SUSTENTABILIDADE
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[As tecnologias da sustentabilidade] “podem ser caracterizadas como ‘saberes e habilidades
de perenização da vida’, que se traduzem em ordenações sistematizadas de modos
diferenciados de interação (i.e., processos de produção e circulação do produto, modos de
organização social, padrões de ganho e processamento de informações etc.). As tecnologias
da sustentabilidade expressam sua pertença à modernidade ética por terem no princípio
‘sustentabilidade’ sua métrica (...)” (Bartholo Jr e Bursztyn, 2001: 167).
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“As novas representações híbridas geradas pelo encontro com a cultura/civilização européia
dominante constituíram, no último século, espécies diversas de síntese, mais ou menos
radicais, a partir de duas vertentes: de um lado, as idéias e valores de inspiração autóctone e
holista; de outro, as idéias e valores trazidos da configuração individualista moderna”
(Peirano, 1997: 88).
não-hegemônicas, o que significa um empobrecimento do acervo cultural de
técnicas e de conhecimentos e a imposição de modelos exógenos, sem
vínculos de pertencimento com os povos dos lugares.
A Constituição Brasileira de 1988 conceitua a saúde como direito de todos e
dever do Estado, definindo-se, assim, o princípio da universalidade para o
serviço de saúde. Estabelece também como diretrizes a “integralidade, a
eqüidade, a participação social e a descentralização”. O amadurecimento da
idéia da saúde como direito universal resultou num paulatino e crescente
esforço de ampliação do acesso à saúde no Brasil. A Constituição Federal de
1988 instituiu o Sistema Único de Saúde, objetivando a ampliação do acesso, a
unificação das estruturas existentes, a descentralização, o financiamento e o
controle social. Apesar dos avanços decorridos a partir de então, a eqüidade no
acesso à saúde ainda está longe de se tornar uma realidade, a despeito da real
viabilização progressiva do SUS no país. O mesmo se aplica ao acesso da
população ao medicamento. O Brasil está entre os 10 maiores mercados de
medicamentos (com faturamento de cerca de US$ 7 bilhões em 2001) e, no
entanto, mais de 50% da população brasileira não tem acesso aos
medicamentos por falta de recursos financeiros. Segundo Marques (2000), o
mercado governamental, no país, corresponde a 35% do mercado total de
produtos farmacêuticos, e apenas 15% são comprados de modo centralizado
pelo SUS e distribuídos para cerca de cem milhões de brasileiros pobres
(dados de 2000). No ano de 2004 houve a implementação de novas políticas
públicas de acesso a medicamentos básicos, como as Farmácias Populares,
implantadas em muitos municípios brasileiros.
Para Marques (2000), a regulamentação da moderna biotecnologia de
aplicação à saúde é um dos grandes desafios para do novo milênio,
envolvendo a discussão de patamares ético, econômicos e políticos, apontando
para a urgência em se definir um arcabouço legal voltado para proteger e
regular o acesso aos recursos naturais e biológicos do Brasil, ainda mais frente
à posição do país no topo da lista dos países que detêm a maior biodiversidade
no mundo, com estimativas apontando que os ecossistemas do Brasil
compreendem 22% de todas as espécies biológicas do mundo, sendo que
apenas a floresta amazônica constitui-se como reservatório de, pelo menos, 55
mil espécies de plantas, o que torna evidente a importância do Brasil quanto
aos patrimônio de recursos biológicos.
Dados indicam tanto a necessidade de se rediscutir os paradigmas médico-
farmacêuticos em questão quanto a de implementação de políticas de estímulo
ao desenvolvimento do setor farmacêutico nacional, que responde apenas por
cerca de 25% dos medicamentos consumidos no país, bem como a de discutir
amplamente a perspectiva dos Fitoterápicos4: a Fitoterapia tem sido uma das
práticas mais discutidas na contemporaneidade, buscando-se, tanto no país
quanto em outros lugares do mundo, mecanismos de regulamentação e
implementação de políticas para a área.
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A OMS define fitoterápicos como substâncias ativas presentes na planta como um todo, ou
em parte dela, na forma de extrato total ou processado, que podem ser extraídos a partir de
processos diversificados e comercializados em estado líquido, sólido ou semi-sólido.
