Anda di halaman 1dari 98

A longa sombra da casa.

Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário


jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

327

A LONGA SOMBRA DA CASA. PODER DOMÉSTICO,


CONCEITOS TRADICIONAIS E IMAGINÁRIO JURÍDICO
NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA DO ANTIGO REGIME À
MODERNIDADE1
THE LONG SHADOW OF THE HOUSEHOLD. DOMESTIC
POWER, TRADITIONAL CONCEPTS AND “LEGAL IMAGERY”
IN BRAZIL’S PASSAGE FROM THE ANCIEN RÉGIME TO
MODERNITY
Airton Cerqueira-Leite Seelaender2

Resumo: Abstract:
Vista como uma unidade social autogovernada Regarded as a self-governed social unity which
que agregava, em uma pacificadora estrutura comprised, in an orderly hierarchical structure,
hierárquica, um chefe natural e seus dependen- a “natural master” and his subjects (wife, off-
tes (mulher, filhos, criados e escravos), a casa spring, servants, slaves, etc.), the “Ancien Ré-
do Antigo Regime serviu de modelo a várias gime” household was the inspiring model for
instituições, inclusive ao Estado. Surgiram ten- many institutions, including for the State itself.
sões, porém, à medida que este veio a regrar However, as the state started to legislate about
mais pelo direito a vida de tais dependentes e household relationships, thus increasing its in-
a interferir mais, desse modo, em âmbitos ex- terference in areas of domestic power that had
trajurídicos (ou só superficialmente regulados) remained almost untouched by statutes before,
do poder doméstico. Tais tensões, por sua vez, the resulting tensions had a high impact on po-
acabaram tendo forte impacto no debate político litical debate and legal thought. Challenging
e no pensamento jurídico. Afetando crenças ar- traditional opinions and deep-rooted beliefs,
raigadas e concepções tradicionais, essa expan- this State expansion by means of juridical-
são da estatalidade via juridicização teve o ônus ization had to be legitimated even in the Law
de legitimar-se até mesmo no campo do Direito, field, in which it was sometimes met by strong
onde não deixou de se defrontar com focos de resistance. In Brazil, the imagery of the house-
resistência. No Brasil, o imaginário da casa – só hold – only apparently effaced with the advent
aparentemente ultrapassado com o advento do of liberal individualism – would influence to
individualismo liberal – seguiria século XIX some extent jurists and politicians throughout
adentro influenciando, veladamente ou não, the 19th century and be echoed even in the first
políticos e juristas, tendo-se refletido inclusive Republican draft of the Civil Code.
no primeiro projeto de codificação civil da era
republicana.
Palavras-chave: Casa; Poder doméstico; pa- Keywords: Household; Domestic power; patri-
triarcalismo; escravidão; juridicização da vida archy; slavery; “juridicalization” of social life;
social; codificação civil. Civil Code.
1 – O presente trabalho é tributário de uma conferência proferida no IBHD/IHGB, em
2014. Agradeço, aqui, as indicações de leitura feitas por Joseli Mendonça, Milene Chávez
e Beatriz Mamigonian, bem como as sugestões recebidas, quando da palestra, de Alberto
da Costa e Silva.
2 – Doutor em Direito pela J.W.Goethe-Universität (Frankfurt). Professor da Universi-
dade de Brasília. Pesquisador do CNPq.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 327


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

1. O que foi a codificação civil, no Brasil? Deveríamos interpretá-la


como uma luta entre o poder político e o meio jurídico letrado? Um mo-
vimento elitista de modernização “de cima”? Uma conquista do indivi-
dualismo liberal-burguês? Ou um vão implante do estrangeirismo bacha-
relesco, desconsiderando o que seria a profunda essência de um suposto
“caráter nacional” ou “espírito latino-americano”?

Pequem ou não por reducionismo ou falta de rigor, todas essas lei-


turas já têm seus defensores. Tentarei aqui abordar, por isso mesmo, um
outro aspecto da questão – sem o desejo, entretanto, de formular gran-
diosas explicações monocausais. Falarei da codificação como espaço de
tensões entre um processo de expansão da estatalidade3 e algumas cren-
ças e concepções tradicionais, notadamente as relativas a estruturas não
estatais de poder.

2. Comecemos, aqui, com uma advertência feita por Feijó em 1839.


Criticando o governo do “Regresso”, o senador liberal lembrava que, “Se
o governo pode criar penas arbitrárias e mandar dar açoites nos escravos
dos outros, então estamos à discrição do governo”.4

A expansão da estatalidade, como vemos, já preocupava, à época,


este atento e sincero liberal. Para escândalo do ex-Regente, o governo já
estaria ousando, então, até mesmo “dar açoites nos escravos dos outros”.
Clara ofensa ao Direito de propriedade; clara ofensa à liberdade indivi-
dual dos cidadãos. Ainda mais clara, porém, era a incômoda invasão de
um espaço visto como não estatal, de uma esfera de domínio senhorial
que acolhia mal interferências legislativas. Os ouvintes de Feijó sabiam
do que se tratava: a “casa” estava sendo invadida pelo governo.

Feijó alertava não só seus desprezados desafetos, mas também aque-


les que via como “homens de honra” dentro do Senado. Seu discurso
poderia, em tese, deixá-los indignados, mesmo porque ninguém melhor

3 – Como dito em anterior palestra na Universidade Nova de Lisboa (2006), não entendo
que tal enfoque se deva necessariamente restringir, no Brasil do século XIX, só à codifi-
cação criminal e processual.
4 – FEIJÓ, Diogo Antônio. Diogo Antonio Feijó. Org. J. Caldeira. S.Paulo, 1999, p.191.

328 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

do que um “homem de honra” podia compreender a importância de de-


fender a “casa” contra as usurpações do Estado. Afinal, um “homem
de honra” – nos ensinava Feijó – tinha de compreender a centralidade
da “casa” na vida real e concreta. Mostrando todo o peso da velha ideia de
“casa” no imaginário social em pleno século XIX, o ex-Regente esclare-
cia: “O homem de honra” é quem “cumpre fielmente com as suas obriga-
ções de pai, de esposo e de amo: seus domésticos se julgam felizes em o
servir, porque ele os trata mais como filhos do que como servos”5.

Pensava-se aqui, como vemos, em um mundo doméstico permeado


por poderes próprios, calcados em disciplinas próprias e em um discur-
so legitimador que até podia ganhar feições liberais – mas que precedia,
no fundo, a recepção entre nós do liberalismo. Um mundo onde méto-
dos doces de controle combinavam-se com métodos nada doces, como
a palmatória e o chicote. Uma esfera que preexistia ao discurso civilista
dos bacharéis ainda escassos ou às espasmódicas interferências vindas do
esquálido aparato estatal do Império. Um espaço consolidado muito an-
tes da proteção constitucional ao domicílio e da intensificação do regular
jurídico das relações familiares. Um mundo que até podia ser lido a partir
da dicotomia Direito público/Direito privado, mas que na verdade pres-
cindia dela, reproduzindo-se e legitimando-se socialmente pelo costume,
pelo peso da inércia e pela naturalização do corriqueiro. Aqui a proprie-
dade pesava, mas longe estava de ser tudo. Aqui as regras – vistas como
jurídicas ou não jurídicas – pesavam, mas não eram tudo6.

Se a história do Direito brasileiro pretende ser escrita sobre o Brasil,


deve levar em conta o antigo papel dessa esfera no imaginário coletivo.
Deve considerar não só as estruturas tradicionais da nossa sociedade, mas
também os próprios conceitos usados, nesta última, para a compreensão
das suas próprias instituições.
5 – Apud RICCI, Magda. Assombrações de um padre regente. Campinas, 2001, p.284.
6 – A experiência diária, desde tenra idade, com a escravidão há de tê-la feito parecer
natural a muita gente, mesmo aos mais ávidos leitores de livros sobre a liberdade. Como
já anotava, há décadas, Evaristo de Moraes, “não escasseiam sinais de que a mentalidade
comum nada enxergava de anormal no regime escravocrático” (MORAES, Evaristo de. A
escravidão africana no Brasil. Brasília, 1998, p.54).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 329


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Um destes conceitos era justamente o de “casa”, correspondente a


uma estrutura socioeconômica, política e familiar frequentemente vista,
no passado, como a unidade básica da comunidade e mesmo como o mo-
delo natural de organização para o Estado.

Idealmente concebida como uma harmônica unidade econômica e


familiar submetida ao reinado de um “pai de família”, a casa deveria fun-
cionar tanto quanto possível como uma “autarquia econômica”– mesmo
que, como unidade de produção, fornecesse açúcar ao mercado ou nele
arrumasse escravos e ferramentas7. Em suas relações com o Estado, a
casa deveria conservar uma ampla autonomia, regulando seu autogover-
no por um saber específico (a “oeconomia”), vinculado não só ao que se
supunha ser a “natureza das coisas”, mas também àquela divisão interna
de funções que supostamente decorreria dessa mesma “natureza das coi-
sas”.

Vindos de intelectuais criticados por seu conservadorismo – como


Otto Brunner ou Gilberto Freyre –, os primeiros estudos sobre a casa fo-
ram acusados de dar demasiada atenção a estruturas tidas por singulares
(os engenhos da Zona da Mata, a “ganze Haus” nobre)8 e de idealizar as
7 – Na verdade, o modelo da “casa” não se opõe necessariamente às estruturas de mer-
cado. Não só pode haver aqui complementaridade: o próprio mercado pode se articular
a partir de “casas” como unidades básicas (pensemos nas relações das grandes fazendas
com o mundo exterior, na existência pura e simples de “casas” comerciais ou no “modus
operandi” do “Verlagssystem” adotado nas antigas corporações de ofício). A moderna his-
toriografia sobre a “casa” não tardou, por sinal, em registrar tal articulação no comércio
e nas manufaturas do Antigo Regime (cf.BRUNNER, Otto. Neue Wege der Verfassungs
– und Sozialgeschichte. Göttingen, 1968, p.109. Sobre a relação entre “casa” e mercancia,
cf. também p.105). Em pleno século XVIII, seguia ainda existindo no setor manufatureiro
a produção descentralizada em diferentes unidades domésticas. A ela não escapou nem
mesmo o fomentismo pombalino: esperava-se que os “Artifices” da Real Fábrica das Se-
das “Artifices” trabalhassem em suas “casas” (ESTATUTO DA REAL FABRICA. Lisboa,
1757), pp.7-8, XI).
8 – Sobre a crítica a esta aparente opção pelo mundo senhorial em Brunner, cf. – além
de textos contundentes como MILLER, Peter N. “Nazis and neo-stoics” Past and Present
176, pp.144-186, 2002, e ALGAZI, Gadi. Herrengewalt und Gewalt der Herren. Frankfurt,
1996 – SIMON, Thomas. Gute Policey. Frankfurt, 2004, p.417, e a bibliografia ali indicada
(Opitz, Derks, Borgolte, Trossbach, Weiss). Simon adverte, contudo, que tal crítica pode es-
tar desconsiderando o real foco de Brunner e os condicionamentos decorrentes das próprias
fontes que este utilizara, i.e., da chamada “Hausväterliteratur” (cf. SIMON, Tomas. Op.cit.,

330 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

relações sociais anteriores ao liberalismo ou à industrialização9. O fato,


no entanto, é que o conceito de “casa” realmente desempenhava um papel
importante no imaginário do Antigo Regime, refletindo representações e
valores coletivos que, em certo grau, influenciavam e inspiravam a vida
dos agentes políticos e sociais. Uma história do Direito que não percebes-
se isso poderia até construir, abstrata e intelectualmente, perfeitas corre-
lações entre o que tratasse como “infraestrutura” e “superestrutura”, mas
decerto eliminaria a alteridade do histórico e se esqueceria da própria
sociedade10.

3. A ideia de uma “casa” unitária, naturalmente governada por um


pai/senhor/marido11, era um lugar-comum nas sociedades do Antigo Re-
gime, fazendo-se presente inclusive em Portugal e suas colônias.

p.417).
Gilberto Freyre, por sua vez, é incessantemente acusado de generalizar uma análise calcada
em uma situação específica da vida colonial, fechando os olhos inclusive a certa diversida-
de regional das formas de organização econômica e familiar.
9 – Não é preciso ir à origem social de G. Freyre para perceber o tom nostálgico que
permeia a sua suposta descrição objetiva (para tal conexão, cf., entre muitos outros, RI-
BEIRO, Darcy. Gentidades. S.Paulo, 2011, pp.13, 14, 20-1, 23, 55ss, 61, etc.). Quanto a
Otto Brunner, pode-se dizer que seu desconforto com as retroprojeções da historiografia
liberal refletia não só seu respeito à alteridade do passado, mas também uma aversão
pessoal ao próprio liberalismo (cf. aqui, entre outros, OPITZ, Claudia. “Neue Wege der
Sozialgeschichte?” Geschichte und Gesellschaft 20, 1994, esp. pp.93 e 95, e MILLER,
Peter N. Op.cit., p.154ss).
10 – Fruto de uma leitura tão dogmática quanto superficial dos pensadores oitocentistas
em que supostamente se basearia, a rígida e total distinção entre crenças e “realidade
social” leva por vezes, em nossa historiografia jurídica, ao esquecimento de algo óbvio:
crenças também compõem a “realidade social”, pelo menos enquanto fatores que poten-
cialmente influenciam decisões pessoais e comportamentos coletivos. As tensões entre a
realidade econômica e o imaginário social e jurídico, aliás, nunca escaparam à atenção de
tais pensadores, que também alertaram, inclusive, para o risco de automatismos exagera-
dos, no exame das relações entre os “fatos econômicos básicos” e a assim chamada “supe-
restrutura” (v., e.g., ENGELS, Friedrich. “Derivação... (Carta a F. Mehring)” in: MARX,
Karl. / ENGELS, Friedrich. História. Org. F. Fernandes. S.Paulo, 1983, p.465). Cientes
desse alerta, mesmo teóricos apegados à noção de “superestrutura” não têm hesitado, nas
últimas décadas, em ver no direito e em “outros domínios ideológicos” certa margem
de “autonomia relativa” (cf., por exemplo, GOLDMANN, Lucien. Ciências humanas e
filosofia. São Paulo, 1984, p.80).
11 – Tal processo de naturalização foi tão intenso que se refletiu até nas explicações de
outros assuntos em dicionários. Invocando o testemunho do óbvio ao dar exemplos de
figuras de retórica e elementos gramaticais, o Vocabulario portuguez e latino do Padre

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 331


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

O modelo disso não estava só no vínculo mental e jurídico entre a


família nobre e a “sua” terra12 – expresso no morgadio13 e seus equiva-
lentes estrangeiros. Das Escrituras à tripartição aristotélica homem/casa/
pólis14, da prestigiosa ideia clássica da “Oeconomia” ao costume, não

Bluteau (+1734) destacava a “sujeição” do “filho” ao “pai”, a identidade da “casa” com


os seus integrantes e as correlações “senhor”/”criado”, “senhor”/”escravo” e “pai”/”filho”
(cf. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario... Coimbra, 1712/1728, v.1, p.410; v.2, p.564; e v.5,
p.467-8). Se isso já ocorria em verbetes como “antistrophe” e “metonymia”, com muito
maior intensidade, é claro, evidenciava-se naqueles mais próximos da temática do pre-
sente ensaio. O relevo do poder doméstico na ideia de “casa” transparecia nas definições
de “amo” ( “Senhor da casa, que tem criados”), “Senhor” (como contraponto de “escravo”
e “criados”) e “Senhora” (idem). (v. BLUTEAU, Raphael. Op.cit., v.1, p.343, e v.7, p.581
e 582). Igualada, em uma de suas acepções, a “Geração” e “Familia”, a “casa” tendia a
ser vista como uma esfera a ser governada – destacando o dicionarista, no explicar do
termo “Governo”, que este também abrangia o “Governo da casa, ou governo domesti-
co” (v. BLUTEAU, Raphael. Op.cit., v.2, p.174, e v.4, p.104-5). Para uma análise dos
termos”casa” e “família” em Bluteau, cf. também CUNHA, M.S. da/MONTEIRO, Nuno
Gonçalves. “As grandes casas”. In: MATTOSO, José / MONTEIRO, Nuno Gonçalves.
(org.) História da vida privada em Portugal. S.l., 2011, p.202. Alertando a respeito do
uso medieval do termo latino “familia”– séculos antes, pois, de Bluteau – para designar
“o conjunto das pessoas dependentes de uma casa, de um castelo, de um palácio ou de uma
corte principesca”, BRUNNER, Otto. Op.cit., p.111. Quando Rocha Pita, por sua vez,
relatava o embarque de “casas” inteiras para a América, referia-se, na verdade, a famílias
ampliadas da nobreza, chefiadas por donatários e outras autoridades coloniais (cf., e.g.,
ROCHA PITA, Sebastião da. da História da América Portuguesa. S.Paulo, 1976, pp.60
e 63) – a estruturas sociais hierárquicas, portanto, como deviam ser, também, aquelas
“casas” com “quarenta ou cinquenta pessoas” em “suas famílias de portas a dentro” que
teriam sofrido, segundo o mesmo historiador setecentista, o impacto de epidemias do
século XVII (v. ROCHA PITA, Sebastião da. da Op.cit., p.170).
12 – Nas palavras de um destacado escritor lusitano do século XVII – Francisco Manuel
de Melo – o ramo da Filosofia que lida com a esfera da casa (a “Económica”) se refere
a “todas as condições de gente de que consta a república” – mas, ainda assim, “olha com
maior intenção para os grandes” (v. MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casa-
dos. Braga, 1996, p.85). É importante notar, aliás, que modelos ideais da nobreza podem
ser adotados por camadas bem mais amplas, inclusive no que tange à organização da
estrutura doméstica de poder. Aliás, como adverte Evaldo Cabral de Mello, o “patriarca-
lismo” não era, no passado, característica exclusiva da “família aristocrática” (v. MELLO,
Evaldo Cabral de. “O fim das casas-grandes”. In: NOVAIS, Fernando A.(org.) História da
vida privada no Brasil. S.Paulo, 1997, p.414).
13 – Sobre a relação casa/morgadio na nobreza ibérica, cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalves.
“Casa, casamento e nome”. In: MATTOSO, José / MONTEIRO, Nuno Gonçalves. Op.cit.,
p.133ss. Para o exame mais detido de um caso português concreto, cf. SENA, Maria Tere-
za. “O estudo da casa senhorial”. In: COSTA, F./DOMINGUES,F./MONTEIRO,N. (org.).
Do Antigo Regime ao liberalismo. Lisboa, s.d., p.192ss.
14 – Embora não falte hoje quem conteste a autoria aristotélica dessa tripartição ou res-

332 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

faltavam referências para legitimar a casa e descrevê-la como parte da


ordem natural das coisas.
A literatura portuguesa do Antigo Regime era pródiga em exemplos dessa
naturalização da casa, havendo mesmo autores – como Fragoso – que lhe
dedicaram extensas páginas15. Sendo parte da “Filosofia”, dizia Rodri-
gues Lobo no século XVII, “a Económica ensina” como governar “casa,
família, mulher, filhos e criados”16. Tratando de uma esfera autônoma, tal
governo devia ser paralelo ao estatal, como mostrava o clichê sintetizado
em 1650 por Dom Francisco Manuel de Melo: “o reino é casa grande e
a casa reino pequeno”17. A “Arte de Furtar” (1652) também tecia analo-
gias entre a casa e o reino18, prática que teria continuidade na literatura
ponsabilize uma deturpação tomista de Aristóteles pelo que seria um embaralhar medieval
do “poder econômico do senhor da casa” com o “poder de domínio político na ordem
pública” (v.BERTELLONI, Francisco. Op.cit., p.31 e 39-42), o fato é que, nas fontes do
Antigo Regime, invocava-se sem maiores angústias o filósofo grego à hora de lidar com
a casa, comparar sua gestão interna com a dos reinos e atribuí-la – como objeto – a um
campo específico do saber.
15 – Cf. a 3ª. parte de Regimen Reipublicae Christianae (1641), de Baptista Fragoso. Na
acepção de estrutura social, a casa não era mencionada, no entanto, só por estudiosos –
como termo de uso corrente, surgia em sermões, obras literárias e documentos oficiais.
Relatos diplomáticos, petições e cartas de servidores podiam referir-se a casas da nobreza
ou, para obter mercês ou dinheiro, aos prejuízos injustamente sofridos por uma casa, en-
quanto o seu senhor atendia aos interesses da Coroa (para uma dessas típicas lamúrias, cf.
MACEDO, Duarte Ribeiro de. Os cadernos de Duarte Ribeiro Macedo. S.l., 2007, p.223).
Já na época das Descobertas, Garcia de Resende deplorava os casamentos de filhos muito
moços, lembrando que “muyto mal pode (...) casa e filhos governar” quem ainda “deve
ser governado” (RESENDE, Garcia de. “Miscelânea”. In:Crônica de D.João II e misce-
lânea. Lisboa, 1991, p.369). Em suma – como também notou um atento estudioso das
elites lusitanas- “a casa era um conceito omnipresente”, fundamental à autocompreensão
da sociedade do Antigo Regime (MONTEIRO, Nuno Gonçalves. Op.cit., p.142- aqui
analisando escritos da 11ª. Condessa de Atouguia).
16 – LOBO, Francisco Rodrigues. Corte na aldeia. Lisboa, 1997, p.170. Sobre a distinção
entre a (o)economia e a Ciência Econômica no sentido atual, cf. as relevantes observações
de BRUNNER, Otto. Op.cit., p.103ss e 118ss (esp.p.120-121) e 127.
17 – MELO, Francisco Manuel de. Op.cit., p.85. Cf. também p.167-8. No mesmo sentido,
já salientava Bodin no século XVI: “(...) aussi est le droit gouvernement de la maison, le
vray modelle du gouvernement de la Republique” (apud KOCH, Elisabeth. Maior digni-
tas. Frankfurt, 1991, p.194). Melo também comparava os súditos às esposas e os reis aos
maridos (cf.MELO, Francisco Manuel de. Op.cit., p.189 – lugar-comum que encontramos
também em Erasmo e Althusius (cf.KOCH, Elisabeth. Op.cit., p.192 e 195).
18 – ANÔNIMO Arte de furtar. Lisboa, 1991, p.62-3 e 264. Não muito distante disso
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, politica, christãa e juridica. 3ª.ed.,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 333


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

antijesuítica setecentista19 e nos escritos dos mais modernos estadistas


lusitanos do século XVIII, como Alexandre de Gusmão20.
No Brasil colonial, não era preciso chegar às casas-grandes e senza-
las de Pernambuco e Bahia para entender a funcionalidade do conceito de
“casa”21. Mesmo na canhestra São Paulo do século XVII “a família pro-
prietária” – com seus agregados e cativos – era “a estrutura” de base da
organização da atividade econômica, constituindo o casamento “o modo
como se formava uma nova empresa produtiva”, com o dote tendo uma

Lisboa, 1759, p.32, 37 e 38. Para a equiparação seiscentista entre o Príncipe, Deus e o
“grande pai de famílias”, v. também AFRICANO, Atònio de Freitas. Primores políticos e
regalias do nosso rei. Lisboa, 2005, p.80 (obra datada de 1641).
19 – Cf. Compendio histórico do estado da Universidade de Coimbra (...). Lisboa: Na
Régia Oficina Tipografica, 1772, p.170.
20 – V. GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa, 1981, p.141. Na correspondência do
secretário de D. João V, a palavra “casa” relacionava-se não só à esfera doméstica do
próprio autor, mas também a unidades comerciais (como a de Martinho Velho Oldem-
berg) e a famílias nobres, suas terras e jurisdições conexas (cf. GUSMÃO, Alexandre de
Op.cit., pp.51, 113, 140-2, 145). Neste sentido específico também se empregaria o termo,
décadas depois, na “Petição de Recurso” de um antigo rival de Gusmão- Sebastião José
de Carvalho e Melo- a D. Maria I. Comparando as estratégias de gestão de sua “casa” às
das “opulentissimas casas da Alemanha”, o Marquês de Pombal justificava seu enriqueci-
mento no governo invocando os ganhos que teriam resultado da boa administração de um
patrimônio concentrado após a venda de “muitas quintas, casas, fazendas, e outros bens
de raiz, pertencentes ao morgado da sua casa” (apud SENA, Maria Tereza. Op.cit., p.190).
21 – A História, de Rocha Pita, e as Notícias soteropolitanas e brasilicas, de Vilhena,
não usam o termo só para descrever “casas” religiosas parcialmente autogovernadas
(cf.,VILHENA, Luís dos Santos. Cartas de Vilhena. Salvador, 1922, p.465, e ROCHA
PITA, Sebastião da. Op.cit., p.80, 91, 96, 98, 168, 185-6, 189, 203, 270, 286-7 etc.), mas
também para indicar as “casas” da elite do reino e da terra – como as “familias limpas
e cazas abonadas” outrora existentes em Ilhéus (v. VILHENA, Luís dos Santos. Op.cit.,
p.514. Cf. também, pp. 373, 389, 402,512, 543, 813 etc.) ou as “casas (em outros tempos
muito ricas)” que já estariam “quase exaustas” na América Portuguesa, a despeito do “nú-
mero de engenhos”, da “cultura das canas” e de outros “tantos gêneros ricos” (v. ROCHA
PITA, Sebastião da. Op.cit., pp. 70-1. Para menções esparsas a “casas” da nobreza, cf.
ROCHA PITA, Sebastião da. Op.cit., pp. 60, 61, 63, 71, 115, 128, 137, 149, 159, 171, 175,
183, 199, 200, 226, 230-1, 237, 241, 267, 273-4 etc.). Não faltam, tampouco, fontes do
Antigo Regime que falem das “casas e famílias” do Maranhão e Pará, do “governo eco-
nômico” de tais “casas” e da atuação conjunta de “pais de familia” e seus “filhos no (...)
comércio” de produtos da região (cf. o protesto da Mesa do Bem Comum contra a cria-
ção da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, vista como danosa tanto às “casas”
coloniais “com negócio estabelecido para o Reino” quanto às “casas, filhos e famílias”
dos comerciantes da metrópole- texto transcrito em CARREIRA, António. A Companhia
Geral. São Paulo, 1988, pp.26 e 30-1).

334 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

função essencial de capitalização22. Os grandes empreendimentos – como


as bandeiras- organizavam-se a partir de junções de famílias, contando
com recursos familiares23 e lideranças detentoras de poder doméstico24.
Em S.Paulo, a casa e suas relações seguiram desempenhando um papel
relevante no século XVIII ou mesmo no XIX, a despeito de certa tendên-
cia para a formalização dos negócios e sua estruturação jurídica em socie-
dades25– que, ao menos no âmbito da mercancia, podiam ser concebidas
e funcionar na prática como “casas” comerciais26. Ainda no século XIX,
os pequenos proprietários paulistas “tendiam a manter a propriedade em
comum com outros membros da família, sem uma sociedade formal”27.

Se estendermos esse olhar demasiado economicista28 à estrutura in-


terna das casas, entenderemos, também, por que os inventários paulistas

22 – V. NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. S.Paulo, 2001, p. 28.


23 – Segundo Muriel Nazzari, “o clã conduzia os negócios” (v. NAZZARI, Muriel.
Op.cit., p.44). Sobre a divisão dos ganhos (e.g., dos índios trazidos pelas bandeiras) e
seus reflexos nas sucessões, cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no
Brasil colonial. Rio de Janeiro, 1998, pp.36-7.
24 – Mesmo quando estivessem no exercício de funções estatais delegadas, os comandan-
tes efetivos das bandeiras se originavam de lideranças de famílias extensas e podiam gerir
as bandeiras, na prática, seguindo padrões típicos de esferas não estatais. Ao punir com
a morte, no meio dos sertões, um filho rebelde, estaria Fernão Dias isentamente desatado
de concepções prévias de poder patriarcal?
25 – No século XVIII, já havendo em S. Paulo sociedades juridicamente estruturadas
como tal, “a família” ainda “funcionava informalmente como uma companhia” – fato que
Nazzari também registraria em pleno século XIX (v.NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.177).
26 – Não se estranhe, pois, que em 1806 um negociante de Santos ocupasse – segundo um
levantamento então feito – “seus escravos na labutação dos negócios da casa” (apud SIL-
VA, Maria Beatriz Nizza da./GOLDSCHMIDT, Eliana.R./BACELLAR, Carlos de A.P.
“Do Morgado de Mateus...” In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. (org.) História de S.Paulo
colonial. S.Paulo, 2009, p.194). No mesmo ano, “associado com seu cunhado”, L.A. de
Souza tinha – segundo o Governador de S.Paulo – “a maior caza de Negocio” da “Capi-
tania, possuindo muitos Engenhos de Assucar com hum avultado N. de Escravatura” (v.
DOCUMENTOS INTERESSANTES. São Paulo, Unesp/Arquivo do Estado, 1990, v.94,
p.241).
27 – NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.177.
28 – Analisando as elites portuguesas, esclareceu Nuno Gonçalo Monteiro que a ideia de
casa não se restringia, na Idade Moderna, à dimensão econômica – ao menos no sentido
atual desse adjetivo. Vista em si mesma como um “valor fundamental”, a casa era então
entendida como “um conjunto coerente de bens simbólicos e materiais”, devendo os ho-
mens e mulheres a ela ligados contribuir para a sua “reprodução alargada” (MONTEIRO,
Nuno Gonçalo. Op.cit., p.137). Negando-se a retroprojetar na “casa” do Antigo Regime

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 335


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

do século XVII mencionam terras de escasso valor e índios sem valor


monetário declarável – não sendo muitos destes, em tese, legalmente es-
cravizáveis. Era óbvio naquele contexto o seu valor de uso para as famí-
lias como unidades de produção29 – a continuidade da casa exigia manter
incontestável o controle da sua mão de obra indígena. O testamento de
Luzia Leme elencava 225 índios; o de Manoel Preto, quase mil “peças de
administração”30.

Se o emprego da palavra “peça” era aqui um indício da escravização


concreta31, o uso do termo “administração”, na acepção tradicional des-

o individualismo e o economicismo próprios de ideologias surgidas posteriormente, tam-


bém Brunner frisou nela a “unidade”, o papel das “relações interpessoais” e o peso das
“atividades pessoais” (v. BRUNNER, Otto. Op.cit., pp.105, 108, 118 e 125) – vindo então
a alegar que a casa seria basicamente constituída sobre a “desigualdade de seus membros”
e sob o influxo de uma dominação monocrática (cf. BRUNNER, Otto. Op.cit., pp.111ss e
122, e, de certo modo, BRUNNER, Otto. Op.cit., p.193)
29 – Cf. NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.39ss, sobretudo p.41.
30 – Cf. NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.41. Nesse estudo, demonstra-se que não raro se
abriam, inclusive, inventários com passivos maiores que os ativos, provavelmente no
intuito de organizar a distribuição dessa mão de obra (cf. NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.
40. Sobre a apropriação e transmissão de índios no âmbito das famílias, cf. também, entre
outros, SILVA, Maria Beatriz Nizza da. “São Vicente, capitania donatarial”. In: SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. História de S.Paulo..., p.57ss). Para uma tentativa setecentista
de impedir, em Curitiba e Paranaguá, que juízes ordinários mandassem avaliar “os Ca-
rijós” que haviam estado sob a “administração dos defuntos”, v. PROVIMENTOS DO
OUVIDOR PARDINHO. Curitiba, 2001, p.65 e 148. Marcante nas regiões de expansão
da América Portuguesa, a participação dos índios no patrimônio da casa colonial foi re-
gistrada por servidores da Coroa e apologistas das companhias pombalinas. Até as leis
em favor da liberdade indígena se tornarem menos ineficazes, a “multidão de Indios”
teria sido, segundo Arouche Rendon, “o grande Cabedal dos Paulistas”. Posteriormente,
a libertação daqueles teria empobrecido “as mais ricas Cazas” da capitania (v. RENDON,
Joze Arouche de Toledo. (1990), “Plano...” In: DOCUMENTOS INTERESSANTES. São
Paulo, v.95, p.96. Fenômeno semelhante se teria dado no Maranhão, com “a liberdade dos
Índios” levando à “suma pobreza” os colonos, “privados de quem os servisse” (v. CAR-
REIRA, António. Op.cit., p.62). A fortuna da fórmula “peças de administração” mereceria,
por si só, um estudo monográfico, do ponto de vista da História do Direito. Por enquanto,
os trabalhos mais úteis resvalando o tema são oriundos da História Social – como os es-
tudos pioneiros de John Manuel Monteiro (cf., e.g., MONTEIRO, John Manuel. Op.cit.,
p.147ss. Cf. também SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família..., p.38 e 183-4,
e AMBIRES, Juarez D. “A administração dos índios...” In: ODÁLIA, Nilo./CALDEIRA,
João Ricardo de Castro. (org.) História do Estado de São Paulo. São Paulo, 2010, p.73ss).
31 – Como que em um ato falho, as fontes acabavam evidenciando assim a redução dos
índios – em princípio juridicamente livres – a unidades economicamente quantificáveis,

336 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

te32, mostrava como as relações de sujeição eram legitimadas, invocando-


-se um poder mais paternal, supostamente voltado à proteção33 e catequi-
zação: um poder exercido sobretudo na esfera doméstica, para disciplinar
e enquadrar selvagens, elevando-os espiritualmente. Na linguagem legal
da época, “domesticar” podia ser o mesmo que libertar da selvageria34,
mas essa idealizada libertação se dava pela sujeição a um pai de família,
que poria o índio para trabalhar supostamente em troca de vestes, comida
e acesso ao cristianismo35.
apropriáveis e transmissíveis. A “partilha de g(ente) forra” na S.Paulo seiscentista não era,
por sinal, um caso isolado – “para de tudo se fazer partilhas”, também as “pecças forras
do jentio da terra” foram lançadas no inventário de Gaspar Dias Peres, de Santana de
Parnaíba, de 1654 (cf. INVENTÁRIOS E TESTAMENTOS. São Paulo, 1998, v.46, p.90
e 1999, v.47, p.29). “Pessas (...) Do gentio da terra” também eram legadas no Maranhão,
no século XVII (v. o testamento de A.P. de Lemos em MOTA, A. da S./SILVA, Kelcilene./
MANTOVANI, José D. (org.) Criptomaranhenses e seu legado. São Paulo, 2001, pp. 38-
41, esp. p. 39).
32 – Sobre a discussão do alcance desta no âmbito colonial, cf. MONTEIRO, John Ma-
nuel. Os negros da terra. S.Paulo, 1995, p.149ss. Inspecionando o colégio jesuítico em
S.Paulo, mesmo um crítico da escravização disfarçada – o Padre L.Mamiani – admitia
que o sustento de “administradores ou parocos” derivasse dos índios, submetendo-se estes
últimos a um “serviço personal coacto”, mas proporcional e não abusivo (v. MONTEIRO,
John Manuel. Op.cit., p.152. Sobre a administração de índios em S.Paulo, abordando as
posições divergentes dentro da própria Companhia de Jesus, AMBIRES, Juarez D. Op.cit.,
pp.77-8 e 83ss).
33 – A conexão entre o poder doméstico do senhor e um “dever de proteção” deste em
relação aos camponeses e criados já era ressaltada na análise de Brunner (Op.cit., p.193,
e 1984, p.22-3) sobre a “casa” medieval. Para uma crítica ao posicionamento de Brunner,
bem como ao automatismo e à função ideológica dessa ideia de conexão, cf. ALGAZI,
Gadi. Op.cit., p.51ss., 104ss, 116ss e 121-2).
34 – Não faltam alvarás e leis falando em “domesticar” o silvícola. Como exemplo dis-
so, poderíamos citar desde logo os diplomas de 1596 e 1609 transcritos em THOMAS,
Georg. Die portugiesische Indianerpolitik. Berlim, 1968, pp. 204-207– em que, em um
paradoxo só aparente, o “domesticar” do nativo por “religiosos” vinha ligado à “liberda-
de” indígena, compreendida como oposto da escravização ilícita (cf.Alvará de 30/7/1609,
na p.205). No final do período colonial ainda se associava “policiar e amansar” os ín-
dios – i.e., pacificá-los e “civilizá-los”, integrando-os à sociedade colonial – com a sua
domesticação. Vilhena falava em “índios domésticos, e civilizados”, “índios domésticos”
e “domesticados” (VILHENA, Luiz dos Santos. Op.cit., pp. 545, 664, 857 e 868). Era
“domesticando multidoens de barbaros” que se poria fim à “fereza” dos silvícolas, que
lhes tornaria, segundo o autor, “indiferente (...) o comerem hum leitão ou hum homem”
(VILHENA, Luiz dos Santos. Op.cit., p. 462).
35 – É vasta a bibliografia sobre o tema, que também mostra nuanças no quadro aqui
retratado. Para uma análise densa no nível local, cf., e.g., BRIGHENTE, Liliam Ferra-
resi. Entre a liberdade e a administração particular. Curitiba, 2012. No Grão-Pará, no

