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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO DISTRITO FEDERAL

EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) FEDERAL DA VARA DA SEÇÃO


JUDICIÁRIA DO DISTRITO FEDERAL

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora da República


que esta subscreve, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, especialmente com
respaldo no que dispõem os incisos II e III do art. 129 da Constituição da República, vem,
perante, Vossa Excelência, propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA

contra a UNIÃO, pessoa jurídica de direito público interno, representada por seu
Procurador-Geral, com endereço funcional no SIG, Quadra 06, Lote 800, Departamento
de Imprensa Nacional, 2º andar, Brasília/DF, CEP:70610460, Tel(61)4009-4630,

com base nos fundamentos de fato e de direito a seguir expostos.

1. DOS FATOS

Nos últimos anos, esta Procuradoria da República no Distrito Federal


recebeu diversas representações relatando irregularidades previstas em inúmeros Editais de
seleção para postos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, consistentes, em síntese, na
exigência de submissão dos candidatos a testes de HIV, sífilis e hepatite, bem como na
consequente eliminação daqueles que forem portadores de tais vírus, além da previsão de

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inaptidão de homens e mulheres com estatura fora de determinados padrões.

Especificamente no que se refere aos concursos do Exército, reportamo-


nos aos procedimentos administrativos nº 1.16.000.001690/2006-01 e nº
1.16.000.002538/2005-56, anexos à presente exordial.

A totalidade dos editais dos concursos para ingresso nas carreiras do


Exército preveem a obrigatoriedade de submissão dos candidatos à inspeção de saúde, que
sempre é realizada conforme a Portaria nº 41-DEP, de 17/05/2005 (alterada pela Portaria nº
119-DEP, de 12/11/2008)1.

A referida Portaria nº 41-DEP disciplina as “normas para Inspeção de


Saúde dos Candidatos à Matrícula nos Estabelecimentos de Ensino Subordinados ao
DEP e nas Organizações Miliares que Recebem Orientação Técnico-Pedagógica” e
prevê a obrigatoriedade de apresentação, pelos candidatos, de resultados de inúmeros exames
médicos e laboratoriais em todas as inspeções de saúde admissionais2.

Dentre tais exames, são de realização obrigatória, dentre outros, os


seguintes3:

b) sorologia para Lues e HIV;

1 Vide informações constante da página da Escola de Administração do Exército na internet, que explica que
os processos seletivos do Exército compõem-se de 4 etapas, sendo uma delas a Inspeção de Saúde (IS), que
“é realizada conforme a Portaria nº 41-DEP, de 17 Maio 05”.
2 b. Obrigatoriedade da inspeção de saúde
1) Para se efetuar a matrícula em curso de formação, especialização ou extensão, que funcione em Estb Ens
subordinado ao DEP ou em OM que receba sua orientação técnico-pedagógica, é requisito indispensável
que o candidato seja considerado apto em inspeção de saúde, destinada especificamente a essa finalidade,
conforme a legislação de referência.
(...)
e. Exames complementares para as IS relativas aos concursos de admissão aos cursos de formação de Of e
Sgt e ao EIA/QCM
1) Por ocasião das inspeções de saúde previstas durante os concursos de admissão para a matrícula nos
cursos de formação de oficiais e de sargentos de carreira ou no EIA/QCM, cada candidato deve apresentar,
obrigatoriamente, laudos contendo os resultados dos seguintes exames complementares:
3 Conforme o item 2.1: Patologia Clínica – Grupo I (p. 10 da ICA 160-6)

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(...)
l) sorologia para hepatite B (contendo, no mínimo, HBsAg e Anti-
HBc) e hepatite C;

Da Portaria nº 41-DEP constam, ainda, três listas anexas contendo


causas de incapacidade para matrícula nas academias e cursos militares (Anexos A, B e C)
dentre as quais incluem-se “as doenças que motivam a isenção definitiva dos conscritos para o Serviço
Militar das Forças Armadas – Anexo II às IGISC”; “reações sorológicas positivas para sífilis,
doença de Chagas ou Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (SIDA), sempre que,
afastadas as demais causas da positividade, confirmem a existência daquelas doenças”; “possuir menos de
vinte dentes naturais, computando-se neste número os “sisos” ainda inclusos, quando revelados
radiologicamente”; “dentes cariados ou com lesões periapicais que comprometam a estética
ou a função mastigatória”; para candidatos do sexo masculino, altura inferior a 1,60m (um metro e
sessenta centímetros)”; “para candidatos do sexo feminino, altura inferior a 1,55m (um metro e cinqüenta e
cinco centímetros)”.

Dentre as doenças que motivam a isenção definitiva dos conscritos para o Serviço
Militar das Forças Armadas, constante do Anexo II às IGISC (Decreto 703/92, anexo),
destacamos as seguintes:

11. Outras doenças infecciosas e parasitárias:

a) rebeldes ao tratamento ou incuráveis;

b) quando, após a cura, determinarem perturbações funcionais e/ou


deformidades aparentes comprometendo a estética e incompatíveis com
as atividades militares.

Ainda pela referida Portaria, “os pareceres das juntas de inspeção de


saúde, para fins de matrícula nos Estb Ens subordinados e vinculados ao DEP, devem ser emitidos de

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acordo com as seguintes expressões:

(...)

5) no caso de portador assintomático do vírus da


imunodeficiência humana: “Contra-indicado à matrícula no Curso
___________ (…)”

Ora, a previsão de exclusão de candidatos aprovados nas demais etapas


do concurso, mas que possuam altura inferior a 1,60m ou 1,55m, menos de 20 dentes naturais,
cáries ou lesões que comprometam a estética, bem como daqueles portadores de vírus de
doenças infecto-contagiosas, como HIV, HCV, sífilis, etc, constitui conduta discriminatória e
flagrantemente inconstitucional, que viola o ordenamento jurídico e merece a adequada
reprimenda do Poder Judiciário, conforme se demonstrará.

A presente ação civil pública visa, portanto, à preservação da ordem


jurídico-constitucional, em prol do interesse público, e à defesa dos direitos de toda a
coletividade de cidadãos brasileiros eventualmente interessados em concorrer às vagas
oferecidas pelo Exército Brasileiro, nas seleções abertas e nos futuros concursos, sendo
inconteste, no particular, a legitimidade do Ministério Público Federal para veicular tais
interesses.

2. DO DIREITO

2.1 DA NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Inicialmente, cumpre ressaltar que a previsão de exclusão de candidatos


pelas razões supramencionadas é inconstitucional não só por ferir os princípios da isonomia, da
proporcionalidade e da dignidade da pessoa humana, e ser indiscutivelmente discriminatória,
mas por ter sido prevista por meio de simples Portaria, em evidente afronta aos princípios da

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legalidade e da separação de poderes.

Com efeito, o art. 142, § 3º, X, da CF 1988, prevê que lei


infraconstitucional disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, e não meros atos
administrativos, como é o caso dos Editais e da Instrução Normativa em tela.

Se a Constituição Federal (artigo 142 § 3º, X) reservou para a lei


ordinária a disciplina dos requisitos para ingresso nas Forças Armadas, somente por lei tais
requisitos poderão ser estabelecidos, em obediência ao princípio da reserva legal.

Vale ressaltar que tal lei, como é curial, há de ser a lei em sentido
formal, norma genérica e abstrata, a todos imposta, votada e aprovada pelo Congresso
Nacional, mediante o processo legislativo próprio.

Ainda nesse sentido, o art. 37, I, da CF também não ampara as


exigências editalícias, pois igualmente reclama lei para o estabelecimento de requisitos ao
ingresso nos cargos públicos. Dispõe este artigo que o acesso a cargos, empregos e funções
públicas é conferido a todos os brasileiros que preencham os requisitos previstos em lei,
significando que é inviável a restrição ou exigência fora da previsibilidade legal.

No caso, por óbvio, a Portaria expedida pelo Chefe do Departamento de


Ensino e Pesquisa do Exército4, mera norma infra-legal, não é apta a suprir a exigência
constitucional de regulamentação, por lei, dos requisitos a serem observados pelos candidatos.

Ressalte-se, outrossim, que a legalidade do ato é um limite ao poder


discricionário da Administração, que está submetida ao império da lei, dela não podendo se
afastar ou desviar.

Assim sendo, à Administração é defeso, na fixação dos critérios de

4 Portaria nº 41-DEP, de 17 de maio de 2005.

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seleção, em edital de concurso para acesso a cargo público, a adoção de fatores


discriminatórios, que reflitam situação não autorizada pelo ordenamento jurídico vigente. Ao
contrário do que possa argumentar a Ré, a definição dos critérios de seleção ao serviço público
não é atividade sujeita à conveniência e à oportunidade do administrador, sendo, antes, ato com
forte componente vinculante, pena de afronta aos princípios da legalidade e da impessoalidade.

De outra parte, ainda que existisse previsão legal específica disciplinando


os concursos de ingresso nas carreiras do Exército, seria igualmente possível verificar em qual
medida as exigências formuladas se revelariam compatíveis com os princípios constitucionais
pertinentes. Em outras palavras, os requisitos de saúde devem ser razoáveis e exigíveis
com base em critérios objetivos estabelecidos conforme a natureza e a complexidade
dos cargos, não cabendo a exclusão de candidatos por razões meramente estéticas ou
por puro preconceito (como no caso dos portadores assintomáticos do vírus HIV ou HCV).

Dessa forma, as exigências ora combatidas não só não se revelam


razoáveis, pois vão de encontro aos princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e
dignidade da pessoa humana, como afrontam de forma evidente o princípio da legalidade.