Sob o ponto de vista da gestão e do marco regulatório brasileiro, os
fitoterápicos se inserem no amplo setor da biotecnologia e é dentro desta
perspectiva que têm sido tratados pelo Estado brasileiro nos últimos anos, sob
a ótica do Ministério da Ciência e da Tecnologia. Entretanto, a normatização do
registro de medicamentos fitoterápicos está situada no âmbito do Ministério da
Saúde, por meio de resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária /
ANVISA, a Resolução de Diretoria Colegiada n°. 17 (RDC n°. 17), de 24 de
fevereiro de 2000 (em anexo). Dentre outras definições estabelecidas desde
seu início, a RDC 17 situa os fitomedicamentos a partir do conhecimento de
sua eficácia e da segurança de seu uso, e estabelece também alguns tipos
diferenciados, como os chamados medicamentos fitoterápicos novos,
tradicionais ou similares. Esta tipologia vai servir de referência para a definição
de exigências específicas para registro do medicamento tradicional5.
O mercado de fitoterápicos tem experimentado um acentuado crescimento,
tanto no Brasil quanto em todo o mundo, provavelmente como expressão da
busca dos sujeitos por maior autonomia sobre o corpo e seus processos, bem
como do retorno do sentimento de valorização da natureza e dos produtos a
ela associados. Sob o ponto de vista das práticas médicas, combinam-se
nessa tendência o medo e a preocupação com efeitos colaterais dos
medicamentos sintéticos ou alopatas à crença de que os fitoterápicos não
causam efeitos colaterais indesejáveis, sendo mais “seguros ou confiáveis”. O
aumento expressivo do consumo de fitoterápicos, especialmente nos países
industrializados, fez aumentar o interesse por este mercado, estimado, em
2002, em mais de US$20 bilhões anuais, tendo como principais consumidores
a Europa (com a Alemanha respondendo por mais da metade do mercado
europeu) e a Ásia, apesar de um expressivo crescimento do consumo e da
produção nos EUA, que já desenvolve cultivo de várias espécies (cf. ibidem).
Outras questões relativas à produção de fitoterápicos dizem respeito à gestão e
ao manejo da biodiversidade, à qualidade e disponibilidade das matérias
primas para fabricação dos medicamentos fitoterápicos, à complexidade das
tarefas de controle de qualidade, padronização e estabilização dos
fitomedicamentos e à forte pressão do modelo tecnológico agroquímico,
intensivo em uso de fertilizantes e pesticidas que podem comprometer por
demais a qualidade dos solos e da matéria prima (cf. Siani, 2002).
O imperativo de preservação da biodiversidade vincula-se à própria
sobrevivência da espécie humana, além de apontar para um indiscutível valor
ético de defesa da vida em todas as suas formas e dimensões. Entretanto, para
que esta preservação não fique apenas no plano da utopia, é preciso avançar
na discussão sobre efetivas e equânimes formas de concretizá-la, o que passa
pela reflexão sobre a busca de atividades econômicas que possibilitem a
conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Na medida em que a
Fitoterapia envolve dimensões sociais e ambientais variadas, implicando
5
Siani (2002) explica as três fases de desenvolvimento de fitomedicamentos (conforme
RDC17): a botânico-agronômica, a químico-farmacêutica e a biomédica, que abarca processos
de farmacologia, toxicologia e clínica e tem como principais entraves as dificuldades de
comprovação da eficácia e da segurança de uso, o que envolve farmacologia pré-clínica (testes
in vitro e in vivo) e clínica (pessoas), com altíssimos custos.
também em questões referentes à biodiversidade e à gestão ambiental, a
discussão sobre ela torna-se ainda mais interessante à perspectiva da
construção crítica de conhecimentos e análises multidisciplinares, visando
também à preservação e à democratização do acervo patrimonial da cultura
brasileira e contribuindo para a ampliação e o enriquecimento de um “acervo de
conhecimentos e de habilidades de ação para a implementação de processos
tecnicamente viáveis e eticamente desejáveis” (Bartholo Jr e Bursztyn,
2001:167). Apesar do grande número de medicamentos sintéticos, criados
continuamente pelo homem em seus laboratórios, e da manipulação constante
de novos elementos e tecnologias, a maior parte dos fármacos têm suas
origens diretamente relacionadas ao ambiente natural, sendo o mundo vegetal
uma fonte inesgotável de moléculas – e genes – extremamente importantes à
farmacopéia6.