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 337


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Converter nômades em roceiros exige poder disciplinar – um amplo


poder disciplinar doméstico, descentralizado e não estatal, o qual também
era essencial para a escravidão negra36. Não há maior ingenuidade do que
buscar, em leis extravagantes coloniais ou mesmo no Código Criminal do
Império o cerne do controle social dos escravos37. Tal cerne não deixa de
aparecer ali porque exista uma tendência atávica lusitana à má percepção
das coisas ou porque os deputados liberais do fim do Primeiro Reinado
fossem todos cínicos incorrigíveis – provavelmente, o que então havia era
a noção, arraigada nas mentes e confirmável pela experiência, de que as
punições usuais dos escravos pertenciam à esfera da casa e ali seguiriam
sendo aplicadas, ao menos em parte, de modo minimamente funcional38.
final do século XVIII, um colono ainda podia legitimar com um termo de educação e
instrução suas pretensões de explorar por algum tempo – com exclusividade – o tra-
balho dos índios não aldeados que houvesse trazido das matas (cf. SAMPAIO, Patrícia
Melo. (2006), “Viver em aldeamentos”. In: LARA,Silvia Hunold. /MENDONÇA, Joseli
Maria Nunes.. (org.) Direito e justiças no Brasil. Campinas, 2006, pp. 39-40). Segundo
um documento de 1809, “com o pretexto de (...) doutrinar” os indígenas de Guarapuava,
particulares os seguiam então recolhendo “para suas casas, para seu serviço” (v. LIMA,
Francisco de Chagas. “Memoria...” In: SALLAS, A. (org.) Documentação sobre povos
indígenas. Curitiba, 2001, p.76). Contra idealizações recorrentes, deve-se lembrar, contu-
do, que mesmo a cristianização no âmbito doméstico podia se dar, no Brasil colonial, com
argumentos não muito piedosos. Falando dos negros que não iam à missa, perguntava
retoricamente um jesuíta ao público de senhores a que sua obra se destinava: “Não há
castigos, não há correntes, não há grilhões em vossa casa?” (BENCI DE ARIMINO, Jorge.
Economia christãa dos senhores no governo dos escravos. Roma, 1705, p. 234 (IV, 232).
36 – Em recente polêmica, um destacado pesquisador português teve de chamar a atenção
de alguns de nossos historiadores para essa obviedade – já registrada pela antropólo-
ga Manuela Carneiro da Cunha nos Anos 80 (cf. HESPANHA, António Manuel. Calei-
doscópio do Antigo Regime. São Paulo, 2012, pp. 34-5, e CUNHA, Manuela Carneiro
da. Antropologia do Brasil. São Paulo, 1986, p.134). Tão clara parecia, no Império, a
dependência da ordem social em relação ao controle senhorial descentralizado, que tal
correlação era exposta como pressuposto evidente até em ponderações de abolicionistas
moderados. Ao se opor a uma prefixação do termo final do regime escravista, advertia
Perdigão Malheiro que os escravos existentes, “tomando a nuvem por Juno”, pensariam já
ter sido declarados livres. Com isso, “essa sujeição doméstica, que os contém, romper-se-
-ia com estrondo, repercutindo na ordem pública e bem do Estado” (MALHEIRO, Agos-
tinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Petrópolis, 1976, v.2, p.164- g.n.).
37 – Não faltam indícios, todavia, da preocupação existente, no feitio do código, em adap-
tá-lo às singularidades de uma sociedade escravista (cf., por exemplo, os arts.14-§6, 16-
§7, 28-§1, 60, 113, 114, 115, 179, 292, 299 etc. Cf. também a análise – útil, posto que cega
aos conflitos internos das elites no final do Primeiro Reinado – de MALERBA, Jurandir.
Os brancos da lei. Maringá, 1994, p.166ss).
38 – No dia a dia de uma sociedade escravista, notadamente fora das grandes cidades, é

338 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

A atuação estatal tendia a ficar, nesse contexto, relegada às situações mais


graves ou aos curto-circuitos do poder senhorial, corrigindo abusos ou
disfunções deste, quando perigosos para valores coletivos (segurança pú-
blica, moralidade, conservação das fronteiras estamentais)39.

possível que o difuso controle social exercido pelo poder doméstico venha a contribuir
mais efetivamente para a ordem estatal do que o aparato público contribui, na prática,
para a imposição direta do poder senhorial sobre os escravos. Não por acaso, o “Regla-
mento para la Educación, Trato y Ocupaciones de los Esclavos” de Porto Rico (1826)
e o “Reglamento de Esclavos de Cuba” (1842) tentavam induzir os amos a ensinar aos
escravos “a obediência que devem às autoridades constituídas” (REGLAMENTO PARA
LA EDUCACIÓN. In: SAMORAL, Manuel Lucena. Los códigos negros de la América
Española. Alcalá, 1996, p. 286, Cap. II, art.6., e REGLAMENTO DE ESCLAVOS. In:
SAMORAL, SAMORAL, Manuel Lucena. Op.cit., p.295, art.5). Pelo mesmo motivo,
talvez não soasse de todo absurda, no Brasil oitocentista, a visão do Padre Ibiapina como
subversivo perigoso, por corroer a ordem não só pregando a desobediência direta a um
governo infestado de maçons, mas também – segundo algumas fontes – insuflando a fuga
de escravos e a rebeldia filial (cf. SECRETO, Maria Verónica. (Des)medidos. Rio de
Janeiro, 2011, p.37). Em 1835, temendo infiltrações subversivas no Rio, a Polícia condi-
cionava o desembarque de escravos vindos da Bahia à apresentação de folha corrida. O
ministro Alves Branco determinou, no entanto, que se excluíssem de tal exigência aqueles
“que acompanham famílias, e pessoas sem suspeita, que (...) os trazem para seu serviço”
(apud CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão. S.Paulo, 2012, pp.58-9). Perigoso
não era, pois, o escravo mantido sob o controle do amo, mas sim o negro desterrado da
casa, remetido à venda na Corte. No Antigo Regime, acreditava-se que a ordem geral
dependeria, de certo modo, da atuação do poder doméstico. Isso ajuda a compreender,
ao menos em parte, não só o horror ao “quilombola” e ao “marrão”/“cimarrón”, mas
também a preocupação dos reis-legisladores com o cigano e com “qualquer homem que
não viver com senhor, ou com amo”, não tendo à parte ofício nem negócio próprio (Ord.
Fil., V.LXVIII). Refletindo expectativas e convicções corriqueiras, nosso antigo direito
conferia ao régulo doméstico um amplo poder disciplinar, excluindo a casa da incidência
de normas penais de caráter tendencialmente geral. Segundo as Ordenações, por exemplo,
não era crime, encarcerar filhos e escravos para os “castigar e emendar de más manhas
e costumes” (Ord. Fil., V.XCV.4). O Código Criminal de 1830 situava entre os “crimes
justificáveis” tanto as punições senhoriais quanto os males destas decorrentes, desde que
o “castigo” houvesse sido “moderado” para os padrões da época (art.14, §6).
39 – Não se deve seguir, aqui, a ingênua tendência de alguns autores para ignorar a con-
cretude dos poderes sociais difusos e para ler nosso passado escravista quase que exclusi-
vamente à luz das decisões estatais e da legislação geral. Essa miopia legalista e estatista
se atenua muitíssimo – mas não se supera de todo – dando-se maior atenção às posturas
locais e aos arquivos judiciais (para um exemplo de bom uso conjunto de fontes dessas
duas esferas, cf. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Senhores de poucos escravos. São Pau-
lo, 2005). Dentro desse quadro um tanto problemático, o exame de fontes não estatais e
mesmo a leitura “a contrapelo” das fontes oficiais podem ser, sem dúvida, de certa utili-
dade – desde que atentemos, porém, para as limitações da cultura letrada no expressar das
concepções e das práticas sociais dos “rústicos” (HESPANHA), sejam eles escravos ou

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 339


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Quando a Coroa se metia na esfera doméstica, não raro o fazia vi-


sando impedir que o todo da ordem senhorial fosse posto em risco40 por
condutas dos próprios senhores41. Por meio da legislação de “polícia”,
juridicizavam-se e estatizavam-se decisões que, em tese, seriam da casa e
do senhor que a regia: Pode este deixar o seu escravo embebedar-se, es-
timulando o ócio dos escravos dos outros42? Mesmo em um país cheio de
mato, podem os escravos portar facas?43 Em uma sociedade estamental, é
tolerável que alguns escravos e escravas da elite se vistam acintosamente
de seda ou finos tecidos de linho?44 Pode o poder doméstico legitimar a

fazendeiros analfabetos.
40 – Risco que talvez tenha sido particularmente grave, aliás, quando alguns senhores
rurais, para ficarem “seguras as suas casas”, entraram em “trato oculto” com “os negros
de Palmares”, fornecendo-lhes até “armas, pólvora e balas”. Segundo um indignado his-
toriador – “sobrinho e herdeiro da (...) casa” de um desembargador colonial – nem a pre-
visão de “gravíssimas penas” nem as punições ocasionais após “várias devassas” teriam
impedido essa escandalosa colaboração, enquanto “padecia Pernambuco” a “calamidade”
da “opressão dos Palmares” (v. ROCHA PITA, Sebastião da. Op.cit., pp. 211 e 215-6).
41 – Tal constatação se aplica mesmo ao direito criminal do Império. Buscando interferir
na esfera da casa para coibir ações da escravaria perigosas para toda a ordem social, este
estatizava o lidar com algumas condutas, dando às autoridades públicas suporte para apli-
car a escravos punições economicamente prejudiciais aos seus próprios donos (e.g., a pri-
são, que afastava o condenado do trabalho). As normas vigentes podiam, inclusive, blo-
quear a via recursal nas condenações por crimes mais graves (cf. a Lei n.4, de 10/6/1835,
combinada com o Decreto n.1310 de 2/1/1854). A orientação legislativa nessa matéria
não impediu, porém, que os herdeiros de um senhor assassinado em Franca ousassem
impetrar habeas-corpus em favor do escravo homicida, “para repartirem entre si o valor”
deste (sobre o caso, v. FERREIRA, Ricardo Alexandre. Op.cit., p.91. Para outro caso de
priorização, no lidar com escravos homicidas, das conveniências financeiras da casa cf.
FRANCO. Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. S.Paulo,
1997, pp. 158-9, n.107).
42 – Em uma representação ao rei datada de 1732, uma autoridade colonial alertava para
os riscos gerados pela condescendência de alguns senhores. Deixando suas negras man-
terem vendas, estes estariam de certo modo estimulando a disseminação do jogo, da em-
briaguez e da violência, atingindo assim a escravaria alheia e gerando prejuízos à própria
Fazenda Real (cf.a transcrição feita em FIGUEIREDO, Luciano R. O avesso da memória.
Rio de Janeiro, 1993, pp. 217-8).
43 – Já abordada nas Ordenações Filipinas (V.LXXX.7 e 13), tal matéria foi várias ve-
zes regulada no direito anterior à Abolição – inclusive mediante posturas locais. Para
a legislação análoga, no império colonial espanhol, cf. CÓDIGO DE LEGISLACIÓN.
in:SAMORAL, M.L. Op.cit., pp. 214-5. Sobre situações excepcionais em que se cogitava,
pelo contrário, de armar escravos, cf. BELLOTTO, Heloísa L. Op.cit., pp. 84 e 95.
44 – Não faltaram normas sobre tal tema – então com maior relevo para a ordem social
do que hoje perceberíamos, à primeira vista (cf., e.g., o Cap.IX da Pragmática portuguesa

340 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

“desordenada ambição” dos senhores mineiros que, segundo uma autori-


dade colonial em 1732, castigariam suas escravas até que estas aceitas-
sem “usar mal de seus corpos”45, prostituindo-se em prol da prosperidade
da casa46?

Invocando interesses da coletividade ou da Coroa, esta e seus ser-


vidores fizeram sucessivas tentativas de impedir a atuação de “negras de
tabuleiro”, não raro escravas que trabalhavam em favor de seus donos
ou com o assentimento destes47. Metendo-se com a escravaria alheia em
nome da ordem pública, o Conde de Assumar quis condicionar as alfor-
rias a uma permissão governamental48. Em seus diplomas, a Coroa se
de 24/5/1749 – tentando pôr fim à “liberdade de (se) trajarem os negros, e os mulatos”
como “as pessoas brancas” – e, para o Caribe espanhol, o Cap.9 do código negro de
1784- v.CÓDIGO DE LEGISLACIÓN, p.211-2). No Antigo Regime, temia-se que o luxo
nas vestes ocasionasse a ruína das casas ou viesse a ocultar e embaralhar as fronteiras
estamentais. Sobre as pragmáticas lusitanas dos séculos XVII e XVIII, bem como sobre
outros diplomas destinados ao controle de roupas e chapéus, cf. SEELAENDER, Airton
Lisle Cerqueira-Leite. “A polícia e o rei-legislador”. In: BITTAR, E. (org.) História do
direito brasileiro. S.Paulo, 2003, p.99ss (esp.p.101-2); SEELAENDER, Airton Lisle Cer-
queira-Leite. Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre. Frankfurt, 2003, p.48ss, etc.;
e – vendo na cor já um óbice a tal embaralhar na América Portuguesa – LARA, Silvia
Hunold . Fragmentos seiscentistas. S.Paulo, 2007, p.87ss e 96ss.
45 – Cf. a “Representação do Secretário das Minas ao Rei” (1732), transcrita em FI-
GUEIREDO, Luciano R. O avesso..., pp. 217-8. Falando da “desordenada ambição” dos
senhores mineiros, acusava-os o subscritor do documento de se excederem no “castigo e
mau tratamento” de suas escravas, para forçá-las a usar “mal de seus corpos”.
46 – Também registrando tal prática, Benci censurava os senhores que encaminhavam
suas escravas à prostituição, “repartindo por elas o sustento da casa” (BENCI DE ARIMI-
NO, Jorge. Op.cit., pp. 114-5 (II, 117). Para a análise de um caso sobre tal assunto no juízo
eclesiástico, cf. SILVA, Marilda Santana da. Dignidade e transgressão. Campinas, 2001,
p.168. Para uma negação seiscentista do direito do amo aos ganhos obtidos pela escrava
com o “uso infame do corpo”, cf. REBELO, Fernão. “De Obligationibus Justitiae...” In:
CALAFATE, Pedro . (org.) A escola ibérica da paz. Coimbra, 2015, pp. 227 e 231.
47 – Não raro isso ocorreu nas regiões cuja economia mais interessava à Coroa, levando-
-a a produzir uma legislação de “polícia” particularmente rigorosa. Em agosto de 1771
proibiam-se “em todos os arraiais diamantinos assim as negras do tabuleiro, como no
Tijuco, as vendas por casa das negras e dos negros (...)” (v. a transcrição em MACHADO
FILHO, Aires da Mata . Arraial do Tijuco. São Paulo/Belo Horizonte, 1980, XII, p. 23).
No Direito colonial francês, tampouco faltaram normas tentando suprimir ou controlar
mais rigidamente o comércio praticado por escravos (cf., e.g., os arts.18 e 19 do “Code
Noir” de 1685 e 15 do “Code Noir” de 1724).
48 – Cf. LARA, S.H. Fragmentos, p. 273. Na Câmara de Mariana também teriam transita-
do, em 1735, propostas para restringir alforrias, vedando-se as pagas. “Os pais de família

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 341


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

apresentava como a defensora do bem comum e da própria racionalidade


da economia escravista, em um meio colonial em que a casa poderia des-
truir burramente seus próprios interesses49.

A ideia de uma função racionalizadora da Coroa se reforçou con-


sideravelmente no século XVIII, conduzindo a uma vasta legislação de
“polícia”, nos campos da economia colonial, da segurança, da educação
e da estrutura familiar. Buscando cada vez mais maximizar os supostos
fatores do poderio estatal – a agricultura, as manufaturas, o comércio e o
próprio tamanho da população –, o governo português passou a regular
mais detidamente a produção, os negócios e as relações domésticas. Com
isso, veio a interferir cada vez mais em assuntos tradicionalmente vistos
como pertencentes, no todo ou em parte, ao campo autônomo da casa.

Formas tradicionais de ócio foram assim proibidas; atividades eco-


nômicas, dadas em monopólio. Regulando a vida das filhas dos outros, o
Rei dificultou sua remessa a conventos50. No processo de combate à dis-

da cidade” desejariam conter, com isso, a prostituição e a criminalidade (SCHWARTZ, S.


Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, 2001, p.215)- evitando talvez, assim, que decisões
de um senhor em sua casa pudessem afetar a ordem pública que devia escorar todas as
casas.
49 – Sobre a Coroa como garante do bem comum, cf., e.g., LARA, Silvia Hunold. “Se-
nhores da régia jurisdição”. In: LARA, Silvia Hunold./MENDONÇA, J. Op.cit., p.62.
Examinando e.g. algumas hesitações governamentais, no final do século XVII, no regular
das relações amo-escravo, Sílvia Hunold Lara e outros autores têm preferido destacar
aqui o extremo cuidado da Coroa, à hora de interferir no poder senhorial (cf. MARQUE-
SE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo. São Paulo, 2004, p.65-68, e LARA, Silvia Hunold.
“Os escravos e seus direitos”. In: NEDER, Gizlene. (org.) História e direito. Rio de Janei-
ro, 2007, p.137). Não é preciso , porém, opor-se a tal ponto de vista, para se perceber que
retiradas estatais de campos invadidos pela legislação são algo muito distinto de uma
inércia respeitadora de fronteiras tradicionais. A rigor, até recuos legislativos poderiam
indicar, em tese, que uma matéria antes vista como não estatal se teria tornado, de certa
forma, estatalmente regulável.
50 – Medidas como esta talvez não refletissem apenas a preocupação do Rei-legislador
com o tamanho da população e seus supostos ou reais impactos sobre o que se considera-
va, à época, serem as bases verdadeiras do poderio estatal (a abundância de mão de obra, o
baixo número de religiosos “ociosos”, a expansão da produção agrícola e manufatureira, a
prosperidade dos súditos em geral, o alto número de contribuintes e de recrutas potenciais
etc.). Podiam indicar, também, estar em curso um projeto de fortalecimento estatal capaz
de afetar estruturas e hábitos preexistentes, valorizando inclusive – quase que no rumo
de uma estatização da virtude – formas laicas de atuação social vistas, ao menos, pelo

342 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

criminação dos cristãos-novos, o pombalismo teria chegado até a impor


casamentos indesejados a famílias da alta nobreza51.

Vendo a lei como instrumento para pôr a casa a serviço de metas


estatais, a monarquia lusitana passou a interferir mais nos casamentos e
transmissões de bens. Esposos portugueses de índias brasileiras foram
proibidos de destratá-las: o projeto estatal de integração indígena no Pará
e no Maranhão devia, agora, prevalecer sobre o poder doméstico dos ma-
ridos52. Nesse entusiasmo por racionalizar a casa e os impactos desta na
ordem coletiva, surgiram até propostas de autoridades coloniais no senti-
do de proibir aos pais que transmitissem seus bens a filhos mulatos, vistos
como grupo étnico mais tendente à desordem53.

Tais ofensivas da estatalidade no terreno tradicional da casa não sig-


nificavam, porém, um desejo de destroçá-la. No âmbito da nobreza, o
pombalismo chegou a reforçar as amarras jurídicas da casa54. No geral,
não se esvaziou ali, muito, o protagonismo do pai, do marido e do se-
nhor55. Dos muitos poderes deste, o Estado só tentou tomar alguns – e não
raro o fez a pretexto de estar apenas combatendo “abusos”.

cristianismo tradicional, como moralmente inferiores à vida monástica.


51 – Sobre o que poderíamos chamar de refuncionalização da nobreza sob o pombalismo
e sobre a tentativa deste de interferir mais intensamente nas estratégias matrimoniais de
tal estamento, cf. a breve síntese apresentada em SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-
-Leite. Polizei..., p.20ss (esp. n.32) e a bibliografia ali citada.
52 – Aprovado pelo Alvará de 17/8/1758, o “Directorio” pombalino destinado a regular
a vida indígena no Pará e Maranhão incentivava “os matrimonios entre os Brancos, e os
Indios”, por serem tais uniões de interesse da Coroa. Para evitar que “o vinculo” daí re-
sultante degenerasse “em desprezo”, permitia ao Estado até mesmo controlar a harmonia
conjugal, prevendo que consortes briguentos fossem “secretamente castigados”, a mando
do Governo, “como fomentadores das antigas discórdias, e perturbadores da paz, e união
publica” (v. DIRECTORIO. Lisboa, 1758, pp. 36-37 – esp. n.88 e 90).
53 – Cf. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos, pp. 273-4. Datada de 1723, tal proposta
reapareceria em 1805 (cf. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos, p.373, nota 5)
54 – Cf., e.g., o diploma de 19/7/1775 publicado em SILVA, António Delgado da. Collec-
ção da legislação portugueza. Lisboa, 1828, p.45. Para uma precisa visão panorâmica do
tema, cf. MONTEIRO, N.G. Op.cit., p.149. Pontuais reforços legislativos da autoridade
paterna – para dificultar casamentos oficialmente vistos como demasiado desiguais – tam-
bém ocorreram na Espanha bourbônica e em suas colônias americanas (cf.ZORRAQUÍN
BECÚ, Ricardo. Historia del derecho argentino. B. Aires, 1996, pp.185-6).
55 – Preocupada com as “desordens (...) que perturbão a paz interior das familias” e “ar-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 343


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Muito embora o amplo poder disciplinar do régulo doméstico tivesse


respaldo nas Ordenações e nos costumes56, violências desusadas podiam
ser reprimidas pela Coroa como disfunções e “abusos”57. Quem matasse
a filha a faca por suspeitar de um namoro, na Vila Rica de 1720, podia
ter problemas com o Conde de Assumar – essa truculenta vanguarda da
estatalidade entre nós – e acabar decapitado na Bahia58.

Se a ideia de um paternalismo protetor importava para justificar so-


cial e juridicamente o poder doméstico do pai/marido/amo59, existia – ao
menos em tese – a possibilidade de as autoridades coloniais questionarem
tal poder em suas falhas mais graves. Assim, diante do pedido da Câmara
ruinão as casas”, a Coroa seguiria, no período mariano, proclamando a importância dos
deveres de “obediencia, e respeito” aos “chefes de familias”. Ainda que filhos maiores
de 25 anos pudessem contrair esponsais contrariando a vontade paterna, exigia-se deles
a formulação de um prévio pedido de consentimento, como que em uma homenagem
simbólica ao detentor do poder doméstico (v. CL 6.10.1784).
56 – O Livro V das Ordenações tratava diferentemente as ações lesivas à vida e à liber-
dade de locomoção, conforme fossem praticadas na esfera social geral ou no exercício de
poderes domésticos de senhor, pai e marido (cf., por exemplo, ORDENAÇÕES FILIPI-
NAS, p.1188 (V,XXXVIII, 1) e 1243 (V,XCV,2 e 4).
Analisando a eficácia social do vasto poder desses régulos domésticos, Tristão de Alencar
Araripe falava mesmo em “direito consuetudinário” (apud PINTO, Luiz de Aguiar Costa.
Lutas de família no Brasil. S.Paulo, 1980, p.124). E já Benci, no início do século XVIII,
registrava a relutância dos senhores em repassar funções punitivas às autoridades públi-
cas, mesmo quando as leis o exigiam (cf. BENCI DE ARIMINO, Jorge. Op.cit., p.191
(III, 188).
57 – Registre-se aqui, por sinal, que não se teve de aguardar o apogeu do Absolutismo
para obter textos que legitimassem a contenção de excessos no exercício do poder domés-
tico. À disposição dos letrados europeus já havia bem antes não só um vasto repertório
cristão de referências à piedade paterna, mas também algumas passagens específicas do
próprio Corpus Juris Civilis – a despeito da notória tendência romana de favorecer o pá-
trio poder (cf.D.5.37.12 e D. 5.48.9, bem como sua análise em RANGEL, Alan Wruck G.
Tous sont égaux sous le fouet. Saarbrücken, 2014, p.11ss).
58 – Sobre o caso, cf. PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Op.cit., p.126. Já destacando a ex-
cepcional energia do governo do conde – que teria cuidado, aliás, mais da “quietação” dos
moradores das Minas do que dos próprios “interesses que pudera adquirir para a sua casa”
senhorial – ROCHA PITA, Sebastião da Op.cit., p.276.
59 – Para um panorama da defesa doutrinária pré-jusracionalista da inferioridade fe-
minina (quia mulier, rusticus et idiota sunt aequiparata) e da consequente necessidade
de submissão das esposas aos maridos (caput feminae est vir), cf., entre outros, KOCH,
Elisabeth. Op.cit., p.178ss – que indica alguns dos pontos de apoio encontrados, pelos
jurisconsultos, no Corpus Iuris Civilis, nas Escrituras e na própria tradição do discurso
jurídico ocidental.

344 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

de Mariana, no sentido de que a Coroa autorizasse cirurgias para aleijar


parcialmente escravos fujões, uma autoridade colonial se escandalizava,
lembrando que “a maior parte desses captivos” fugiam de donos que “não
os sustentão e os não vestem e os não tratam com o amor e caridade
devida”60. A legitimação demandava, pois, alguma cessão de espaço às
formas doces de dominação61, pressupondo um dever de sustento e um
governo doméstico capaz de temperar o rigor com a graça.

De qualquer modo, a casa seguiu sendo, no Antigo Regime, modelo


de ordem até onde, em tese, não deveria estar. Fenômeno amplamente
verificável no meio colonial62, o concubinato não raro reproduzia o pa-
drão de poder da casa tradicional63. Daí por que mandar vigiar uma mu-
60 – Palavras de D.Marcos de Noronha, na Bahia, em 1756 (apud PINTO, Luiz de Aguiar
Costa. Op.cit., p.129). Sobre o episódio, cf. também SCHWARTZ, Stuart. Op.cit., p.247.
Não se falava, frise-se, só em “caridade”, mas em obrigações materiais do régulo do-
méstico e em “amor e caridade devida”. Devido pelo senhor era, pois, certo empenho
em tratar bem – sua “caridade”, ele a devia não só como cristão, mas também – ousarí-
amos sugerir – por sua própria condição de senhor, genericamente considerada. Se da
estrutura da casa defluía a sua condição, desta última resultavam, forçosamente, deveres
e obrigações conexos – como parecem dar a entender Benci de Arimino e vários outros
autores. A confiarmos em uma professora alemã que aqui viveu em fins do Império, ainda
no século XIX nossos fazendeiros julgavam não só bárbaro, mas também injusto negar
“o pão da caridade” aos negros que houvessem envelhecido ao seu serviço (BINZER, Ina
von. Os meus romanos. S. Paulo, 2011, p.62-3 – que também descreve, no entanto, como
outros observadores estrangeiros, a miséria de velhos ex-escravos – cf. BINZER, Ina von.
Op.cit., p.156, e KOSERITZ, Carl.v. Imagens do Brasil. S.Paulo, 1980, p.223).
61 – Sobre o tema, cf. – entre outros – LARA, Silvia Hunold. Fragmentos, p.158. Não
por acaso diplomas destinados a regular a escravidão legitimavam esta última – e a si
mesmos – afirmando que os “sagrados direitos da potestade econômica” sobre os cativos
seriam “os mesmos que o bom pai de família” devia “exercer entre seus filhos mais ama-
dos”. Se “a piedade, o amor e o sangue” inspiravam certa doçura na condução da prole ao
“caminho da honra e da virtude”, os sentimentos de “comiseração, humanidade e conveni-
ência própria” deveriam fazer o mesmo, “com maior razão”, no tratamento da escravaria
(CÓDIGO DE LEGISLACIÓN, pp. 235-6- Cap.31).
62 – Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. de A. O avesso, p.125. No mesmo sentido o relato de
VILHENA, L. dos S. Op.cit., p.479.
63 – Cf. TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família. S.Paulo, 1999, pp.105-6, bem
como pp. 66 e 83-4. O fenômeno não cessou, é claro, em setembro de 1822. Analisando
o concubinato como prática difundida em todos os extratos da população matogrossense
da era imperial, percebeu também M.A. Peraro que ele podia configurar “uma conjugali-
dade” que se espelhasse “nos moldes do casamento legítimo” (PERARO, Maria Adenir
., Op.cit., p.138), gerando assim estruturas familiares não de todo dessemelhantes às que
corresponderiam aos ideais da tradição.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 345


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

lher livre, ou impor a uma escrava controles de um “negro seu vigiador”


constituíam indícios de suserania doméstica64. Suserania que devia existir
em especial para a mulher legítima, que estava para o seu marido como o
vassalo para o seu rei65.

Proteger a casa e expandi-la é, para a Coroa, criar as precondições da


própria ordem social na América Portuguesa. Em 1721, após diagnosticar,
“que os povos das minas (...)”, vivendo em desordem, “facilmente rom-
pem em alterações e desobediências”, recomendava o Rei ao Conde de
Assumar que não só “as pessoas principais”, mas também “quaisquer ou-
tras”, tomassem “o estado de casados”, fixando-se onde quisessem “com
suas famílias reguladas”. Com isso, previa, “ficarão mais obedientes às
minhas reais ordens, e os filhos que tiverem do matrimônio os farão ainda
mais obedientes”66.

64 – Ao menos é o que parecem dar a entender as fontes transcritas por FIGUEIREDO,


Luciano R. de A. O avesso, pp.125 e 129.
65 – Representativas dessa visão são as palavras de MELO, Francisco Manuel de. Carta,
p.189.
66 – V. a “Carta do Rei a Dom Pedro de Almeida” transcrita em FIGUEIREDO, Luciano
R. de A. O avesso, p.222. Para uma análise do tema, cf. também FIGUEIREDO, Luciano
R. de A. O avesso, p.122. Sobre o casamento como óbice à vadiagem na visão do Morga-
do de Mateus, cf.BELLOTTO, Heloísa L. Op.cit., p.207. Para um exemplo concreto da
valorização do casamento até entre as autoridades coloniais, cf. as informações enviadas
em 1799 a D.Rodrigo de S. Coutinho por D.Fernando J. de Portugal, elogiando um de-
sembargador da Relação da Bahia por ser, além de “limpo de mãos”, “serio, sisudo, grave,
capaz e previdente”, também homem “casado” de vida honesta e recatada (transcrito em
VILHENA, Luiz dos Santos. Op.cit., pp. 373-4). A defesa do casamento como meio de
disciplinamento social chegaria à gestão das senzalas no século XIX- um “Manual do
agricultor” de 1863 frisava que “o preto casado (...) tem mais adesão à casa de seu senhor”
(apud MARQUESE, Rafael de Bivar. Op.cit., p.292. Sobre o intento disciplinador, à épo-
ca, das propostas de fomentar a família entre as “classes mais despossuídas” (incluídos
aqui os negros já emancipados), cf.também PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face. Curi-
tiba, 1999, p.111).

346 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

A Casa e o Reino se completavam67, protegiam-se reciprocamente68


– mas também vivenciavam tensões. E aqui entra um fenômeno que nos
interessa particularmente: o da juridicização das relações casa-Estado.

A casa não era vista como esfera essencialmente jurídica69- e era jus-
tamente isso que fazia útil à Coroa a equiparação casa/reino, para legiti-
mar a desconsideração ocasional, pelo rei como “pai”, das amarras jurí-
dicas herdadas do passado70. Mesmo não sendo, porém, só esfera jurídica,
a casa podia, em certo grau, ser juridicamente descrita e ter suas relações
traduzidas ou reguladas pela linguagem do Direito71.

Mesmo quando feito para protegê-la, o direito real legislado afetava


a autonomia da casa pelo simples fato de torná-la objeto de legislação.

67 – Já caminhando para uma reflexão nesse sentido, no contexto brasileiro, MATTOS,


Ilmar Rohloff de. Tempo saquarema. Rio de Janeiro, 1999, esp. p.111ss. Não distante de
tal conclusão- mesmo que atrapalhado por excessivas simplificações dos conceitos oito-
centistas de “casa” e “doméstico” – FERREIRA, Roberto Guedes. Op.cit., pp. 250-1 (que
trata do problema específico do controle de escravos no Rio na primeira metade do século
XIX).
68 – A antiga crença de que o poderio da casa – em especial das grandes casas nobres –
seria uma das bases do poderio real não desapareceria de todo, na literatura jurídica de
língua portuguesa, nem mesmo no século XIX (cf. LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa.
Tratado pratico de morgados. Lisboa, 1841, p.21).
69 – O que não impedia, em todo caso, nem que um ouvidor lhe imputasse os custos de-
correntes da responsabilização de seu titular (cf. PROVIMENTOS, pp. 37, 86 e 99), nem
que um letrado sobrinho de desembargador – Rocha Pita – descrevesse uma “casa” aris-
tocrática como objeto de confisco real (cf. ROCHA PITA, Sebastião da. Op.cit., p.175).
70 – Partidários do fortalecimento da Coroa tendiam a desprezar tais amarras e a legitimar
punições a clérigos e nobres incômodos, quando feitas pelo rei no exercício do seu poder
doméstico como chefe da grande “casa” (ou “família”) do reino (cf. a Carta de 3/9/1759,
relativa à expulsão dos jesuítas, em APPENDIX, p. 300 – bem como as manifestações
de D. Luís da Cunha e Paschoal de Mello em CUNHA, Luís da. Testamento político. São
Paulo, 1976, p.36; REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código do direito
público de Portugal. Coimbra, 1844, pp. 144, 145, 290, 363-4 e 365-9; e REIS, Paschoal
José de Mello Freire dos. Institutiones Juris Civilis Lusitani. De Jure Publico. Coimbra,
1859, p.155). No século XVII, Rodrigues Leitão já destacava que o “poder económico”
do “Príncipe” legitimava a relativização de imunidades da Igreja (v. TORGAL, Luís Reis.
Op.cit., p.86ss – esp. p.88).
71 – Isso decerto viabilizava – embora não explicasse de todo- certa tendência de usar a
casa como unidade de referência em testamentos coloniais, ao se referirem estes a situa-
ções pessoais, serviços pendentes ou créditos vínculados à esfera doméstica (cf.MOTA, A.
da S./SILVA, K./MANTOVANI, J.D. Op.cit., pp. 87-8, 289, 331, 350, 368 etc.).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 347


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Seja por meio desta, seja pelo estudo das relações domésticas no âmbito
do Direito romano ou canônico, o Direito se expandia por novas terras,
submetendo-as à sua cartografia específica. Com o tempo, mais e mais as-
suntos da casa começam a ser vistos como jurídicos – incluindo-se alguns
no Direito penal, outros no Direito privado e muitos no vasto “direito de
polícia” do Antigo Regime.