2.2 DA ILEGALIDADE DA ELIMINAÇÃO DE PORTADORES ASSINTOMÁTICOS


DE HIV E OUTRAS DOENÇAS INFECTO-CONTAGIOSAS DOS CONCURSOS
DO EXÉRCITO5

A AIDS é uma doença fatal, que, no atual estágio da medicina, é ainda


incurável. Como se sabe, a síndrome da imunodeficiência adquirida é causada pelo vírus do
HIV, que debilita as imunidades biológicas do seu portador. A partir do momento em que
doenças oportunistas começam a se manifestar e o organismo do portador do vírus já não
consegue mais se defender, é correto afirmar que o mesmo está doente de AIDS.

5 Argumentação, citações e referências baseadas na inicial da ACP nº 2000.51.01.017478-1, proposta perante


a Justiça Federal do Rio de Janeiro, de autoria do Exmo. Procurador da República Daniel Sarmento
(PRR2).

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Porém, nem todo portador do HIV é doente, existindo aqueles que


permanecem assintomáticos por vários anos. Estes não só podem como devem continuar
exercendo normalmente as suas atividades profissionais, pois, como reconheceu o Governo
Federal através dos Ministérios da Saúde e do Trabalho, “ a sorologia positiva do vírus da
imunodeficiência adquirida (HIV) em si não acarreta prejuízo à capacidade laborativa
de seu portador”6.

Neste sentido, cumpre destacar que o trabalho é extremamente


importante para a saúde física e mental do soropositivo, contribuindo para mantê-lo integrado à
sociedade. E não há risco algum para os que trabalham com o portador do vírus, já que inexiste
qualquer possibilidade de contágio pelo simples convívio social e profissional.

Porém, o soropositivo não enfrenta apenas o HIV. Ele tem também de


conviver com o mais insidioso preconceito, com a discriminação, explícita ou velada, com o
desamparo.

Com efeito, embora a AIDS tenha deixado de ser uma doença de guetos,
no imaginário social ela continua associada a grupos estigmatizados, como os homossexuais, as
prostitutas e os usuários de drogas injetáveis. Este fato fomenta o preconceito, o que explica,
mas não justifica, inúmeras normas e posturas discriminatórias ainda hoje existentes, entre elas
as que serão discutidas neste autos.

Até recentemente, os militares portadores de HIV eram simplesmente


desincorporados das Forças Armadas, e não recebiam proventos de qualquer espécie.

Porém, esta situação cruel e desumana foi remediada, pelo menos em


parte, pela Lei nº 7.670/887, que passou a considerar a AIDS como causa justificadora da
6 Portaria Interministerial nº 869, de 11/08/1992.
7 Art. 1º A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - SIDA/AIDS fica considerada, para os efeitos legais,
causa que justifica:
I - a concessão de:
a) licença para tratamento de saúde prevista nos artigos 104 e 105 da Lei nº 1.711, de 28 de outubro de

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concessão de licença para tratamento de saúde e de reforma militar, esta nos termos do art. 108,
inciso V, da Lei nº 6.880/808.

No entanto, a referida norma vem sendo interpretada e aplicada de


modo absolutamente equivocado pelas Forças Armadas, em absoluta desarmonia com os
valores constitucionais em que se esteia o ordenamento vigente. O que deveria ser um
benefício, tornou-se uma odiosa discriminação, pois o Exército, com base na Portaria nº 41-
DEP, vem exigindo dos candidatos a seus quadros a submissão obrigatória ao exame de HIV,
com base no qual promove a exclusão sumária de qualquer portador assintomático do vírus,
sob a justificativa de que, se fossem admitidos naquela Força, teriam direito à imediata reforma
por invalidez, com base nas Leis 7.670/88 e 6.880/80.

Ocorre que o Ministério da Defesa previu, pela Portaria 1.174/MD9,


06/09/2006, tratamento diferenciado aos militares da ativa que venham a ser portadores do
vírus, mas que ainda tenham perfeitas condições de continuar trabalhando, em relação àqueles
que já desenvolveram a doença10. Esses militares assintomáticos poderão ser considerados

1952; (...)
c) reforma militar, na forma do disposto no art. 108, inciso V, da Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980;
8 Art. 108. A incapacidade definitiva pode sobrevir em conseqüência de: (...)
V - tuberculose ativa, alienação mental, neoplasia maligna, cegueira, lepra, paralisia irreversível e
incapacitante, cardiopatia grave, mal de Parkinson, pênfigo, espondiloartrose anquilosante, nefropatia
grave e outras moléstias que a lei indicar com base nas conclusões da medicina especializada.
9 Aprova as normas para avaliação da incapacidade decorrente de doenças especificadas em lei pelas Juntas
de Inspeção de Saúde da Marinha, do Exército, da Aeronáutica e do Hospital das Forças Armadas.
10 Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/Aids)
33.1. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (SIDA/Aids) é a manifestação mais grave da infecção
pelo vírus da imunodeficiência humana (HIV), caracterizando-se por apresentar uma severa
imunodeficiência, manifesta no aparecimento de doenças oportunistas.
(...)
35. Normas de Procedimento das Juntas de Inspeção de Saúde – SIDA/Aids
35.1. Os portadores assintomáticos ou em fase de linfoadenopatia persistente generalizada (LPG), em
princípio e a critério de cada Força, poderão ser considerados aptos para o Serviço Ativo devendo,
porém, ser submetidos a acompanhamento médico especializado e a novas inspeções de saúde em períodos
não superiores a 12 (doze) meses.
35.2. Os inspecionandos classificados nas Categorias A2, B1 e B2, respeitando a finalidade da inspeção de
saúde e a natureza da sua atividade militar, se julgada de risco para o agravamento da sua condição de
saúde, em princípio e a critério de cada Força, deverão ser considerados incapazes temporariamente para o
Serviço Ativo e submetidos a acompanhamento médico especializado e a novas inspeções de saúde em
períodos não superiores a 180 (cento e oitenta) dias.

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aptos para o serviço, com restrições, quando necessárias.

Em outras palavras, ser simplesmente portador do vírus não enseja a


aposentadoria por invalidez, tampouco o afastamento do militar de suas atividades. Dessa
forma, a exclusão sumária de portadores assintomáticos do HIV dos concursos públicos viola,
de uma só feita, os princípios da isonomia, da proporcionalidade, da dignidade da pessoa
humana e o direito ao trabalho dessas pessoas, conforme se demonstrará.

Da Afronta ao Princípio da Isonomia

O princípio da isonomia constitui mandamento nuclear da ordem


jurídica vigente, e condensa um dos valores mais caros ao constitucionalismo: a igualdade.

Como princípio constitucional, a isonomia deve orientar a interpretação


e aplicação de todas as normas infraconstitucionais, sendo certo que nem o Poder Legislativo
nem a Administração Pública podem, no exercício das suas funções, se afastar das diretrizes
impostas por este cânone fundamental.

O princípio isonômico não proíbe, é certo, qualquer discriminação, pois


estas se afiguram muitas vezes indispensáveis para a ordem social. Apenas as desequiparações
abusivas e caprichosas foram embargadas pelo constituinte, que, ao consagrar a regra da
igualdade, pretendeu fundar um Estado de Direito, onde não houvesse espaço para arbítrio,
preconceito ou favoritismos.

Conforme observou, em lição clássica, Celso Antônio Bandeira de


Mello, “ponto nodular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na
existência ou não de correlação lógica entre o fato erigido em critério de discrímen e a discriminação legal decidida

35.3. Os inspecionandos classificados nas Categorias A2, B1 e B2, respeitando a finalidade da inspeção de
saúde e a natureza da sua atividade militar, se não julgada de alto risco para o agravamento da sua condição
de saúde, em princípio e a critério de cada Força, poderão ser considerados aptos para o Serviço (...)”

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em função dele.”11. Consoante adverte o mestre paulista, “é agredida a igualdade quando o fator
diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a
inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto”12.

Ora, no caso presente, cumpre indagar se a circunstância de ser o


candidato a militar portador do HIV, mesmo assintomático, é suficiente para justificar
a diferença de tratamento a ele conferida pelo Exército, em relação aos demais
militares já na ativa, uma vez que o candidato, segundo a Portaria 41-DEP, será
excluído imediatamente do processo seletivo, enquanto o militar da ativa poderá
prosseguir trabalhando normalmente, apenas com as restrições que se fizerem
necessárias.

A resposta, obviamente, é negativa. O portador assintomático de HIV


não é doente e mantém intacta a sua capacidade laborativa. O simples convívio social e
profissional, por outro lado, não representa qualquer risco de contaminação para seus
companheiros de trabalho.

Tais fatos, repita-se mais uma vez, foram explicitamente reconhecidos


pela Ré, que, nos considerandos da Portaria Interministerial nº 869/92, subscrita pelos
Ministros da Saúde e do Trabalho, afirmou que “... a sorologia positiva para o vírus da
imunodeficiência adquirida (HIV) em si não acarreta prejuízo para a capacidade
laborativa do seu portador”, bem como que “que os convívios social e profissional com
portadores do vírus não configuram situações de risco”.

Conforme observou Marco Fridolin Sommer Santos,

“A discriminação é, sem sombra de dúvidas, a reação social mais grave que


acompanha os portadores ou suspeitos de serem portadores do vírus do HIV. São
11 Celso Antônio Bandeira de Mello. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade, 3ª ed, Malheiros, 1997, p.
37
12 op. cit., p. 38.

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atitudes fundadas no medo irracional das pessoas que integram a sociedade,


decorrentes de idéias preconcebidas que vêm a demonstrar uma certa insipiência acerca
das formas de contato.”13

Portanto, só o preconceito explica a discriminação contra os candidatos


soropositivos assintomáticos abrigada na malsinada Portaria do Exército, pois nada justifica,
moral ou juridicamente, a exclusão sumária destas pessoas, ainda mais se considerarmos que
hoje os militares da ativa portadores do vírus não são mais afastados de suas atividades.

Na linha do ora defendido, vale trazer à colação o aresto da 3ª Câmara


Cível do Tribunal de Justiça o Estado de São Paulo, proferido pela na Apelação Cível nº
216.708-1, assim ementado:

“MANDADO DE SEGURANÇA- Objetivo - Reincorporação de policial


militar à Academia de Polícia – Admissibilidade – Afastamento de nítido caráter
discriminatório – Impetrante portador do vírus HIV – Ofensa ao princípio da
isonomia – Aptidão física demonstrada – Atestado que revela
condições plenas de saúde – Doença não manifesta – Exigência
de teste sorológico, ademais, descabida em exames
préadmissionais – Segurança concedida. A exigência do teste sorológico nos
exames preadmissionais é descabida e discriminatória, caracterizando interferência
indevida na intimidade dos trabalhadores. Além disso, o soropositivo para o HIV
não é doente, diferente do portador da AIDS que manifesta a doença “(TJSP – AC
216.708-1, Rel. Des. Mattos Faria, j. 08.11.94)

Baseando-se em linha de argumentação semelhante, decidiu a 2ª Turma


do Tribunal Regional Federal da 2ª Região:

“DIREITO ADMINISTRATIVO. Militar. Licenciamento. Ato, em princípio,

13 A AIDS sob a Perspectiva da Responsabilidade Civil, Ed. Saraiva, 1998, p. 47

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discricionário, que encontra respaldo na conveniência do serviço. Comprovação de que


o motivo determinante foi o fato de ser o Impetrante portador do vírus HIV-1, mas
não aidético. Fundamento inábil e conseqüente invalidade do ato. A Administração
Pública autovincula-se, mesmo no ato discricionário, aos motivos que o embasaram, e,
se factualmente falsos ou juridicamente esses impertinentes, o ato será antijurídico.
Nessa situação, a Administração perde seu poder discricionário e terá de motivar
novo ato que substitua o primeiro. In casu, torna-se insubsistente o ato que substitua
o primeiro, que só poderá ser objeto de outro ato, se evidenciada a conveniência do
serviço e se o Impetrante não se tornou aidético, eis que, nesta hipótese, se imporá a
reforma.” (AMS nº 6052/RJ, Rel. Des. D´Andrea Ferreira, DJ 24.12.92)

No corpo do referido acórdão, o Desembargador Federal D´Andrea


Ferreira salientou:

“No exame médico que consta de fls. 16, constatou-se que o Impetrante possuía
sorologia positiva para o HIV-1, que, sabemos, não ser a AIDS, traduzindo,
apenas, que o indivíduo é portador do vírus; mas ele pode não desenvolver aquela
síndrome. Evidentemente que ele é transmissor, mas não é dentro dos limites normais
de um ambiente de trabalho, somente através de meios que conhecemos e que não são
próprios do seu meio de trabalho, portanto, na verdade, o Impetrante não pode ser
considerado uma pessoa doente.

Quando esse resultado se caracterizou, o Exército resolveu não tornar efetiva a


prorrogação do tempo de serviço que ele postulava. Como salientou o MM. Juiz a
quo, se o Impetrante já estivesse com AIDS, teria o direito à reforma, se
considerarmos ele apto, teria a possibilidade de continuar na ativa, não sendo a sua
situação, com a presença do vírus, motivo pertinente para o seu licenciamento.”

Como se observa da jurisprudência colacionada, a Portaria 41-DEP


incorre em flagrante violação ao preceito isonômico, ao discriminar os soropositivos

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assintomáticos no processo de seleção para as fileiras do Exército.

Da Violação ao Princípio da Proporcionalidade

O princípio da proporcionalidade, cuja vigência no direito brasileiro é


hoje incontroversa em sede jurisprudencial e doutrinária, visa, em última análise, à contenção
do arbítrio e a moderação do exercício do poder, em favor da proteção dos direitos do cidadão.
Neste sentido, ele tem sido utilizado como poderoso instrumento para aferição da
conformidade das leis e dos atos administrativos com os ditames da razão e da justiça.

Tal princípio, fundamentado na cláusula do devido processo legal (art.


5º, LIV), desempenha um papel extremamente relevante na apreciação da constitucionalidade
das normas restritivas de direitos fundamentais, estabelecendo standards de controle, aferíveis
pelo Poder Judiciário diante de cada caso concreto. Ele se desdobra em três sub-princípios, bem
sintetizados por Luis Roberto Barroso:

“(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem
aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que
impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins
visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus
imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera
dos direitos dos cidadãos”14

Ora, a exclusão, a priori, do candidato portador do HIV que não


manifesta a doença afigura-se francamente incompatível com todos estes sub-princípios.

Com efeito, ela é inadequada para os fins a que se destina, pois não
preserva a saúde dos candidatos portadores assintomáticos de HIV que, não obstante tenham
logrado êxito nas demais etapas do concurso, não foram considerados “aptos” na avaliação

14 Interpretação e Aplicação da Constituição, Ed. Saraiva, 1996, p. 209.

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médica. Ora, o afastamento dessas pessoas do concurso acarreta abalos psíquicos e emocionais
que, em regra, podem acabar se traduzindo em piora do seu estado de saúde.

Por outro lado, tal medida é também desarrazoada, pois, como se


salientou acima, a própria Ré reconhece que o simples convívio pessoal e profissional não
acarreta risco de contágio, bem como que o portador assintomático pode ser considerado apto
para o serviço militar, não se justificando a discriminação entre aqueles que já fazem parte dos
quadros do Exército e aqueles que postulam uma vaga, eis que ambos poderão desempenhar
funções idênticas, no mesmo local.

Finalmente, o afastamento desatende ao sub-princípio da


proporcionalidade em sentido estrito, pois ainda que houvesse, ad argumentandum tantum, algum
benefício para a administração pública militar, decorrente da exclusão dos soropositivos
assintomáticos dos certames públicos, este seguramente não compensaria a intensidade dos
danos morais e materiais infligidos a estas pessoas, que são arbitrariamente privadas do seu
direito fundamental ao trabalho.

Importante ressaltar, neste particular, que o Judiciário deve ser mais


rigoroso no controle da razoabilidade/proporcionalidade das normas que imponham gravames
sobre minorias que são tradicionalmente vítimas de preconceito. Nos EUA, desde o
importante leading case da Suprema Corte no caso United States v. Carolene Products (304 U.S. 144 –
1939), tem-se entendido que as normas que se baseiam em critérios suspeitos de
discriminação devem sofrer uma inversão na presunção de constitucionalidade, só
sobrevivendo ao controle quando o Estado lograr demonstrar que tais normas se
afiguram absolutamente indispensáveis para a promoção de algum interesse coletivo de
fundamental importância. Consoante observou Daniel Sarmento, a propósito da
jurisprudência americana:

“...quando o critério esposado pelo legislador para desigualar as


pessoas fundar-se em parâmetro suspeitos, como raça, religião

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ascendência, etc., a legislação é submetida a um controle mais


rigoroso do que o da simples razoabilidade. Quando o legislador
adota tais critérios suspeitos, o Judiciário americano sujeita a
norma que os consagrar a parâmetros extremamente rígidos e
minuciosos de judicial review, impondo ao Estado o ônus de
demonstrar que a legislação discriminatória era absolutamente
necessária para a promoção de algum interesse constitucional de
extrema relevância, sob pena de declaração de
inconstitucionalidade. Segundo John E. Novak e Ronald D.
Rotunda, nestes casos ‘... os juízes vão exigir que o governo
mostre a existência de uma estrita relação entre a classificação e a
promoção de um interesse de excepcional importância
(compelling or overriding interest)’. Este standard mais rigoroso é
chamado de strict scrutiny.” 15

Nesta linha, é evidente que a Portaria nº 41-DEP se baseou em critério


“suspeito”, justificando, por isso mesmo, um controle mais rigoroso sob o prisma do devido
processo legal substantivo.

Assim, é imperativa a conclusão no sentido da incompatibilidade entre as


normas e critérios inscritos na norma em questão, relativas à exclusão de candidatos portadores
assintomáticos do HIV, e o princípio constitucional da proporcionalidade.

Da Ofensa ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

A Constituição brasileira de 1988, à semelhança do que ocorre em


diversas cartas contemporâneas, reconheceu a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República Federativa do Brasil. (art. 1º, III, C.F.). A proclamação solene do
princípio da dignidade da pessoa humana no primeiro artigo do texto constitucional é rica em
15 A Ponderação de Interesses na Constituição Federal, Lumen Iuris, 2000, p. 157.

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simbolismo. A Carta de 1988 – Constituição cidadã, nas palavras do saudoso Ulisses Guimarães
– representa um marco essencial na superação do autoritarismo e na restauração do Estado
Democrático de Direito, timbrado pela preocupação com a promoção dos direitos humanos e
da justiça social no país. Neste contexto, é natural que o constituinte tenha desejado tingir a sua
obra com um colorido humanista, consagrando a dignidade da pessoa humana como valor
nuclear da ordem constitucional que instaurou.