Também os saberes e os conhecimentos medicinais populares, locais, ou de
comunidades tradicionais foram, ao longo da história da medicina e da
farmacologia ocidental, e são, atualmente, fonte constante para a produção
farmacológica mundial, o que evoca graves problemas culturais, políticos e
econômicos. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, em artigo em que
discute os direitos de propriedade intelectual7, comenta esse âmbito da busca
de inovação tecnológica ou industrial pelo mercado junto às comunidades
tradicionais, indicando que cada vez mais companhias farmacêuticas e o
institutos americanos se interessam pela prospecção de recursos genéticos,
provenientes, sobretudo de florestas tropicais, pois a eficiência da pesquisa é
quintuplicada quando são seguidas as sugestões apontadas pelo
conhecimento indígena (Cunha, 1998b: 95).
Questões que envolvem os mecanismos e as formas de aproximação, de
utilização, de apropriação ou de pirataria de empresas e multinacionais sobre
conhecimentos locais ou populares têm sido discutidas no mundo e no Brasil,
notadamente frente aos novos problemas contemporâneos e às discussões
sobre propriedade intelectual nos mais diversificados âmbitos da produção
cultural, científica ou tecnológica, ou, no caso mais específico aqui tratado,
junto às populações indígenas ou tradicionais, em busca de seus etno-
conhecimentos, no processo de bioprospecção, o que levanta questões sérias,
a começar pelas éticas, sobre a repartição equânime e justa dos ganhos e
resultados. Duas tendências de análise destas questões se colocam: por um
lado, os fitoterápicos podem ser encarados como oportunidades para geração
sustentável de renda para comunidades locais (portanto, alternativa de
financiamento da conservação da biodiversidade) e, por outro, a bioprospecção
é vista como mecanismo de pirataria da biodiversidade e do conhecimento
associado ao seu uso.
6
Segundo Garcia (1995), “O valor dos produtos naturais das plantas medicinais para a
sociedade e para a economia do Estado é incalculável. Um em quatro produtos vendidos nas
farmácias é fabricado a partir de materiais extraídos de plantas das florestas tropicais ou de
estruturas químicas derivadas desses vegetais. Somente nos EUA, em 1990, foram vendidos
normalmente cerca de 8 bilhões de dólares em medicamentos derivados das plantas”.
7
Cunha, M. C. da. “Deve o conhecimento ser livre? – A invenção da cultura e os direitos de
propriedade intelectual”. IN: Sexta Feira: Antropologia, Artes e Humanidades, número 2,
Fronteiras, São Paulo: Pletora Editora Ltda, 1998.
Compreendendo-se a biodiversidade como toda a vida biológica no planeta em
seus diferentes níveis (de genes a ecossistemas), ou seja, a “variabilidade” da
vida (cf. Albagli, 1998), aumenta-se a percepção sobre a importância de
medidas de longo e de curto prazos que visem à proteção e à manutenção das
mais diferentes formas de vida. Durante a década de 1990, com a crescente
percepção da necessidade de proteção da biodiversidade e de
regulamentação, 157 países assinaram a Convenção sobre a Diversidade
Biológica (CDB) durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), comprometendo-se a respeitar a
soberania dos países sobre seu patrimônio genético. A CDB já aborda o
problema do uso comercial de saberes e conhecimentos tradicionais e
populares, afirmando a necessidade de se garantir a repartição equânime e
justa dos ganhos. A abordagem de questões relativas à biodiversidade (e sua
utilização) envolve também a discussão sobre a informação a ela relativa, tanto
no que se refere ao domínio dos recursos biogenéticos naturais, sua gestão e
utilização, quanto no que reporta à proteção de direitos à propriedade
intelectual, sejam frente aos problemas sobre a “posse” dos conhecimentos
tradicionais ou populares seja sob a ótica empresarial, das patentes, dos
fármacos ou dos bancos genéticos.