A crise do Antigo Regime lusitano, a Independência brasileira e a


constitucionalização do país não suprimiram as bases de nossa estrutu-
ra social72 nem comprometeram a edificação do poder doméstico. Com
mudanças pontuais, como a extinção do morgadio, as relações pessoais
e patrimoniais familiares seguiram sendo regidas à maneira do Antigo
Regime, a tal ponto que seguiam sendo estudadas a partir dos tratados
do período anterior. O poder doméstico seguia solidamente fundado no
Direito romano, nas Ordenações, nas extravagantes e, sobretudo, no cos-
tume e nas mentalidades.

Durante a transição joanina, a velha casa colonial parecia bem viva


nos relatos de viajantes estrangeiros, como Pohl e Saint-Hilaire: da semi-
clausura das mulheres à subordinação dos agregados aos fazendeiros, a
vida social parecia prolongar o passado. A escravidão ainda sobreviveria
várias décadas. Com sua concretíssima experiência, seguiria moldando
as percepções de mundo73, até mesmo nos setores de elite que aderiam
ao liberalismo.

Seja em panfletos cariocas da época da Independência74, seja nos


escritos liberais da década de 1840, tais setores não hesitavam em acu-
72 – Sobre tal ponto, cf. a clássica análise de Sérgio Buarque de Holanda na História
Geral da Civilização Brasileira.
73 – Muito antes de Nabuco, Machado e Freyre, o ambiente social – molde de impressões
duradouras – já era descrito por Benci do seguinte modo: “Pois assim mesmo é tratado o
escravo que é preto. Não só os homens, mas os rapazes e ainda os mais pequenos, se atre-
vem a mofar e zombar dele, a descompô-lo de palavra e tratá-lo mal de obra” (BENCI DE
ARIMINO, Jorge. Op.cit., p.272 (IV, 268)). Testemunhando a “atitude de superioridade”
face aos escravos assumida pelas crianças brancas, desde pequenas, BINZER, Ina von.
Op.cit., p.24.
74 – Cf. o panfleto transcrito em CARVALHO, J.M. de/BASTOS,L/BASILE, M. (org.)
Às armas, cidadãos! São Paulo/Belo Horizonte, 2012, pp. 171-5 – esp. p. 174. Oriundo do

348 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

sar os inimigos da liberdade de quererem jogar escravos contra senhores,


como que roubando os escravos dos outros. O alerta de Feijó, com o
qual começamos esse artigo, não era, pois, uma isolada excentricidade.
Pelo contrário, refletia temores existentes na sociedade e buscava usá-los
politicamente.

Elencando em 1844 todas as baixezas governamentais na repressão


aos revoltosos mineiros e paulistas de 1842, o cônego liberal José An-
tonio Marinho denunciava o que seria “o mais horroroso plano” dos le-
galistas: quebrar os laços internos do sacrossanto poder doméstico. Em
suas represálias, aqueles teriam tentado até lançar a escravaria contra os
fazendeiros liberais, chegando à sórdida arbitrariedade de surrar os cati-
vos “que recusavam faltar à obediência e fidelidade a seus senhores”75 .

O liberalismo brasileiro da primeira metade do século XIX não foi


de todo, como vemos, inimigo da casa76: na verdade, releu-a parcialmente
à maneira individualista de sua matriz ideológica77, tratando a autonomia

Rio de Janeiro, teria sido redigido no fim de 1822 ou no início de 1823.


75 – MARINHO, José Antônio. História do movimento político de 1842. S.Paulo, 1977,
p.139. Para Tavares Bastos, instigar à revolta escravos alheios também pareceria algo
execrável na arena política. Em texto de 1865, o pensador liberal criticaria os inimigos
externos do país por lançarem mão desse “recurso (...) bárbaro” (v. a carta reproduzida em
MALHEIRO, Agostinho M. Perdigão. Op.cit., pp. 279ss, esp.p .280).
76 – Há autores, nesse ponto, com opiniões mais diretas e incisivas do que a nossa. Se-
gundo Rohloff de Mattos, “ao defenderem a liberdade da Casa, os liberais defendiam a
liberdade do senhor” (MATTOS, Ilmar Rohloff de. Op.cit., p.154. Cf. também, pp.127 e
129). Embora sejam raros, entre nós, os trabalhos que tratem diretamente da relação entre
casa e liberalismo, já é vastíssima, no país, a literatura sobre as relações deste último com
a escravidão. Entre as obras úteis pinçáveis dessa alta montanha, cf. GRINBERG, Keila.
O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro, 2002 – esp. pp. 185-6, 277 e 319-320.
77 – Expressão típica disso se encontra na visão liberal do direito à inviolabilidade do
domicílio. Mas seria possível ir muito mais longe no oceano dos exemplos, abordando-se
a remoldagem, consolidação e ampliação, em “liberdades” constitucionais, de muitas das
antigas formas de atuação econômica e de participação política em nível local. Já há, no
Brasil, trabalhos que tangenciam tal abordagem. Ainda que aferrado ao mito da total in-
compatibilidade entre o liberalismo e a casa escravista (cf.MALERBA, Jurandir. Op.cit.,
p.34), J. Malerba notou e admitiu, com muita razão, que parte do que apressadamente
lemos, nas fontes do período imperial, como pura defesa individualista da privacidade
pessoal se esboçava também, então, como tentativa de murar e resguardar a esfera domés-
tica, o espaço de convívio do cidadão com seus escravos e demais súditos familiares (cf.
MALERBA, Jurandir. Op.cit., p.76).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 349


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

do régulo doméstico como um conjunto de direitos, faculdades e garan-


tias individuais inerentes ao cidadão. Além disso, o discurso liberal se
apropriou até mesmo das velhas equiparações entre a casa e a monarquia,
usando-as, porém, de modo inverso ao usado no Absolutismo: se este
invocava o paralelo rei/pai para expandir o poder do primeiro78, nossos
liberais o faziam para submeter o monarca às regras da boa economia
doméstica. Assim, defendendo a “comparação” entre a “nação” e “uma
família particular”, o deputado Vergueiro descrevia implicitamente nosso
primeiro imperador como um “caloteiro” que “aumenta o luxo de sua
casa, quando as suas rendas não chegam”79.

Nesse contexto, o complexo de conceitos ligado à “casa” e ao poder


doméstico ganhou subitamente funções emancipatórias. Em 1827, ainda
em sua fase liberal, Bernardo Pereira de Vasconcelos tentava repassar aos
“juízes de paz” o prestígio e a imagem social dos “bons pais de família”,
salientando que aqueles, como estes, buscavam harmonizações e não de-
mandas80. Interpretando o recente Direito público à luz de velhos con-
ceitos do Antigo Regime, Feijó conseguiu, inclusive, fundamentar seu
discurso contra a centralização: foi por essa via que tentou legitimar a
concessão, às províncias, de poderes de autogestão81, abarcando inclusive
medidas de saúde pública e controle de ciganos e “marotos”82. Se “Pode
o homem na sua casa” exercer poderes ordenadores, como negar “este
direito às províncias?”83

78 – Entusiásticos defensores da Coroa – como o Padre Perereca – ainda exaltavam no


século XIX D. João como “pai do povo”, louvando-o como governante paternalmente
“compassivo” até mesmo diante do “delírio revolucionário” dos pernambucanos em 1817
(v.SANTOS (PADRE PERERECA), Luiz Gonçalves dos, Memórias para servir à histó-
ria do Reino do Brasil. São Paulo, 1981, pp. 99-100).
79 – Apud VASCONCELOS, B.P. de. Op.cit., p.103.
80 – V. VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Op.cit., p.112. Implícito ficava, em seu
texto, o contraste entre certo demandismo letrado e uma idealizada tendência pacificadora
do poder doméstico.
81 – Cf. FEIJÓ, Diogo Antônio. Op.cit., pp. 208, 220 etc.
82 – V. FEIJÓ, Diogo Antônio. Op.cit., p.220. O termo “maroto” é usado, aqui, de modo
discriminatório contra portugueses.
83 – V. FEIJÓ, Diogo Antônio. Op.cit., p.220.

350 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Segundo Feijó, “a economia ou polícia doméstica” deveria ser “dei-


xada ao chefe de família, porque só ele poderia a propósito regular seu
governo doméstico”84 . E esclarecia o senador liberal: “Cada um em sua
casa é soberano independente de outro cidadão; pode em sua casa regular
o material e pessoal dela, pode usar de módicos artigos correcionais, para
conservá-lo em ordem; compete-lhe a polícia doméstica”85.

Coerente com tal ponto de vista, um texto liberal do início da Regên-


cia – a chamada “Constituição de Pouso Alegre” – excluía do direito ao
voto não só os menores de 21 anos, mas também os “criados de servir”,
os “criados da casa Imperial” e os “filhos-família, que estiverem na com-
panhia de seus pais, salvo se servirem officios públicos”86. O Estado não
devia contestar a casa, estrutura inevitável como a geografia, mas sim
se organizar pressupondo a existência e o poder dela. O ideal liberal do
cidadão financeiramente autônomo convivia aqui, sem causar escândalo,
com a noção de como as coisas funcionavam tradicionalmente – não por
acaso, a relativização do poder fático do régulo doméstico só se dava a
título excepcional, em um caso como o dos “officios públicos”, que de-
mandava resguardar um mínimo de dignidade estatal.

Poucos liberais ousaram enfrentar o discurso tradicional sobre as afi-


nidades entre a casa e o Estado. Só excêntricos como Frei Caneca pode-
riam chegar a tão radicais novidades.

Enfrentando em 1824 as pretensões políticas de um desafeto con-


servador, o religioso primeiro reconheceu as “virtudes domesticas” des-
te, por “ser bom pae de família, bom esposo, econômico de sua casa”87.
A partir disso, porém, fez um ousado lance, esvaziando o elogio prévio
em um ataque direto ao tradicional paralelo entre casa e Estado: “porém
84 – FEIJÓ, Diogo Antônio. Op.cit., p.220.
85 – FEIJÓ, Diogo Antônio. Op.cit., p.212.
86 – Cf. seu texto em SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três golpes de estado. S.Paulo,
1988, (pp. 167-192), p.179, art.91.
87 – V. FREI CANECA (J. do A.D.) Acusação e defesa. Recife, 2000, p.45. O texto foi
escrito no contexto pernambucano pós-Independência, no qual o religioso se opunha aos
seguidores do Morgado do Cabo, líder político bem mais simpático ao Imperador do que
aos liberais.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 351


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

daqui não se pode deduzir a sua aptidão para governar povos”. Cum-
prir bem “deveres” no “estado particular” que seria a esfera doméstica
não habilitaria ninguém, segundo o frade liberal, para atuar na “publica
administração”88.

A ousadia, porém, fora grande – e Frei Caneca logo hesitou. Rapida-


mente voltou ao porto seguro da tradição, tecendo, no mesmo texto, uma
comparação do “governo” a “um pai de família”, registrando “a razão
medíocre, commum, e sempre infantil da maior parte dos cidadãos”89 .

Sigamos um pouco mais a trilha dos conceitos, nos escritos de nos-


sos autores e políticos do Império. Logo verificaremos notáveis continui-
dades. A “casa” ressurgia a todo momento, até em projetos e leis tenden-
cialmente abolicionistas, oriundos de políticos do Partido Liberal.

Em 1884, o Projeto Dantas dispensava os antigos amos de cuidarem


do “liberto” idoso, se este houvesse “deixado a sua casa e companhia”90.
No ano seguinte, o Projeto Saraiva proibia a alforria do “escravo evadido
da casa do senhor”. O trecho seria mantido na versão final, incorporando-
-se à Lei n.3.270 (art.3,§20). O novo diploma manteria cautelosamente os
escravos sexagenários “em companhia de seus ex-senhores”, prosseguin-
do estes, como os senhores sem “ex” algum, com aquilo que se via tradi-
cionalmente como as obrigações paternalistas do régulo doméstico – às

88 – V. FREI CANECA (J. do A.D.) Acusação, p.45, e (FREI) CANECA (J. do A.D.) Frei
Joaquim do Amor Divino Caneca. Org. E.C. de Mello. S.Paulo, 2001, p. 540. Opinião
semelhante expressava o religioso em outro texto, datado de 1824. Segundo ele, “um
cidadão, por ser bom pai de família, esposo fiel, amigo leal, econômico de seus bens, não
está por isso só na ordem de governar a nau da pátria” ((FREI) CANECA (J. do A.D.)
Frei..., p. 362). Ainda que pudesse ter longínquas raízes tomistas , o definir das qualidades
humanas relevantes de acordo com a esfera de atuação pessoal vinculava-se aqui, de
certo modo, ao desejo de defender um novo ideal de cidadão ativo e amante da liberdade,
talvez parcialmente inspirado em concepções de virtude cívica construídas pela releitura
iluminista das fontes clássicas.
89 – V. FREI CANECA (J.do A.D.) Acusação, p.47 (ou (FREI) CANECA (J. do A.D.)
Frei..., p. 541.
90 – V. sua transcrição em MENDONÇA, J.M.N. Entre a mão e os anéis. Campinas, 1999,
p.390 (art.1., par.1.,II).

352 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

quais continuaria correspondendo, aliás, um dever de trabalho gratuito do


negro (limitado temporalmente e descrito agora como “indenização”)91.

Em meados do século XIX, mesmo um liberal tido por particular-


mente avançado como Teófilo Otoni ainda usava “casa” como sinônimo
de “fazenda”, tratando a “casa” como unidade econômica92. Unidade que
exercia, por sinal, poderes disciplinares, sujeitando “ao chicote, à palma-
tória e até ao tronco” os indígenas esfomeados que sazonalmente explo-
rava93. Se a crítica a tais poderes acompanhava toadas liberais, o polo de
poder criticado seguia sendo visto, contudo, à maneira tradicional.

Anterior ao triunfo da própria bipartição Direito público/Direi-


to privado94, o emprego do termo “casa” nesse sentido tradicional teve
prosseguimento até nas esferas mais dinâmicas da vida econômica do
Império. Funcional para descrever os engenhos do escravismo95 e os es-
tabelecimentos de venda de negros96, tal uso acompanhou a expansão do

91 – Cf. os parágrafos 10., 13 e 20 do art.3. da lei (reproduzidos em MENDONÇA, J.M.N.


Entre..., pp. 413 e 415). Para uma descrição dos demais mecanismos empregados pela lei
para manter os ex-escravos, na prática, sob controle dos antigos senhores, cf. MENDON-
ÇA, J.N. Cenas da abolição. S.Paulo, 2001, pp. 46-7.
92 – V. OTONI, Teófilo. Notícia sobre os selvagens do Mucuri. B. Horizonte, 2002, p.72.
93 – OTONI, Teófilo. Op.cit., p.73.
94 – Sem embargo da distinção ter sido proposta já em textos romanos (cf. Digesto
1.1.1.2), foi só ao longo da Idade Moderna que ela veio a se transformar em uma das di-
visões mais importantes do universo do Direito, favorecendo a estruturação – primeiro no
campo doutrinário e acadêmico, bem depois no legislativo – de um novo campo jurídico
tendente à unidade e à autonomia (cf., a respeito, as advertências de STOLLEIS, Michael.
Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland. München, 1988, v.1, pp. 75; KA-
SER, Max. Römisches Privatrecht. München, 1992, p.27; MOHNHAUPT, Heinz. Op.cit.,
pp. 125-6, e SÖLLNER, Alfred. Einführung in die römische Rechtsgeschichte. München,
1996, pp. 120-1).
95 – Deplorando que parentes estivessem “mal com meu pai e com toda a nossa casa”
e queixando-se de já “andar sujo e roto”, sem condições de “manter (...) o esplendor,
estimação e respeito da casa”, um endividado senhor de engenho da Bahia setecentista
reclamava a seu genitor: “a casa, com a partida de V.M. ficou um abismo de trapalhadas e
vexames mil”, estando “o engenho caído e as rendas sem se pagarem” (apud DEL PRIO-
RE, Mary. Op.cit., pp. 281, 284-5 e 286). A “casa”, aqui, sofre agruras qual unidade eco-
nômica, faz acertos como unidade social e porta, enquanto unidade familiar, as pretensões
da honra estamental.
96 – Cf. o art.2-§13 do Projeto Dantas (transcrito em MENDONÇA, J.M.N. Entre...,
p.398).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 353


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

trabalho livre nas cidades97 e no campo98. É ainda registrado no que seria


a vanguarda do nosso capitalismo oitocentista, sobrevivendo inclusive
no plano já jusprivatizado das ações e das falências. Mauá, por exemplo,
lançava mão reiteradamente dessa palavra para designar polos de negó-
cios como o seu banco. Invocava o “bom direito da Casa Mauá”99 – e a
expressão “Casa Mauá” permeava toda a sua “Exposição aos credores”
(1878)100. Nesta última, aliás, não faltava a menção a um “advogado da
casa”– Teixeira de Freitas101.

Essas continuidades no vocabulário longe estavam, todavia, de im-


plicar uma estagnação geral das estruturas econômicas e das mentalida-
des102. Não era só a “Casa Mauá” que trazia os sinais da modernidade:
novas atitudes indicavam, também nos negócios, aquilo que alguns – na
linha de Gilberto Freyre ou fora dela – interpretariam como uma crise do
poder patriarcal103. Expressão desta teria sido, na década de 1880, a dis-
solução da sociedade entre Alfredo Ellis e seu tio e sogro, o coronel Chi-
quinho da Cunha Bueno, que com patriarcal desenvoltura andaria pondo
para trabalhar gratuitamente para seus filhos, a escravaria pertencente à
sociedade: segundo Muriel Nazzari104, haveria ali um conflito entre con-
97 – Cf., por exemplo, as referências às relações entre o “miserável caixeiro” e o seu
“amo” no âmbito das “casas de negocio”, feitas à época no jornal carioca O Defensor do
Commercio – com transcrição em FREYRE, Gilberto. Sobrados, pp. 276-7.
98 – Cf., por exemplo, o uso dado ao termo por Paula Souza, em carta na qual anuncia
a transição para o trabalho livre em suas terras (apud CASTRO, H.M.M. de Op.cit., pp.
365-6).
99 – MAUÁ, Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de. Autobiografia. Rio de Janeiro,
1998, p.266, XXVI
100 – Cf., e.g., MAUÁ, IIrineu Evangelista de Sousa, Visconde de. Op.cit., pp. 267,
XXVII; 268-XVIII, 269-XVIII, 270-XVIII, 271-XXIX.
101 – V. MAUÁ, Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de. Op.cit., p.261, XXV.
102 – Como já se advertiu no passado, nem sempre os homens mudam de palavras quando
mudam de costumes (cf.BLOCH, Marc. Apologia da história. Rio de Janeiro, 2001, p.59).
103 – Há que se evitar precipitações, em uma coleta demasiado entusiástica de supostos
exemplos dessa “crise”. Teríamos realmente uma clara “prova” dela no fato de que um
jurista do Império, em um caso específico, se teria esforçado para livrar um jovem portu-
guês dos embaraços de um pátrio poder sediado na distante Europa? A resposta talvez seja
mais difícil do que dá a entender DI CICCO, Claudio. Direito: tradição e modernidade.
S.Paulo, 1993, p.101.
104 – Cf. NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.175. Para os esforços e contratempos dos Ribeiro
de Avellar, no Vale do Paraíba oitocentista, em sua tentativa de manter uma sociedade

354 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

cepções modernas e tradicionais, caracterizando-se estas por uma certa


indiferenciação entre os espaços da família e dos empreendimentos.

Não se trata, aqui, de situar no Brasil do século XIX uma plena sepa-
ração entre família e negócios que, como processo histórico, ainda não se
completou sequer na esfera dos grandes grupos industriais e financeiros
de São Paulo. Não é preciso seguir os rastros dos Bezerra no interior
do Ceará para descobrir, em tempos recentes, sobreposições de estrutu-
ras familiares e empresariais, servindo tanto a finalidades tidas por pré-
-modernas (como assegurar maior poder de fogo político ou manter na
família bens vinculados à sua identidade) quanto a objetivos de caráter
inquestionavelmente atual (como facilitar o atendimento de exigências
bancárias para a concessão de crédito)105. Na economia brasileira, há mui-
to as empresas tomaram da “casa” o lugar central – mas vestígios desta
quase parecem ressurgir, volta e meia, nos modos de gestão de empresas
familiares. O próprio termo “casa” segue sendo ocasionalmente empre-
gado na esfera dos negócios106 – muito embora já não mais se critique,
como se fazia no Segundo Reinado com os donos de estalagem, o despo-
tismo do “chefe da casa” em face da clientela107.

O que interessa aqui, por ora, é apenas indicar o impacto desse mes-
mo processo histórico nas instituições e nas mentalidades, em um período
de urbanização e de reforço, na economia, das tendências para a desautar-
familiar, cf. MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa. Rio de Janeiro, 2008, pp.83,
86-7, 128 e 218 (n.1).
105 – Cf. LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família, tradição e poder. S.Paulo, 1995, p.163.
A autora analisa a prática dos Bezerra de manter indivisas terras e grupos de empresas,
constatando que “a natureza familiar da condução dos negócios independe das dimensões
do empreendimento”. Nota, também, que onde o “crédito político” pode levar ao “crédito
econômico”, “a coesão familiar é a ‘alma do negócio’”. Percebe, ainda, estar diante de
um “universo sociocultural no qual a família é a instituição em torno da qual se articulam
diferentes instâncias da vida individual e coletiva” – inclusive aquelas relativas à política
e aos negócios (v.LEMENHE, Maria Auxiliadora. Op.cit., pp. 176-7).
106 – Cf. HOUAISS, A./VILLAR, M.de S. Op.cit., p. 640.
107 – V. ZALUAR, Augusto Emilio. Peregrinações pela Província de São Paulo
(1860-1861).S.Paulo, 1975, p.16 – que assim se queixava, por volta de 1860: “nestas
estalagens da roça (...) tudo, enfim, depende do capricho momentâneo do chefe da casa a
cuja decisão é forçoso a gente curvar-se, porque não há direito, autoridade, nem lei que
prevaleça ao sequestro imediato desta implacável justiça de aldeia”.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 355


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

quização da esfera doméstica e – da crise do escravismo em diante – tam-


bém para a contratualização das relações de trabalho. Processo histórico
que se refletiu em mudanças legislativas e foi estimulado por elas.

Se o passado apreciasse tanto as linhas retas como fazem os seus in-


térpretes, seria de se esperar que uma clara e absoluta separação da “casa
comercial” da “casa/estrutura familiar” precedesse a passagem do mundo
dos negócios para a gestão profissional e para a aparente impessoalida-
de tendencial do mercado acionário. Em nosso país, isso não se deu de
modo tão simples, completo e nítido108. O Direito do século XIX nos traz,
porém, indícios do que pareceria, em tese, tal processo histórico em seus
momentos iniciais.

“O Código Comercial e leis posteriores contribuíram”– sintetiza M.


Nazzari109 – “para a separação entre família e negócios em termos de res-
ponsabilidade financeira por dívidas”. Segundo essa autora, tal diploma
teria reduzido substancialmente os riscos à sobrevivência das sociedades,
em função de percalços na esfera familiar dos sócios110.

A nova legislação estimulou a tendência da contabilidade comercial


de emancipar-se da familiar111. Procurou livrar a mercancia de interrup-
ções e atravancos ocasionados pelas mortes dos sócios ou pela atuação,
em inventários, de setores pouco dinâmicos da magistratura112. A par
disso, a introdução de novas formas societárias e a simples difusão das
sociedades anônimas, ações e apólices favoreceram a separação entre fa-
108 – No Império ainda se veriam, segundo Gilberto Freyre, não só nomes de família
influenciando designações de estabelecimentos, mas também movimentos em sentido in-
verso (cf. FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.277). O fenômeno já teria ocorrido no Brasil-
-Colônia (idem, ibidem).
109 – NAZZARI, Muriel Op.cit., p.174.
110 – Tratando aqui dos supostos efeitos da morte da mulher do sócio, NAZZARI, Muriel.
Op.cit., p.174. O tema, sem dúvida, devia ensejar preocupações, tanto que era abordado
na doutrina oitocentista – ainda que, ao menos em Teixeira de Freitas, não tivesse pro-
priamente a mesma solução descrita pela autora (cf.ORDENAÇÕES FILIPINAS, p. 828
[IV, XLIV, 4], n.6).
111 – Sobre tal tendência nas práticas sociais, cf.NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.173.
112 – Cf. ORDENAÇÕES FILIPINAS, pp. 828-9 (IV, XLIV, 4), bem como NAZZARI,
Muriel. Op.cit., p.174 – a qual destaca a opção do Código Comercial de 1850 de conferir
atribuições ao juizado de comércio, em detrimento dos juízes de órfãos.

356 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

mília e empreendimento econômico – facilitando inclusive redireciona-


mentos patrimoniais, na forma de investimento ou aplicação individual,
para atividades externas à tradicional esfera da “casa”113.

Se existiam novas formas de investimento pessoal, também havia


muitas pessoas que, na esfera da “casa”, seguiam encarnando velhos mo-
dos de investimento e poupança. Falar em “pessoas”, por sinal, não seria
aqui uma escandalosa retroprojeção114.

A plena coisificação do escravo até podia caminhar bem com os civi-


listas, mas tropeçava nas cruezas do Direito penal115 e na intrincada rede
de relações constitutivas da “casa”116. A funcionalidade do poder domés-

113 – Cf. NAZZARI, Muriel. Op.cit., p.178 – com apontamentos sobre a mudança de
composição no patrimônio de integrantes da elite paulista, no século XIX.
Antes mesmo da Abolição, o encarecimento dos escravos já pode ter estimulado, em seto-
res da sociedade brasileira, esse processo de descasificação dos patrimônios. Até porque
a extinção do tráfico, gerando alta de preços, fez com que “a propriedade escrava – an-
tes amplamente disseminada entre a população livre – “viesse a concentrar-se nas mãos
de grandes senhores das províncias cafeeiras” (v. CASTRO, Hebe Mattos de. de Op.cit.,
p.343).
114 – Atacando a “ficção da coisificação” total do escravo e apontando os motivos de sua
ampla acolhida no Brasil, LARA, Silvia Hunold . “Os escravos...”, p.129ss, esp.p.132.
Analisando situações de servidão pessoal de camponeses medievais, o próprio Otto Brun-
ner, aliás, já indicava que a dominação no âmbito da “casa senhorial” não ensejava a total
coisificação daqueles (cf.BRUNNER, Otto. Sozialgeschichte, p.23, que chega mesmo –
em síntese elegante, mas roseamente exagerada – a afirmar: “Auch der Unfreie (...) ist in
der Herrschaft Rechtsperson”).
115 – A eficácia do Direito penal demandava em diversas áreas – como se sabe – algum
grau de reconhecimento da vontade, imputabilidade e punibilidade do escravo. Por outro
lado, o tratamento deste como simples coisa gerava óbvios problemas até no simples
campo dos crimes contra o patrimônio. Que fazer, afinal, com um bem semovente que,
cometendo o desplante de pensar em seus próprios interesses, pudesse até auxiliar seus
próprios ladrões, para assim se livrar de um mau senhor? (Sobre os casos de Manoel
Monjolo e José Mina – que se teriam deixado furtar – cf. CHALHOUB, Sidney. A força,
pp. 154 e 157).
116 – No período colonial, obras específicas sobre o “governo econômico” – isso é, a ges-
tão da casa – já denunciavam como inadequado o tratamento dos escravos como simples
bens semoventes (e.g., à maneira dos jumentos – cf. BENCI DE ARIMINO, Jorge. Op.cit.,
p.5 (Intr.,6). A alienação de escravos como bens e sua acentuada exploração no eito como
“carvão humano” (Darcy Ribeiro) conviveram com práticas contrárias à plena coisificação
do escravo até mesmo no campo econômico. Não era incomum que escravos exercessem
atividades que, ao menos implicitamente, demandavam seu tratamento, na prática, como
pessoas na esfera negocial, assumindo papéis típicos de um trabalhador livre ou de um

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 357


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

tico seguia, nos tempos do Império, a demandar, ao lado da violência pre-


sente ou potencial, formas doces de dominação e um discurso legitimador
paternalista. Da liturgia do beija-mão117 à divisão dos espaços nas cerimô-
nias religiosas118, havia à época todo um teatro de precedências destinado

pequeno comerciante (cf., e.g., SCHWARTZ, Stuart. Op.cit., p. 209, MENDONÇA, J.N.
Cenas, pp. 39-40 e 56, e o testemunho de BINZER, Ina von. Op.cit., pp. 36 e 45). Em
meados do século XIX, um grande fazendeiro recomendava a seus pares “entreter” os
“pretos” com o “seu pequeno direito de propriedade”, inclusive comprando destes a pro-
dução de roças feitas, com permissão do dono, nas terras senhoriais (apud MARQUESE,
Rafael de Bivar. Op.cit., p.283. Sobre o velho costume de deixar aos negros as “suas (sic)
roças”, v.também VIEIRA, J.F. “Regimento que há-de guardar o feitor-mor”. In: ALVES
FILHO, Ivan. (org.) Brasil, 500 anos em documentos. Rio de Janeiro, 1999, p.77). Visto
não raro como mero bem semovente, o escravo podia até virar credor do dono. Em um
documento maranhense de 1789, um senhor admitia: “Devo a meu escravo Francisco
Mandinga quarenta mil-réis” (cf. o testamento de J.L. Rebello em MOTA, Antônia da S./
SILVA, Kelcilene./MANTOVANI, José D. op.cit., pp. 275-9, esp. p.277). E não faltaram
debates políticos, logo após a Independência, sobre a conveniência ou não do Estado re-
conhecer “os contratos entre o senhores e os escravos” (v.CUNHA, Manuela Carneiro da.
Op.cit., pp. 128 e 157). O historiador do direito não deve, é claro, ficar cego diante dessas
evidências. Nem, tampouco, deixar de registrar o desconforto dos letrados diante da in-
compatibilidade de várias práticas sociais com o núcleo duro da concepção romanista de
escravidão (desconforto evidente, e.g., na Ley 1 do Cap.17 do “código negro” carolino
de 1784 – cf. CÓDIGO DE LEGISLACIÓN, p.197). Para o pesquisador, as tentativas de
superar dogmaticamente tal incompatibilidade – invocando, e.g., uma obrigação natural
do senhor de respeitar o pecúlio do cativo, nas negociações entre ambos- não resolvem
aqui o problema, mas sim evidenciam sua maior complexidade e relevância social (sobre
a concepção romana de naturalis obligatio cf.KASER, Max. Op.cit., pp. 155-6, e SÖLL-
NER, Alfred. Op.cit., p.86).
117 – Já intuindo o relevante papel do “beija-mão dos negros aos brancos”, FREYRE,
Gilberto. Sobrados, pp. 47 e 306. Denunciando o beija-mão entre brancos como sinal de
servilismo, cf. as opiniões do francês J. Arago (v. FREYRE, Gilberto. Sobrados, p. 459),
bem como as críticas feitas pelos aliados de Feijó, em debates parlamentares de 1838, à
restauração do rito monárquico correspondente (cf.RICCI, Magda. Op.cit., pp. 401-2).
118 – Sem aprofundar a análise desse ponto em “Sobrados e mucambos”, Gilberto Freyre
parece ter intuído que a celebração de missas nas fazendas contribuía para reforçar a au-
toridade do régulo doméstico. O autor pernambucano vê as tentativas de proibição dessa
prática “golpeando em cheio a autoridade patriarcal” (v.FREYRE, Gilberto. Sobrados,
p.124). Sobre tais tentativas e seus fracassos, cf.FREYRE, Gilberto. Sobrados, pp. 123-4
e 147-9. Solapando – com dados de 1873 sobre o número de capelas de engenho em Siri-
nhaém – a avaliação freyreana sobre o suposto controle dos senhores sobre as atividades
do clero, cf., porém, MELLO, Evaldo Cabral de. Op.cit., pp. 424-5).
Cumpre notar, por fim, que mesmo um clero independente em face da casa senhorial pode
exaltá-la como modelo de ordem e até moldar nela algumas de suas instituições internas
(sobre a estruturação dos mosteiros medievais, cf., por exemplo, SCHULZE, Hans K.
Grundstrukturen der Verfassung im Mittelalter. Berlim, 2000, p.15).

358 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

a sinalizar, ao escravo-pessoa, qual era o seu lugar no mundo e na ordem


interna da casa. A par disso, a própria divisão ideal de papéis dentro desta
última levava à noção de que o senhor também tinha algumas obrigações
para com o cativo119. Confirmadas pelo costume e pelas práticas sociais,
tais obrigações podiam se refletir em expectativas de comportamento120,
119 – Segundo J. Benci, em obra publicada em 1705, “assim como o servo está obriga-
do ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo”. (BENCI DE ARIMINO, Jorge.
Op.cit., p.6,Intr.6). Frisava o jesuíta que Aristóteles, tratando das “instruções necessárias
aos pais de famílias para a boa administração de suas casas”, já dizia deverem dar estes
“o trabalho, o sustento e o castigo” (Idem, ibidem, pp. 7-8, Intr.9). A par disso, a funda-
mentação paternalista do poder doméstico senhorial implicava assumir deveres na esfera
religiosa, havendo tal clérigo chegado a afirmar que “o principal cuidado de um pai de
famílias devia ser o ensino e doutrina dos servos” (Idem, ibidem, pp. 64-II.67) – como
Abraão, que circuncidara não só seus filhos, mas também “a todos os escravos de sua
casa” (Idem, ibidem, p.81-II.84), o senhor tinha de reproduzir, no âmbito doméstico, a
religião tradicional que lhe escorava o poder. A partir dessas concepções, era possível
justificar um dever do senhor de alimentar adequadamente seus escravos (cf. BENCI DE
ARIMINO, Jorge. Op.cit., pp. 11-12, I.14 etc.), de considerar os limites de sua capacidade
física (Idem, ibidem, p.255-6, IV. 252) e de não abandoná-los nas doenças (expulsando-
-os “impiamente de casa”, v. BENCI DE ARIMINO, Jorge. Op.cit., pp. 279-280,IV.276,
assim como itens I.48ss, às pp. 43ss). O autor considerava “o senhor de casa igualmente
obrigado nos domingos e dias santos, a desocupar-se do serviço a si, aos filhos e aos escra-
vos” (Idem, ibidem, p.222, IV.219): “fora do preciso e necessário serviço, de sua pessoa
e casa”, o “Pai de famílias” e “senhor da casa” não poderia negar tal descanso (Idem,
ibidem, p.240, IV.237, e p.246-7, IV.243). A concepção da casa como esfera de papéis
e obrigações morais recíprocas também podia evidenciar o descabimento das punições
tidas então por desproporcionais – ainda que embasasse uma estrutura de poder que, na
prática, viabilizava estas últimas. A propósito advertia Benci: “não queiras ser em tua casa
como o leão” (Idem, ibidem, pp. 128-III,129), mesmo porque “nas casas, onde o senhor
ou a senhora anda em uma contínua guerra com seus escravos, castigando-os sem lei, sem
ordem, sem consideração, e sem modo algum, não param os servos” (Idem, ibidem, p.146,
III.144) Particularmente absurdo seria maltratar os africanos recém-chegados, querendo
“o senhor que no mesmo tempo em que lhe entrou um boçal em casa, ande logo tanto a
ponto, como se estivesse doutorado na arte de servir” (Idem, ibidem, p.152, III.152). Mes-
mo historiadores que intentam contrapor as concepções de Benci às tardo-iluministas e às
oitocentistas veem-se obrigados a registrar a persistência, em pleno Segundo Reinado, do
secular discurso sobre as obrigações recíprocas (cf.MARQUESE, Rafael de Bivar. Op.cit.,
p.289). Este último, na verdade, atravessou o século XVIII e seguiu presente nas socie-
dades escravistas ocidentais do século XIX- como se pode ver perfeitamente, e.g., na le-
gislação colonial espanhola (cf.INSTRUCCIÓN, p.281, esp.Cap.VIII; REGLAMENTO
PARA LA EDUCACIÓN, p. 291, esp.Cap.XIII, art.1; REGLAMENTO DE ESCLAVOS,
p. 295ss; etc.).
120 – Combinando-se na gestão dos escravos e dos lavradores-meeiros pelo fazendeiro,
os intentos disciplinares e preocupações econômicas vinculavam-se a uma concepção
tradicional de papéis que podia até ser, de modo ocasional, usada para sancionar social-

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 359


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

gerando no imaginário social supostos “direitos” que um bom civilista


talvez descartasse como absurdos121.

A ideia de que o poder senhorial tinha obrigações e limites não mar-


cava só clérigos liberais como Feijó – ela também transparecia nas oca-
siões em que as fontes letradas oficiais forneciam indícios, bem ou mal,
do que os escravos poderiam ter pensado. Isso é visível, por exemplo, em
processos referentes ao assassinato de um “mau senhor”122. Por volta de
1872, um escravo acusado de matar seu dono alegou que este teria sido
um “mau senhor, tirando a ele interrogado e seus parceiros os Domingos
e dias santos, maltratando de comida, vestuário (...)”. Segundo o depoi-
mento de um comerciante, o escravo homicida cria que o senhor lhe teria
“roubado os domingos e dias santos”123. O crime até podia deitar raízes no
ódio pessoal ou numa incipiente consciência de classe – era justificado,
porém, como um tiranicídio doméstico, por ter a monarquia absoluta da
casa desandado em despotismo mesquinho.
mente o comportamento desviante de alguns senhores (cf.MELLO, Evaldo Cabral de.
Op.cit., p.403). Situação não de todo distinta se verificava nas relações entre pais e filhas,
pois o não preenchimento das expectativas sociais de disciplinamento e controle da honra
feminina podia gerar, também aqui, problemas ao pólo mais forte da relação (cf SILVA
Marilda Santana da. Op.cit., p.168).
121 – Sobre as expectativas e os “direitos” e “obrigações” imaginados, cf., por exemplo,
MENDONÇA, J.N. Entre..., p.71, 160-1, 180 etc. – que remete aos pioneiros estudos de
Chalhoub – e a síntese de LARA, Silvia Hunold. “Os escravos...”, pp. 131-2. A doutrina
jurídica nem sempre fechou os olhos, porém, ao potencial subversivo que a concepção
tradicional dos papéis sociais no âmbito da “casa” podia apresentar em situações-limite.
Fazendo uma analogia entre o poder doméstico marital e o poder político, Althusius, por
exemplo, fundamentou o direito de resistência ao tirano no direito de separação do cônju-
ge submetido a sevícias (cf.KOCH, Elisabeth. Op.cit., p.195). Por vezes, até a legislação
nacional fez com que deveres senhoriais específicos derivassem dos papéis na casa. Bom
exemplo disso é, quanto aos filhos de escravas nascidos após a Lei Rio Branco, “a obri-
gação de criá-los (...) até a idade de oito anos”, atribuída explicitamente aos “senhores de
suas mães” (cf. art.1-§1). Para um exemplo, em país vizinho, de previsão legislativa de
deveres senhoriais, cf.RAMOS NÚÑEZ, Carlos. Op.cit., p. 256).
122 – Como o analisado em CASTRO, H.M.M. de Op.cit., p. 357. Sobre um caso paulis-
tano do século XIX – o do estrangulamento do Prior do Carmo – e sobre seus alegados
reflexos na memória popular, cf. MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de outrora. São
Paulo, 1980, p.56.
123 – Apud CASTRO, Hebe Mattos de. Op.cit., p.357 (g.n.). Observadores estrangeiros
também registraram sinais de indignação de escravos contra senhores que lhes haviam
negado uma festa ao fim da colheita do café (cf. BINZER, Ina von. Op.cit., p.38).

360 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

A casa estava nas mentes124 – e não só dos escravos. Dificultava que


se pensasse neles como meras coisas passíveis de apropriação e comércio
– mas também legitimava socialmente a sua condição, ao pintar a sujeição
ao senhor com as cores naturais atribuídas à sujeição dos filhos ao poder
paterno125.

Concebendo-se o escravo como integrante da casa, resguardava-se,


no fundo, sua humanidade ao preço da submissão. Na síntese de um ju-
rista da época: “o escravo é também homem; daí vem o direito, o poder
sobre o escravo (potestas), como o poder do marido sobre a mulher, o po-
der do pai sobre o filho”. Garantido por lei – mas garantido, ousaríamos
completar, por ser preexistente a ela –, seria “esse poder (potestas)” que
constituiria “a força moral do senhor sobre o escravo, como constitui a
força moral do marido sobre a mulher, do pai sobre o filho”126. Desse en-
trelaçar de forças morais – mais do que da violência direta – dependeriam,
em última análise, a estrutura da casa e a própria ordem social127.
124 – Posto que bombástico e demasiado generalizante, pode-se invocar, aqui, o testemu-
nho de alguém distante da base social – Joaquim Nabuco – sobre o “horizonte do engenho
ou da fazenda”, dentro do qual teriam vivido e morrido muitos escravos ainda no século
XIX (v.VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. S.Paulo,
1987, v.1, p.218). Deveríamos esperar de populações sedentárias de países agrários que se
desvencilhassem sempre, fácil e rapidamente, de seu imaginário tradicional?
125 – A invocação implícita de uma ordem “natural” da casa pode ter servido, inclusive,
para sabotar ocasionalmente interferências estatais da relevância da Lei do Ventre Livre e
da Abolição. Em Taubaté, a tutela de ingênuos após 1871 e de filhos de “solteiras pobres”
após 1888 pode ter-se convertido em expediente para manter as estruturas tradicionais,
com os ex-senhores das mães buscando assumir o controle da prole destas a título de
tutores “naturais” (cf.PAPALI, Maria Aparecida C.R. . Op.cit., p. 208ss. Note-se que
mesmo os civilistas franceses viam a tutela como instrumento do “governo doméstico”,
cf.PORTALIS, Jean-Etienne-Marie. Discours préliminaire au premier projet de Code ci-
vil. Bordeaux, 1999, p.47). Em Barra Mansa, aventou-se até a possibilidade da venda
pública de negros órfãos nascidos após a Lei Rio Branco (cf.MENDONÇA, J.N. Entre...,
p.79 – como se as estruturas e práticas do passado, parecendo naturais e razoáveis, pudes-
sem se reproduzir eternamente, desconfirmando o novo direito estatal.
126 – Os trechos aqui transcritos originam-se de manifestação de Perdigão Malheiro se-
lecionada por Spiller Pena (PENA, Eduardo Spiller. Pajens, p.336). Sobre o posiciona-
mento do jurista e sua ênfase no “elemento moral” decorrente das relações domésticas,
cf. também a passagem reproduzida em CUNHA, Manuela Carneiro da. Op.cit., p.133.
127 – Convicções análogas podiam aflorar de autos no Segundo Reinado – não faltando,
então, quem vinculasse supostas fugas de escravos a prévias “dissensões conjugais” que
teriam feito “lavrar em sua casa a indisciplina” (apud CHALHOUB, Sidney. A força,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 361


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Não se deseja aqui, contudo, mascarar a “casa” de democracia racial


nem de Estado de Direito em miniatura. Nela não se distribuíam igual-
mente nem os poderes nem os direitos. Socialmente vista como algo que
ia além de uma unidade econômica, não deixava de atuar como tal, explo-
rando, controlando e disciplinando a mão de obra. Daí as dificuldades que
mostrou, no Brasil, na transição para o trabalho livre. Transição em que
teve não só de tirar vantagem da hipossuficiência do imigrante e do ex-
-escravo, mas também de mobilizar, para não perder este último, o capital
simbólico que longamente construíra.

Em carta publicada em diversos jornais pouco antes da Abolição,


Paula Souza indicava como manter os negros ligados à casa, nesses di-
fíceis momentos de transformação: “Desde 1 de janeiro não possuo um
só escravo! Libertei todos, e liguei-os à casa por um contrato igual ao
que tinha com os colonos estrangeiros (...) no pequeno discurso que lhes
fiz ao distribuir as cartas, falei-lhes dos graves deveres que a liberdade
lhes impunha, e disse-lhes algumas palavras inspiradas no coração (...)
declarando-lhes (...) que minha casa continuaria sempre aberta para os
que quisessem trabalhar e proceder bem. À exceção de três (...) todos
ficaram comigo, e são os que me rodeiam, e junto dos quais me sinto feliz
e contente”128 (g.n.).

O ato de alforriar não comprometia, aqui, a existência da casa – antes


parecia expressar sua persistência no imaginário da sociedade. O cálculo
econômico racional, feito de modo objetivo em meio à crise do modelo
escravista, combinava-se com o recurso ao velho paternalismo doméstico,
escorado em expectativas fomentadas e realimentadas pela tradição. Isso
tudo às vésperas do momento em que a casa sofreria uma traumática in-
cursão da estatalidade, afetando a trama de suas relações internas.

Uma “ofensa que a todos encheu de pasmo e nojo”, um “golpe ter-


ribilíssimo” que teria deixado “o Brasil inteiro (...) surpreendido” e cau-
p.272).
128 – Apud CASTRO, Hebe Mattos de. Op.cit., pp. 365-6 . Para uma análise do pro-
cesso de conversão das ex-escravas em criadas de integrantes da família Paula Souza,
cf.TELLES, Lorena F. da Silva. Op.cit., p.183ss.

362 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

sado um grande “abalo (...) entre todos os lavradores” – assim descreveu


Ferreira de Rezende a Abolição129. Mesmo falando em um “cancro da
escravidão”, este bacharel liberal e fazendeiro indignou-se com o que via
como uma invasão da esfera doméstica, em meio às “ameaças de novas e
maiores opressões” oriundas do Estado imperial, supostamente inspirado,
aqui, em “interesses inconfessáveis” e em “um servilismo, nerônico ou
inteiramente oriental”130. Em “Minhas Recordações”, o autor deplorou
que “os antigos laços de família que (...) haviam prendido” os “senhores”
e “seus libertos” não houvessem podido se converter “em relação de ami-
zade e de mútuos e sinceros bons ofícios”: “a alma danada da monarquia
ou (...) a sórdida ambição de um estrangeiro” haviam transformado ou
tentado transformar “em inimigos a pessoas que pareciam destinadas pela
própria natureza para nunca de todo se desprenderem”131.

Podendo ser a um tempo “cidadão” e “homem particular ou (...) pai


de família”132, Ferreira de Rezende defendia este último com a argumen-
tação política que aprendera para defender o primeiro, desde a infância
entre os liberais de Minas e seus estudos no Largo S. Francisco. Também
sabia, no entanto, invocar o tradicionalíssimo discurso sobre a casa – su-
posta esfera de funções naturais, lealdades quase desinteressadas e de po-
deres insuprimíveis. Diante do “golpe” estatista da Abolição, dizia: “Os
meus libertos me declararam, que nem um só deles se retiraria, sem que
primeiro me houvessem colhido todo o meu café (...) enquanto se con-

129 – REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações. S.Paulo, 1988,
pp. 416, 417 e 418.
130 – REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Op.cit., pp. 416-8. Descrevendo as
leis antiescravidão como expressões de um Estado já potencialmente perigoso à própria
ordem social, cf. as opiniões do Barão de Cotegipe em GRAHAM, R. Op.cit,, pp. 191-2.
Passando a impressão de que o apoio imperial às medidas emancipacionistas de 1871 é
que teria, no fundo, levado José de Alencar a comparar D.Pedro II a um “ditador”, MO-
RAES, E. de op.cit., pp. 73-4.
131 – REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Op.cit., p.416. O estrangeiro talvez seja
o Conde D’Eu, indireto beneficiário da popularidade da signatária da Lei Áurea.
132 – Cf. a descrição desses papéis nos relatos sobre o pai do autor (REZENDE, Francis-
co de Paula Ferreira de. Op.cit., p.145).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 363


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

servaram em minha casa, nunca se afastaram na menor cousa do antigo


regime e da antiga disciplina.”133

O Estado Imperial não interferiu na casa alheia só quando legislou


para libertar gradualmente os escravos134. Fez isso, na verdade, toda vez
que se imiscuiu nas relações seculares entre eles e seus amos135, mesmo
que para resguardar os papéis tradicionais.

Talvez já houvesse algo de paradoxalmente subversivo até na sim-


ples atitude do Conselho de Estado, de pôr-se a conjecturar se o cativo
133 – REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. op.cit., p. 419. Para a descrição de
medidas abolicionistas como “golpes” sobre os lavradores, cf.Idem, ibidem, pp. 416 e 418.
Que esse apelo ao imaginário tradicional por si só não bastava, isso logo foi demonstrado
na prática. Os “meus libertos” de Ferreira de Rezende não eram mais, a rigor, dele – finda
a colheita, eles “foram pouco a pouco se retirando”, abandonando a “casa” do fazendeiro-
-advogado liberal (v.REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Op.cit., p.419). Nisso se
confirmavam, aliás, as expectativas dos antiabolicionistas, de que a libertação pelo Estado
podia libertar os escravos em demasia, comprometendo não só a propriedade do amo, mas
também os demais vínculos dele com tais súditos domésticos (sobre tais temores, cf.as
opiniões transcritas em MENDONÇA, J.N. Entre..., p.72; e MENDONÇA, J.N. Cenas...,
pp. 42, 44 e 98).
134 – Contra a opinião corrente, Joseli Mendonça mostra nesse ponto a importância da
tão desprezada Lei dos Sexagenários. Ao contrário da Lei do Ventre Livre, o diploma de
1885 fazia o Estado arrancar da sujeição doméstica quem já era escravo, criando assim
um precedente perigoso para o poder senhorial (cf. MENDONÇA, J.N. Entre..., p.206 e
sobretudo MENDONÇA, J.N. Cenas, p.105).
135 – A ordem doméstica tradicional corria riscos mesmo quando exposta só a interferên-
cias governamentais passageiras ou a temporários reflexos da expansão da estatalidade.
Daí a indignação com jovens juízes “inexperientes e precipitados” que, “à mais leve quei-
xa de um escravo” submetido a “simples e leve correção”, ousavam desmoralizar os amos,
repreendendo-os “diante dos injustos queixosos”. Tampouco era ingênuo o deputado que,
em 1853, advertia que as buscas policiais de africanos ilicitamente importados poderiam
enfraquecer a supremacia senhorial, estimulando a insubordinação “nas nossas fazen-
das” (v. as manifestações transcritas em COSTA, Emília Viotti da. Op.cit, p.346, e CHA-
LHOUB, Sidney. A força, p.171. Sobre a busca nos engenhos como medida traumática e
exemplar, cf. também MORAES, Evaristo de. op.cit., p.53. Descrevendo, no entanto, os
engenhos imperiais como áreas de todo indevassáveis às “violências da polícia” e mesmo
cobertas, em “nosso direito público costumeiro”, por uma “imunidade”, VIANNA, Fran-
cisco José de Oliveira. Op.cit., v.1, pp. 245-6). Em 1809, o intendente Paulo Fernandes
Viana já salientava a conveniência do Estado combater os excessos de violência senhorial
“por meios particulares, e nunca judiciais”– mesmo porque, admitida uma judicialização
sistemática do problema, “serão tantos os pleitos, quanto os escravos, e seguir-se-ia uma
inquietação doméstica que influiria no Estado Geral da Sociedade (...)” (apud FERREI-
RA, Roberto Guedes. Op.cit., p. 268).

364 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

podia ou não ter um pátrio poder próprio – mesmo que a conclusão final
fosse a de que “o escravo, apesar de casado pela mesma forma que é o
homem livre, (...) somente tem aqueles direitos, pátrio poder e outros
direitos de família, que o senhor lhe quer permitir”136. Em última análise,
manifestando-se em decisões oficiais sobre casos concretos ou por meio
de normas gerais, o intento estatal de regular assuntos vistos usualmente
como próprios da “casa” tendia a gerar tensões.

O processo de expansão da estatalidade não dependia, a rigor, de


uma inserção dessas matérias no âmbito do Direito público do Império137.
O próprio Direito privado podia atuar aqui como vanguarda da juridi-
cização da esfera doméstica, fazendo com que a estrutura desta (antes
tida por natural) e seus poderes internos (não estatais e vistos como só
epitelialmente jurídicos) pudessem se converter, mais e mais, em objeto
de legislação estatal e de debate doutrinário à luz do direito oficialmente
reconhecido como válido.

Ao se estudar a colonização da casa pelo Estado, há que se perceber,


portanto, essa estatização indireta ocasionada pelo Direito privado em
um espaço cuja configuração estrutural e autonomia se lastreavam não só
em tradicionais direitos e poderes anteriores à separação entre Estado e
sociedade civil, mas também em todo um imaginário social realimentado
pelas práticas coletivas, pelos rituais familiares, pela religião138 e por uma
136 – Palavras do Visconde do Uruguai, em caso da década de 1850, no qual se negou
comutação de pena a escravo que assassinara o senhor em situação tida, à época, como de
“legítima defesa da honra” (apud CASTRO, Hebe Mattos de. Op.cit., p.354). Em contraste
com essa implacável lógica, sem concessões, do jurisconsulto conservador, a “regulação
prática” da vida do cativo no dia a dia parece ter sido, ao menos nos grandes centros ur-
banos, um pouco mais dúctil – contra a vontade dos amos e as faculdades da propriedade
senhorial resguardou o Estado, por vezes, a convivência conjugal dos escravos, inclusive
impedindo a venda destes “para fora da terra” (v.FERREIRA, Roberto Guedes. Op.cit.,
pp. 262-4)
137 – O que não implica afirmar a inutilidade deste aqui – mesmo quando desconsiderado
o âmbito penal. Era de direito público que se tratava, quando o Conselho de Estado, por
exemplo, se punha a censurar ordens religiosas, por má gestão de suas fazendas e por uma
alegada incapacidade de “conservar a devida disciplina e subordinação da escravatura”
(cf. a Resolução de 6/7/1854 da Seção de Justiça, com trechos transcritos em PENA, Edu-
ardo Spiller. “Burlas...”, p.191).
138 – Advirta-se, aliás, que o uso da religião para fortalecer o poder doméstico não pode

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 365


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

perpetuação naturalizadora de velhos mecanismos domésticos de contro-


le e violência.

Paradoxalmente estatizante em uma visão mais ampla, essa juspri-


vatização da casa foi impulsionada, não raro de modo sutil, pelos nossos
civilistas do século XIX. Mesmo quando eles eram refratários ao aboli-
cionismo, profissionalmente fiéis às fontes romanas ou partidários da li-
mitação liberal do Estado, tendiam na prática a expandir, em seus escritos
e embates doutrinários, o campo do “jurídico” na esfera da casa (ou o
grau de juridicidade das relações internas desta última).

Podiam colidir, então, lógicas de espaços diferentes. Os jurisconsul-


tos até podiam divergir sobre o destino dos filhos da escrava alforriada sob
condição139 – mas o mais importante, porém, é que o estavam discutindo
pública e intensamente, podendo assim inspirar soluções de casos reais
relativos à casa. Bacharéis podiam discordar quanto ao reconhecimento
da alforria como direito, sob determinadas condições – o próprio debate
disso, porém, já minava o consenso tradicional lastreador do poder do-
méstico. Note-se que a capacidade disciplinar e a legitimidade do senhor
também eram construídas a partir de uma “economia da graça”, na qual
desempenhavam um papel central a potencialidade das concessões aos
cativos e a definição da liberdade como dádiva140. Dentro desse quadro, a
alforria compulsória com fixação judicial do seu custo – propugnada por
ser reduzido a um grosseiro reflexo de uma “infraestrutura” econômica em uma “supe-
restrutura” institucional ou cultural. A rigor, tal uso também interessava à própria Igreja
Católica, para legitimar práticas disciplinares em estabelecimentos eclesiásticos subsumí-
veis ao conceito de “casa” (como os seminários, abadias e escolas confessionais). Não por
acaso, comédias abordando essas práticas ganharam espaço em épocas em que o teatro
também veio a investir duramente contra o despotismo doméstico – em autores como
Martins Pena, vemos bem essa paralela luta em dois fronts (cf. MARTINS PENA, L.C.
Op.cit., pp. 92-3, 107, 131, 138, 143 etc).
139 – Sobre o tema, cf. sobretudo a obra Pajens da casa imperial de E. Spiller Pena
(Campinas, 2001).
140 – Mesmo que feita contra pagamento, a alforria tinha de ser vista como “graça”,
concessão ou dádiva. Concebê-la como direito – já alertou S.H. Lara – minaria a base do
sistema de domínio, pondo em xeque a vontade senhorial (sobre o assunto cf. também
CASTRO, Hebe Mattos de. Op.cit., p.354, e – destacando a importância do dinheiro e
das estratégias do cativo em muitas manumissões – PAIVA, Eduardo França. Op.cit., pp.
167-8 e 212).

366 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Caetano Soares, em 1852141 – poderia ter tido, à época, mais implicações


do que hoje perceberíamos à primeira vista.

Essa tendência à juridicização refletia, também, o maior peso especí-


fico dos juristas letrados nessas paragens – um dos aspectos da “ascensão
do bacharel” já diagnosticada por Gilberto Freyre142. Para ele, juntamen-
te com a expansão da magistratura estatal e de outras instituições143, tal
fenômeno teria contribuído substancialmente para enfraquecer o poder
patriarcal.

Este até haveria – diz Freyre – se estendido aos sobrados das ci-
dades em expansão, na forma mitigada de um “semipatriarcalismo”144.
Comparado ao Brasil-Colônia, o período imperial teria mostrado, porém,
“menos patriarcalismo, menos absorção do filho pelo pai, da mulher pelo
homem, do indivíduo pela família, da família pelo chefe, do escravo pelo
proprietário; e mais individualismo – da mulher, do menino, do negro
(...)”145.

Nem todos os indícios que Freyre apresenta comprovam a exatidão


de tal ponto de vista. A suposta multiplicação dos raptos146 poderia apon-

141 – Cf. PENA, Eduardo Spiller. Pajens, p. 81.


142 – Cf. FREYRE, Gilberto. Sobrados, pp. 18-9 e 573ss.
143 – “O absolutismo do pater familias na vida brasileira (...) foi se dissolvendo à medi-
da que outras figuras de homem criaram prestígio (...) À medida que outras instituições
cresceram em torno da casa-grande, diminuindo-a, desprestigiando-a, opondo-lhe contra-
pesos à influência: a Igreja pela voz mais independente dos bispos, o Governo, o Banco, o
Colégio, a Fábrica, a Oficina, a Loja.” (FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.122).
144 – V. FREYRE, Gilberto. Sobrados, p. 122. O autor por vezes relativiza, todavia, a sua
própria relativização, adotando nesse ponto entendimento análogo ao de Cabral de Mello:
“A família de sobrado urbano foi tão patriarcal quanto a de casa-grande rural” (MELLO,
Evaldo Cabral de Op.cit., p.414).
145 – FREYRE, Gilberto. Sobrados, p. 22. Para uma análise do impacto da “emergência
das individualidades” nos retratos oitocentistas, cf. LAVELLE, Patrícia. O espelho distor-
cido. Belo Horizonte, 2003, pp. 78-9. Analisando as combinações, em fotografias, do in-
dividualismo ascendente com os ideais tradicionais do patriarcado, cf. MUAZE, Mariana.
Op.cit., pp. 138, 148-9, 165 e 171.
146 – Cf. FREYRE, Gilberto. Sobrados, pp.129-130. Se a soma do crescente individualis-
mo oitocentista com a velha priorização canonística da vontade dos nubentes já bastasse
por si só para conter um poder paterno medularmente debilitado, para que seriam neces-
sários, então, esses mesmos “raptos”?

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 367


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

tar na direção oposta, evidenciando a renitente vitalidade do patriarca-


lismo imperial. Igualmente problemática é a hipótese de que a vinda da
Corte e a correlata expansão do aparato estatal teriam sido percebidas, já
à época, como causas da substituição, nas cidades, do “poder patriarcal
familial” pelo “poder suprapatriarcal” do monarca147 – o autor não dá
as fontes dessa alegada percepção, que por sinal poderia refletir não o
triunfo definitivo do Estado sobre a casa, mas simplesmente a estranheza
das pessoas em face do que pareceria novo e diverso: a intensificação da
presença da Coroa. Assim como os modelos culturais estrangeiros e a cri-
se do sistema escravista, a expansão das profissões liberais, do comércio
urbano148 e da administração pública hão de ter acelerado o desgaste das
fundações da sociedade tradicional – mas também geraram efeitos cola-
terais (como certa tendência à desnecessidade do dote) que ajudariam a
conservar, no interior da casa, a assimetria do poder149.

A expansão da estatalidade tendia a fazer com que, cedo ou tarde, o


Estado passasse a se meter mais e mais com os filhos e as mulheres dos
outros150. Na esfera doméstica, não eram só os escravos que se subme-

147 – FREYRE, Gilberto. Sobrados, p. 305 – que também inclui os bispos nesse “poder
suprapatriarcal”. Feitas para desvelar visões de mundo e não para decifrar o mecanismo
imperial de separação de poderes, essas opções terminológicas de Freyre não o tornam
corresponsável pelas posteriores tentativas – algo apressadas – de equiparar o Poder Mo-
derador imperial (versão local do “poder neutro” de Constant) ao “poder pessoal do senhor
de escravos no âmbito de seu domínio familiar” (v.SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial.
Rio de Janeiro, 1996, p.142. No mesmo sentido MALERBA, Jurandir . Op.cit., p.77-8 –
senão mesmo MATTOS, Ilmar Rohloff de. op.cit. Sobre a ideia de “poder neutro”/”poder
real”, cf.CONSTANT, Benjamin. Op.cit., p.13ss, esp.p.14).
148 – O impacto das novas práticas capitalistas urbanas sobre a casa – redimensionando
o poder patriarcal sem no entanto eliminá-lo – é bem retratado nas comédias oitocentistas
(cf., e.g., ALENCAR, José de. “Verso e reverso”, p. 269).
149 – Reduzindo nos homens jovens a dependência econômica em face dos dotes das noi-
vas potenciais, a expansão supracitada pode ter enfraquecido frequentemente, na prática,
a posição da esposa no jogo de poder conjugal. Como lembra Nazzari, no século XIX
difundiu-se, fora dos estratos populares,“um novo tipo de casamento”, “em que, inicial-
mente, apenas o marido (...) sustentava a esposa e filhos” (NAZZARI, Muriel. Op.cit., pp.
239-240).
150 – Não se limitando apenas ao Brasil, havia aqui um fenômeno de amplo alcance – ob-
servável, no século XIX e no início do XX, até na esfera colonial. Territórios portugueses
na África, por exemplo, passaram a ganhar diplomas que, mesmo apresentados como
simples codificações de usos nativos tradicionais, no fundo almejavam também a “suavi-

368 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

tiam à disciplina e ao teatro de precedências do poder patriarcal. Não por


acaso, a associação entre o poder do senhor e aquele do pai ou marido
podia seguir embasando, na segunda metade do século XIX, argumentos
de juristas151. Opondo-se à libertação da prole das senzalas defendida por
Rio Branco, um inesperado defensor da casa – Perdigão Malheiro – não
hesitou em lembrar que a alternativa à preservação da ordem domésti-
ca podia ser o caos: “Proclamai a emancipação da mulher e dos filhos,
onde irão parar as relações de família, a ordem social e todas as suas
consequências?”152

Mesmo que possam tender, por vezes, a ver ou descrever mais, do


Brasil, o que então pareceria exótico e arcaico, o fato é que os observa-
dores estrangeiros não raro disseram ter visto aqui o chefe de família go-
zando da “autoridade primitiva”153, com a esposa vivendo como “a kind
of house prisioner”154. Talvez projetando aqui visões mourisquizantes do
ibérico, Saint-Hilaire via por toda parte, à época da Independência, um
ocultar das esposas por paredes e mantilhas155 – no que seria secundado,

zação do pátrio poder” e a repressão estatal aos “crimes cometidos à sombra da autoridade
familiar” (como registrava Marnoco e Sousa – apud SILVA, (Ana) Cristina Nogueira da.
Op.cit., pp.910-911).
151 – Mesmo nas memórias de um bacharel-fazendeiro tal associação podia surgir, em
observações esparsas (cf.REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Op.cit., p.178).
152 – Apud PENA, Eduardo Spiller. Pajens, p.336.
153 – Juízo de Émile Adet, feito, em meados do século, a partir do que teria visto no Rio
de Janeiro e em outras cidades (v. FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.305).
154 – No dizer de um norte-americano, também em meados do século (apud FREYRE,
Gilberto. Sobrados, p.62). Segundo outra fonte estrangeira, as mulheres cariocas esta-
riam submetidas, por volta de 1832, a “maridos ciumentos e brutais” (v. Idem, ibidem,
p.38). Sobre uma prática realmente mais próxima do aprisionamento – o recolhimento
compulsório da esposa em estabelecimentos religiosos, por iniciativa marital, cf.SILVA,
Maria Beatriz Nizza da. Op.cit., p.256ss. Sobre o uso destes como “cadea politica”, pelos
próprios governadores da Bahia colonial, para conter “mulheres dissolutas” que “parece-
ria escandalozo” mandar “para a cadea publica”, v.VILHENA, Luiz dos Santos. Op.cit.,
p.472. Para um exemplo típico de pedido de encerramento de esposa em convento, cf.
DOCUMENTOS INTERESSANTES, v.95, p.198.
155 – Mal contendo sua ânsia em revelar o exótico e pitoresco, o autor trata em diversas
passagens do tema da ocultação das mulheres (cf.SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem
`Província de São Paulo. S.Paulo/B. Horizonte, 1976, pp. 95-6, 136 etc.; e SAINT-HILAI-
RE, Auguste de. Segunda viagem... São Paulo/Belo Horizonte, 1974, pp. 47, 49-50, 51,
56 e 73).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 369


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

já por volta de 1860, pelo português Zaluar156. Segundo o francês, até


na “mais modesta choupana”, adentrar os recintos de ocultação feminina
seria, para um visitante, “o máximo da temeridade”157.

O destacar do patriarcalismo parece ter sido uma constante dessa


literatura de viagens. Segundo J. Arago158, “não há país em que os filhos
testemunhem maior respeito aos pais”. “Depois da refeição” – explicava –
“sempre lhes beijam as mãos e nunca se sentam em sua presença, a menos
que autorizados por um gesto ou olhar”159. Ávido coletor de exotismos,
Saint-Hilaire também registrou a prática, embora visse esse “hábito anti-
go” cair já “em desuso em muitas famílias160.

“Sempre rodeados de escravos, os brasileiros” – teoriza Saint-Hilai-


re – “estão habituados a não ver senão escravos em todos os seres a
161

quem são superiores seja pela força, seja pela inteligência. A mulher é,  na
maioria das vezes, a primeira escrava da casa, e o cão o último.” Ainda
em 1861, o padre Pinto de Campos via a mulher brasileira reduzida à
“posição (...) de ídolo domado ou máquina reprodutora”162. Tem-se aqui
156 – Cf. ZALUAR, Augusto Emilio. Op.cit., pp. 76 e 84.
157 – SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem, p.96. Essa opinião se coaduna com a de
observadores nacionais: descrevendo as fazendas da “Campanha” mineira, Ferreira de
Rezende as compara à “casa de um turco”: “Naquele recatado interior nenhum estranho
penetrava que vestisse calças, a não ser algum parente muito próximo e às mais das vezes
ainda era preciso que ou fossem muito velhos ou muito crianças” (REZENDE, F.de P.F.
de Op.cit., p.178).
158 – Apud FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.459.
159 – Apud FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.459.
160 – SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem, p. 51-2.
161 – SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem, p.102 (com alguma relativização, porém,
na n.241 ali situada). Quanto ao degrau comum dos escravos e crianças nos pronomes de
tratamento oitocentistas, cf. BINZER, Ina von. Op.cit, p.106. Em sua oferta de apoio a
régulos domésticos com súditos problemáticos, a legislação do século XIX sobre casas
de correição por vezes pôs lado a lado “os escravos” e “os filhos-família” (cf., e.g., o
diploma cearense de 1835 parcialmente transcrito em CUNHA, Manuela Carneiro da.
Op.cit., p.135).
162 – Apud FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.115. Algumas décadas antes, ainda se apre-
sentava como noiva ideal, em pleno Rio joanino, uma “sinhazinha” que “não sabe dançar
nem tocar (...) nem discorrer nas guerras”, mas se mostrava capaz de “satisfazer” o futuro
marido “em tudo que pertence ao governo da casa” – inclusive na direção dos escravos,
aprendida em um lar materno regido “ao som do chicote e palmatória” (cf. a carta trans-
crita em DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São

370 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

– como de resto nos escritos de Gilberto Freyre – um quadro de tinturas


fortes, resultante de um forte desejo de espantar ou de mudar condutas163.
A vida há de ter tido mais nuanças164, perceptíveis sobretudo por meio de
um focar microscópico em casos específicos. Padrões patriarcais de com-
portamento podem estar mais difundidos nas fontes do que na realidade
familiar e ter maior eficácia concreta em uns grupos sociais do que em
outros165.

Padrões de comportamento, porém, influenciam condutas – e podem


ser reforçados pelo discurso jurídico mesmo em períodos de transforma-
ção social. A velocidade com que a família, no meio urbano, se convertia
de unidade de produção em unidade de consumo não era necessariamente
a mesma da alteração das concepções jurídicas tradicionais sobre as re-
lações intrafamiliares de poder. Os papéis de pai, marido e amo podiam

Paulo, 1995, p.38).


163 – O próprio Freyre, alias, ambiciona mudar comportamentos, fazendo com que seu
leitor dê maior atenção aos impactos histórico-culturais dos modos de viver, passando a
menosprezar as explicações racistas ou marxistas sobre o Brasil (cf., e.g. FREYRE, Gil-
berto. Sobrados, p.658, bem como p.L-LI, LXIX, 96, 103 e 657).
164 – Quando uma comédia oitocentista, por exemplo, vê os “maridos” reduzidos a “cria-
dos” de mulheres passeadeiras, retratam-se a um tempo práticas esvaziantes do poder
doméstico e o desconforto com a inobservância de uma concepção idealizada deste úl-
timo (cf.LEÃO (QORPO-SANTO), J.J. de C. “O marinheiro escritor”. In: MATE, A./
SCHWARCZ, P. Op.cit., p. 403).
165 – Mesmo em relação ao período colonial (apogeu do patriarcalismo, segundo Freyre),
pesquisas mais recentes, como as de Luciano Figueiredo, indicam a existência de nu-
merosas famílias organizadas fora das concepções ideais tradicionais (cf.FIGUEIREDO,
Luciano R. de A. O avesso, sobretudo pp. 12 e 125. No mesmo sentido e adentrando as
primeiras décadas do Império, DIAS, Maria Odila da S. Op.cit., p.30ss. Sintetizando a
discussão acadêmica, comparando áreas do país e trazendo dados novos de regiões de
fronteira no século XIX, PERARO, Maria Adenir. Op.cit., pp.74ss, 77, 117ss e 124ss).
Mesmo onde as estruturas pareciam se reproduzir de modo mais ortodoxo, a divisão con-
creta dos poderes da casa podia apresentar, veladamente ou não, variações e esvaziamen-
tos do poder marital. Isso se nota inclusive em um dos casos expressamente invocados por
Freyre para fundamentar suas teses sobre a sujeição da mulher – o de Dona Manuela de
Castro, esposa do Barão de Goiana. Segundo João Alfredo Correia de Oliveira, ao menos
em assuntos da esfera doméstica, “a baronesa, com seus ares de passividade e obediência,
fez o que quis; e o barão, com toda a sua autoridade e mando, (...) submeteu-se aos hábitos
que o contrariavam” (apud MELLO, Evaldo Cabral de. Op.cit., pp. 397-8 – que adverte
ser tal quadro compatível com a monopolização, pelo marido, do trato dos negócios e
assuntos políticos. Sobre a baronesa, cf. também FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.112).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 371


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

preexistir à sua teorização jurídica em nossas faculdades, mas estavam


bem cimentados na doutrina, podendo então acomodar-se às moderniza-
ções desta e seguir tendo, na própria ideia de autonomia do Direito, um
apoio para resistir a questionamentos políticos e a práticas sociais tidas
por desviantes166.

A Independência e a constitucionalização do país longe estiveram de


causar uma ruptura total com as tradições doutrinárias herdadas do Anti-
go Regime. Se isso não se deu nem mesmo na França, celeiro de doutri-
nadores e de revoluções167, não seria de se esperar algo assim no império
sul-americano dos Bragança, em que atuava um número muito inferior de
jurisconsultos, acostumados a buscar soluções de casos em Mello Freire
ou nos antigos praxistas. Não se deve subestimar, no quadro brasileiro do
século XIX, o peso, no ensino e no foro, da doutrina do Antigo Regime168.

166 – Dentro desse quadro, talvez não coubesse ver com espanto o uso “juscientífico” do
Direito romano por Teixeira de Freitas, com o fim de negar pronta liberdade à prole da es-
crava testamentariamente alforriada sob condição. A necessidade de conservar e aumentar
seu prestígio social como jurista, a sua forma rigorista-oitocentista de lidar com as fontes
romanas e a sua própria crença na autonomia do direito podem ter pesado, aqui, mais do
que o fato de Teixeira possuir escravos ou pecar (talvez no inferno das retroprojeções) por
uma insensibilidade social.
167 – Consolidada no período napoleônico, a codificação pós-revolucionária – mesmo re-
moldando profundamente a ordem jurídica – não foi sempre infensa à influência doutriná-
ria passada. Quando Portalis admitia que o Código Civil de 1804 levava em consideração
o droit naturel , os coutumes franceses e a raison écrite do Direito comum (cf.PORTALIS,
Jean-Etienne-Marie . Op.cit., pp. 18, 20, 22, 24, 27, etc.), no fundo estava a remeter igual-
mente à tradição doutrinária relativa a tais fontes. Embora a Revolução e a Codificação
constituíssem notáveis rupturas, o respeito à tradição doutrinária – tão conveniente para
fortalecer os juristas letrados em face dos leigos – logo encontrou outros caminhos para
sua manifestação (cf.HESPANHA, António Manuel. “Um poder...”. In: FONSECA/R./
SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-Leite. (org.) História do direito em perspectiva.
Curitiba, 2008, p.149ss- com sua análise de Portalis nas pp. 163-4).
168 – Não há nada de absurdo no fato de que os juristas letrados brasileiros do século XIX
se inserissem em tradições iniciadas bem antes do liberalismo, usando-as para marcar seu
espaço de poder social (como campo de autonomia do Direito) e para resolver conflitos
em uma sociedade ainda marcada por diversos arcaísmos. Tais juristas não tinham o ônus
de viver para justificar, em um distante futuro, apressadas interpretações generalizantes
recheadas de “ismos” – que só mereceriam o nome de “história das ideias” se fossem
vistas, elas próprias, como fontes primárias indicativas das ideias de seus formuladores.

372 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Publicadas primeiramente entre 1789 e 1793 e logo adotadas como


compêndio de “Direito Pátrio” por determinação governamental, as “Ins-
titutiones Juris Civilis Lusitani” de Paschoal de Mello Freire seguiriam
sendo muito lidas no século XIX. Em plena década de 1830 ainda compu-
nham a base do ensino tanto nas jovens faculdades brasileiras quanto em
Coimbra, onde tardaria a ocorrer a sua substituição no ensino do Direito
privado (1843/1844) e no do Direito administrativo (1854)169. Como ou-
tras obras do mesmo autor, as “Institutiones” veiculavam pontos de vista
jusracionalistas e iluministas, mas ao mesmo tempo buscavam um com-
promisso entre estes e o que apresentavam como a tradição portuguesa,
mostrando certa preocupação em defender o catolicismo e em especial as
prerrogativas da Coroa170.

Influenciado por Montesquieu, Beccaria, Thomasius e Filangieri e


profundamente identificado com o Absolutismo Reformador pós-pom-
balino, Mello Freire não era a rigor um tradicionalista, tendendo mesmo
a contestar normas e crenças por sua irracionalidade intrínseca ou obso-
lescência. Extremamente inovadora no quadro lusitano, sua obra ainda
sintetizava em alguns pontos, contudo, posições anteriores ao Iluminis-
mo, corroboradas pela ordem jurídica herdada do passado. Isso podia de-
correr, em parte, de condicionamentos inerentes aos gêneros literários
empregados171 ou mesmo de diretrizes governamentais expressas para se

169 – Sobre a obra e seu impacto cf. STOCKLER, Francisco de Borja Garção. Elogio
historico. Lisboa, 1799, p.25, n.11; Aviso Régio 7.5.1805. In: REIS, P.J. de M.F. dos
IJCL-DJP, s/p.; NABUCO, Joaquim. Op.cit., p.46; MERÊA, Manuel Paulo. “O ensino
do direito”. In:Jurisconsultos portugueses do século XIX. Lisboa, 1947, pp. 173 e 180-1;
MERÊA, Manuel Paulo. “Lance de olhos...” Boletim da Faculdade de Direito da Uni-
versidade de Coimbra. 33, 1957, p. 202; HESPANHA, António Manuel. “Sobre a prática
dogmática...”, pp.119, 128, 145 (n.101), 147 (n.119) e 148 (n.121); VENÂNCIO FILHO,
Alberto. Das Arcadas ao bacharelismo. São Paulo, 1982, pp. 33, 42 e 58; BRAVO-LIRA,
Bernardino. Op.cit., p.74, 107ss e 115-6; SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-Leite.
Polizei, p.110, n.11, e 123, n.60, etc.
170 – Para uma análise mais detida da posição de Mello Freire no contexto político e
intelectual de sua época, cf. SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-Leite. Polizei, pp.
122-156 e a bibliografia ali indicada.
171 – Contam-se entre seus principais escritos – importante é notá-lo – manuais de Direi-
to e projetos de codificação.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 373


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

respeitar essa mesma ordem172. Mas podia resultar, também, do singelo


fato de que o jurisconsulto, como outros lentes portugueses de sua época,
convivia em seu meio social com crenças e práticas profundamente enrai-
zadas, capazes de parecer óbvias derivações da natureza das coisas mes-
mo a alguém que, como ele, admirava Voltaire até quando o censurava173.

A tensão entre o novo e o tradicional, em Mello Freire, era também


visível no que tange à casa. Ousando insinuar a falta de lastro jurídico
para a escravidão negra no Brasil174, parecia negar poder aos amos – mas
não deixava, logo depois, de tratar detalhadamente das relações destes
com seus criados, talvez levando em conta o relevo do âmbito doméstico
na sociedade da época175. Pensava as relações pai-filho a partir de po-
sições estruturais, invocando analogicamente a situação dos escravos176;
descartava, porém, tal paralelo em se tratando das esposas177. Fundando
no direito natural e nas Ordenações o poder do esposo de corrigir a mu-
lher indócil, admitia boa parte do repertório tradicional de poderes dis-
ciplinares maritais, dos castigos “moderados” ao assassinato da mulher
adúltera178; não o fazia, porém, com o mesmo entusiasmo que demonstra-
va na defesa de diversas causas de cunho político ou humanitário.

172 – Sobre a finalidade didática que estaria por trás da estruturação interna das “Institu-
tiones”, cf. REIS, P.J. de M.F. dos IJCL-De Jure Personarum, p.7 (II,I,I) – bem como a
análise de STOCKLER, Francisco de Borja Garção. Op.cit., pp. 15-6. Sobre a estrutura
do “Novo Código”, cf.REIS, Paschoal José de Mello Freire dos.. O novo código, “In-
troducção”, p. IX. Sobre o tema, cf. ainda, entre outros, HESPANHA, António Manuel.
“Sobre a prática...”, p.126; SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. da Op.cit., p.285; COSTA,
Mário J. de A. Op.cit., pp. 373-4; e SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-Leite. Polizei,
pp. 132-3.
173 – Sem esconder sua admiração pelo pensador francês, M. Freire não hesitaria, porém,
em recomendar, como censor, a proibição em Portugal do “Commentaire sur Le livre des
délits et des peines” (cf.BRAGA, (Joaquim F.) Teophilo. História da Universidade de
Coimbra. Lisboa, 1898, v.3, pp. 73-4).
174 – Cf. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL-De Jure Personarum, p. 9
(II,I,XII).
175 – Parecia predominar, nesse ponto, a simples descrição do Direito vigente (cf. REIS,
Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL-De Jure Personarum, p.12 (II, I, XVI).
176 – Idem, ibidem, p.111 ( II,V,I).
177 – Cf. Idem, ibidem, p.153 (II,VII,IV).
178 – Cf. Idem, ibidem, p.151-2 (II,VII,I-II-III).

374 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Em relação ao pátrio poder, Mello Freire podia até falar de um “im-


pério doméstico” sobre os filhos vinculados à casa e família do pai179–
mas frisava não existirem aí prerrogativas de proprietário180. Atributo do
régulo doméstico inextensível à sua esposa, tal poder implicaria o direito
de representação judicial e de uso gratuito de serviços181.

Obcecado em fortalecer a Coroa, o jurisconsulto esforçou-se, tam-


bém, para impor limites àquele que era visto como contrapartida e reflexo
do rei na esfera da casa182. Tanto assim que incluiu o exercício de ofícios
régios e outras formas de independência econômica entre as causas de
cessação do poder paterno183. Em seu “Novo Código”, Mello Freire co-
meteu a ousadia de afirmar que este último defluiria de uma delegação
legislativa, como se fosse o monarca a fonte e origem das jurisdições na
esfera doméstica184.

Moderno era Mello Freire ao tentar reduzir a duração do pátrio poder,


invocando os espaços conquistados pelos filhos no comércio, no Estado e
na advocacia; tradicional era, contudo, quando condicionava à criação de
um novo governo doméstico a libertação em face do governo anterior185.
Por sinal, para compreendermos tal condicionamento nos quadros do An-
179 – V. Idem, ibidem, p.102 (II, IV,V).
180 – Cf. Idem, ibidem, p.103 (II,IV,VII).
181 – Idem, ibidem, pp. 104 (II,IV,IX) e 105 (II,IV,XI).
182 – Mello Freire invocava muito o modelo do governo doméstico para justificar o poder
real. Quando ambos, porém, podiam disputar espaços de decisão, era a este que tendia a
dar precedência, mesmo nos assuntos internos da casa (cf., por exemplo, REIS, Paschoal
José de Mello Freire dos. O novo código, pp.12, 94, 135-9, 144, 357 etc.). Ao “patrio
e supremo poder” régio deveria sujeitar-se “toda a pessoa pertencente a uma familia”,
fosse “cabeça, ou membro della”– podendo o soberano emendá-la ou reprimi-la “extra-
judicial, economica e paternalmente”, para proteger o “decoro, reputaçao, conservação,
augmentos e fortunas domesticas” (REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo
código, p.144). Enfatizando o “poder economico” da Coroa, o jurisconsulto justificava
seu controle sobre todas as pessoas, corporações e instituições do reino – o que implicava
também o controle do monarca sobre a casa, como paternal protetor desta última.
183 – REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL-De Jure Personarum, pp. 109
(II,IV,XIV) e 132-3 (II,V,XXVI e II,V,XXVII).
184 – REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código, p. 146 (XLIII,§17).
185 – Isso é o que parece defluir da leitura conjunta de REIS, Paschoal José de Mello
Freire dos. IJCL-De Jure Personarum, pp. 131-3 (II,V,XXVI-XXVII), com pp. 128-9
(II,V,XXII).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 375


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

tigo Regime, temos de voltar à ideia de casa, microrreino do governo


doméstico.

Nas “Instituições”, Mello Freire por vezes colocava lado a lado o


“doméstico” e o “familiar”, a “casa” e a “família” – indicando proximi-
dades, mas também diferenças sutis e complementaridades186. A “casa”
podia remeter mais fortemente, por vezes, à concepção de uma estrutura
de poderes atuante como unidade econômica187 – ou, em se tratando da
dinastia reinante, a poderes e jurisdições sobre terras e pessoas188. Em
outras ocasiões, contudo, o próprio conceito de “família” era casificado,
vendo-se seu núcleo na reunião de várias pessoas sob um poder comum189.

Não foi só nessas passagens, contudo, que Mello Freire divulgou o


imaginário da casa como corporação, cuja gestão interna (“oeconomia”)
guardaria similitudes com um governo monárquico. Ele o fez, também,
em seus escritos de juspublicista, nos quais veiculou – a partir da equi-
paração entre o sumo imperante e o chefe de família190 – toda uma teoria
sobre o “poder econômico” real191.

186 – Cf., e.g., REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL-De Jure Publico, p.155
(I,X,XXV), e REIS, P.J. de M.F. dos. IJCL – De Jure Personarum, p.102 (II,IV,V) e
(II,VI,III).
187 – Talvez tenhamos um indício disso na própria definição da unidade tributável em
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código, p. 98.
188 – Como parece ser o caso das referências à Casa do Infantado e de Bragança
(II,III,LVII e LVIII). Cabe recordar que se atribuía ao próprio monarca uma “casa” sua, a
rigor distinta da “grande casa do reino” – daí por que frisava Mello Freire a necessidade
de se “deixar ao Rei o modo e governo de sua casa, e a qualidade e distincções dos seus
criados” (v. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código, p.103. Para a visão
do assunto no pensamento político do século XVII, cf., por exemplo, VIEIRA, António.
Escritos históricos e políticos. Org. A. Pécora. S.Paulo, 1995, p. 287).
189 – REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL-De Jure Personarum, p. 101
(II,IV,III).
190 – Tal equiparação também ocorre, explícita ou implicitamente, em trechos do “Novo
Código” e das “Provas” destinadas a embasá-lo (cf. REIS, Paschoal José de Mello Freire
dos. O novo código, pp. 134, 144, 290, 362, 363. 364ss etc.).
191 – Sobre o exercício de “potestas oeconomica” pelo monarca para além dos limites
jurídicos, v. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL – De Jure Publico, p.155
(I,X,XXV). Aprofundando o assunto e apontando suas amplas implicações, cf. o título
“Do Poder Econômico” em REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código, pp.
144-6.

376 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Como cabia ao monarca, enquanto “pai de família”, defender a paz


e a segurança doméstica na grande casa do reino, impunha-se-lhe atribuir,
também, segundo Mello, uma “potestas oeconomica”192. Poder, sem dú-
vida, escorado no Direito, mas ainda assim livre, em certas situações, de
maiores amarras jurídicas193.

Como vemos, por mais avançadas que parecessem no quadro ibérico,


as “Institutiones” do lente coimbrão não romperam de todo com o discur-
so jurídico tradicional, no que se referia à esfera da casa. Inovando aqui
e ali, reproduziram em grande parte o imaginário herdado do passado,
embarcando-o em navio moderno, já livre do peso de algumas velharias.
Em Mello Freire e em outros autores, gerações e gerações de juristas
seguiram lendo, nas linhas e nas entrelinhas, sobre o reino como casa e
sobre a casa como reino, sobre o rei como pai e sobre o pai como rei.

As concepções sobre a casa veiculadas por Mello Freire ou pelos


velhos praxistas portugueses também podiam chegar aos juristas brasilei-
ros por meio de autores de segunda linha, mas estimados pelos práticos.
Usualmente mais conservador que o lente de Coimbra, Lobão194 destrin-
chou os tratados deste para os advogados e juízes, tendo ainda escrito
monografias úteis para o foro.

192 – V. REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. IJCL – De Jure Publico, p.155
(I,X,XXV). Não é só essa passagem que espelha a visão veiculada nas “Institutiones” – a
equiparação entre casa e reino, pai e rei também permeia o “Novo Código” elaborado por
Mello Freire e as “Provas” que o lastreiam (v.REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O
novo código, p.134, 144, bem como, nas “Provas”, pp. 362, 363, 364ss, etc.)
193 – Cf., por exemplo, a invocação desse poder para contornar, nas relações entre Rei e
Igreja, as fronteiras jurisdicionais básicas, herdadas do passado (REIS, Paschoal José de
Mello Freire dos. O novo código, pp. 144-§§ 4 a 6- e 363).
194 – Velho advogado interiorano, formado em Coimbra antes da Reforma Pombalina,
Manuel de Almeida e Souza era, na descrição de Herculano, “um letrado de curta inteli-
gência e nenhuma filosofia, chamado por alcunha o Lobão”. Seus livros, muito difundidos
no século XIX, seriam “mina inesgotável de alegações eternas e contraditórias, para ad-
vogados medíocres” (apud HESPANHA, António Manuel. “Um poder...”, p. 166, n. 57).
Um destacado civilista brasileiro do século XIX louvou o talento e a perspicácia de Lobão,
mas o descreveu também como “rude e indigesto”, por seu “estylo bárbaro” e “acrimo-
nioso como um polemista do século XVI” (v. PEREIRA, Lafayette Rodrigues . Direitos
de família. Brasília, 2004, p. 16).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 377


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

Era manifesto o desconforto de Lobão com algumas passagens mais


ousadas de Mello Freire, colidentes com as concepções tradicionais dos
papéis sociais. Não aceitava, por exemplo, que este – sendo consequente
na sua defesa sistemática da monarquia absoluta – livrasse “do poder pá-
trio todo o (filho) constituído em qualquer Dignidade, ou officio civil, ou
militar, indistincta, e absolutamente”195. A “economia separada” da “eco-
nomia paterna” – i.e., o viver por si, sem sujeição ao governo doméstico
na casa de origem – não bastaria para tanto, ainda que o filho houvesse
virado oficial da Coroa196.

Embora Lobão não empregasse amiúde, de modo explícito, os con-


ceitos tradicionais de “casa” e “família”197, suas obras veiculavam nume-
rosos trechos que podiam contribuir para sua difusão. Aqui, a definição
de “família” podia até não incluir a mão de obra subordinada, mas esta
voltava a compô-la, em meio a referências ao Direito romano, quando
aquela era descrita como uma “Sociedade domestica desigual entre os
cônjuges, filhos, e criados, etc”198. Já tratando da extensão de privilégios
de desembargadores e lentes a seus serviçais, o jurista acabava falan-
do em “familiares domésticos, contínuos e assalariados” – uma fórmula
que traía preconcepções tradicionalistas199. Ato falho semelhante encon-
tramos em passagem sobre os efeitos dos confiscos – falando-se ali dos
“filhos, criados, e mais pessoas da casa”200.
195 – LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas de uso pratico e criticas... Lisboa,
1816, II, pp. 235-6. No mesmo sentido, II, p.224.
196 – V. LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II, p.224 e 235- em interpretação
restritiva calcada nas Ordenações. Fora do quadro específico português, o autor parecia
no entanto admitir, nessa matéria, a relevância do filho viver em “Separação total da casa,
familia e mesa do pai”, tendo um estabelecimento próprio “com animo, e intenção de per-
petuidade; com o estabelecimento de trafico, ou negociação propria, economia, e família
particular” (v. Idem, ibidem, p.231).
197 – Para a definição de “família”, cf.LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II,
pp. 295-6. A obra de Lobão sobre as casas, por sua vez, se refere mais às edificações e seu
regime jurídico, ainda que mencione que “Também entre nós se chamão Cazas os grandes
Estados, como a Caza de Bragança” (LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Tractado
historico. 1815, p. 4).
198 – V. LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II, pp. 5 e 295-6.
199 – LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Tractado historico, pp. 23-24 (n.24). Cf.
também Idem, ibidem, p. 25 (n.26).
200 – LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, I, p. 328.

378 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Tema importante na obra de Lobão era a hierarquia doméstica, com


os poderes punitivos dela decorrentes201. “Como sujeita do seu marido”,
estaria a “mulher” inclusive obrigada a “denominallo senhor, como Sara
a Abrahão”202. Lembrando que o “Pai de familias” era em Roma “Magis-
trado domestico” e que os forais portugueses o livravam de pena quando
castigava até sangrarem “sua mulher e filhos, criados e escravos”, o autor
identificou aí – e no próprio Direito Natural – as origens mais remotas
do poder disciplinar doméstico de seu tempo203. Fazendo distinções sutis,
discutia se bofetadas do marido na mulher justificavam ou não a interfe-
rência espontânea dos magistrados, frisando a existência, nessa relação,
de um “poder de castigar por correção moderada”204.

Bem mais sofisticado e moderno que Lobão, Teixeira de Freitas tam-


bém carregava pesadamente, em si, suas experiências concretas com a
tradicional esfera da “casa”. Escrevendo em um século em que se deman-
dava a juridicização do poder205, o jurisconsulto baiano – como outros ci-
vilistas da época – jusprivatizou em larga medida a casa, tentando adaptá-
-la a um mundo jurídico já mais rigidamente bipartido entre o Direito
público e o Direito privado. Fez isso inserindo a velha estrutura em um
Direito Civil cuja renovação formal e cujas transformações concernentes
aos contratos e à transmissão de bens tendiam a ser bem mais profundas
do que sua inovação material, naquilo que podia afetar a esfera doméstica.

Preparando assim um novo legislar estatal que, regulando a velha


esfera não estatal da casa, formalmente a jusprivatizaria a fundo, o “Es-
boço” registrava camadas históricas sobrepostas. Isso é visível sobretudo

201 – Cf., por exemplo, a síntese feita em LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas ,
I, p.77ss.
202 – LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II, p.300.
203 – V. LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II, pp. 79-80. Cf. também idem,
ibidem, pp. 298.
204 – V. LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Notas, II, pp. 298 e 301. Sobre o direito
do juiz de agir de ofício quando a esposa fosse efetivamente ferida, cf. LOBÃO, Manoel
de Almeida e Sousa. Notas, II, p.82.
205 – Ou, em estratégia alternativa, a sua desconsideração – como indica o fechar de
olhos ao poder fático do industrial no recrutamento de operários vistos ideológica e juri-
dicamente como seus “iguais”, enquanto partes de um “contrato de locação de serviços”.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 379


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

na tentativa de enquadrar a casa no leito de Procusto do Direito Civil


oitocentista, mais precisamente no âmbito “Dos direitos pessoais nas re-
lações de família” (Livro Segundo, Seção II). Tentativa de requalificar o
familiar e de simplificar o complexo, cuja dificuldade se fazia evidente na
própria permanência, mesmo nesse autor obcecado por precisões, de dois
conceitos paralelos de “família”206.

O art.139 do “Esboço” já parecia determinar que o conceito mais


modernizante – “complexo de indivíduos de um ou outro sexo, que são
neste Código considerados parentes” – prevalecesse. O art.140, todavia,
logo insinuava um recuo, definindo “família” como “o complexo de in-
divíduos de um e outro sexo, que viverem na mesma casa, ou em diversa,
sob a proteção de um pai de família”207. A palavra “casa”, como vemos,
até podia remeter aqui à ideia de edificação – mas seguia conectada, em
grau não desprezível, à identificação da “família” com aquela velha uni-
dade construída, no imaginário social, sob a “proteção” – e portanto sob
o poder – do pai/marido/senhor208. Que o autor tenha refletido sobre tal

206 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Esboço do Código Civil. Brasília, 1983, p. 59.
207 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p.59. Ao que parece, outros codifica-
dores latino-americanos também teriam sentido, à época, alguma dificuldade em se des-
vencilhar, na estruturação jurídica da família, dessa conformadora centralidade do “poder
doméstico” tradicional (cf.RAMOS NÚÑEZ, Carlos . Op.cit., pp. 257-8).
208 – No período pré-Independência e mesmo após 1822, tal identificação ainda podia
ser um tanto automática. Em obra de 1786, Baltazar da Silva Lisboa recomendava casar
os escravos “porquanto os penhores da mulher e os filhos os ligarão estreitamente na
família do senhor, donde não desejarão sair (...)” (apud MARQUESE, Rafael de Bivar.
Op.cit., p.180). Azeredo Coutinho, por sua vez, alertava para a possibilidade de “crimes
(...) no íntimo de uma família”, envolvendo escravos e seus amos (apud MARQUESE,
Rafael de Bivar. Op. cit., p.190). E não faltou na Assembleia Constituinte de 1823 quem,
como Almeida Albuquerque, cresse que “negros arrancados da costa da África e de outros
lugares entram no número dos domésticos e formam parte das famílias” (apud LOUREN-
ÇO, Fernando A. Op.cit., p.101). Para mais indícios da forte identificação entre “casa” e
“família”, veja-se também o verbete “sobrenome” no Vocabulário Português e Latino do
Padre Bluteau – influente obra do século XVIII que também contrasta a “gente de casa”
das “casas-grandes” com as “pessoas de fora e sem ofício”, os mequetrefes empregados
em serviços eventuais (v. BLUTEAU, Raphael. Op.cit., v.5, p. 428, e v.7, p. 676. Sobre a
visão tradicional dos escravos como “simples ampliação do círculo familiar” do senhor, v.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op.cit., p.37.

380 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

duplicidade, nesse exato momento, a partir do código da Louisiana escra-


vista209 talvez não seja um fato de todo irrelevante.

Em outras passagens de seu projeto, Teixeira de Freitas conscien-


temente empregou esse segundo conceito de “família”- cujo “pedigree”
romanista não ocultava o enraizamento no imaginário local. A pena do
jurisconsulto o escancarava aqui e ali – como, por exemplo, na referência
a um “chefe de casa” no art. 1.674210. E se a terminologia adotada podia
corresponder, em outras passagens, à dos códigos europeus modernos211,
nem por isso, nesse ponto, seria de se descartar desde logo que a longa
sombra da casa se fizesse presente: nem o “Code”, na verdade, a havia
eliminado em seu país pós-revolucionário212.

O “Esboço” indicava, em vários trechos, a permanência de concep-


ções tradicionais sobre a esfera doméstica e suas relações internas. Ve-
dações herdadas do passado eram mantidas, para proteger a idealizada
harmonia da casa contra inclinações subversivas que, à época, talvez se
estivessem acentuando: assim, “mesmo que tenham economia (...) se-
parada”, os “filhos-família” eram proibidos de processar seu “pai” (art.
1.526-2)213. No art. 1.518-3 encontramos sobras da visão casificada da
família como um centro tanto de poder quanto de produção, em que os su-
postos protegidos do régulo doméstico teriam obrigações de servir gratui-
tamente o seu defensor. O mesmo artigo, em outras partes, atribuía a essa

209 – Cf. o segundo parágrafo de suas anotações conjuntas aos arts.139 e 140 (TEIXEIRA
DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p.59).
210 – V. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p. 330.
211 – Rastrear a exata origem das expressões empregadas no Esboço e analisar seu grau
de modernidade fica, sem dúvida, mais difícil, quando elas se situam na vasta área cinzen-
ta compartilhada tanto pelo vocabulário tradicional quanto pela terminologia técnica dos
códigos civis do XIX. Tal seria o caso, e.g., de “poder marital”, “chefe de casa”, “cabeça
de casal”, “poder paternal” e “chefe da família” (cf. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto.
Op.cit., pp. 15, 20, 281, 286, 281, 311 e 330).
212 – Sobre o “modelo patriarcal” básico do Code e suas tendências conservadoras no
Direito de família, cf. as sínteses de HALPÉRIN, Jean-Louis. Histoire du droit privé fran-
çais depuis 1804. Paris, 2001, pp. 23 e 28-30, e GILISSEN, John . Introdução histórica
ao direito. Lisboa, 1979, pp. 605 e 619-620.
213 – TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p.314. Coerente na defesa dessa supos-
ta harmonia, o projeto também bloqueava, ali, processos em sentido inverso.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 381


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

figura dominante não só o direito de castigar a prole “moderadamente,


enquanto durar o pátrio poder”, mas também o de invocar o apoio estatal
para suas intenções disciplinares, requerendo o recrutamento militar dos
filhos ou a sua “detenção” por até quatro meses em “casa correcional”,
“na insuficiência de correções domésticas”214. Deferida a detenção pelo
Juiz de Órfãos, os tribunais superiores não a poderiam reapreciar em sede
de recurso, mas o “chefe de família” poderia interrompê-la quando bem
o quisesse215.

O relativo conservadorismo dessas orientações não ilide o fato de


que o “Esboço” já indicava, em sua síntese, os resultados da longa mar-
cha da estatalidade sobre os campos tradicionais da casa. Note-se que,
mesmo quando pareciam proteger esta última contra disfunções, juízes e
legisladores já se estavam imiscuindo nos assuntos domésticos, como que
afirmando a supremacia estatal. É fácil ver a aliança entre os mecanismos
de controle social nas autorizações dadas ao régulo doméstico para que,
com o apoio de “diligências policiais” e “medidas policiais”, apreendesse
filhos fujões ou forçasse a esposa a ficar sob o mesmo teto216. Cumpre
notar, entretanto, que tais mecanismos também podiam estar refletindo
indiretamente a existência de outros conflitos, como disputas por espaços
de repressão entre instituições diversas, em um jogo capaz de redefinir os
padrões de convivência da própria sociedade.

O custo da crescente juridicização e da aliança com o Estado se tor-


na mais evidente se analisarmos um outro ponto: o chamado “suprimen-
to judicial” de autorizações paternas. Assim como o velho poder estatal
de depor tiranos domésticos, arrancando-lhes o próprio pátrio poder em
situações-limite217, o suprimento implicava a possibilidade do governo
214 – Idem, ibidem, p. 312. Vemos aqui a preservação de camadas normativas anteriores
– ainda que dispositivos quase análogos pudessem ser encontrados, também, em trechos
conservadores de modernos códigos estrangeiros (v., e.g., os arts.376 e 377 do Code Civil).
215 – Cf. o art.1518, n.2 (TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p.312). A expres-
são “chefe de família” consta do art. 1.510, sobre o “pátrio poder ou poder paternal”.
216 – V. idem, ibidem, p. 287 (art.1306-1) e 312 (art. 1.518-1).
217 – Isso se pode ver no próprio texto ora analisado. Segundo o “Esboço”, o Estado pode
abolir o “pátrio poder” de quem “habitualmente maltratar os filhos, (...) cometendo (...)
crueldades, excessos, ou violências, que ponham em perigo sua vida, ou possam causar-

382 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

da casa ser desconsiderado e socialmente desmoralizado por uma auto-


ridade pública. Autorizações próprias do pai podiam ser substituídas, até
acintosamente, por atos judiciais (cf., e.g., os arts.1245 e 1522). O “Es-
boço” veiculava, também, uma presunção legal de autorização paterna
para os atos da vida civil no campo profissional – o que podia até facilitar
o funcionamento do mercado, mas sem dúvida reduzia dependências no
âmbito familiar218.

Essas orientações do “Esboço” não comprovam, no entanto, que


Teixeira de Freitas estivesse obcecado em fortalecer o Estado diante da
casa. Na verdade, limitavam-se a reproduzir, em grande parte, o direito já
vigente. Aliás, o autor parecia ter, aqui, prioridades bem distintas, como
estruturar um sistema jurídico arquitetonicamente coeso, cuja funcionali-
dade não pudesse trincar os pilares científicos da própria construção. Tí-
picas de muitos jurisconsultos do século XIX, preocupações dessa ordem
deveriam ser mais levadas em conta na análise das obras de Teixeira de
Freitas, que não poderiam ser lidas, simplesmente, como lances estratégi-
cos na luta política em torno do destino da escravidão219.

Sem hinos ao estatalismo nem exaltações conservadoras da casa, o


jurista baiano buscava enquadrá-la no Direito Civil a codificar. Tal enqua-
dramento, se evidenciava a tendência à estatização das normas domésti-
cas, nem por isso configurava o triunfo total do Estado. Note-se que essa
juridicização da casa, posto que afirmação implícita da supremacia deste

-lhes grave dano” (v. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p. 312, art. 1.513-1).
218 – Cf., por exemplo, TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., p. 313 (art.1.513-1)
219 – Consideradas a óbvia crença de Teixeira de Freitas na autonomia do direito e sua
inclinação cientificista no lidar com as fontes do Direito romano, fica menos difícil com-
preender, em conjunto, as atitudes tantas vezes invocadas para discutir se teria sido um
porta-voz da liberdade pontualmente contraditório ou quase um intelectual orgânico do
Império escravista (sobre o tema cf., entre outros, MEIRA, Sílvio Teixeira de Freitas..
Brasília, 1983, p.79ss, 87, 139ss,149-150, 152, 162; PENA, Eduardo Spiller. Pajens,
p.71ss; e FONSECA, R.M. “A cultura jurídica...”. Revista da Faculdade de Direito 44,
2006, pp. 61-76). Por outro lado, não é um despropósito confrontar os pronunciamentos
mais diretos do autor sobre a escravidão com seus interesses pessoais no assunto e com
sua própria experiência de vida – aqui incluídas sua condição de dono de negros e sua
atuação, em ações de liberdade, em ambos os polos do processo (a respeito de tais feitos,
cf. o levantamento de GRINBERG, Keila. Op.cit., p. 258).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 383


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

último, fazia-se no âmbito de um Direito privado declarado autônomo.


Campo cuidadosamente delimitado pelo “Esboço”, que pretendia equipa-
rar nele o Estado ao “particular”, chegando aí a negar-lhe a condição de
“poder público” e até a própria soberania220.

Preocupações mais concretas com as relações casa-Estado teria tido


um jurisconsulto bem mais politizado que Teixeira de Freitas: Lafayette
Rodrigues Pereira221. Nascido na Fazenda dos Macacos, em Queluz (MG),
o jurista liberal foi deputado, havendo-se tornado presidente da Província
do Ceará aos 30 anos de idade. Um ano depois, em 1865, viria a gover-
nar o Maranhão. Após ter advogado no Rio222, inicialmente no escritório
do próprio Teixeira de Freitas, o liberal mineiro chegaria a ministro da
Justiça (1878), senador (1879) e a ministro da Fazenda (1883), vindo
inclusive a encabeçar o Gabinete de 1883 a 1884.

Lafayette dá a impressão de desejar modernizar, pela doutrina, o Di-


reito de família brasileiro. Parecendo incomodado pelos resquícios dos
antigos bastiões do poder doméstico, o civilista mineiro tendia a interpre-
tar contra este último o direito vigente. Para tanto, não hesitou sequer em
deturpar textos legais ou criticá-los diretamente. Nesse combate, várias
estratégias distintas foram adotadas.

Não satisfeito em elencar – em sua exposição das normas vigentes


e da doutrina correlata – os abusos que legitimavam a supressão ou des-
consideração do poder do pai e do marido223, Lafayette foi ainda buscar
220 – V. TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Op.cit., pp.108-9 (anotações ao art.289).
221 – A despeito da relevância de Lafayette como jurista e político, a bibliografia sobre
ele ainda é dominada por escritos encomiásticos que, verdade seja dita, servem mais à
História do Direito como novas fontes sobre tradições retóricas do que como ferramentas
de trabalho (para um recente levantamento destes textos, transcrevendo elogios e acres-
centando outros, cf. RUFINO, Almir G. “Lafayette...” In: RUFINO, Almir G./ PENTEA-
DO, J. (org.) Grandes juristas brasileiros. S.Paulo, 2003, p.143ss). Dentro desse quadro,
uma coletânea coordenada por um trineto do jurisconsulto e muito dependente de mate-
riais fornecidos por familiares acaba, de modo inesperado, por se sobressair na monótona
planície da literatura secundária (cf.ANDRADA, Luiz D. Lafayette de. (org.) Lafayette.
Belo Horizonte, 2009 – com úteis estudos de Maria Auxiliadora de Faria e Lígia Pereira).
222 – Sobre o êxito e prosperidade na advocacia – com clientes como Mauá – cf.PEREIRA,
Lafayette Rodrigues. Cartas ao irmão. S.Paulo, 1968, pp. 43, 70, 94-5 etc.
223 – Cf. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família, pp. 121ss e 251.

384 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

em outras esferas argumentos para justificar a contenção do régulo do-


méstico. Diferenciando dois sentidos de “pátrio poder” – um deles preso
ao “Direito positivo”, o outro “filosófico” e vinculado à “natureza”224 –
invocou este último para atar aquele poder ao que seria sua finalidade ra-
cional pura (ou natural) – o que também permitia, em princípio, limitá-lo.
Canalizado para atender esta última, o amplíssimo “governo econômico”
herdado do Antigo Regime foi, em um de seus eixos básicos, comprimido
dentro do molde de um poder-dever em face do filho, no fundo consis-
tente em um simples “direito de educa-lo, de defender-lhe a pessoa, e de
guardar e zelar-lhe os bens”225.

Após ter-se mostrado, de algum modo, mais favorável ao conceito


“filosófico” de “pátrio poder”, Lafayette ainda partiu e dividiu este últi-
mo dentro da família, dizendo que ele competiria “tanto ao pai como à
mãe”226. Posicionando-se abertamente contra “o nosso Direito Civil” –
nesse ponto, a seu ver, infelizmente “dominado da tradição romana” –,
seguidas vezes defendeu o autor a atribuição legal, também às mães, do
poder supracitado.227 Segundo o jurista mineiro, era inaceitável que “in-
veterados preconceitos” contra as mulheres levassem ao desprezo por
“vinculos sagrados”, quanto mais sendo estes dotados de grande “energia”
e de “uma realidade tão viva”228.

Investindo contra as normas vigentes em tudo aquilo em que ainda


sustentassem a concepção tradicional de “pátrio poder”, o civilista tam-
bém usou o Direito comparado para evidenciar-lhe a obsolescência, insi-
224 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 233. Crenças jusnaturalistas dessa
ordem seriam demonstradas por Lafayette, também, na última década do século. Atacan-
do S. Romero, o civilista invocaria um “justo (...) universal e immutavel”, que seria “o
princípio do direito” em “todas as latitudes” e em “todos os tempos”. O “Direito Positi-
vo” deveria funcionar como “uma especie de materia plastica destinada a accomodar o
Direito Natural á vida pratica” (PEREIRA, Lafayette Rodrigues. “Ensaios...” In: Vindi-
ciae. Belo Horizonte, 1934, pp.165 e 170. Sobre o jusnaturalismo do autor na juventude,
cf.ALMEIDA, J.R. de “Esboço genealógico”. In: PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Cartas
ao irmão, p.177).
225 – PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.233.
226 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.233.
227 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, pp.233 e 248.
228 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 248.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 385


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

nuando que feria a Razão, contrariava avanços civilizatórios e menospre-


zava a própria finalidade do instituto229. Para Lafayette, “graças ao pro-
gresso das luzes”, os “legisladores modernos” estariam “reconhecendo a
necessidade” de se separar tal poder “dos elementos estranhos que o des-
virtuão, esforçando-se para aproxima-lo do typo filosófico”. Seria “esta
a tendência” predominante “nos códigos recentemente promulgados”230.

Ao contrário do que haviam feito e seguiam fazendo outros repre-


sentantes de sua corrente política, o civilista mineiro não refuncionalizou
o discurso emancipatório do individualismo, apresentando o régulo do-
méstico como um cidadão a ser protegido contra interferências estatais.
Ao menos em “Direitos de família” (1869), bem outra foi a sua estratégia.
Apelando à visão de mundo liberal, destacou o problema do “jugo do pá-
trio poder”, que roubaria “ao filho a independência pessoal nas relações
de Direito privado”231. Descrevia como absurdo que tal “jugo” não ces-
sasse nem mesmo “com a menoridade”, submetendo indivíduos adultos
a uma “tirannia cruel, incompativel com as idéas do século”. E como
“tirannia” também qualificava o uso de atrasar emancipações e casamen-
tos, mantendo os filhos como que em “cárceres privados”, para que a
“avaresa paterna” assim conservasse “o usufructo do pecúlio”232.

Entre o Estado e a casa, Lafayette escolhera um terceiro: o indivíduo.


Ainda que implicando a supremacia do Direito estatal, a juridicização
da casa – ocorresse pela doutrina ou pela lei – devia conduzir à efetiva
expansão da autonomia individual. Isso demandava, no Brasil, a crítica
a um “pátrio poder” convertido em “pesado instrumento da prepotência,
do orgulho e da cobiça”233. E a recusa, também, de antigos arranjos e
alianças entre o poder doméstico e o estatal234, sobretudo quando este
parecesse atuar como a Bastilha dos filhos e esposas.

229 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 234.


230 – Idem, ibidem.
231 – Idem, ibidem, p. 234.
232 – Idem, ibidem, pp. 234-5.
233 – V. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.234 – lamentando, nesse ponto, a
persistência entre nós de defeitos que atribuía ao Direito romano.
234 – Tal recusa não deve ser confundida com certo pendor de Lafayette para ver como

386 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Insurgindo-se contra velhas práticas aceitas até por Teixeira de Frei-


tas, Lafayette negou ao pai o direito de “requerer ao magistrado a prisão
do filho em castigo”. Como jurista e liberal consequente, fez isso alegan-
do a falta de “lei conferindo ao poder judiciário tal attribuição” no âmbito
da monarquia constitucional235.

A nova sensibilidade burguesa dos centros urbanos em expansão po-


dia solapar muitos dos tradicionais poderes domésticos, rejeitando con-
troles e castigos agora vistos como bárbaros, violentos e antiquados. Esse
descompasso foi utilizado por Lafayette, que ao mesmo tempo, de forma
técnica, tentava demonstrar a derrogação dos dispositivos das Ordena-
ções favoráveis ao poder disciplinar marital. “O marido”- ousava afirmar-
“não tem o direito de castigar a mulher”, sendo tal “uso”, inclusive, algo
“repugnante com a dignidade humana e com a civilisação moderna”236.
“Uso” que o jurista registrava como velharia descabida- e que tinha mes-
mo de desagradar quem, como ele, se visse como civilista atualizado e
como liberal moderno.

Como um bom advogado mais preocupado em ganhar a causa do


que em adotar linhas de defesa coerentes, Lafayette podia articular de
diversas formas as relações entre direito público e direito privado, à hora
de combater o absolutismo doméstico que repugnava a sua imaginação.
Vendo aqui uma “summa divisio” vinculada à contraposição Estado-indi-
víduo, parecia deslegitimar implicitamente o poder de outras esferas so-
ciais. A casa em si perdia, assim, seu lugar no mundo: era reduzida agora
algo inadequado a colonização familiar escancarada das instituições públicas. Tal pendor
se expressaria depois, no seu tempo de ministério, tanto em esforços para obstar a atuação
de advogados onde os filhos destes fossem escrivães (cf. VAMPRÉ, Spencer. Memórias
para a história da academia de São Paulo. Brasília, 1977, v.1, p. 270) quanto na rejeição
de requerimentos administrativos formulados pelo próprio pai do jurista (cf. RODRI-
GUES, L.P. Cartas, p.102. Para o papel do círculo familiar em nomeações, cf., no entanto,
RODRIGUES, L.P. Cartas, cf. pp. 103, 117-8, 129, 133 etc.).
235 – PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 237, n. 481. O custo da linha de argu-
mentação legalista era ter aqui também de admitir – com base no Código Criminal e em
outros diplomas em vigor – que “prender o filho em casa, por correição”, não configuraria
tecnicamente “crime de cárcere privado” (Idem, ibidem). A tal conclusão teria chegado,
aliás, outro jurista liberal, o português Borges Carneiro.
236 – PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 107, n. 5.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 387


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

à dimensão da família, concebida esta, por sua vez, como uma mera soma
de indivíduos, estatalmente regulável por meio do direito privado237. Por
outro lado, seja transpondo as linhas divisórias entre o Direito público e
o privado, seja lidando com a sistematicidade ideal do Direito como um
todo, o autor não hesitava em invocar as liberdades do Direito público
para justificar a expansão da autonomia dos filhos, no que seria o âmbito
“privado” do direito de família.

Atacando a noção romana de pátrio poder como “inaceitável nos


tempos modernos”, o civilista frisava que “o exercício dos direitos políti-
cos” pressupunha “no indivíduo um certo gráu de independencia, incom-
patível com a submissão ao pátrio-poder”238. O discurso constitucional
do liberalismo do século XIX, tão dado a restringir a liberdade positiva
dos indivíduos economicamente dependentes239, invertia aqui a sua usual
função: ao em vez de negar “direitos políticos” a quem era dependente na

237 – Dirigindo-se como ministro aos parlamentares, Lafayette salientava em 1878 o


papel da normatização estatal como espelho de uma opinião pública ilustrada e veículo
do progresso social: “os grandes poderes ordinários do Estado (...) são idôneos e com-
petentes para formular e preparar o pensamento nacional sobre os grandes interesses da
sociedade, ou se trate de questões de interesse privado, como a constituição da família
(...) ou (...) de interesse público (...)” (PEREIRA, Lafayette Rodrigues. “Discurso...” In:
Cartas, pp.189-190).
238 – PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.250, n.554 – que a seguir tenta cobrir
seu argumento com a autoridade de Teixeira de Freitas. No Peru, uma comissão instituída
em 1849 já havia destacado a “inconsequência” de “negar (...) a emancipação” a quem
atingira a “idade” para “o pleno exercício da cidadania” (v. INFORME De LA COMISI-
ÓN. In: RAMOS NÚÑEZ, Carlos . Op.cit., p.393)
239 – Cf., e.g., CONSTANT, Benjamin. Op.cit., p. 52. Restrições dessa ordem se en-
contravam não só em várias constituições europeias, mas também em latino-americanas
(cf., e.g., para o Brasil, o art.92 da Constituição Política do Império, e, para o Peru, PA-
CHECO, Toribio. Cuestiones constitucionales. Lima, 2015, pp. 54, 69 e 175-6- já com
críticas a tais limitações, em todo caso, às pp. 55, 76-7 e 168. Sobre voto e independência
financeira no pensamento político de Lafayette, cf. ainda PEREIRA, Lafayette Rodrigues.
“Discurso...”, p. 204ss). Na Constituição de 1824, negava-se o voto, por sinal, não só aos
“libertos” (art.94-2.), mas a quase todas as pessoas vistas como dependentes – do ponto de
vista moral, econômico ou juridico – do titular do poder doméstico. Excluíam-se do elei-
torado, assim, os “criados de servir” (art.92-3.), os “filhos-família” sem “ofícios públicos”
(art.92-2.) e os “religiosos” submetidos ao poder doméstico dos claustros (art.92-4.). Com
a implicitude das coisas tidas por óbvias, o texto tampouco caracterizava como eleitoras
as filhas, esposas e mulheres em geral.

388 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

esfera da casa, fazia desses mesmos “direitos políticos” a razão para pôr
fim à própria dependência doméstica240.

Ainda que suas posições, no tema ora analisado, pudessem se lastrear


em outros autores241 ou revelassem pontuais associações com a visão de
mundo tradicional242, Lafayette parece ter sido mesmo um de nossos pri-
meiros grandes civilistas a tentar fugir da longa sombra da casa. Mesmo
identificando no Direito Civil uma “essência” imutável e direitos com
“elementos constitutivos (...) invariáveis”243 (e a despeito de suas crenças
jusnaturalistas244 potencialmente engessantes), o jurisconsulto mineiro re-
velou-se capaz de perceber que as relações domésticas não podiam mais
ser juridicamente tratadas como no passado, havendo no Direito romano
dos letrados e nos costumes herdados da era colonial incongruências com
os padrões oitocentistas mais modernos.

À medida que o culto ao “progresso” e concepções evolucionistas


ganharam maior relevo no pensamento jurídico, este tendeu a dessacra-
lizar mais o tradicional e a contestar mais o antigo como arcaico245. Em-
240 – Cf. PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 250, n.554. Aqui, além da incli-
nação individualista de alguém que cedo ocupou cargos públicos, decerto pesaram os
anteriores avanços jurídicos da Coroa sobre as divisas da casa, já refletidos na própria
Carta de 1824 (cf.art.92-2. – parte final).
241 – Inclusive em figuras do usus modernus ou da tratadística lusitana do Antigo Regime,
como Mello Freire.
242 – Mesmo que só em singela descrição do Direito positivo, o autor ainda invoca, por
exemplo, o ter “economia separada” como base da liberdade jurídica em face do pátrio
poder (v.PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.250 – inclusive a n. 552).
243 – PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p. 5.
244 – “As disposições das leis positivas não são sinão corollarios de principios superiores
(...) Estes principios superiores ou são maximas do Direito Natural, ou são um motivo
creado pelas necessidades da sociedade” (PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos, p.9).
245 – Segundo Ribas, que cria em uma “lei da progressiva e universal evolução”, “vive-
mos em um período em que a evolução sociologica se accelera e se accentua profunda-
mente”. Daí porque “A constituição da família se modifica”, aspirando “a mulher (...) a
igualar o marido no seio da sociedade domestica”. Impondo “a instrucção obrigatória” e
restrições à “transmissibilidade da herança necessária”, o “poder social” estaria atuan-
do no sentido de limitar “o pátrio poder” (v. RIBAS, Antônio Joaquim. “Prefação”. In:
ALENCAR, José de. A propriedade. Rio de Janeiro, 1883, p.XI, XIV e XV). Para Pedro
Lessa, a evolução também reduzia, “nas sociedades de civilização adiantada”, a “energia”
com que antes se manifestavam “os direitos do pai sobre a pessoa e bens do filho” (LES-
SA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. Campinas, 2000, pp. 284-5).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 389


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

bebido de Post e Jhering246 e deslumbrado com o evolucionismo, Tobias


Barreto, por exemplo, podia ver na vastidão do poder da casa um sintoma
de atraso na organização social. E estava em condições, ao menos em
tese, de perceber o caráter historicamente contingente do enquadramento
redutor do velho “governo econômico” no “direito privado” oitocentista.
Segundo o pensador sergipano, ao menos “nos ínfimos graus da evolução
social” não se distinguiriam “um direito privado, nem um direito públi-
co”, pois nesse momento “tudo” repousaria “ainda envolto nos costumes
patriarcais”247.

Os “costumes patriarcais” vinham dessa pré-história do direito – não


da vontade divina nem do direito natural. Eram fatos: há muito tempo
observados, sem dúvida, mas historicamente contingentes, conectados a
uma sociedade em progresso. Esse ponto de vista não implicava o des-
cabimento de todos os poderes domésticos, mas estimulava a pensar so-
bre sua adequação ao presente, descartando práticas como obsoletas ou
“renaturalizando-as” dentro da nova ordem social. De certo modo, era
possível preservar a sombra da casa com a mesma argumentação que a
encolhia nas bordas.

Na segunda metade do século XIX, a juridicização da vida social e o


domínio, na doutrina, de uma radical distinção entre Direito público e pri-
vado não impediram que essa sombra continuasse alcançando os juristas.
Se estes nem sempre escapavam dela em uma Alemanha sem senzalas,
como esperar que o fizessem, então, facilmente em Pernambuco?

246 – As leituras e modelos desse autor estão entre os poucos temas histórico-jurídicos in-
cessantemente abordados no Brasil – até porque a exaltação de Tobias há muito tempo se
presta a engrandecer sua faculdade e a legitimar seus pretensos sucessores na semimítica
“Escola do Recife” e no pensamento jusfilosófico nacional. Para iniciar a análise do assun-
to, cf. – entre outros estudos recentes e destituídos de hagiologices bairristas – SUCUPI-
RA, Newton. Tobias Barreto e a filosofia alemã. Rio de Janeiro, 2001; ALONSO, A. Op.
cit.; e LOPES, José Reinaldo de Lima. Op. cit. Comprovando que a rejeição a T. Barreto
e S. Romero não era monopólio das vozes jurídicas do conservadorismo e do clericalismo,
PEREIRA, Lafayette Rodrigues . Vindiciae, pp. 57-216 – que investe duramente contra
as definições e “subtilezas ineptas” de Tobias (pp.178ss e 210).
247 – BARRETO, Tobias. “Prolegômenos ao estudo do direito criminal”. In: Estudos de
Direito. Aracaju, 1991, p.101.

390 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Não é de surpreender, portanto, que o germanófilo Tobias, com todo


o seu arrojo e iconoclasmo, ainda prestasse, aqui e ali, homenagens à casa
e a seus velhos poderes internos. Descrevendo o campo das punições em
sua própria época, reconhecia a existência, por exemplo, de um “direito
penal correcional”, pertencente “ao poder paterno, à escola e a outros
sujeitos jurídicos, encarregados do mister de educar”248. Com isso, legi-
timava uma tradicionalíssima expressão do governo doméstico, pondo-a
ao lado tanto do “direito penal propriamente dito” (grosso modo corres-
pondente ao conceito ora em voga) quanto do “direito penal disciplinar”
que o Estado exerceria sobre seus funcionários249.

Se isso ainda se verificava na mais bombástica vanguarda da época,


entre os que mais tapavam o nariz diante de tradicionalismo, que esperar
daqueles que mais desconfiavam de novidades? Nos escritos destes, a
longa sombra da casa alcançaria e transporia os umbrais da República,
afetando até suas modernizantes pretensões de codificar nosso Direito
Civil.

Um bom exemplo disso encontramos no jurisconsulto Coelho Ro-


drigues (1846-1912). Autor de um “Manual do súdito fiel”250, adepto de
posições ultramontanas na Questão Religiosa251 e monarquista na maior

248 – BARRETO, Tobias. Op.cit., p.103.


249 – Idem, ibidem.
250 – Publicada em 1884, tal obra tem – advirta-se – conteúdo bem mais crítico do que
seu título dá a entender.
251 – Embora tenha colaborado com o regime republicano, ajudando-o a estruturar no
Brasil o casamento civil, Coelho Rodrigues, anteriormente, havia optado pela defesa dos
bispos ultramontanos em seu conflito com o Governo Imperial (cf.BRANDÃO, Wilson
de A. “Antonio Coelho Rodrigues”. In: COELHO RODRIGUES, Antônio. Projecto do
código civil brasileiro. Brasília, 1980, p.9; BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio Coelho
Rodrigues”. in:COELHO, Celso B. (org.) Coelho Rodrigues e o Código Civil. Teresina,
1998, p.37 e AGUIAR, Antônio C. de Op.cit., pp. 46-7, 88 e 151). Lembremos que, à
época, boa parte da elite política do país (incluindo liberais e republicanos) apoiou a re-
sistência do Governo às medidas antimaçônicas dos bispos mais radicais, que chegaram
mesmo a ser presos. Laivos de clericalismo se veriam novamente no início do século
XX, quando o civilista atacou Rodrigues Alves como “Attila das Igrejas” e “Presidente
da Republica demolidora dos templos” (COELHO RODRIGUES, Antônio. A Republica
na América do Sul. Einsiedeln, 1906, pp. 127 e 140 – aqui, a rigor, mais interessado em
discutir o “bota-abaixo” do que conflitos Igreja-Estado).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 391


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

parte da sua vida252, esse ex-deputado conservador longe estava de des-


prezar tudo o que via como herança do passado. Coerente com suas incli-
nações, indignou-se com a divisa comtiana “Ordem e Progresso” da nova
bandeira nacional – esforçando-se para suprimi-la253. Opôs-se, também, a
figuras importantes da renovação intelectual pós-1870. Na defesa de tese
de Sílvio Romero, o jurista piauiense teria inclusive tentado humilhar o
candidato, que xingaria a banca de “corja de ignorantes” e abandonaria
o local254.
252 – Não tendo impedido Coelho Rodrigues de retornar às hostes monarquistas alguns
anos depois, sua adesão à República deu-se tão tardia quanto apressadamente. Em 1888,
admitia ainda não ser republicano (v. BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1980, p.13
e BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1998, p.43. Para uma tentativa pouco convin-
cente de antedatar seu republicanismo, cf., porém, AGUIAR, Antônio C. Op.cit, p.40ss.).
Acusado na imprensa de ser “sebastianista por despeito” e “republicano por interesse” (v.
COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.91 e 109), Coelho Rodrigues publicou
textos protestando sinceridade em seus vai-e-vens políticos. Altivez e independência te-
riam marcado sua relação com a Coroa; seu passageiro republicanismo, jamais postiço
e interesseiro, teria fortes raízes em posturas bem anteriores a 1889 (cf., e.g., COELHO
RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 93-4, 105, 112-3, 120 e 143. Para opiniões e in-
dícios em sentido contrário cf., porém, idem, ibidem, pp. 91, 94, 95, 96, 109, 110 e 120
– onde o autor apresenta seu manifesto aderindo à República, por sinal, como “o primeiro
dos antigos monarchistas”). Longe de refletir meras conveniências pessoais e rancores,
seu retorno ao monarquismo teria decorrido – alegava – de uma frustração de ideais e de
um diagnóstico preciso sobre o quadro desolador do novo regime, que estaria pondo em
risco a própria soberania e integridade nacionais (cf. COELHO RODRIGUES, Antônio.
Republica, pp. 94, 101-4, 117, 122ss, 127-130, 139, 140, 143, 145, 146, 161-2, 164, 167 e
176). Admitidas pelo próprio civilista que as tentou justificar, essas mudanças de lado não
impediram que, no meio acadêmico de seu estado de origem, Coelho Rodrigues viesse
a ser glorificado pela “coerência contínua” que teria supostamente demonstrado tanto
em sua “vida” quanto em “seu comportamento político” (v. BRANDÃO, Wilson de A.
“Antonio...”, 1998, pp. 36-7). Sobre os confessos esforços do jurista para aproximar-se
de Deodoro, cf. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.86. Sobre as instáveis
relações do político piauiense com Francisco Glycerio e com os primeiros presidentes
civis, até seu ocaso político – “excommunhão, maior, geral, e irremissível” – e sua adesão
ao movimento restaurador, cf. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 101-
4,122-7,140,143,164,176 etc. Sobre desavenças com Floriano, cf BRANDÃO, Wilson de
A. “Antonio...”, 1998, p.67).
253 – Cf. seu projeto nesse sentido, datado de 1906 e parcialmente transcrito em AGUIAR,
Antônio C. de Op. cit., pp.79-80 e 193. A aversão do jurista pelo positivismo de matriz
comtiana e pelas posturas políticas de seus adeptos no Brasil fica óbvia em seus escritos
(cf., e.g., COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.142).
254 – Assim teria ocorido a sessão, segundo alguns relatos – fundados na ata, cujo tom
anedótico talvez soe hoje a alguns demasiado forte (cf. BEVILÁQUA, Clóvis. História
da Faculdade de Direito do Recife. Rio de Janeiro, 1927, v.1, pp. 212-4). O episódio tam-

392 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Não lidaremos com a caricatura de Coelho Rodrigues feita nos re-


latos dos que, a longo prazo, fizeram-se vencedores dessa contenda cul-
tural255. Analisaremos, sim, diretamente o que nos interessa: um ponto
arcaicizante de seu “Projecto de Código Civil” (1890-1893)256.

Tal projeto não destoava da visão do autor, de base tradicional-roma-


nística, de um Direito Civil eternizado, com lastro jusnaturalista257. Pouco
à vontade, por sinal, com o “raciocínio infrene” e o “hedon-materialismo”
que julgava estarem se espalhando à época, Coelho Rodrigues não hesi-
tava em recusar ousadias estrangeiradas, destacando inclusive que “as
teorias mais sociais são as mais antissociais”258.

O projeto já se iniciava revelando uma concepção da organização


sociopolítica que pouco se coadunaria com a orientação individualista-
-democrática da Constituição de 1891259. No art.7., apresentava-se o mu-
nicípio como “agregado de famílias”- com o que os Estados, vistos como
agregados de municípios, e a República, vista como agregado de estados,

bém é narrado por autores favoráveis a Coelho Rodrigues (cf.BRANDÃO, Wilson de A.


“Antonio...”, 1980, p.15 e AGUIAR, Antônio C. de Op. cit., pp. 27-9). Para uma releitura
desse movimento de renovação, por alguns chamado de “Escola do Recife”, cf., entre
outros, ALONSO, A. Op. cit., p.133ss. Sobre as relações pessoais de Coelho Rodrigues
com Tobias, cf. BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1998, p. 33.
255 – Destacando certo boicote da literatura posterior – mas heroicizando e modernizando
demasiadamente o autor – AGUIAR, Antônio C. de Op.cit., em especial p.188,193 e 195.
256 – Para a visão pessoal do autor sobre as circunstâncias extrajurídicas que afetaram essa
tentativa de codificação, v. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.95,110,120
e 121-2. Para os fatores políticos desfavoráveis ao êxito de tal empreitada, cf. COELHO
RODRIGUES, Antônio. Republica, p.176.
257 – Cf. BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1980, p.14; COELHO, Celso B. “Co-
elho Rodrigues...” In: COELHO, Celso B. (org) Op.cit., pp.118-9; e BRANDÃO, Wilson
de A. “Antonio...”, 1998, pp.36 e 45ss.
258 – Apud BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1980, p.8, e BRANDÃO, Wilson
de A. “Antonio...”, 1998, pp. 35-6. A fonte seria um artigo publicado no Piauí em 1867,
atacando Kant e, em termos vagos e genéricos, os filósofos depois dele vindos.
259 – De qualquer modo, um empenho sistemático, quase obsessivo, em conciliar o Direi-
to Civil com a Constituição é algo recente entre nós. Daí por que, sem grande escândalo,
juristas e tribunais imperiais puderam proteger a ordem assimétrica da casa contra as
implicações mais subversivas da igualdade constitucional. Em 1883, ainda podiam surgir
acórdãos afirmando que “pelo direito em vigor é filho-família aquele que está em poder
do pai, de qualquer idade que seja” (apud DI CICCO, Claudio. Op.cit., p.104. Cf. também
p.99-100).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 393


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

acabariam tendo por base última não o cidadão individual e livre260, mas
uma “família” naturalmente hierárquica261 e eventualmente distante do
próprio molde liberal do Direito de família.

Coelho Rodrigues tendia a legitimar o preexistente em sua socieda-


de, naturalizando-o. Isso explica suas referências a uma hierarquia natu-
ral dentro da família e da casa – e, sobretudo, ajuda-nos a entender por
que identificava, por vezes, “família” com casa.

Eis um ponto importante. No “Projecto”, o próprio conceito de fa-


mília revelava a dificuldade do autor de assimilar a modernidade e de
conjugar sua visão de mundo com os padrões do Direito liberal. Se havia
ali passagens sobre a “família” que remetiam de algum modo à ideia mais
moderna de família “nuclear” (cf. as referências à família “natural”, à
“civil” e à “legítima”, no art.1.822), também se fazia presente a velha con-
cepção tradicional – de verniz romanizado, mas com profundas raízes na
vida social brasileira – da família como unidade doméstica, como casa.
“A família doméstica”, esclarecia o final do mesmo dispositivo, “com-
preende todas as pessoas, que vivem sob o mesmo teto, com a mesma
economia e sujeitas à direção de um mesmo chefe, ainda que não sejam
parentes”262.

Revelando o apego de Coelho Rodrigues a concepções tradicionais,


o primeiro projeto republicano de codificação civil parecia ecoar, assim,
o período anterior à Abolição. Não que seu autor fosse favorável à escra-
vidão – era-lhe contrário, muito embora associasse a figura do “abolicio-

260 – V. COELHO RODRIGUES, Antônio. Projeto, p. 42. Tal concepção não deflui ne-
cessariamente da crença de que a “familia” precederia “logica e historicamente, (...) a to-
das as sociedades civis” e “leis positivas” (COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica,
p.76). Há entre ambas, contudo, uma óbvia compatibilidade.
261 – Cf. as opiniões do autor transcritas em BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1980,
p.15, e BRANDÃO, Wilson de A. “Antonio...”, 1998, p.47. Segundo Gilberto Freyre, Co-
elho Rodrigues almejaria defender “o pai contra os filhos” e “a família patriarcal contra
a intrusão do Estado, ou do legislador liberal” (FREYRE, Gilberto. Sobrados, p.131-2).
262 – COELHO RODRIGUES, Antônio. Projeto, p.275. Essa visão da família como uma
estrutura multipessoal fundada essencialmente no poder de um régulo doméstico tinha
profundas raízes no “ius commune” e na tradição ibérica, estando talvez mais próxima
das Siete Partidas do que do direito civil atual (cf., e.g., Partidas 7,33,6).

394 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

nista de sua Magestade” à do fautor de quilombos263 e repudiasse tanto


o “abolicionismo desenfreado” quanto “a linguagem perigosa dos que
pregam (...) a insurreição ao escravo”264. Preso a sua visão de mundo, o
civilista ainda inseria na ideia de família, entretanto, a mão de obra das
unidades econômicas gerida pelos antigos senhores265.

Tal posicionamento hoje é tão mal compreendido que chega a ser-


absurdamente confundido com uma defesa precoce do Direito do traba-
lho266. De tão arcaico, Coelho Rodrigues acaba sendo lido, assim, como
mais moderno do que muitos de seus contemporâneos. Fica difícil, con-
tudo, justificar tal “modernidade”, quando o civilista inclui o título “Do
serviço doméstico” no livro sobre o Direito de família267. Ou quando se
aferra a termos locais e antigos, como o senhorial “amo”, à hora de des-
crever o chefe da unidade agregadora dos “criados”268.

Quando contrapunha ao dever de obediência ao “amo” a obrigação


deste de tratar o criado “habitualmente com indulgências e bom humor”
(art.2366, par.4.), Coelho Rodrigues não verbalizava idealizações de uma

263 – V. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p. 112. Alvo dessa passagem não
é só o aulicismo político. Posto que favorável à Lei Áurea e antipática ao escravismo, a
obra deixa transparecer algo do incômodo causado, anos antes, pela interferência imperial
nas relações amo-escravo.
264 – Apud AGUIAR, Antônio C. de Op. cit., pp. 34 e 37.
265 – Aqui, o projeto volta a reproduzir concepções tradicionais – também presentes, no
século XIX, na literatura brasileira sobre a gestão de escravos. No “Manual do agricultor”
do padre-fazendeiro Antonio Caetano da Fonseca (1863), estes últimos eram inseridos em
uma “família” da qual o senhor seria o “pai comum” (v. o trecho transcrito em MARQUE-
SE, R. de B. Op.cit., p.289).
266 – Cf. AGUIAR, Antônio C. de Op.cit., p.157ss.
267 – Tal inclusão já lhe havia, anteriormente, parecido adequada. Na comissão imperial
instituída em julho de 1889 para elaborar o novo código, o jurista se mostrara simpático
à ideia de regular no “Direito de Família a condição das pessoas do serviço doméstico,
as quais são quase um complemento natural dela (...)” (apud MEIRA, Sílvio Teixeira de
Freitas. Op.cit., p.444).
268 – Cf., e.g., os arts.2352, 2360, 2362, 2363, 2364, 2365, 2366, 2367, 2368, 2369,
2371, 2372, 2374, 2375, 2376, 2377 e 2378 do projeto (COELHO RODRIGUES, An-
tônio. Projeto, p.349-353). O fracasso do Projeto Coelho Rodrigues não impediu que a
terminologia tradicional sobrevivesse na legislação republicana. Segundo o Código Penal
de 1890, por exemplo, a punição deveria ser mais rigorosa se o “amo” fosse a vítima do
crime (art.39,§9).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 395


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

fábrica à inglesa, antecipando o desenvolvimento do “direito do trabalho”


na periferia do capitalismo. Pensava, isso sim, em reduzir conflitos no
microrreino da casa, ajudando a preservar no Brasil uma esfera tradicio-
nal regida essencialmente não por obrigações contratuais mútuas, mas
sim por obrigações, poderes e sujeições derivados das próprias posições
assimétricas no mundo doméstico. Não por acaso, em situações de con-
flito, o jurista mandava aplicar o “costume do lugar” – o que significava,
evidentemente, remeter à vida social anterior a 1888269.

De tal modo cobria a sombra da casa o olhar do jurista, que ele podia,
por vezes, ler o conflito cidadão-Estado na chave de um conflito de esfe-
ras familiares270. Tendência semelhante traíam as metáforas que jorravam
de seus escritos políticos. Com frases como “cada qual governa sua casa
como quer, e como pode (...)”, o autor tratava do gerir dos estados271. E
era com menções à proteção e à perpetuação da casa que comparava os
regimes, defendendo o “monarchico-representativo”: enquanto os presi-
dentes republicanos não passavam de provisórios inquilinos desejosos de
tirar proveito do governo, na monarquia “o chefe” agiria “como o dono”
em “sua casa, empenhado não só em conserval-a, como em transmittil-a
melhor aos seus successores”.272

Entre as duas esferas, haveria não só paralelos, mas também cone-


xões profundas. Da organização da família e de sua proteção contra sub-
versivas liberdades filiais dependeria, no ver do autor, a própria redenção
nacional273. Impulsionada em vários campos – da naturalização de es-
trangeiros à maioridade, do casamento civil ao direito das sucessões274 –,
269 – Cf. os arts. 2.371 – par. 2. e 2.356. O último se refere à solução de conflitos sobre
salário, na ausência- em um país de baixo nível de alfabetização – de “acordo expresso”.
270 – O autor o teria feito, pelo menos, no deposto regime monárquico. Manifestando-
-se como deputado conservador em 26/9/88, Coelho Rodrigues teria dito que, “como pai
de familia”, jamais seria seu “ideal (...) criar e educar filhos para terem a honra de ser
fatalmente governados pelos descendentes de uma família privilegiada” (V. COELHO
RODRIGUES, Antônio. Republica, p.94).
271 – V. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.167.
272 – COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.167.
273 – Cf., e.g., COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 55ss, 107 e 141.
274 – Cf. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 34, 59ss, 64, 65, 68-9, 76
etc. Na contramão das medidas descasificantes, o Projeto Coelho Rodrigues procurava

396 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

a desconsideração do poder paterno e marital estaria acarretando graves


prejuízos ao país.

Tão perigoso para este e para a casa como as novas formas de in-
terferência estatal sob Rodrigues Alves275 seria o debilitar de tal poder
pela “intrusão arbitraria do Governo” nos direitos do chefe doméstico276.
Abalando a “confiança reciproca” e o “respeito” na família, a “intrusão
do legislador entre o pai e o filho” mediante normas sucessórias rígidas277
comprometeria a força moral paterna, com graves efeitos para toda a so-
ciedade. Impunha-se, assim, proteger e mesmo expandir, por vezes, o
campo decisório do régulo doméstico. Com maior “liberdade de testar”
se estimularia, por exemplo, uma sã subordinação dos jovens – em última
análise, ela ajudaria mesmo a “augmentar enormemente a disciplina do
lar”278.

Como vimos, a casa não se evaporou das mentes nem com a Aboli-
ção nem com a República. Parecendo confirmar-se por experiências pes-
soais concretas e reforçados aqui e ali pelo senso comum conservador,
alguns resquícios do imaginário do Antigo Regime revelaram em nosso
país um notável grau de resistência, tanto que seguiram inspirando facões
sertanejos e penas de letrados.

preservar a casa, inclusive instituindo, em prejuízo de solteiros com voto de castidade,


estratégicas exclusões no rol dos herdeiros. Estranhando tal fato, Beviláqua via tal exclu-
são como reflexo da crença, por parte do jurista piauiense, de que “a sucessão” tivesse de
“ser a continuidade da família na propriedade, através do tempo” (BEVILÁQUA, Clóvis.
Op.cit;, v.2, p.65, g.n.).
275 – É clara a aversão do jurista piauiense à crescente atuação estatal nas ilhas de inter-
venção da Primeira República, cf. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 117,
127,129-130,140 e 144.
276 – COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.76.
277 – V. COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, p.62. Sobre o mesmo tema, enfa-
tizando os inconvenientes da herança necessária, idem, ibidem, pp. 59ss e 65.
278 – COELHO RODRIGUES, Antônio. Republica, pp. 68-9 (aqui reiterando ideias suas
de décadas atrás, expressas já no “Plano Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro” –
cf.DI CICCO, Claudio. Op. cit., pp.148-9). O autor pouco depois se mostra hesitante,
porém, entre as vias da moral e do Direito, parecendo expressar dúvidas sobre a eficácia
deste para, isoladamente, restaurar a ordem doméstica ideal supostamente perdida.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 397


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

No direito privado, o mesmo direito de família com que o Estado


tentava cada vez mais reger a casa utilizou esta última como relevante
referência implícita, legitimando muitos de seus seculares poderes inter-
nos com novos dispositivos legais. O velho discurso sobre o governo
doméstico ou “econômico” podia até não seduzir muito as elites políticas
e jurídicas da jovem República279, mas na doutrina e nas leis dela o poder
pátrio e marital ainda parecia reter, como um molde, a impressão do anti-
go imaginário da casa, em meio a todas as transformações estruturais que
punham este último em xeque280.

Seria ingênuo supor que mudanças constitucionais e legislativas não


possam ter, jamais, peso algum na transformação das mentalidades. A Lei
Áurea e o advento da República não permaneceram nas nuvens – nem
delas surgiram. Ainda assim, não implicaram, evidentemente, o imediato
abandono de todas as arraigadas concepções tradicionais. Com estas coli-
diram, por vezes, frontalmente – pensemos no monarquismo de Canudos.
Outras vezes, contudo, a sociedade gerou formas de composição entre
o velho e o novo, por vezes ocultando tensões, por vezes as negando ou
adiando.

Como já vimos, na relação entre os fazendeiros e os “seus” ex-es-


cravos281, o imaginário da “casa” não foi abandonado de todo, apesar do
decisivo terremoto da Abolição. Mesmo nos centros urbanos mais adian-
tados, verificaram-se após 1888 numerosos casos de conversão de cativas
em criadas de seus antigos senhores, havendo-se formal ou informalmen-
279 – Além de estimular a modernização e “republicanização” do discurso político em
geral, a mudança de regime pode ter também, no campo ora tratado, favorecido usos
desqualificadores da terminologia tradicional. Indício disso seria, talvez, uma passagem
de Ubaldino do Amaral, datada de 1918 e reproduzida em 1923 por J.L. Osório: visto
como malandramente generoso e dado a fazer favores ilícitos usurpando poderes alheios,
o Legislativo era ali ironicamente comparado a um “bom pai de família” (v.OSÓRIO, J.L.
Constituição política... Brasília, 1982, p.188). Este último já não era mais – ao que parece
– o automático modelo da autoridade estatal.
280 – Parafraseamos aqui em parte – e em outro assunto – a sintética análise de Sumner
Maine a respeito da agnação (v. MAINE, Henry Sumner . Ancient Law. S.l., s.d., p.71).
281 – Postulando a tutela de alguns menores, já em fins de maio de 1888 um ex-senhor
mineiro se apresentava “como natural protector (...) delles (...), por serem todos filhos de
suas ex-escravas” (apud GUIMARÃES, Elione S. Op.cit., p.75-g.n.)

398 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

te mantido sob roupagens contratuais282 os antigos laços domésticos, as


expectativas de “lealdade” e “proteção” e – em certa medida – mesmo os
elos de dominação283.

Na linguagem da elite, o persistente uso do termo “liberto” (por


vezes acrescido de pronomes possessivos)284 e a prática de designar os
criados pela cor285 podiam, talvez, indicar um desejo de preservar as ante-
riores hierarquias no âmbito da casa. Novas formas de paternalismo e de-

282 – A contratualização das relações de trabalho não foi apenas inspirada em preocu-
pações liberais. Já prevendo ad cautelam o envio de “vadios” a “casas de trabalho”, o
projeto abolicionista do Visconde de Jequitinhonha (1865) determinava aos juízes de paz
e às autoridades policiais que promovessem e mantivessem os “contratos de locação de
serviços entre os escravos manumitidos e seus antigos donos”. A “perda” de “tais cria-
dos” para um novo patrão, se ocorresse pela “primeira vez”, poderia gerar uma demanda
judicial (cf. os arts.6, 7, 9 e 10, transcritos em MALHEIRO, Agostinho M. Perdigão . Op.
cit., pp.292-3).
283 – Sobre tal processo, cf. a síntese de Maria Helena Machado (apud TELLES, Lorena
F. da Silva. Op.cit., p.185). Sobre o incômodo com a introdução “na família (de) gen-
te estranha” – tratando-se aqui de novas criadas – cf. a fonte oitocentista transcrita em
GRAHAM, Sandra L. Op.cit., p.134). Além da via contratual, há indícios, também, do
recurso a outros institutos de direito civil – como a tutela – para garantir a permanência
da mão de obra doméstica (cf.GUIMARÃES, Elione S. Op.cit., pp. 75-6).
284 – V., por exemplo, REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Op. cit., pp. 416 e 419.
No Direito romano – e na tradição jurídica da Recepção (na qual o Brasil de certo modo se
enquadrava) – o liberto seguia parcialmente vinculado ao antigo senhor, com obrigações
específicas de “gratidão” e apoio (cf. KASER, Max. Op.cit., p.84, e SÖLLNER, Alfred.
Op.cit., p.87). Essa não equiparação do liberto ao homem pobre nascido livre há de ter
moldado séculos da nossa experiência jurídica, como parecem indicar os estudos mais re-
centes (cf. – além das observações de Hebe Mattos – TELLES, Lorena F. da Silva. Op.cit.,
p.185; SCHWARTZ, Stuart. Op.cit., pp. 214 e 215, n.47; MENDONÇA, J.N. Entre..., pp.
83ss, 94, etc.; e – salientando os efeitos da Lei de 1871 – MENDONÇA, J.N. Cenas...,
p.85). Em meados da década de 1880, até organizações abolicionistas ainda julgavam
adequado usar a legislação sobre locação de serviços para fixar os libertos nos mesmos
estabelecimentos em que haviam sido escravos (cf. MENDONÇA, J.N. Cenas..., p.41).
285 – Sobre tal fenômeno, cf.TELLES, Lorena F. da Silva. Op. cit., p.178ss – e a biblio-
grafia ali apontada. A indicação da cor da pele e de outros sinais característicos talvez
pudesse, no entanto, ter também funções de identificação – mormente em se tratando
de um meio social em que analfabetos e nomes repetidos longe estavam de ser raros. É
improvável, por outro lado, que o uso efetivo e a relevância dos documentos pessoais
na vida cotidiana tenham crescido, à época, exatamente na mesma proporção em que o
Estado ampliava sua vigilância e controle sobre os trabalhadores domésticos, por meio de
normas e registros policiais.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 399


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

pendência podiam então se desenvolver, eventualmente longe das fontes


oficiais invocadas para negar o elemento patriarcal das antigas relações286.

A despeito de o Estado ter legalmente fulminado a escravidão, o ve-


lho poder doméstico não foi de todo banido do mundo do trabalho, tendo
ali continuado a resistir contra o que alguns viam como “uma odiosa e
excepcional inspecção e vigilância das autoridades” públicas287. O que
parecia restar das prerrogativas tradicionais da casa só passou a ser, nesse
campo, cada vez mais defendido com a linguagem do liberalismo288. Ou,
décadas mais tarde, com base em um discurso institucionalista de matriz
italiana – até hoje acriticamente reproduzido nos manuais de Direito do
trabalho, com sua recorrente naturalização dos poderes patronais dentro
da “instituição” – empresa289.

286 – Sendo a prática social do apadrinhamento algo muitíssimo mais amplo que o sim-
ples ato de tornar-se padrinho no direito canônico, não se pode inferir a inexistência de
polos de poder não estatal (ou de redes fundadas em relacionamentos e expectativas de
“lealdade”) a partir da singela constatação de que determinados nomes estão ausentes de
registros batismais. Ao evidenciarem que os filhos de escravos raramente tinham seus
senhores como padrinhos (cf. SCHWARTZ, Stuart. Op.cit., pp.279ss, 286 e 290-1), os
estudos sobre a matéria realmente deixam de trazer provas em favor de uma visão mais
patriarcalista da escravidão, mas ainda assim não dão lastro suficiente para negar sua
influência concreta em outros planos, à época. Por outro lado, caberia perguntar: Não
seria possível que, simplesmente, em uma sociedade que tanto desprezava o negro, se-
nhores e seus familiares não fizessem mesmo questão de ser padrinhos? Por que, então,
os índios “administrados” recebiam maior atenção senhorial nesse assunto (cf. o próprio
SCHWARTZ, Stuart. Op. cit., pp.279 e 290-1) – seria mesmo só para justificar sua situa-
ção jurídica, em um país em que a escravização de índios mal podia ser reprimida pelos
escassos agentes da Coroa? E em que medida a escolha dos padrinhos poderia indicar
os reais sentimentos do escravo, considerando-se as próprias restrições práticas que um
simples escravo poderia ter, quanto ao grau de liberdade na escolha dos padrinhos do
filho? Como vemos, mesmo tendo dado uma admirável contribuição para o rastreio das
articulações de um sentimento de classe, as pesquisas aqui enfocadas não demonstraram a
total irrelevância do imaginário patriarcal, na reprodução da sociedade escravista. Quanto
à função do compadrio na consolidação de laços assimétricos entre fazendeiros e pobres
livres, segue útil FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Op.cit., p.84ss.
287 – Reproduzimos aqui transcrição de debates oficiais da década de 1880 sobre o pro-
blema da regulação do serviço doméstico no Rio de Janeiro (v. GRAHAM, Sandra L.
Op.cit., p.148).
288 – Para uma análise detida do fenômeno, cf. GRAHAM, Sandra L. Op.cit., p.148ss.
289 – Sem críticas ao institucionalismo, o tema já foi abordado em parte por Ricardo
Fonseca, sugerindo a leitura de aspectos da CLT à luz de nosso passado escravista (cf.
FONSECA, Ricardo M. Modernidade e contrato de trabalho. S.Paulo, 2002, p.134).

400 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Contra o demagógico hábito acadêmico de só analisar criticamen-


te as elites, é preciso perceber que também as famílias dos ex-escravos
podiam, por vezes, reproduzir e seguir reproduzindo internamente o ima-
ginário patriarcalista tradicional. Os opositores da Abolição já haviam
indicado isso, denunciando o risco, para a grande lavoura, de perder parte
não insignificante da mão de obra feminina, à medida que mulheres liber-
tadas passassem a se concentrar em atividades domésticas290. No século
XIX, não foram poucos os visitantes estrangeiros que aqui observaram,
nos extratos populares, os poderes domésticos sendo exercidos de forma
análoga ou até mais rigorosa do que nas casas encabeçadas por grandes
fazendeiros291.

Dar o governo “açoites nos escravos dos outros” era algo que podia
indignar nossa elite política em 1839. Seis décadas e meia depois disso, o
governo irritaria multidões de populares, por querer penetrar as “mulhe-
res dos outros” em uma campanha de vacinação. Desconsiderando teme-
rariamente, em sua insensibilidade tecnicista, a esfera tradicional da casa,
o sanitarismo republicano deflagraria uma revolta social, confrontando
concepções arraigadas e invadindo espaços e corpos tradicionalmente
submetidos ao poder doméstico.

Ainda que sofrendo os problemas típicos de uma sociedade capita-


lista moderna e sentindo na carne novas práticas de segregação, os revol-
tosos também tinham uma causa tradicional a defender. É bem verdade
que suas vidas haviam sido afetadas pelo surgimento das primeiras “ilhas
de intervenção” da Primeira República – com seu urbanismo demolidor
de cortiços e seu higienismo incomodamente mais eficaz do que o impe-
rial292. Mas a invasão da moradia pelos agentes públicos de saúde, poden-
290 – Cf. as opiniões transcritas em MENDONÇA, J.N. Entre..., p.70. Ressalve-se,
contudo, que na prática tais atividades domésticas poderiam ser exercidas também, no
meio urbano, para terceiros (sobre a evolução do mercado de criadas no Rio até 1910, cf.
GRAHAM, Sandra L. Op. cit.).
291 – Cf. SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagens, p.96, e ZALUAR, Augusto Emilio.
Op.cit..
292 – Sobre o impacto social do urbanismo republicano, cf.SEVCENKO, Nicolau. Litera-
tura como missão. São Paulo, 2003 – esp. p.35ss – e CARVALHO, José M. de Os bestia-
lizados. S.Paulo, 1987. Sobre as “ilhas de intervenção”, cf. SEELAENDER, Airton Lisle

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 401


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

do até culminar na vacinação compulsória das súditas do poder doméstico,


isso era para este um desaforo intolerável, uma “capitis deminutio”, uma
violação das divisas antigas – e por isso supostamente naturais – entre o
Estado e a casa, mesmo a casa do “leguelhé”293.

Seria deplorável uma história do Direito que ressuscitasse a antiga


visão da Revolta da Vacina como um conflito entre um legislador sábio e
a ignorância popular294. Mas também seria ingênuo o historiador do direi-
to que – pinçando em um país de iletrados menções a Spencer, Marx ou
Comte aqui e ali feitas em livros ou artigos jornalísticos – remetesse to-
das as motivações populares a ideologias da Europa industrial. Quando se
indignavam e pensavam, os corticeiros e ambulantes da época deveriam
ter outras referências – inclusive as do imaginário tradicionalista. Talvez
a longa sombra da casa ainda se estendesse até a base das barricadas, no
levante social de 1904.

Na verdade, mesmo que isso não houvesse ocorrido, a presença da


casa ainda teria marcado o conflito, de forma indireta e tortuosa. Note-
-se que o triunfo do Estado conduziu à punição disciplinar de alguns re-
voltosos no mais tradicional estilo do velho poder senhorial, sendo-lhes
aplicados castigos corporais antes dados aos escravos. Diante disso, Lima
Barreto não hesitaria em descrever o “Estado de Sítio” republicano como
um verdadeiro “Estado de Fazenda”295.

Cerqueira-Leite. “Pondo os pobres no seu lugar”. In: COUTINHO, J./LIMA, M. (org.)


Diálogos constitucionais.Rio de Janeiro, 2006 e a bibliografia ali indicada.
293 – Já o intuindo, com a sensibilidade que lhe é peculiar, CARVALHO, José M. de
Pontos e bordados. B. Horizonte, 1999, p.118.
294 – É interessante observar a persistência de visões elitistas como esta em outros seto-
res. De acordo com uma bombástica obra sobre “os virtuosos” estadistas que teriam fun-
dado a nossa república, a Revolta da Vacina poderia ser singelamente descrita como uma
derrota das forças do atraso e retrocesso, identificadas, por sua vez, com um povo teimoso
como qualquer pessoa ignorante (v. D’AVILA, Luiz Felipe. Os virtuosos. S.Paulo, 2006,
pp.156 e 158).
295 – Sobre essa passagem, cf.SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo,
2001, p. 80. No que tange à relação entre a produção literária de Lima Barreto e o quadro
sociopolítico do período, segue sendo relevante SEVCENKO, Nicolau. Literatura como
missão, São Paulo, 2003.

402 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Na ironia do escritor não havia só o registro implícito da longa som-


bra da casa – havia também a sua denúncia e a sua rejeição296. Antes vista
como boa, natural e eterna, a casa surgia aqui como modelo negativo para
o Estado. Modelo que se desgastava por uma série de fatores, incluindo
a transformação das mentalidades, em época de urbanização intensa e de
imigração297.

De qualquer modo, realimentada no Império pela escravidão e por


estruturas sociais arcaicas e persistentes, a “casa” do Antigo Regime so-
breviveu, como vimos, a este último, tendo projetado uma longa som-
bra que alcançou até a época republicana. Fosse este ensaio totalmente
ensaísta, talvez até aventássemos aqui a apressada hipótese de que algo
dessa sombra ainda se estaria mostrando, recentemente, em memórias

296 – Se, nesse caso concreto, o olhar crítico do intelectual contestador captou os reflexos
da casa escravista e os expôs à ironia e ao ridículo, nem por isso revelou-se o autor sempre
imune ao imaginário tradicional. Não faltam textos indicativos de seu desconforto com a
invasão, pelo Estado, de antigos domínios da casa. Crônicas suas defendiam, e.g., o “dono
(...) da casa” e os “chefes” do “quadro familiar” contra interferências estatais em matéria
de “criados”, insurgindo-se contra a conversão “das nossas vidas” em “uma gaveta de
fichas” e contra o “exagero de legislar (...) característico da nossa época” (BARRETO,
Afonso Henriques de Lima. Toda crônica. Rio de Janeiro, 2004, v.1, p.15. Sobre o vínculo
entre casa e família, cf. também p.196).
297 – Viessem da Alemanha, da Suíça ou de uma Europa Meridional com estruturas so-
ciais arcaicas e governantes por vezes indiferentes diante do destino dos pobres lançados
à América, os imigrantes não estavam acostumados, a rigor, às formas de tratamento
das fazendas brasileiras. Seu equiparar aos escravos negros era algo que assimilavam
mal – e mesmo no Brasil podia por vezes causar escândalo (cf, e.g, a charge reproduzida
em MENDONÇA, Joseli. Cenas..., p.34. Para um exemplo de “literatura de resistência”
originária dos próprios imigrantes, cf.DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Bra-
sil. S.Paulo, 1980 –, apontando para tal equiparação às pp. 141, 222, 233-5 e 237. Sobre
as condições iniciais de alojamento dos imigrantes e sua mudança, cf.SLENES, Robert
W. Op.cit., p.283ss). Óbvio, mas dificilmente dimensionável, o efeito modernizador da
imigração não implicou o campo, ressalve-se, o imediato desaparecimento da visão ca-
sificada das relações de trabalho. Tratados como “dependentes e servos” pelos fazendei-
ros, colonos ainda teriam, em 1884, de suportar que aqueles tentassem se meter em seus
“arranjos domésticos”, julgando-se inclusive no direito de ser consultados e de resolver
“disputas familiares” (v. o relato transcrito em SLENES, Robert W. Op.cit., p.287).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 403


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

de advogados298, manuais de Direito Civil299 e – ao menos até a Emenda


Constitucional 72/2013 – mesmo em nosso alegado Estado Social de Di-
reito pós-1988300. Evitando, porém, todas essas chãs e imprecisas bana-
lidades, tomaremos rápido o elevador – o “social”, naturalmente – para
temas mais elevados.

298 – Cf., e.g., JUNQUEIRA, José A. D. O guarda-mor. Reminiscências de um velho


Junqueira. São Paulo, 1982, pp. 71-2. Após frisar a autosuficiência das antigas fazendas,
afirma o autor que nestas “a autoridade do chefe de família (...) devia ser incontestável
e quase absoluta. Ninguém desobedecia às suas ordens (...)”. Isso, frisa Junqueira, “era
necessário para que as coisas corressem bem (...)”.
299 – O influente manual de Washington de Barros Monteiro poderia nos levar a tal pre-
cipitação, com sua exaltação das “virtudes domésticas”, em uma era – segundo o civilista
– de “menos responsabilidade para o pai, menor abnegação por parte da mãe, maior irre-
verência dos filhos” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. S.Paulo,
1971, pp. 2 e 7). Apelando ao senso comum tradicional, o autor seguiu por anos denun-
ciando o divórcio- mesmo após a introdução deste em nosso direito – como algo “contrá-
rio à ordem natural”, que levaria fatalmente à desagregação da família. Descrevendo a
perda da virgindade como “mancha” que tisna a vida passada”, Barros Monteiro também
deixou transparecer sua repulsa à liberdade sexual da mulher solteira (MONTEIRO, Wa-
shington de Barros. Curso de Direito Civil. S.Paulo, 1994, pp. 16, 91 e 216). Após citar
longamente tal autor, um acórdão de 1978 ainda caracterizava o “pai” como “chefe da
casa”, frisando que “a unidade de orientação é uma condição essencial de qualquer orga-
nismo disciplinado” (apud PIOVESAN,F./ PIMENTEL,S./DI GIORGI, B. Op.cit., p.125
– com voto discordante também invocando a autoridade do civilista). É importante obser-
var, no entanto, que concepções análogas também eram compartilhadas por doutrinadores
menos famosos que Barros Monteiro. Yussef Cahali, por exemplo, opunha ao divórcio a
“tradição secular de nossas estruturas familiares”. Vendo “esfacelada a disciplina familiar”
em uma era de “feminismo trepidante e festivo”, tal magistrado situava entre os ”maiores
perigos para o mundo atual” a troca, pela mulher, de seus “deveres sagrados” por uma
“vida artificial, descuidando-se do esposo e dos filhos” (CAHALI, Yussef S. Divórcio e
separação. S.Paulo, 1978, pp. 3-4 e 28).
300 – Pensemos no óbvio tantas vezes esquecido: na sinalização legislativa por tantas
décadas – do Direito do trabalho getulista ao do nosso alegado Estado Social – da suposta
excepcionalidade das relações de trabalho no âmbito doméstico. Que indignação não ge-
rou a Emenda Constitucional 72/2013, fazendo o Estado tratar as domésticas “dos outros”
como se fossem operários de uma sociedade industrial moderna! Incômodos em face do
fim dos papéis tradicionais da “casa” podem – note-se – aparecer até sob roupagem mo-
derna – como invocações do “custo Brasil” e da liberdade contratual das donas de casa
em face do “Estado Interventor”. Em nossas metrópoles mais prósperas, à medida que
as relações de trabalho no âmbito doméstico foram-se descasificando e contratualizando
para valer, multiplicaram-se os prédios modernos com elevadores “de serviço”, aptos a
segregar espacialmente pobres tornados cada vez mais distantes da intimidade burguesa.

404 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

De fato, cumpre discutir em que medida o conceito de “casa” nos


auxilia – ou nos atrapalha – na releitura do passado. Não comportará ele
riscos, embora lance novas luzes sobre as fontes?

Longe de ser uma ferramenta neutra, o conceito brunneriano de


“casa” vinculava-se à repulsa do autor austríaco pelo individualismo libe-
ral e pela separação Estado-sociedade301. Reproduzia a obsessão – típica
dos Anos 30, mas comum na história do Direito mais conservadora de
todo o século XX – de apelar para a “vida” e o “concreto”, desconside-
rando por vezes as incômodas fronteiras entre ser e dever-ser302. A his-

301 – Sobre o descabimento da retroprojeção dessa divisão no passado pré-liberal, cf.


BRUNNER, Otto. Neue Wege, p.187ss e BRUNNER, Otto. Sozialgeschichte, p.6. Ana-
lisando a crítica de E.R. Huber e O. Brunner ao “Trennungsdenken” liberal, G. Algazi
demonstrou o uso estratégico desta para embasar o totalitarismo nazista – mas não logrou,
todavia, demonstrar a total inutilidade da argumentação para pesquisas sem vínculo al-
gum com tal regime (cf. ALGAZI, Gadi. Op.cit., p.107, n.38). Na verdade, mesmo autores
democratas e de esquerda, como António Hespanha, aceitam a crítica ao “Trennungs-
denken”, usando-a não para exaltar regimes atuais, mas para policiar-se contra retroproje-
ções e para indicar o caráter historicamente mutável e contingente do Direito.
302 – Não se exige, aqui, que o historiador do Direito force as fontes pré-liberais até que
estas, absurdamente, pareçam assimilar dicotomias kantianas. Mas há problemas, sem
dúvida, quando uma “norma construída pelo historiador” passa a ser vendida como a
essência das relações sociais passadas (v.ALGAZI, Gadi. Op.cit., p.110). Assim como há
problemas, também, em dissolver a sociedade do passado e do presente em um mosaico
de “instituições” ou “ordens concretas” sobrepostas, naturalizando a dominação exercida
em polos não estatais de poder social (da plantação escravista à empresa capitalista) e
legitimando automaticamente os comandos ali proferidos como “jurídicos por definição”.
Na era do sufrágio universal e da intensificação do uso dos parlamentos como espaço da
luta pela transformação social, a defesa de hierarquias autoritárias na família, na Igreja e
na empresa (e mesmo em áreas estatais, como a burocracia e o Exército) estruturou-se por
vezes em um discurso jurídico institucionalista. Não por acaso este foi difundido pelos
inimigos do liberalismo e da República de Weimar (como Carl Schmitt, já no início do na-
zismo) e por colaboradores do regime de Mussolini (como Santi Romano, presidente do
Conselho de Estado na era fascista). Sobre o tema, cf. – além da fundamental contribuição
de Bernd Rüthers (Entartetes Recht. München, 1994, p.54ss, 65-6) – também SEELAEN-
DER, Airton Lisle Cerqueira-Leite. “Juristas e ditaduras”. In: FONSECA, Ricardo M./
SEELAENDER, Airton Lisle Cerqueira-Leite. Op.cit., p.415ss e a bibliografia ali indi-
cada. Interessante registrar, por sinal, que “a concreta instituição ‘família’”, o poder do
“bom pai de família” e até a inserção setecentista dos “criados” na “comunidade domésti-
ca” foram expressamente invocados por Carl Schmitt na obra em que tenta justificar sua
passagem estratégica do decisionismo para o institucionalismo, em 1934 (cf.SCHMITT,
Carl. Über die drei Arten Berlim, 1993, pp. 17 e 36, e a boa síntese de ALGAZI, Gadi.
Op.cit., p.112).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 405


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

toriografia de Brunner pagou caro pelos ganhos que teve, ao optar pelas
concepções schmittianas de “constituição” e de “ordem concreta” como
pontos de partida303. Concepções que eram – perceba-se – tão historica-
mente contingentes quanto as do liberalismo oitocentista, trazendo ainda,
consigo, toda a carga autoritária do meio em que foram elaboradas304.

Não precisamos idealizar a esfera da “casa”, seguindo a ideologia


tradicionalista que ressalta a sua suposta “harmonia” interna. Mas pode-
mos registrar – como aqui fizemos – que tal ideologia podia, em algumas
circunstâncias, servir não ao dominador, mas ao dominado. Conceber
a “casa” como núcleo da dominação paterna-marital-senhorial ajuda a
preservação de um imaginário patriarcal305, mas tal imaginário, para se
reproduzir socialmente e se legitimar, tem de dar aos súditos da “casa”
– ainda que só muito limitada, excepcional e marginalmente – alguma
possibilidade de invocá-lo em seu próprio benefício.

Não precisamos supor, a partir das fontes jurídicas e políticas aqui


referidas, o perene predomínio de uma estrutura social tradicional, repre-
sentada quer de forma direta, quer sob o véu diáfano de uma concepção
casificada de “família”. Tais fontes não descrevem, nem poderiam des-
crever, toda a prática social. Além disso, algumas delas chegam mesmo

303 – É invocando, por sinal, o conceito de “constituição” na Verfassungslehre de Schmitt


(“Gesamtzustand der politischen Einheit und Ordnung“) que Brunner embasa sua obra
mais influente, “Land und Herrschaft” (1939). Estranha conduta, para quem tanto defen-
deu o uso de conceitos das fontes do Antigo Regime para analisar o próprio Antigo Re-
gime. Há, porém, nesse ponto, nuanças, singularidades e ambivalências em Brunner, não
se podendo reduzir sua obra a uma singela aplicação das fórmulas sedutoras, mas nem
sempre precisas, de Carl Schmitt (sobre tais ambivalências, cf.ALGAZI, Gadi. Op.cit.,
p.125. Para uma crítica das imprecisões de Schmitt, cf., entre outros, RÜTHERS, Bernd.
Op.cit., p.71).
304 – Cf., a respeito, a precisa análise de WILLOWEIT, Dietmar. Deutsche Verfassungs-
geschichte. München, 2009, p.6. As fontes não comprovariam a existência, no passado,
do “fantasma de “unidade e ordem” que o conceito schmittiano de “constituição” carrega
consigo. Refletindo o ambiente ideológico da época, as análises de Brunner sobre “Herrs-
chaft” e “Haus” teriam sido afetadas por esse “retrato total harmônico de unidade e ordem”
(Idem, ibidem).
305 – Como aponta Algazi, no que tange a Otto Brunner (v.ALGAZI, Gadi. Op.cit.,
p.121). Tal visão da “casa” também pode ser veiculada, contudo, onde tal finalidade não
se faz presente (cf., por exemplo, WILLOWEIT, Dietmar. Op.cit., p.41).

406 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

a indicar a presença de arranjos alternativos – o “desvio” podia, é claro,


conviver com a “norma” e ser mesmo uma das causas do apego a esta
última.

Em situações em que a própria ordem tradicional parece em crise,


seus velhos conceitos estruturantes podem ser abandonados, substituídos,
adaptados ou remoldados. Mas também podem, vindo à baila nas conten-
das, aparecer mais ou dar a impressão disso, induzindo o observador a
crer que tudo giraria em torno deles.

Fontes jurídicas e políticas podem, não raro, prolongar concepções


da tradição letrada. E podem também fornecer um discurso de caráter
normativo (ou de “pseudodescrições” normatizantes) que nos conduza a
uma representação muito imprecisa do que estaria ocorrendo no passa-
do306. O discurso jurídico longe está de ser sempre um bom espelho dos
interesses e concepções de mundo das camadas mais pobres e iletradas307.
Em muitos casos, como vimos, o conceito jurídico de “casa” serviu, im-
plícita ou explicitamente, para legitimar a dominação- nos reinos, fazen-

306 – Segundo Gadi Algazi tal falha seria encontrada mesmo nesse severo crítico das in-
genuidades dos juristas que foi Otto Brunner. A partir de fontes medievais referentes a um
“suposto dever de proteção” senhorial, o autor de “Land und Herrschaft” teria intuído que
os senhores tinham de ser e eram realmente poderosos, estando em condições concretas
de oferecer aos camponeses proteção em troca de uma sujeição automática no âmbito
da sua “Haus” (cf.ALGAZI, Gadi. Op. cit., pp. 103-4. Para uma crítica dos reparos de
Algazi a Brunner, cf. a resenha de WETTLAUFER, Jörg. “Algadi...”. Ius commune. 24,
pp. 400-403, 1997).
307 – É alentador que boa parte da história do Direito hoje produzida nas nossas faculda-
des de História siga E. P. Thompson na preocupação de (tentar) resgatar pontos de vista
dessas camadas sociais. A produção científica daí gerada não perde sua relevância por
conta de pontuais mal-entendidos na recepção do pensamento do autor inglês – derivados,
quando muito, ou da diversidade entre duas culturas jurídicas específicas (cf. FONSECA.
Ricardo M. Introdução, p.104ss.) ou de singelos erros de tradução (cf. a edição brasileira
de Senhores e caçadores, onde se verteram automaticamente como “lei” e “domínio da
lei” palavras e expressões inglesas de sentido por vezes diverso ou bem mais amplo).

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 407


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

das, oficinas308, estabelecimentos comerciais e unidades familiares309. E


para cobrir, com o mesmo apresentável velho traje, formas e graus de
dominação que podiam diferir substancialmente na prática social310.

De qualquer modo, o presente ensaio nada mais pretende do que


sugerir que estamos diante de algo relevante no passado brasileiro, mas
que não foi ainda, entre nós, suficientemente estudado311. De um conceito
308 – Das manufaturas do Antigo Regime aos arsenais do Segundo Reinado, os locais
de produção foram frequentemente organizados, ao menos de modo parcial, a partir dos
padrões da “casa”, copiando-lhe a estrutura hierárquica e os poderes disciplinares. Isso
favorecia, aliás, a concepção desses locais como instâncias disciplinares, quase “edu-
cativas” – e apropriadas, portanto, para governar paternalmente filhos indisciplinados e
moleques em geral. Para exemplos de exercício de poder doméstico no disciplinamento
de “aprendizes”, cf. ESTATUTOS DA REAL FABRICA, p.8, XII (para a época pomba-
lina); VILHENA, Luiz dos Santos. Op.cit., p.439 (para a Bahia sob D. Maria I); FRAGA
FILHO, Walter. Op. cit., pp. 112, 122, 129ss etc. (para a Bahia oitocentista) e RANGEL,
Alan Wruck G. Op.cit., p.103ss (para uma comparação com o Direito francês).
309 – Mesmo em destacados estudiosos aparentemente vacinados contra o juridicismo
– como Otto Brunner –, registra-se certo “parentesco com a visão ‘aristocrática’ da so-
ciedade” (ALGAZI, Gadi. Op.cit., p.126). O autor austríaco pode até ter tido o mérito de
abandonar ilusórias concepções estatalistas da sociedade medieval, mas não teria chegado
“a uma radical percepção da pluralidade de perspectivas” possíveis no passado (ALGAZI,
Gadi., Op.cit., p.126. Para avaliações semelhantes cf. GRAUS, Frantisek. “Verfassungs-
geschichte des Mittelalters”. Historische Zeitschrift. 243, pp. 567-8 1986, e OPITZ, Clau-
dia . “Neue Wege der Sozialgeschichte?”, p.97).
310 – Mesmo os escravos podiam vivenciar o poder senhorial de forma muito distinta.
Acusando Freyre de não “ver o negro do eito”, já Darcy Ribeiro lembrava que a escravaria
da casa-grande não representava o “negro-massa”, o “carvão humano”, o “negro multi-
tudinário que” teria sido “o principal contingente trabalhador do Brasil” (v. RIBEIRO,
Darcy. Op. cit. pp. 60 e 68). Estudos recentes têm revelado um quadro ainda mais comple-
xo, em que o poder senhorial, adaptando-se a circunstâncias econômicas e locais diversas,
podia adotar combinações muito variadas de vias de controle e espaços de autonomia – a
ponto de alguns escravos chegarem na prática a exercer comércio, a morar à parte ou mes-
mo a andar soltos por aí portando quantias significativas dos senhores e armas vedadas
pela legislação (cf., e.g., FERREIRA, R.F. Op.cit., p.114).
311 – Já se deram, porém, os primeiros passos para reverter o quadro aqui descrito. De
Freyre a Rohloff de Mattos e Bivar Marquese, autores com preocupações muito distintas
têm-se mostrado capazes de intuir a enorme utilidade que as fontes sobre o “governo
doméstico” podem ter para o exame do imaginário e da estrutura social do passado. O
próprio tema da “casa” já começa, inclusive, a ser trabalhado mais diretamente – pos-
to que de modo ainda um tanto pontual – por historiadores sociais capazes de respeitar
as singularidades discursivas do direito e da “oeconomia” do Antigo Regime (cf.LARA,
Silvia Hunold. “Senhores...”, p.88, e LARA, Silvia Hunold. “Os escravos...”, p.132). So-
bretudo os historiadores da escravidão – abandonando o antigo desprezo pelas fontes
jurídicas – têm sido cada vez mais compelidos à reflexão sobre a casa e o poder doméstico

408 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

tradicional que sobreviveu ao Antigo Regime, época em que se entranhou


no imaginário coletivo a ponto de influenciar o discurso jurídico e mesmo
algumas práticas sociais.

Se o peso do conservadorismo nas concepções de Brunner e Freyre312


nos deve inspirar desconfianças e cuidados, nem por isso a “casa”, no
Brasil, deve ser tratada como uma quimera irrelevante. Não devemos, em
função de outras amarras ideológicas, ignorar o peso específico das re-
presentações e da linguagem do passado, no afã de denunciar o mascara-
mento das opressões. Uma história do Direito realmente crítica deve estar
atenta a tudo que gerou estas últimas e as manteve – inclusive doce, sutil
e juridicamente313.