Neste particular, a Lei Maior de 88 se ajusta à tendência universal de


promoção e proteção da dignidade humana, em consonância com a emblemática e lapidar
proclamação constante no primeiro parágrafo do preâmbulo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948:

“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da


família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo;”

A essência do princípio em questão é difícil de ser capturada em


palavras. Porém, esta fluidez não diminui a sua importância, mas antes enriquece o princípio,
possibilitando a sua incidência sobre uma infinidade de situações que dificilmente poderiam ser
previstas de antemão pelo constituinte.

Na verdade, o princípio da dignidade da pessoa humana exprime, em


termos jurídicos, a máxima kantiana, segundo a qual o Homem deve sempre ser tratado como
um fim em si mesmo e nunca como um meio. Como assinalou o filósofo alemão, “todo
homem tem dignidade e não um preço, como as coisas. A humanidade, como espécie, e cada
ser humano, em sua individualidade, é propriamente insubstituível não tem equivalente, não
pode ser trocado por coisa alguma”16.

O ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em

16 Cfr. Fábio Konder Comparato, “A Afirmação Histórica dos Direitos Fundamentais”, Saraiva, 2000, p. 20.

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razão dele. Nesse sentido, a pessoa humana deve ser concebida e tratada como valor-fonte do
ordenamento jurídico, como assevera Miguel Reale, sendo a defesa e promoção da sua
dignidade, em todas as suas dimensões, a tarefa primordial do Estado Democrático de Direito .
Com precisão, Ingo Starlet averbou:

“Com o reconhecimento expresso, no título dos princípios


fundamentais, da dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito
(art. 1º, inc. III, da CF), o Constituinte de 1987/88, além de ter
tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da
finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do
próprio Estado, reconheceu expressamente que é o Estado que
existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o
homem constitui a finalidade precípua e não o meio da atividade
estatal.” 17

Nessa linha, o princípio da dignidade da pessoa humana representa o


epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento
jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações
privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado. A despeito do caráter
compromissório da Constituição, pode-se dizer que o princípio em questão é o que confere
unidade de sentido e valor ao sistema constitucional, que repousa na ideia de respeito irrestrito
ao ser humano – razão última do Direito e do Estado.

Assim, é evidente que, como fundamento basilar da ordem


constitucional, o princípio da dignidade da pessoa humana configura diretriz inafastável que
norteia a interpretação de todo o ordenamento. Na qualidade de vértice axiológico da
Constituição, o cânone em questão condensa a ideia unificadora que percorre toda a ordem
jurídica, condicionando e inspirando a exegese e aplicação do direito positivo, em suas mais
17 A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Livraria do Advogado, 1998, p. 100/101.

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variadas manifestações.

Ora, impedir o acesso do soropositivo ainda não doente ao trabalho


atenta contra a sua dignidade como pessoa humana. A exclusão sumária destes candidatos
traduz medida humilhante e estigmatizante, que priva o indivíduo do sagrado direito ao
trabalho - uma das formas mais importantes de realização existencial.

Ademais, tal afastamento prejudica a imagem do cidadão em seu meio.


O soropositivo assintomático, conquanto perfeitamente apto para o serviço, passa a ser visto
como um morto-vivo, do qual todos se afastam, pelo preconceito, aliado ao medo de contágio,
que é fruto da ignorância sobre as formas de transmissão do vírus. O abalo à auto-estima é
inevitável, e tudo isto fatalmente acaba se refletindo no estado de saúde da pessoa.

Portanto, o procedimento estabelecido na Portaria 41-DEP em relação à


exclusão de candidatos portadores do vírus do HIV, que não padecem de AIDS, é atentatória
ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Da Violação ao Direito Constitucional ao Trabalho.

A Constituição da República assegurou, em seu art. 6º, o direito


fundamental ao trabalho. O reconhecimento do direito de cada pessoa de exercer livremente
um trabalho que possa lhe proporcionar, por um lado, condições mínimas de subsistência, e,
por outro, realização pessoal, é essencial na construção de uma sociedade democrática.

Na Antigüidade clássica e na Idade Média, o trabalho era muitas vezes


considerado como atividade indigna, que rebaixava o homem, reservada aos escravos e servos.
Aristóteles, por exemplo, chegava a sustentar que o ócio era a condição necessária para que
alguém pudesse filosofar.

Porém, desde o advento do capitalismo, modificou-se completamente a

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visão sobre o trabalho. Hoje, considera-se que ele é não apenas um dos fatores de produção
econômica, ao lado do capital, como também um direito fundamental do cidadão. Através do
trabalho, o indivíduo sem posses pode conquistar os meios necessários a uma vida digna.

Sem embargo, é importante salientar que o direito ao trabalho não se


resume ao direito à percepção da respectiva remuneração. Este direito envolve também uma
relevante dimensão extra-patrimonial, na medida em que o trabalho é uma das formas mais
importantes de realização pessoal. O trabalho dignifica e enobrece a existência
humana, e privar uma pessoa apta da possibilidade de trabalhar significa, muitas vezes,
frustrar os seus projetos de vida, condenando-a a uma existência vazia e sem sentido.

No caso presente, a Portaria 41-DEP impede pessoas que estão


perfeitamente aptas para o serviço (os soropositivos assintomáticos) de fazer parte das Forças
Armadas, privando-as, arbitrária e injustificadamente, do seu direito ao trabalho. Muitas destas
pessoas, que tinham na carreira militar o seu projeto de vida, veem seu mundo desabar.

Mais uma vez, é importante frisar que só o desconhecimento ou o


preconceito justificam a postura de se afastar da atividade laborativa os portadores
assintomáticos de HIV. Como já afirmado, o vírus não é transmissível pelo simples convívio
profissional, e, além disso, a continuidade do trabalho é não apenas possível, mas também
positiva no sentido profilático. Conforme a precisa lição de Limongi França:

“Além de obrigação social do homem, o trabalho é objeto de um direito inalienável do


ser humano, indispensável à auto-realização em todos os setores de sua complexidade.

Não pode assim o aidético ser discriminado na admissão e no


exercício da atividade produtiva, a não ser que, em razão do tipo de
trabalho e do estágio da moléstia não haja possibilidade técnica de impedir o risco de
contaminação.

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Do mesmo modo não pode a AIDS ser considerada causa jurídica de despedida do
emprego.

Por outro lado, cumpre à sociedade e ao Governo desenvolver programas que facilitem
o trabalho do aidético, pois, além de sempre oferecer um largo potencial de
produtividade, cujo aproveitamento é indispensável ao equilíbrio econômico social, o
doente necessita de ser e de sentir-se útil, para poder carregar com resignação o seu
estigma”.18

Vale observar que, na Justiça do Trabalho, já é abundante a


jurisprudência no sentido do caráter arbitrário da demissão do empregado, motivada apenas
pela soropositividade do mesmo. Nesta linha, deve-se destacar o aresto proferido pela 2ª Turma
do Tribunal Superior do Trabalho, no Recurso de Revista nº 217.791/95, Rel. Min. Valdir
Riguetto:

“REINTEGRAÇÃO – EMPREGADO PORTADOR DO VÍRUS DA


AIDS – CARACTERIZAÇÃO DE DESPEDIDA ARBITRÁRIA:
Muito embora não haja preceito legal que garanta a estabilidade ao empregado
portador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ao Magistrado incumbe a
tarefa de valer-se dos princípios gerais do Direito, da analogia e dos costumes para
solucionar os conflitos ou lides a ele submetidos. A simples e mera alegação de que o
ordenamento jurídico nacional não assegura ao aidético o direito de permanecer no
emprego não é suficiente a amparar uma atitude altamente discriminatória e
arbitrária que, sem sombra de dúvida, lesiona de maneira frontal o princípio da
isonomia insculpido na Constituição da República Federativa do Brasil. Revista
conhecida e provida”

Enfim, consoante ressaltou Angela Fernandes Soares Escher, na


conclusão da sua dissertação de Mestrado sobre o tema “Aids na Marinha: vivendo o fim de
18 Aspectos Jurídicos da AIDS, in RT, vol. 661, 1990, p.18/19

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uma carreira”, é extremamente “... doloroso o fim de uma carreira pela presença de um vírus que pode
levar muitos anos para modificar algo no estado de saúde de uma pessoa. A morte civil é anunciada a partir do
resultado do exame e, consequentemente, neste cenário, da proibição do exercício das atividades profissionais e da
inviabilização do projeto de vida. Sob o argumento de preservação do vigor físico (e moral) da instituição,
padrões rígidos são construídos com o objetivo de proteção da saúde de um determinado grupo, sem levar em conta
o bem estar de todos os indivíduos.”

Destarte, conclui-se que a eliminação dos portadores assintomáticos do


HIV, em concursos para as Forças Armadas, confronta-se com o direito fundamental ao
trabalho destas pessoas, inscrito no art. 6º da Carta Política.

Da inconstitucionalidade dos exames obrigatórios de HIV

A realização compulsória do exame de HIV afronta a Constituição


Federal, revelando-se incompatível com o direito fundamental à intimidade, previsto no art. 5º,
inciso X, da Lei Maior.

Este importante direito fundamental salvaguarda o espaço vital do


indivíduo, tornado-o indevassável e protegendo-o de intromissões indevidas do Poder Público e
de terceiros. Um dos aspectos nucleares deste direito é, nas palavras de José Adércio Leite
Sampaio, “o controle de outputs de informação”. Segundo ele,

“... o homem tem um direito a controlar informação sobre ele


mesmo, decidindo quando, como, em que extensão e para que
finalidade tais informações serão conhecidas pelos outros.

Este conceito envolve uma ‘senhoria’ sobre todo o processo informativo, desde a sua
obtenção por outros até seu uso ulterior. Diz-se assim que o direito à intimidade
concede um poder ao indivíduo para controlar a circulação de informações a seu

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respeito.”19

Cristalino, então, que tal direito não se compadece com a prática,


disseminada no Exército, de testagem compulsória de HIV. A condição de soropositivo
constitui dado de natureza íntima, e ninguém pode ser obrigado a se sujeitar a exame desta
espécie, contra a própria vontade.

É importante, neste sentido, frisar que o exame de HIV não é um


teste de saúde como outro qualquer. O estigma que ainda acompanha o vírus, e o
preconceito que o associa, no imaginário das pessoas, a condutas sexuais tidas como
desviantes, torna muito mais intensa a proteção constitucional da intimidade do
cidadão. Nesta linha, vale reproduzir o magistério do jurista italiano Stefano Rodotà:

“Regras severas na defesa da privacidade servem para impedir regressos culturais e


perseguições por parte daqueles que querem considerar a AIDS não como uma
terrível doença a ser combatida, mas como um castigo de Deus contra homossexuais e
drogados.”20

Nem se diga que o exame em questão é necessário para verificar o


possível comprometimento da saúde do militar, e analisar a aptidão do mesmo para o
serviço ativo nas Forças Armadas. Consoante já se assinalou repetidas vezes, a infecção
pelo vírus do HIV não significa, necessariamente, a doença. É possível que uma pessoa
porte por muitos anos o vírus sem manifestar nenhum sintoma da AIDS, estando neste
ínterim completamente apta para o exercício de qualquer atividade laborativa.

E se o militar soropositivo manifestar a doença, em grau que o torne


incapacitado para o trabalho, outros exames de saúde poderão indiciá-la, já que a característica
da AIDS é precisamente a exposição do doente a outras moléstias oportunistas, que o atacam
19 Direito à Intimidade e à vida privada, Ed. Del Rey, 1998, p. 368/369.
20 Tradução livre de Daniel Sarmento, Apud Vânia Siciliano Aieta, A Garantia da Intimidade como Direito
Fundamental, Lumem Iuris, 1999, p. 197.

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em razão da queda de sua imunidade.

É fundamental, neste passo, sublinhar que a injuridicidade do exame


de HIV não configura tese polêmica e controvertida. A própria Ré a admitiu, tanto que
proibiu esta prática, através da já citada Portaria Interministerial nº 869, de 11 de agosto
de 1992, dos Ministros da Saúde e do Trabalho e da Administração, que reza:

“Os Ministros de Estado da Saúde do Trabalho e da Administração, no


uso das atribuições que lhes confere o art. 87, parágrafo único, inciso IV,
da Constituição Federal, e,

Considerando que os artigos 13 e 14 da Lei nº 8.112/90 exigem tão-


somente a apresentação de um atestado de aptidão física e mental, para
posse em cargo público;

Considerando que a sorologia positiva para o vírus da imunodeficiência


adquirida (HIV) em si não acarreta prejuízo para a capacidade laborativa
do seu portador;

Considerando que os convívios social e profissional com portadores do


vírus não configuram situações de risco;

Considerando que a solidariedade e o combate à discriminação são a


fórmula de que a sociedade dispõe para minimizar o sofrimento dos
portadores do HIV e das pessoas com AIDS;

Considerando que o manejo dos casos de AIDS deve ser conduzido


segundo os preceitos da ética e do sigilo;

Considerando que as pesquisas relativas ao HIV vêm apresentando

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surpreendentes resultados, em curto espaço de tempo, no sentido de


melhorar a qualidade de vida dos indivíduos infectados e doentes,
resolvem:

Proibir, no âmbito do Serviço Público Federal, a exigência de teste


para detecção do vírus da imunodeficiência adquirida, tanto nos
exames pré-admissionais quanto nos exames periódicos de
saúde.”

Não obstante, no âmbito da administração federal militar a


orientação explicitada nesta Portaria Interministerial não vem sendo cumprida, como se
depreende da simples leitura da Portaria nº 41-DEP.

Portanto, contraria a ordem constitucional vigente a imposição de


testagem compulsória de HIV, tal como hoje ocorre nas Forças Armadas, tanto nos exames
iniciais de ingresso, quanto nos periódicos.

Finalmente, cumpre-nos mencionar a existência de Parecer do


Conselho Federal de Medicina sobre a absurda exigência de teste de HIV em concursos civis
ou militares (Processo Consulta CFM nº 5065-95 – PC/CFM nº 15/97), cuja ementa assim
dispõe:

“Ementa: A realização de testes sorológicos para o vírus da


imunodeficiência humana sem prévio consentimento do
candidato a concursos civis ou militares, bem como a
incapacitação destes candidatos pelo fato de apresentarem tais
exames sorológicos positivos constitui violação aos Direitos
Humanos, afronta a Constituição Federal e caracteriza conduta
antiética por parte do médico que respalda tal normativa.”

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Ainda no bojo do referido parecer, há referência às demais doenças


infecto-contagiosas que, assintomáticas, nunca poderiam ensejar a exclusão de candidatos a
concursos públicos:

“Em relação às doenças infecciosas, cujos agentes etiológicos


podem ser transmitidos exclusivamente através de relações
sexuais ou através de contaminação pelo sangue (doença de
chagas, sífilis, SIDA/AIDS, hepatite viral B e C), não existe
nenhuma justificativa técnica plausível para que as pessoas
portadoras de tais agentes sejam discriminadas, já que não
oferecem nenhum tipo de risco para seus companheiros de
trabalho.”

Não se pode permitir a continuidade de prática tão discriminatória pelo


Exército, que aplica dois pesos e duas medidas para pessoas que apresentem o mesmo
problema de saúde, conforme se trate de militar da ativa ou de cidadão comum, candidato a
uma vaga nos quadros militares. Ora, se o fato de o militar integrante do serviço ativo ser
portador do vírus HIV, HCV, da sífilis, ou de qualquer outro que não prejudique a sua
capacidade laborativa, não o torna inapto para o serviço, por que tornaria inapto o candidato a
ingresso nas fileiras do Exército?

Repise-se: os vírus HIV, HPV, HCV, dentre outros, não são


transmissíveis pelo simples convívio profissional e não afetam, necessariamente, a
capacidade laboral de seus portadores. Assim, só o preconceito justifica a discriminação
perpetrada pelo Exército, através da Portaria ora combatida.

Em face do exposto, é forçoso concluir pela ilegalidade da realização


compulsória de testes de HIV nos integrantes do serviço ativo nos candidatos a uma das vagas
do Exército Brasileiro, bem como pela ilegalidade da eliminação sumária de candidatos
portadores assintomáticos de vírus de quaisquer doenças que não os incapacitem

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definitivamente para o trabalho, ou que possuam doenças que não sejam consideradas
incapacitantes para um militar da ativa, tais como ocorre com os vírus da hepatite, sífilis, HPV,
dentre outros.

2.3 DA ILEGALIDADE DA EXCLUSÃO DOS CANDIDATOS EM RAZÃO DA


ALTURA OU POR QUESTÕES MERAMENTE ESTÉTICAS

Conforme também já exposto, a Portaria 41-DEP prevê como causa de


incapacidade em exames de saúde: “as doenças que motivam a isenção definitiva dos conscritos para o
Serviço Militar das Forças Armadas – Anexo II às IGISC”; “possuir menos de vinte dentes
naturais, computando-se neste número os “sisos” ainda inclusos, quando revelados radiologicamente” e
“dentes cariados ou com lesões periapicais que comprometam a estética ou a função
mastigatória”; “para candidatos do sexo masculino, altura inferior a 1,60m (um metro e sessenta
centímetros)”; “para candidatas do sexo feminino, altura inferior a 1,55m (um metro e cinquenta e cinco
centímetros)”.

Ora, o Exército necessita, sobretudo, de homens e mulheres com


boa saúde e resistência, de cidadãos comprometidos com a Força, e não de quadros
que não possuam “defeitos” físicos meramente estéticos, como a falta de um dente,
uma cárie ou a estatura mais baixa. Trata-se de concurso para as Forças Armadas, não
de concurso de beleza!

Não é preciso ser médico, antropólogo, biólogo ou cientista de qualquer


gênero para afirmar que o fato de possuir uma deformidade puramente estética não torna o
soldado mais ou menos corajoso, disciplinado, educado ou servidor amoroso da pátria,
atributos estes considerados importantíssimos para a qualificação de um excelente militar.

Além da evidente afronta ao princípio da legalidade, a previsão de tais


requisitos de altura para acesso aos cargos públicos fere os princípios constitucionais da
igualdade, da razoabilidade, da proporcionalidade e da impessoalidade. Mesmo se

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considerarmos, ad argumentandum tantum, que tais requisitos poderiam ser determinados por
norma infra-legal, não há justificativa plausível para a escolha, a esmo, da altura mínima de
1,55m para mulheres e 1,60m para homens. Tais previsões não atendem a nenhuma finalidade
de interesse público, tampouco estão amparadas por qualquer razão de ordem técnica ou
científica a justificar a exclusão de candidatos que se encontrem na plenitude de suas
capacidades física, mental e intelectual, mas que não contam com a altura mínima determinada.

Constituem-se, pois, critérios discutíveis quanto à capacidade dos


candidatos, já que um candidato mais alto não será necessariamente mais competente ou
terá mais resistência física e saúde do que um mais baixo. Da mesma forma, aquele que
conte com apenas 19 dentes naturais poderá ser um militar muito mais comprometido e
eficiente do que aquele que nunca teve uma cárie sequer.