Segundo Garcia (1995), a Organização Mundial de Saúde estima que 80% da
população do planeta utilizam, de algum modo, plantas medicinais como
medicamentos, englobando a utilização de cerca de 25.000 espécies. Ainda
não se conhece, entretanto, a diversidade de plantas das florestas tropicais
empregadas medicinalmente por comunidades e populações indígenas ou
tradicionais, sem um parâmetro para o número de espécies tropicais envolvidas
nesta produção cotidiana destas comunidades, mas supõe-se que, como cerca
de 2/3 das espécies de plantas se encontram nos trópicos, há uma
possibilidade grande de se levantar inúmeras novas plantas da flora tropical
potencialmente utilizáveis pela farmacêutica, seja na aplicação direta, na
produção fitoterápica, ou na construção de novos modelos sintéticos de
produtos bioativos.
Um dos problemas básicos relacionados à ampla utilização dos fitoterápicos
reporta-se à diferença entre os paradigmas científicos e epistemológicos
envolvidos no uso medicinal das plantas, pois, apesar do vasto e antigo uso,
poucos fitoterápicos foram validados cientificamente (pelo método empírico
moderno) quanto à comprovação da sua eficácia clínica ou à avaliação de sua
segurança. O aparato conceitual positivista da biomedicina nem sempre serve
para aferir eficiências terapêuticas das medicinas paralelas, pois
correspondem, entre si, a categorias mentais culturalmente distintas, a
diferentes visões de mundo e arcabouços simbólicos impossíveis de redução a
um mesmo modelo. A utilização empírica das plantas baseia-se,
constantemente, em conhecimentos menos formalizáveis, provenientes do
saber popular ou tradicional, do acúmulo de informações oralmente
transmitidas ou das experiências particulares de grupos ou de sujeitos
praticantes. Representa uma epistemologia e um pólo do saber e da ação
distintos do saber elaborado e considerado pela “cultura erudita” como cânone
único e verdadeiro, praticado pelas instâncias universitárias e acadêmicas e
validado como modelo pelas regulamentações e legislações que organizam a
produção industrial. Por se reportarem historicamente a processos diferentes
de validação de reprodução de conhecimento, os saberes populares/
tradicionais refletem, quando confrontados, o conflito de legitimidade que existe
entre os seus modos de validação. Portanto, há pouca informação e produção
formal “cientificamente” legitimada sobre os constituintes responsáveis pelas
atividades farmacológicas de fitoterápicos, poucos estudos clínicos bem
controlados sob o ponto de vista do padrão e método de validação para
mercado.
Por outro lado, nas comunidades tradicionais ou locais, o processo de
produção de conhecimento e de pesquisa é contínuo, e acontece inserido
numa rede de relações simbólicas e sociais amplas, como parte de uma cultura
viva. Cunha (1998a: 82) aponta para a necessidade de valorização das
ciências do tipo local e para a riqueza que a diversidade cultural se constitui,
indicando também o caráter diferenciado com que os conhecimentos
tradicionais se processam, específicos a condições próprias de produção de
saber: “O importante é manter a possibilidade dessas experiências, pois, de
certa forma, esses grupos locais formam um batalhão de pesquisadores”.
Questões como estas evidenciam a amplitude da temática, que, além de
âmbitos epistemológicos, científicos, tecnológicos, medicinais, farmacêuticos,
ecológicos, ambientais e sociológicos, assume uma imensa dimensão
econômica, ética, política e institucional, envolvendo importantes reflexões
sobre a defesa dos direitos intelectuais desses grupos locais ou tradicionais,
frente aos imensos interesses comerciais existentes. Implica também em
outros tipos de problemas culturais, como, por exemplo, o de estabelecimento
de critérios para validação de medicamentos tradicionais ou fitoterápicos, isto
é, as dificuldades de tradução dos dados da etno-farmacologia para a
“linguagem” da ciência empírica, por causa das diferenças paradigmáticas, que
são, em última instâncias, culturais, antropológicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS