de um informante, estamos estudando rãs, acontece o con-
de um texto, de um conjunto de contos trário. Nós não estamos muito interes-
populares, ou até de uma extensa gra- sados nas diferenças, mas no que torna
mática tradicional, era muito superfi- algo uma rã, não um pássaro, vamos su-
cial. Uma vasta gramática ou um vasto por. Se sua atitude em relação aos seres
dicionário apresentam muitos dados, humanos é a mesma, você quer é des-
mas estes só podem ser utilizados por cobrir o que é um ser humano. Trata-se,
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então, não apenas de constatar as dife- sendo diferente da outra. Para se ter
renças entre um campeão olímpico e quaisquer capacidades, é preciso ter
uma pessoa que caminha na rua, e sim uma determinada estrutura. Isso se ve-
de descobrir o que ambos têm em co- rifica em todo o mundo orgânico. Ago-
mum. O que eles compartilham são bra- ra, é claro que todo organismo é in-
ços e pernas, certos modos de agir, o fluenciado pelo seu meio; você é um ti-
corpo que trabalha de um certo modo, e po diferente de rã ou abelha se você ti-
assim por diante. Esses foram, justa- ver uma nutrição e interações diferen-
mente, os tópicos deixados de fora pela tes. Mas isso é marginal. Você é basica-
lingüística tradicional, pela antropolo- mente uma rã ou uma abelha.
gia e pelas ciências sociais, e que se tor-
naram os tópicos de estudo. Essa foi Carlos Fausto
realmente a grande mudança. Mas isso é verdadeiro, na mesma medi-
da, para os seres humanos?
Carlos Fausto
Alguns cientistas sociais progressistas, Noam Chomsky
marxistas ou não, estão preocupados de É preciso que seja o mesmo com os se-
a abordagem naturalizante do fenôme- res humanos, a menos que sejamos an-
no social estar dando origem a uma no- jos e estejamos de algum modo fora do
va forma de darwinismo social. Você mundo natural. Mas se estamos no
acredita que essas preocupações são mundo natural, as mesmas proprieda-
válidas? des devem ser válidas para nós. Deve-
mos ter características geneticamente
Noam Chomsky programadas muito amplas. Nada disso
Bem, há um fato curioso a respeito da corresponde à chamada “teorização na-
ciência social marxista; ela presumiu turalista”. Como postulado mínimo, de-
durante muito tempo – algo que eu ve ser apenas verdadeiro. Como seres
acho teria horrorizado Marx – que os humanos, é importante que estudemos
seres humanos deveriam ser tomados como somos afetados pelo nosso meio,
exclusivamente como criaturas da his- mas isso deve estar baseado na nossa
tória, e não como parte da natureza. As- natureza. A idéia de que os seres huma-
sim, os seres humanos estão, de certo nos existem fora da natureza está pre-
modo, fora da natureza: diferentemente sente tanto na ortodoxia religiosa,
de qualquer outra coisa existente no quanto no marxismo contemporâneo.
mundo, eles não têm natureza. Pos- Na ortodoxia religiosa, é uma alma que
suem apenas uma história e são o pro- vem de Deus; no marxismo, é algo mís-
duto da sua organização social e da sua tico que vem da história e das condi-
experiência. Isso é completamente ab- ções sociais. Mas isso não faz nenhum
surdo. Se você não tem uma natureza sentido. O próprio Marx certamente
inata, você jamais se tornará algo. É co- acreditava que os seres humanos esta-
mo perguntar: se você toma um orga- vam no mundo material. Eu suspeito – é
nismo desprovido de informação gené- difícil projetar seus pensamentos em
tica e lhe fornece apenas alimentação, outra pessoa – que ele teria ficado mui-
o que ele se tornará? Bem, a resposta é to descontente se visse essa tendência
nada. Ele não terá nenhuma estrutura, na teorização posterior.
nenhuma propriedade, será apenas
uma massa de células, cada criatura
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Carlos Fausto Noam Chomsky


Por que então os intelectuais progressis- Sim. O outro ponto de vista que atraiu
tas são tão atraídos por essa idéia de que os intelectuais foi o seguinte: “OK, nós
os seres humanos não têm natureza? não podemos obter poder explorando
as lutas da classe trabalhadora, então
Noam Chomsky obteremos poder servindo aos que têm
Essa é uma questão interessante, e pen- poder de fato; nós nos tornaremos diri-
so que é possível especular sobre isso e gentes dos centros ideológicos, das ins-
chegar a conclusões não muito atraen- tituições estatais e das empresas priva-
tes. Uma coisa que você nota pronta- das das democracias capitalistas”. Essa
mente é que, se os seres humanos não é a intelectualidade ocidental. E para
têm natureza, então não existem barrei- ela, de modo geral, a idéia de que os se-
ras morais para o controle; não se infrin- res humanos não têm propriedades
gem sua liberdade e seus direitos, se também é interessante: “é perfeitamen-
eles não têm liberdade ou direitos. Se te legítimo que controlemos as vidas
os homens são apenas criaturas produ- das pessoas e sejamos aqueles que fa-
zidas pela história, não há nada que im- bricam o consenso” (como eles mesmos
peça o engenheiro social de dizer: “OK, formulam). O neoliberalismo é isto. É
vou projetar uma sociedade para você, justamente o dispositivo para transferir
e vou dirigi-la para você, porque sou o poder do espaço público, onde o povo
mais esperto”. Se você pensa no que o pode exercer certo tipo de influência
marxismo se transformou, essa não é sobre ele, para as tiranias privadas, que
uma descrição ruim. Isso é o marxismo- serão gerenciadas pelos intelectuais. E,
leninismo, a doutrina do partido de é claro, esses intelectuais adquirem seu
vanguarda, que se tornou muito atraen- poder não porque são espertos, mas
te para os intelectuais. De fato, os inte- porque fazem aquilo que os detentores
lectuais são rapidamente atraídos por do poder desejam. O neoliberalismo é
essa doutrina, pois ela permite afirmar: basicamente isso, e ele é atraente para
“nós temos o direito de ter poder, e é os intelectuais pelo mesmo tipo de ra-
claro que nós o usaremos para todos os zão que o marxismo era, diferindo ape-
tipos de bons propósitos, porque nós so- nas na avaliação de onde se encontra o
mos pessoas muito legais. Nós temos o poder. A intelectualidade moderna é
poder e não existe barreira moral que em grande medida composta por “ge-
nos impeça de usá-lo para projetar uma rentes” – sociais, intelectuais, ideológi-
sociedade na qual as pessoas irão tra- cos, corporativos. Para os intelectuais, é
balhar e nós diremos a elas o que fa- uma idéia muito atraente que os ho-
zer”. De fato, uma idéia muito atraente mens não tenham natureza, pois nesse
para um intelectual que quer poder. Is- caso eles não estariam violando sua na-
so já tinha sido previsto muito antes por tureza quando os controlam. Por outro
Bakunin – antes mesmo de Lenin. lado, se as pessoas têm uma natureza
efetiva, e parte dela, digamos, é uma
Carlos Fausto necessidade interna de controlar seus
O mesmo não se aplica também aos in- próprios assuntos, de ser livre, não ter
telectuais não-marxistas? seus direitos infringidos por outros e as-
sim por diante – em grande medida, os
ideais do Iluminismo e, incidentalmen-
te, até mesmo do liberalismo clássico –,
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e se esses direitos estão inscritos na na- Noam Chomsky


tureza humana, então existe uma bar- De fato, a primeira aplicação – quer di-
reira moral contra a manipulação social zer, aplicação mítica – de idéias darwi-
e intelectual. E isso nunca foi uma idéia nistas no campo social foi o darwinismo
atraente para os intelectuais. Mas isso é social, que tinha um caráter muito rea-
especulação; estou apenas tentando re- cionário. Mas isto era reflexo das estru-
portar-me ao fato curioso de que uma turas de poder daquela época. Você po-
idéia obviamente impossível e absurda de usar o darwinismo, ou alguma forma
tornou-se tão disseminada entre os in- falsificada dele, para argumentar que
telectuais em um espectro tão amplo, as pessoas estão em uma luta pela exis-
incluindo a esquerda. De qualquer mo- tência e devem cuidar de si mesmas, e
do, não faz nenhum sentido. assim por diante. A teoria darwinista
não diz nada sobre isso. É quase a mes-
Carlos Fausto ma coisa que usar Einstein para dizer:
E quanto a um novo tipo de darwinismo “tudo é relativo”. Do mesmo modo, po-
social… de-se usar Darwin para dizer que “todo
mundo está em luta pela existência”, e
Noam Chomsky se existe algum outro motivo, pode-se
O darwinismo praticamente não diz na- fazer disso uma teoria sobre os seres
da sobre como são as capacidades hu- humanos.
manas. A teoria evolutiva nem se apro-
xima da humanidade. Mal podemos es- Carlos Fausto
tudar a evolução de criaturas microscó- Você diria que é isso o que a sociobiolo-
picas. Quando se vai além das estrutu- gia realmente faz?
ras mais simples como, por exemplo,
células ou pequenos grupos de células, Noam Chomsky
a verdadeira teoria evolutiva torna-se Realmente, a sociobiologia é uma ten-
bastante descritiva. Não há muito o que tativa de aplicar a teoria biológica aos
dizer. As coisas ficam muito difíceis. As- seres humanos. Presumiu-se sempre
sim, se entrarmos em um fantástico de- que ela começou por volta da década
partamento de biologia, por exemplo, de 70 com Ed Wilson (um biólogo de
no MIT ou mesmo aqui no Rio, perce- Harvard, que foi meu colega), que es-
beremos que os biólogos não estão es- creveu um livro chamado Sociobiology,
tudando animais, eles sequer sabem o livro este que se tornou amplamente co-
que é um animal. Eles estudam grandes nhecido, e que talvez tenha um caráter
moléculas. E é aí que você tem a ciên- reacionário. Mas não foi aí que o campo
cia. Bem, você pode fazer coisas como de fato começou: o primeiro trabalho de
genética de populações e assim por sociobiologia, foi uma obra importante
diante, mas isto não diz nada sobre se- de Kropotkin que, todavia, foi comple-
res humanos. Pode-se retirar do darwi- tamente esquecida devido às suas im-
nismo qualquer conclusão que se quei- plicações políticas inaceitáveis. Kropot-
ra sobre seres humanos. kin foi um historiador natural, além de
ter sido um líder anarquista, e escreveu
Carlos Fausto um livro em 1902 intitulado Mutual Aid:
Mas os darwinistas do século XIX fize- A Factor in Evolution. Era uma crítica
ram precisamente isso… ao darwinismo social, e falava sobre co-
mo a evolução teria possivelmente pri-
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vilegiado criaturas que estavam coope- perspectiva da história pessoal. Quan-


rando entre si, e que, portanto, a coope- do e como surgiram as idéias centrais
ração, a solidariedade, a simpatia etc., da gramática gerativa, como essa visão
teriam sido favorecidas pela evolução. diferente foi absorvida pela linhagem
Kropotkin propôs uma teoria que é tão dominante da academia, e que tipo de
boa quanto qualquer outra, argumen- ramificações políticas ela teve?
tando que a seleção natural tendia a le-
var a sistemas anarquistas, basicamen- Noam Chomsky
te a sistemas socialistas libertários. Nin- Qualquer história pessoal é sempre
guém queria ouvir isso, e então esse li- composta por uma série de acidentes e
vro foi quase que completamente es- isso não é realmente muito interessan-
quecido – embora os cientistas da épo- te. De fato, eu cheguei à lingüística a
ca o levassem bastante a sério, por ser, partir de um interesse em política de es-
de fato, um trabalho científico impor- querda [radical politics]. Quando tinha
tante. Mas foi esquecido, e o que ficou cerca de dezesseis anos, eu estava em
foi o chamado darwinismo social. Mas via de deixar a faculdade, por ser muito
este permaneceu por outras razões, de- tediosa. Então, conheci uma pessoa
vido aos interesses do poder. com conexões políticas mais ou menos
anarquistas ligada à minha trajetória
Carlos Fausto enquanto imigrante judeu envolvido na
Isso não foi também conseqüência de retomada do hebraico e do sionismo. A
uma abordagem naturalista? corrente do sionismo à qual eu estava
pessoalmente vinculado era o sionismo
Noam Chomsky antiestatal, que foi relativamente signi-
Uma abordagem naturalista busca des- ficativo no início da década de 40. Atra-
cobrir a verdade; todos devemos querer vés dessas conexões libertárias de es-
conhecer a verdade, não há sentido em querda, conheci uma pessoa que vinha
viver com ilusões. Nós queremos co- a ser um lingüista importante, Zellig
nhecer a verdade sobre os seres huma- Harris. Tornamo-nos muito amigos e ele
nos, qualquer que seja ela. Isso é muito me fez assistir a seus cursos de pós-gra-
difícil. As ciências estão longe de estar duação, e eu passei também a assistir
avançadas o suficiente para nos dizer outros. Eu jamais tive uma formação de
muito sobre esses tópicos. Se as pessoas graduação. Iniciei fazendo cursos de
pregam uma forma renovada de darwi- pós-graduação em vários campos. To-
nismo social, isto se deve aos mesmos dos na área conhecem um pequeno se-
tipos de fatores que deram origem ao gredo, a saber, que eu não tenho quali-
antigo darwinismo social; quais sejam, ficações profissionais. Eu não podia ob-
estruturas de poder com certas ideolo- ter um emprego em uma universidade
gias, a serem aceitas e respeitadas, pa- decente porque não conseguiria passar
ra que se possa martelá-las nas cabeças nos exames. E o diploma foi apenas,
das pessoas. Mas não existe nada nas bem, um acidente. Nunca pretendi ob-
ciências que leve necessariamente a is- tê-lo particularmente; não planejei in-
so. gressar na carreira acadêmica, isto aca-
bou acontecendo por várias razões.
Carlos Fausto
Gostaria de voltar à primeira questão a
partir de uma perspectiva diferente, a
190 ENTREVISTA

Carlos Fausto lingüística estrutural: pega-se um infor-


Onde você fez os cursos? mante – um falante nativo do hebraico,
no caso – e começa-se a fazer pergun-
Noam Chomsky tas, a produzir textos e o tipo de coisa
Eu não estava em uma universidade de que se ensina nos chamados “cursos de
elite, mas na universidade local, junto informantes” ou “cursos de métodos de
com minha mulher. Naquela época, não campo”. Foi assim que aprendi e come-
se ia a lugar algum além daquele onde çei a fazer, mas depois de um certo tem-
se vivia. Você tinha que trabalhar. En- po, dei-me conta: “isso é completamen-
tão fomos para a universidade da cida- te ridículo. Eu sei as respostas para to-
de, Universidade da Pennsylvania na das as questões. Então, por que não
Filadélfia, que tinha figuras individuais perguntar apenas as questões que são
muito boas, mas em campos dispersos. interessantes, em vez de fazer isso da
Gente como Nelson Goodman em filo- maneira que esperam que você faça?”.
sofia, Nathan Fine e Hans Rademacher E foi assim que comecei. Felizmente, eu
e alguns outros que eram matemáticos não tive nenhum treinamento efetivo,
de primeira classe naquela época. Ad- então não houve nenhuma grande sur-
quiri, então, uma curiosa gama de inte- presa em relação a isso: estava chegan-
resses: matemática, filosofia, lingüísti- do a esse campo fresco, com pouca, de
ca, e algumas outras coisas, áreas nas fato quase nenhuma, formação especí-
quais havia pessoas efetivamente com- fica. Então fiz apenas o que parecia ra-
petentes. zoável, que era fazer uma gramática
gerativa. De fato, minha tese de gra-
Mike Dillinger duação foi uma gramática no estilo de
Como você foi introduzido à lingüísti- Panini, feita 2.500 anos antes, embora
ca? tudo isso tivesse sido esquecido e nin-
guém tivesse comentado ou menciona-
Noam Chomsky do para mim.
A primeira coisa que eu vi em lingüísti-
ca foi um manuscrito de Zellig Harris, Mike Dillinger
que ainda não tinha sido publicado. Isso estava completamente esquecido
Apareceu posteriormente como seu li- na lingüística americana daquele tem-
vro Methods in Structural Linguistics, po?
que se tornou a obra clássica do estru-
turalismo americano. Essa era a única Noam Chomsky
coisa que eu conhecia. Bem, de fato eu Há uma estranha esquizofrenia no cam-
conhecia um pouco de lingüística histó- po. A principal figura da lingüística
rica semítica, mas tinha sido através de americana, Leonard Bloomfield, que
meu pai que era um estudioso do as- era o grande mestre da lingüística des-
sunto; assim, quando eu era criança, lia critiva americana, era também, no ou-
essas coisas. Harris incentivou-me a fa- tro lado de seu cérebro, especialista em
zer pesquisa e sugeriu que eu traba- lingüística hindu e germânica. Assim,
lhasse com o hebraico, que eu conhecia ele conhecia tudo isso, mas era comple-
e no qual ele estava interessado (sua tamente esquizofrênico. Quando ele fez
própria formação era em línguas semí- um trabalho sobre o estilo hindu clássi-
ticas). Comecei a trabalhar nisso exata- co, que ele conhecia por sua formação,
mente da maneira como era suposto na ele o publicou na Europa, nos tempos
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL 191

do Círculo de Praga. Em 1939, ele pu- de pós-graduação como pesquisador-


blicou um grande estudo de uma língua bolsista. E foi o MIT que se tornou o
indígena norte-americana, Menomini, centro de lingüística moderna; não as
mais ou menos no estilo de Panini. Por faculdades voltadas para as humanida-
outro lado, na obra pela qual ele ficou des como Harvard, Yale, Princeton etc.
famoso deste lado do Atlântico, ele não Esse é um padrão que tem proliferado
só não fez isso, como rejeitou esse estilo em todo o mundo. Quando a gramática
como completamente absurdo. Uma gerativa começou a se expandir, essa
gramática à Panini tem regras ordena- expansão ocorreu mais ou menos da
das, e é gerativa. Mas se você lê Lan- mesma maneira, fora do quadro das
guage de Bloomfield, ele diz que tudo instituições nas quais as humanidades
isso é misticismo e que se você quer fa- eram fortes. Nesses lugares, ela foi, fun-
zer lingüística estrutural não deve dar a damentalmente, bloqueada. Isso se de-
menor importância para isso. O que é ve à própria natureza das humanida-
curioso a respeito dessa esquizofrenia é des, que são muito autoritárias e hierár-
que as pessoas com as quais eu estava quicas, e realmente não desejam (qua-
estudando eram muito próximas a se nunca) novas idéias. As pessoas sen-
Bloomfield. Eram seus alunos e amigos tem-se ameaçadas pelo novo. Posso
e tinham tido um treinamento similar: perceber isso claramente quando com-
um deles era especialista em lingüística paro Harvard e MIT: existe uma grande
indiana e germânica; outro (Harris), ti- diferença entre ambas. Mas isso é uma
nha experiência em estudos semíticos e tendência, e não algo cem por cento.
tinha dado contribuições a estes. Eles Você encontra muitas diferenças.
nunca me disseram quando eu ainda
não era graduado, na década de 40, que Bruna Franchetto
aquilo que eu estava fazendo era muito A gramática gerativa deparou-se com a
semelhante ao que Bloomfield tinha mesma situação na Europa?
publicado seis anos antes na Tcheco-
Eslováquia, e que, de fato, isso remon- Noam Chomsky
tava a 2.500 anos. Descobri isso anos Paris tornou-se o lugar a partir do qual
depois. Enfim, minha abordagem sur- a infecção se espalhou pela Europa,
giu do nada. Pareceu-me apenas a coi- mas o lugar onde ela era ensinada era
sa mais razoável a fazer, e por eu não Vincennes. Vincennes foi criada na dé-
ter tido muito treinamento anterior, não cada de 60, durante a revolta estudan-
havia também muitas barreiras. til. O governo queria expulsar todos os
agitadores da cidade, então instalou
Carlos Fausto uma pequena universidade em um par-
Como isso foi absorvido pelas linhagens que, bem longe de Paris. Foi para lá
dominantes da academia? que mandaram todos os estudantes do
Terceiro Mundo, além dos estudantes
Noam Chomsky radicais, e ninguém prestou muita aten-
Bem, um exemplo disso é o lugar onde ção ao que estava se passando lá. As-
eu leciono: o MIT, que é uma escola de sim, esse foi o local onde a gramática
engenharia e ciência. Não leciono em gerativa teve início na Europa. Então,
Harvard, que fica a duas milhas de dis- pessoas começaram a chegar de outros
tância, e que era a principal universida- países da Europa para estudar com Ri-
de, onde eu estava fazendo os estudos chard Kayne, que era um dos nossos
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alunos e que foi lecionar lá. Essas pes- conhecia porque cresceu em contato
soas começaram a lingüística em seus com ela, mas os lingüistas não conhe-
próprios países; na Itália, na Noruega, ciam. E, de fato, quando as pessoas es-
na Alemanha, em todos os lugares. E foi tudam utilizando seu próprio conheci-
basicamente o mesmo padrão de ex- mento, obtém-se uma enorme quanti-
pansão. A mesma coisa se verifica no dade de informações e idéias.
Japão. Lá, a gramática gerativa está se
infiltrando gradualmente, mas isso não Bruna Franchetto
começou na Universidade de Tokyo – a Ocorreu o mesmo com o estudo das lín-
universidade de elite –, mas distante, guas indígenas?
onde ninguém poderia vê-la.
Noam Chomsky
Bruna Franchetto O mesmo se aplica quando você come-
O que mudou com a expansão da gra- ça a trabalhar nas línguas aborígines.
mática generativa? Um dos projetos que Ken Hale desen-
volvia no MIT era trazer pessoas de co-
Noam Chomsky munidades nativas americanas com
O que mudou nos últimos anos – e isso muito pouca formação acadêmica, e co-
é importante – é que ao invés de ape- locá-las em nosso programa de pós-gra-
nas os ocidentais (pessoas provenientes duação de modo que pudessem traba-
da Europa e dos Estados Unidos) estu- lhar em suas próprias línguas. Esse é
darem todas essas línguas, as pessoas um programa muito árduo, e foi um tra-
passaram a estudar suas próprias lín- balho difícil porque as pessoas não ti-
guas. Assim, por exemplo, a lingüística nham nenhum treinamento escolar efe-
românica – um campo bem estudado – tivo. E subitamente elas começaram a
efetivamente deu um salto adiante descobrir coisas que os lingüistas antro-
quando o trabalho começou a ser feito pólogos jamais tinham notado. Isso tem
por lingüistas franceses, italianos e es- sido tremendamente rico para o anda-
panhóis e não por americanos. Quando mento das pesquisas baseadas em um
você trabalha na sua própria língua é vasto espectro de línguas; e, de fato,
completamente diferente. Há uma alu- creio que o grande progresso – espe-
na portuguesa que concluiu recente- cialmente na década de 80 – deveu-se a
mente o Ph.D. no MIT, que descobriu isso. Assim, perspectivas completamen-
toda uma série de coisas sobre a língua te novas surgiram na lingüística chine-
portuguesa que nunca tinham sido no- sa, aborígine, românica e germânica, as
tadas. E ocorre o mesmo em todos os lu- quais foram estudadas de modo muito
gares. Em japonês, muito do que tem si- mais profundo do que tinham sido an-
do descoberto é novo. Os lingüistas ja- tes. Descobertas ainda estão sendo fei-
poneses tradicionais desconheciam es- tas em todos os lugares. Assim como
ses fatos. Uma de nossas recém-douto- novas coisas estão sendo descobertas
ras, é uma japonesa que começou a es- sobre o inglês o tempo todo.
tudar a língua das mulheres japonesas,
a qual se revelou completamente dife- Bruna Franchetto
rente do que todo mundo pensava. Isso Você diria, então, que Syntactic Struc-
não era estudado; estudava-se a língua tures (1957) e Aspects of the Theory of
dos homens. Mas aquela tem proprie- Syntax (1965) tinham uma perspectiva
dades gramaticais diferentes, que ela anglocêntrica?
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL 193

Noam Chomsky tinha nenhuma intenção especial de


Aqui, novamente, existe uma espécie permanecer no mundo acadêmico. O
de acidente histórico. Como mencionei trabalho que eu estava fazendo era im-
anteriormente, eu não tenho creden- publicável. O calhamaço que eu tinha
ciais profissionais, e parte dessa falta escrito, com cerca de 800 ou 900 pági-
faz com que eu não esteja falando com nas, intitulado Logical Structure of Lin-
você em português, como a maior parte guistic Theory, Carol (minha mulher) e
dos meus colegas estaria fazendo. Não eu imprimimos naquilo que se chamava
tenho um conhecimento extenso de lín- na época um hectógrafo. Fizemos cerca
guas, de modo que eu utilizo os mate- de trinta cópias, apenas para os amigos.
riais que conheço. Por outro lado, mes- Era impossível imaginar isso sendo pu-
mo Syntactic Structures e Aspects of the blicado. Mais ou menos nessa época fui
Theory... não estavam baseados no in- contratado pelo Laboratório de Pesqui-
glês. A primeira gramática gerativa ex- sa em Eletrônica do MIT. Na verdade,
tensiva foi efetivamente do hebraico, fui contratado para trabalhar em um
como já mencionei. A primeira grande programa de tradução automatizada,
sintaxe em gramática gerativa – que com a utilização de computadores.
apareceu no final da década de 50, ao Quando o diretor do laboratório me en-
mesmo tempo que Syntactic Structures trevistou para o emprego, disse-lhe di-
e usando os mesmos modelos – foi do retamente que não acreditava que
Hidatsa, uma língua indígena america- aquele fosse um projeto sensato e que
na, elaborada por Hugh Matthews, que não pretendia trabalhar nele. Mas que,
era meu colega no MIT. Logo, a primei- caso ele quisesse me pagar, eu não ob-
ra grande gramática gerativa foi a gra- jetaria, e poderia então trabalhar em
mática hidatsa. E assim continuou. Meu coisas nas quais eu estava interessado –
departamento, por exemplo, é um cen- e conversamos sobre elas, e ele ficou
tro – talvez mundial – da lingüística um tanto intrigado.
aborígine australiana. De fato, tudo que
se possa imaginar é estudado no MIT. Carlos Fausto
Assim, se há muita influência anglocên- Esse programa de tradução não era
trica, é apenas devido à minha história mantido com verbas militares?
pessoal, mas o mesmo não se aplica ao
campo – e, é claro, sempre se busca o Noam Chomsky
espectro mais amplo possível de lín- Esse foi um período no qual um grande
guas. volume de dinheiro militar, dinheiro do
Pentágono, estava chovendo nas uni-
Carlos Fausto versidades. As pessoas de esquerda
Vamos voltar à sua história intelectual. confundem-se muito em relação a isso.
Como você obteve o emprego no MIT? Trata-se de uma época em que as uni-
versidades estavam mais livres, porque
Noam Chomsky o Pentágono não se importava com o
Eu o obtive através do Laboratório de que se estava trabalhando. Eles apenas
Pesquisa em Eletrônica. Quando termi- proviam a ciência básica e a tecnologia
nei meus quatro anos como bolsista em do futuro. Eles pagavam os custos que
Harvard, em 1955, existiam poucos de- as corporações privadas não queriam
partamentos de lingüística. Eu era de bancar. Eles queriam que o público pa-
qualquer forma “incontratável” e não gasse os custos do desenvolvimento de
194 ENTREVISTA

computadores e da eletrônica e tudo o está ocorrendo. As pessoas sempre es-


mais que viria em seguida com a enge- tão tentando encontrar uma colocação
nharia genética e as telecomunicações. fora dos esquemas, onde existem estru-
Espera-se que o público pague os cus- turas fortes de poder – e gradualmente
tos e, então, quando o projeto funciona, conseguem e os estudantes ficam inte-
ele é transferido para as corporações ressados e isso se espalha. Atualmente,
privadas e estas obtêm o lucro. E o MIT ocorre o mesmo em todos os lugares do
era um dos canais através dos quais is- mundo. Foi assim que a gramática ge-
so se processava. Assim, eles basica- rativa foi absorvida pela academia.
mente não tomavam conta do que você
estava fazendo, desde que fosse ciência Mike Dillinger
e tecnologia. Como resultado, o Labo- Dada a série de diferenças entre a lin-
ratório de Pesquisa em Eletrônica deu güística contemporânea e a biologia e a
origem a novos departamentos. física contemporâneas, para tomar dois
exemplos, quais dessas diferenças você
Mike Dillinger chamaria de necessárias e quais você
Como era o MIT nessa época? qualificaria de acidentais? E dentre as
diferenças acidentais, com qual você
Noam Chomsky acredita que deveríamos lidar primeiro
Foi em grande medida uma escola de para aproximar mais a lingüística das
engenharia; mas devido a esse finan- ciências naturais?
ciamento e a outras mudanças que
ocorreram, tornou-se uma universidade Noam Chomsky
com perfil científico geral. Por exemplo, É interessante que a questão mencione
o departamento de biologia, o departa- a física e não acredito que isso seja um
mento das ciências do cérebro, lingüís- acidente. Quase toda a filosofia e a his-
tica e muitos outros campos surgiram a tória da ciência se referem à física, o
partir do laboratório de eletrônica, onde que é uma péssima escolha. A física di-
havia financiamento excedente para fa- fere muito das outras ciências, e isso
zer praticamente todo tipo de coisa. ocorre por várias razões. Por um lado, a
Muitos campos de pesquisa surgiram física é fundamental; não se levantam
daí. O diretor na época era Jerome questões sobre seus fundamentos, ao
Weisner, que se tornou posteriormente contrário, ela própria fornece os funda-
conselheiro científico de Kennedy. Ele mentos. Assim, o tipo de questão que
estava interessado apenas no desenvol- você elabora a respeito da química, da
vimento da ciência. Muitas das coisas biologia e da psicologia – questões do
que ele financiou se revelaram loucu- tipo: “elas são reais?” – não surge a res-
ras, mas algumas frutificaram. Se você peito da física. Costumava-se fazê-lo
olhar para a universidade hoje, muitos séculos atrás, mas nos últimos séculos
dos seus principais departamentos têm aceitou-se simplesmente que o que a fí-
suas raízes naquela época. De qualquer sica nos diz são regras fundamentais;
modo, foi dessa maneira que a gramáti- dessa forma, não se colocam questões
ca gerativa entrou na vida acadêmica. sobre elas. Essa é uma diferença entre
E então, finalmente, começamos um a física e todas as outras ciências, inclu-
programa e formamos estudantes e eles sive a química. Até mais ou menos a dé-
foram para outros lugares e tiveram a cada de 30, a química era freqüente-
mesma experiência. De fato, isso ainda mente encarada como um dispositivo
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL 195

de cálculo, porque não se podia relacio- mentos éticos. Comparemos, digamos,


ná-la à física, e os mesmos tipos de o estudo da linguagem ao estudo da vi-
questões que são postas hoje sobre as são, que é próximo. Se você quer estu-
ciências cognitivas eram feitas sobre a dar a visão humana, você pode torturar
química. Mas não a física, já que esta é gatos. Talvez eles não devessem fazê-
fundamental. A outra razão pela qual a lo, mas as pessoas consentem em tortu-
física é um mal exemplo é que ela se li- rar gatos e macacos. Assim, pode-se co-
mita a questões extremamente simples. locar eletrodos nos cérebros, tirar amos-
Logo que um problema fica muito com- tras deste, e fazer todo tipo de coisas, e
plexo, ele é passado adiante. Assim, se aprender muito sobre o sistema visual
o hélio é muito complicado de estudar, dos gatos e macacos dessa maneira.
deixemos ele para os químicos. A física Acontece que o sistema visual dos seres
só estuda coisas muito simples. Esse é humanos, provavelmente, não é muito
um dos motivos pelos quais ela obtém diferente daquele dos gatos e macacos,
progressos efetivos. Ela alcança resul- e, assim, aprende-se algo a respeito dos
tados muito profundos, mas a respeito seres humanos. Por outro lado, você não
de coisas extremamente simples. Tão coloca eletrodos em seres humanos. As
logo qualquer nível de complexidade é pessoas o fizeram, incidentalmente; al-
atingido, há o deslocamento para uma gumas das coisas feitas não faz muito
das ciências específicas. Agora, na quí- tempo eram, de fato, espantosas. Talvez
mica você não tem esse tipo de luxo. É o exemplo mais famoso, embora esteja
preciso lidar com o nível de complexi- esquecido, seja o do campo da gineco-
dade com o qual você se depara; então, logia, que foi desenvolvido por cientis-
se a química vê uma molécula orgâni- tas famosos nos Estados Unidos no final
ca, não pode dizer que isso é muito do século XIX – seus retratos espalham-
complicado, e deixá-la para outros es- se pelas paredes da Escola de Medicina
tudarem. de Harvard –, os quais torturavam mu-
lheres negras e imigrantes irlandesas,
Mike Dillinger operando-as repetidas vezes. E esses
E esta seria uma similaridade com a lin- experimentos foram repetidos, e apren-
güística? deu-se muito com eles. OK, isso foi há
um século e é uma parte da história que
Noam Chomsky foi bastante reprimida. Agora não se faz
Penso que existe uma similaridade en- mais isso (pelo menos eu espero que
tre a química, a biologia, a geologia e a não). Assim, quando você estuda a lin-
lingüística. A diferença é que elas estão guagem, você não pode colocar eletro-
estudando diferentes sistemas específi- dos nos centros da linguagem e tirar pe-
cos. daços destes, e não existe nenhum ou-
tro organismo que possua um órgão si-
Mike Dillinger milar. Pode-se aprender sobre o sistema
Dessa forma, a diferença reside apenas visual humano observando gatos e ma-
no objeto de estudo? cacos, mas nenhum outro organismo
tem algo semelhante ao sistema lin-
Noam Chomsky güístico humano. Não é possível apren-
Não, existem outras diferenças tam- der nada estudando outros organismos.
bém. Por exemplo, no caso da lingüísti- Bem, essa é uma diferença. Isso signifi-
ca – felizmente – você tem constrangi- ca que os estudos devem ser muito mais
196 ENTREVISTA

indiretos, você não pode fazer experi- que esta alcança. O parser – se é que
mentação direta. Em qualquer outro ca- existe, o que não é tão óbvio – é um dis-
so, exceto a linguagem, existe experi- positivo que dá acesso à gramática. Por
mentação direta, senão em seres huma- exemplo, ao analisar o português, o
nos, ao menos em organismos similares. parser acessa um conhecimento dife-
Mas com a linguagem é diferente, e is- rente daquele que é acessado quando
so a torna mais difícil e de certo modo analisa o inglês. Assim, de algum mo-
mais interessante. Excetuando-se essa do, ele está acessando a gramática que
diferença, não considero a lingüística contém todo o conhecimento, o sistema
muito diferente da química. De fato, se cognitivo, e está usando outras proprie-
olharmos para a história da lingüística e dades. Quando você acessa um sistema
para a história da química, percebere- de conhecimento para atribuir estrutu-
mos que elas caminham quase parale- ras a sentenças, você está usando a me-
las. A química moderna começa aproxi- mória e estratégias de vários tipos, e as-
madamente em 1650, quando tem iní- sim o parser é algo que tem a gramática
cio o estudo de estruturas complexas a no seu cerne e várias coisas mais. Pode-
partir do que, hoje, é considerado um se dizer o mesmo a respeito de alguém
ponto de vista moderno; a lingüística que esteja estudando o braço, alguém
moderna começa mais ou menos na que esteja estudando, vamos dizer, co-
mesma época com a Gramática de Port mo eu alcanço algo. Nesse caso, está-se
Royal. Tanto a química quanto a lin- usando a biologia humana, mas a partir
güística estão estudando como se ob- de alguns dos seus aspectos específicos,
têm estruturas complexas a partir de e o parser está estudando alguns aspec-
coisas simples; elas estão voltadas para tos particulares da maneira como a lin-
estruturas complexas distintas, mas as guagem é usada. O dispositivo de aqui-
questões são paralelas. sição de linguagem é justamente o tópi-
co central da linguagem. Qual é a natu-
Mike Dillinger reza da faculdade da linguagem? Esse
Nas outras ciências naturais existe uma é o tópico da gramática universal.
distinção padrão entre teorias estáticas
e cinemáticas como, por exemplo, entre Mike Dillinger
anatomia e fisiologia no caso das ciên- Gostaria de desenvolver uma parte des-
cias biológicas. Onde a física postula di- sa argumentação: você propôs recente-
ferentes teorias do mesmo objeto, a lin- mente que a linguagem está “embutida
güística parece postular diferentes ob- em” e “fornece instruções” para siste-
jetos de estudo; como a gramática, o mas de performance. Como a natureza
parser e o dispositivo de aquisição de da distinção competência/performance
linguagem (LAD). Você acha que essa é mudou sob as hipóteses minimalistas?
uma diferença necessária?
Noam Chomsky
Noam Chomsky De modo algum. Isso é apenas uma me-
Bem, efetivamente não concordo que táfora; é exatamente o mesmo de antes.
essa seja uma diferença. A gramática é A dicotomia entre competência e per-
apenas o output do dispositivo de aqui- formance é uma diferença conceitual
sição de linguagem. Este último corres- que não se pode questionar. Há vários
ponde ao estado inicial da faculdade da debates a respeito disso, mas não fazem
linguagem, e a gramática é um estado o menor sentido. Existe uma diferença
A LINGÜÍSTICA COMO UMA CIÊNCIA NATURAL 197

de categoria entre o que você sabe e o gunta em que medida a linguagem se


que você faz. Não são a mesma coisa. O aproxima disso. Aqui, incidentalmente,
que você faz depende do que você sa- existe um ponto em relação ao qual eu
be. A competência é justamente o que efetivamente discordo de Steven Pin-
você sabe. A performance é o que você ker: a maior parte de seu livro The Lan-
faz com isso. Você simplesmente não guage Instinct parece-me correta, mas
pode escapar dessa distinção, e ela é no que se refere à evolução, eu penso
hoje idêntica ao que era antes. A ques- que ele se confunde. É possível, por tu-
tão é como ela opera. Por exemplo, co- do que sabemos, que a história da evo-
mo o sistema de conhecimento, qual- lução da linguagem não seja tão dife-
quer que seja ele, interage com os ór- rente da que acabei de sugerir. Pode ser
gão articulatórios, por exemplo? Essa que a linguagem se assemelhe mais a
questão tem sido estudada por cin- um floco de neve do que ao pescoço de
qüenta anos e é a mesma questão de uma girafa: ela tem a forma que tem
sempre. porque esse é o modo que a natureza é.
Se algo é inserido, tem de se defrontar
Carlos Fausto com essas condições, e acaba se tornan-
A questão sobre competência e perfor- do um floco de neve. Não por seleção
mance pode ser colocada em um qua- natural. O pescoço da girafa presumi-
dro evolutivo. Se a faculdade da lingua- velmente tornou-se mais longo através
gem evoluiu em um meio no qual a so- da seleção. Bem, nós não sabemos qual
ciabilidade e a plasticidade comporta- linguagem é: não existe nada na biolo-
mental tinham crescentes vantagens gia nem na teoria da evolução que nos
seletivas, ela não deveria exibir todas diga isso. Se o conto de fadas que aca-
as idiossincrasias da evolução, em vez bo de narrar se mostrar, de fato, mais ou
de elegância, discrição e economia? menos preciso – por exemplo, que uma
chuva de raios cósmicos acarretou uma
Noam Chomsky mutação que levou a uma certa reorga-
O programa minimalista coloca essa nização do cérebro e que o órgão da lin-
questão de uma maneira diferente, pe- guagem fosse inserido com um design
culiar, e talvez até desprovida de senti- perfeito –, não há nada na biologia que
do. Ele te diz simplesmente para olhar nos diga que isso está errado. De fato,
para as especificações do design. Ima- muito do que se compreende na biolo-
gine uma criatura que tenha todas as gia é semelhante a isso. Se você é um
nossas capacidades, mas não a lingua- biólogo e está escrevendo um artigo pa-
gem. Então, imagine um primata va- ra um jornal científico sobre evolução, a
gando há 100 mil anos e que fosse co- hipótese (ou hipótese nula) inicial é a
mo nós: o mesmo sistema perceptivo, o de que não houve seleção. Você deve
mesmo sistema articulatório, as mesmas fornecer um argumento para mostrar
esperanças, mesmos medos, tudo, en- que houve seleção, porque as coisas
fim, mas que não tivesse linguagem. que são compreendidas, em grande
Suponha, agora, que você seja um su- medida, acontecem porque essa é a ma-
perengenheiro e lhe digam: “OK, colo- neira pela qual a bioquímica trabalha.
que um órgão de linguagem nessa coi- Se você pega determinadas proteínas,
sa, que será usado pelos outros órgãos. vamos dizer, elas não são mais selecio-
Você tem permissão para fazê-lo perfei- nadas do que os flocos de neve. Isso é
to”. Bem, o programa minimalista per- simplesmente o que acontece sob con-
198 ENTREVISTA

dições particulares de complexidade, e


não sabemos até onde isso vai. Tão logo
ultrapassamos as estruturas simples, es-
tá-se simplesmente no espaço cósmico.
Assim, essa é a única diferença. O pro-
grama minimalista está perguntando,
justamente, se nós não obtivemos, por
algum estranho fato biológico, algo co-
mo um design perfeito para um sistema
que precisa adequar-se a certas especi-
ficações para poder, em absoluto, fun-
cionar.

Tradução: Kátia Maria Pereira de Almeida


Revisão técnica: Carlos Fausto

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