Nesse sentido, não há qualquer justificativa, que não preconceito em


estado puro, para excluir do certame um candidato que possua lesões bucais que comprometam
a estética. Declarar inaptos candidatos aprovados nas demais etapas do concurso
somente porque possuem uma cárie ou a falta de um dente é evidente discriminação,
com a qual não se pode compactuar.

E, muito embora seja admissível que a lei determine, de acordo com a


natureza das funções inerentes a determinado cargo, os requisitos mínimos de capacidade física
exigíveis do candidato, tais requisitos não podem divorciar-se do princípio da razoabilidade,
com o qual definitivamente não se compadecem as exigências de altura mínima ou de ausência
de deformidades ou defeitos meramente estéticos para o provimento de cargos do Exército.

Ademais, em não havendo lei que regulamente os limites de altura para


candidatos às carreiras do Exército, faz-se necessária a análise de cada caso individualmente,
levando-se em consideração todos os exames médicos realizados pelo candidato, bem como sua
avaliação nos testes de esforço físico, não sendo admissível a imposição destes limites aleatória
e arbitrariamente pela Administração.

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Não foi outro o entendimento do d. Juízo da 8ª Vara Federal de Goiânia,


que condenou a União em obrigação de não fazer, consistente em não exigir, no concurso
de 2010, bem como nos concursos futuros para recrutamento de pessoal para o quadro
de Sargentos da Aeronáutica, atendimento a requisitos como estatura mínima (ACP nº
2009.35.00.019677-9).

Em sua decisão, aquele r. Juízo fez referência a precedentes do Supremo


Tribunal Federal (AI 627586 AgR, RE 509296, AI 574057, AI 588768) nesse sentido,
ressaltando que “a necessidade de demonstração de 'capacidade física', indicada no art. 10 da Lei
6.880/80, não supre a exigência de previsão legal e não pode ser interpretada como fundamento de validade
para a exigência de altura mínima, pois normas restritivas de direitos devem s expressamente positivadas e a
sua interpretação é sempre literal”.

Finalmente, ressalte-se que não é plausível que se permita a


perpetuação de concursos com cláusulas abusivas e inconstitucionais, que ferem
princípios como os da legalidade e da isonomia, como têm sido quase a totalidade dos
concursos das carreiras militares.

Admitir a continuidade destes concursos, sem penalizar a Administração,


equivaleria a fornecer-lhe “carta branca” para que proceda de forma nem sempre legal, nem
sempre razoável, nem sempre proporcional, por contar com a certeza de que, consumando-se a
seleção, já não haveria anulações ou suspensões, pelo Judiciário, de processos viciados.

Sendo uma prática constante e reiterada a exigência, nos concursos para


ingresso no Exército, dos requisitos de saúde questionados nesta ação - bem como de outras
limitações também inconstitucionais -, evidenciada está a necessidade de que a sentença
proferida produza efeitos também em relação a todos os concursos vindouros de admissão às
carreiras do Exército, até mesmo em respeito ao princípio da celeridade e da economia
processual, caso contrário, a cada novo concurso publicado, será necessária uma nova ação e
uma nova sentença no mesmo sentido.

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Não se pode permitir que as ilegalidades delineadas na presente ação


continuem a ocorrer, em detrimento da sociedade, privada de uma solução definitiva para as
questões em debate.

Por tudo isto, o Ministério Público Federal espera obter do Poder


Judiciário, último bastião na batalha pela preservação dos direitos fundamentais, resposta que
imponha ao Exército a adequação da Portaria nº 41-DEP à CF de 1988, nos termos já
alinhavados.

2.5 DOS EFEITOS NACIONAIS DA DECISÃO PROFERIDA EM SEDE DE AÇÃO


CIVIL PÚBLICA

Como se demonstrará a seguir, os efeitos da tutela jurisdicional aqui


pleiteada devem ser estendidos a todo o território nacional, a fim de alcançar todos os
candidatos às carreiras do Exército.

É cediço que a sentença em ação civil pública, em razão de sua própria


natureza, deve produzir efeitos erga omnes ou ultra partes, pois a razão de ser deste tipo de ação é
beneficiar todas as pessoas que estejam na mesma situação, rompendo com o individualismo do
processo civil clássico.

Dessa forma, temos que a Lei nº 9.494/97, ao alterar o artigo 16 da Lei


da Ação Civil Pública, objetivou desfigurar esta espécie de ação, atingindo-a na sua própria
natureza e ferindo, assim, a disposição constitucional que autorizou tal demanda coletiva (inc.
III, do art. 129 da CF/88), pois pretendeu-se, com a nova redação do art. 16, restringir os
efeitos da coisa julgada ao território de competência do órgão judicial prolator.

Ocorre que se confundiram dois institutos distintos, quais sejam a


competência do órgão judicial e a respectiva jurisdição. Todo juiz tem competência territorial
delimitada que o habilita a conhecer apenas de determinadas lides, mas sua jurisdição - quer

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dizer, a validade de suas decisões - tem indiscutivelmente abrangência nacional. Um divórcio


prolatado no Distrito Federal tem, à evidência, validade em todo o território nacional e mesmo
no âmbito internacional, desde que observadas as regras do direito internacional privado.

A esse respeito, Nelson Nery Jr. destaca a distinção entre jurisdição e


competência e os limites subjetivos da coisa julgada, nos seguintes termos21:

“De outra parte o Presidente da República [o dispositivo legal constava inicialmente


de medida provisória] confundiu limites subjetivos da coisa julgada,
matéria tratada na norma, com jurisdição e competência, como
se, v.g., a sentença de divórcio proferida por juiz de São Paulo não
pudesse valer no Rio de Janeiro e nesta última comarca o casal
continuasse casado! O que importa é quem foi atingido pela coisa
julgada material. No mesmo sentido José Marcelo Menezes Vigliar, RT
745/67. Qualquer sentença proferida por órgão do Poder
Judiciário pode ter eficácia para além do seu território. Até a
sentença estrangeira pode produzir efeitos no Brasil, bastando para tanto, que seja
homologada pelo STF. Assim, as partes [por isso a relevância de se tratarem os réus
de pessoas jurídicas públicas de âmbito nacional e sujeitos a uma chefia única] entre
as quais foi dada a sentença estrangeira são atingidas por seus efeitos onde quer que
estejam no Planeta Terra. Confundir jurisdição e competência com limites subjetivos
da coisa julgada é, no mínimo, desconhecer a ciência do direito. Portanto, se o juiz
proferiu sentença na ação coletiva tout court, quer verse sobre direito difusos, que
coletivos ou individuais homogêneos, for competente, sua sentença produzirá efeitos
erga omnes ou ultra partes, conforme o caso (v. CDC 103), em todo o território
nacional – e também no exterior -, independentemente da ilógica e inconstitucional
redação dada à LACP 16 pela Lei 9494/97. É da essência da ação coletiva a
eficácia prevista no CDC 103. Não se pode modificar o sistema e a

21 Nelson Nery Jr., Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. Editora Revista dos
Tribunais, 7ª ed., p. 1349.

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essência do processo coletivo por norma desproporcional, inócua,


ineficaz e inconstitucional, como é essa da LACP 16. Entender-se o
contrário é desconhecer-se o sentido, o significado, o escopo e a essência, mesma, do
processo civil coletivo.”

Na ação civil pública, a competência define-se pelo local do dano,


que, no presente caso, abrange todo o país, inclusive o Distrito Federal, cujos Juízes
Federais tornam-se competentes para a demanda. Explica-se: em face do permissivo legal
disposto no art. 21 da Lei da Ação Civil Pública (acrescentado ao texto pela Lei nº 8.078/90),
no caso concreto, os artigos 2º e 16 da Lei nº 7.347/85 devem ser conjugados com o artigo 93
do Código de Defesa do Consumidor, pois trata-se de norma posterior e mais completa, que
está a regulamentar a competência nas demandas coletivas. Por tais argumentos, sendo o dano
de abrangência nacional, aplicar-se-á o artigo 93, II, do Código de Defesa do Consumidor, que
prevê que o foro competente é o da capital do Estado.

Os efeitos da decisão, contudo, são ditados pela lide posta em juízo,


devendo alcançar todos os titulares dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos
em causa. Ditam-se esses efeitos também pela pessoa do réu, cujas obrigações não podem ser
repartidas em tantas partes quanto forem as comarcas existentes no país. O contrário
significaria grave afronta ao princípio constitucional da isonomia e do acesso à justiça.
Sustentando esta posição, fazemos referência aos ensinamentos de José Marcelo Menezes
Vigliar22:

“O tratamento desigual reservado a pessoas que se encontram na mesma situação,


unidas por vínculos indivisíveis, seria intolerável. A Medida Provisória nº 1570/97
e, agora, a Lei nº 9494/97 representam um retrocesso. O governo federal, sob
alegação de que precisa realizar grandes mudanças para manter o Plano Real, está
veiculando hipóteses que, além de revelarem pouca técnica, veiculam hipóteses

22 José Marcelo Menezes Vigliar. Tutela Jurisdicional Coletiva. Ed. Atlas, São Paulo: 2001, p. 184.

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discriminadoras que não se coadunam como o princípio da isonomia. Prevendo


possíveis demandas coletivas, diante das reformas constitucionais que se operarão,
desde já o Executivo busca acautela-se de futuras demandas coletivas a que
responderá . O efetivo acesso a Justiça mais uma vez fica comprometido. O legislativo,
como era de esperar, não percebeu a manobra oculta que a medida provisória
veiculava.”

E essa também é a lição de Ada Pelegrini Grinover23:

“O acréscimo da expressão 'nos limites da competência territorial do órgão prolator'


não pode ficar desvinculado da fixação da referida competência territorial,
determinada pelo Código de Defesa do Consumidor no art. 93 (aplicável à Lei nº
7.347/85, por força do seu art. 21), de modo que o entendimento de que as regras
do ar. 93 regem todos os processos coletivos – e não apenas os voltados à defesa dos
interesses individuais homogêneos: v. retro, nº 1 – leva à inarredável conclusão de que
a intenção do Executivo ficou frustrada, e inócua acabou sendo a expressão. Isso
porque os limites da competência territorial, nas ações coletivas, são exatamente os do
art. 93 (lex specialis) e não os do Código de Processo Civil. Mas há mais: o
indigitado dispositivo da medida provisória tentou (sem êxito)
limitar a competência, mas em lugar algum aludiu ao objeto do
processo. Se o pedido é amplo (de âmbito nacional) não será por
intermédio de tentativas de restrições da competência que o
mesmo poderá ficar limitado. Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se
aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais
homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses difusos e
coletivos, mas o acréscimo introduzido pela medida provisória é inoperante, porquanto
é a própria lei que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos,
ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o
23 Ada Pelegrini Grinover. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ed. Forense Universitária, 7ª ed.,
pp. 810 e 851.

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âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido e não a


competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação
entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o
juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do
processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz.”
(grifos nossos)

Pedro Lenza, na obra "Teoria Geral da Ação Civil Pública”, doutrina no


mesmo sentido:

"A regra de competência, insista-se, continua estabelecida no art.


93 do CDC, sendo os efeitos subjetivos da coisa julgada nos arts.
103 e 104. Como visto, objetivando a tutela de bem difuso, cuja
natureza transcende a área geográfica de um juízo, não se pode
limitar a autoridade da coisa julgada a um único território, o
mesmo se verificando em relação aos interesses coletivos e
individuais homogêneos, devendo a coisa julgada atingir todos os
que se encontrem na situação descrita na inicial".

Pedimos vênia para transcrever, ainda, importante excerto da moderna


doutrina de Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., que assim resumem a questão24:

“Os dispositivos normativos invocados, que limitam


territorialmente a eficácia subjetiva da decisão coletiva, são
inconstitucionais e inúteis.
(…)
Os dispositivos são irrazoáveis, pois impõe, exigências absurdas, bem como
permitem o ajuizamento simultâneo de tantas ações civis públicas
quantas sejam as unidades territoriais em que se divida a
respectiva Justiça, mesmo que sejam demandas iguais,

24 Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo, vol. IV,
Editora Jus Podivm: 2008, pp. 159-166.

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envolvendo sujeitos em igualdade de condições, com a


possibilidade teórica de decisões diferentes em cada uma delas.
(…)
As restrições teóricas e pragmáticas aos dispositivos podem ser
apontadas em cinco objeções:
a) ocorre prejuízo a economia processual e fomento ao conflito
lógico e prático de julgados;
b) representa ofensa aos princípios da igualdade e do acesso à
jurisdição, criando diferença no tratamento processual dado aos brasileiros e
dificultando a proteção dos direitos coletivos em juízo;
c) existe indivisibilidade ontológica do objeto da tutela jurisdicional coletiva, ou seja,
é da natureza dos direitos coletivos lato sensu sua não
separatividade no curso da demanda coletiva, são indivisíveis por lei
(art. 81, parágrafo único do CDC);
d) há, ainda, equívoco na técnica legislativa que acaba por confundir
competência, como critério legislativo para repartição da
jurisdição, com a imperatividade decorrente do comando
jurisdicional, esta última elemento do conceito de jurisdição que é
uma em todo o território nacional;
e) por fim, exite a ineficácia da própria regra de competência em si,
vez que o legislador estabeleceu expressamente no art. 93 do CDC (lembre-se,
aplicável a todo o sistema das ações coletivas) que a competência para julgamento de
ilícito de âmbito regional ou nacional é do juízo da capital dos Estados ou no
Distrito Federal, portanto, nos termos da Lei em comento, ampliou a 'jurisdição do
órgão prolator'.
(...)
O que se buscou alcançar com esses dispositivos foi a fragmentação das decisões
coletivas, desnaturando todo o sistema de extensão subjetiva dos efeitos das decisões
coletivas.
(…)
O legislador infraconstitucional não poderia autorizar uma prática que feriria o
princípio da igualdade, pois pessoas na mesma situação poderiam

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receber, do Poder Judiciário, solução diferente. Uns ganhariam,


outros não. A lógica das demandas coletivas está exatamente na
tutela molecular (única) de uma pluralidade de direitos
semelhantes. Exigir-se o fracionamento da questão coletiva, com o
evidente risco de decisões contraditórias, é, sem dúvida, violar o
bom senso e o princípio da igualdade. O que marca a tutela coletiva é a
indivisibilidade do objeto, 'não sendo possível o seu fracionamento para atingir parte
dos interessados, quando estes estiverem espalhados também fora do respectivo foro
judicial.”

Ressalte-se, ademais, que, não obstante haja recente decisão do Superior


Tribunal de Justiça no sentido de limitar os efeitos da sentença proferida em ação civil pública à
competência territorial do órgão que proferiu a decisão, tal entendimento não pode prosperar,
pois não torna menos irrazoável ou inconstitucional a restrição do artigo 16 da Lei nº 7.347/85.

A coisa julgada erga omnes, juntamente com o amplo rol de colegitimados,


representa a principal característica da tutela coletiva de direitos, na medida em que propicia o
acesso à justiça a diversos indivíduos por meio de um único processo judicial, concretizando
assim, o ideal de inafastabilidade do Judiciário, previsto no art. 5º, inciso XXXV, do texto
constitucional.

Nesse sentido, não se pode permitir que uma sentença determine que a
União deve parar com determinada prática ilegal no Distrito Federal, mas ainda pode
exercê-la nas outras 26 Unidades da Federação.

Uma situação como essa criaria franca discriminação com os


jurisdicionados residentes em outros cantos do país, promovendo um abismo de desigualdade.
Traria problemas com a segurança jurídica, já que o critério desarrazoado de discrímen, criado
artificialmente pela lei – a residência do beneficiado -, provocaria tumultos no sentido de
averiguar se a decisão estaria mesmo tendo seus efeitos limitados à competência do órgão

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prolator, exigindo, em diversos casos, a criação de verdadeira comissão de análise e investigação


só para saber se a pessoa beneficiada pela decisão é ou não residente no Distrito Federal, por
exemplo.

Tamanha confusão obrigaria, em franco contraste com o princípio da


eficiência, a serem propostas tantas ações quanto os estados da federação, pulverizando na
burocracia judiciária um problema de magnitude nacional. Alguns membros do Ministério
Público em outros estados, ao argumento de sua independência funcional, poderiam
simplesmente se recusar a propor a ação de igual fundamento e escopo. E, se a ação já tiver
sido proposta, alguns juízes poderiam indeferir medidas urgentes (a liminar do artigo 12 da lei
7.347/1985 ou a antecipação de tutela do artigo 273 do Código de Processo Civil) ou julgá-la
improcedente. Ou seja, criar-se-ia um estado de confusão que ofende o princípio da segurança
jurídica, quebrando as condições propícias para a uniformidade decisória pretendida pelo
sistema da Lei da Ação Civil Pública.

É verdade que alguns acórdãos do STJ afastam a eficácia erga omnes da


decisão em sede de ação civil pública, sob o argumento de que é “inadmissível que sentença com
trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeito sobre todo o
território nacional25” ou de que “assegurar eficácia nacional para sentença proferida em ação civil pública
permitiria que um processo instaurado em qualquer juízo tivesse efeito sobre todas as relações objeto da ação, em
todo o Brasil, o que poderia ensejar surpresas e abusos”26.

Ora, inadmissível é que tal tese prevaleça!

Primeiramente, porque já há regra determinando que a competência para


julgamento de ilícito de âmbito regional ou nacional é do juízo da capital dos Estados ou do
Distrito Federal, o que afastaria o julgamento por Juízo “de pequena comarca do interior

25 Recurso Especial nº 293.407/SP - Banco Meridional S.A. x IDEC - Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar - 4ª
Turma - DJ 07.04.2003
26 Recurso Especial nº 253.589/SP - Banco Itaú S.A. x IDEC“AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Rel. Min. Ruy
Rosado de Aguiar - 4ª Turma - DJ 18.03.2002.

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desse imenso Brasil”.

Além disso, o que pode realmente “ensejar surpresas e abusos”, como


já foi dito, é a proliferação de decisões conflitantes, reconhecendo, por exemplo, determinado
direito às pessoas residentes no Rio Grande do Norte e negando esse mesmo direito a outro
grupo que resida em São Paulo. Tal raciocínio é compartilhado por diversos doutrinadores,
dentre os quais destacamos Fredie Didier Jr. e HermesZaneti Jr.:

“E mais: 'se o interesse é essencialmente indivisível... como limitar os efeitos da coisa


julgado a determinado território?' O direito em jogo é da categoria; a
categoria tem caráter nacional; ou toda a categoria tem o direito
reconhecido ou ninguém dessa categoria poderia tê-lo. Não se
justifica que a 'categoria de Alagoas' o tenha e a de Pernambuco, por exemplo, não.
O caráter unitário da tutela dessa espécie de direitos impõem uma decisão única.27”

Também defende a necessidade de uniformidade do pronunciamento


judicial Rodolfo de Camargo Mancuso:

“A resposta judiciária, no âmbito da jurisdição coletiva, desde que


promanada de juiz competente, deve ter eficácia até onde se revele
a incidência do interesse objetivado, e por modo a se estender a
todos os sujeitos concernentes, e isso, mesmo em face do caráter
unitário desse tipo de interesse, a exigir a uniformidade do
pronunciamento judicial.28”

Aceitar a recente posição do STJ equivale a contribuir para o

27 Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr., Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo, vol. IV,
Editora Jus Podivm: 2008, pp. 159-166.
28 Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação Civil Pública, 2002, p. 296, apud Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti
Jr., Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo, vol. IV, Editora Jus Podivm: 2008, p. 165.