Referências Bibliográficas
ABOYM, Diogo Guerreiro Camacho de. Escola moral, politica, christãa e
juridica. 3ª.ed., Lisboa: Officina de Bernardo A. de Oliveira, 1759.
AFRICANO, António de Freitas. Primores políticos e regalias do nosso rei.
Lisboa: IHDPP/Principia, 2005.
AGUIAR, Antônio C. de. Direito Civil. Teresina, 2006.
ALENCAR, José de. A propriedade. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1883.
___. “Verso e reverso”. In: MATE, A./SCHWARCZ, P. (org.) Antologia do teatro
brasileiro. Séc.XIX- comédia. São Paulo: Companhia das Letras/Penguin, 2012,

(cf., e.g., MALERBA, Jurandir . Op. cit.). A análise do discurso sobre a “casa” e sobre
a sua naturalização teria muito a ganhar se partisse de um diálogo interdisciplinar. Este
poderia envolver também a Antropologia, área que já têm produzido, em nosso país, tra-
balhos relevantes sobre o assunto (cf., e.g., DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de
Janeiro, 1997).
312 – Ressaltando o “descaso teórico de Gilberto” Freyre, Darcy Ribeiro queixa-se da
falta de interesse deste “pela generalização teórica”, deplorando a falta de análises compa-
rativas da sociedade patriarcal descrita em Casa-Grande & Senzala com “outros padrões
patriarcais e não patriarcais de sociedade” (RIBEIRO, Darcy. Op.cit., p.30). Na verdade,
foi justamente por seu intuito de investigar as origens da brasilidade que Freyre, mesmo
estudando a fundo a estrutura da “casa” entre nós, deu pouca atenção àquilo que esta tinha
de geral-ocidental, inclusive do ponto de vista conceitual.
313 – Uma história do direito crítica, no Brasil, ainda tem mais o que fazer do que ha-
giografia de juristas fascistas, ataques à codificação francesa e exaltações de modismos
políticos de sociedades de baixa complexidade. Enquanto houver fontes brasileiras a ex-
plorar e sutis formas de opressão a desnaturalizar em nosso próprio Direito, as tarefas
mais urgentes seguirão pendentes.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 409


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

pp. 239-293.
ALENCASTRO, Luiz F./RENAUX, Maria Luiza. “Caras e modos dos migrantes
e imigrantes”. in:NOVAIS, F. (org.) História da vida privada no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, v.2, 1997, pp. 291-335.
ALGAZI, Gadi. Herrengewalt und Gewalt der Herren im späten Mittelalter.
Frankfurt/N.York: Campus, 1996.
ALGRANTI, Leila Mezan. “Famílias e vida doméstica”. In: NOVAIS, F. (org.)
História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, v.1, 1997,
pp. 83-154.
ALMEIDA, J.R. de. “Esboço genealógico”. In: PEREIRA, Lafayette R. Cartas
ao irmão. S.Paulo: Ed. Nacional, 1968, pp. 153-183.
AMBIRES, Juarez D. “A administração dos índios em São Paulo em fins do
século XVII”. In: ODÁLIA, Nilo./CALDEIRA, João Ricarde de Castro. (org.)
História do Estado de São Paulo. São Paulo: Unesp/I.O./Arquivo Público do
Estado, 2010, v.1, pp. 73-91.
ANDRADA, Luiz D. Lafayette de (org.). Lafayette. Um jurista do Brasil. B.
Horizonte: Del Rey, 2009.
ANONIMO. Arte de furtar. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1991.
APPENDIX DAS LEYS EXTRAVAGANTES, DECRETOS E AVISOS. Lisboa:
Mosteiro de S. Vicente de Fora, 1760.
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Toda crônica. Rio de Janeiro: Agir,
2004, 2 v.
BARRETO, Tobias. “Prolegômenos do estudo do direito criminal”. In: Estudos
de Direito. Rio de Janeiro/Aracaju: Record/SECMA, 1991, v.2, pp. 99-165.
BELLOTTO, Heloísa L. Autoridade e conflito no Brasil colonial. 2ª.ed. rev., São
Paulo: Alameda, 2007.
BENCI DE ARIMINO, Jorge. Economia christãa dos senhores no governo dos
escravos. Roma: A. de Rossi, 1705.
BERTELLONI, Francisco. “Ethica, oeconomica, politica”. In: BENOIT, H./
FUNARI, P.P.A. (org.) Ética e política no mundo antigo. Campinas: Unicamp,
2001, pp. 29-44.
BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1927, 2 v.
___. Obra filosófica.II – Filosofia social e jurídica. São Paulo: Edusp/Grijalbo,
1975.

410 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

BINZER, Ina von. Os meus romanos. 6a.ed., S.Paulo: Paz e Terra, 2011.
BLOCH, Marc. Apologia da história. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: 1712/1728,
v.1-8.
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. São Paulo: Liberdade/
Fapesp, 1998.
BRAGA, (Joaquim F.) Teophilo. História da Universidade de Coimbra. Lisboa,
Academia Real das Sciencias, 1898, v.3.
BRANDÃO, Wilson de A. “Antônio Coelho Rodrigues”. In: COELHO, Celso B.
(org.)-Coelho Rodrigues e o Código Civil. Teresina: Gráfica do Povo/Academia
Piauiense de Letras, 1998, pp. 21-77.
___. ”Antonio Coelho Rodrigues. Ensaio de bibliografia e crítica”. In: COELHO
RODRIGUES, A. – Projeto do Código Civil Brasileiro. Brasília: Imprensa
Nacional, 1980, p.1-33.
BRAVO LIRA, Bernardino. “Mello Freire y la Ilustración Católica...” Separata
da Revista de Derecho de la Universidad Católica de Valparaíso. Valparaíso:
Escuela de Derecho, 1984.
BRIGHENTE, Liliam. Entre a liberdade e a administração particular.
Dissertação de mestrado. Paraná: UFPR, 2012.
BRUNNER, Otto. “Das‚ ganze Haus ‘und die alteuropäische Ökonomik”. In:
Neue Wege der Verfassungs- und Sozialgeschichte. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1968, p.103-127.
___. “Die Freiheitsrechte in der altständischen Gesellschaft“. In: Neue Wege der
Verfassungs – und Sozialgeschichte. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1968,
pp. 187-198.
___. Terra e potere. S.l.: Giuffrè, 1983.
___. Sozialgeschichte Europas im Mittelalter. Göttingen: Vandenhoeck &
Ruprecht, 1984.
BUESCU, Ana I. Imagens do príncipe. Lisboa: Cosmos, 1996.
CAHALI, Yussef S. Divórcio e separação. São Paulo: RT, 1978.
CAMPOS, Alzira L. de A. Casamento e família em São Paulo colonial. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
CARREIRA, António. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. São
Paulo: Nacional/INL/MinC, 1988, v.2.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados. S.Paulo: Companhia das Letras,

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 411


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

1987.
___. “Brasil 1870-1914”. Pontos e bordados. Belo Horizonte: UFMG, 1999,
p.107-129.
CARVALHO, José M. de./BASTOS, Lúcia./BASILE, Marcello (org.). Às
armas, cidadãos! São Paulo/Belo Horizonte: Companhia das Letras/UFMG,
2012.
CASTRO, Hebe Mattos de. “Laços de família e direitos no final da escravidão”
in: NOVAIS, F. (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, v.2, pp.337-383.
CERQUEIRA, Manfredi. “Um jusnaturalista convicto”. In: COELHO, C.B.
(org.) Coelho Rodrigues e o Código Civil. Teresina: Gráfica do Povo/Academia
Piauiense de Letras, 1998, pp.125-144.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
___. A força da escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO. In:PIERANGELLI, J.H. Códigos penais
do Brasil. Bauru: Jalovi, 1980, pp. 165-265.
CÓDIGO DE LEGISLACIÓN PARA EL GOBIERNO MORAL, POLÍTICO Y
ECONÓMICO DE LOS NEGROS DE LA ISLA ESPAÑOLA. In: SALMORAL,
M.L. Los códigos negros de la América Española. Unesco/Universidad de Alcalá,
1996, pp. 196-249.
CÓDIGO PENAL DE 1890. In: PIERANGELLI, J.H. Códigos penais do Brasil.
Bauru: Jalovi, 1980, pp. 267-318.
COELHO RODRIGUES, Antônio. Projeto do código civil brasileiro. Brasília:
Imprensa Nacional, 1980.
___. A Republica na América do Sul. 2ª.ed., Einsiedeln, 1906.
COELHO, Celso B. “Coelho Rodrigues, a Escola do Recife e a tradição
espiritualista”. In: COELHO, C.B. (org.) Coelho Rodrigues e o Código Civil.
Teresina: Gráfica do Povo/Academia Piauiense de Letras, 1998, pp. 103-
123
___. “Apresentação”. In: COELHO, C.B. (org.) Coelho Rodrigues e o Código
Civil. Teresina: Gráfica do Povo/Academia Piauiense de Letras, 1998, pp.
7-19.
COMPÊNDIO HISTÓRICO DO ESTADO DA UNIVERSIDADE DE
COIMBRA-1771. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1972.
CONSTANT, Benjamin Curso de política constitucional. Madri: Taurus,

412 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

1968.
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Unesp, 1998.
COSTA, Mário J. de A. História do direito português. Coimbra: Almedina,
1995.
CUNHA, Luís da. Testamento político. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
CUNHA, Mafalda S. da/MONTEIRO, Nuno G. “As grandes casas”. In:
MATTOSO, J./MONTEIRO, N.G. (org.) História da vida privada em Portugal.
A idade moderna. S.l.: Círculo de Leitores, 2011, pp. 202-243.
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Edusp/
Brasiliense, 1986.
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
DAVATZ, Thomas. Memórias de um colono no Brasil. B.Horizonte/ S.Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1980.
D’AVILA, Luiz Felipe. Os virtuosos. São Paulo: Girafa, 2006.
DEL PRIORE, Mary. “Ritos da vida privada”. In: NOVAIS, F. (org.) História da
vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v.1, pp. 275-
330.
DIAS, Maria Odila da S. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 2001.
DI CICCO, C. Direito: tradição e modernidade. São Paulo: Ícone, 1995.
DIGESTO DE JUSTINIANO Ed.bilíngüe. São Paulo: RT/Unifieo, 2000.
DIRECTORIO QUE SE DEVE OBSERVAR NAS POVOAÇOENS DOS
INDIOS DO PARÁ, E MARANHÃO Lisboa: M. Rodrigues, 1758.
DOCUMENTOS INTERESSANTES PARA A HISTÓRIA E COSTUMES DE
S.PAULO. São Paulo: Unesp/Arquivo do Estado, 1990, v. 94 e 95.
ENGELS, Friedrich. “Derivação, ação recíproca e causação... (Carta a
F.Mehring)”. In: MARX, K./ENGELS, F. História. Org. Florestan Fernandes.
São Paulo: Ática, 1983, pp. 464-468.
ESTATUTO DA REAL FÁBRICA DAS SEDAS Lisboa: A. Galhardo,
1757.
FARIA, Maria Auxiliadora./PEREIRA, Lígia M.L. “Parte 1-Biografia”. In:
ANDRADA, L.D.L. de (org.) Lafayette. Um jurista do Brasil. B. Horizonte: Del
Rey, 2009, pp. 1-196.
FEIJÓ, Diogo Antônio. Diogo Antônio Feijó. Org. (da coletânea) J. Caldeira.
São Paulo: Ed.34, 1999.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 413


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

FERREIRA, Ricardo A. Senhores de poucos escravos. São Paulo:UNESP,


2005.
FERREIRA, Roberto Guedes. “Autonomia escrava e (des)governo senhorial na
cidade do Rio...” In: FLORENTINO, M. (org.) Tráfico, cativeiro e liberdade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 229-283.
FIGUEIREDO, Luciano R. de A. O avesso da memória. Rio de Janeiro/Brasília:
J. Olympio/Edunb, 1993.
___. Barrocas famílias. São Paulo: Hucitec, 1997.
FONSECA, Ricardo M. Modernidade e contrato de trabalho. São Paulo: LTR,
2002.
___. “A cultura jurídica brasileira e a questão da codificação civil”. Revista da
Faculdade de Direito/UFPR. 44, pp. 61-76, 2006.
___. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2009.
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos moleques e vadios na Bahia do século XIX.
S.Paulo/Salvador: Hucitec/Edufba, 1996.
FRANÇA, R. Limongi. “Código Civil Brasileiro”. In: COELHO, C.B. (org.)
Coelho Rodrigues e o Código Civil. Teresina: Gráfica do Povo/Academia
Piauiense de Letras, 1998, pp. 79-102.
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho Homens livres na ordem escravocrata. São
Paulo: Unesp, 1997.
FREI CANECA (J. do A.D.) Acusação e defesa. Org. Socorro Ferraz. Recife:
UFPE, 2000.
(FREI) CANECA, Joaquim do A.D. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca. Org.
(da coletânea) Evaldo Cabral de Mello. São Paulo: Editora 34, 2001.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1992.
___. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: Record, 1990.
FRIGO, Daniela (1991). “Disciplina rei familiariae”. Penélope 6, pp.47-62,
1991.
GÁMEZ MONTALVO, Maria F. Régimen jurídico de la mujer en la familia
castellana medieval.Granada: Comares, 1998.
GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Lisboa: C. Gulbenkian,
1979.
GOLDMANN, Lucien. Ciências humanas e filosofia. São Paulo: Difel,
1984.
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperalismo. São Paulo: Perspectiva,

414 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

1979.
GRAHAM, Sandra L. Proteção e obediência. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
GRAUS, Frantisek. “Verfassungsgeschichte des Mittelalters“. Historische
Zeitschrift 243, pp. 529-589, 1986.
GRINBERG, Keila. O fiador dos brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002.
GUIMARÃES, Elione S. “Tensões remanescentes das senzalas”. Justiça &
História, v.5-n.9, pp. 62-103, 2005.
GUSMÃO, Alexandre de. Cartas. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1981.
HALPÉRIN, Jean-Louis. Histoire du droit privé français depuis 1804. Paris:
PUF, 2001.
HESPANHA, António Manuel. “Sobre a prática dogmática...” A história do
Direito na história social. Lisboa: Livros Horizonte, 1978, pp. 70-149.
___. “Um poder um pouco mais que simbólico”. In: FONSECA, R./
SEELAENDER, A.C.L. (org.) História do direito em perspectiva. Curitiba:
Juruá, 2008, pp. 149-199.
___. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Prefácio do tradutor”. In: DAVATZ, Thomas-
Memórias de um colono no Brasil Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1980, pp. 15-45.
HOUAISS, A./VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva,
2001.
INFORME DE LA COMISIÓN ENCARGADA DE EXAMINAR LOS
PROYECTOS DE LOS CÓDIGOS CIVIL Y DE PROCEDIMIENTOS. In:
RAMOS NÚÑEZ, C. Historia del derecho civil peruano. Lima: PUCP, 2005,
p.389-408.
INSTRUCCIÓN PARA LA EDUCACIÓN, TRATO Y OCUPACIONES DE
LOS ESCLAVOS – 1789. In: SALMORAL, M.L. Los códigos negros de la
América Española. Unesco/Universidad de Alcalá, 1996, pp. 279-284.
INVENTÁRIOS E TESTAMENTOS. SãoPaulo: Arquivo do Estado, 1998/1999,
v.45, 46 e 47.
JUNQUEIRA, José A. D. O guarda-mor. Reminiscências de um velho Junqueira.
S.Paulo: Hucitec, 1982.
KASER, Max. Römisches Privatrecht . München:Beck, 1992.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 415


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

KOCH, Elisabeth. Maior dignitas est in sexu virili. Frankfurt: Klostermann,


1991.
KOSERITZ, Carl. von Imagens do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/
Edusp, 1980.
KROESCHELL, Karl. Deutsche Rechtsgeschichte. Opladen: Westdeutscher
Verlag, 1999, v.1.
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos seiscentistas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
___. “Os escravos e seus direitos”. In: NEDER, G. (org.) História e direito. Rio
de Janeiro: Revan, 2007, p.129-139.
___. “Senhores da régia jurisdição”. In: LARA,Silvia Hunold./MENDONÇA,
Joseli Maria Nunes. Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006,
pp. 59-99.
LAVELLE, Patrícia. O espelho distorcido. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
LEÃO (QORPO-SANTO), J.J. de C. “O marinheiro escritor”. In: MATE, A./
SCHWARCZ, P. (org.) Antologia do teatro brasileiro. Séc.XIX – comédia. São
Paulo: Companhia das Letras/Penguin, 2012, pp. 395-427.
LE CODE NOIR DE 1685. In: LOUIS XIV. Le Code Noir. Paris: L’Esprit
Frappeur, 1998, pp. 17-36.
LE CODE NOIR DE 1724. In: “LOUIS XIV” (sic!) Le Code Noir. Paris: L’Esprit
Frappeur, 1998, pp. 37-55.
LESSA, Pedro. Estudos de filosofia do direito. Campinas: Bookseller, 2000.
LEMENHE, Maria Auxiliadora. Família, tradição e poder. São Paulo:
Annablume/UFC, 1995.
LIMA, Francisco de Chagas. “Memória sobre o descobrimento e colonia de
Guarapuava”. In: SALLAS, A.L.F. (org.). Documentação sobre povos indígenas.
Curitiba: Tetravento, 2001, pp. 55-86.
LOBÃO, Manoel de Almeida e Sousa. Tratado pratico de morgados. 3ª.ed.,
Lisboa: Imprensa Nacional, 1841.
___. Notas de uso pratico e criticas... Lisboa: Impressão Régia, 1816.
___. e Sousa Tractado historico, encyclopedico, critico, pratico, sobre todos os
direitos relativos a casas, quanto às materias civis e criminais. 1815
LOBO, Francisco Rodrigues. Corte na aldeia. Lisboa: Europa-América,
1997.
LOPES, José Reinaldo de Lima. “Naturalismo jurídico no pensamento

416 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

brasileiro”. Tese apresentada para concurso de professor titular. São Paulo:


FADUSP, 2012.
LOURENÇO, Fernando A. Agricultura ilustrada. Campinas: Unicamp, 2001.
LYRA, Heitor. História de Dom Pedro II – Declínio 1880-1891. B.Horizonte/S.
Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1977.
MACEDO, Duarte Ribeiro de. Os cadernos de Duarte Ribeiro de Macedo.
Correspondência diplomática de Paris 1688-1676. Org. Ana M.H.L. de Faria.
s/l.: MNE-IDI, 2007.
MACHADO FILHO, Aires da Mata. Arraial do Tijuco, cidade Diamantina.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1980.
MÄDER, Martim. “Relatório dos trabalhos da cathequese dos indios botocudos”.
In: SALLAS, A.L.F. (org.) Documentação sobre povos indígenas. Curitiba:
Tetravento, 2001, pp. 103-107.
MAINE, Henry Sumner. Ancient Law. S.l.:Kessinger, s.d..
MALERBA, Jurandir. Os brancos da lei. Maringá: UEM, 1994.
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil. Petrópolis:
Vozes, 1976, v.2.
MAMIGONIAN, Beatriz G. “O direito de ser africano livre”. In: LARA, S.H./
MENDONÇA, J.M.N. Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006,
pp. 129-160.
MARINHO, José Antônio. História do movimento político de 1842. São Paulo/
Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1977.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004.
MARTINS PENA, L.C. “O noviço”. In: MATE, A./SCHWARCZ, P. (org.)
Antologia do teatro brasileiro. Séc.XIX-comédia. São Paulo: Companhia das
Letras/Penguin, 2012, pp. 57-123.
___. “Os ciúmes de um pedestre”. In: MATE, A./SCHWARCZ, P. (org.) Antologia
do teatro brasileiro. Séc.XIX-comédia. São Paulo: Companhia das Letras/
Penguin, 2012, pp. 125-166.
MATTOS, Ilmar Rohloff de. Tempo saquarema. Rio de Janeiro: Access,
1999.
MAUÁ, Irineu Evangelista de Sousa, Visconde de. Autobiografia. Exposição
aos credores. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
MAUAD, Ana Maria. “Imagem e autoimagem do Segundo Reinado”. In:
NOVAIS, F. (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 417


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

das Letras, 1997, v.2, pp.181-231.


MEIRA, Sílvio Teixeira de Freitas. O jurisconsulto do Império. Brasília: Cegraf,
1983.
MELO, Francisco Manuel de. Carta de guia de casados. Braga/Coimbra:
Angelus, 1996.
___. Tácito português. Lisboa: Sá da Costa, 1995.
MELLO, Evaldo Cabral de. “O fim das casas-grandes”. In: NOVAIS, F. (org.)
História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v.2,
pp. 385-437.
MENDONÇA, Joseli. Entre a mão e os anéis. Campinas: Unicamp, 1999.
___. Cenas da abolição. São Paulo: Perseu Abramo, 2001.
MERÊA, Manuel Paulo. “O ensino do Direito”. Jurisconsultos portugueses do
século XIX. Org. J.P. Loureiro. Lisboa: Ordem dos Advogados, 1947, v.1, pp.
149-190.
___. “Lance de olhos sobre o ensino do Direito (...) desde 1772 até 1804”.
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 33, pp. 187-214,
1957.
MILLER, Peter N. “Nazis and neo-stoics”. Past and Present n.176, pp. 144-186,
2002.
MOHNHAUPT, Heinz. “Römisch-rechtliche Einflüsse im‚ ius publicum‘/
‘öffentlichen Recht’...” In: Historische Vergleichung im Bereich von Staat und
Recht. Frankfurt, Klostermann, 2000, pp. 123-150.
MONTEIRO, John Manuel. Os negros da terra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Casa, casamento e nome”. In: MATTOSO, J./
MONTEIRO, N.G. (org.) História da vida privada em Portugal. A idade
moderna. S.l.: Círculo de Leitores, 2011, pp. 130-158.
MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 10ª.ed., São Paulo:
Saraiva, 1971.
___. Curso de direito civil. 31ª. ed, São Paulo: Saraiva, 1994.
MORAES, Evaristo de. A escravidão africana no Brasil. Brasília: UNB,
1998.
MOTA, Antônia da S./SILVA, Kelcilene./MANTOVANI, José D. (org.)
Criptomaranhenses e seu legado. São Paulo: Siciliano, 2001.
MOURA, Paulo Cursino de. São Paulo de outrora. Belo Horizonte/São Paulo:

418 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

Itatiaia/Edusp, 1980.
MUAZE, Mariana. As memórias da viscondessa. Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
NABUCO, Joaquim. Um estadista do império. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997,
v.1.
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote. São Paulo: Companhia das
Letras, 2001.
NOGUEIRA, Edgard. “Coelho Rodrigues e o código civil”. In: COELHO, C.B.
(org.) Coelho Rodrigues e o Código Civil. Teresina: Gráfica do Povo/Academia
Piauiense de Letras, 1998, pp. 145-156.
ODALIA, Nilo./CALDEIRA, J.R. de C.(org.) História do Estado de São Paulo/A
formação da unidade paulista. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial/Arquivo
Público do Estado, 2010.
OPITZ, Claudia. “Neue Wege der Sozialgeschichte? Ein kritischer Bild auf Otto
Brunners Konzept des‚ Ganzen Hauses”. Geschichte und Gesellschaft 20, pp.
88-98, 1994.
ORDENAÇÕES FILIPINAS Lisboa: C.Gulbenkian, 1985, 3v. (reimpr. da ed.
Rio de Janeiro 1870).
OSÓRIO, Joaquim Luís. Constituição política do estado do Rio Grande do Sul:
comentário. Brasília: UNB, 1982.
OTONI, Teófilo. Notícia sobre os selvagens do Mucuri. Belo Horizonte: UFMG,
2002.
PACHECO, Toribio. Cuestiones constitucionales. Lima: Tribunal Costitucional,
2015.
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia. Belo
Horizonte: UFMG, 2001.
PAPALI, Maria Aparecida C.R. “A legislação de 1871, o judiciário e a tutela
de ingênuos na cidade de Taubaté”. Justiça & História v.2, n.3, pp.195-218,
2002.
PENA, Eduardo Spiller. O jogo da face. Curitiba: Quatro Ventos, 1999.
___. Pajens da casa imperial. Campinas: Unicamp, 2001.
___. “Burlas à lei e revolta escrava...” In: LARA, S.H./MENDONÇA, J.M.N.
Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Unicamp, 2006, pp.161-197.
PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império. Família e sociedade em Mato
Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 419


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

PEREIRA, Lafayette Rodrigues. “’Ensaios de philosophia do direito’ por Sylvio


Romero”. in: Vindiciae. B. Horizonte: Amigos do Livro, 1934, p.57-216.
___. “Cartas”. In: Cartas ao irmão. São Paulo: Ed. Nacional, 1968. pp. 39-
149.
___. “Discurso que o Ministro da Justiça (...) pronunciou na Câmara em 29 de
maio de 1878”. In: Cartas ao irmão. São Paulo: Ed. Nacional, 1968, pp. 185-
210.
___. Direitos de família. Obra fac-similar. Brasília: Senado Federal, 2004.
PINTO, Luiz de Aguiar Costa. Lutas de família no Brasil. S.Paulo/Brasília:
Nacional/INL, 1980.
PIOVESAN, Flavia/PIMENTEL, S./ DI GIORGI, Beatriz A figura /personagem
mulher em processos de família. Porto Alegre: S. Fabris,1993.
PORTALIS, Jean-Etienne-Marie. Discours préliminaire au premier projet de
Code civil. Bordeaux:Confluences, 1999.
PROVIMENTOS DO OUVIDOR PARDINHO PARA CURITIBA E
PARANAGUÁ-1721 Org. A.C. de A. Santos. Curitiba: Tetravento, 2001.
RAMOS NÚÑEZ, Carlo.s Historia del derecho civil peruano. La codificación
del siglo XIX. Lima: PUCP, 2005,t.2
RANGEL, Alan Wruck G. Tous sont égaux sous le fouet. Saarbrücken: E.U.E,
2014.
REALE, Miguel. História do novo código civil. São Paulo: RT, 2005.
REBELO, Fernão. “De Obligationibus Justitiae, Religionis et Caritatis”. In:
CALAFATE, Pedro. (org.) A escola ibérica da paz nas Universidades de
Coimbra e Évora. Coimbra:Almedina, 2015 pp.203-241
REGLAMENTO PARA LA EDUCACIÓN, TRATO Y OCUPACIONES DE
LOS ESCLAVOS-1826. In: SALMORAL, M.L. Los códigos negros de la
América Española. Unesco/Universidad de Alcalá, 1996, pp. 285-293.
REGLAMENTO DE ESCLAVOS DE CUBA-1842. In: SALMORAL, M.L. Los
códigos negros de la América Española. Unesco/Universidad de Alcalá, 1996,
pp. 295-300.
REIS, Paschoal José de Mello Freire dos. O novo código do direito público de
Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1844.
___. Institutiones Juris Civilis Lusitani. De Jure Publico. Coimbra:Imprensa da
Universidade, 1859.
___. Institutiones Juris Civilis Lusitani. De Jure Personarum. Coimbra:Imprensa
da Universidade, 1860.

420 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

RENDON, Joze Arouche de Toledo. “Plano em que Se propoem o Melhoramento


da Sorte dos Indios...” In: Documentos interessantes para a história e costumes de
São Paulo. São Paulo: UNESP/Arquivo do Estado, 1990,v.95, pp. 92-107.
RESENDE, Garcia de. “Miscelânea”. In: RESENDE, G. de Crónica de D. João
II e miscelânea. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1991, pp. 335-
382.
REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações. São Paulo/
Belo Horizonte: EDUSP/Itatiaia, 1988.
RIBAS, Antônio Joaquim. “Prefação”. In: ALENCAR, J. de A propriedade. Rio
de Janeiro, 1883, pp.V-XVI.
RIBEIRO, Darcy. “Gilberto Freyre”. In: Gentidades. São Paulo:LPM, 2011, pp.
9-86.
RICCI, Magda. Assombrações de um padre regente. Campinas:Unicamp,
2001.
ROCHA PITA, Sebastião da. História da América Portuguesa. Belo Horizonte/
São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1976.
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei. São Paulo: Nobel, 2003.
RUFINO, Almir G. “Lafayette Rodrigues Pereira”. In: RUFINO, A.G./
PENTEADO, J. de C. (org.) Grandes juristas brasileiros. São Paulo: M. Fontes,
2003, pp. 143-203.
RÜTHERS, Bernd. Entartetes Recht. München: DTV, 1994.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais
e a São Paulo-1822. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1974.
___. Viagem à Província de São Paulo. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1976.
SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial. Rio de Janeiro:Topbooks, 1996.
SALMORAL, Manuel Lucena. Los códigos negros de la América Española.
Unesco/Universidad de Alcalá, 1996.
SAMPAIO, Patrícia Melo. “Viver em aldeamentos”. In: LARA, S.H./
MENDONÇA, J.M.N. (org.) Direitos e justiças no Brasil. Campinas: Unicamp,
2006, pp. 23-57.
SANTOS (PADRE PERERECA), Luiz Gonçalves dos. Memórias para servir
à história do Reino do Brasil. S.Paulo/B.Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1981,
v.2.
SCHMITT, Carl. Über die drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens.
Berlim:Duncker & Humblot, 1993.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 421


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

SCHULZE, Hans K. Grundstrukturen der Verfassung im Mittelalter. Stuttgart/


Berlin: Kohlhammer, 2000, v.2.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001.
SECRETO, Maria Verónica. (Des)medidos. A revolta dos quebra-quilos. Rio de
Janeiro: Mauad/Faperj, 2011.
SEELAENDER, Airton L.C.L. “Pondo os pobres no seu lugar”. In: COUTINHO,J./
LIMA,M. (org.) Diálogos constitucionais. Rio de Janeiro:Renovar, 2006, pp.
1-26.
___. Polizei, Ökonomie und Gesetzgebungslehre. Frankfurt/M: V.Klostermann,
2003.
___. “A polícia e o rei-legislador”. In: BITTAR, E.C.B. (org.) História do direito
brasileiro. S.Paulo:Atlas, 2003, pp. 91-108.
___. “A ‘polícia’ e as funções do Estado. Notas sobre a ‘polícia’ do Antigo
Regime” Revista da Faculdade de Direito 49, pp. 73-87, 2009.
___. “Juristas e ditaduras”. In: FONSECA,R.M./SEELAENDER, A.C.L. História
do direito em perspectiva. Curitiba: Juruá, 2008, pp. 415-432.
SENA, Maria Tereza. “O estudo da casa senhorial”. In: COSTA, F.M. da.;
DOMINGUES, F.C. e MONTEIRO, N.G. (org.) Do Antigo Regime ao
Liberalismo. Lisboa:Vega, s.d., pp.189-199.
SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo:Scipione, 2001.
___. Literatura como missão. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
SILVA, (Ana) Cristina Nogueira da. “Missão civilizacional’ e codificação de
usos e costumes...”. Quaderni Fiorentini 33-34, pp. 899-919, 2005.
SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza.
Lisboa:Typografia Maigrense, 1826/1828/1830.
SILVA, Hélio. Os presidentes. Rodrigues Alves. S. Paulo:Três, 1983.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da família no Brasil colonial. Rio de
Janeiro:Nova Fronteira, 1998.
___. “São Vicente, capitania donatarial”. In: SILVA, M.B.N. da (org.) História de
S.Paulo colonial. São Paulo: Unesp, 2009, p.13-88.
SILVA, M.B.N. da./GOLDSCHMIDT, Eliana./BACELLAR, Carlos de A.P. “Do
Morgado de Mateus à Independência”. In: SILVA, M.B.N. da. (org.) História de
S. Paulo colonial. São Paulo: Unesp, 2009, pp. 157-274.
SILVA, Marilda Santana da. Dignidade e transgressão. Mulheres no tribunal
eclesiástico em Minas Gerais. Campinas: Unicamp, 2001.

422 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.


A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário
jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade

SILVA, Nuno J. Espinosa Gomes da. História do Direito português. Lisboa:


Gulbenkian, 1985, v.1.
SIMON, Thomas. Gute Policey. Frankfurt:Klostermann, 2004.
SLENES, Robert W. “Senhores e subalternos no Oeste paulista”. In: NOVAIS,
F. (org.) História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, v.2, p.233-290.
SOLLNER, Alfred. Einführung in die römische Rechtsgeschichte. München:
Beck, 1996.
SOUSA, Octávio Tarquínio de. Três golpes de estado. São Paulo/Belo Horizonte:
Edusp/Itatiaia, 1988.
STOCKLER, Francisco de Borja Garção. Elogio historico de Pascoal José de
Mello Freire dos Reis. Lisboa:Typographia da Academia Real das Sciencias,
1799.
STOLLEIS, Michael. Geschichte des öffentlichen Rechts in Deutschland.
München:Beck, 1988, v.1.
SUCUPIRA, Newton. Tobias Barreto e a filosofia alemã. Rio de Janeiro: UGF,
2001.
TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Esboço do Código Civil. Brasília: UNB/
Ministério da Justiça, 1983.
TELLES, Lorena F. da Silva. Libertas entre sobrados. São Paulo:Alameda,
2013.
THOMAS, Georg. Die portugiesische Indianerpolitik in Brasilien: 1500-1640.
Berlin:Colloquium Verlag, 1968.
THOMPSON, Edward P. Senhores e caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado na Restauração.
Coimbra:BGU, v.1, 1981, e v.2, 1982.
TORRES-LONDOÑO, Fernando. A outra família. São Paulo:Loyola, 1999.
VAINFAS, Ronaldo. “Moralidades brasílicas”. In: NOVAIS, F. (org.) História
da vida privada no Brasil. S.Paulo:Cia das Letras, 1997, v.1, p.221-273.
VAMPRÉ, Spencer. Memórias para a história da academia de São Paulo.
Brasília: INL/CFC, 1977, 2 v.
VASCONCELOS, Bernardo Pereira de. Bernardo Pereira de Vasconcelos. Org.
(da coletânea) J.M. de Carvalho. São Paulo: Editora 34, 1999.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas. Campinas: Papirus, 1999.

R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017. 423


Airton Cerqueira-Leite Seelaender

VENÂNCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo. São Paulo:


Perspectiva, 1982.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. São Paulo/
Belo Horizonte: Edusp/Itatiaia, 1987, v.1.
VIEIRA, António. Escritos históricos e políticos. Org. A. Pécora. São Paulo: M.
Fontes, 1995.
VIEIRA, João Fernandes. “Regimento que há-de guardar o feitor-mor de
engenho”. In: ALVES FILHO, Ivan (org.) Brasil, 500 anos em documentos. Rio
de Janeiro:Mauad, 1999, pp. 77-79.
VILHENA, Luiz dos Santos. Cartas de Vilhena – Noticias soteropolitanas e
brasilicas. (Salvador da) Bahia: Imprensa Official do Estado, 1922.
WEHLING, Arno./WEHLING, Maria José. Direito e justiça no Brasil Colonial.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
WEHLING, Arno. “O escravo ante a lei civil e a lei penal no Império”. In:
WOLKMER, A.C. (org.) Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte,
2007, p.387-407.
WETTLAUFER, Jörg. “Algadi, Gazi. Herrengewalt und Gewalt der Herren…”
Ius commune v.24, pp. 400-403, 1997.
WILLOWEIT, Dietmar. Deutsche Verfassungsgeschichte München:C.H. Beck,
2009.
ZALUAR, Augusto Emilio. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-
1861). São Paulo: Edusp/Itatiaia, 1975.
ZORRAQUÍN BECÚ, Ricardo. Historia del derecho argentino. Buenos Aires:
E. Perrot, 1996, t.1.

424 R. IHGB, Rio de Janeiro, a. 178 (473):327-424, jan./mar. 2017.

Anda mungkin juga menyukai