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aniquilamento da principal virtude de uma decisão coletiva, que é a eficácia erga omnes irrestrita.

Assim, se o dano ou a ameaça de dano a interesses ou direitos difusos,


coletivos e individuais homogêneos tiver abrangência nacional, a decisão do juízo competente
para reconhecer a causa em primeiro grau de jurisdição terá que ter a mesma amplitude, sob
pena de se tornar ineficaz a prestação jurisdicional desses interesses e direitos nos termos
pretendidos pela Constituição.

O “temor” de que questões nacionais de grande relevância sejam


decididas por “juízes de pequenas comarcas do interior” não cabe no processo civil coletivo,
uma vez que é a definição do juízo competente e mais adequado (o que se faz com respeito às
regras de competência extraídas tanto da LACP quanto do CDC) que conferirá legitimidade
suficiente à decisão prolatada por determinado órgão judiciário, com efeitos tanto mais
abrangentes quanto maior for a coletividade titular do direito postulado.

É preciso, no particular, que o Poder Judiciário, ciente de suas


responsabilidades constitucionais e da grande responsabilidade de garantir o acesso à Justiça de
modo célere e racional, dê um salto de qualidade na interpretação do art. 16, da Lei nº 7347/85,
sem o qual a própria sobrevivência do processo coletivo – como forma moderna de resolução
de conflitos - restará ameaçada.

Por todas essas razões, é que pugna o Ministério Público Federal pela
extensão dos efeitos da decisão a ser proferida na presente ação a todos os candidatos de
concursos públicos promovidos pelo Exército, garantindo-se, assim, efeitos nacionais à liminar
e à sentença que vierem a ser prolatadas.

3. DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA PRETENDIDA

Do modo como se encontram, as instruções para as inspeções de saúde


admissionais no Exército, constantes da Portaria 41-DEP, restringem ilegalmente a participação

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de centenas ou milhares de candidatos dos certames públicos, por motivos puramente


preconceituosos.

E diversos editais de concursos para admissão ou aperfeiçoamento a


postos do Exército serão certamente lançados pelo seu Departamento de Ensino e Pesquisa, ao
longo deste29 e dos próximos anos, reportando-se a esta mesma Portaria nº 41-DEP e limitando
a participação daqueles cidadãos, em flagrante violação do ordenamento jurídico vigente.

É de se perceber, assim, que somente uma determinação do Poder


Judiciário poderá por freio à conduta ilegal constatada nos concursos do Exército, no sentido
da imediata suspensão (i) dos itens que preveem a obrigatoriedade de apresentação de
exames de “sorologia para Lues e HIV” e “sorologia para hepatite B (contendo, no
mínimo, HbsAg e Anti-HBc) e hepatite C” (3.e.1.b e 3.e.1.l), (ii) do item que determina
a expedição de Pareceres contra-indicando a matrícula de portador assintomático do
vírus HIV (3.g.5) e (iii) dos itens que preveem, como causas de incapacidade para
matrícula nas academias, cursos e colégios do Exército, as doenças infecciosas
incuráveis, as reações sorológicas positivas para sífilis e AIDS, possuir o candidato
menos de 20 dentes naturais ou dentes cariados ou lesões que prejudiquem a estética,
bem como altura inferior a 1,60m (homens) e altura inferior a 1,55m (mulheres), todos
constantes da Portaria nº 41-DEP, de 17/05/2005, a fim de que os requisitos de saúde
previstos na referida Portaria estejam em consonância com os princípios basilares da
Constituição, dentre os quais a igualdade, a proporcionalidade e a dignidade da pessoa humana,
aplicando-se a determinação judicial para todos os certames públicos que a administração
militar venha a abrir a partir do ajuizamento desta ação.

A prova inequívoca das alegações ora ofertadas é feita pelos


documentos que instruem a presente, devendo-se destacar que a questão de mérito é

29 O próximo edital para oficiais do quadro complementar deverá, conforme cronograma constante da página
da Escola de Administração do Exército na internet, ser lançado no mês de junho próximo
(www.esaex.ensino.eb.br).

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eminentemente de direito e, por isso, não demanda maior dilação probatória.

A verossimilhança das alegações salta aos olhos, analisados todos os


relevantes argumentos aqui expendidos – fáticos, legais, doutrinários e jurisprudenciais, que
conduzem às flagrantes ilegalidades contidas nos instrumentos convocatórios mencionados.

Por seu turno, o fundado receio de dano irreparável ou de difícil


reparação decorre do fato de que, não sendo tais cláusulas suspensas ou alteradas já neste
momento, serão excluídos dos certames todos os candidatos que apresentem quaisquer das
causas de incapacidade supramencionadas, bem como serão submetidos à testagem
compulsória de HIV, Lues e HCV, com grave lesão ao direito à intimidade, todos os
participantes dos mesmos concursos.

Para todos esses cidadãos brasileiros, apenas a concessão do


provimento jurisdicional antecipado servirá para proteger, de modo efetivo, os direitos
de que são titulares. A outra opção – aguardar meses ou anos até a prolação da
sentença definitiva – importaria em admitir que os direitos fundamentais invioláveis
aqui invocados podem continuar a ser violados até final decisão judicial, o que é
rematado absurdo.

Assim, diante do exposto, urge seja proferida decisão antecipatória para:

a) determinar que a UNIÃO, pela Diretoria de Ensino e Pesquisa do


Exército - DEP, se abstenha de aplicar as exigências e restrições constantes do item que
determina a expedição de Pareceres contra-indicando a matrícula de portador
assintomático do vírus HIV nas escolas do Exército (item 3.g.5) e dos itens que preveem,
como causas de incapacidade para matrícula nas academias, cursos e colégios do Exército, as
doenças infecciosas incuráveis, as reações sorológicas positivas para sífilis e AIDS, possuir o
candidato menos de 20 dentes naturais ou dentes cariados ou lesões que prejudiquem a estética,

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bem como altura inferior a 1,60m (homens) e altura inferior a 1,55m (mulheres)30, todos
constantes da Portaria nº 41-DEP, de 17/05/2005, em todos os concursos para admissão
inicial ou aperfeiçoamento/promoção a postos do Exército abertos a partir do
ajuizamento desta ação, até o julgamento de mérito, sob pena de multa diária de R$
5.000,00 (cinco mil reais), em caso de descumprimento, nos termos do art. 273, do CPC c/c
arts. 11 e 12, da Lei nº 7347/85;

b) determinar que a UNIÃO, pela Diretoria de Ensino e Pesquisa do


Exército - DEP, se abstenha de exigir dos candidatos a seus quadros, nas inspeções
admissionais, e dos integrantes do serviço ativo, na realização de inspeções de saúde
periódicas, a submissão a exames de sorologia para Lues, HIV e hepatite B e C (itens
3.e.1.b e 3.e.1.l), até o julgamento de mérito da presente ação;

4. DOS PEDIDOS

“Ex positis”, o Ministério Público Federal requer o recebimento e a


autuação desta inicial, com os documentos que a instruem, e a citação da UNIÃO para que
responda à presente ação, sob pena de revelia e confissão, julgando-se totalmente procedentes
os pedidos abaixo formulados:

a) seja deferida a antecipação da tutela pretendida, nos termos acima


propostos;

b) seja confirmada, por sentença de mérito, a antecipação dos efeitos da


tutela;

c) seja declarada, por sentença de mérito, a nulidade, por manifesta


ilegalidade, dos itens itens 3.e.1.b; 3.e.1.l; 3.g.5; Anexo A: 5, 14 e 15; Anexo B: 1.c, 2.a e 3.a; e
Anexo C: 1, 7 e 8, bem como de todo e qualquer item que encerre limitação de acesso aos

30 Anexo A: itens 5, 14 e 15; Anexo B: itens 1.c, 2.a e 3.a; Anexo C: itens 1, 7 e 8

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cargos do Exército por motivo de saúde que não seja também uma causa de incapacidade
definitiva para o trabalho, quando aplicada aos militares da ativa31;

d) seja a UNIÃO condenada a proceder à revisão e à adequação da


Portaria nº 41-DEP, do Departamento de Ensino e Pesquisa do Exército, a fim de que
dela sejam expurgadas as exigências ou restrições inconstitucionais ou de caráter
discriminatório, que violem princípios como o da isonomia, da proporcionalidade ou da
dignidade da pessoa humana, tais quais as impugnadas na presente ação.

Embora o mérito da demanda consista basicamente em questões de


direito, o Ministério Público Federal protesta pela produção de todas as provas admitidas em
direito, a serem especificadas futuramente, caso se mostrem necessárias.

Dá à causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).

Brasília, 17 de maio de 2010.

LUCIANA LOUREIRO OLIVEIRA


Procuradora da República

31 Todos os itens constam da Portaria nº 41-DEP (cópia anexa).

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